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PSICANÁLISE, CIÊNCIA E
PROFISSÃO
AULA 5

Prof.ª Giovana Fonseca Madrucci


CONVERSA INICIAL

Anteriormente, pudemos trabalhar um pouco sobre


as origens da psicologia e de sua profunda

relação com os mais diversos tipos


de psicoterapia. Nesse interim, encontra-se a psicanálise. Tendo

em mente que a
psicanálise não se pretende um fazer e nem uma ciência que busca inserção e

adequação às metodologias que são tidas como científicas, devemos entender que
o que a sustenta

é uma posição ética. O que quer dizer isso? A psicanálise tem


uma concepção de homem e uma
ética muito específicas, que seria a do desejo e a
do sujeito do Inconsciente. Isso a torna paralela

aos fazeres da psicologia e aos


outros tipos de psicoterapia, pois, com isso, devemos entender que
o objetivo principal
da análise não é a cura e o bem-estar, mesmo que essas sejam consequências

que
possam ocorrer ao longo do tratamento analítico.

Como
analistas, devemos nos ocupar com o fato de que o sujeito do inconsciente e o
desejo
devem vir à tona. Freud percebeu que
os sintomas só poderiam ser tratados com base no momento

em que os impulsos
insuportáveis provenientes do Inconsciente pudessem vir à tona (normalmente
carregados de fantasias) para serem trabalhados. Somente fazendo emergir os
conteúdos do

Inconsciente é que o sujeito pode se haver com aquilo que há de


mais particular nele, e, assim,
haver-se com seu desejo, diminuindo a
"divisão subjetiva" que o faz sofrer.

Essa deve ser a


ética que guiará o fazer do analista: a escuta da singularidade e do desejo de

cada sujeito, sem normatizações, sem enquadramentos, sem moralismos e


adequações sociais.
Considerando a questão ética da psicanálise, podemos dizer
que o fazer do psicanalista é um fazer

laico, que não possui vínculo com nenhum


tipo de prática ou crença religiosa. Portanto, isso não
deve estar em pauta na
postura que deve ser assumida pelo psicanalista. Considerando todos esses

aspectos éticos que estão sendo e que foram levantados na discussão da


psicanálise enquanto
ciência, nesta aula, pretendemos seguir com as distinções
entre psicanálise e outros tipos de

psicologia ou ciências.

Em um primeiro
momento, seguiremos estabelecendo as distinções que existem tanto na
concepção
de homem (que, na psicanálise, tira o foco da consciência e leva para o
inconsciente)
quanto na de ética, que guia os fazeres da psicologia e das
psicoterapias, bem como o da

psicanálise.

Veremos, também, o
motivo pela qual essas concepções devem ser consideradas tão distintas.

Para
tanto, retornaremos a dois textos seminais de Freud, os quais versam sobre a
técnica
psicanalítica e dão instruções àqueles que querem exercê-la. No momento
final da aula, trataremos
sobre como foi difundida e estruturada a psicanálise
desde Freud. Esse aspecto historiográfico nos

dará subsídios para que, em


conteúdo posterior, possamos tratar da questão do fazer analítico como
um
ofício, verificando como se forma um analista.

É importante frisar que a


psicanálise, por mais que se veja um tanto quanto “de fora” quanto a
normativas
e regulamentações, não deve ser praticada à revelia. Um analista não se forma
apenas
com estudo teórico, pois é necessário haver um outro fator em sua
formação, fator esse que

tentaremos deixar bem claro em nosso percurso. A


psicanálise também não se abstém de posições
políticas, seja num quadro
político mais geral (da sociedade em si), seja uma política própria que

rege as
instituições de psicanalistas e a relação da psicanálise com a sociedade.

TEMA 1 – A PSICANÁLISE E AS PSICOTERAPIAS: UM POUCO MAIS

De acordo com Silva, Gasparetto e Campezatto


(2015), o período em que se formulam os

primeiros tipos de psicoterapias


propriamente ditas se dá entre 1880 e 1900. As autoras afirmam

ainda que, de um
lado, surgiram os laboratórios de psicologia experimental, com W. Wundt e W.
James. Por outro, durante esse mesmo período, surgiram as psicoterapias
sugestivas e a

psicanálise.

