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A Formação do analista para Freud, para a IPA e para Jaques

Lacan
Marco Correa Leite

Este encontro de hoje abre os encontros do ano que vem comigo e com mais
alguns colegas analistas que se dispuseram a oferecer grupos de trabalho e
supervisão junto a mim e ao Instituto ESPE.

O primeiro ponto que julguei necessário trabalhar, e que será depois explorado
com maior profundidade nos primeiros encontros do ano que vem, será
justamente sobre a formação em Psicanálise.

Para hoje, apresentarei um breve, porém intricado texto em que veremos com a
formação em psicanálise proposta pela IPA se diferenciou da proposta de Freud.

Em um segundo momento vamos trabalhar a partir de dois textos de Lacan “A


situação da psicanálise e a formação do analista” escrito em 1956 e também “Ato
de Fundação” de 1964. Ambos os textos vão nos orientar sobre a questão de
uma crítica à formalização da formação do analista para nos guiar na proposta
de Lacan de que o analista é e-feito da análise pessoal.

Certa vez tive a grata surpresa de ouvir da boca de uma colega que, ao dizer a
seu psiquiatra que ele se analisava comigo, o psiquiatra disse que eu não era
psicanalista e que não tinha formação para tal. Este psiquiatra, que não vou falar
o nome, pois que alguns de vocês devem conhecer, não o julgo. Mas coloco sua
fala em questão. Começo com este exemplo para que possamos avançar neste
tópico sobre o que é a formação em psicanálise.
Foi em 2019 que ouvi da boca de Marcelo Veras, para quem não conhece,
psicanalista, ex médico, ex psiquiatra e ex quase cirurgião cardíaco, membro da
EBP/AMP e também ex diretor da mesma escola, escola essa que segue os
trilhos de Lacan e trabalha com a formação em psicanálise a partir da Orientação
Lacaniana, bem, ouvi dele que eu era analista, e fazia um bom trabalho com a
psicanalise aqui em minha região. Para não ficar no empate, também ouvi de
Nohemi Brown, analista da EBP/AMP e que já foi coordenadora geral da EBP –
delegação Paraná. E também de Jorge Sesarino, analista com quem convivo há
anos fazendo análise de controle, seminários e discutindo os rumos da
psicanálise no Brasil e no mundo, um grande amigo. E também de Daniel Omar
Perez, e por aí vai.
Mas nem tudo são flores. Com certeza há muito mais gente que diz que não sou
analista pois não fiz o curso da IPA ou esses cursinhos que dão certificados por
aí. Daqueles que a gente paga 12x de 100 reais e tem um curso completo de
psicanálise com Jung, Lacan, Klein, Hipnose, Florais e chamam de integrativa,
integrando na realidade a psicanálise com não sei o que. Fica bonito para
vender, mas na prática, está milhas de ser algo próximo de uma verdadeira
formação em psicanálise. Se alguém de vocês fez estes cursos, tudo bem,
entendo que não é sem motivos que estão aqui hoje. Se o curso realmente
formou um psicanalista você não estaria aqui, já teria completado seu curso, já
seria psicanalista, não precisaria mais do tripé.

Lacan já havia se atentando a estas questões quando escreveu “A psicanálise


verdadeira e a falsa”. Um texto lindíssimo que nos traz novamente a algumas
questões propostas por Freud em “Sobre a psicoterapia”. Basicamente a
questão é pensar sobre a psicanálise a partir do mesmo ponto. A psicanálise
pode ser exercida por alguém que não é analista? E podemos caminhar um
pouco mais e entrar de vez na direção de nossa proposta de hoje com a questão
que se faz cada vez mais necessária: o que é verdadeiramente a formação em
psicanálise?

Para avançarmos, proponho uma história.

Freud diz em diversos momentos que inaugurou a psicanálise em 1900 com seu
texto “a interpretação dos sonhos”, até ali ele era o único psicanalista. Alguns
colegas que trocavam cartas com Freud se achegavam à psicanálise por
ouvirem dizer de um médico pesquisador que estava tendo resultados diferentes
com os pacientes que sofriam dos nervos. Entre curiosos, espantados e outros,
alguns ficaram, mais especificamente, foi em 1902 que Freud convidou quatro
homens a formarem a sociedade psicanalítica das quartas feiras. Em 1908 ela
passou a ser a Sociedade Psicanalítica de Viena. Uma pausa aqui, em 1905
Freud escreveu um belíssimo texto que sempre que posso volto a citar, o
chamado “Sobre a psicoterapia”, onde ele mesmo refuta a ideia de que é
possível psicanálise sem um mínimo de formação teórica e prática para tal.

Vou colocar aqui algumas questões a vocês e não pretendo fechá-las no dia de
hoje.

Em 1907 Jones se encontrou com Jung em Zurique, e já exercia a “psicanálise”


a partir das leituras que fazia dos textos de Freud sem nunca ter encontrado
Freud em sua vida. Jung, dizia-se psicanalista, mas sempre trabalhou de forma
independente, mesmo tendo sido o primeiro presidente da IPA, Freud nunca
concordou com sua “performance” e suas teorias próprias, mas foi considerado
psicanalista por alguns anos até que rompeu com Freud e decidiu criar a
Psicologia Analítica. Uma das maiores questões que fizeram com que Freud e
Jung tomassem caminhos distintos foi com relação à teoria, Jung apostava em
outras coisas que a experiência analítica não confirmava, o que não quer dizer
que não existia, mas a experiência deveria ser outra e não a da psicanálise.

