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Keylla Barbosa

Da Verwerfung em Freud
à foraclusão em Lacan
Keylla Barbosa

Resumo
Propomos analisar nos textos de Lacan e seus interlocutores (sobretudo Freud e Hyppolite) a
formação da hipótese da foraclusão como alicerce teórico no que diz respeito à constituição das
psicoses. Para tal, iremos percorrer junto com Lacan a tomada da palavra “Verwerfung”, que
aparece no artigo de Freud sobre o “Homem dos Lobos”, e a sua transformação em “foraclusão”.
Examinaremos esse ato criativo de Lacan, a fim de situar esse novo conceito no plano epistemo-
lógico deixado por Freud e revisitado por Lacan.

Palavras-chave: Psicanálise, Psicose, Foraclusão, Verwerfung.

A foraclusão é uma hipótese criada por É o artigo de Freud sobre o Homem


Lacan para explicar a ausência do signi- dos Lobos que inspira Lacan a construir a
ficante Nome-do-Pai na cadeia signifi- foraclusão. Desse artigo, Lacan toma al-
cante e no lugar do Outro. Essa hipótese, guns comentários de Freud como ponto
que estaria na base da estrutura psicótica, de partida para delinear um novo signi-
indica seu mecanismo de defesa. Nesse ficado para a palavra “Verwerfung”. Na
caso, a psicose seria definida pela não ins- parte VII desse texto, intitulada Erotismo
crição desse significante que é o respon- anal e complexo de castração, Freud analisa
sável pela possibilidade de significação. as fantasias do Homem dos Lobos a res-
A palavra em francês “forclusion” peito da cena de sexo entre seus pais vista
[foraclusão] foi escolhida por Lacan para por ele quando muito jovem:
traduzir a palavra “Verwerfung”, utilizada
por Freud para fazer menção a um possí- Era por certo uma contradição que, a
vel processo de defesa. A tomada da pa- partir desse momento, pudessem coexistir
lavra “Verwerfung” e sua substituição pela angústia de castração e identificação com
palavra “forclusion” não apenas se trata a mulher mediante o intestino, mas era
de uma tradução, mas também da criação apenas uma contradição lógica, o que
de um conceito inexistente em Freud. A não quer dizer muito. Todo o processo
palavra “Verwerfung” era utilizada por é agora característico do modo como o
Freud a fim de marcar a ação de uma bar- inconsciente trabalha. Uma repressão é
reira, de uma rejeição ou uma abolição. algo diferente de uma rejeição (Freud,
E é, então, com Lacan que a Verwerfung [1914-1918] 2010, p. 71).
ganha um estatuto de pilar fundamental
no estudo das psicoses. A frase “Uma repressão é algo dife-
Neste artigo, vamos acompanhar o rente de uma rejeição”, que em alemão
processo de formação do termo “foraclu- se escreve “Eine Verdrängung ist etwas an-
são”, de modo a colocar uma lente sobre deres als eine Verwerfung” (Freud, [1914-
suas minúcias, seus detalhes, seus apoios 1918] 1924, p. 85), é a frase de Freud
teóricos e epistemológicos. que deu origem à foraclusão lacaniana. A
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Da Verwerfung em Freud à foraclusão em Lacan

