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I.

POSIÇAO DO PROBLEMA

Reinterpretações

Estou bastante contente que esse caso do Homem dos Lobos' tenha sido desper-
tado. É preciso reconhecer que todo catálogo feito sobre o Homem dos Lobos é e1.i-
dentemente satírico. Há, de fato, todos esses psicanalistas que se ocuparam dele, todos
esses comentadores, e depois todas as variações desses psicanalistas e comentadores - o
que já nutre uma extensa literatura. No fundo, é uma questão de reinterpretação. Este é
um termo que retorna com muita freqüência nos textos sobre o Homem dos Lobos, em
diferentes níveis. De um lado, esse texto é um polêmico escrito contra as interpretações
da psicanálise feitas por Jung e Adler. Por outro, há no próprio caso a reinterpretação de
uma neurose infantil que se produzira quinze anos antes. E então, novamente, reinter-
pretação. O que conseguimos apreender de verdadeiro nisso quinze anos depois? Será
que esse caso verifica as interpretações hostis que foram feitas a seu respeito. Vocês
sabem que Freud assume posições diferentes sobre a realidade ou sobre o caráter fan-
tasmático da cena primitiva. Dizendo de outro modo, esse traço de reinterpretação está
realmente presente em todos os níveis. Não temos de modo algum o estilo que Freud
emprega em relação ao Homem dos Ratos; o Homem dos Lobos é apreendido pelo que
ele conta sobre o que se passara quinze anos antes. É bastante curioso. É como se não ti-
véssemos O caso no presente, mas o caso apreendido na reinterpretação. Freud condensa
esse caso, destacando certos traços valorizados pelo tratamento analítico2:"a tenacidade
da fixação", sua extraordinária propensão à ambivalência e mesmo à vacilação, e "como
terceiro traço de uma constituição que é preciso nomear como arcaica: a faculdade de

O p ~ à oLacaniana no 56/57 9 Julho 2010


manter os mais diversos e contraditórios investimentos libidinais", todos capazes de
funcionar lado a lado. A variedade dos diagnósticos é na realidade fundada sobre o que
Freud nos traz: um caso em que se avizinham ligações libidinais as mais contraditórias
e variadas. Todo o esforço de Lacan, com acentos variados, incide essencialmente sobre
a organização das diversas ligaçòes libidinais coexistentes. Ele vai buscar organizá-las
repartindo-as, eventualmente estratificando-as, e mesmo hierarqiiizando-as. Os diagnós-
ticos dependem então d o modo como organizamos essas ligações libidinais: neurose
coni tendência psicótica, caso-limite com tendência a acting-out, obsessão com forte
coloração paranóide etc. Tudo isso repousa sobre o terceiro traço valorizado por Freud.

Castração: um problema freudiano

Não podemos retomar o conjunto d o caso por essa base, mas podemos ir ao es-
sencial, qual seja: o problema da castração. Notemos de cara que não parece que Lacan
tenha colocado a questão do Nome-do-Pai no cerne desse caso. Mesmo assim é algo
inassivo. No momento em que ele traz não a forclusão como tal - ele a hwia abordado
dois anos antes - mas a forclusão do Nome-do-Pai: não se trata mais d o Honiem dos
Lohos. Ainda assim é uma indicação que se de\;e levar em conta.
Esse problema da castração que não fica muito claro em Freud, Lacan tenta resol-
ver. São tentativas de solução. Evidentemente, havendo passado certo tempo, as tentati-
vas de solução podem por sua vez tornar-se problemas. Enfim, são tentativas d e soluçào
de uin problema freudiano.
Tomemos a passagem na qiial Lacan se apóia eni sua "Resposta ao comentário de
Jean Hyppolite"'. Freud faz um resumo extremamente claro dessa coexistência d e liga-
çòes libidinais. Em certo sentido, o Homem dos Lobos jamais reconheceu a castração.
Eiii outro sentido, ele a reconheceu. Cito Freud: "Agora conlieceinos a posição inicial de
nosso paciente em relação ao problema da castração. Ele a rejeitou (uerwar-,e se detém
no ponto de vista da relaçào pelo ânus. Quando disse que a rejeitou, a significação iiiais
próxima da expressão é que ele nada quis saber sobre ela, no sentido d o recalcaiiiento.
Deste inodo, falando propriamente, nenhum julgamento incidi~isobre sua existência; foi
como se ela não houvesse. No entanto, esta atitude não pode ter sido definitiva, nem
mesiiio em relação aos anos de sua neurose infantil. Existem provas convincentes d e que
ele reconheceu posteriortiiente a castração como uin fato. Sob esse ponto ele tambéin
se coniportou d o modo que era caracrerístico para seu ser, o que torna extraordinaria-
mente difícil para nós representar sua neurose e compreendê-la a partir d o interior.'"
Temos, então, ein primeiro lugar, a Veriuerfung da castração, e em segundo lugar o seu
reconliecimento. Mas esse reconhecimento reveste duas modalidades: primeiramente ele

O@o kic~niansn" 56/57 10 Julho 2010


resistiu, em seguida cedeu. Mas a segunda reação, diz Freud, nào suprimiu a primeira.
Temos então uma arquitetura tripla:

1) Verwerfung da castração
/IResistir
2) Reconhecimento da castração
Ceder

Freud especifica: "Por fim, subsistiam nele lado a lado duas correntes opostas das
quais uma aboniinava a castração e a outra estava prestes a aceitá-la e a consolar-se
com a feminilidade como substituto. A terceira, a mais antiga e profunda, aquela que
simplesmente rejeitara a castração e na qual ainda não era questão de julgamento sobre
sua realidade, esta corrente era certamente ainda reativável"
Ein certo sentido, é verdade que o conjunto d o caso d o Homem dos Lobos nos é
apresentado no âmbito da neurose infantil: e mesmo da neurose adulta. Há: entretanto,
nesse livro a niarcação de uma resistência masculina à castração e da adoção de uma
posi~ãofeminina, com, por detrás, uma questão que é sempre capaz de entrar eni ati-
vidade.
O que Freud diz é ainda assim extraordinário. Isto indica que o que pôde se passar
já estava anunciktdo. É tasnbém o que confere importância à famosa cena primitiva, pois
ela é considerada como tendo produzido no paciente a convicção da realidade da castra-
ção. A convicção, Überzeugung, é realmente uina posição subjetiva. O ponto de partida
de Freud é o de que uma neurose infantil precede a neurose ~ilterior.
Nesse contexto: qual é o problema colocado pelo próprio iiiodo como Freud ex-
põe o caso clínico em suas diferentes etapas? A Verwerfiung d a castração, Freud a de-
tecta na teoria anal d o coito. A analidade está iinplicada nela. mas há também analidade
na adoção da posição feminina. Então, a analidade é reencontrada em dois lugares, ao
passo que na verdade ela tem duas relações diferentes sob o ponto d e vista estrutural.

1) Verwerfung da castração + Analidade (coito anal)

/T Resistir
2) Reconhecimento da castraçáo 4 Analidade(po8ição feminina)
Ceder

Qual é. então, o problema teórico? O problema simples apontado por Lacan é:


como formular uina coexistência da i7enuefl~nge d o reconhecitnento da realidade? Não
há mil e uma soluções: ou se diz que isto se produz no mesmo ponto - ele rejeita a
castração e ao mesmo tempo a reconhece -, ou reparte-se -distingue-se em qual nível
há uma e em qual nível há a outra.

Entre simbólico e imaginário

Lacan vai repartir as coisas entre simbólico e imaginário. É a primeira repartição


que ele faz, dizendo que sob o ponto de vista imaginário há uma captura homossexua-
lizante, feminizante etc. Lacan situa a identificação com a mãe no registro imaginário, e
no registro simbólico tudo o que é reafirmado como identificação ao pai. Temos então
uma repartição: o "eu não sou castrado" n o simbólico, e a posição feminina no imaginá-
rio. Eis a sua primeira tentativa. Freud, diz Lacan, reconhece "no isolamento simbólico
do 'eu não sou castrado' no qual o sujeito se afirma, a forma compulsional em que per-
manece fixada a sua escolha heterossexual? Lacan faz aí um pacote: ele coloca junto a
posição masculina e o 'eu não sou castrado'. Isto designa antes o nível em que há uma
resistência, em que se abomina a castração, o que para Freud é totalmente compatível
com a posição masculina. Por um lado, temos então essa posição subjetiva simbólica d o
'eu não sou castrado' e uma constância da escolha de objeto heterossexual sob a forma
compulsional: "gosto de ver as empregadas de quatro quando limpam o chão com uma
vassoura d e lado." Por outro lado, temos o registro imaginário da identificação à mãe, ou
seja: "o efeito de captura homossexualizante ao qual foi submetido o eu reconduzido à
matriz imaginária da cena primitiva."
Agnès Aflalo6 assinalou essa lacuna, esse estabelecimento do imaginário e do
simbólico. De certo modo, a questão fundamental será a repartição do imaginário e do
simbólico. A primeira divisão consiste em dizer que o imaginário está aqui e o imagi-
nário acolá, entre o protesto viril e a posiçào feminina. Finalmente, isto se desloca e o
reconhecimento seria, ainda assim, obrigatoriamente da ordem da suplência.
É totalmente exato que não há referência ao Homem dos Lobos em "De uma
questão preliminar...", no entanto, parece-me que ela está lá sem ser explicitada quan-
d o Lacan, para surpresa geral e de uma forma que não aparece diretamente nomeada
pela lógica mesma do texto, distingue forclusão do Nome do Pai e elisão do falo. Ele se
pergunta se o +, é somente a conseqüência da forclusão do Nome do Pai ou se é um
iiiecanismo independente. Em primeira análise, parece-me que não é ilegítimo distingui-
IOS, uma vez que por um lado essa elisão do falo é singularmente próxima do caso, e
por outro, pelo fato de que o próprio Lacan escreve, desde essa primeira proposição
em que ele evoca, acerca do imaginário: "o efeito de captura homossexualizante do eu
reconduzido à matriz imaginária da cena primiti\,a."

Op@o Lawniana no 56/57 12 Julho 2010


Há em Lacan uni esforço por obter uma solução d o paradoxo, distinguindo dois
níveis: o d o reconheciinento e o da Vewerfirng. A cada vez temos dois termos que ten-
tam, da maneira mais lógica, opor-se. O que faz aescansão é a resposta de Jean Hyppo-
lite. É neste iiiomento que a forclusão é isolada como mecanismo simbólico e se mostra
contrária à Bejabung. A partir daí, incluindo o protesto viril e a posição feminina, o re-
conhecimento se torna algo que já é imaginário. Uma vez colocada como tal, a forclusão
permitirá reler o caso Schreber desta vez, como incidindo essencialmente sobre o Nome
d o Pai. Não me parece que tenha havido alguma vez em Lacan o questionamento da
forclusão d o Nome d o Pai no caso d o Homem dos Lobos. Dizer que é unia lrerwerfung
que não recoloca em questão toda a ordem simbólica, é a tradução desse fato. Se nesse
momento alguém diz que é um borderline, adianta-se algo que é estrutural. Se não há
forclusão d o Nome do Pai, ele é psicótico ou não? Mas por outro lado, trata-se de um
neurótico? Pois há mesmo assim essa corrente, a mais profunda, que não admite a cas-
- -
tração, que é da ordem de um: 3 x O x
Isto traz algumas dificuldades para o que é do campo da neurose. O Homem dos
Lobos não é um neurótico como os outros. Em relação ã dificuldade própria a esse caso,
para nós, para aqueles que nos precederam e para o próprio Freud: Lacan dá a seguinte
explicação: Freud se viu mesmo assim em posição de produzir um 3x O x , ao dizer que
isso durou bastante desse modo; há essa iniciativa de colocar um limite ao tratamento.
Nessa "iniciativa de Freud em que podemos reconhecer, diz Lacan, tanto quanto em sua
insistência ein voltar ao caso, a subjetivação, não resolvida nele, dos problemas que o
caso deixa em s ~ s p e n s o . " ~
11. EROTISMO ANAL, CASTRAÇÃO, PARANÓIA

Nossa linha condutora da última vez era mostrar que Lacan tenta várias vezes ela-
borar, acerca da posição do Hotiiem dos Lobos em relação à castração, um binarisnio
que não parece situar sempre nos mesmos termos. De todo modo, explicitamente não
são sempre os mesmos terinos que estão em jogo. Pois no momento em que adota re-
almente uma posição radical em favor da Verwerfung, Lacan não fala mais d o Homein
dos Lobos. Eu resumo as coisas deste modo. Em primeiro lugar, temos uma ignorância
da castração, isto é, a concepção oral da relação sexual. Em segundo lugar, temos a
questão colocada sobre a concepção genital da relação sexual. Depois, em relação a essa
concepção genital: temos igualmente duas atitudes do Homem dos Lobos: a Verwefung
e o reconhecimento. Mas, conforme observa Freud, este elemento jamais fora eliminado
e continuou coexistindo. Já citei esta passagem-chave do texto de Freud: "Por fim, suh-
sistiam nele, lado a lado, duas correntes opostas, das quais uina repudiava a castração,
e a outra estava prestes a aceitá-la e a consolar-se com a feminilidade como substituta.
A terceira, mais antiga e profunda, aquela que simplesmente rejeitara a castração e na
qual ainda não era questão de julgamento sobre sua realidade, essa corrente certamente
era ainda reativável."
Eis o mais coinpleto diagnóstico que Freud formula em seu texto sobre o Homem
dos Lobos. 1-Iá essa atitucle ambivalente em relação i castração, e há, por baixo delal
uma atitude de VerwerJiung fundamental. Isto quer dizer que o próprio reconheciinento
se divide: abominar a castração ou aceitá-la, o que faz com que encontremos o erotismo
anal ein dois lugares. Há, então, estas três correntes fundamentais: abominar a castração,
ou aceitá-la, com a terceira corrente sempre reativável.
Se Freud se apressou tanto ein se desvencilhar desse paciente, e se, clesvencilhan-
do-se dele, retornou teoricamente com tanta insistência - este é o diagnóstico de Lacan
-, foi porque não havia subjetivado os problemas que ali estavam em jogo. Como o caso
d o Homem dos Lobos permaneceu um problema não resolvido na conlunidade analítica,
eu me permiti indicar, da última vez: que o diagnóstico de Lacan poderia ser estendido
ao conjunto dessa comunidade analítica.

