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Se a passagem ao divã marca um momento em que já houve - ou seja, no

passado - uma passagem de paciente a analisante, a questão que devemos


sustentar em TODOS os casos que recebemos em nossa clínica é sempre a
mesma.

Como verificar que um paciente entrou em análise?

Ora, se pegarmos alguns livros de Psicanálise veremos que é possível


ritualizar este processo. Ou seja, uma vez que o paciente tem algo de sexual
para contar e está com vergonha, ou então quando o paciente chega já com
um problema pontual e quer saber sobre, ou ainda quando o paciente parece
que enrosca nas palavras e não consegue dizer o que gostaria, essas e outras
possibilidades nos dão o indício de uma possível passagem ao divã. Mas
descrito dessa forma, ritualisticamente não é possível abarcar as múltiplas
outras possibilidades que encontramos diante de nós na clínica.

Gostaria de deixar claro que esta é uma forma, uma das possibilidades de
pensar a passagem ao divã. Mas, também há outras, ainda bem.

Um paciente que chega com determinada queixa, só para dar um exemplo,


nem sempre produz uma demanda de análise. Aqui estou complicando ainda
mais. Agora além de termos a passagem ao divã como um momento, temos
também a entrada em análise que se dá antes disso, e agora, ainda antes da
entra em análise, a criação de uma demanda analítica. Demanda esta que não
está relacionada, pelo menos não na maioria das vezes, à queixa que o
paciente traz a princípio.

Se me permitem criar alguma coisa, e, correndo o risco de não estar muito


certo deste percurso, eu proponho hoje, amanhã não sei, mas hoje, que uma
análise deve seguir certas balizas, a começar pelo que escutamos, ou ainda,
nos tempos de WhatsApp, o que lemos quando de um pedido de uma consulta,
uma sessão ou o que quer que seja.

Formalizarei então o que penso ser uma entrada em análise a partir de alguns
"passos" necessários no percurso de uma análise.

Vamos lá:
Os passos seriam, a princípio o seguinte:

1 - Uma transferência primeira e a procura de um analista.

2 - As primeiras sessões, que Lacan chamou de entrevistas preliminares.

3 - A construção de uma demanda de análise.

4 - A entrada em análise propriamente dita.

5 - A passagem ao divã.

Notem que não coloco aqui uma transferência segunda. Mas é fato que esta
primeira transferência não se sustenta durante o percurso, por isso "uma
primeira". O que seria uma segunda transferência?

Gosto de pensar que é a transferência em sua vertente analítica. Encontrei em


Colete Soller uma ideia que corresponde ao que tenho trabalhado com
referência ao conceito da transferência, esta “segunda transferência” seria a
construção de uma relação de amor endereçado ao saber, mas que tem no
analista um meio. Percebam que o analista faz parte, é condição para que isso
se produza. Lacan no seminário 8 nos dá uma ideia do que seria quando
mostra a cena no banqauete de Platão que o amante, ao dirigir-se a Sócrates é
remetido a um terceiro, Sócrates convoca o amante a dizer, e no dizer, o que
aparece é que o amor estava direcionado a sócrates, mas que Sócrates não
era o objeto amado em si.

Freud denominou esta transferência que chamo de analítica propriamente dita


de Neurose de transferênciaa. Então, teríamos que os "passos" 2, 3 e 4 se dão
como um processo intrínseco à constituição da neurose ou psicose de
transferência, como queiram. Fato é que a própria transferência inicial se
transforma em alguma outra coisa partir da intervenção do analista. Isso deve
ficar muito claro, a análise é efeito do analista e de sua formação.

Vejam que neste percurso todo, o móvel divã é apenas a última parte. Até
então serve para colocar as bolsas, as roupas, as máscaras. E vou por aí.
O divã é onde a gente tira a máscara.

Mas não a tira de qualquer forma, as vezes tenho a sensação que, nos dias de
hoje, antes mesmo do covid, talvez desde sempre, é mais fácil ir pra cama do
que tirar a máscara no divã. E põe mais fácil nisso, dependendo da máscara
que se coloca é possível até fingir o que o outro quer.

A questão é que no percurso de análise, não apenas a máscara cai, como sua
sustentação se torna impossível. A máscara cai quando as fichas começam a
cair. Atentem-se a isso, a máscara cai, não é o analista quem a tira. Se
podemos continuar com a metáfora, o analista a põe para que seja possível
sustentar a transferência.

Essas fichas que vão caindo com o passar em palavras aquilo que a gente
vive, aquilo que a gente sente, chamo de entrevistas preliminares.

