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A REGRA FUNDAMENTAL.

Associar as ideias livremente. Freud em diversos de seus textos, mais


precisamente nos artigos sobre a técnica vai sustentar que esta é a única regra
da psicanálise. Trabalhando com as outras questões, como tempo, dinheiro e
passagem ou não ao divã como recomendações, ele dá uma ênfase importante
na questão de não abdicar desta regra que será o fundamento sobre o qual se
construiu todo o edifício da Psicanálise.

Todos os conceitos psicanalíticos formalizados por Freud, como Inconsciente,


Recalque, Transferência, Repressão, Resistência e até mesmo o Complexo de
Édipo, derivam desta mesma fonte. A importância da Associação Livre é tal que,
nos permite nos dias de hoje, mais de cem anos após a criação da Psicanálise,
revermos todos os eixos teóricos e pensá-los em nosso tempo a partir da fala de
nossos pacientes. Para dar um exemplo, podemos nos perguntar hoje se a
mulher que Freud recebia em seu consultório padecia dos mesmos sofrimentos
que a mulher que nos procura hoje. É evidente que há invariantes ao trabalho
analítico, como o caso das estruturas clínicas, mas notem que também há
variantes. Uma mulher que hoje pode se perguntar, por exemplo, se deseja se
casar, ter um filho, abortar, se divorciar, ou simplesmente aceitar uma condição
de sustentar uma família enquanto o marido cuida da casa, isso na época de
Freud era simplesmente impensável, daí a formação da sintomatologia histérica
que verificamos nos idos de 1900.

Para longe de pensar em uma inversão de papéis, o que quero acentuar aqui é
que, nos dias atuais, a mulher tem maior liberdade de escolha, o que implica um
outro tipo de sofrimento que antes era muito mais dificil de se perceber na fala
das mulheres. Ora, o que mudou? Não se trata tanto do lugar da mulher, mas
talvez de uma suposta queda do falocentrismo, do fracasso ou insuficiência do
nome do Pai, e com isso, novas roupagens se apresentam a nossa porta
demandando o tratamento pela palavra. Podemos dizer que o Édipo em Freud
não é o mesmo Édipo em Lacan, que não é o mesmo Édipo de hoje em dia. Tudo
isso, só é possível de sustentar se, e somente se, os analistas forem capazes de
continuar teorizando a partir da clínica, a partir do que escutam da boca de seus
pacientes.

Para introduzir nosso trabalho de hoje, proponho a questão: qual a diferença


entre psicanálise e psicoterapia?

Encontramos a resposta a esta questão nos primeiros textos psicanalíticos.


Freud (1905) em “Sobre a Psicoterapia” insiste que uma psicanálise é efeito de
um trabalho muito minucioso de escutar tudo o que o paciente diz e que o
paciente é convidado a falar tudo o que lhe ocorre à cabeça. Diferentemente das
psicoterapias que, de uma forma geral, o profissional assume o lugar do mestre
condutor de um trabalho em que já sabe de antemão onde deseja chegar – à
remissão da sintomatologia, ou, como ocorre em alguns casos, à aceitação do
diagnóstico e do tratamento eterno – o psicanalista assume um outro lugar, o
lugar de alguém que não sabe ainda do que se trata, mas pode oferecer um
como se trata.

Ainda em “Sobre Psicoterapia”, Freud nos revela que enquanto na hipnose e nas
outras práticas sugestivas os efeitos eram, e ainda o são, temporários e por
vezes mais danosos do que o que se tinha antes do trabalho e na psicanálise
encontramos alguma outra coisa que provoca um efeito duradouro do trabalho.
Este efeito está justamente articulado à abdicação de que o analista saberia a
priori e utlizaria da sugestão para significar e orientar o seu paciente. Esta
abdicação tem suas razões. Freud (1905), compartilhava uma teoria muito
próxima da escola de Janet. A escola de Janet se orientava pela concepção de
que o sofrimento humano estava relacionado representações inconscientes.
Ora, se as representações inconscientes são a gênese do sofrimento do
paciente, como poderia o analista intervir ativamente para ensinar o paciente
sobre do que ele sofre?