pontuação de que uma rejeição é diferen- rece como “er vor ihr nichts wissen wollte
te de uma repressão ou um recalque1 abre im Sinne der Verdrängung” (Freud, [1914-
a possibilidade de se pensar em mecanis- 1918] 1924, p. 91).
mos de ação inconscientes diferentes O modo como essa frase é colocada
entre si e, consequentemente, em seus por Freud no texto em alemão apresenta
resultados. certa ambiguidade que possibilita a Lacan
Para Freud, o modo de operação do fazer dela uma leitura no sentido de iso-
aparelho psíquico culmina em diferen- lar a Verwerfung como um mecanismo de
tes tipos clínicos, sendo possível, a partir defesa diferente da Verdrängung. No se-
dessa hipótese, sugerir uma diferença de minário, livro 3: as psicoses ([1955-1956]
base entre a neurose e a psicose. Ao ob- 2010), bem como no artigo Resposta ao
servar essa abertura potente deixada por comentário de Jean Hyppolite ([1954]
Freud, Lacan eleva a Verwerfung à cate- 1998), Lacan deixa registrado que sua
goria de conceito fundamental em rela- tradução dessa frase é a seguinte: “le sujet
ção à psicose, propondo, assim, uma ex- ne voulait rien savoir de la castration même
plicação de base estrutural para isso que au sens du refoulemen” (Lacan, [1955-
se apresenta na clínica. 1956] p. 121),2 que na edição traduzida
Mais adiante, ainda no capítulo VII para o português se torna “o sujeito nada
do artigo sobre o Homem dos Lobos, en- queria saber da castração, mesmo no sen-
contramos o seguinte trecho a respeito tido do recalque” (Lacan, [1955-1956]
de uma possível resposta em relação à 2010, p. 177).
castração: Para completar, o autor leva ao ex-
tremo a afirmação de Freud de que, no
Já nos é conhecida a atitude inicial do caso do Homem dos Lobos, “era como se
paciente para com o problema da cas- [a castração] não existisse”, no original
tração. Ele a rejeitou e se ateve ao ponto “aber es war so gut, al sob sie nicht existier-
de vista da união pelo ânus. Ao dizer te” (Freud, [1914-1918] 1924, p. 91) e a
que a rejeitou, o significado imediato traduz como “il en fut aussi bien que si elle
da expressão é que não quis saber dela, n’avait jamais existé” (Lacan, [1954] 1966,
no sentido de que a reprimiu. Com isso p. 384-385), que na versão em português
não se pronunciava um juízo sobre a sua aparece como “foi exatamente como
existência, mas era como se não existisse se ela nunca tivesse existido” (Lacan,
(Freud, [1914-1918] 2010, p. 75). [1954] 1998, p. 389). Foi a partir dessas
traduções/interpretações que Lacan pôde
A frase na citação acima traduzida construir, para as psicoses, um mecanis-
como “Ele a rejeitou” em alemão se escre- mo que se coloca na base, ou melhor, na
ve “Er verwarf sie” (Freud, [1914-1918] estrutura de seu funcionamento.
1924, p. 91), ou seja, Freud aqui se utili- No decorrer do Seminário 3: as psi-
za do verbo verwerfen, que dá origem ao coses, podemos mapear, em vários mo-
substantivo Verwerfung, para falar sobre o mentos, exatamente os passos dados pelo
destino da castração nesse caso. A frase autor a partir do texto de Freud sobre o
que aparece na edição brasileira, citada Homem dos Lobos no caminho da cons-
acima, “não quis saber dela, no sentido trução do conceito de Verwerfung, expres-
de que a reprimiu”, na edição alemã apa- samente cunhado e lapidado desta forma:

1. A tradução da palavra “Verdrängung” para o português 2. Esta citação do Seminário 3 foi consultada no site
varia entre ‘repressão’ e ‘recalque’ a depender de como <www.stataferla.free.fr>, no seguinte link:
cada tradutor escolhe articular os conceitos de Freud. <http://staferla.free.fr/S3/S3%20PSYCHOSES.pdf>.

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Se há coisas de que o paciente não quer é empregada para se referir à impossibili-


