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As vicissitudes da repetição
Breno Ferreira Pena
Resumo
O objetivo deste trabalho é explorar o conceito de repetição em psicanálise. Para tanto, o autor
faz uma investigação do tema em Freud e Lacan procurando obter uma visão mais abrangente
deste conceito que é fundamental para a teoria e, principalmente, para prática clínica.
Palavras-Chave
Pulsão Transferência Repetição Resistência
Para abordar o conceito de repetição, seja, quando o paciente repete, ele atua
primeiro farei um contraponto de Freud sem saber que está repetindo. Trabalhan-
com ele mesmo, através de dois momen- do na perspectiva da primeira tópica,
tos distintos de seu ensino. Depois anali- Freud acredita que para lidar com a repe-
sarei esse conceito em Lacan, tendo a pre- tição e superar a resistência é preciso tor-
ocupação de aprofundar o conhecimento nar consciente o que está inconsciente.
teórico sobre este tema, sempre atual, na Depois trabalha este material com o paci-
clínica psicanalítica. ente para que ele possa elaborá-lo, tudo
A compulsão à repetição é trabalha- isto através do manejo da transferência.
da por Freud no texto Repetir, Recordar Para Freud, nessa época, a repetição está
e Elaborar de maneira singular. Lacan, identificada à resistência, que está relacio-
inclusive, aponta este texto como o pri- nada com as lacunas de memória. Portan-
meiro momento na obra freudiana a des- to, espera-se que o trabalho analítico su-
tacar, de forma articulada, a presença no pere as resistências com o preenchimento
psiquismo de uma compulsão à repetição. das lacunas de memória através das inter-
Nesse momento, Freud circunscreve a pretações do material inconsciente.
transferência no campo da repetição de A compulsão à repetição é um impul-
forma incisiva: Logo percebemos que a so à ação que substitui o recordar; sendo
transferência é, ela própria, apenas um frag- assim, quanto maior a atuação, maior a
mento da repetição... (FREUD, v.XII:166). resistência e menor a recordação. Logo, a
Ele afirma que enquanto o paciente se repetição é definida como algo que faz
encontra em tratamento, não pode dei- oposição ao saber, sendo ela da ordem da
xar de ter esta compulsão à repetição, que ação.
é uma maneira de recordar sem que a pes- Nesta perspectiva, cabe ao analista,
soa se dê conta do que está ocorrendo, ou utilizando-se da transferência e da posi-
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ção que esta lhe confere, isolar a repeti- surado de modo quantitativo, ou seja, o
ção na transferência e possibilitar que o binônimo prazer/desprazer estava relacio-
paciente possa passar de uma neurose co- nado à quantidade de excitação presente
mum a uma neurose de transferência, que no aparelho psíquico de forma que o des-
abrirá campo para a intervenção por par- prazer correspondia a um aumento da
te do analista: quantidade de excitação e o prazer a uma
A transferência cria, assim, uma região diminuição. Porém, Freud começa a per-
intermediária entre a doença e a vida real, ceber um furo nesta teoria, algo que não
através da qual a transição de uma para a se encaixa e assim afirma:
outra é efetuada. A nova condição assumiu Deve-se, contudo, apontar que, estrita-
todas as características da doença, mas re- mente falando, é incorreto falar na dominân-
presenta uma doença artificial, que é, em to- cia do princípio de prazer sobre o curso dos
dos os pontos, acessível à nossa intervenção processos mentais. Se tal dominância existis-
(FREUD, v. XII:170). se, a imensa maioria de nossos processos men-
Assim, podemos concluir que para tais teria de ser acompanhada pelo prazer ou
Freud, em 1914, os conceitos de repeti- conduzir a ele, ao passo que a experiência
ção e transferência são indissociáveis e geral contradiz completamente uma conclu-
quem resiste à recordação é o material são desse tipo (FREUD, v.XVIII:19).
recalcado que não pode chegar à consci- Assim, o princípio de prazer, em 1920,
ência. deixa de ter o fator quantitativo como re-
No entanto, ao escrever o texto Além ferência e começa a adquirir um estatuto
do Princípio de Prazer, que possibilita o qualitativo. Freud percebe que existe algo
surgimento do conceito de pulsão de mor- mais primitivo e que independe do prin-
te, Freud dá uma virada, ou melhor di- cípio de prazer, pois analisando o sonho
zendo, faz uma torção em seu ensino com traumático e a brincadeira do fort-da cons-
repercussões teóricas que são fundamen- tata que o ser humano repete insistente-
tais para a psicanálise. Nesse momento a mente situações que não causam prazer e
repetição vai ocupar um outro lugar, ou sim desprazer, ou seja, o sujeito repete in-
seja, vai aparecer através da força pulsio- conscientemente o que lhe causa dor e
nal, sendo uma com (pulsão) à repetição. sofrimento. Nesta nova construção teóri-
Para Freud, como vimos anteriormen- ca o fator quantitativo passa a balizar este
te, até 1920 a repetição era algo que esta- princípio que visa à morte numa volta a
va ligado ao campo transferencial como um estado inorgânico, onde não há con-
resistência, mas agora, com a referida tor- flitos, denominado princípio de Nirvana.
ção, este marco teórico já não se sustenta, Este princípio tem que ser quantitativo,
fazendo com que ele faça um rearranjo em pois a pulsão de morte é silenciosa e sem
sua teoria em vários pontos. A presença representação, sendo pura quantidade.
da repetição ultrapassa os limites do tra- Freud também analisa, neste texto, o prin-
tamento analítico, pois ela está presente cípio de realidade, que é uma modifica-
na vida de todas as pessoas e revela um ção do princípio de prazer, através das exi-
caráter pulsional, portanto, inerente à gências da realidade. Portanto, o princí-
condição humana. pio de realidade não abandona a inten-
Freud inicia este texto de 1920 ques- ção de obtenção de prazer, mas aceita o
tionando o princípio de prazer, pois come- adiamento da satisfação como algo neces-
ça a perceber que esse princípio não con- sário. Sendo assim, ele tolera o desprazer
segue responder a todos os processos que como uma etapa na obtenção do prazer.
ocorrem no psiquismo. Até então, ele afir- Nesta perspectiva, o princípio de Nirvana
mava que o princípio de prazer era men- pertence à pulsão de morte, o princípio
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As vicissitudes da repetição
RECEBIDO EM 15/06/2007
APROVADO EM 27/06/2007
SOBRE O AUTOR