Freud (1905) responde a esta questão chave para o tratamento psicanalítico se


utilizando de uma analogia entre a pintura e a escultura.
Primeiro ele nos traz a ideia de que as psicoterapias funcionam como uma
espécie de ato de pintar. Diante da tela, o terapeuta irá orientando como fazer e
o que fazer, ensinando e colocando as cores e as regras, montando o cenário
de tal forma que o paciente está rigorosamente submetido às ideias, sugestões
e moral do terapeuta. Um parêntese aqui: talvez seja por isso que temos nos
dias de hoje os pacientes “refratários” ao tratamento ofertado no campo da saúde
mental. Pacientes poliqueixosos, que não aderem corretamente ao tratamento
médico, que faltam, que interrogam, que não se deixam dominar pelo saber do
outro. A estes a psicanálise costuma ter um efeito importante e quase que
“milagroso”, pois eles não apenas ficam, como percebem os efeitos do
tratamento psicanalítico de forma muito clara.
Após falar brevemente sobre a psicoterapia, Freud (1905) nos elucida que a
psicanálise estaria mais para uma arte realizada pelo escultor (escuta-dor). Este,
diante da pedra bruta, vai retirando os excessos, para encontrar ali o de que se
trata, o amago da rocha, a sua essência. Mas tomemos os devidos cuidados, o
analista não está ali para encontrar a essência do sujeito, visto que o próprio
sujeito é apenas efeito do dispositivo clínico. Estamos em uma posição outra, em
que, mais do que retirar os excessos dos dizeres dos outros que me permite falar
abertamente “eu sou”, nos ocupamos de ouvir atentamente com muito cuidado
a construção deste ser a partir do que se diz sobre si neste jogo de encontros e
desencontros consigo mesmo. O que vemos é que o analista, deve sustentar
sua atenção e escuta não para o ser, mas para aquilo que não condiz com o ser
e o revela clivado, a saber: o sujeito.

Ora, tudo começa com a inversão clínica proposta por Freud. Enquanto nas
psicoterapias, de forma geral, o saber é amparado por uma figura que representa
o ser do médico, o saber que se colhe em uma análise é de outra ordem. É óbvio
que o analista tem o dever de saber conduzir um tratamento, o Sq (Significante
qualquer) que Lacan localiza e nos traz no texto “Proposição” é efeito disso.
Marco isso com muita relevância. Embora encontremos no analista, antes
mesmo de ligar para marcar um horário, uma série de significantes que vão se
perfilando, montando uma rede e armando a cama na qual logo mais nos
deitamos e convenientemente chamamos de divã – o que não quer dizer da peça
que temos em nosso consultório e que é fetiche, a vedete dos psicanalistas mais
ortodoxos – se não se produz um Significante qualquer que entre na cena como
o x da questão, não temos a menor possibilidade de que uma análise se inicie.

De acordo com Freud, procedemos antes da análise propriamente dita uma


espécie de ensaio para verificar se aquele caso seria da ordem de algo tratável
por uma psicanálise. Freud descarta uma série de pessoas em que a psicanálise
não teria o efeito esperado, ou nenhum efeito, embora nos faça também, já em
1905 uma advertência interessante: “As indicações e contraindicações desse
tratamento não podem ser postas de forma definitiva, em decorrência de muitas
limitações práticas...” (Freud, 1905 p.71).

Em 1913, Freud retoma seu texto de 1905 e insiste ainda na mesma questão.
“Não temos a disposição outro tipo de avaliação além deste ensaio; nem mesmo
longas conversas e perguntas aos pacientes durante a sessão seriam um
substituto para tanto.” Ora, o que acontece neste ensaio em que mesmo Freud
já considerava uma entrada na psicanálise propriamente dita? A resposta
encontra-se no mesmo parágrafo, algumas linhas mais abaixo e diz assim: “...
deixamos principalmente o paciente falar e não lhe prestamos esclarecimentos
além daqueles imprescindíveis à continuidade de sua narração.” Ora, o que
Freud nos chama a atenção é que o próprio ensaio serve tanto como início do
tratamento como uma avaliação para verificar se o paciente se beneficiaria ou
não de uma análise propriamente falando.