Inicialmente, Freud não


fazia distinção entre os termos “psicoterapia” e “psicanálise”; a

necessidade
mais premente parecia ser distingui-la da medicina. Ilustra esta indiferenciação
a

conferência proferida por Freud em 1904 no Colégio de Médicos de Viena, a


qual abordou a
especificidade da psicanálise frente a outros métodos de
tratamento, que recebeu o título: ‘Sobre a

Psicoterapia’ (Über Psychotherapie).


Em 1919, Freud sentiu a necessidade de diferenciar seu
método das técnicas que
empregavam a sugestão direta. Ele acreditava que a psicanálise era a

forma
ideal de tratamento psicológico [...]. (p. 40)

A psicanálise, portanto, é absorvida pela


psicologia e vai se afastando da medicina. E, assim,

torna-se uma ciência


“aplicada” e que pode ser ensinada nos cursos de psicologia. Silva, Gasparetto

e Campezatto (2015) afirmam que esse é um ponto de bastante controvérsia. Com a


inclusão da
psicanálise nos cursos de psicologia, muitos psicanalistas passaram
a discordar de sua
identificação enquanto uma psicoterapia.

Tal distinção se deve a uma tentativa de


diferenciação da “psicanálise pura” do conjunto de

práticas que compunham o


arsenal mais amplo das psicoterapias. Mesmo assim, há alguma

dificuldade dos psicanalistas


em manterem tal distanciamento. Um exemplo disso é o fato de que
“[...] uma das
primeiras práticas psicoterápicas instituídas após a Segunda Grande Guerra, o

humanismo
criado por Rogers, estava carregada de elementos psicanalíticos” (Silva;
Gasparetto;

Campezatto, 2015, p. 41). Contudo, as psicoterapias surgidas depois


da guerra não foram herdeiras
somente da psicanálise. Elas foram formadas por
uma convergência de várias práticas realizadas

nos EUA desde o século XIX. Silva,


Gasparetto e Campezatto (2015), citando Zimerman (1999),

afirmam que grande


parte da confusão que ocorre acerca do que é psicanálise e do que é

psicoterapia
se deve ao fato de que a palavra psicoterapia engloba uma série de possibilidades
terapêuticas, psicanalíticas ou não, tanto nas suas concepções
teóricas quanto nas suas aplicações

práticas.

Entretanto, seus fundamentos éticos as


distanciam deste rol maior. Por quê? Que fundamentos
seriam esses? De acordo
com Tanis (2006), citando Birman (2000), a psicanálise nasceu

principalmente
fundamentada como um tipo de consciência crítica da modernidade. Por meio dela,

os reinos vigentes do eu e da razão soberana são destronados para que, assim,


possa ascender uma

concepção de homem que o vê como um sujeito do inconsciente.

O
que a psicanálise colocou e, a meu ver, ainda coloca em evidência
inquestionável é a limitação

do discurso médico para dar conta do mal-estar


moderno enquanto produção subjetiva e cultural.
O desejo, o conflito e o
sofrimento psíquico nas suas múltiplas expressões são irredutíveis a

motivações
de natureza exclusivamente biológica. Freud aponta o descentramento do sujeito
frente ao próprio desejo inconsciente, tematizado na primeira descrição do
psiquismo.

Posteriormente, amplia sua visão e a complementa. (Tanis, 2006, p.


311)

Ainda segundo o autor, a psicanálise não


se visa um tipo de correção, adequação e

normalização (que ele chama de


ortopedia psíquica) como tratamento, mas sim uma transformação

do sofrimento do
sujeito por meio de um fazer-saber sobre o inconsciente. Com isso, pode-se

promover a desalienação deste sujeito, condenado, até então, à repetição. Um


trecho bastante
importante do texto Sobre o início do tratamento (1913)
nos dá o tom de tais distinções e da ética

que propõe Freud acerca do


sofrimento psíquico:
A
estranha conduta dos pacientes, por serem capazes de combinar um conhecimento
consciente

com o desconhecimento, permanece inexplicável pela chamada


psicologia normal. Para a
psicanálise, entretanto, que reconhece a existência
do inconsciente, ela não apresenta dificuldade.