O que o significante não absorve

O ponto preciso d o qual se trata é o que resta fora do significante. Esse ponto
não é de modo alg~imum dado para Lawn no momento em que empreende seu ensi-
no propriamente dito. Com efeito, trata-se para ele de situar uma teoria da psicanálise

Opção kiwniana n" 56/57 14 Jiilho 2010


sobretudo a partir d o inconsciente e de sua interpretaçao, isto é, d o sentido. Ainda que,
em seguida, façamos valer a função do significante, é a função d o sentido que se impõe.
Já em Freud há uma oposição entre a busca da causa no âmbito da pulsão, no ânibito
do instinto, no âmbito do desenvolvimento, e a interpretação dos sonhos. Freud parte da
vontade de encontrar a causa d o processo, d e encontrá-la por datação, levando em conta
a maturação d o sujeito, com a incidência d o mau uso genital, d o incidente etc.. Ele pro-
cura estabelecer uma teoria neuronal d o aparelho psíquico e, ao mesmo tempo, escuta
um certo número de pacientes e decifra sonhos. E se dá conta, então, de que não pode
dar urna forma definitiva a esse tipo de projeto científico, mas por outro lado obtéin re-
sultados em relação aos sonhos e sua interpretação. Publica, então, "A interpretação dos
sonhos" em vez da teoria neuronal. E somente com o texto "Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade" a outra corrente reaparece.
Temos assim uma espécie de dupla versão da descoberta freudiana. Essas duas
versões são reformuladas, diferenciadas e hierarquizadas por Lacan em seu relatório de
Roma. Isto indica especialmente que há fenômenos de sentido em tudo o que é interpre-
tação. Há, portanto. nisto uma causalidade específica, a saber, a causalidade semântica?
que se tornará a causalidade significante. Nessa perspectiva, a psicanálise é como a Iiis-
tória, e isto não tem nada a ver com o desenvolvimento. Logo: em psicanálise, é preciso
separar a teoria do deciframento do inconsciente e a teoria das pulsões. Esta teoria,
que ainda assim é o fundamento da "psicologia d o Ego', é uma dimensão secundária e
hipotética.
É preciso perceber que esta é a questão princeps da psicanálise como disciplina;
a questão princeps da unidade da psicanálise. Até hoje estamos às voltas com a mesma
questão: existe um desenvolvimento autônomo do instinto? E como podemos torná-lo
compatível com o que Otto Kernberg, de modo uin tanto pálido, nos traz com a relação
de objeto? Precisemos que essa relação de objeto é, por baixo, uma relação com o Outro.
A escolha da "psicologia d o Ego", de que é preciso se pautar na teoria das pulsões - os
fenônienos de interpretaçào estando subordinados a ela - é oposta à de Lacan. Se Lacan
tivesse permanecido aí, é evidente que poderiam qualificar sua atitude como uin recal-
que, o ~ mesmo
i uma forclusão da pulsão. Todo o seu esforço será, portanto, reescrever
a teoria digamos instintual de niodo compatível com os dados da relação com o Outro.
Dizer, como faço, 'os dados': é tomar como ponto d e partida a própria relação analítica.
O que liga Lacan a Freud, e de maneira necessária, é que Freud, para inventar a psicaná-
lise, partiu de um ponto exterior que para ele funcionou como alavanca, e que o ponto
d e partida de Lacan é já a relação analítica tal como existe, e que coloca em primeiro
plano a relação com o Outro, os fenômenos de interpretagão etc..
Vocês vêem que o ponto de vista que exponho é fundamentado de muitas ina-
neiras. Ele se funda no próprio itinerário de Freud. Ele se funda na escolha feita pela
"psicologia do Ego". Ele se funda igu;iliiiente no gesto inaugural de Lacan: que situa as
pulsões em um lugar sul~ordinado,seguindo-se o esforço de reconhecer que "não-tudo"
(pas tout) é significante e significado.
Eu disse que o que era sobretudo impensável para o relatório de Roma era o objeto
a. O que Agnès Aflalo traz de modo totalmente pertinente, é que isto tem uma incidência
precisa sobre a questão do recalcamento e da forclusão. Não só o objeto a é impensável,
mas o próprio conceito de forclusão também o é. O traumatismo é, então, obrigatoria-
mente reabsorvível: ou ele se apaga e não Frca mais capturado na cadeia indestrutível do
inconsciente, ou há um sentido que pode ser despertado e modificado. A esse respeito,
não há mais existência do traumatismo enquanto tal, nem do gozo que o acompanha. Ela
é integralmente reabsorvível no discurso, no significante e no significado. É isto, quanto
ao objeto a.
Mas há mais. Quando estamos n;i ordem da fala e da linguagem, tudo?diretamen-
te, tem um sentido, que pode ser tomado e que pode circular. A forclusão, pelo contrário,
em seli liso radical significa que há aí um elemento de linguagem que não entra mais no
circuito, que está ã parte, que só faz sentir seus efeitos por sua ausência, e que mobiliza
uma quantidade enorme de significaçòes à sua volta, sem que consigam juntar-se a esse
significante. Isto mostra, entre parênteses, como o significante-mestre, o significdnte so-
zinho, tem um estatuto bastante próximo daquele do objeto.
A própria noção de Verwerfung supõe que há um elemento linguageiro significan-
te - e não um sentido -subtraído do circuito. Ou então, como dimensão fundamental.
temos apenas o recalcamento do significado. Inclusive, no Relatório de Roma, o que é o
sintoma? É o significante de um significado recalcado. E quando são os significados que
são recalcados... Bem, a Verwerfung não é pensável.
É preciso situar em relação a isso a tese da comunicação invertida. O que é essa
famosa forma invertida? É a Verdra~~gung. Ela é especialmente apropriada à denegação.
É o "não é isso, mas você acaba de dizê-lo". É o "eu te amo, nem eu". A comunicação
invertida é evidentemente uma fórmula sedutora para Lacan, pois liga justamente o
fenômeno da denegação ao estádio do espelho, quer dizer a essa inversão da relação
especular. Não esqueçamos que, para Lacan, nessa época, a Verdrangung está ligada ao
eu. A cada vez, isso tem um estatuto de inversão especular. É apenas progressivamente
que Lacan destaca o recalcamento dessa inserção no registro especular. Em "Proposição
sobre a causalidade psíquica", em que a única categoria em uso é no fundo o imaginário,
essa noção de inversão desemboca em uma teoria imaginária da denegação. Evidente-
mente, isto começa a mudar de sentido a partir do momento em que, no Relatório de
Roma, o simbólico e o imaginário são distintos.
Para que o conceito mesmo de forclusão tenha um valor, é preciso um elemento
que não seja susceptível de ser comunicado na linguagem. É um elemento mesmo assim

O p ~ ã oLacaniana n" 56/57 16 Julho 2010


paradoxal, pois se trata de um significante que não tem significado e que não pode de
inodo algum entrar na comunicação. De todo inodo, é um elemento que escapa à dia-
Iética d o sentido. A tese elaborada posteriormente por Lacan sobre o gozo nas psicoses
parece ter aqui seu ponto de origem, seu porto. Há uma conexão entre reconhecer a for-
clusão na sua radicalidade - isto é, como existência de um gozo que não é, efetivamente,
reabsorvível no circuito da fala. O mais-de-gozar não passa deste modo para o universal,
contrariamente ao que Lacan queria nos fazer crer no início. Não esqueyamos que o
Lacan que inventa o objeto a é aquele que formulou, no fim de seu Relatório de Roma.
que a satisfação de cada um pode ser encontrada, se cruzar e se cumprir na satisfação
de todos. Não há? no Relatório de Roma, satisfação particular. Ela está votada a concordar
com a satisfação de todos' tendo como horizonte a humanidade. Na época, entre 1946 e
1953, Lacan tein mesmo assim unia idéia de uma harmonização, de um certo consenso
da humanidade, de uma mediação que é sempre possível, sempre em obra, e que é o
ofício mesmo d o psicanalista. O mais-de-gozar, assim como o Nome-do-Pai forcluído,
supõe, pelo contrário, a idéia de uma mediação impossível. É a própria idéia de uma
mediação impossível que reaproxima esses dois termos.

Erotismo anal e castracão

É um fato que o que foi retido no imaginário é o próprio sobrenome do Homem


dos Lobos, pois Freud lança mão de uma explicaçâo toda especi:il para decifrar todos os
elementos d o sonho e que além disso há um pequeno desenlio. Compreendemos que no
liso esse paciente foi designado desse modo, por esse sonho. Mas, sob o ponto de vista
teórico e d o diagnóstico, o capítulo central talvez não seja esse. Talvez o capítulo mais
importante seja aquele que se chama "Erotismo anal e castração". Tamanho é o binaris-
mo d o caso, que Lacan destaca a oposição entre a compulsão amorosa do Homem dos
Lobos - compulsão viril bastante equívoca - e sua posição homossexual ou de captura
homossexualizante.
Temos estas duas posições: atividade viril de um lado, e elementos de passividade
feminina, de identificação com as mulheres de outro. Fre~idsitua um primeiro estatuto
d o erotismo anal: "O órgão em que podia se exprimir a identificação com a mulher; a
atitude homossexual passiva voltada para o homem, era a zona anaI8. Há aí duas re-
lações sexuais d o Homem dos Lobos. O que é decifrado por trás da cena dos lobos e
as associações que se seguem remetem definitivamente a isso. Temos duas noções da
relação sexual: temos a concepção anal, isto é, nada de noção de "sem pênis"; depois
teiiios o que é para ele um reconhecimento da castração: quer dizer, uma noção de "sem
pênis", há uma ferida nesse lugar nas mulheres. Então, é concebível que o estatuto d o ser
huiiiano e o atributo "dispor de um pênis" estejam disjuntos. É a isto que Freud chama de
castração. A castração, para retomar seus termos, é a condição necessária da feminilida-
de. Eis o que está em jogo no que ele chama de castração. Isto quer dizer que o debate
sobre o Homem dos Lobos entre concepção anal e concepção genital ou desenvolvida,
é na verdade o intestino ou a vagina. Coin efeito, ele formula a escolha nestes termos:
ou o ânus ou a castração. O título d o capítulo evocal então, os dois ramos da alternativa
em que Freud situa esse c;iso.
Tal como Freud o analisa. o sonho d o Homem dos Lobos é o testemunho d o
acesso ao estádio genital. A partir disso, ele distingue utna primeira e uma segunda
atitudes d o Honiem dos Lobos: "Conhecemos agora a posiçào inicial d e nosso paciente
coiii respeito ao problema da castraçâo. Ele a rejeita [uerwurfl,e se detém no ponto de
vista da relação pelo ânus. Quando disse que ele a rejeita, a significaçâo mais próxima
dessa expressão é que ele nâo quis saber nada sobre ela, no sentido d o recalcamento".
A aralidade, neste caso: é verdadeiramente sobredeterminacla.
Continuo a passagem, pois é nela que Lacan se apóia: "Deste modo, nenhum julga-
mento incidiu sobre sua existência propriamente falando, mas foi como se ela não exis-
tisse. Entretanto, essa atitude não pode ter sido definitixra, nem relativamente aos anos de
siia neurose infantil. Existem provas convincentes de que em seguida ele reconhecera a
castração como um fato. I...] Inicialmente ele resistiu? depois cedeu, mas uma reação não
suprimiu a outra. No final, subsistiain nele, lado a lado, duas correntes opostas". É nessa
linlia cle pensamento que Freud inclui a alucinação do dedo cortado. Essa alucinaqão,
para Lacan, traduz o que dii castração jamais fora reconhecido e admitido. Isto n-ao me
parece um abuso.

Paranóia

Da mesma forma, o que chamamos de paranóia do Hoiiiem dos Lobos parece po-
der situar-se, de [nodo mais simples, como uma reativação dessa corrente mais antiga da
qual emergirá a alucinação, depois na queixa sobre seu nariz. O nariz era efetivamente
um deslocamento d o órgão genital. Uiii enunciado importante do Homem dos Lobos é
muito bem traduzido deste inodo: "sempre tive má sorte com meu pênis". Ele dá um
número importante de exemples dessa persistente má sorte:

"Chamemos as coisas por seu nome: sempre rive má sorte com meu pênis, com meu meni-
bro; mesmo antes da gonorréia. Você conhece esses bichos que chamamos de carrapatos? No
quintal de nossa casa, corríamos atr:iirés dos arvoredos, rolávamos sobre a grama e subíamos
nas árvores. Desde sempre comecei a ter comichões. Eu esfreguei, cocei. Par fim, percebi

Op@o iacantana 'n 56/57 18 Julho 2010


que tornava formas extraorclin5rias.que ineu membro estava túmido, que se tornava grosso e
vermelho. Eu disse isso a iiieu pai, e ele foi I~uscarum de seus funcionários que era cirurgiào
militar. Não era um verdadeiro cirurgião, apenas nieio-médico, mas conhecia esse gênero cle
coisas. Ele me livrou dos carrapatos de iim modo ou de outro, e tudo voltou a ordeni.
Acho que fiquei de cama durdnte Umas duas semanas, e nie deram sacos de gelo. [Eu tinha
eiii torno de1 oito anos. Foi talvez por causa dessa desventura que a gonorréia ine causou
t:iiii:inha impressão. Mas eu ... não sei se já contei isso a Freud?