É possível verificarmos nos textos freudianos muitas recomendações sobre o


trabalho analítico, no entanto, uma só regra que tem uma dupla inscrição. Por
um lado, a regra da associação livre de ideias pelo paciente, por outro lado, a
regra da atenção equitativamente flutuante por parte do analista.
No texto “Sobre o início do tratamento”, após fazer uma série de observações e
apontar como recomendações, desde o tempo, o dinheiro, o uso do divã, entre
outros, Freud (1913) escreve explicitamente que a única coisa que se estabalece
como REGRA é a associação livre de ideias. Ora, não é possível uma psicanálise
sem a associação livre de ideias. Ocorre que, ao levar esta consideração às
últimas consequências, poderemos nos deparar com questões relativas aos
psicóticos, às crianças, ou então aos autistas. Questões abertas para provocar
e que não devem ser respondidas com tanta pressa pois que, em Freud, temos
muito pouco sobre isso.

Embora nós tenhamos em Freud uma descrição da técnica e do trabalho do


analista, não encontramos uma descrição minuciosa que nos levaria a pensar na
possibilidade de um ensino técnico do que seria uma psicanálise. Freud inaugura
assim um ensino que considere a experiência de tal forma que podemos dizer
que a psicanálise é a teorização de uma clínica. Será Lacan quem irá,
posteriormente, formalizar o percurso de análise desde as entrevistas
preliminares ao tratamento até seu fim com a doutrina do passe. Lacan insiste
para que os analistas de sua época retornem aos fundamentos e retornem ao
objeto com o qual trabalha o psicanalista desde Freud, que é o inconsciente, e a
ferramenta que temos para tal que é nada mais, nada menos do que a fala.

Para ilustrar esta questão recorro ao texto “Função e campo da fala e da


linguagem” de 1953 em que Lacan escreveu as seguintes palavras:

“Afirmamos, quanto a nós, que a técnica não pode ser compreendida


nem corretamente aplicada, portanto, quando se desconheccem os
conceitos que a fundamentam. Nossa tarefa será demonstrar que
esses conceitos só adquirem pleno sentido ao se orientarem num
campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala.” (p. 247)

Ora, um dos grandes esforços de Lacan em seus 10 anos de “retorno a Freud”


na Sociedade Francesa de Psicanálise era justamente o de voltar a psicanálise,
à experiência que ela conduzia, a saber: do homem com a verdade. Esta
experiência, inaugurada por Freud, não é possível sem a dimensão da fala.

A questão da fala entra no ensino de Lacan de 1953 a 1964 após sua expulsão
da IPA e é preciso notar que nestes anos de ensino, o que Lacan criticava na
questão da formação dos analistas era justamente os desvios a que a IPA e seus
mestres faziam com o ensino e a práxis criada por Freud.
Uma práxis: é assim que Lacan denomina a experiência freudiana. Uma práxis
é, bem resumidamente falando, uma teoria que se articula de tal modo à
experiência que não podemos dizer de uma experiência sem teorizá-la, e
também não há teoria possível sem o suporte material que a experiência nos
permite recolher.

Neste sentido, avançaremos agora para questão da práxis em Freud e em


Lacan.

Entrada em análise:
Vimos que Freud então propunha uma espécie de trabalho de Ensaio e Lacan,
ao invés de pensar como um ensaio, se utiliza do termo “entrevistas
preliminares”. Isso sugere outras questões, mas a rigor vemos que há algumas
alterações significativas na clínica para que isso seja proposto.

