Você está na página 1de 11

Psicanálise: cura e tratamento no percurso analítico.

Texto referente ao minucurso realizado no dia 09 de Janeiro

Marco Correa Leite

Vamos ao começo: quando alguém procura um psicanalista, procura por


quê? Por que ele entende da técnica? Por que é bonito? Por que é inteligente?
Por que promete uma cura? Ou por que, por alguma razão, está desesperado e
não encontrou em outros espaços o alívio de seu sofrimento?
Esta última questão, na realidade, é o que cerca o nosso ofício desde a
criação da psicanálise por Sigmund Freud. E isso não é pouco. Se Freud insiste
em diversos de seus textos, mais precisamente nos de 1905, que a psicanálise
não é nem tem nada a ver com hipnose, florais, medicina, procedimentos
catárticos e – para alguns isso pode ser um espanto – psicoterapias, isso tudo
não é sem razão. Freud inventou uma outra coisa que, cada dia mais, nos é
necessário resgatar devido aos desvios que muitos grupos supostamente
formativos fazem em nome da psicanálise.
Hoje, tomarei uma via um pouco mais direta, evitando as já conhecidas
críticas que tenho a muitas instituições que propõem uma formação e que, no
fundo, só fazem ganhar dinheiro em cima de uma parcela grande da população
que sai achando, após um suposto curso de formação, que é psicanalista. Esse
achismo vai somente até começarem a ler de fato os textos de Freud. Ao
compararem as coisas como lhes foram apresentadas e são tratadas com aquilo
que Freud descobriu e inventou, percebem-se diante de uma encruzilhada:
reconheço que estou distante disso e fui enganado ou continuo fingindo que está
tudo bem?
Aos que querem continuar fingindo, que o façam, mas que não recebam
nenhum paciente nem digam que estão fazendo análise, afinal, mais cedo ou
mais tarde será cobrado um preço. Trabalhamos com vidas e isso é sério.
Pacientes morrem, se matam, matam, se destroem, se medicam, adoecem cada
vez mais. Como não ver nessas repetições, quando elas se dão – e elas estão
aí para todos que tiverem olhos para ver –, os efeitos danosos de tentar mexer
de qualquer jeito naquilo que, por Deus, está cercado de todo tipo de resistência
porque tem motivos de sobra para isso? Hoje, então, feito este adendo, vou
tomar uma linha mais direta.
Primeiro, vamos nomear as coisas e diferenciá-las. Gostaria de propor a
vocês o termo padecente. Depois, paciente e, mais um pouco depois, analisante.
Quem nos procura para tratamento? Esta é a primeira pergunta que deve ser
respondida com certa cautela. Se dissermos o Sr. X ou Y, o fulano ou o ciclano,
estaremos acertando em cheio. Mas o que o Sr. X ou Y tem a ver com o ciclano
ou fulano? O que um homem de seus aproximadamente 30 anos tem a ver com
um senhor idoso na casa dos 70 anos com câncer terminal? Ou ainda com um
autista, independente da idade, da condição e das habilidades de linguagem que
possa ter para trocar com o analista qualquer coisa que seja? O que uma mulher
com seus 18 anos pode querer ao procurar um psicanalista depois de se tocar
que foi abusada quando criança e sua mãe, aos 50 anos, procura o mesmo
analista para falar que a filha sempre foi muito mentirosa, fantasiosa e que não
sabe mais o que fazer com ela, de modo que sempre cai em desespero e, em
prantos, se automedica com psicotrópicos?
Dei aqui alguns exemplos de situações hipotéticas, mas que, sabemos,
estão aí batendo à porta de nossos consultórios. Antes mesmo de um
diagnóstico propriamente dito, sugiro começarmos por isso. O que faz todos
estes poderem ser contados como um grupo de possíveis candidatos a se
analisarem? Proponho um termo: padecente.
Todos, sem sombra de dúvidas, trazem na alma uma ferida que os laços
de amor, amizade, trabalho, os vínculos de uma forma geral, e, ainda mais, os
tratamentos disponíveis no mercado não conseguiram aliviar. Este mal-estar
Freud havia, desde muito cedo, percebido em seus pacientes. O homem padece,
e não apenas Freud disse isso. Não sei se já leram Kierkegaard, para dar um
exemplo, mas sua posição sobre a condição humana enquanto pathológica é
simplesmente sensacional.