Depois houve outro aconteciiiiento com a idade d e quinze anos. Ele t a m l ~ é m


coçou, ficou tumeficado e veriiielho, c o m uma i n f l a m a ~ ã o ,e u m médico lhe deu uin
retliéclio. Em seguida ele teve a gonorréia. Temos a í o q u e Freud chamou d e "ponto frá-
gil disposicional' q u e lhe parece ter-se reativado na alucinação d o d e d o cortado. Foi n o
mesino sentido - não temos por q u e nos surpreender - q u e isso p o d e ser reativado s o b
na forma dessa inquietude, dessa insistência n o fato d e q u e haviani deslocado seu nariz.
A posição d o Homem dos Lohos etn relação a isso é ainda assim bastante divertida.
Ele conta sua história coni seus deriiiarologistas e é b e m engraçadaI0. Um lhe diz iiina
coisa, outro lhe diz outra. É uma história d e médicos e diagnósticos. Ele diz também q u e
sabia inuito b e m o q u e era a paranóia:

"Tive uin tio que vivia ao inodo de Luiz I1 da Baviera. Um caso típico de selvageria que foge
clos contatos humanos.
Por outro lado, no âmbito maternal eu tive um primo, o filho da irmã mais velha de minha
niiie, que era acometido por uma forma ligeira de paranóia. [...I 6 claro que isso [o diagnós-
tico de paranóia1 não me agr;iclava de modo algum. De repente eii tive a vontade de nào
passzir por um paranóico. Fiquei bastante orgulhoso, não é niesmo?, do que Freud escrevera a
meu respeito: 'sua inteligência irrepieensíveP etc. Ele era, como vocês sabem, um adversário
da religião. eu lhe contara que. iá em minha infância tive ddúnidas sobre a contradição que
existe entre um deus de bondade e todo o mal que se encontra no mundo.[...lE eii estava
natiir;ilmente orgulhoso que ele tenha dito que só uma criança podia pensar tão logicamente,
que ele me tratou como um pensador de primeira ordem e o que sei eu ainda. E agora, eu
deveria ser etiquetado de repente como paranóico. Então nessa situação eu reuni todas as
minhas forças para não me olhar mais no espelho; de uin modo oil de outro eu sobrepujei
minhas idéias fixas. Isso durou alguns dias. Ao cabo desse tempo, estava acabado. [..I Então,
mcês vêem que um falso diagnóstico pode às vezes conduzir a esse resultado de que um
paciente reúne todas as siias forças saudáveis para sobrepujar uin certo estado.'

l'arece-me q u e tudo isso s e inscreve perfeitamente n o q u e diz Freud, quando


percebe q u e há uma terceira corrente q u e é sempre reatiuável no Homem d o s Lobos.

Op@o bicaniana no 56/57 19 Julho 2010


Talvez pela acuidade clínica de Freud, esse caso me inspira a maior admiração. O que
poclemos criticar em Freud é de ter rido a idéia de que quatro anos de análise era muito
longo, enquanto com o Homem dos Lobos ele tocou um paciente moderno, uin paciente
realmente moderno, quer dizer, um paciente fazendo parte dos que verdadeiramente
forçaram os limites temporais d o tratamento analítico. Isto, com efeito, Freud não reco-
nheceu. Não reconheceu o que ele próprio dizia, a saber, que a terceira corrente sempre
reativável podia romper os diques temporais da análise.
l'odemos retomar em detalhe tudo o que Freud encontra de ambíguo n o acesso à
virilidade d o Homem dos Lol)os com relação à castração, que para ele é obrigatoriamen-
te compreendida como uma aquisição narcísica. É descobrir que pode haver aí um alcan-
ce na integridade do corpo. Freud considera que é o eu quem coloca o recalcamento em
fiincionamento por causa d o narcisismo. Em certos aspectos, o narcisismo é a causa do
recalcamento. Ele se pergunta, entâo, em que medicla o Homem dos Lobos teve iim re-
calcamento bem-sucedido que foi um sucesso da virilidade. Ele diz inicialmente que isso
foi uin sucesso da virilidade. Depois ele diz que finalmente a virilidade não o envolveu
verdadeiramente. que a homossexualidade se retirou para o intestino e que ali mesmo
se histericizou. Então' esse violento impulso em direção a mulher. que pode parecer
uma assunção da virilidade, dissimula na verdade que essa virilidade foi assumida de
maneira incompleta. Pois, nos diz Freud, ao mesmo tempo em que ele tem essa atitude
conquistadora em relação a mulher, ele cai sob sua dependéncia de maneira especial-
mente constante. Isso se vê ao longo da vida d o Homem dos Lobos. Ele não cessa de ter
namoradas, mas ao mesmo tempo mostrando o contrário de uma atitude de controle. O
Homein dos Lobos se apresenta incessantemente como dependente das mulheres que
conquista. O modo como Freud analisa o estilo d e conquista d o Homem dos Lobos me
parece totalmente verificado porque podemos saber o que aconteceu com ele depois.

Causalidade diferencial

As coordenadas imaginárias da castração de que se trata aqui são bastante mar-


cadas; o próprio Freud as apresenta. O Homem dos Lobos, diz ele, só tem idéia d o pai
castrador no momento em que lhe ensinam religião. Há uma espécie de retomada, em
um segundo momento, de uma castração imaginária que suscita a insurreição d o eu por
causa d o alcance integral da forma. É em um tempo seguinte da cronologia d o Homern
dos Lobos que Freud introduz o pai castrador. Há uma relação constante entre a cas-
tração e a figura d o pai, e foi Lacan quem inventou uma relação de causalidade entre
os dois. O que é metáfora paterna? É a apresentação da relação de causalidade entre o
pai como causa e a castra~ãocomo efeito. O esforço cle Lacan é de jamais abandonar
o conceito freudiano de causalidade, para situar a relação de causalidade que convém
aos fenômenos d o sentido, que são na verdade relações de causalidade ordenadas pelo
significante como causa. É primeiramente o significante que aparece conio causa. Antes
de poder dizer que é o objeto a que é causa, foi preciso submeter todo uin tratamento
bastante sofisticado a um excedente de sexualidade, para que isso pudesse, por sua vez,
entrar na relação de causalidade.
Temos aí uiiia relação de causalidade d e fato extremaiiiente linear: pai + signifi-
cação fálica. Isso torna certa passagem d o texto de Lacan tão notável, que essa relação
direta parece desconectar-se, essa conexào que fora estabelecida de modo tão fechado.
Eu dizia que o Homem dos Lobos estava ausente da "Questão preliminar...", mas que
talvez houvesse para isso uma justificativa. Não seria tão impensável conceber uma causa
cujo efeito fosse retido, nào fosse desenvolvido. Isto não me parece impensável eiii si
mesmo. É justamente porque há ali um ponto que é situado por Lacan sob forma inter-
rogativa e que não apreendemos, que eu buscava motivar em que a clínica d o Honiem
dos Lobos talvez o justifique. É uma clínica e m que não se houve dizer que há forcli~são
d o Noine d o Pai e em que parece, no entanto! que todo o problema está centrado na
castração. Isto não parece dirigir-se à assunção do Nome d o Pai ou da função paterna,
mas à assunção da castração. Então, não haveria a possihilidade de separar os dois: pelo
menos em parte, e de elaborar isso? Não sei até que ponto é preciso empurrar as coisas.
É certo que no caso do Homem dos Lobos não se pode falar em uma elisão do falo no
sentido ein que se pode colocá-la em questão n o caso Sclireber. Há então outro ternio a
conduzir, utilizando as próprias indicações de Freud.
O fato de que a fordusão teria como efeito uma supressão, uma elisão da erner-
gência da significação filica, é o inverso da metáfora paterna. Isto se lê exatamente ao
inverso. Proponho comentar esse parágrafo em janeiro. Com efeito, isto suaviza a relação
de causalidade e a prohlematiza. Geralmente não vemos porque isso vem aí. Por que não
se contentar simplesmente ein dizer que a partir d o momento em que há O, há P,? No
+
caso Sclireber, de todo modo, temos P,. Não temos o caso que seria 1' Oo. Se quisermos
ter isso, será preciso construir. Temos mesmo assim a idéia de duas vias possíveis, de
dois tratamentos possíveis, de duas saídas possíveis. Quando estamos diante dos horder-
lines, o modo mais simples de compreender seria dizer, acerca d e certo número desses
casos: que eles se sustentam na neurose porque há P: mas há também certo número de
fenômenos que se produzem por causa de O,. Esta não é uma idéia absurda.
Estamos realmente, aí, no cerne da causalidade em jogo. Com efeito, o que diz
Freud quando evoca a gonorréia d o Homem dos Lobos? "A ocasião de sua doença não
recai entre os 'tipos de doenças neuróticas' que pude reunir como casos particulares da
'frustração' L.. ]. Ele se dissolveu quando uma afecção orgânica d o órgão genital o fez
reviver sua angústia de castragão, afetou seu narcisismo e o constrangeu a abandonar a

O@o lacaniana no %/57 21 Jiilho 2010


esperança de ser pessoalmente favorecido pelo destino."" Vemos aí o Homem dos Lo-
bos doente d e uma frustração narcísica. As conjunturas d o desencadeamento são I~eiii
situadas por Freud: ein primeiro lugar, quando há uma afecção no órgão genital, diz ele,
outra conjuntura relacionadzi ao nariz, mas isto nâo os assusta: pois sabemos construir
coni Freud séries de substitutos.
Dizendo de outro modo, liá aqui a noção de uin kitor desencadeante que não pare-
ce ser um restabeleciinento forçado do ternário aí ou não há o elemento para respondê-lo
nesse lugar. Afinal, o Hoiiieiii dos Lobos faz quatro anos cle análise, tranqüilamente, sem
desencadear isso. A conjuntiira do desencadeamento, tal como é situada por Freucl, t:ini-
béni iiie parece verificar-se na seqüência. A conjuntura d o desencadeamento se produz
antes d o lado d o O, que d o lado de I? Em todo casol tetiios aí todos os casos possíveis.
+
Teiiios o caso standard da iiietáfora paterna: P O. Teiiios o caso que é claro para todo
mundo e que Schreber ilustra: P, + O,. Temos o caso horderlif7e:P + O,. Acrescenteilios,
para coiiipletar. o P, 3 O. Com essa iiiesa de quatro, devemos poder organizar as lacunas
em nossas séries clínicas. Tudo repousa sobre a noção de causalidade que teiiios. Lacan
+
aniiiiou tanto a sua: P, O,, que podemos tentar segui-la até o fim, mas também se per-
guntar ein que medida nào se poderia desvencilhar-se dela um pouco. Se não podeinos
afrouxá-la, é porque se trata cle uin pseudo Nome d o Pai. Haveria aí semblantes.
Essas diferentes fórmulas não existem no mundo das Idéias. Trata-se de saber o
que se ganha e o que se pode tornar pensável a partir dessas diferentes formas de cau-
salidade. Uma clínica diferencial nào é simplesmente eticluetar os casos como borboletas;
ela só teiii interesse se for articulada a uma causalidade diferencial que a sustenta. Esta-
1110s aqui em torno da idéia de Liina causalidade diferencial das psicoses.
Admitimos com Freud o elemento a, d o Homem dos Lobos. É assim que retrans-
crevemos a Irerwerfuizg da castração, mesmo que na época isto qualificasse sobretudo
seu estatuto imaginário. É preciso, a esse respeito, desdol~raro caso de modo bem iiiais
aprofundado. Há etapas, mas enfiin, a partir do moiiiento em que aceitamos esse traço,
escrevemos O,. Talvez, com esse O, para nomear a corrente mais arcaica, tenliamos
o princípio de certo número de fenômenos. A questào é saber se esses fenômenos de
ordeiii psicótica podem situar-se eni lima linha causal independente, ou relativamente
independente da forclusão d o Nome do Pai. Depois, a questão é saber se falareiiios de
psicose somente quando são realizados O, e P,, ou taiiil>éiiiquando há somente O, e não
I', Isto se torna uma grande questão clínica, mas t:iinbéin uma questão de teriiiinologia.
Seria niudar nosso conceito de psicose, ou pela menos l~alançi-10.Dizendo d e outro
iiiodo, parece-me que há certo interesse em raciocinar coin essas fórmulas. A questão é
saber se O, é concebível seni P, ou se' em todo caso, a existência de fenômenos conian-
dados por O. indica que há P,, isto é, forclusão CIO Noiiie do Pai.
(17 de dezembro de 1987)

0ps:io lacaniana no j6/57 22 Julho 2010


111. O MUNDO OCULTO POR UM VÉU

Leio a passagem: "a análise seria insatisfatória se nâo trouxesse a compreerisão


dessa queixa na qual o paciente resumia todo o seu sofrimento. Ela afirmava que o
mundo lhe era ocultado por uni véu, e a disciplina psicanálise recusa-se a admitir que
essas palavras teriam sido escolhidas sein significação e como que por acaso". Freud le-
gitiinou, então, essa queixa do Homem dos Lobos: o munclo Ilie é ocultado por um véu.
"o véu se despedaçava - curiosaiiiente - eiii apenas uma situação, a saber, quando em
seguida a uin eneina, as fezes passavam pelo ânus. Então ele se sentia beni outra vez,
e via o inundo claramente por uiii breve instante." Aí está uina passagem muito impor-
tante: "coiii a interpretação desse véii as coisas seguiam tão difíceis quanto no medo de
borboleta. Fora disso, ele não se detinha ao véu. este se volatilizou em um sentimento
de crepúsculo, de 'trevas', e de outras coisas inapreensíveis.""
Freud isto, quer dizer, ele nâo se detém no testeniunho d o Homem dos Lobos:
que diz que o mundo é para ele reco1,erto por um véu que só se desfaz no moiiiento
de suas lavagens retais. Freud não se detém diante desse fenônieno como em face de
um fenômeno opaco. Ele não considera que seja um fenômeno terminal, do qual se
estiiriaria, como no fenôiiieno elementar, que se trata d e uin "é assim". Freud interpreta
esse fenómeno e faz duas interpretaçòes que não são excludentes, mas que se situaiii
em p1:inos diferentes. A priiiieira é propriamente significante, e a segunda se situa no
registro d o objeto.
Primeira interpretação: esse véu é a sorte que o sujeito pensa ter de nascença. I k s -
de seti nascimento, ele pensa ter nascido "sonudo" (cofle3. Freud diz que "apenas pouco
antes d o fim do tratamento ele se leinbrou de ter ouvido que veio ao mundo 'sortudo'.
Por isso se tomara sempre como i i i i i sortudo, a quem nada de ruim podia acontecer.""
Inclusive ele pensa ser sortudo inclusive na análise, pois crê que tem um lugar comple-
tamente privilegiado para Freud: que destaca em seguida: "Essa confiança só o deixou
quando teve de reconhecer a gonorréia como um ataque sério ao seu corpo. Ele se de-
sestruturou diante dessa ofensa ao seu narcisisino."
Então. primeira interpretaçâo: Freud considera que o véu repercute nessa sorte.
Isro é a interpretação d o véu. Ein seguida, é preciso interpretar o momento em que se
rasga esse véu. Por que a lavagem intestinal vale como um rasgar do véu? Freud diz:
"quando o véu d o nascimento se rasga, ele vê o mundo e nasce novamente. I...] Esse
seria então o fantasma de renascimento que recentemente atraiu a atenção de Jung I...].
Essa interpretaçâo seria perfeita se fosse completa. Certos detalhes da situação [...I nos
obrigam a prosseguir na interpretação. A condição desse renascimento é que um homeiii
lhe administre uin clister". Freud insiste, portanto, sobre o caráter sexuado do operador,

Opçso Laciniina no 56/57 23 Julho 2010


indicando que o Homem dos Lol~os,que se submete passivamente a essa operação, está
ein uma posição feminina. "Isto só pode significar uma coisa: ielel se identificou coiii a
inãe, o homem faz o papel d o pai. o clister repete o ato sexual, a crianp-fecal - ainda
ele - nasce como seu fruto.'' Os elementos estão aí: o pai. a mãe, a criança como pro-
duto fecal - o próprio Homem dos Lobos ocupando esses dois lugares: o da mãe e o
da criança. "O fantasma de renascimento está, portanto, estreitamente ligado à condiçâo
da satisfação sexual pelo homeiii. A tradução é agora a seguinte: somente s e ele pode
sul~stituira mulher: ocupar o lugar da mãe para ser satisfeito pelo pai e lhe dar um filho,
é que sua enfermidade se afasta dele. O fantasma de renascimento aqui não passava,
então? de uma reproduçâo mutilada, censurada, d o fantasma homossexual." Mesmo que
não se trate de um fantasma, é unia cena realizada que reproduz o que Freud considera
determinante para o sujeito, a saber, uin fantasma homossexual.
Então. neste caso, apenas recolocamos em seu contexto esse fenômeno d e crepús-
culo permanente d o mundo que se encontra completamente articulado por uma cena
edipiana. Esse é o deciframento feito por Freud, que em todo caso estava persuadido de
que havia nisso uma articulação. Não se trata absolutamente de um fenômeno limite ou
teriiiinal, mas de um fenômeno articulado segundo o Édipo de forma potente.