Lacan acolhe em análise um número maior de pessoas, subverte as


recomendações freudianas e insiste na regra, única regra proposta por Freud.
Embora acolha a mais pacientes, ele também discrimina uma tipologia em
especial e adverte que não devemos aceitar os canalhas em análise. Há que
compreender que Lacan chama de canalhas em especial os Filósofos, não todos
os filósofos, mas aqueles que se fazem de Outro para alguém e tentam com isso
dominar o gozo do Outro. Impossível de analisar na realidade, visto que o
analista deve fazer semblante de Outro, e na relação com o canalha este lugar
já está ocupado. Dizendo de outra maneira, se a análise só é possível quando o
paciente se coloca a associar livremente, como esta associação seria possível
em quem se coloca como já sabedor da Verdade? A associação livre de ideias
é o efeito de uma percepção de que “eu não sei” sobre mim mesmo. Ou seja,
parafraseando Freud, de que o Eu não é dono de sua casa e que, talvez, nem
sequer esteja em casa.

De qualquer forma, o que está em julgamento aqui é se o analista irá ou não


aceitar a pessoa que o procura para o tratamento. Questão intrigante esta em
que, mais do que oferecer a psicanálise a todas as pessoas, buscamos verificar
se aquela pessoa está ou não apta para um tratamento psicanalítico.
Como verificar se isso ocorre ou não?

Não há como julgar sem antes experimentar. Este ponto é fundamental,


acolhemos a todos que nos procuram, mas aqui um acento importante, não são
todos que, por mais que o analista intervenha, entram em análise, ou seja, tal
qual a psicanálise, o analista também tem seus limites. Seja pela teoria, por um
percurso insuficiente de análise, ou pelo próprio paciente que não tem uma
relação favorável com seu inconsciente - alguém que não consegue
minimamente brincar com as palavras, se espantar com os possíveis outros
sentidos que um dizer porta, ou então que simplesmente não é capaz de
metaforizar uma cena – condição para que a análise se estabeleça.

Mas como verificar estas condições? Freud nos ensina, mais no sentido de uma
orientação do que de uma técnica a ser seguida à risca: convide o paciente a
falar.

Basta que o paciente fale para que ele esteja em análise? De forma alguma. E
isto aqui é muito importante. Não é qualquer coisa que se diz ou de qualquer
forma que se conduz uma análise. Volto a este ponto, o analista convida a falar
e conduz a análise do paciente. Ora, se a neurose tem o caráter de ser um
conflito entre representações inconscientes que buscam tornarem-se
conscientes e não conseguem por conta do recalque e das repressões que
impedem a fruição da pulsão, a psicanálise é o tratamento em que a regra
fundamental e única é de que o paciente associe livremente as ideias que lhe
ocorrem a cabeça e que, uma vez que isso seja possível – pois sabemos que
nem sempre é – os efeitos possam ser testemunhados e colhidos da boca de
cada paciente para efeitos de trasmissão.

Marco com isso uma diferença importante entre falar qualquer coisa e associar
as coisas que se fala. Ou ainda, para não perder a delicadeza de nosso trabalho,
o analista é alguém que instiga o paciente a reconhecer que há mais no dizer do
que ele sabe estar dizendo. O convite então torna-se provocação no sentido de
produzir questões nas quais o analisante possa associar livremente entre cenas,
ideias, pensamentos e mais especificamente entre aquilo que ele pensa e aquilo
que ele é capaz de dizer.

Freud (1905) faz uma referência muito importante a Shakespeare, mais


precisamente a Hamlet quando nos lembra da cena em que Hamlet, o príncipe
da Dinamarca estava investigando sobre a morte de seu pai, o Rei. Após produzir
uma peça de teatro em que ele reproduzia o assassinato do pai, ainda suposto,
mas já carregado de certezas, ele encontra-se diante de dois guardas da corte.
Dois guardas, mas que na realidade eram seus amigos e começam a pressioná-
lo para que ele diga o que sabe, para que Hamlet fale de sua certeza. O que
temos é uma belíssima comparação de Hamlet entre seu ser, sua fala e a música
que é possível produzir com a flauta.

Recomendo muitíssimo que leiam este trecho do texto de Freud.