A psicanálise, longe de ser uma cura para a condição humana, oferece
uma via de tratamento para o padecente e, nesta via, encontramos a
possibilidade de curar algumas coisas. Vou um pouco mais devagar aqui. Espero
que não se cansem.
O que seria um tratamento? Segundo a etimologia, a palavra tratamento
vem do latim tratare, que significa “lidar, manejar, administrar” e está relacionada
ao verbo trahere, cujo sentido é “puxar, arrastar, trazer”. Por volta do século XIV,
o sentido de “lidar com algo por meio da fala ou da escrita” se aplicou em
medicina como “processo de obter a cura de uma doença”. No entanto, podemos
pensar que, no tratamento, há também a possibilidade de manutenção de um
determinado tipo de estado, não necessariamente de uma cura. Um exemplo
disso são os tratamentos paliativos, nos quais tende-se a cuidar para que o fim
da vida seja o menos sofrido possível. Não temos aqui o tratamento da doença
em si, que é impossível, mas o tratamento, o cuidado, o manejo do doente.
Para avançarmos um pouco, proponho também que possamos pensar no
conceito de cura. A origem da palavra, do latim curare, comporta algumas
possibilidades interessantes que não necessariamente nos presenteiam com o
mesmo fim. Em primeiro lugar, podemos pensar a cura como um livrar alguém
de uma doença e, em segundo, restabelecer a saúde ou, ainda, restabelecer um
estado de saúde anterior. Aqui começa o problema. Se a psicanálise é de fato
um tratamento e promove uma cura no sentido de livrar alguém da doença, ela
não pode promover a cura no sentido de devolver o padecente ao estado anterior
da doença. Não há restabelecimento possível aqui, uma vez que foi justamente
o estado anterior que o trouxe ao consultório. A única saída é para frente, não
há retorno possível.
Aqui a psicanálise se distingue de forma muito clara das psicoterapias a
partir das quais se pensa diante de um problema na vida, que pode ser uma
cena, como acreditou Freud no começo de seu trabalho, hipótese que depois
descartou, ou, então, uma modificação no funcionamento da bioquímica
cerebral, como acreditam os fiéis seguidores de algumas igrejas que têm na
ciência sua “verdade”, quando deveriam ver ali apenas mais uma teoria. Seja
como for, parece que há alguma coisa que causa um determinado tipo de
desordem no organismo e que essa coisa deve ser extirpada. Para a psicanálise,
a desordem esteve aí desde sempre, apenas culminando em determinado
momento da vida do paciente, incapacitando-o ou atrapalhando-o a tal ponto
que, vendo-se sem saída, recorre ao outro para que seja ajudado.
Aqui estamos diante da procura, dos primeiros contatos, nos quais o
padecente, em sua condição original, no sentido de origem mesmo, se põe a não
mais querer ou, mais precisamente, a não mais suportar a vida tal qual ela se
apresenta. Seja por um determinado tipo de sofrimento que retorna de tempos
em tempos, seja por uma percepção nova das coisas, seja ainda por um instante
que não cessa, como no casos das crises de angústia e pânico, o fato é que,
seja lá como for, alguém procura o analista e, por mais que tenha uma história
sobre sua dor, seus sofrimentos e dê a eles um sentido, aos poucos, ao ir
nomeando aquilo que ele acredita ser o problema, vamos percebendo que as
palavras escorregam.
O analista, longe de tentar voltar a atenção para a cena, o fato ou a ideia
que o paciente tinha no começo da conversa, escuta atentamente cada palavra,
cada respiração, cada suspiro como se fosse uma obra digna de ópera. O som,
as interrupções, os silêncios, as lágrimas, tudo vai se apresentando, às vezes ao
mesmo tempo, como a introdução de um longo trabalho que parece começar ali.
Alguns menos experientes preferem tomar notas, esquecendo ou
ignorando que Freud mesmo não recomendava isso. Tomar notas é desviar a
escuta e a atenção para outra coisa. É acreditar que aquilo que anotamos no ato
da fala do paciente é importante, quando, na verdade, tudo é igualmente
importante. Essas primeiras sessões, temos que ter muito cuidado com elas. Se
durante a análise propriamente dita uma intervenção pode produzir atuações que
põem a perder todo o tratamento, aqui, no início do jogo, quando as peças e as
regras ainda estão sendo marcadas e definidas, todo cuidado é pouco. Isso não
quer dizer que o analista deva permanecer mudo o tempo todo. Isso quer dizer
justamente o contrário: o analista tem o dever ético de escutar e, mais, de fazer
o paciente escutar da boca do próprio analista que ele importa e que, qualquer
que seja a razão por que ele chegou ali, será pela via da palavra que ele irá sair.