[...] Os pacientes conhecem


agora a experiência reprimida em seu pensamento consciente, mas
falta a este
pensamento qualquer vinculação com o lugar em que a lembrança reprimida [...]
está

contida. Nenhuma mudança é possível até que o processo consciente de


pensamento tenha

penetrado esse lugar e lá superado as resistências da


repressão. (Freud, 1913, p. 156)

TEMA 2 – O QUE POSTULOU FREUD ACERCA DO EXERCÍCIO DA


PSICANÁLISE

Há, na
obra de Freud, uma série de artigos que versam sobre a técnica psicanalítica e
sua ética,

são os artigos sobre a técnica. Em Recomendações aos médicos que


exercem a psicanálise (1912),
Freud expõe diversas questões que devem ser postas
em prática no exercício da psicanálise para

que a experiência do Inconsciente


seja a mais legítima possível e sua ética sustentada. A primeira

delas é a “atenção
uniformemente suspensa” ou atenção flutuante. O que seria essa atenção

flutuante? De acordo com Laplanche e Pontalis (2001), na atenção flutuante não


se deve privilegiar a
priori qualquer elemento do discurso do paciente, assim, a
emergência do Inconsciente é facilitada.

Aquilo que o Inconsciente do próprio


analista capta e prioriza do discurso do paciente (que está em

associação
livre) é o que precisa ser trabalhado em análise.

Com
isso, percebe-se que a prioridade na experiência do Inconsciente não é a
produção de

sentido, mas sim a captação daquilo que não faz sentido num
primeiro momento. É justamente na

falta de sentido que se mostra o Inconsciente


com o qual trabalha a psicanálise. A tomada de notas
integrais, por exemplo, é
algo ao qual Freud (1912) se mostra contrário, justamente pela questão da

produção de sentido que pode ocorrer com base nisso, e, com isso, perder-se-ia
uma parte

importante da experiência Inconsciente.

Nenhuma
objeção pode ser levantada a fazerem-se exceções a essa regra no caso de datas,
[...] ou

eventos específicos dignos de nota que podem ser facilmente desligados


de seu contexto e são
apropriados para uso independente [...]. (Freud, 1912, p.
127)

Outro
ponto importante no que concerne à experiência analítica, diz Freud (1912), é
que, em
psicanálise, tratamento e pesquisa ocorrem ao mesmo tempo e até mesmo
se confundem. Ao se

investigar os fenômenos inconscientes, também se tratará


deles.
Aqui, é de fundamental importância visualizarmos
o fato de que, em um tratamento

psicanalítico, o que se prioriza o tempo todo é


a emergência dos aspectos inconscientes que
precisam ser trabalhados.

A técnica é toda estruturada para a facilitação


desse processo (seja pela via da associação livre,

seja pela atenção flutuante,


seja pela investigação que se confunde com tratamento).

Uma
outra observação importante que faz Freud, e aí entramos no plano daquilo que
distingue a

psicanálise de outros tipos de psicoterapia, é que, segundo ele, o


médico (ou para nós, o analista)

não deve possuir um furor de cura. Ele trata a


questão dessa ambição terapêutica de produzir algo

que gere algum efeito


convincente sobre as outras pessoas como um tipo de perigo, pois pode

tornar o
tratamento impotente frente a determinadas resistências do paciente. O foco do
trabalho
deve ser investigar e trazer à tona os conteúdos provenientes do
inconsciente, e, com base nisso,

será possível realizar algum trabalho.