Bem, podemos verificar que a experiência da psicanálise com a experiência que
Freud retoma na pena de Shakespeare é muito semelhante. Dizer que uma
análise se inicia quando o paciente fala qualquer coisa que lhe vem a cabeça,
isso é um equívoco no mínimo interessante. Dizer que a análise é efeito de uma
transferência também. O que pretendo demonstrar é que a experiência da
psicanálise é muito distinta das experiências cotidianas em que tomamos a
palavra, seja bêbados em um bar, ou em uma discussão acalorada e dizemos
muito do que gostaríamos de dizer, mas que no momento seguinte nos calamos
com medo, culpa ou vergonha de ter deixado escapar o coração do segredo que
nos faz sofrer. Sem o analista, a experiência da livre associação de ideias só
tende a conduzir ao pior. É isto que observamos quando de pessoas não
preparadas se dizem psicanalistas e intentam através de uma técnica muito
específica sacar debaixo do recalque aquilo que jaz ali numa espécie de limbo.

Não sei o quão claro fui neste ponto, mas retomo. Uma análise depende do
analista que a conduz, de outra forma não passa de um vomitar de palavras sem
qualquer sentido. E a associação livre é antes de mais um efeito do primeiro ato
analítico que conduz à entrada em anáise propriamente dita. Produzido pelo
analista que não se dá por satisfeito com as explicações simplistas e
racionalizantes dos porquês dos sofrimentos, mas antes, que interroga, que
provoca, que causa um efeito de mostração da inconsistência do discurso.
Inconsistência essa que o paciente, antes de entrar em análise, mas já visitando
um analista, não se dá conta de forma alguma, por mais que alguém em algum
momento jogue em sua cara, não passará de um ato para ferir narcisicamente o
paciente: “ele diz isso por que tem raiva, ódio, inveja, me ama mas não pode me
ter, etc...” todas essas “desculpas” encobrem um saber de si que o próprio
paciente não quer saber, mas sabe.

Acho que esta questão nunca é o bastante trabalhada, a da associação livre de


ideias. Pelo menos Freud trabalhou ela muito pouco, ou ainda, o disse de forma
extremamente concisa, mais precisamente em uma nota de rodapé em “O início
do tratamento”, quando nos afirma que sem falar tudo o que lhe vier a cabeça a
psicanálise não alcança os resultados pretendidos. Curiosa expressão que ele
utiliza: “é preciso quebrar os ovos para fazer uma omelete”. No entanto, também
nos coloca a par de situações práticas e clínicas, mas sempre defendendo a
ideia de que a psicanálise depende da observância desta regra e de que a
resistência, na verdade, aparece como uma tentativa de não levar às últimas
consequências a regra fundamental.

Sobre os discursos e a entrada em análise:


Primeiro ponto que quero abordar aqui com vocês e que será discutido mais
profundamente amanhã é que a entrada em análise é efeito do ato analítico que
engendra um discurso.
Lacan (1977) nos questiona sobre o que é a clínica psicanalítica e ele mesmo
responde dizendo que é o que se diz numa psicanálise. Em outro momento, em
1956, Lacan afirma que uma psicanálise é o que se espera de um analista e que
a psicanálise, enquanto uma práxis de cura pela palava, é efeito do ato do
analista que a conduz.

Em outro momento, mais precisamente no seminário 20, Lacan nos diz que a
psicanálise é um discurso. O discurso psicanalítico só é possível de ser
sustentado na medida em que haja psicanalistas para tal. No entanto, o
psicanalista só pode aparecer como o efeito de uma análise, em outras palavras,
como efeito da mudança de discurso. Imprescindível que se perceba que a
psicanálise enquanto discurso não trabalha com outra coisa que não com o
sujeito afetado por ele e, mais ainda, efeito dele. O sujeito enquanto efeito de
discurso só é apreensível em sua evanescência no instante em que percebemos
com alguma clareza, no só depois, os giros e os efeitos destes através do
testemunho do analisante no divã.

Estes giros, não o encontramos nem o produzimos sem uma tática, uma
estratégia e uma política muito bem delimitados. Lacan (1958) em “A direção do
tratamento e os princípios do seu poder” já nos atentava a isto, antes mesmo de
elaborar em 1968 os 04 discursos paradigmáticos de uma transmissão da clínica
por meio de um matema muito próprio a seu ensino.