Aqui estamos já nas entrevistas preliminares. O tratamento, de certa forma, já
começou, mas ainda não está em seu pleno funcionamento. Que alguém diga a
alguém qualquer coisa, isso não significa que é uma psicanálise. Que alguém
diga tudo o que vier à cabeça, também não. Há uma confusão em nosso campo.
Muitos acreditam que basta o paciente começar a falar “livremente”, como se
isso fosse possível, para que a regra fundamental esteja sendo obedecida e para
que uma análise se dê.
Vamos lembrar Freud. O nome da regra fundamental e única é associação
livre de ideias. Ora, apenas falar por falar não quer dizer muita coisa. É
necessário também fazer as associações, que desafiam o sentido prévio das
coisas. Freud (1937) chega a dizer que um paciente está de fato em análise
quando consegue reconhecer entre suas ideias e sua fala algo muito próximo de
uma fala que aparece mais ou menos assim: “Eu nunca pensei uma coisa dessas
antes.”, “Isso não sou, isso não tem nada a ver comigo.” etc.
Pouco discutida nas instituições “formativas” de psicanalistas, acredita-se
que a regra fundamental é algo quase que normal e corriqueiro. Quanto a quem
pensa assim, duvido que esteja dizendo de sua própria experiência de divã. A
associação livre de ideias é, na verdade, um tormento, um inferno. Pergunto a
vocês, que se analisam: quantas vezes a palavra apareceu em forma de nó na
garganta ou em sintoma ou em lágrimas, mas não saiu? Isso quando a coisa
corre bem! Geralmente, ela dá lugar a um branco ou a outra ideia. Aquele que
sustenta a associação livre, que luta para que a regra seja seguida é,
verdadeiramente, o analista, sempre invocando o que quer que seja, sempre
intervindo para que a palavra continue a fluir. Ao contrário das terapias que
tendem a ver no sentido o estofo da experiência, por exemplo, na hipnose, em
que uma cena significa tudo e agora o paciente sabe, por meio da confirmação
do terapeuta, que aquela cena foi a causa de todo o adoecimento, na psicanálise,
a cena é somente uma construção que ampara alguma outra coisa, que nos
revela algo que jaz por detrás disso. A escuta do analista se dirige para este por
detrás, que é efeito da transferência.
Quero voltar um pouco aqui. Ainda estamos nas entrevistas preliminares,
mas já avançando para dentro do método psicanalítico. Vejam bem, ainda não
estamos na análise propriamente dita, mas aplicamos o método para tentar
verificar quais efeitos esse tratamento terá para esse paciente. Direi de outra
forma.
Na clínica, certa vez, atendi uma senhora que estava muito confusa, com
oscilações de humor. Sempre fora deprimida, havia sido tratada com
eletrochoque quando jovem, seu pai foi militar, perdeu-o cedo na vida, teve duas
filhas, que haviam morrido, sua mãe e seu marido também morreram, só havia
sobrado um neto, ela me dizia. Durante as entrevistas, ficava eu na berlinda: “É
possível psicanálise aqui?”. Dito e feito: acolhi, escutei, intervim e, aos poucos,
fui percebendo que o problema não era ali comigo. Encaminhei e foi dado o
diagnóstico de Alzheimer. Ela, curiosamente, não se lembrava de meu nome,
mas lembrava que eu a havia chamado de velha. Como dizer que a psicanálise
é para todos?