nada saber, mesmo no sentido do recal- dade do uso de um direito que, não tendo
que, isso supõe um outro mecanismo. E sido exercido dentro de certo prazo, não
como a palavra Verwerfung aparece em pode mais ser requerido pelo sujeito. A
conexão direta com essa frase e também possibilidade de uso de um direito pres-
com algumas páginas antes, eu me apode- creveu, e o fato sobre o qual o direito
ro dela. Não me prendo especialmente ao recairia não poderá mais ser analisado
termo, prendo-me ao que ele quer dizer, e julgado perante a lei, o que quer dizer
e creio que Freud quis dizer isso (Lacan, que o direito de chamar uma lei à ação
[1955-1956] 2010, p. 177) foi foracluído. Porém, antes de se tornar
um termo jurídico, a palavra “foraclusão”
E, finalmente, define, na página se- em francês constava no vocabulário cor-
guinte, deste modo: rente e era utilizada como um sinônimo
de excluir, privar, expulsar, impedir, banir,
De que se trata quando falo Verwerfung? omitir, cortar, prender do lado de fora ou
Trata-se da rejeição de um significante banir alguém para fora de algum limite
primordial em trevas exteriores, signi- (Rabinovitch, 2001, p. 17).
ficante que faltará desde então neste Outra origem do uso dessa palavra
nível. Eis o mecanismo fundamental que por Lacan é o emprego dela por Édouard
suponho na base da paranoia (Lacan, Pichon e Jacques Damourette em uma
[1955-1956] 2010, p. 178). coletânea de sete extensos volumes de
gramática francesa publicada por esses
É importante notar que foi apenas na autores em 1911 e nos anos subsequen-
última lição do Seminário 3 que Lacan in- tes. A coletânea é chamada: Des mots à
troduz a palavra “forclusion” como subs- la pensée. Essai de grammaire de la langue
tituta na língua francesa para a palavra française, que, traduzindo, seria “Das pa-
“Verwerfung”. Antes, ele apenas usava a lavras ao pensamento. Ensaios de gramá-
palavra em alemão. Mais precisamente, tica da língua francesa”.
no dia 4 de julho de 1956, Lacan anuncia: Nessa gramática, seus autores utili-
zam a palavra “foraclusão” para explicar
O que há de tangível no fenômeno de a formação da negação na língua france-
tudo o que se desenrola na psicose é que sa. Em francês, para se construir uma ne-
se trata da abordagem pelo sujeito de um gação, é preciso usar dois termos na frase:
significante como tal, e da impossibilidade o primeiro é o “ne” e o segundo varia de
dessa abordagem. Não torno a voltar à acordo com o propósito da negação ou
noção de Verwerfung de que parti, e para com o objeto; nesse lugar podemos en-
a qual, tudo bem refletido, proponho que contrar as palavras “pas”, “plus”, “jamais”,
vocês adotem definitivamente esta tradu- “persone” ou ainda o “que” restritivo. Para
ção que creio ser a melhor – a foraclusão esses gramáticos, o primeiro termo da ne-
(Lacan, [1955-1956] 2010, p. 369-370, gação é o que torna a frase discordante,
grifo do autor). portanto é chamado, de discordanciável;
o segundo termo é o foraclusivo, pois tem
Em nenhum momento de sua obra, a função de expulsar a ideia representada
Lacan diz o motivo pelo qual escolheu a do campo da possibilidade, excluindo o
palavra “foraclusão” [forclusion]. Então, passado e o futuro.
vamos as suas origens. É certo que essa
palavra configura um termo jurídico tan- A segunda parte da negação em francês,
to na Alemanha quanto na França, onde constituída por palavras como nada,

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Da Verwerfung em Freud à foraclusão em Lacan