As três correntes

A pequena grade que extraímos desse texto deixa justamente se desdobrar a niulti-
plicidade de pontuações possíveis. O próprio Freud percebe que muitas pontuações são
possíveis no quadro clínico desse caso. Lembro-lhes, Freud distingue nele três correntes
fundamentais: (1) o Homem dos Lobos nada queria saber da castração, mesmo no sen-
tido d o recalque - foi a partir disso que Lacan conceituou a forclusão, apoiando-se na
palavra Iferwerfung que está presente em Freud; (2) o Homem dos Lobos foi forçado a
reconhecer a castração. Há, portanto, reconhecimento, e este se dá de dois modos: ou
ele aceita a castração; ou a abomina. Então, cada um dos fenômenos pode ser itiiputa-
d o a uma dessas três correntes. É então bastante complicado quando há rejeição: será
rejeição forclusiva ou interna ao reconhecimento? A dificuldade d o caso vem d o duplo
valor desse "não". Em que se condensa esse "reconhece abominando, que é a terceira
corrente desse esquema? Freud eiiiprega o termo "fantasma homossexual", mas se trata
antes d e ser uma mulher. No episódio muito preciso que releiiios, parece-me que temos
antes a posição três, a partir da qual Freud decifra o fenômeno das lavagens intestinais
clarificadoras.

Opção Llcaniana na j6/57


Ser uma mulher

Quanto a relação com a psicose, parece-me interessante destacar o comutador que


permite passar para o caso de Schreber. O que faz shijter com o caso Schreber é "ser
uma inulher". Podemos até dizer: "ser uma mulher em vias de submeter-se ao ato sexual".
Há então esse "ser uma mulher" que Freud destaca aqui diversas vezes. Através dessa
controvérsia. temos esse "ser uma mulher".
Como podemos traduzir isso? Temos aí realmente a sexuação inconsciente d o
Homem dos Lobos. É assim que Freud interpreta o caso. Há uma sexuação inconsciente
apesar de uma virilidade manifesta e automaticamente desperta por uma situação típica.
Para Freud, assim como para Lacan, essa virilidade carece de autenticidade, quer dizer,
ela é do registro imaginário. d o registro d o eu (moi). É deste modo que Lacan pode uti-
lizar o caso como demonstrando as duas versões: o inconsciente de um lado, e o eu do
outro. Lacan reinterpreta essas duas versões diferenciadas por Freud como uma oposição
entre o inconsciente e o eu. No inconsciente, o Homem dos Lobos é uma mulher. No
campo imaginário, há uma afirmação de virilidade.
Nas anotações d o seminário'",Lacan se posiciona desse inodo, e no final da pri-
meira parte d o "Relatório de Roma" ele evoca "o efeito de captura homossex~alizante"'~.
O primeiro uso que Lacan faz é distinguir em termos de conflito o inconsciente e o
eu. Tudo gira em torno do valor dado a esse "ser uma niulher": será que ele designa a
sexuação inconsciente d o sujeito ou é de ordem imaginária? Que valor dar a esse "ser
uma mulher" que é, segundo Freud, o fantasma homossexual? Em qual registro o situa-
mos? Será que ele é da ordem de um "empuxo à mulher?" Será que ele é da ordem da
sexuação inconsciente? Será ele de ordem imaginária? Há certamente outros índices que
podemos tomar, mais aí está um que me parece bastante preciso para que possamos
desdobrar todas as ambigüidades do caso.

A castração

É preciso admitir que, para esse caso e para a polêmica sobre o diagnóstico, a
questão se centra na castração. É o capítulo central de Freud: "Erotismo anal e castração".
Destaco isto pelo fato de que passaremos ao fragmento de Lacan sobre os dois furos,
fálico e paterno. A questão da hesitação diagnóstica reside então no fato d e saber se liá
ou não significação fálica. Ela se centra no que é obrigatório, a saber: forclusão ou reco-
nhecimento? Seria um reconhecimento na rejeição?
O que não é colocado em questão até então é a relação com o pai no caso d o
Homem dos Lobos. Essa relação, poderíamos, afinal de contas, colocar em questão. Com

Op@o Lawniana n" 56/j7 25 Julho 2010


efeito' Lacan, em seu Seminirio de 1952, evoca um pouco que foi destacado, a saber.
que há uma ruptura social no caso do Homem dos Lobos. Ele considera que "uina parte
de seu drama repousa nisso": sua posição "na sociedade é, por assim dizer. desinserida".
A rei-oluçâo russa, com seus efeitos de socidlização, só faz intensificar uma posição que
já estava lá no início. Lacan acrescenta: "é preciso destacar que muito precocemente ele
foi separado de tudo o que podia constituir para ele um modelo no plano social". Essa
frase. na linguagem da épocal prejudica ou não a relação com o pai? Não esqueçamos
que essa relação com o pai parece, pelo contrário, totalmente constituído no caso do
Homem dos Lobos. No que ressurgirá a partir do episódio dito psicótico, encontramos
ainda uma distribuição completamente massiva das funções paternas.
Dito isto, resta saber o valor que conferimos a essa distribuição. Podemos, aí, se-
guir Lacan, e talvez fazer um pouco melhor, pois dispomos das categorias que ele mes-
mo elaborou posteriormente, mas das quais não dispunha naquele momento. Dizendo
de outro modo, a questão se situa nos problemas que dizem respeito ao 0,. Nos estudos
que fizemos sobre o caso, o P, não foi colocado em questão. Então, uma das questões
que nos são colocadas por esse caso é saber se podemos fazer uma disjunção na relação
de causalidade - que para Lacan parece estabelecida - entre o pai e o falo; entre o pai
e o advento da significação fálica. Lembro-lhes o esquema completo do qual dispomos.
Há primeiro o esquema standard: temos o Nome-do-Pai e então há a significação fálica:
P +a.
Depois temos o esquema schreberiano: P, + a,.
E a questão é saber se podemos ter P e a, - com o fato de que esse quadro nos
obriga a ir até o ponto de colocar P, e a.

(7 de janeiro de 1988)
A duvida e a apofantica

Uma das dificuldades que encontramos com esse caso, eni nossa pesquisa, foi no
fundo porque não estamos tão habituados assim com discussões clínicas. Essas discus-
sões clínicas, fazemo-las frequentemente de modo bastante rápido em IRMA16, Iiaja vista
o próprio forinato do evento. No entanto, eu não gostaria de encontrar agora virtudes
exrremas na discussão, como faz o filósofo Jürgen Habernias - qiie pensa que é na dis-
cussão, eni sua estrutura, que repousaiii o futuro do inundo e o nasciiiiento de Liin novo
universal. Mas, enfim, a virtude da discussão me parece certa. Quando ela se produz
entre nós, é acompanhada de uin sentimento de certa novidade.
Aqui, tomamos por base um caso de Freud. Eventualmente, criticamos Freud seve-
ramente, e ele suporta isso com uma imparcialidade que faz nossa admiração. Ele não
é susceptível, ele não diz: "se é assitii, vou-me etiibora". O próprio Lacan não é nada
nioderado. Ele supõe que Freud não resolveu o caso, uma vez que ele periiianeceu dis-
tante d o que diz respeito à assunção da castração. Vocês sabem muito bem que seria
muito nial visto entre nós que se fizesse esse tipo de imputações. Pois é: e isto foi feito
em relação a Freud que, impávido; continua conosco. Seria preciso ser borgesi;ino para
desenvolver esse tema.
Temos a tendência a desenvolver a teoria psicanalítica sob a forina da certeza por-
que o ato, na prática da psicanálise, se dá em iim elemento de certeza. A interpretação
é criadora de seus efeitos. InterpretaG~oe discussào sâo duas posições coinpletainente
estranlias uma à outra, e isto se refere, quase nat~iralmente,ao estilo teórico. Existe, na
teoria psicanalítica. uma espécie de obrigação de estilo apofântico, quer dizer, cle mostrar
o verdadeiro.
O estilo de Lacan é certainente apofântico. Isto nos conduziu a profi~nclosence-
gueciiiientos na leitura e interpretação de Lacan. Não imaginamos tnais o quanto essa
leitura era atravancada - por causa desse estilo mesmo - pela convicção de que Lacan
dizia mais ou menos a niesma coisa do início ao fim. No ponto em que estamos. todos
vêem a que ponto essa era uma via sem saída para coiiipreender do que se tratava. Pode-
mos lamentar os excessos de cronologização em relação i apresentação teórica cle Lacan,
mas é, me parece, um inconveniente menor do que sua sincronização absoluta coin o
elemento de certeza. Isto realmente prejudicou o tral~alhoque se fazia na EFI'. Não que
Quiséssemos dar 2 dúvida uma função eminente na teoria; inclusi\,e Freud, em relagâo
ao Homem dos Lobos, dedica um parágrafo bastante interessante ao lugar da dúvida
como meio de resistência no tratamento d o obsessivo. Mas, talvez, entre a apofântica,

Opção Iacaniina no j6/57 27 Julho 2010


isto é, a mostração do verdadeiro e a dúvida, haja lugar para uni terceiro estilo, interine-
diário e problemático, uin estilo que nos incite a retomar o modo como os problenias
são colocados. Como isto se d á ? Como se constitueni os probleinas para Freud? E para
nós? Coino emergem? Como se estruturam? Como somos tomados aí? Isto para conseguir
sobretudo isolar em torno de que ponto as coisas giram, a saber: por que a significação
Fálica não é a significação filica do outro?
Esses sintagmas um tanto congelados que utilizaiiios, podemos perceber o quanto
são refratados por diferentes leituras. Através de uma discussãopatit2a~zte,confusa, polê-
mica, animada, hesitante,... podemos, então, ter a esperança de renovar um pouco as coi-
sas, cernindo os pontos de cruzamento em que um simples deslocamento de pontuação
traduz opções diferentes. Isso pode, evidentemente, cristalizar-se, em certo moiiiento,
entre neurose ou psicose. Esta é uma questão. Não é a única?e não iremos nos distribuir,
coino nas Viugensde Gulliuer, entre os partidários da ponta larga e os da ponta estreitat7.
É claro que desde que entramos no regime da discussâo, vemos que as coisas sempre
podem desembocar em votação: no final votamos e vemos o que venceu. Não se trata
disso. A questão é certamente assumir, em determinados momentos, as cristalizações
quando elas se colocain de modo alternativo, mas é tarnbéin, ao mesmo tempo, tentar ter
um estilo problemático. Nesse exame das coisas; não seguimos um planejamento rígido.

Os pais

Tornemos encerrar um pouco as coisas no estatuto do pai. Como não temos teinpo
de prosseguir nessa discussão hoje, gostaria simplesmente de lembrar a posição de Freud
a esse respeito.
Indiscutivelmente, a posição de Freud é que o Édipo se constitui no Homein dos Lo-
bos. Essa posição é inequívoca na própria observação. Isto se observa no plano diagnóstico,
o de neurose obsessiva. Freud ordena o caso no momento da neurose obsessiva. Na história
cotnplexa do Homem dos Lobos. há Lim momento que pode ser dito de neurose obsessiva:
aquele eni que ele está em debate com os temas da religião. A esse respeito, Freud conside-
ra "indubitável" - a expressão é dele - que o pai apresenta pard o sujeito. nesse moinento,
uma ameaça de castração. Está na conclusão do capítulo: "Erotismo anal e castração". Será
preciso retornar às ponderações e desvios pelos quais Freud chega a isso, mas esse capítulo
se encerra com a função do pai: "É absolutamente indubitável que para ele nessa época o
pai se tornou essa pessoa assustadora, apresentando uma ameaça de ca~tração."'~
Ali, Freud nos prepara duas posições paternas que podem dar origem a duas
séries. Uma anotação bastante preciosa nos mostra exatamente para onde o ensino
de Lacan pode deslizar. Freud considera que "o garoto tem que cumprir um esquema