Resumidamente, para não fugir muito da questão proposta, basta sabermos que
a estratégia em que trabalha o analista é a transferência; e a tática são as
intervenções possíveis do analista. Reforço o caráter de possível, pois que o
analista não pode fazer tudo o que lhe vem a cabeça e deve obedecer as regras
do jogo. Estas regras são determinadas pela política que se sustenta na ética da
psicanálise. A política do trabalho é sempre orientada pelo des-ser do analista,
é sempre suportada pela ética da psicanálise.

Se Lacan formaliza os 04 discursos, alguns anos após o texto de 1958, não é


sem ele. Vejam como vamos aos poucos organizando todo um percurso lógico
de trabalho, mas que vai tomando um viés temporal. Em 1953 Lacan retoma a
questão da fala e da palavra, Em 1956, escreve um dos textos mais radicais no
que toca à crítica no modelo de formação em psicanálise proposto e sustentado
pela IPA. Já em 1958, propõe o texto em que ordena o trabalho clínico e
sustentaria a formação do analista como um percurso de análise quando da
sustentação de uma ética. Será em 1960, no seminário sobre a ética da
psicanálise, que ele irá afirmar que a psicanálise é uma ética. E devemos ter isto
em conta quando do avanço no ensino de Lacan pois, mesmo nos últimos
seminários, Lacan sustenta esta posição até o fim de sua vida.

Se retomo esta linha do tempo, não é por qualquer razão, mas para que
possamos verificar um percurso que irá desembocar na formalização de uma
ética pela via dos 04 discursos. Segundo Silvia Waisztein “Escrever os discursos
sob a forma algébrica é a proposta lacaniana de transmitir o real de sua
estrutura”. O que Lacan formaliza com os 04 discursos e que depois irá
formalizar de outra forma, com o nó borromeano, é a questão da estrutura do
sujeito enquanto efeito do dispositivo clínico criado por Freud. Dispositivo este
que se sustenta na regra fundamental já discutida anteriormente.

Os 04 discursos são uma tentativa de formalização de um percurso de análise.


Ou, como nos ensina Isidoro Vegh (2001) o inconsciente proposto por Lacan
“estruturado como uma linguagem” é efeito de discurso, então, trabalhar com a
psicanálise não é possível se não tomamos como regra que o próprio analista
para além de operar com as palavras, ele mesmo é efeito de um discurso muito
particular e deve produzir a partir de seu des-ser, ou seja, a partir do desejo de
analista que sustenta sua posição política na cena analítica, uma cura possível
na práxis que ele sustenta. Notem bem que mesmo a cura, não é sem a produção
de uma outra modalidade de discurso, ou ainda, de um outro amor, de uma outra
modalidade de amar. Encontramos então que uma análise deveria passar, se
não por todos, ao menos por 2 discursos que padecem os efeitos de um ato que
engendraria um terceiro. Os dois discursos que me refiro é da chegada do
analisante, esteja ele localizável no discurso do mestre ou no discurso
universitário, o que o analista com seu ato (discurso analítico) produz é em um
primeiro momento o discurso da histérica, onde se formaliza aqui a construção
de uma demana de análise e depois, somente algum tempo depois, podemos
verificar como o próprio analisante vai conseguindo se posicionar mais
livremente dentro dos 04 discursos em momentos muito distintos de sua vida.
Deve ficar claro que o discurso do analista é operador e também efeito
evanescente de uma operação. Não é possível ser nem ficar dentro deste
discurso, afinal, uma vez que se habita a linguagem, o esperado do fim de uma
análise seria equivalente a dizer que o sujeito goza de certa liberdade no vir a
ser.