Quero colocar aqui, diretamente para vocês que de 1900 até 1910 não havia
formação em psicanálise propriamente dita, mas os analistas, reconhecidos
como tal, estavam no mundo. Estavam no mundo a tal ponto que em 1910 Freud
foi convidado a ir aos Estados Unidos proferir um dos seus mais belos trabalhos
introdutórios – ao menos para mim – que nos chega com o título de “cinco lições
aos médicos...”. Ora, se em 1905 Freud criticava os médicos que tentavam
exercer a psicanálise e, mesmo assim, ele aceitava alguns colegas que não
tinham tido a experiência da análise pessoal com ele, visto que ele era o único
psicanalista até então, e os nomeava como psicanalistas, como era a regra para
que alguém pudesse ser analista nesta época?

Freud tinha entre seus colegas uma estima muito grande. Era ele quem dizia e
quem desdizia, até certo ponto. Era Freud quem podia, como o pai totemico,
dizer quem seria ou não psicanalista, quem estava ou não estava apto para
exercer a técnica. O que vemos nos textos é que desde 1905 a recomendação
é sempre a mesma, quem quiser ser analista, que antes de tudo passe pelo
método e se disponha a estudar a teoria. Uma recomendação que nem sempre
foi seguida a risca. Neste tempo, entre 1900 e 1910 a formação se dava de forma
informal, mas não sem a presença de Freud, seja esta presença física ou através
de sua obra e de seu consentimento mesmo que a distância.

A formação de cada analista era de certa forma independente de uma instituição


e foi assim até 1924. Em 1924 haviam registrados na IPA (constituída em 1910)
263 psicanalistas, contra apenas 22 em 1910. Um crescimento interessante visto
que neste meio tempo ocorreu a primeira guerra mundial, dentro e fora da IPA.
Fato é que estes 263 analistas registrados não tiveram em nennhum momento
o contato com a formação tal qual é demandada nos dias de hoje, e nem por
isso, não eram considerados analistas.

Precisamente de 1924 até 1932 um conselho foi criado para discutir a formação
em psicanálise e, pasmem, não houve uma unanimidade no documento final no
sentido de dizer que a IPA ordenava que fosse desta ou daquela forma, mas que
os institutos deveriam se organizar localmente e, a partir daí, propor a formação
necessária e remetê-la para aprovação na IPA. A IPA torna-se não uma
instituição formativa, mas uma associação de analistas formados dentro destes
institutos organizados para esta função.
O que temos enquanto condição aqui em todos os institutos é que os analistas
deveriam ser treinados a partir da análise didática, supervisão dos caso e
também de um estudo mínimo da teoria. Estes três eixos, que pdoemos verificar
nos dias atuais como insuficientes, balizavam a formação nos institutos como o
mínimo exigido do candidato a analista. Outro ponto é que o candidato só seria
admitido dentro dos registros da IPA após ter feito todo este percurso.
Gostaria de chamar a atenção de vocês que, desde 1900 até 1932, ninguém na
IPA poderia ser psicanalista de acordo com as regras que a própria IPA colocava,
inclusive o Sr. Ernest Jones, que, a rigor, era psicanalista antes mesmo de ter
feito análise, por um curto período de tempo com Freud e depois com Ferenczi.
Ora, os analistas da primeira geração em sua maioria não passariam pelo crivo
da IPA. Vamos voltar um pouco na história e compreender um pouco melhor este
ponto.
Freud escreve em 1905 um texto chamado “Sobre psicoterapia” criticando quem
se utilizava da psicanálise de forma banal e que tentava realizar o tratamento
psicanalítico sem as bases conceituais e teóricas que sustentam o trabalho como
um todo e, mais ainda, afirmando veementemente que quem quer que tenha o
interesse de tornar-se analista que vá primeiro passar pela experiência e depois,
somente depois, possa receber alguém com o intuito de conduzir uma análise.
Em 1903 Ernest Jones conhece a obra de Freud, somente em 1913 e de forma
incompleta, Jones se analizaria com Ferenczi por um breve período de tempo.
Ora, não me parece que Freud tenha tomada suas críticas tão a sério, ou então,
talvez seja a hora de pensarmos que, talvez nem todo aquele que se diz analista,
desde a época de Freud, e por mais reconhecido que seja no meio analítico, nem
por isso, quando vamos verificar a fundo o que seria a psicanálise, a formação e
o efeito disso no ser para que se produza um analista, nem por isso de fato
talvez, este que se apresenta como psicanalista, o seja.