Op@o Lacaniana no j6!j7 28 Julho 2010


filogenético e o faz, ainda que suas experiências pessoais não possam estar de acordo
com isso". O esquema filogenético é o esquema próprio à espécie humana que parece,
para Freud, relacionar-se à pré-história da humanidade. Há um esquema constituído que
pertence à história humana. Ele chama isso de "hereclitário humano": "o hereditirio pre-
valece sobre o vivido acidental". É uma frase totalmente impressionante. Para "lacanizar"
- se assim podemos dizer - esse momento, basta considerar que isto de que Freud tenta
dar conta pela filogenética é exatamente o que Lacan abordará por meio da estrutura.
Freud recorreu a essa hipótese filogenética, isto é, a idéia de um esquema edipiano fixo
e determinado. A hipótese estrutural consiste simplesmente em constatar a existência
desse esquema que se sobrepõe ao acidental, mas sem formular hipótese histórica acerca
dele. A hipótese estrutural é ainda mais concisa que a hipótese histórica.
O ponto d e referência teórica de Freud é: entXo: a existência desse esquema ou
dessa estrutura. Ele percebe que há um desequilíbrio entre o que essa estrutura exige
e as experiências efetivas d o sujeito. quer dizer, entre a filogenética e a ontogenPtica2
mas que definitivamente ele, Freud, conseguiu preencher os campos dessa estrutura. O
exemplo que ele dá é muito impressionante: 'Xs ameaças de castração e as alusões a esta
que ele ouvira, partiam sobretudo de mulheres, mas elas não podiam reter o resultado
por muito tempo. Por fim, foi d o pai que ele temia a castração". A posição de Freud é
inequívoca e nos mostra a coerência que há para ele entre a estrutura d o Édipo e o pai
castrador, isto é, a conexão entre o pai e a castração, entre o Édipo e o que resumimos
como sendo a relação entre o pai e o falo: a metáfora paterna.
Através dessa perspectiva, Freud distingue uma segunda versão d o pai, que não é
mais o pai castrador, mas o pai castrado e enfermo. Ele percebe os efeitos dos confrontos
d o Homein dos Lobos com uma deficiência física. Ele lembra como lhe era necessário
expirar a cada vez que encontrava deficientes físicos e mendigos; "esse sintoma também
remetia ao pai que lhe causara pena por ocasião de sua visita ao sanatórioni9.Sabemos tam-
bém que a percepção reduzida de Freud tem um papel importante no episódio seguinte.
Freud evoca o surdo-mudo que o Homem dos Lobos encontrou: "Quando morreu, ele o
buscou no céu. Foi então o primeiro enfermo d o qual sentiu compaixão; a partir do con-
texto e da posi$ão na análise, trata-se indubitavelmente de um substituto d o pai".
A figura do alfaiate se inscreve na série d o primeiro lado: "Ao número de sintomas
os mais [...I grotescos de sua doença posterior é preciso contar sua relação com qualquer
alfaiate a quein encomendasse uma roupa, seu respeito e sua timidez diante desse gran-
de personageiii, suas tentativas de ganhar suas graças por meio de gorjetas excessivas e
seu desespero diante d o resultado d o trabalho, qualquer que fosse o seu aspecto."
Eis aí a indicação do que ordena a função paterna, a saber, essas duas posições d o
pai, às quais se encontra explicitamente apensa a noção de séries substitutivas.
(14 de janeiro de 1988)

O p ~ à oLanniana no 56/57 29 Julho 2010


V. O FALO E O PAI

O assassinato de almas de Schreber

Estarenios nós obrigaclos a uma relação de iiiiplicação causal entre I', e O,? Ou será
que Lacan nos autoriza a afrouxar esse laço a fim de que possa haver uiii sem o outro?
Esse texto, que introduz lima complicação quanto à relação entre P, e @,, permite-nos ou
não fazer uma disjunção entre eles? Nào é apenas uma questão de exegese d o parágrafo
de Lacan. Se nos fiamos nele, essa questão condiciona a idéia que se pode ter do caso
d o I-lomem dos Lobos.
Lacan, como Freud, certamente aborda a questão da psicose a partir d o Édipo. A
referência ao Édipo não está, evidentemente, no primeiro plano da análise freudiana d o
caso Schreber, mas alguns anos mais tarde, quando terá afinado a estrutura edipiana,
nomeará o caso Schreber em função da presença d o Édipo. Ele o abordará a partir da
neurose e da conjunção entre o pai e o coniplexo de castração. Deseiiil~araçandoesses
dois elementos, o pai e o conipleso de castração, Lacan sitiia um mecanismo, uina es-
trutlira simples que explica :i relaçào ou a articulação entre esses dois termos, e isto se
servindo do esquema da metáfora - inclusive este não é o primeiro uso que faz dele.
Esse esquema Ilie pareceu articular o pai e o coiiiplexo de castração.
Ao mesmo teiiipo, ele renuncioii a tudo o que provinhii de certo pudor semantófilo
a respeito d o ciiusalismo. Ele trata em termos causalistas a relação entre o pai e o com-
plexo de castração. O tema da causa e do efeito é aqui central. A metáfora - assim como
a nietonímia - é para ele uin esquema de causalidade. Se há causalidade, há, portanto,
uma relação orientada de um termo a outro, assim como uina relação de domin:içio d e
uni sobre o outro. A solução de Lacan - aquela que fez a celebridade de sua iiietáfora
paterna -, foi dizer que o pai como significante é causa e o falo \mo significado é efeito.
O falo como significação acabada é uiii efeito. "1"' tem enrâo como efeito: P 3 @. A partir
disso, obtém-se logo unia doutrina da psicose. Há uma relação de causalidade simples
entre esses dois terinos que são mesmo assim desnivelados: um é causa e o outro é efei-
to, um é sinibólico e o outro imaginário.
Em que momento se introduz a questão que aqui poderia produzir certa disjunção?
Após encontrar as provas e as expressòes d e P, no caso Schreber, tendo riiostrado as dis-
torções que resultam nas funções siml~ólicasque são religadiis ao P - em seu esquema:
I e I r I 2 O -, Lacan se ocupa do que ocorre no registro imaginário. Ele vê no "assassinato
de almasz de Schreber algo que é correlativo ao P,. Isto após haver tratado das questòes
que circundam esse ponto, relacionadas às identificações narcísicas. Depois de tratar
d o P, e da distorção das funções siiiibólicas, Lacan aborda ali a distorção das funçòes
imaginárias. É então que ele se ocupa desse ponto designando coino "assassinato de
alinas". No parágrafo que nos ocupa, o que vai exigir a resolução desse ponto é distinto
das identificações iiiiaginárias, que se desen\-olvem na linha "i - - - m" e que já haviam
sido evocadas por Lacan: gozo transexual, imagem da criatura etc. Uma vez que ele
abordou essas distorções e esses reinanejamentos imaginários, ele passa ao "assassinato
d e almas" como tal.
Esse "assassinato de almas", vocês sabem que é central no caso Schrel~ere que ao
mesmo tempo é coinpletaniente enigmático para nós, uina vez qiie figura no capítulo 111
das il.ienzórius. e que não passou para a publicação. Portanto, eiii relação ao aconteci-
mento dito de "assassinato de aliuas" teinos um ponto de interrogaç5o.
É para dar conta desse "assassinato de almas" como tal que Lacan se pergunta se
hasta colocar em jogo a relação de causalidade negativa entre P, e @:, a sal~er:o que ele
chama d e efeito simples. Mas nesse parágrafo da página 577 ele emprega a expressão:
"num segundo grau". Como representar a relação de causalidade ein um segundo grau?
Poderíanios dizer que isto introduz uma nova causalidade independente. Será que Lacan
diz isso? Parece-me que ele diz outra coisa. Ele diz que há um raciocínio coniplicado ou
de duplo gatilho. Em uin primeiro tempo, P, traduz uma elisão d o falo e, em ~ i i i segundo
i

tempo, essa elisão, para se resolver, produz o efeito dito de "assassinato de almas". O que
aparece conio solução final é o próprio "assassinato d e almas". As identificações imagi-
nárias não estio na posiçâo de resolução. Elas exploram o estádio do espelhi~,mas não
o seu abismo inortífero. O que Lacan chaina aqui de resolução é a resoluçâo da elisão
do falo causada por I',, o que ein Schreher adquire a forma d o "assassinato de almas".
Esse texto complica a relação entre P, e F,, mas não os torna disjuntos. Ele abre
uma certa margeiii: há diferentes modos de resolver essa elisão do falo. A que Schreher
escolheu foi a instância da morte no estádio d o espelho, mas isso permite supor que
talvez liaja outros inodos de resolver a elisão do falo, outros que nâo tomein a dimensão
dita de "assassinato de almas":
Instância da morte no estádio do espelho
Po-@o
Elisão do falo /
Lacan pode nos dizer que é preciso procurar a forclusão do Nonie-do-Pai, inas
ele nào nos diz para procurar ein toda psicose a presença do "assassinato de almas':.
O "assassinato de almas" é a solt~çãoschreheriana da elisão d o falo pela morte. Esse
parágrafo por si só não nos autoriza a fazer uma disjunção entre P, e F,. Ele apenas nos
abre uma margem de resolução da elisão do falo. É deste modo que leio esse trecho e
pelo menos é compatível com o que Lacan diz a respeito. "É outro abismo", diz. Enten-
demos sua questão. É precisamente porque generaliza a forclusâo d o Nome-do-Pai, que

O p ~ ã obcaniana no 56/57 31 Julho 2010


ele se pergiinta sobre o "assassinato d e almas". Com efeito, conheceinos suficientemente
a clínica da psicose para constatar que, na experiência, o "assassinato de altiias" ou
um equivalente dessa intensidade não é d e modo algum a regra geral. Trata-se de dois
pontos diferentes, pois a forclusão d o Nome-do-Pai não é observável. Ela não deve ser
observadii, mas inferida. É simbólica e deve ser inferida ein um plano raclical. Em con-
trapartida, quando se trata d o imaginário, devemos ter testemunhos disso. A experiência.
ou o texto iiiesmo do psicótico, é portanto decisiva aí.
Se Lacan não empregasse a forma interrogativa e dissesse: "esse outro abismo é
formado pelo simples efeito, no iinaginário, do vão apelo feito no siiiil~ólicoà metáfora
paterna", isso quereria dizer que toda psicose comporta um "assassinato d e almas".
Isto não queria dizer outra coisa, e foi por isso que Lacan se colocou a questão:
"Terá esse outro abismo sido formado pelo simples efeito, no iinaginário, d o vão apelo
feito no simbólico à metáfora paterna?" Foi por isso que ele escolheu outra via, a saber:
que a forclusão d o Nome-do-Pai produz n o imaginário um efeito de duplo gatilho. O
primeiro efeito, que diremos necessário, é a elisão d o falo. O segundo efeito, que di-
remos contingente, é a via, é a via de resolução escolhida pelo sujeito para resolver a
elisão d o falo.
O próprio da via schreberiana é escolher como solução o "assassinato de almas".
Há aí uma idéia de solução que não é d e modo algum apaziguadora e que distingue
completamente a solução e o suplemento. A solução, nesse caso? é uma catástrofe psico-
lógica, mas é mesmo assim um modo de se haver com a elisão, um modo de designá-la,
d e nomeá-la, de dar-lhe um lugar. Isso também coloca em primeiro plano os diferentes
valores possíveis d o narcisismo. Há o narcisismo que podemos cliamar d e narcisismo
d e distorção, de remanejamento. Podemos nos perguntar se não há um narcisismo de
solução. Será que podeinos dizer que as diferentes soluçòes da elisáo d o falo recorrem
regularmente ao estádio d o espelho? Será que podemos dizer que no caso de Schreber
elas se dirigem ao abismo mortífero desse estádio, mas que em outros sujeitos outras
funçòes do estidio d o espelho podem permitir resolver a elisão d o falo - e isto manten-
d o distinção entre a função que ocupam nesse lugar e a função que ocupam no circuito?
Por ora, é problemático.
Em todo caso, essa questão colocada por Lacan me parece absolutamente neces-
sária. Generalizando a função d o Nome-do-Pai, Lacan não generaliza o "assassinato de
almas". É preciso que esse "assassinato de almas" seja repelido como efeito secundário
e contingente em relação aos efeitos necessários da causalidade P, 3 O,. Lacan indica
que se trata de uma causalidade em duplo gatilho. Isto tem seu interesse em relação aos
casos que nos ocupam e particularmente o do Homem dos Lobos.
Se acompanhamos o texto a partir da página 574 dos Escritos, vemos que Lacan
trata da restauração da estrutura imaginária. Ali ele distingue a prática transexualista, de-

~ 56/57
O p ~ ã oL a c a n i ~ nno 32 Julho 2010
pois a criatura infinitamente em um fantasma no qual há ausência de mediação. Enfim,
no último parágrafo da página 577, ele chega ao que é central: "E, também nesse caso,
a linha gira em torno de um furo, precisamente aquele em que o 'assassinato d'alinas'
instalou a morte." Pode-se dizer aqui que o @, adquire o valor da morte. Em Schreber,
a significação fálica é substituída pela significação da morte, enquanto em outros sujei-
tos psicóticos a forclusão do Nome-do-l'ai se acomoda muito bem a uma significação
vital que perdura mesmo assim. A morte é realmente uma negação muito forte da vida;
é seu inverso. Mas, podemos também imaginar que para certos sujeitos a significação
não é apenas a negação da vida, mas, por exemplo, o véu da vida. Não se trata aí de
uma assunção de funções vitais, iitna identificação a seu ser de vivente, mas de uma
identificação a seu ser de morto-vivo ou de vida deficitária. I'oderíamos então desdobrar
os diferentes alcances d o sentimento da vida que não chegam ao sentimento da morte.
Evidentemente, isto repousa em muitas coisas. E de cara, sobre o modo de enten-
der a expressão "produz em um segundo grau". Poderíamos entender que há P,, e depois
uma causalidade diferente em jogo; mas este não é o caminho que escolhemos seguir.
Parece-me que não é isto que quer dizer "em um segundo grau". Essa frase quer dizer
que a causalidade necessária se prolonga em um ponto; é portanto uma causalidade de
dupla vertente. Isso tambéni pode repousar no modo como interpretamos "o abismo
mortífero d o estádio d o espelho". Para inim, tal como o leio, isto quer dizer que Lacan re-
conduz a elisão ao estádio do espelho que, a esse respeito, particulariza o caso Schreber.