É fácil perceber para


que objetivo as diferentes regras que apresentei convergem. Todas elas se

destinam a criar, para o médico, uma contrapartida à ‘regra fundamental da


psicanálise’
estabelecida para o paciente. Assim como o paciente deve revelar
tudo o que sua auto-observação

possa detectar, e impedir todas as objeções


lógicas e afetivas que procuram induzi-lo a fazer uma
seleção entre elas,
também o médico deve colocar-se em posição de fazer uso de tudo o que lhe é

dito para fins de interpretação e identificar o material inconsciente oculto [...]


ele deve voltar seu

próprio inconsciente, como um órgão receptor na direção do


Inconsciente transmissor do paciente.
(Freud, 1912, p. 129)

Nesse
ponto, podemos perceber o quanto é necessário que o próprio analista tenha
trabalhadas
suas próprias questões inconscientes e o quanto o Inconsciente do
analista é importante para o

trabalho de análise (seja pela questão da


transferência, seja pelo fato de que é no ponto de encontro

entre o
inconsciente do analista e o do paciente que é possível que ocorra algum
trabalho).

Passemos, então, às recomendações de Freud quanto à questão da


formação do analista e à

posição que este deve assumir.

TEMA 3 – O QUE DIZ FREUD ACERCA DA POSIÇÃO E DA FORMAÇÃO


DO ANALISTA

Uma das pontuações mais relevantes de Freud no que diz respeito ao inconsciente do
analista e

ao modo como ele atua em um processo de análise é que


ele não pode tolerar
quaisquer resistências em si próprio que ocultem de sua consciência o que foi

percebido pelo inconsciente, doutra maneira, introduziria na análise nova


espécie de seleção e
deformação que seria muito mais prejudicial [...]. (Freud,
1912, p. 129)

O que ele quer dizer com isso? Que a


resistência do analista pode causar prejuízos no trabalho

realizado, pois,
devido a tais resistências, o analista pode não perceber, não levar em conta
e/ou não
suportar não trabalhar aspectos importantes do material inconsciente
do paciente. Ao analista, há,

portanto, que trabalhar seu próprio inconsciente.

Todo aquele que possa


apreciar o alto valor do autoconhecimento e aumento de controle assim
adquiridos, continuará, quando ela terminar, o exame analítico de sua
personalidade sob a forma

de autoanálise e ficará contente em compreender que [tanto]


dentro de si quanto no mundo

externo, deve esperar descobrir algo de novo. Mas


quem não tiver dignado a tomar precaução de
ser analisado não só será punido
por ser incapaz de aprender um pouco mais em relação a seus

pacientes, mas
correrá também perigo mais sério, que pode se tornar perigo também para os
outros. Cairá facilmente na tentação de projetar para fora algumas das
peculiaridades de sua

própria personalidade [...]. (Freud, 1912, p. 130)

O
que fica evidente nessa passagem é que o analista deve se analisar tanto para
que não caia
em pressuposições e deixe de escutar seu paciente quanto para que
não projete questões próprias

para fora enquanto estiver escutando alguém, ou


seja, o inconsciente do próprio analista precisa

estar trabalhado. Assim, para que


seja possível ter a experiência do inconsciente, é necessário ter

essa experiência
na própria pele por meio da vivência e da análise do próprio inconsciente.

Entretanto,
Freud (1912) observa que mesmo que o analista tenha trabalhado seu próprio

inconsciente, sua personalidade e questões particulares devem ficar de fora do


tratamento analítico.

Segundo o autor, uma exposição da figura no analista em


nada contribui para o avanço do paciente,

podendo piorar por facilitar que se


ergam resistências que dificultem o manejo da transferência, tão

essencial para
o setting analítico.

Portanto, “o médico deve ser opaco aos seus


pacientes, e como um espelho, não mostrar-lhes

nada exceto o que lhe é


mostrado” (Freud, 1912, p. 131).

Uma
outra observação importante de Freud, que vai ao encontro da posição da
psicanálise,

segundo a qual não se deve buscar o bem-estar nem a cura, mas sim
a ética que guiará o analista, é

a de que não se deve dar “dicas” nem


“indicações do que fazer”. Segundo Freud (1912), há que se
respeitar a
limitação e o tempo de cada paciente, portanto, dar “conselhos” não é efetivo
com aquilo

que se busca numa análise.