Outro caso que atendi foi de uma mulher, acamada por um câncer, na
casa dos pais. Tinha uma filha jovem, adolescente, não me recordo da idade,
isso faz muitos anos. Por insistência de uma parente, fui à casa dela e a atendi
algumas vezes. Em determinado momento, subi ao quarto e constatei que ela
não sabia mais com quem estava falando. Percebi que não tinha muito o que eu
fazer ali, mas, em um dos atendimentos, em que ela estava preocupadíssima
com sua filha, com os sonhos que a filha dela não viveria, como, por exemplo,
ter a mãe no altar com ela em seu casamento, com a falta que essa mãe iria
fazer e tudo o mais que vocês possam imaginar, eu perguntei à paciente: “Olha,
hoje, você está de cama. Acha que sua filha está bem?”. Ela me respondeu que
sim. Logo emendei: “Seus pais estão cuidando muito bem dela. Não precisa se
preocupar com sua filha, pode ficar em paz.”. A paciente morreu alguns dias
depois. É possível uma psicanálise ali?
É óbvio que não. Não estamos diante de um percurso de análise em que
temos tempo a nosso favor ou, ainda, em que podemos nos dar o luxo de marcar
na agenda dois ou três horários para atender essa pessoa e ir construindo com
ela uma demanda analítica propriamente dita. Mas corro o risco de dizer que é
possível, sim, um trabalho de escuta, de cuidado e até de alguma forma de cura
que permita a quem é atendido, por meio de minha experiência com a
psicanálise, poder ficar um pouco melhor ou, no pior dos casos, partir.
Um último caso para exemplificar, mais comum do que se imagina. A
paciente chega com crises de tontura, mal-estar e enjoo. Tem labirintite
diagnosticada há anos, muito pontual, e quer tentar a psicanálise para curar-se
disso. Obviamente, temos muitas possibilidades para interrogar essa paciente,
mas, se tomamos a queixa como objetivo do tratamento, estaremos enfiando os
pés pelas mãos. Não há análise possível quando a pessoa que nos procura sabe
exatamente o que quer e como conseguir, pois consegue. Pensem aqui só um
pouco comigo. Se sabe o que quer, não irá direcionar o saber ao analista. Esse
ponto é fundamental que aconteça antes ou durante as entrevistas preliminares.
Se sabe como conseguir, o analista está em apuros. Qualquer gesto ou ato será
usado contra ele a qualquer momento. Se consegue, então, aí não precisa de
um analista. Podemos dizer que esta tríplice é o que esperamos de um fim de
análise, não de um começo.
Então, para resumir a coisa: as entrevistas preliminares servem também
para nos orientar se um caso pode ou não ser acolhido em análise. Esta ideia
que lhes apresento aqui hoje não é de forma alguma nova. No entanto, a cada
dia que passa, os famosos psicanalistas de Instagram insistem em ir contra boa
parte do legado de Freud e, ainda assim, chamar o que quer que façam de
psicanálise, alegando que a psicanálise é boa para todos e que todos deveriam
fazer análise. Ora, Freud nos deixou muitos e muitos textos para pensarmos isso,
o que me leva a refletir sobre a ignorância que os psicanalistas dos dias atuais
têm do próprio texto de Freud e também da psicanálise.
Somente para exemplificar as coisas, citarei um trecho de um dos
primeiros textos psicanalíticos escritos por Freud em 1905: “A terapia
psicanalítica foi criada a partir de e para doentes com incapacidade duradoura
de viver, e seu triunfo é o que torna um número satisfatório deles capazes de
viver sua existência de forma duradoura.” (p.71). Quis tocar neste trecho apenas
para demonstrar a vocês, nas palavras de Freud, que a psicanálise não é uma
prática a todos, mas para quem precisa dela, e que há também aqueles que dela
precisam, mas, por alguma razão, não correspondem ao tratamento. Isso está
um pouco mais adiante no mesmo texto.
O fato é que devemos ter muito cuidado antes de receber alguém em
análise. Devemos, sim, realizar uma seleção e as entrevistas preliminares são o
que de melhor temos à nossa disposição para isso. Mas em que consistem
propriamente as entrevistas preliminares? Longe de passar a vocês um manual,
o que descaracterizaria tudo o que pensamos como uma psicanálise, pretendo
ao menos dar algumas balizas para que possam se afirmar teoricamente, mas
sempre lembrando que isso aqui não funciona por si mesmo. Há que
acompanhar também em supervisão, há que pensar o caso clínico e montá-lo de
acordo como é permitido pela teoria. De qualquer forma, espero que seja
interessante.