Retorno ao diagnóstico

\roltemos ao Homem dos Lobos. Somos, com esse caso, inuito dependentes da es-
colha d e Freud, pois como o próprio título indica, temos dele apenas um extrato. Freud
adota, portanto, um ponto de vista necessariamente parcial sobre esse caso clínico.
Curiosamente ele se centra em uin momento do caso que na verdade é muito antigo e
que parece clinicamente patente: uma neurose obsessiva desencadeada antes da idade
dos quatro anos e que começa por uma fobia de animais, para se converter em neurose
obsessiva de características religiosas. Freud anuncia as coisas desse modo. Ele recebe
um homem, e faz a escolha, quando nos apresenta o caso, de selecionar na história d o
paciente, para designar sua estrutura clínica, um momento que vai da idade dos quatro
anos até aproximadamente os dez anos. É ainda mais esquisito que ele nos diga que se
o paciente foi procurá-lo, foi porque estava doente na atualidade: ele afundou na doença
com a idade de dezoito anos' por causa de uma gonorréia.
A declaração inicial de Freud a esse respeito é impressionante. Ele nos anuncia
que é impossível ver a conexão entre o adoecimento anterior e o posterior, definitivo. É

O p ~ ã oLacaniana na 56/57 33 Juiho 2010


uma afirmação totalmente surpreendente: Freud vai buscar uma neurose obsessiva na
infiincia e nos anuncia de início que a separa totalmente d o estado atual d o paciente.
Esse caso tem. na obra de Freud, uma escrita bastante particular. Somente no final en-
contraiiios certo número de dados sobre o :idoecimento atual. Portanto, o que trazemos
conosco é o diagnóstico freudiano do Homem dos Lobos, a saber, que o cerne d o ado-
ecimento desse sujeito é sua neurose obsessiva infantil. Inclusive o próprio Freud nota
que o diagnóstico psiquiátrico da época era totalmente diferente, pois era d e psicose
maníaco-depressiva.
I'odeinos nos perguntar por que Freud escolheu esse momento. Ele diz assitii: "o
essencial da neurose aparece de um modo que não engana'2'. É surpreendente. Há uma
certeza d o diagnóstico quanto ao inoiiiento da neurose obsessiva.
O que está em jogo na retomada d o diagnóstico d o Homem dos Lobos é, ine pare-
ce, saber qual é o fundamento da certeza freudiana nesse assunto. Há a neurose obsessi-
va, e o que veni depois, por mais bizarro que seja, são seqüelas dessa neurose obsessiva.
Eu Iiavia destacado que esse texto é de início tomado na reinterpretação. Primeiro,
porque Freud visa um episódio bastante antigo, várias vezes reinterpretado por ele mes-
mo, e tainbém porque o próprio Freucl o reinterpreta. Vemos inclusive no texto as mar-
cas d e seus arrependimentos e de suas hesitaçòes. Depois, porque há a reinterpretação
dos dados da análise por Jung e Adler Enfim, porque isso foi reinterpretado pelos psi-
canalistas, pelos adversários da psicanálise, e depois reinterpretado por Lacan de modo
totalmente distinto. Isto significa que não é só porque ele pode reinterpretar a partir d o
desencadeaiuento d o episódio segundo Ruth Mac Brunswick, mas porque isso põe em
questão os traços da neurose obsessiva.
Podemos ver aí a que ponto nào são as foriiiaçòes imaginárias que podem nos
guiar. Creio que é preciso manter o causalisino primeiro, aquele que está no início dos
Escritos, e que formula que as formaçòes imaginárias, inversamente à estrutura simhóli-
ca, não são determinantes. Em relação às formaçòes imaginárias, podemos nos debater
por niiiito tempo. No âmbito das formaçòes siiiibólicas, supòe-se que não liaja embate.
Apenas, é problemático, e podeilios então discutir, apesar de tudo.
I'ode-se dizer que a priiiieira parte d o Relatório de Roma é um texto dedicado ao
caso d o Homem dos Lobos. Essa primeira parte visa assentar a psicanálise a partir da
história, isto é, sobre uma configuraçf~odo sentido. A referência constante e subjacente
de Lacan nesse texto é o Hoinem dos Lobos e seus efeitos de aposteriori, que estão
presentes nos próprios títulos - a oitava parte cio caso d o Homem dos Lobos é o apos-
teriori. I'or certo, Lacan incidentalmente só iiienciona o Homem dos Lobos no final d o
rekitório de Roina, mas isto pode ser lido em filigrana no texto. Quando ele nos explica
que a teoria das pulsòes e obrigatoriamente tomada em uma historicização primária, isto
deve ser lido sobre o fundo do caso d o I-lomein dos Lobos. Quando ele nos explica que

Opyào h a i n i a n a no 56/57 34 Jiilho 2010


a fixação ao estádio anal é na verdade uma fixação a uma página de glória ou a uma
página de vergonha, isto traduz exatamente o que Freud nos explica acerca da educação
anal do Homem dos Lobos. O esquema retroativo do sentido - a partir de certo ponto do
presente visar o futuro para devolver sentido ao passado - está absolutamente no cerne
do caso do Homem dos Lobos tal como Freud o apresenta.

O gênio literário de Freud

Isto justifica o que há de mais singular nesse texto de Freud, a saber, o estilo da
escrita. Como ele escreve esse caso clínico? Não o faz simplesmente de forma crono-
lógica. No começo, vocês têm aparentemente uma forma cronológica; mas, de fato, na
escrita como um todo, de capítulo em capítulo, há um efeito de envolvimento. O gênio
literário de Freud está lá. A concepção do caso no capítulo 2 se transforma no capítulo
3 que, tendo acrescido um novo fato. refaz uma leitura global. Assim, somente ao final
obtemos dados extremamente importantes. Freud diz que isto se deu porque só tomou
conhecimento dos mesmos no final da análise, mas na verdade, ao longo dos capítulos
vemos modificar-se a perspectiva sobre o caso. Portanto, não se trata em hipótese algu-
ma de uma escrita achatada, dita científica ou objetiva, mas uma escrita que nos dá o
sentimento do volume. Com esses textos estamos realmente diante de uma montanha
que escalamos e cujo aspecto se modifica a cada ponto. Dizendo de ourro modo. a
própria leitura do texto nos restitui o efeito de aposteriori presente no caso. O texto se
constitui por movimentos de vaivém e imita o caso. É algo completamente prodigioso.
Se examinamos de modo objetivo, nos perguntamos por que Freud não planificou
tudo isso. Inclusive essa questão retorna várias vezes no próprio texto. Como apresentar
as três dimensões em duas? Por exemplo, na página 205 da edição francesa, há uma
passagem que mostra a volta da escrita de Freud. É uma passagem do capítulo 4, na qual
Freud se ocupa do sonho e de suas conseqüências: "Devemos interromper aqui a dis-
cussão Ido1 desenvolvimento sexual Ido sujeito], até que em estádios posteriores de sua
história uma nova luz recaia sobre esses estádios ante ri ore^"'^. Essa habilidade é ainda
mais impressionante quando Freud deve comentar a fase de maldade do Homem dos
Lobos. Ela aparece inicialmente como "uma época de maldade". Em seguida, no capítulo
3, vem como "época sádica". Depois, no capítulo 6 e seguintes, aparece como "época
anal". O mesmo período recebe, pouco a pouco, no texto, qualificações remanejadas a
cada vez? e a partir das quais a perspectiva muda.
O enigma, então, é que Freud não centra de modo algum o caso no paciente tal
como ele lhe chega, mas no que chama de tempo original da infância. O que lhe parece
exigir uma explicação causal é o tempo da neurose obsessiva, entre quatro e oito anos.

Op@o Lacaniana no j6157 35 ~ u l h o2010


Freud acredita ocupar-se do período da neurose obsessiva, isto é: da seqüência: angús-
tia, fobias e perversidades. É essa seqüência que, segundo ele, requer explicação.
Todos concordarão em dizer que Freud lê essa neurose pela chave do Édipo, um
Édipo concebido segundo a fórmula do esquema filogenético herdado - que Lacan irá
colher para dele fazer uma estrutura. Poderíamos tentar dizer o que parece mesmo
assim orientar essa abordagem do caso por Freud? É o diagnóstico da homossexualida-
de inconsciente. Freud acredita que há nesse sujeito uma passividade obrigatória. Não
apenas por causa do trauma da sedução, mas por causa da posição de expectador na
cena originária. Ali; mesmo antes da sedução pela irmã, há passividade. Essa passividade
recua, então, cada vez mais longe na cronologia, como uma disposição, uma escolha
fundamental que parece receber significações noras no decurso do desenvolvimento.
A passividade obrigatória do sujeito recebe uma primeira significaqão no momento da
sedução e uma significação geriital no momento do sonho que reativa a cena originária.
A neurose obsessiva é, então, ainda suposta fixar a significação da passividade para esse
sujeito. Há uma espécie de disposição originária do sujeito para essa passividade.
É nesse momento que Freud ergue o véu? que ele solta qual era a queixa do su-
jeito. Na verdadel há duas queixas que ele apresenta como fundamentais nesse sujeito
quando chega. A primeira é essa queixa de um véu sobre o mundo. Freud nos diz que
"é a queixa na qual o paciente resumia todo o seu sofrimento". Depois ele nos indica
outro valor dessa queixa: "ele não podia suportar a mulher, e todo o trabalho teve por
finalidade descobrir sua relação inconsciente com o homem"z3.Freud nos entrega, nesse
ponto, a direção do tratamento. O sujeito chegou dizendo-lhe que não podia suportar a
mulher, e todo o seu trabalho estava centrado em sua homossexualidade inconsciente.

Descontinuidades

Podemos, evidentemente, ficar tentados a um sobrevôo sintético do caso que Freud


nos apresenta até o final de seu texto. no capítulo 9, em que toda a periodização se
desdobra. Ele nos oferece também um sobrevôo sintético no capítulo precedente, e é
divertido constatar como, a cada vez, suas sínteses mudam de sentido pela junção de
elementos novos, que não são simplesmente cumulativos, mas têm efeito retroativo. Su-
ponho que vocês renham uma idéia de tudo isso. Prefiro tomar como exemplo a primei-
ra abordagem do caso por Freud, que é sobre o que ele se centra a partir do ponto em
que nos apresenta a constelação familiar das cinco personagens iniciais: o pai, a mãe, a
irmã, a babá e a governanta inglesa que em certo momento faz três pequenas rodadas,
depois se vai muito rapidamente -, a verdadeira vedete americana foi Groucha, o que o
sujeito só revela in extrenzis.

Op@o bcaniana no 56/57 36 Julho 2010


Temos, então, no início do texto: essa constelação familiar. Sol~reo que s e apóia
Freud? Em uma descontinuidade precisa, a saber, a mudança de caráter do sujeito em
torno dos quatro anos e meio de idade. Isto exige que tenha a referência de uma conti-
nuidade eventual, mas Freud escolhe - e isso foi reconhecido e sancionado pela faiiiília
-valorizar a descontinuidade do caráter: o paciente era gentil, doce como uina moca, e
depois, entre os três e os quatro anos, torna-se malvado. Então, é realmente de um lado
e de outro desse corte que Freud busca a causa. A seqüência que conduzirá à neurose
obsessiva começa a partir daí.
O texto enriquece continuamente esse corte. Ele nos trará em seguida tiin segundo
corte, que será o do sonho. Temos, então, com o sonho, uma segunda descontinuidade
-esse sonho remetendo, ele mesmo, a um episódio ainda anterior ao primeiro corte. Em
seguida, podemos repetir mais precisamente o momento em que a neurose obsessiva
propriamente dita intervém: o momento da instrução religiosa pela mãe. Este constitui
uma nova barreira e, a partir disso, descobrimos um corte anterior, o da cena com Grou-
cha. Temos, então, esses diferentes cortes em um movimento de vaivém.

Freud, vocês sabem, indica o parentesco d o sonho com o episódio da sedução pela
irmã, pois considera esse sonho como uma segunda sedução, um segundo trauma. Ele
situa esses dois cortes em uma posição totalmente privilegiada. Conforme sua orientação
fundamental, Freud busca a causa da mudança de caráter em um incidente sexual real.
No início, ele apóia os ditos familiares, que remetem à governante inglesa. Em um segun-
d o tempo, ele descobre que foi a irmã quem efetuou essa sedução. E então atribui a esse
incidente uma eficácia marcada sobre a sexualidade d o sujeito, a saber, que essa causa
rem por efeito uma posiçâo sexual passiva: ser tocado nos órgãos genitais. De repente,
ele nos apresenta a maldade, que adquire seu contorno agressivo, como uma reação a
essa passividade fundamental, como sendo quase d e cobertura. A agressividade aparece
como uma cobertura, e Freud defende inicialmente a idéia de que a virilidade d o Ho-
mem dos Lobos é reacional ou de semblante. Quando soubermos disso mais adiante, a
partir do episódio de Groucha, que aconteceu um ano antes, já estaremos preparados
para admitir essa virilidade de semblante.
O que aparece como decisivo é o corte da sedução que aconteceu aos três anos.
Na verdade, descobriremos que, já em torno dos dois anos e meio, um episódio relativo
à escolha heterossexual foi determinante. Essa passividade que constitui o leitmotiv d e
sua abordagem, Freud a situa com relação à irmã d o paciente, depois em relação à Na-

OpFão Iacaniana no 56/57 37 Julho 2010


nia, e ele a valoriza da mesina Forrna - mesmo assim é espantoso - em relação ao pai.
Sejatn quais forem os esforços meritórios que façamos em torno dele para retirá-lo desse
registro, a relação com o pai é irresistivelmente marcada por esse traço de passividade.
Não podeinos negar que nesse caso - e penso que ninguém pensa em Fazê-lo - h á unia
relação com o pai. E esta é absolutamente constante na observação de Freud. Ela é inclu-
sive tão marcada que talvez seja por aí que Freud se veja conipelido a ver nisso indicadas
as categorias da neurose obsessiva.
Mas há essa dificuldacle que Freud destaca, e que é uma indicagão clínica essen-
cial: o que começa no sujeito como uma identificação coin o pai -ser um homem como
seu pai etc. - s e converte em escolha de objeto, quer dizer, ern "ser amado pelo pai". Aí
está uma referência essencial, de que a identificação é substituída pela escolha de obje-
to. A partir de então, a sedução é apresentada por Freud como correlativa da primeira
abordagem. De repente, ele interpreta a maldade d o sujeito de dois modos distintos.
Inicialmente, essa maldade responcle a uma virilidade de reação relativa à passividade
fundamental. Em seguida, torna-se um apelo a punição, e não faz senão repercutir e
intensificar a passividade fundaiiiental. A mesma atitude agressiva d o Hoineiii dos Lobos
tem um duplo valor. Primeiramente, o de negar no semblante sua passividade; em segun-
do Iiigar um apelo à punição e; portantol a apanhar d o pai. Sob o sadismo d o Hornein
dos Lobos se oculta uin masoquismo.
Corno Freud se satisfaz coiii essa primeira descontinuidade? Há, segundo ele, uiiia
causa: um incidente sexual preciso com sua irmã. Freud clediiz disso um certo número
de conseqüências que lhe explicam a posigào de maldade a partir da passividade sexual
- passividade adquirindo a significação do masoquismo, ainda que possa se expriiiiir ;io
riiesino tempo como virilidade. Com as novas significa$ões que se produzirão gradativa-
mente. podemos dizer que esses dois ietores permanecem até o fim.
I'assemos agora ao sonho que deu seu nome ao sujeito, e isto justificadaiiiente,
pois o próprio Freud exprime sua convicção, que partilha com o paciente - convicção,
Ul~erzeugung,é uma palavra recorrente nesse texto a saber, que por trás desse sonho
-;

se esconde a causa da neurose infantil. O primeiro vetor, que vai da idade dos três aos
três anos e meio, não basta para conduzir diretamente à neurose infantil. Interpõe-se aí
uma causa que remeteri verdadeiramente ao comeco' a esse sonho de angústia, irne-
diatamente interpretado por Freucl como angústia de castraçio. A ruptura que se instala
aqui é que tudo o que o sujeito vive vai: a partir de então, adquirir uma sigtiificaç5o
genital. A passividade será interpretada a partir de então como homossexiialidade no
sentido genital. Dito de outro modo, o que Freud quer descol~riraqui é certa relação -
não precisemos mais - com o genital. Podemos dizer que é iiiiia certa relaçào com a sig-
nificagão fálica. Há certa relaçào - não digo qual - que reinaneja a posigio fundaiiiental
d o sujeito. ou seja, a passividacle:

