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Para longe de pensar em uma inversão de papéis, o que quero acentuar aqui é
que, nos dias atuais, a mulher tem maior liberdade de escolha, o que implica um
outro tipo de sofrimento que antes era muito mais dificil de se perceber na fala
das mulheres. Ora, o que mudou? Não se trata tanto do lugar da mulher, mas
talvez de uma suposta queda do falocentrismo, do fracasso ou insuficiência do
nome do Pai, e com isso, novas roupagens se apresentam a nossa porta
demandando o tratamento pela palavra. Podemos dizer que o Édipo em Freud
não é o mesmo Édipo em Lacan, que não é o mesmo Édipo de hoje em dia. Tudo
isso, só é possível de sustentar se, e somente se, os analistas forem capazes de
continuar teorizando a partir da clínica, a partir do que escutam da boca de seus
pacientes.
Ainda em “Sobre Psicoterapia”, Freud nos revela que enquanto na hipnose e nas
outras práticas sugestivas os efeitos eram, e ainda o são, temporários e por
vezes mais danosos do que o que se tinha antes do trabalho e na psicanálise
encontramos alguma outra coisa que provoca um efeito duradouro do trabalho.
Este efeito está justamente articulado à abdicação de que o analista saberia a
priori e utlizaria da sugestão para significar e orientar o seu paciente. Esta
abdicação tem suas razões. Freud (1905), compartilhava uma teoria muito
próxima da escola de Janet. A escola de Janet se orientava pela concepção de
que o sofrimento humano estava relacionado representações inconscientes.
Ora, se as representações inconscientes são a gênese do sofrimento do
paciente, como poderia o analista intervir ativamente para ensinar o paciente
sobre do que ele sofre?
Ora, tudo começa com a inversão clínica proposta por Freud. Enquanto nas
psicoterapias, de forma geral, o saber é amparado por uma figura que representa
o ser do médico, o saber que se colhe em uma análise é de outra ordem. É óbvio
que o analista tem o dever de saber conduzir um tratamento, o Sq (Significante
qualquer) que Lacan localiza e nos traz no texto “Proposição” é efeito disso.
Marco isso com muita relevância. Embora encontremos no analista, antes
mesmo de ligar para marcar um horário, uma série de significantes que vão se
perfilando, montando uma rede e armando a cama na qual logo mais nos
deitamos e convenientemente chamamos de divã – o que não quer dizer da peça
que temos em nosso consultório e que é fetiche, a vedete dos psicanalistas mais
ortodoxos – se não se produz um Significante qualquer que entre na cena como
o x da questão, não temos a menor possibilidade de que uma análise se inicie.
Em 1913, Freud retoma seu texto de 1905 e insiste ainda na mesma questão.
“Não temos a disposição outro tipo de avaliação além deste ensaio; nem mesmo
longas conversas e perguntas aos pacientes durante a sessão seriam um
substituto para tanto.” Ora, o que acontece neste ensaio em que mesmo Freud
já considerava uma entrada na psicanálise propriamente dita? A resposta
encontra-se no mesmo parágrafo, algumas linhas mais abaixo e diz assim: “...
deixamos principalmente o paciente falar e não lhe prestamos esclarecimentos
além daqueles imprescindíveis à continuidade de sua narração.” Ora, o que
Freud nos chama a atenção é que o próprio ensaio serve tanto como início do
tratamento como uma avaliação para verificar se o paciente se beneficiaria ou
não de uma análise propriamente falando.
A questão da fala entra no ensino de Lacan de 1953 a 1964 após sua expulsão
da IPA e é preciso notar que nestes anos de ensino, o que Lacan criticava na
questão da formação dos analistas era justamente os desvios a que a IPA e seus
mestres faziam com o ensino e a práxis criada por Freud.
Uma práxis: é assim que Lacan denomina a experiência freudiana. Uma práxis
é, bem resumidamente falando, uma teoria que se articula de tal modo à
experiência que não podemos dizer de uma experiência sem teorizá-la, e
também não há teoria possível sem o suporte material que a experiência nos
permite recolher.
Entrada em análise:
Vimos que Freud então propunha uma espécie de trabalho de Ensaio e Lacan,
ao invés de pensar como um ensaio, se utiliza do termo “entrevistas
preliminares”. Isso sugere outras questões, mas a rigor vemos que há algumas
alterações significativas na clínica para que isso seja proposto.
Mas como verificar estas condições? Freud nos ensina, mais no sentido de uma
orientação do que de uma técnica a ser seguida à risca: convide o paciente a
falar.