O que Lacan nomeia de 04 discursos é na realidade uma modalidade muito


particular de estar na linguagem. O discurso do analista é sempre efêmero, efeito
do ato analítico que tem como objetivo o rearranjo do sujeito dentro da estrutura
da linguagem. Notem bem que estou falando de sujeito, ou seja $. Não falo do
ser, mas do $ que o analista supõe que se pode produzir naqueles encontros em
que o paciente é provocado a dizer tudo o que lhe vier à cabeça.
Ora, se pensarmos a entrada em análise como um questionar-se não sem o
outro, o que estamos dizendo é que a entrada em análise depende
necessariamente da produção, ou melhor dizendo, de uma montagem do
discurso histérico. Respeitando as regras do jogo, uma vez que se produz o
discurso histérico, verificamos que aquela cena na qual dois falam sobre um que
se queixa de seus problemas de amor pode ser pensada como uma psicanálise.

Quero deixar isso muito claro, o discurso da histérica na clínica é efeito do ato
analítico. Podemos dizer que analisante é um discurso, paciente é quem procura
o analista, mas este será sempre analisante? Alba Flesler em “os discursos e a
cura” (p.43) nos ensina que “somente a partir da palavra é possível delimitar a
posição analisante”. Interessante aspecto que pode até se produzir na rua, na
vida cotidiana, mas que não se sustenta.

Se tomamos o $ como agente, tal qual encontramos no discurso da histérica, o


que vemos é que aqui já há uma destituição subjetiva, ou seja, o ser já não se
sustenta mais da mesma forma que antes e que o sujeito já não se confunde
mais com o ser. O que temos na vida cotidiana é a constituição do ser pelo laço,
pela colagem com significantes. Uma vez que morre o filho, o pai pode continuar
sendo pai de um filho morto, mas isso faz dele um pai? Ou ainda, se seu filho
está morto, deixaria ele de ser pai? Vejam que o o buraco é muito mais embaixo.
Para dar um exemplo mais claro, se me caso, sou um homem casado, se me
divorcio, sou um divorciado. Dois significantes aos quais me represento para um
outro. Notem bem que isso não quer dizer muita coisa, ou ainda, que isso não
me representa totalmente. E um pouco mais, que o sujeito, embora colado a
significantes para que possa se representar a um outro significante, não é o
significante.

A questão do ser é imprescindível na entrada da análise. Enquanto o ser estiver


colado ao significante e não houver nenhuma brecha no sistema, a análise seria,
talvez não impossível, mas inviável. Por que submeter alguém à análise se as
coisas estão funcionando bem? Ou ainda, por que alguém que se localiza no
discurso do mestre vai procurar um analista? Esta é uma questão fundamental,
a resposta, única possível, é por que esse vacila, algo não vai bem, alguma coisa
fracassa.

O discurso do mestre pode ser também nomeado de discurso do inconsciente.


O que quer o inconsciente? Que não se saiba nada disso e que as coisas
continuem funcionando com tal? Não, que as coisas continuem funcionando,
isso é óbvio, mas lembremos que Freud nos fala em diversos textos, que o
reprimido sempre procura aparecer para dizer a verdade sobre o sujeito. Em “O
mal estar na civilização” há uma analogia interessante, a de que o superego é
como uma polícia interna que não permite que o material reprimido chegue à
consciência.
Sobre isso que não quero saber, e escapa a partir das intervenções do analista,
temos então a possibilidade de mudança entre os discursos. Podemos pensar
na desmontagem do discurso do mestre para ordenar o discurso da histérica.

A entrada em análise mais seria acompanhar o paciente e conduzi-lo na


produção de um analisante do que, tal qual já ouvi dizer por aí, se colocar como
psicanalista e, antes mesmo de ouvir o paciente, já dizer que é uma psicanálise.
Ora, se é uma psicanálise, devemos saber de qual se trata, pois que tanto para
Freud quanto para Lacan, a psicanálise é efeito de discurso, não qualquer
discurso, muito menos um blá-blá-blá.

Neste sentido, o que encontramos no ensino de Lacan como entrada em análise


pode ser pensado como aquilo que se produz como efeito do ato do analista e
que conduz a uma histericização do discurso. Este ato, é impossível que se
produza se não há analista, ou seja, se não há alguém que, uma vez que passou
pelo processo de análise, caminhou até as últimas consequências na
experiência proposta por Freud e reiterada por Lacan.

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