Oyi~ãokcaniana no 56/57 38 Jiilho 2010



3 anos - 3 anos e meio
Sonho I
Uma certa relação
com o qenital

Narcisismo e desencadeamento

Na leitura desse sonho: Freud vai partir da angústia de castração e de sua cone-
xão com o pai; essa conexão diz respeito à passividade e, a partir d o moniento em que
adquire a significação de homossexualidade, obriga ao recalcainento. De repente, Freud
nos apresenta retrospectivamente o episódio de sedução portador de castração como
se não tivesse se realizado no sujeito esse sentido genit:il. Em contrapartida, a partir d o
sonho. a lacuna e a contradição manifestam-se entre a passividade interpretada no con-
texto genital e a integridade Física - o que Freud chaina de valor que o sujeito atribui aos
seus órgãos genitais. Antes dessa descontinuidade, a passividade não era contradilória
com a detenção dos órgãos genitais. A conexão não se dá. Para Freud, isto só ocorre
a partir d o sonho. De repente, produz-se o recalcamento da sexualidade inconsciente.
Vemos ali Freud se perguntar, eiii sua investigação clínica, por que o sujeito não se
tornou homossexual. Por que sua passividade não se transformou pura e simplesmente
em homossexualidade? Freiid I~uscaa instância recalcante. Há uma tese precisa sobre
o que é recalcante nesse caso: o valor que o sujeito confere aos órgãos genitais com o
narcisismo que se fixa a ele. O nzodus operaildi d o recalcamento é o que explica que o
sujeito passivo não tenha se tornado hoiiiossexu;il. Há? com esse sonho, algo como a no-
ção de uma barreira a ultrapassar. Essa passividade se envolve aí, deveria tomar o valor
da homossexualidade, mas nesse moniento é passada por baixo. É recalcada na medida
em que há para o sujeito uin conflito entre a passividade interpretada de modo genital
e o narcisismo d o órgão genital.
Estou, ainda, no início d o texto, iniis talvez já pudésseinos fazer utn curto-circuito.
Para Freud, é realmente coni o sonho que o sentido genital é atingido. Podemos mesmo
assim perceber que, quando se trata de clesencadeaiiiento para esse sujeito - sua gonor-
réia aos dezoito anos e o probleina com seu nariz mais tarde -: isto se dá a cada vez que
há um golpe em seu narcisismo. Isto não bastz, estamos no início de nossa investigação?
mas se quiséssemos procurar aí iiina conjuntura de desencadeamento, é evidente que
não a buscaríamos do lado do Um-pai. Eni relação ao encontro com os pais, pudemos

O ~ ã Lacaniana
o no 56/57 39 Julho 2010
demonstrar que isso não coloca nenhum problema para o Homem dos Lobos. Ele ofere-
ce gordas gorjetas ao alfaiate e nunca está contente com o resultado. Mas vendo-o pegar
suas grandes tesouras, o sujeito não sai correndo a dizer que o alfaiate irá cortá-lo. I'or
outro lado, temos uma conjuntura de desencadeamento sobre a qual podemos dizer que
coloca em primeiro plano, não a função d o pai, mas a função fálica. Sem decidir por
ora se se trata d e neurose ou psicose, notemos que teríamos nesse caso um modelo de
conjuntura de desencadeamento mais para o lado fálico do que para o lado paterno. É
esse a viés que podemos chamar de golpe n o narcisismo.
Mas o que significa aqui o narcisismo dos órgãos genitais? Como escrever isso?
Deve ser escrito com o Q, imaginário, pois é narcisado. Trata-se do falo imaginário. Para
o sujeito, o que é ameaçador a cada vez é que um signo "menos" se dirija a esse falo
imaginário, quer dizer, um golpe, uma falha a afetá-lo. Esse falo imaginário aparece
como algo tão precioso para o sujeito que é causa do recalcamento. É como se o falo
imaginário tivesse uma função de Nome-do-Pai. A cada vez que algo vem golpear essa
função, ocorre uma desestabilização do sujeito, ainda que ela não desemboque em um
desencadeamento completo.
Talvez isso nos obrigue a refinar um pouco mais o que chamanios de significação
fálica. O falo da "Questão preliminar..." é obrigatoriamente positivo, não é o falo da cas-
+
tração. Ele está escrito, no esquema de Lacan, com um sem negação e em um sujeito
sem barra. De que modo costumamos nos referir ã significação fálica? Adquirimos o
hábito de nos referir a ela como idêntica à castração. Na metáfora paterna, chamamos de
significação fálica algo que se escreve - +. Talvez aí esteja a indicação de que certamen-
te há no sujeito uma relação com o falo, mas que essa relação, de certo modo, parece
suportar muito mal a negação. Toda aproximação de um "ser menos" aparece como
obrigatoriamente desestabilizante. Não devemos esquecer que a castracão simbólica se
referencia nesses efeitos imaginários. Podemos, portanto, estar sempre hesitantes nesse
ponto. Onde temos menos razão de ser - eu havia anunciado isso - é quando se trata do
pai, pois é o caso de saber se as referências imaginárias da relaqào com o pai convergem
ou não para uma função simbólica.
Para dizê-lo rapidamente e favorecer a leitura do caso por vocês até a próxima
semana, há pelo menos um elemento conceitual que falta a Freud em relação ao ponto
em que o relemos, a saber a distinção entre imaginário e simbólico. A presença agrupada
e massiva de imagens do pai, de relações com o pai, de identificações com o pai etc., é
o que para Freud garantia que a relação entre o pai e o falo estava constituída. Ele fala,
então, de neurose obsessiva. Mas será que nós não temos uma exigência suplementar
em relação a isso? Pai e falo não bastam e devemos dizer como reorganizamos isso, se
posso dizer, na distinção entre simbólico e imaginário. A questão do diagnóstico gira em
torno da questão do pai. Será que o número e a massividade das relações com o pai são

Opção lacaniana no 56/57 40 Julho 2010


suficientes para assegurar que a função do pai está estabelecida? Será que a experiência
do sujeito converge para essa posição do pai simbólico?É preciso pelo menos observar
que o inventar do pai simbólico, a saber, Lacan, não o encontra na observação do caso
do Homem dos Lobos, e isto em detriiuenro da presença indiscutível do pai, presença
que ninguém pode negar. Não é certo que localizemos a presença simbólica do pai nessa
cartografia. A esse respeito, talvez fosse preciso dizer que a conexão entre PO e @O está
sem dúvida conservada. Apenas anuncio a seqüência das coisas! que deve ser desdobra-
da. Espero que isto os faça retomar o estudo d o que Freucl chama de neurose obsessiva
do Homem dos Lobos. Será que nessa neurose obsessiva o pai é simbólico ou não?

(21 de janeiro de 1988).


VI. A MULTIPLICIDADE DOS PAIS

Desordem

Não sei se empreguei a expressão "encontrar o pai siml~ólico".Isto não é impossí-


vel. A questão seria antes encontrá-lo na análise do caso do Homem dos Lobos, e por-
tanto, a partir de seus ditos. Quando se trata da forclusào do Nome-do-Pail admitimos
que não a encontramos. Temos apenas um certo número de linhas que parecem con-
vergir para uma falta. Este foi um título que propus para uma das partes d o Seminário
3: "Os arredores d o fiiro". Isto quer dizer que não caíiiios no furo e que certo número
de linhas parecem convergir para um defeito. Mas, mesmo quando essa falta é ocupada
pelo significante d o Nome-do-Pai, não temos necessariamente a experiência d o Noiiie-
do-Pai. Trata-se de uma funçào que se deduz das linhas d o caso. Não se trata de um
"há" d o encontro. Na época eiii que para Lacan o simbólico domina o imaginário, essa
experiência está no registro imaginário. São dados iniaginários que estáo presentes no
tratamento, com a excefão d o que são propriamente os jogos d o significante. A realidade
que o sujeito relata é obrigatoriamente imaginária. Sirvamo-nos disso.
Vocês podem notar que pais, no caso d o Hornein dos I.obos, há muicos. O pro-
bleina desse sujeito não é que não haveria relação coin o pai, mas que, de relações com
pais, ele está conipletaiiiente abarrotado. Ao longo de sua vida, não cessará de haver
essa relaçào com um pai e outro, e ainda outro etc., até debochar de todos esses pais
que se propõem a ele e que têm todos vestimentas diferentes. E é bastante co~iiplicaclo,
quando não temos só um, saber ein quem se fiar. Temos um rastro certeiro desse traço:
cla iiiultiplicidade desses pais. l'odetnos dizer que isso emoldura a experiência cla neu-
rose ol~sessiva,há a expressão "influência": há pessoas que têm influência sobre ele. Ao
longo de sua vida haverá séries de pais, e em unia desordem da qual ele mesmo sofre. É
diferente dizer que isso converge para um "há". É inuito difícil dizer que o pai existe no
ânibito simbólico, na medida em que temos aqui o sentimento de um "não todo" do pai.
É justaiiiente essa multiplicidade desordenada das figuras paternas que torna problemá-
tico uin "há".Como estabelecer uni "o pai não existe" em um caso como esse, que nos
apresenta desse modo urna niultiplicidade imaginária de pais?

O pai e a angústia

Está aí um ponto da estrutura que é de natureza a nos ajudar a encontrar o pleno


valor do pai simbólico ou d o Noine-do-Pai tal como se dá hoje em nosso liso corrente.

Opç50 lacaniana 'n 56/57 42 Jiilho 2010


A conexão entre Nome-do-pai e "pai-castração" requer efetivamente uma distinção tal
como a que fez Agnès Aflalo.
No texto sobre o Hoinem dos Lobos, um sintagiiia retorna regularmente: o medo
d o pai, a angústia em relação ao pai. Isto evidencia cada vez mais o sentido do termo
"assunçâo da castração". Qual é o valor da conexão entre o pai e o falo? Essa conexão,
que se verifica e sobre a qual Freud retorna ao longo de todo o texto, pode se dar sob
as espécies da angústia de castração. Mas o que permite situar legitimamente o pai em
questão coiiio um Nome-do-pai é, pelo contrário, o temperamento dessa angústia. Essa
função d o Nome-do-Pai não pode ser deduzida, inferimo-la a partir d o fato de que essa
angústia seja teinperada, "significantizacla", isto é, reduzida. O Nome-do-Pai é, então' o
pai da paz. É assim que Lacan o traz. O fato de dizer, niais tarde, que esse pai é também
um sinthoma, não retira nada desse efeito de passificação.
Ao lado da angústia de castração, falemos, então: da paz da castração. Faleinos
de uma paz de castração que faz com que n o final d o caso pequeno Hans pelo menos
uma solução seja proposta: "você terá outro". No fundo, há o :ispecto de uin contrato,
de uma expectativa regrada, que precisamente atenua o que é da ordem da angústia
de castra<;ão,angústia que, a esse respeito, está em continuidade com a angústia pré-
genital. O genital é solidário com o pré-genital ein relação a castração simbólica, pelo
fato d e que é o domínio em que reinain efetivaniente as angústias de devoração etc..
No fundo, a angústia de castração é compatível coiii isso, e há uni modo d o genital
que lhe é estritaniente homólogo. O Nome-do-Pai é a função que. sob essa grande
desordem e essa grande onda de angústias exerce uma ordenação pacificadora da
qual o pai merece a posiçâo simbólica. Essa é, a esse respeito, a ainbiguidade da
função d o pai.
Eu perguntava se poderíamos negar que haja nesse texto uina relação ao pai. Não
podemos negar isso, mas toda a questão é saber se se trata d o pai coordenado com a
angústia de castração ou o pai relacionado à paz da castração. Onde está, nesse texto!
a série que convergeria para o estabelecimento dessa paz? A questão também não está
nos personagens que suportam essa função, pois em rela~ãoao pai da paz. a angústia
de castração pode ser suportada por certo número de personagens, dentre elas o pai.
Evidentemente, nesse caso? ela é eminentemente suportada pelo pai, mas podemos nos
perguntar se é um pai que vale mais como uma mãe devoradora. Há ali alguni ponto em
que o apaziguamento da angústia de c;istração seria adquirido para o sujeito?
Ele busca esse apaziguamento na religião, que oferece essa possibilidade de dizer:
"Seja feita a vossa vontade" - posição ainda assiin extreiiiamente benéfica para o sujeito
sob o ponto de vista da angústia. O "seja feita a vossa vontade" protege da angústia. O
que o Homem dos Lobos encontra nessa religião, feita para pacificar a castração? Seu
problema, desde que entra na religião, é mesmo assim saber se Deus tem um nieio de
copular com o Cristo. Na religião, o Homem dos Lobos acha o Deus cruell aquele que
sacrifica seu filho. Todas as virtudes do apaziguamento esvaecem.
Estamos no cerne da questão de saber o que é para nós o Nome-do-Pai. De todo
modo, o Nome-do-Pai só tem valor em relação ao pai imaginário ou às instâncias imagi-
nárias. A função imaginária do falo está completamente presente nesse texto. Vemos um
pai imaginário, cruel: devorador, quer dizer, uma versão catastrófica da castração. Quem
pode negar que haja em Schreber uma relação ao pai? Ela está perfeitamente consiiiiiída
para ele. Freud pôde até mesmo trazer esse caso com o apoio da teoria edipiana. Ele o
apresenta a nós como uma versão selvagem da castração, como uma interpretação ima-
ginária da castração. que deve efetivamente se desenvolver no corpo como emasculação.
É preciso ver que a teoria edipiana organiza ao mesmo tempo a neurose e a psicose. É
preciso, portanto, ver como os termos dessas funções aparecem nos dois casos.
O que Lacan acrescenta aí? O que é que ele acrescenta ao que organiza o cami-
nho de Freud? Pois é, Lacan desdobra o imaginário e o simbólico. E o que motiva essa
distinção no cerne do texto de Freud? É que há uma diferença a fazer entre os casos
em que o pai aparece unicamente na sua função devastadora e aqueles em que aparece
na sua função apaziguadora. O pai imaginário aparece também em outras funções, por
exemplo na do enfraquecimento intrínseco. É, então, insuportável para o sujeito, mas
isso apenas confirma a tese de que o pai simbólico não existe. Há' portanto, uma dife-
rença a fazer entre os casos em que o pai aparece em uma função catastrófica e aqueles
em que, com todas as ambivalências de sentimentos que podemos imaginar a respeito,
todas essas linhas aparecem apaziguadas. Ainda que haja reivindicação, há uma zona em
torno da qual todas essas linhas se organizam de maneira sólida, permanente, harmo-
niosa, durável. Elas fornecem uma moldura no interior da qual a experiência se inscreve.
Com o Homem dos Lobos, vemos essa moldura, mas visivelmente a experiência se
inscreve sempre em uma relação em que a angústia é incessantemente ao alcance das
mãos. A esse respeito, duas experiências são decisivas. O que a cada vez é insuportável
para o sujeito é que um "menos:' se aproxime do falo imaginário. É a isso que podemos
relacionar os sucessivos desencadeamentos. Quando esse "menos" avança, há o efeito de
desencadeamento. Em segundo lugar, há essa experiência típica que Freud nos apresenta
desde o início do caso e acerca do qual ele nos revela a soluçâo de que, progressiva-
mente. a cada vez que o sujeito vê na rua algum mutilado, deve esconjurar essa aparição
através de um arquejo. Freud nos diz que são substitutos do pai. É ainda um "menos"
que avança na direção do pai imaginário e não há a constância do significante do Pai
para temperar essa angústia.
O que seria, nesse caso, o pai simbólico? O pai simbólico é precisamente uma
função que não pertence ao empírico, que é transcendental, transcendente em relação
à experiência. De tal modo que, quaisquer que sejam as variações das personagens