Quando um padecente chega à clínica, ele deve ser convidado a falar
sobre seus problemas. O analista, por sua vez, deve adotar geralmente uma
postura de silêncio. Esse silêncio não quer dizer não falar nada, mas silenciar a
si mesmo, colocar o seu eu para fora, estar ali para acolher, escutar e intervir a
partir do que fala e somente do que fala o paciente. A teoria, o saber sobre as
múltiplas determinações do sofrimento humano, as poesias, as supervisões, os
anos de análise e tudo o mais que favorece o analista no sentido de saber ou
compreender qualquer coisa que o padecente está trazendo em forma de gestos,
lágrimas ou palavras, não deve aparecer. Este silêncio de si é a disposição
máxima que devemos ter desde o primeiro encontro até o último dia do
tratamento. Porém, cada caso é um caso, nunca me canso de dizer isso.
Silenciar a si mesmo é estar aberto para o que quer que apareça do outro.
Neste momento, o analista joga a isca: “Fale tudo o que vier à sua
cabeça”. Vejam que incrível! Aqui já não tem nada de livre, o analista provoca,
seduz, convoca o paciente a dizer, mas é apenas uma isca. O nosso interesse
não está nesse “fale tudo”, mas no “associe”. No entanto, só poderá haver
alguma associação na medida em que as cartas estejam na mesa. Não me
surpreende que muitos pacientes desistem da psicanálise quando encontram
analistas mudos que mandam os pacientes continuarem falando e ficam com
aquele som “Uhum”. Isso não tem nada de psicanálise, assim como não tem
nada de psicanálise quando o paciente chega e o analista explica o que o
paciente está sentindo ou o porquê de ele estar sofrendo. A posição que o
analista ocupa é uma posição que interroga, que indaga, que questiona no intuito
de fazer com que o paciente apresente o máximo possível de elementos que ele
sabe quanto ao motivo de sofrer.
Algumas pessoas param nas entrevistas. Geralmente, não é isso que
acontece quando já temos certo percurso e conseguimos sustentar essa função,
mas por que elas param? Existem algumas causas, não poderemos explorar
todas elas, mas, para além das causas iatrogênicas, verificamos também que
algumas pessoas só precisavam de um espaço para falar, para pôr para fora,
para tomar uma coragem, não sei, as variáveis são muitas. O que se verifica é
que não se produziu uma demanda analítica. A queixa foi resolvida, tão rápido,
às vezes em 10 ou 20 sessões, quanto em outras práticas do campo da saúde
mental. Se a queixa foi resolvida, o paciente saiu e está sentindo-se bem, ótimo.
No entanto, não nos enganemos, não foi uma análise. Por outro lado, sem o
outro, sem o analista em sua função, talvez o paciente estivesse ainda
patinando.
Então, temos que, nas entrevistas preliminares ao tratamento, coisas
acontecem. E acontecem porque, embora não estejamos ainda em análise
propriamente dita, há ali alguém que faz uma escuta atenta, que segue e
promove a regra do jogo e que verifica, em um curto espaço de tempo, alguns
efeitos terapêuticos importantes – que não chegam a ser efeitos analíticos, mas
efeitos terapêuticos.
Outra função das entrevistas preliminares é poder construir uma demanda
de análise, que será o fio condutor do tratamento e cuja tentativa de realização
poderemos ver na transferência analítica. É preciso distinguir queixa de
demanda. Resumidamente, a queixa é aquilo sobre o que o paciente geralmente
fala nas sessões. Ele conta sua história, re-clama, pedindo que algo lhe seja
dado. No entanto, o que pede o padecente é, sem sombra de dúvidas, retornar
ao estado anterior ao adoecimento, o que nos é impossível retomar. Aqui
entramos em outro ponto que deve ser discutido enquanto função das entrevistas
preliminares: a questão da produção de uma transferência propriamente
analítica.
Quando Freud escreve “A dinâmica da transferência”, já haviam se
passado mais de 20 anos desde seus primeiros trabalhos com pacientes
neuróticos. Isso nos dá uma quantidade interessante de casos para que seja
possível formalizar algumas coisas. No mesmo texto, Freud nos adverte de que
os nossos pacientes nos procuram a partir de uma certa disposição pulsional
para tentar satisfazer com o psicanalista algo que ficou insatisfeito. Esta parte,
bem no começo do texto, nos traz um vislumbre de muitas diferenças entre a
psicanálise e outras modalidades terapêuticas. Com uma leitura mais atenta,
torna-se impossível dizer, inclusive, que a transferência e seu manejo na clínica
psicanalítica têm alguma coisa a ver com o rapport ou com as relações entre
médicos e pacientes. Esta relação primeira, que até podemos comparar com o
rapport, quando o paciente se aproxima com suas expectativas de satisfação,
tratamento e cura, deve ser manejada para que uma outra relação apareça.