Como médico, tem-se


acima de tudo de ser tolerante com a fraqueza do paciente, e contentar-se

em
ter reconquistado certo grau de capacidade para o trabalho e divertimento para
uma pessoa
mesmo de valor moderado. (Freud, 1912, p. 132)

TEMA 4 – O QUE O ANALISTA DEVE SABER SOBRE O INÍCIO DO


TRATAMENTO
PSICANALÍTICO SEGUNDO FREUD

Neste
ponto de nossa aula, já nos vemos advertidos pelo próprio Freud de que a
prática analítica

só se dá por meio da experiência com o Inconsciente (tanto


por parte do analista, que deve ter

passado pela experiência particular de


investigar seu próprio inconsciente pela via da análise

pessoal; quanto por


parte do paciente, que viverá o contato com seu próprio Inconsciente via

análise). Sendo assim, algumas medidas devem ser tomadas logo de início para
que o tratamento
seja levado a cabo e se mostre eficaz no sentido de trabalhar
com os conteúdos inconscientes que

estão adoecendo o sujeito. Tais advertências


são também uma forma de manter a ética que se

propõe num processo de análise: a


do sujeito do inconsciente e a do desejo.

Em
seu texto Sobre o Início do tratamento (1913), Freud nos ensina que, em
um tratamento
psicanalítico, há um período preliminar em que o “médico” ou o analista
deve decidir se vai ser

possível levar em frente o tratamento, seja pelas


possibilidades que se apresentam em termos de

diagnóstico, seja em função da


possibilidade de se estabelecer uma relação transferencial que

possibilite o
trabalho analítico. Para Freud, pontos de extrema relevância no início do
tratamento são

acordos que se estabelecem com relação ao tempo e ao dinheiro.

Para o autor, com relação aos acordos de tempo,


não se deve estabelecer com o paciente

promessa de cura nem prazos de trabalho predeterminados.


O que quer dizer isso? Não há uma

resposta certa e firme sobre quanto tempo o


tratamento poderá durar, pois isso depende das

possibilidades de cada sujeito


que procura uma análise: suas defesas, suas possibilidades

subjetivas, seu
objetivo ao procurar a análise etc. Freud estabelece que o ritmo de tratamento
deve
ser intenso para que os conteúdos a serem trabalhados não se percam com os
espaços entre as

sessões, nem se submetam a defesas que tais espaços possam


facilitar, dificultando, assim, o

trabalho.
Já com relação aos acordos relativos ao dinheiro
em um processo de análise, tem-se que a

análise deve ter um custo


suficientemente alto, na qual o sujeito entenda que deve trabalhar e que
está despendendo
recursos tanto de tempo quanto de dinheiro para tal. Não se recomendam os

atendimentos gratuitos, pois, com isso, entende-se que o paciente não se


motivaria ao trabalho.

No que tange ao conteúdo com o qual se deve


iniciar o tratamento, Freud é bastante persistente
na ideia de que a fluição de
ideias dever ser o mais livre possível. Quando o paciente é

demasiadamente
organizado em seu discurso, ou quando são pedidas “tarefas de casa”, impede-se

a livre circulação do conteúdo inconsciente, facilitando, assim, que a


resistência atue para manter o

conteúdo inconsciente recalcado. “O material com


que se inicia o tratamento é, em geral, indiferente,

[...] em todos os casos,


deve-se deixar que o paciente fale e ele deve ser livre para escolher em que

ponto começará” (Freud, 1913, p. 149). Há que se tomar relativo cuidado para
não acelerar também

as interpretações, pois isso pode também acabar afastando o


paciente do tratamento.