Se temos no início da história da psicanálise um problema com a formação no


sentido de que estava tudo ligado ao pensamento de Freud, e às suas
impressões que, como qualquer humano, era afetado por seus sentimentos e
por suas transferências em relação aos adeptos da psicanálise. Com o passar
do tempo, com a criação da IPA e do conselho secreto, o que vemos é uma
inversão das coisas na medida em que se institucionaliza algo que deveria
aparecer depois de um percurso de análise pessoal, estudo da teoria e
atendimento de casos.

Explico.
De 1900 a 1932 os analistas se achegavam à teoria freudiana por diversas
razões. Alguns se analisaram com Freud e verificaram os efeitos disso em sua
vida, outros, no intuito de aplacar o sofrimento humano como no caso de
Ferenczi, outros, se aproximaram de Freud por encontrar na psicanálise a
possibilidade de abertura para um diálogo com pesquisas que já estavam sendo
feitas, como no caso de Jung e Jones. A questão é que não se pedia uma
formação, mas se formava a partir de sua implicação com o sofrimento humano,
as condições possíveis de tratamento e o avanço da teoria. Foi em 1932 que
houve pela primeira vez a necessidade de que, para ser psicanalista fosse
necessário pedir uma formação para uma instituição responsável. Esta formação
seria equivalente para todos, exigindo do candidato uma série de fazeres que,
ao seu fim, não garante, e esta é precisamente a crítica de Lacan, que aquele
que se formou, de fato seja psicanalista. O que temos é tão simplesmente
alguém que seguiu as regras da instituição.

Engana-se quem acredita que Lacan foi o primeiro a criticar este modelo
formativo padronizado. Jones, Ferenczi, e outros já apontavam para alguns
problemas cruciais desde a criação da IPA, mas foi Tausk quem foi mais além
dizendo de uma tal “religião científica” que estaria sendo formada dentro do
famoso comitê secreto. Este comitê foi composto por Freud, Ferenczi, Rank,
Sachs, Abraham e Jones e posteriormente Eitingon e Anna Freud. O Comitê
depois veio a se tornar futuramente a primeira diretoria responsável pela
formação de analistas nas mãos de ninguém mais, ninguém menos que Anna
Freud.

Sei que estou passando a vocês muitas informações nesta manhã.


Provavelmente muitos aqui nunca ouviram falar de Ferenczi, Abraham, Jones,
mas saibam que são estes quem levaram a psicanálise literalmente nas costas
por muitos anos, em especial durante a primeira guerra mundial e que a
sustentaram quando Jung assumiu a presidencia da IPA até que ele mesmo
assinasse sua carta de renúncia.

Gostaria apenas de colocar mais uma questão a vocês, esta foi feita por Reik na
década de 30 e basicamente ele disse o seguinte: “A recomendação de seguir a
cadeia : análise pessoal, estudo da literatura e análise de controle é um esquema
grosseiro e insuficiente. Ficam muitas dúvidas quanto à melhor maneira de
aprender a psicanálise.” Para quem não sabe, Reik foi o objeto do texto de Freud
com o título de “A questão da análise leiga” onde Freud o defende
veementemente, retirando a psicanálise das mãos dos médicos. Seja para
Ferenczi, para Reik, ou para Lacan, a recomendação freudiana de que o analista
deveria fazer análise antes de qualquer coisa deveria tornar-se regra. Em outras
palavras, o analista, desde Freud, deve sua existência à psicanálise, ou seja à
análise pessoal e não ao tripé, ou a um curso, ou a um ritual formativo tal qual
ainda hoje se prega por aí.
Bom, fique claro que estamos caminhando para uma distinção muito rica e
problemática dentro do campo da formação do analista. A rigor, temos a
formação proposta por Freud através de suas recomendações que coloca o
analista enquanto efeito de um trabalho sobre si mesmo para depois poder
ocupar o lugar de acolher e conduzir um tratamento, mas que não é a única
possível visto que após a criação da IPA temos também a institucionalização da
formação pela via do ritual de passagem e aceitação do aspirante a psicanalista
que demanda isso à instituição.
Ambas tem suas vantagens e também seus problemas. Ambas tem suas críticas,
e também suas soluções. Mas existe uma terceira possibilidade, essa terceira,
vinda de um analista formado no seio da IPA. Alguém que seguiu todos os
passos institucionais e que, após ser aprovado como psicanalista, passou um
tempo se dedicando aos estudos até que foi incluído dentro de um seleto grupo
de analistas didatas da IPA. Este, que vos apresento foi Jacques Lacan, e que,
depois de verificar que o próprio modelo formativo mais se parecia como uma
formação religiosa e que tinha suas bases ancoradas em uma técnica que levava
à psicologização da psicanálise, inicia seus seminários propondo um retorno a
Freud.

A questão que quero deixar aqui registrada é que a formação, como ofertada
pela IPA não é a única, muito menos foi, durante mais de 30 anos, uma opção
nem para Freud e nem para a própria IPA. Então, se essa modalidade formativa,
em determinado momento da história da psicanálise se consolidou como única,
seja por uma questão prática ou política, pouco importa, o que importa mais é
verificarmos como, algo da ordem de um treinamento, de uma “graduação”,
substituiu a formação pela via do desejo e se consolidou fazendo da psicanálise
uma outra coisa, diferente daquilo que Freud havia inventado para o tratamento
do humano.

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