Podemos dizer, então, em poucas palavras que se trataria de dois momentos na
transferência: um primeiro momento em que teríamos uma relação comumente
constituída como qualquer outra entre o paciente e o psicanalista e um segundo
momento em que, a partir das intervenções do analista, o que se produz é uma
transferência propriamente analítica. É muito importante deixar isso claro. Esse
tempo da construção de uma transferência analítica não corresponde ao tempo
de tantas ou tantas sessões, mas de uma produção em que o analista vai
assumindo determinado lugar de objeto na relação que se produz com o
analisante. Quero deixar isso aqui muito demarcado, tanto analista quanto
analisante não existem a priori, muito menos o inconsciente freudiano, tampouco
o sujeito do inconsciente. Isso tudo é um produto do dispositivo clínico.
Voltando à questão da construção da demanda de análise, o que vemos
é que a relação que se produz entre aquele que fala e aquele que se coloca
como objeto acaba por constituir não uma relação de queixa, mas de falta. O
paciente, a partir de suas queixas, se dá conta de uma falta e insere o analista
no jogo de suas relações de amor presentificando assim, no aqui e no agora, seu
problema. Posto dessa forma, fica mais fácil de pensarmos o quanto o
inconsciente freudiano é atemporal e o porquê de dizermos que uma psicanálise
não se dá explorando o passado, mas no presente, no aqui e no agora.
O silêncio do analista, função que já vimos um pouco aqui, deve produzir como
efeito um giro importante a partir da relação transferencial. Em vez de demandar
do analista uma resposta, o analisante é levado a reconhecer uma falta de saber
sobre si. Neste ponto, vemos que vai se produzindo uma suposição de saber no
analista. O analisante supõe um saber no analista, um saber sobre aquilo que o
faz sofrer e demanda do analista uma resposta. Vejam: estamos no terreno da
fala. A análise se dá inteiramente no jogo da fala, não é preciso e, até certo
ponto, é totalmente dispensável qualquer outro meio que não sejam a própria
fala do paciente e a escuta atenta do analista com suas intervenções, que devem
sempre sustentar e produzir a associação livre de ideias. Sim, para alguns isso
pode ser uma surpresa, mas quem sustenta a associação livre de ideias é o
analista. Em outras palavras, se o analista intervém de forma errada,
equivocada, precipitada, a associação cessa, o trabalho se encerra e podemos
dizer que o inconsciente se fecha. Por isso é muito importante que o analista
esteja apto para assumir esse lugar, razão por que friso cada vez mais a
importância de uma formação sólida e rigorosa em nosso campo de trabalho.
Não sei se estão me acompanhando até aqui, mas estamos percorrendo
vários conceitos. Estou tentando alinhavá-los não no sentido de construir um
caminho “puro”, mas, antes, um mapeamento do que ocorre nas sessões. Até o
momento já vimos, então, a transferência, o silêncio do analista, os primeiros
contatos, o sujeito suposto saber e um pouco sobre a regra fundamental.
Retomo a questão da associação livre de ideias como método da
psicanálise e também como sua condição sine qua non. Percebam que, em se
tratando de associação livre de ideias, não podemos nos guiar nem por florais,
nem por hipnose, nem por perguntas dirigidas, nem por questionários, pois isso
fere eticamente a lógica do jogo. Desconfio de quem faz essas coisas e chama
isso de psicanálise. Obviamente não leu ou não entendeu o que é um tratamento
psicanalítico nem sabe muito a que ele serve.
Voltemos ao começo de nossa aula, pois que, para um câncer, uma cárie,
uma fratura nos ossos, nosso ofício de nada serve. Isso tem que ficar muito claro.
Freud não propõe uma psicanálise para todos, pois verifica que nosso objeto de
trabalho e nosso objetivo são muito particulares para serem vinculados a uma
causalidade de sofrimento humano que podemos localizar na condição humana
de habitantes da linguagem. O sofrimento com o qual lida a psicanálise é aquele
que tem determinações inconscientes. Daniel Omar Perez localiza muito bem
este problema na história quando nos aponta que Freud descobre a terceira
causalidade de sofrimento, a causalidade psíquica inconsciente.