nunca, jamais, nenhum, ninguém, mais, o levará às consequências finais desse


dificilmente, etc., se aplica aos fatos que o livro. Assim, ele marca uma distinção
locutor não visa como fazendo parte da entre Verwerfung [rejeição/foraclusão] e
realidade. Esses fatos são de algum modo Verneinung [negação] e relaciona ambas
forclos, também damos a essa segunda par- com a Bejahung [afirmação] termo apre-
te da negação o nome de foraclusivo (Da- sentado por Freud ([1925] 2010) em A
mourete; Pichon, [1911-1927] 1987, p. negação [Die Verneinung].
115, tradução nossa, grifos dos autores). Nesse artigo, Freud aborda a ques-
tão dos primeiros processos do aparelho
Em sua obra Lacan não deixa clara a psíquico que dizem respeito à afirmação
origem do termo “foraclusão” por ele utili- e à negação. Desse modo, afirmar algo
zado. A opção por traduzir Verwerfung por é distingui-lo como bom e introduzi-lo
foraclusão parece ter intensa relação com no aparelho psíquico, enquanto negar é
a proposta de Damourette e Pichon, para colocar algo como mau e excluí-lo deste.
os quais também se trata de excluir algo Portanto, segundo Freud, nesse processo
passível de representação do campo da de distinção, ocorre uma Bejahung (afir-
possibilidade e do acontecimento. Lacan mação) e uma Ausstossung (palavra tra-
em alguns momentos chega a comentar duzida como expulsão).
o trabalho de Pichon e Damourette, mas De acordo com a tese do princípio
não em relação à foraclusão. Em geral, de prazer, aquilo que é bom será afirmado
os textos pós-lacanianos que se referem e internalizado pela Bejahung, enquanto
à origem desse termo indicam sua fonte aquilo que é mau será posto para fora
jurídica. Porém, a gramática de Pichon pela Ausstossung. A Bejahung será lida
e Damourette é algo que não pode ser por Lacan como o processo inicial da in-
deixado de lado, quando se trata da in- clusão do primeiro corpo de significantes,
vestigação da origem desse termo, pois é ou seja, como a instauração do lugar do
certo que Lacan conhecia esse compilado Outro, e a Ausstossung como a constitui-
de livros sobre a língua francesa. E nada ção do fora perdido para sempre, ou seja,
mais justo ao psicanalista do inconscien- a constituição do Real. A Ausstossung e a
te estruturado como linguagem fundar Bejahung são como avesso e direito de um
um conceito com bases gramaticais. “mesmo gesto de divisão” (Rabinovitch,
Por outro lado, em muitas versões dos 2001, p. 46) entre fora e dentro.
textos freudianos a palavra “Verwerfung” Freud nos diz que, mediante a ação
foi traduzida como “rejeição”. Apesar de do par Bejahung/Ausstossung, deve ope-
ser uma palavra frequente em Freud, ela rar a verificação de posse e de realidade
não delimita exatamente um conceito, das representações internalizadas. Isso foi
nem propriamente um mecanismo de por ele chamado de juízo de atribuição
funcionamento inconsciente que trata e juízo de existência, respectivamente.
da formação das psicoses. É claro que a É no juízo de existência que irá funcio-
Verwerfung só ganha esse estatuto com nar a Verneinung como uma sucessora da
Lacan. Ausstossung, distorcendo o valor de exis-
Ainda no Seminário 3: as psicoses, tência de determinadas representações.
embora o delineamento preciso de Lacan A Verneinung nega a existência de algo já
sobre a Verwerfung como uma operação internalizado no aparelho psíquico, por-
significante apareça na lição 11 e sua tanto, é desse modo que ela se distingue
tradução apareça no último capítulo, já da Ausstossung, visto que esta última tem
na lição 1, o autor começa a introduzir a função de expulsar tudo aquilo que não
esse tema, costurando o caminho que traz satisfação à libido. A Verneinung pres-
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supõe a existência daquilo que ela nega, mária, e é a partir dela que o Real irá se