Enquanto as
comunicações e ideias do paciente fluírem sem qualquer obstrução, o tema da

transferência não deve ser aflorado. Deve-se esperar até que a transferência,
que é o mais delicado
dos procedimentos, tenha-se tornado resistência. (Freud,
1913, p. 154)

O que fica claro no discurso de Freud em seu


texto sobre o início do tratamento é que ao mesmo

tempo em que se deve


trabalhar com as resistências que venham a surgir no decorrer do tempo (o

que
torna a resistência também um material de trabalho), é necessário que a
espontaneidade do

paciente seja a maior possível, pois, assim, as resistências


não se tornem tão grandes e tão atuantes

a ponto de impedir o trabalho analítico


e a emergência do material inconsciente.

TEMA 5 – A DIFUSÃO DA PRÁTICA PSICANALÍTICA E A PSICANÁLISE


COMO UMA
PRÁTICA LEIGA

De acordo com Robert (2016), a difusão da prática psicanalítica e


a história do movimento

psicanalítico se iniciam com a reunião de Freud e mais quatro


colegas às quartas-feiras. Essas

reuniões se tornaram a Sociedade Psicológica


das quartas-feiras. Compunham o
grupo Wilhelm

Stekel, que foi o idealizador; Max Kahane; Rudolf Reitler e Alfred Adler. “O encontro destes cinco

homens
judeus marca o início da configuração do campo psicanalítico” (p. 39).

Robert (2016) ainda nos


reitera que tais reuniões aos poucos foram recebendo outros

interessados em discutir a teoria psicanalítica. Citando Gay (1989), Robert


(2016) afirma que não
eram apenas médicos que frequentavam essas reuniões. Freud
apreciava particularmente os leigos,

temendo que a psicanálise pudesse virar um monopólio de médicos.

A configuração do campo psicanalítico, iniciada através da Sociedade das Quartas-Feiras,

indubitavelmente, uma associação singular para a reflexão científica, parece refletir nos primórdios
institucionais a complexa relação que a psicanálise, desde antes da institucionalização, sempre

manteve entre o sujeito que pesquisa e o objeto pesquisado e também entre o normal e o
patológico. (Robert, p. 40)

Esse grupo das quartas-feiras segue


seu trabalho, mas não sem algum nível de

desentendimento entre Freud e seus


membros. Segundo Zacharewicz e Formigoni (2015), não havia

consenso em muitas
discussões, e conflitos instalavam-se. Tais desentendimentos geraram

consequências para o campo psicanalítico, especialmente no que se refere às dissidências e ao

surgimento de ramificações da
teoria freudiana (sabemos que a teoria psicanalítica é razoavelmente
ampla no
que tange aos seus autores e leituras da obra de Freud).

[...]
tal aspecto talvez tenha contribuído para que, na última
reunião antes do recesso de verão de

1907, Freud anunciasse a dissolução da


Sociedade e sua imediata refundação, com aqueles que
manifestassem interesse [...].
(Zacharewicz; Formigoni, 2015, p. 311)

Tendo acesso a esses aspectos


importantes da história do movimento psicanalítico e da

difusão da prática
psicanalítica, podemos ter em mente como seu corpo teórico e clínico se
constrói,

sobretudo fora do âmbito universitário formal.

“As reuniões de pessoas


interessadas na psicanálise marcam o
estilo da transmissão freudiana

desde os
primeiros tempos” (Zacharewicz; Formigoni, 2015, p. 311). Zacharewicz e
Formigoni (2015)

afirmam que uma interlocução entre aqueles que se ocupavam do


exercício da psicanálise era de

grande relevância para Freud.

Destaca-se,
ao longo da leitura dos documentos da Sociedade, outra relevante preocupação
freudiana: a transmissão da psicanálise. A iniciativa de reunir diferentes
interessados por sua ainda

incipiente teoria, pelo comportamento humano e pelas diversas manifestações culturais é, por si

só, um reflexo de tal preocupação. A postura e


o comportamento de Freud ao longo das reuniões e
na condução da Sociedade
também têm marcas de seu interesse pela transmissão da psicanálise.