Basta que o paciente fale para que ele esteja em análise? De forma alguma. E
isto aqui é muito importante. Não é qualquer coisa que se diz ou de qualquer
forma que se conduz uma análise. Volto a este ponto, o analista convida a falar
e conduz a análise do paciente. Ora, se a neurose tem o caráter de ser um
conflito entre representações inconscientes que buscam tornarem-se
conscientes e não conseguem por conta do recalque e das repressões que
impedem a fruição da pulsão, a psicanálise é o tratamento em que a regra
fundamental e única é de que o paciente associe livremente as ideias que lhe
ocorrem a cabeça e que, uma vez que isso seja possível – pois sabemos que
nem sempre é – os efeitos possam ser testemunhados e colhidos da boca de
cada paciente para efeitos de trasmissão.
Marco com isso uma diferença importante entre falar qualquer coisa e associar
as coisas que se fala. Ou ainda, para não perder a delicadeza de nosso trabalho,
o analista é alguém que instiga o paciente a reconhecer que há mais no dizer do
que ele sabe estar dizendo. O convite então torna-se provocação no sentido de
produzir questões nas quais o analisante possa associar livremente entre cenas,
ideias, pensamentos e mais especificamente entre aquilo que ele pensa e aquilo
que ele é capaz de dizer.
Não sei o quão claro fui neste ponto, mas retomo. Uma análise depende do
analista que a conduz, de outra forma não passa de um vomitar de palavras sem
qualquer sentido. E a associação livre é antes de mais um efeito do primeiro ato
analítico que conduz à entrada em anáise propriamente dita. Produzido pelo
analista que não se dá por satisfeito com as explicações simplistas e
racionalizantes dos porquês dos sofrimentos, mas antes, que interroga, que
provoca, que causa um efeito de mostração da inconsistência do discurso.
Inconsistência essa que o paciente, antes de entrar em análise, mas já visitando
um analista, não se dá conta de forma alguma, por mais que alguém em algum
momento jogue em sua cara, não passará de um ato para ferir narcisicamente o
paciente: “ele diz isso por que tem raiva, ódio, inveja, me ama mas não pode me
ter, etc...” todas essas “desculpas” encobrem um saber de si que o próprio
paciente não quer saber, mas sabe.
Em outro momento, mais precisamente no seminário 20, Lacan nos diz que a
psicanálise é um discurso. O discurso psicanalítico só é possível de ser
sustentado na medida em que haja psicanalistas para tal. No entanto, o
psicanalista só pode aparecer como o efeito de uma análise, em outras palavras,
como efeito da mudança de discurso. Imprescindível que se perceba que a
psicanálise enquanto discurso não trabalha com outra coisa que não com o
sujeito afetado por ele e, mais ainda, efeito dele. O sujeito enquanto efeito de
discurso só é apreensível em sua evanescência no instante em que percebemos
com alguma clareza, no só depois, os giros e os efeitos destes através do
testemunho do analisante no divã.
Estes giros, não o encontramos nem o produzimos sem uma tática, uma
estratégia e uma política muito bem delimitados. Lacan (1958) em “A direção do
tratamento e os princípios do seu poder” já nos atentava a isto, antes mesmo de
elaborar em 1968 os 04 discursos paradigmáticos de uma transmissão da clínica
por meio de um matema muito próprio a seu ensino.
Resumidamente, para não fugir muito da questão proposta, basta sabermos que
a estratégia em que trabalha o analista é a transferência; e a tática são as
intervenções possíveis do analista. Reforço o caráter de possível, pois que o
analista não pode fazer tudo o que lhe vem a cabeça e deve obedecer as regras
do jogo. Estas regras são determinadas pela política que se sustenta na ética da
psicanálise. A política do trabalho é sempre orientada pelo des-ser do analista,
é sempre suportada pela ética da psicanálise.
Se retomo esta linha do tempo, não é por qualquer razão, mas para que
possamos verificar um percurso que irá desembocar na formalização de uma
ética pela via dos 04 discursos. Segundo Silvia Waisztein “Escrever os discursos
sob a forma algébrica é a proposta lacaniana de transmitir o real de sua
estrutura”. O que Lacan formaliza com os 04 discursos e que depois irá
formalizar de outra forma, com o nó borromeano, é a questão da estrutura do
sujeito enquanto efeito do dispositivo clínico criado por Freud. Dispositivo este
que se sustenta na regra fundamental já discutida anteriormente.
Quero deixar isso muito claro, o discurso da histérica na clínica é efeito do ato
analítico. Podemos dizer que analisante é um discurso, paciente é quem procura
o analista, mas este será sempre analisante? Alba Flesler em “os discursos e a
cura” (p.43) nos ensina que “somente a partir da palavra é possível delimitar a
posição analisante”. Interessante aspecto que pode até se produzir na rua, na
vida cotidiana, mas que não se sustenta.