ou seja, daquilo que foi internalizado pela constituir como aquilo que fica para fora
ação do par Bejahung/Ausstossung, man- da Bejahung. O funcionamento desse jogo
tendo a separação entre representação entre incorporação e expulsão nada mais
e coisa, e agindo sobre uma representa- é do que o processo formador do simbó-
ção a serviço do retorno do recalcado. A lico. O que é afirmado constitui o simbó-
Verneinung age deformando o conteúdo lico, e o que é negado fica para o lado de
inconsciente para que este possa alcançar fora da simbolização.
o consciente; ela não é um processo de
defesa, mas opera a serviço de um. A Verwerfung, portanto, corta pela raiz
Dito isso, cabe a pergunta sobre o qualquer manifestação da ordem simbóli-
ponto em que se situa a Verwerfung nesse ca, isto é, da Bejahung que Freud enuncia
plano mítico da constituição do dentro como o processo primário em que o juízo
e do fora.3 Segundo Lacan, a Verwerfung atributivo se enraíza, e que não é outra
corta pela raiz aquilo que, internalizado coisa, senão a condição primordial para
pela Bejahung, é submetido ao juízo de que, do real, alguma coisa venha se ofe-
atribuição. Desse modo, a Verwerfung recer à revelação do ser (Lacan, [1954]
impede a formação do simbólico, o que 1998, p. 389).
só pode surgir por meio dos mecanismos
de negação explicados anteriormente. A grande diferença entre os dois
Qualquer significante incorporado pela modos de negação representados pela
Bejahung/Ausstossung pode ser lançado Verneinung e pela Verwerfung é que a pri-
fora pela Verwerfung e nunca mais será meira se faz com a lógica da simbolização,
encontrado. Não irá sobrar nenhum enquanto na segunda há um bloqueio do
vestígio da existência desse significante simbólico onde há um retorno do real
havendo uma alteração no juízo de atri- através de construções imaginárias. Esse
buição e existência, mantendo aquilo que momento trata não de uma relação do
foi foracluído como se nunca houvesse sujeito com o que há no mundo, mas sim
existido nem dentro, nem fora do apa- de um reconhecimento daquilo que é; o
relho psíquico. Tudo se passará como se que está envolvido nesses primeiros pro-
algo nunca tivesse sido introduzido nesse cessos psíquicos é uma relação do sujeito
primeiro corpo de significantes, o que, de com o ser.
certo modo, cria uma identidade entre Na resposta que Lacan escreve sobre
Ausstossung e Verwerfung (Rabinovitch, o comentário de Jean Hyppolite a respeito
2001, p. 26). da Verneinung freudiana, ele é bem claro
Nesse período da obra de Lacan, a ao situar sua hipótese da foraclusão como
Ausstossung configura a expulsão pri- aquilo que vem para se opor à afirmação
(Bejahung) primordial. Nesse caso, ou há
3. Segundo Jean Hyppolite em seu texto Comentário a Bejahung, ou o que se coloca em frente
falado sobre a Verneinung de Freud (que pode ser ao princípio de realidade é a Verwerfung.
encontrado tanto nos Escritos, de Lacan, bem
como no livro Ensaios de psicanálise e filosofia, citado
anteriormente) a questão da criação de um lugar O processo de que se trata aqui sob o
interior e outro exterior, que está em jogo nas nome de Verwerfung, e que não tenho
operações que dão origem ao aparelho psíquico,
pode ser entendida como um mito. Lacan reitera notícia de que algum dia tenha sido
essa opinião no texto Resposta ao comentário de Jean objeto de um comentário um pouquinho
Hyppolite (também encontrado nos Escritos) dizendo consistente na literatura analítica, situa-
que a aposta em entender esses processos no plano do
mito nos ajuda a não cair na armadilha de entendê-los se muito precisamente num dos tempos
como algo do nível do desenvolvimento. que Sr. Hyppolite acaba de destacar para