Além disso,
diversas pessoas, também de fora de Viena, foram
convidadas a participar dessas
reuniões. (Zacharewicz; Formigoni, 2015, p. 312)

Em 1908, a Sociedade das Quartas-feiras seria transformada por Freud na Sociedade

Psicanalítica de
Viena, a Wiener Psychoanalytische Vereinigung (WPV). Robert (2016, p. 44) afirma
que

uma
das estratégias mais curiosas de legitimação do poder, da definição da hierarquia
e das

relações entre os agentes atuantes na configuração do campo psicanalítico


é a formação do
Comitê Secreto, em 1912.

Esse comitê teria sido criado


por iniciativa de Ernest Jones e Sándor Ferenczi. Ainda segundo o

autor, citando
Kupperman (1996), o que se via por trás das cortinas para a criação do Comitê

Secreto, criado para defender secretamente


a causa psicanalítica (tendo por compromisso não se

afastar dos princípios


fundamentais da teoria psicanalítica), era a relação desgastada entre Freud e

Jung, que sinalizava inclusive sua ruptura. Jung era então presidente da IPA, a
Associação
Internacional de Psicanálise,
criada em 1910 no Congresso de Nuremberg.

Na
história da psicanálise narrada por Freud, a complexidade das relações entre os agentes do
processo
é substituída pelo acento dado a uma narrativa linear de um herói contra um mundo não

receptivo, inóspito e incapaz de aceitar uma verdade que lhe é dolorosa. Freud, pelo
menos no

campo institucional, parece saber que não é somente isso. Por isso, não se
resignou ao destino
que seria obter reconhecimento científico em um momento posterior em
que o mundo enfim

estivesse preparado para lhe dar este reconhecimento.


(Robert, 2016, p. 49)

O que se percebe
com base nessa breve narrativa histórica acerca
do início do movimento
psicanalítico no mundo é que desde seus primórdios
existem divergências acerca de como deve ser
a formação, a transmissão e até
mesmo de como devem sem compreendidos e tratados

determinados conceitos dentro


do campo psicanalítico. No movimento psicanalítico, houve a
necessidade de
centralização de poder nas mãos de Freud, inclusive como uma forma de assegurar

seus princípios, sua ética e suas bases teóricas e filosóficas.

Por fim, Robert (2016, p. 51) ainda chama a atenção para a “[...] advertência de
ficar atento às

forças que agem sobre o campo psicanalítico”.

NA PRÁTICA

No percurso desta aula, a pretensão foi que se pudesse dar


conta dos aspectos éticos e
técnicos que atravessam o fazer do psicanalista.
Sua ética não deve ser a da cura, mas sim a do
desejo. E é por isso que o fazer
do psicanalista por vezes acaba ganhando essa característica de

“estar de fora”
do que se entende como normativas e expectativas sociais. Entretanto, um outro
aspecto ético é o de levar em consideração a singularidade do sujeito que se
escuta. Mas o que isso
quer dizer? Que todo tipo de ruído deve ser evitado para
que se emerja apenas o sujeito que está
sendo escutado. Esses ruídos são
evitados principalmente por meio de uma postura ética do

psicanalista, o qual
trabalha o seu próprio inconsciente.

Essa
postura ética nos coloca num lugar diferente dos outros tipos de psicologia, um
lugar até

mesmo muito menos normativo. Mas a grande questão é que deve ser um
fazer ético. O que se visa
em um processo de análise? A emergência do sujeito
do inconsciente e de seu desejo. Entretanto,

essa é uma experiência que não se obtém


a menos que se passe por ela e que se trate do próprio
inconsciente. É preciso
que fique bem claro que o que forma um analista é sua experiência pessoal
com o
Inconsciente, experiência essa que só pode ser obtida por meio de uma análise
pessoal.

As recomendações de Freud trabalhadas nesta aula


vão no sentido de mostrar àquele que se

pretende um psicanalista a importância


de se ter o maior cuidado possível em termos éticos e
técnicos para que se
priorize a singularidade e o inconsciente do sujeito que se escuta. Na prática,
se deixamos emergir nossa própria singularidade e não nos colocamos como um
tipo de tela em

branco para o paciente, o tratamento corre um sério risco de


não ser bem-sucedido. Quanto mais
tomamos atitudes que podem fazer erguer
resistências no sujeito, menos bem-sucedido será o

tratamento que propomos a


esse sujeito.