Todo o percurso de uma análise deve necessariamente respeitar não
apenas o método, mas investigar se aquilo de que o paciente sofre, se queixa e
que pretende a um tratamento é suscetível ao campo da psicanálise. Já vimos
que as entrevistas preliminares têm esta função. Mas o que seria dizer que um
tipo de sofrimento pode ser mitigado e, geralmente, curado com o tratamento
psicanalítico? Vamos por partes.
O adoecimento neurótico, psicótico, perverso, autístico ou, melhor
dizendo, o adoecimento daquele que habita em uma das estruturas clínicas nem
sempre é da ordem do corpo ou da “mente”. Como foi o caso das histéricas
atendidas por Freud, ou do homem dos ratos, ou dos que se aventuram a ser
psicanalistas. Existe um outro tipo de sofrimento que insiste, por mais que se
faça, por mais que se treine, por mais que se saiba, por mais que se... Ele insiste.
Este sofrimento pode levar a alterações bioquímicas a tal ponto que pode
culminar com a morte, seja por um ato de atentar contra a vida de forma rápida
e direta, seja por uma depressão que vai, aos poucos, sugando toda a
possibilidade de continuar existindo. O fato é que alguma coisa não vai bem e
os meios à disposição para o tratamento raramente funcionam como seria
esperado que funcionassem.
A aposta em uma determinação inconsciente não se dá para todos.
Entretanto, é no processo de acolhimento e de escuta que iremos aos poucos,
no percurso das entrevistas, localizando determinado tipo de sofrimento ou,
melhor, de insistência de alguma coisa que manca, que derrapa, que patina.
Percebam que nem analista, nem analisante sabe do que se trata. Isso é
imprescindível porque uma determinada hipótese de qualquer que seja a causa
faz com que todo o processo de análise possa se encerrar antes mesmo de
começar. É diante deste enigma, desta douta ignorância que as coisas vão mais
ou menos se ajeitando. Quando Freud afirma que a psicanálise é um tratamento,
uma pesquisa e uma série de conceitos sistematizados, é exatamente disto que
Freud está falando: a cada psicanálise, dão-se uma investigação, um tratamento
e também uma construção teórica sobre cada caso. Lacan utiliza o termo práxis
para definir a psicanálise que, caso a caso, quando respeitadas as balizas
teóricas, vemos não apenas estar viva como nos servir ainda nos dias atuais.
Mas nos serve a quê? Aqui podemos dizer da finalidade de uma análise. Que a
psicanálise sirva para alguma coisa, isso é evidente, mas que coisa seria essa?
Quando recebemos um paciente na clínica e ele começa a falar, o que
percebemos é que na fala há uma espécie de nó, ou seja, a fala é efeito de uma
série de encadeamentos de sentidos diversos que, geralmente, estão fixados em
um ponto em comum. Tudo o que o paciente fala nos leva a este nó, a este
ponto, a este furo onde parecem faltar palavras. Dizer tudo o que vem à cabeça
é o engodo para chegar aqui. Sofremos é, na realidade, do aprisionamento ou,
ainda, da fixação em determinado sentido estrito de alguma coisa. Sofremos de
uma interpretação. Sofremos pela e através da palavra.
Insisto nisso. Se alguém me liga agora e diz que minha filha morreu, eu
acho que morro junto. Todo o meu corpo se alterará, a palavra atravessa o
orgânico, causa no corpo supostamente biológico uma série de alterações que
somente poderão ser compensadas a partir de um outro sentido que coloque o
corpo novamente no eixo. Mas qual seria este eixo? Se insisti em chamar o
humano de padecente no começo desta aula, foi para chegar neste ponto aqui,
já encerrando esta parte do curso.
A realidade, tal qual a reconhecemos, é, antes de mais nada, uma leitura
muito precária do que está à nossa volta. A realidade é sempre subjetiva, filtrada
pela nossa fantasia, pelo nosso aparelho psíquico. Se as cartas estão marcadas
no sentido de que as escolhas que fazemos em nossa vida tendem a uma
repetição, não são pela repetição da mesma coisa, da mesma carta, mas antes
por, após a escolha, ler a mesma coisa independente da carta que se tire.