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Da Verwerfung em Freud à foraclusão em Lacan

vocês na dialética da Verneinung: trata-se problemática, aquela que o próprio Freud


exatamente do que se opõe a Bejahung evoca a propósito dos obsessivos, que não
primária e constitui como tal aquilo que é a forma ser mãe, mas a forma ser pai
é expulso (Lacan, [1954] 1998, p. 389). (Lacan, [1955-1956] 2010, p. 337-338,
grifos do autor).
Portanto, o processo formador da psi-
cose envolve a exclusão pela Verwerfung No penúltimo capítulo desse semi-
de um significante particular. Mas, ao nário, ele declara: “Esse significante, no-
delinear a Verwerfung, Lacan não o pres- meei-o da última vez – tu és aquele que é,
supõe como algo exclusivo da psicose. A ou que será, pai”. E no parágrafo seguin-
Verwerfung diz de algo que ficou fora da te, finalmente nomeia:
simbolização e, portanto, está nas bases
da constituição do Real. Esse mecanis- Antes que haja o Nome-do-Pai, não
mo pode envolver outros significantes e havia pai, havia todas as espécies de
nomear fenômenos para além do que se outras coisas (Lacan, [1955-1956] 2010,
passa nas psicoses, visto que nesta, o que p. 353).
está em jogo é a foraclusão de um signifi-
cante bem específico. No Seminário 3: as O que foi posto para fora da simbo-
psicoses, Lacan enuncia qual é esse signi- lização pela rejeição ou, como diz Lacan,
ficante apenas nos momentos finais. pela foraclusão, o que ficou preso para
Segundo Arrivé (1999, p. 154), fora do simbólico pela Verwerfung, vai
Lacan faz certo suspense sobre o signi- emergir no registro do real. Trata-se de
ficante faltante, pois em alguns trechos um processo primordial de exclusão de
ele declara essa falta, sem especificá-la, um dentro primitivo, aquele de um pri-
como em: meiro corpo de significantes que come-
çou a se formar.
Isso pode parecer-lhes impreciso, mas é Essa expulsão, que muitas vezes
suficiente, mesmo se não podemos dizer pode ser confundida com o mecanismo
de imediato o que é esse significante (La- da projeção, tem características peculia-
can, [1955-1956] 2010, p. 235). res no caso da psicose. Ela não é apenas
uma projeção no sentido de colocar no
E mais adiante em: outro aquilo que é seu, como acontece
na neurose. Na psicose, a projeção tem a
Não há nenhum meio de apreender, no ver com esse mecanismo de colocar algo
momento em que isso falta, alguma coisa para fora do simbólico. Sob a ameaça de
que falta (Lacan, [1955-1956] 2010, p. castração, quando o mecanismo de ação
294). é o do recalque (Verdrängung), aquilo que
sofre essa ação é certo que volta como
Essa questão sobre o que é que fal- sintoma: o recalque e o retorno do re-
ta será respondida por Lacan no fim de calcado são como o avesso e o direito de
seu seminário sobre as psicoses, quando uma mesma coisa.
se refere a esse significante a partir de Porém, quando o mecanismo é a
uma análise sobre a crise do presidente Verwerfung, o que é recusado no sim-
Schreber: bólico, reaparece no real. As psicoses
mostram que há uma etapa lógica no
Qual é o significante que é posto em desenvolvimento que é anterior a toda
suspenso em sua crise inaugural? É o simbolização, anterior à dialética neuró-
significante procriação em sua forma mais tica. Na psicose, há algo que não é simbo-
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lizado, que impede o surgimento de uma FROM VERWERFUNG IN FREUD