Se
levamos o tratamento de uma pessoa que apresenta compulsão em termos de educá-la
a

não repetir mais o comportamento indesejado, maior propensão essa pessoa


apresentará a se
apegar em seu sintoma devido às resistências. Por isso, nosso
objetivo não deve ser o de educar

nem o de tornar o sujeito socialmente


adaptado, mas sim verificar com ele o que faz com que essa
seja a única solução
encontrada para manejar com a angústia.

A
(re)construção da singularidade do sujeito e a (re)construção da narrativa
acerca daquilo que
o faz sofrer é o que deve objetivar o psicanalista. Não se
deve arrancar o sintoma do sujeito, mas

sim investigar como ele foi construído.


É por meio dessa investigação que algum efeito mais
duradouro poderá surgir em
termos de bem-estar e qualidade de vida para o sujeito.

FINALIZANDO

Eis os conteúdos a serem absorvidos nesta aula:


1. A psicanálise não deve ser inserida no rol maior das psicoterapias, mesmo que
tenha coisas
em comum. O que a diferencia da psicologia em geral é sua ética;

2. A ética da psicanálise não visa à cura nem adequações ou normatizações, mas sim o
desejo.
Ela trabalha com o sujeito do Inconsciente e não com o Eu ou a
consciência;

3. Freud, em seu texto Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, de


1912, afirma o
tempo todo que a posição do analista deve ser a mais neutra
possível (no sentido de se tornar

um tipo de ‘tela em branco’ para o paciente),


para que, assim, possam emergir os aspectos
inconscientes a serem trabalhados;
4. Outro ponto que Freud aponta como crucial para um tratamento bem-sucedido é que o
analista

não deve ter um furor de cura, mas sim priorizar os aspectos


inconscientes que causam os
sintomas. Quanto maior o furor de cura, mais resistências
que impedem que o paciente se

confronte com o conteúdo inconsciente que o está


adoecendo podem vir à tona;
5. O analista deve o tempo todo estar atento àquilo que pode erguer resistências no
paciente.

Mesmo que a resistência seja material de trabalho, é preciso não


contribuir para aumentá-las,
mas sim reduzi-las, e, assim, o material inconsciente
pode vir à tona;
6. O setting deve ser organizado de maneira que o paciente entenda que está se
dispondo a um

trabalho e que isso vai exigir investimento tanto de tempo quanto


de dinheiro. A análise deve
ter um custo, somente assim o paciente poderá
entender que deve se colocar a trabalho;

7. Freud deixa claro que o que torna alguém apto para a prática da psicanálise é a
experiência
com o próprio inconsciente, portanto, não deve praticar a
psicanálise quem não colocar seu

próprio inconsciente a trabalho;


8. O movimento psicanalítico tem início com as reuniões das quartas-feiras. Nessas
reuniões,
tratava-se de assuntos relativos à prática analítica e sua estrutura
enquanto uma ciência e um

fazer;
9. Houve grandes cisões e rompimentos durante a história do movimento psicanalítico
(seja no

que tange à sua difusão, seja no que tange à sua estruturação ou


transmissão), o que nos leva
a visualizar que há um aspecto político que
atravessa a psicanálise em termos de sua

historiografia.

REFERÊNCIAS
FREUD,
S. Recomendações
aos médicos que exercem a psicanálise. Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

______.
Sobre
o início do tratamento. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de

Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

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2001.

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M. R. Histórias da psicanálise em Curitiba:
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entre clínica, teoria e política. 147 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade
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sociedades de psicanálise – universidade: a delicada questão

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J. psicanal., São Paulo, v. 39, n. 70, p. 309-325, jun.   2006. Disponível
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Psicanalítica de
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Acesso em: 1 jan. 2021.

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