Notem bem que é necessário um tempo. É muito belo que Freud tenha
descoberto que uma das características do inconsciente é que ele seja
atemporal. Mas chegar até ele, despir-se das máscaras, descobrir que não se
quer mais viver assim, que quer ser outro, ou que quer morrer, que quer outra
coisa, para tudo isso leva tempo, e o tempo da análise deve necessariamente
respeitar o tempo de cada um.

Voltando na questão da passagem ao divã, isso só pode ser realizado quando


o analisante já está em análise. Ou seja, quando aquela pessoa que nos
procura na condição de padecente e quero jogar com a palavra padecente no
lugar de paciente, quando ela percebe que ela mesma cavou a própria cova.
Que o problema tem mais a ver com ela do que com os outros. Mas isso não é
tudo, é apenas um primeiro passo em que pode vir a surgir uma demanda de
análise. Nem sempre tão explicita, mas geralmente sim. O que escutamos da
boca de nossos pacientes é mais ou menos assim “me ajuda porque sozinho
eu não consigo mais”.

Cuidemos deste pedido. As vezes é necessário ainda um tempo aqui, para que
fique claro os lugares que o analista e aquele que está entrando em análise
irão ocupar. A cena montada pelas palavras ditas durante as entevistas
preliminares coloca o analista no lugar de pai, de mãe, de chefe? Ou ainda, a
cena montada pode ser verificada como a construção do discurso do mestre ou
do discurso do universitário? Isso também tem lá sua importância, visto que a
rigor a entrada em análise depende do reposicionamento do lugar ocupado
pelo paciente para que se produza o discurso da histérica. Podemos dizer que
a entrada em análise mais tem a ver com a histericização do discurso do que
qualquer outra coisa.

Quero deixar isso muito claro, embora o pedido seja feito, há pessoas que, por
mais que o analista intervenha, a histericização do discurso não se produz.
Aqui, não há análise possível, mas nem por isso deixamos de escutar até que
uma das duas coisas aconteça: ou o paciente vai embora sentido-se ao menos
acolhido, ou entra de fato em análise a partir de um ato do analista que faz ele
se interrogar e percer que a máscara já não lhe cabe mais.

Creio que já perceberam que quase deixo o divã de lado, e isso tem um motivo.
Há muito mais coisas a se considerar teoricamente do que simplesmente o
momento de mandar, convidar ou empurrar o paciente divã abaixo. Estou
colocando aqui uma série de elementos para que possamos pensar juntos,
após esta parte da explanação teórica e também para provocá-los no sentido
de não dar tudo de mão beijada, mas mostrar que há um mapa e que esse
mapa deve ser atualizado a cada sessão, a cada paciente.

Para trazer mais um interrogante, se me permitem, irei dizer dos casos em que
o analisantes depois de um tempo no divã se levantam, sentam, voltam para a
poltrona. Como interpretar selvagemente algo que é da ordem da própria
condição particular da análise? Como dizer que ali todos esses atos
respresentam ou simbolizam a mesma coisa?

Bom, para colocar mais lenha na fogueira e nos trazer certa prudencia, da
mesmíssima forma que eu não posso dizer que todos que saem do divã saem
pelos mesmos motivos, é impossível que se passem todos os pacientes para o
divã pelos mesmos motivos. No entanto, é possível balizas teóricas que nos
oriente nesse percurso.

Para encerrar minha parte neste rico diálogo, faço um pequeno resumo do que
entendo ser importante para que pensemos em cada caso, e que, o analista
possa tomar consigo o risco de, autorizado por seu ato, escolher o melhor
momento desde que se verifique a possibilidade da passagem ao divã de
acordo com a teoria que orienta seu trabalho.
Neste sentido temos então a procura de um psicanalista por um padecente, o
inicio da conversa que é marcado pela função das entrevistas preliminares, a
construção de uma demanda de análise que vai se formulando conjuntamente
com uma transferência analítica propriamente dita, neste percurso, equanto o
jogo vai seguindo, vai nos ficando claro qual o discurso está sendo montado e,
com isso, vai nos abrindo a possibilidade de intervir para produzir a
histericização do discurso. Somente aqui, quando a cama está montada, é que
é possível de se convidar o paciente a ocupar o leito, de despir-se das
máscaras uma vez que o discurso da histérica tem como ponto principal a
marca de que alguém que não sabe que sabe do que sofre, quando na relação
com um outro que não sabe do que o outro sofre, é convidado a dizer e
produzir um saber sobre isso que o habita e que está sob a barra do recalque.
Aqui, neste ponto, verificamos a associação livre de ideias, a regra fundamental
freudiana que é condição para que uma análise se dê. Regra que é sustentada
pelo desejo de analista e que é o próprio analista no exercício de sua função
quem a garante. Mas isso é assunto para um próximo encontro.

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