articulação entre recalcado e retorno do TO FORECLOSURE IN LACAN
recalcado. Isso que não é simbolizado é
foracluído. Se fosse simbolizado seria re- Abstract
calcado. We propose to analyze in the texts of Lacan
A importância da criação por Lacan and his interlocutors (above all with Freud
da foraclusão enquanto algo que preten- and Hyppolite) the formation of the hypothesis
de ocupar o lugar de uma primeira hipó- of foreclusure as a theoretical foundation for
tese de base para a teoria das psicoses é a the constitution of psychoses. To do this, we
de inaugurar a discussão a respeito desse shall follow Lacan’s use of word Verwerfung,
tema a partir de um novo ponto de vista. which appears in Freud’s article on the “The
Ao contrário da neurose, em Freud, a psi- Wolf Man”, and its transformation into
cose acaba ocupando um segundo plano foreclosure. We will examine this creative act
no sentido de que não foi algo discutido of Lacan in order to situate this new concept
extensamente por esse autor. Lacan, por in the epistemological plane left by Freud and
sua vez, se propõe a reparar essa falta, se revisited by Lacan.
dedicando mais substancialmente ao es-
tudo das psicoses e, aparentemente, faz Keywords: Psychoanalysis, psychosis,
uma tentativa de sustentação teórica ao foreclosure, Verwerfung.
mesmo tempo em que faz uma tentativa
discreta de reparação, indo buscar no
texto de Freud o fundamento para sua
nova teoria.
É importante salientar que o que
Referências
Lacan encontra no artigo sobre o Homem ARRIVÉ, M. Linguagem e psicanálise, linguística e
dos Lobos faz parte de seu método de re- inconsciente: Freud, Saussure, Pichon, Lacan. Rio
de Janeiro: Zahar, 1999.
leitura de Freud; assim, ele fundamenta
sua proposta teórica, com certeza nova, DAMOURETE, J.; PICHON, E. Des mots à la
naquela do pai da psicanálise, o que se pensée: essai de grammaire de la langue française
(1911-1927), v. 1. Paris: Éditions D’Artrey, 1987.
torna consistente a partir de um pilar
epistemológico fundamentado nas opera- FREUD, S. A negação (1925). In: ______. O eu
ções de construção do aparelho psíquico. e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925).
A foraclusão é, portanto, fruto de Tradução e notas Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 249-255.
uma releitura, uma nova proposição de
(Obras completas, 16).
tradução, uma fundamentação teórica
sólida e, por fim, uma dose de interpre- FREUD, S. Aus der Geschichte einer infantilen
tação.j Neurose (1918 [1914]). Leipzig, Wien, Zürich:
Internationaler Psychoanslytischer Verlag, 1924.

FREUD, S. História de uma neurose infantil (“O


homem dos lobos”) (1918 [1914]). In: ______.
História de uma neurose infantil (“O homem dos
lobos”), “Além do princípio do prazer” e outros textos
(1917-1920). Tradução e notas Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
p. 9-119. (Obras completas, 14).

LACAN, J. Apêndice I: Comentário falado sobre


a “Verneinung” de Freud, por Jean Hyppolite. In:
______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio

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Da Verwerfung em Freud à foraclusão em Lacan

de Janeiro: Zahar, 1998. p. 893-907. (Campo Sobre a autora


Freudiano no Brasil).
Keylla Barbosa
HYPPOLITE, J. Commentaire parlé sur la Psicóloga.
“Verneinung” de Freud (1954). In: ______. Écrits. Doutoranda
Paris: Seuil, 1966. p. 879-888. em psicopatologia e psicanálise
pela Université Paris Diderot - Paris 7.
LACAN, J. Le seminaire, livre 3: les psychoses. Mestre em linguística pela Unicamp.
Disponível em: <http://staferla.free.fr/S3/S3%20 Especialista em Saúde Mental
PS YCHOSES.pdf>. Acesso em: 23 set. 2018. e Saúde Coletiva pela Unicamp.

LACAN, J. O seminário, livro 3: as psicoses (1955- Endereço para correspondência


1956). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. E-mail: <keyllafb@yahoo.com.br>
Tradução de Aluísio Menezes. 3. ed. rev. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. O seminário, livro 5: as formações do


inconsciente (1957-1958). Texto estabelecido por
Jacques-Alain Miller. Tradução de Vera Ribeiro.
Rio de Janeiro: Zahar, 1999. (Campo Freudiano
no Brasil).

LACAN, J. Réponse au commentaire de Jean


Hyppolite sur la Verneinung de Freud (1954). In:
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LACAN, J. Resposta ao comentário de Jean


Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud (1954).
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PICARDI, F. D. Linguagem e esquizofrenia: na


fronteira do sentido. 1997. 92 f. Dissertação
(Mestrado em Linguística) - Instituto de Estudos
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RABINOVITCH, S. A foraclusão. Presos do lado


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SCHREBER, D. P. Memórias de um doente dos


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Recebido em: 30/10/2018


Aprovado em: 15/04/2019

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