É nesta fixação, neste ponto em que vemos nossos pacientes
naufragarem diante de um sentido supostamente prévio que temos a
possibilidade de um tratamento psicanalítico e, por consequência, a cura. Cura
esta que permitirá, após um longo e árduo trabalho sobre si mesmo, na medida
em que se diz e se vai associando livremente as cenas, as memórias, as ideias
e os afetos, a libertação do sujeito de sua própria fantasia mortífera. Aqui eu
poderia dizer de uma tal de travessia da fantasia, como Lacan chegou a dizer
uma ou duas vezes em sua vida, mas opto por não dizer, pois atravessar a
fantasia ganhou tantas interpretações no campo da psicanálise que não sei se é
de bom tom comparar o fim da análise com este aspecto da teoria que, sim,
verificamos na clínica, mas, mesmo assim, a travessia da fantasia não é o
mesmo que o fim de uma análise. Explico.
Se o homem habita a linguagem na condição de padecer dela, o problema
não é a fantasia em si, no sentido de que o inconsciente continuará produzindo
suas formações. A questão é resumir-se, estar destinado a permanecer em
determinada situação de sofrimento, de lamento de insatisfação demandando
sempre do outro um impossível. Uma fantasia, qualquer que seja, é algo da
estrutura do sujeito, de sua base. Não há sujeito sem fantasia. O que faz, então,
uma análise? Esta é uma questão simples e ao mesmo tempo complexa, pois
que não se troca de fantasia, mas se serve dela para ser de outra forma.
Uma análise deve necessariamente levar alguém a tal ponto de
destituição subjetiva, ou seja, de desapaixonamento de si, de des-
reconhecimento, de desconhecimento – acho que já deu pra entender um pouco
–, enfim, uma análise deve levar o sujeito ao ponto de não mais se sustentar a
partir de um determinado saber sobre si que se confunde com a verdade do
sujeito. Uma análise, ao revelar a verdade, o que produz é o analista da própria
experiência, como vai dizer Lacan. Por isso leva tempo para que alguém consiga
exercer minimanente o ofício de analista. Um tempo que não se mede em relógio
em número de sessões ou whatsapp pro analista, dado que é o tempo de
verificar alguns efeitos naquele que se submete ao método analítico. Notem que
o silêncio do analista não é possível se ainda enxergamos com as lentes de
nossas fantasias. Mais uma vez, o estudo da teoria, as supervisões, os laços
com a Escola, o cartel e todos os dispositivos formativos nos ajudam a retirar a
nossa pele, mas será apenas em análise que isso irá se consolidar. Isso é muito
importante. Não é porque alguém chegou ao fim de uma análise que estará
vacinado do sofrimento ou, ainda, dessa forma de ser e existir no mundo, no
entanto, uma vez advertidos de tudo o que nos ocorre e como nos deixamos ser
tomados por determinados elementos que nos são caros, é um pouco mais fácil
ocupar este lugar que Freud sabidamente chamou de um dos ofícios
impossíveis.
Quero deixar isso muito delimitado, o fim de análise é, em última instância,
a formação do analista. Lacan chega a dizer que o analista é mais uma das
formações do inconsciente. Isso é muito belo e ao mesmo tempo quase que um
mantra, mas não devemos ficar repetindo isso como papagaios sem entender do
que se trata.
Se o psicanalista é uma das formações do inconsciente, ele não sobrevive
fora do dispositivo clínico engendrado pela psicanálise. Daí a proposta de Lacan
de o psicanalista ser, antes de mais nada, um ato, não um ser, e a psicanálise,
uma ética, não uma profissão. Se tomarmos em consideração toda a obra de
Lacan para formalizar a psicanálise, veremos que ele se ocupa, do começo ao
fim de sua obra, com pensar e questionar não apenas a teoria, a técnica, as
instituições, mas aquilo que está no centro de tudo, a formação do analista.
Em um dos meus textos preferidos sobre o tema, “Proposição de 09 de
outubro de 1967”, Lacan nos resume o que seria uma análise do começo ao fim,
demonstrando que o fim de análise é necessariamente a produção de alguma
coisa a partir de um percurso de des-ser. Ora, se a psicanálise cura – e cura –,
ela nos cura da paixão de ser.

Você também pode gostar