Opgâo Iacaniana no 56/57 44 Julho 2010


encontradas na experiência, o sujeito não se sente não se sente diretamente ameaçado
por tais inflexòes ou pelas dificuldades de seus encontros. Quando o Homem dos Lo-
bos encontra um mutilado, é preciso que se proteja disso, pois há aí uma ameaça direta
para ele. Não pretendo que o resto seja convincentel e talvez possamos recuperar ainda
alguns dados d o caso.
Parece-me que é demasiado geral pensar que a função simbólica existe para o
sujeito. O Homem dos Lobos fala. Dizer "função simbólica" é um tanto geral. Aqui, ten-
tamos reforçar o papel da função simbólica sobre função mais clássica do Nonie-do-Pai,
assim como sua exigência se impôs a Lacan e m um período importante de seu ensino. É
preciso notar que o texto sobre o Homem dos Lobos é um texto-chave para a constitui-
ção d o ensino de Lacan, e mesmo de sua teoria mais fundamental. O caso Dora e o do
Homem dos Ratos são muito importantes para a técnica analítica, mas talvez o caso d o
Homem dos Lobos seja o mais convincente para a teoria lacaniana mais fundamental,
pelo menos para a distinção do simhólico, imaginário e real. A promoção da primazia
d o falo que tanto cliocou na época, é mesmo assim algo que tem sua justificativa mais
profunda no texto sobre o Homein dos Lobos. É certo que a funçào siiiil~ólicaexiste
para esse sujeito, mas reforçamos a questão sobre um terino fundamental dessa ordem
simbólica. Isto não é obrigatoriamente contraditório. A esse respeito, não muda obriga-
toriaiiiente as coisas dizer que o pai simbólico é na verdade um sinthotna. O sinthoma,
não nos esqueçamos, é certa aparelhagem do gozo, certa formatação do gozo. O sintho-
ma d o Nome-do-Pai é aquele que faz desse gozo o "mais paz". O "mais" pacificador dos
sinthomas. O que é a angústia de castração nesse gozo que é angústia? É o momento em
que o que ali é gozo e angústia vai adquirir a significação genital. Isso será reemoldurado
pelo genital. O que aí é propriamente a ação d o pai simbólico não é suprimir o gozo ou
a angústia, mas localizá-los.
O que deteve Freud aqui? É que há efetivamente um certo quantum de gozo que
não é controlado, capturado e significantizado pelo falo simbólico. O que lhe colocava
um problema era a parte não significantizável d o gozo. É por isso que Lacan foi levado
a buscar as outras saídas além da sul~jetivaçãoe da significantização, que valem para
essa parte d o gozo. O que chamamos de angústia de castração? Há duas coisas que
chamamos por esse nome. Elas são distintas. Há a angústia de castração que é a velha
angústia que adquiriu a significação genital; mas ela deve ser diferenciada da angústia
de castração como resíduo da significacão fálica.
Evidentemente, não temos no caso d o Homem dos Lobos o testemunho de uma
invasão libidinal que explodiria os limites de seu corpo. Observamos localizações bas-
tante precisas e que Freud considera mesmo assim como histéricas. Se não há nesse
sujeito uma significação fálica, há no lugar disso uma "imaginarização" fálica que, pouco
ou muito, funciona mais ou menos d o mesmo modo. Mas o que nos impede de dizer

Opcão baniana no 56/57 45 Julho 2010


que funciona exatamente igual? O fato de que, quando há um ataque à imagem, há um
desencadeamento. O Homem dos Lobos perde suas referências no moniento em que há
um ataque à imagem - à imagem d o pai. à imagem fálica etc.. Havíamos percebido que
ter visto Freud diminiiído foi de cara um fator desencadeante para o Homem dos Lobos.

Desdobramento

Talvez eu pudesse desdobrar uni pouco o texto. No primeiro plano da abordagem


d o caso por Freud éoioquei a referência que ele toma da descontinuidade. A primeira
referência de Freud é a descontinuidacle d o caráter no sujeito. A infância d o Hoinem dos
Lobos se divide em duas grandes pirtes: ele foi durante um tempo uma criança dócil;
depois se torna uma criança maldosa, agitada e insuportável. Temos, então, uma descon-
tinuidade no caráter que a priineira referência de Freud. É uina descontinuidade que vai
marcar a idade de três anos cuja explicação buscaremos no episódio da sedução:

3 anos
*Capítulos 2 e 3
Sedu~ão
(causa da descontinuidade)

Aí está, na ordem, o primeiro corte que Freud localiza. O capítulo 2, que é um


resumo da história d o doente, é ordenado por esse corte; é ele que é essencialmente
probleinatizado: "Ele teria sido inicialmente uma criança muito doce, dócil e calma, de
modo que tinham o costume de dizer que deveria ter nascido menina, e sua irmã mais
velha o menino. Mas, uma vez, quando os pais retomaram de sua viagem de verão, eles
o encontraram transforinado. Ele se tornou descontente, irritável: violento [e1 ofendido
todo o t e m p ~ . " ~ '
No capítulo 3, Freud busca a causa dessa descontinuidade e a encontra na sedução.
Depois, essa cronologia. situada em torno d o episódio de s e d u ~ ã oé, enriquecida por
uma segunda descontinuidade, a d o sonho, que constitui também uma linha divisória.
Podemos isolar esse sonho em torno d o quarto ano e' de repente, situamos um perío-
d o intermediário, o da fobia de aniniais. É tambétii a partir d o sonho que entramos na
neurose obsessiva. A cronologia se enriquece, então, e, ao mesmo tempo, nos faz voltar
atrás, isto é: ao corte da cena originária:
Um ano e meio Três anos Ouatro anos

Cena Sonho

Em seguida, no capítulo 4 - o capítulo 5 é dedicado a considerações gerais - en-


contramos a mesina cronologia, mas enriquecida por uma terceira descontinuidade que
é a da religiáo. Depois, no tempo seguinte, que é o episódio final do caso. revelam-nos
a importância da cena com Groucha, situada dois anos e meio antes:

Dois anos Quatro anos


e meio e meio

Groucha Religião

A cronologia é então retomada e isto mesino na sinopse final?em que Freud preci-
sa todas essas descontinuidades pela distinção dos estádios oral, fálico, anal etc.. Aí está
o esquema do envolvimento cronológico que confere a esse texto seu estilo próprio. No
capítulo 2, Freud nos entrega o meio e a história do sujeito, e depois ele traz a granel um
certo número de fatos. É isto que confere a faceta detetivesczi a esse caso: "um dia ele
disse isso, outro dia ele pensou nisso...".Tudo isso nos é trazido na página 179 da edição
francesa, e todos esses elementos trazidos a granel só encontram posteriormente um lu-
gar preciso na estrutura. Eles ser20 inclusive reinterpretados a cada vez que a cronologia
se enriquece e que a construção do sentido do caso se desdobra.
Não somos conduzidos a fazer desse modo, pois é o ponto de vista do significante
que nos organiza. Um significante,uma vez que o nomeamos, isto é feito de uma vez por
todas. Todos esses efeitos de reinanejamento têin seu valor quando nos guiamos pelos
sentidos, quando le\mnos em conta sua dinâmica. Mas, uma vez trazidos o S,, o S, ou o
a, já estamos no plano da estrutura, isto é, no plano da sinopse de Freud. É inclusive ali
que poderíamos valorizar a observação de Guy Clastres. Será que em nossos relatórios
de caso não confundimos Frequentemente o nível da estrutura e o da experiência? Será
que não produzimos com freqüência um curto-circuito entre os dois níveis? Expondo um
caso no plano da estrutura, finalmente o expomos de modo extremamente engessado,
fixo. É como se pudéssemos fazer a experiência direta desses termos e desses significan-
tes que são obrigatoriamente termos de estrurura e que deveriam vir antes manifestando
as linhas de convergência surgidas na experiência.
Isto é possível quando temos, como nessa página 179, o esvaziainento d o bolso.
Ao evocar: "essa fase de mudança de caráter" - aí está a referência freudiana para a des-
continuidade, par ao corre -, Freud nos precisa que ele: "está indissoluuelmente ligado à
lembrança Ido paciente], a outros fenõnienos singulares e doentios que ele não sabe or-
ganizar temporalmente". No fundo, o caso será a ordenação temporal desses fatos. Freud
continua: "Ele coloca em um só espaço temporal tudo o que deve agora ser relatado, que
não pode ter sido simultâneo e que é pleno de contradição interna, e o nomeia como
'ainda na primeira propriedade'. Ele também sabe contar que sofreu de um medo [Angstl
d o qual sua irinà se aproveitava para atorinentá-10. Havia aí um certo livro de imagens no
qual um lobo era representado [...I.Quando tinha essa imagem diante dos olhos começa-
va a gritar [...]. Ele tinha medo também de outros animais, grandes e pequenos. Um dia,
ele perseguia uma grande e bela borl~oleta[...I. De repente foi tomado por um medo ter-
rível d o animal [...]. De coleópteros e lagartas ele também tinha muito medo. Estaríamos
autorizados a admitir [...I que ele tinha sido acometido, nos seus anos de infância, por
uma neurose obsessiva bastante reconhecível [...I. Na época. ele praticava tambéiii um
cerimonial particular. quando via na rua pessoas que lhe causavam piedade, mendigos,
enfermos, velhos. Ele precisava respirar ruidosamente". Teiiios, então, no parêntese da
primeira propriedade, dados brutos que o desdobramento do caso fará significar
Notemos que esse capítulo 2, assim como o 3 e aquele sobre a neurose obsessi-
va -terminam com a questão d o pai. Isso retorna como um leitmotiv ao final de vários
capítulos: como reformular a relação com o pai? Lembro a primeira emergência disso:
"Os anos da adolescência d o paciente foram condicionados por uma relação bastante
desfavorável com seu pai [...I. Nos primeiros anos da infância essa relação fora muito
terna [...I. Seu pai o amava muito e brincava de bom grado com ele. Ainda pequeno.
orgulhava-se de seu pai; e declarava que queria ser um homem como ele. A babá dizia
que sua irmã era filha de sua mãe, inas ele de seu pai, fato com o qual estava bastante
contente. Na saída da infância, uma distância se estabeleceu entre ele e seu pai [...I. Mais
tarde, o medo d o pai foi dominante.'“^
No final desse capítulo ele apresenta um resumo bastante preciso d o modo como
Freud formula as questões relativas ao caso d o Homem dos Lobos: "Estes são, muito
sucintamente esboçados, os enigmas cuja solução fora confiada a análise: d e onde pro-
vinha a brusca mudança de caráter d o menino, que significavam sua fobia e suas per-
versidades, e como chegara ele a sua piedade obsessiva [...I?"
O exame de Freud é, portanto, o exame dessa descontinuidade que é inicialmen-

OpFão Lacaniana n" 56/57 48 Julho 2010


te relarada a partir da interpretação da família, a saber, que foi uin erro da governanta
inglesa. Mas essa interpretação cede lugar rapidamente ao papel da irmã sedutora. Note-
mos como é construído. É bastante preciso. O título d o capítulo 3 é: "A sedução e suas
decorrências imediatas". Isso responde, d e maneira simétrica e inversa, ao que veremos
no capítulo 7, sobre os efeitos de aposteriori. Sob sua aparente desordem, esse texto é de
uma construção refinada. Freud acentua o aspecto progressivo da cronologia, enquanto
no final, são os efeitos regressivos que dominarão cada vez mais.

A castração: fato ou crença

Podemos dizer que todo esse capítulo sobre a sedução coloca em primeiro plano,
desde o iníciol um termo que se encontra também no final: o de falo. A partir desse ca-
pítulo, a partir d o momento ein que entramos na busca da causa, podemos tentar cernir
o que querem dizer o falo e a castração para Freud nessa data. Ele começa o exame da
etiologia da mudança de caráter por duas meiiiórias de cenas nas quais está a governanta
inglesa: "uma vez, como andava na frente, havia dito aos que a seguiam: 'Olhem, então,
o meu rabinho!' Em outro niomento, durante uma excursão, seu chapéu voou, causando
grande satisfação ao menino e à sua irma2'. Essas duas lembranças que ele traz, Freud
indica que remetem ao complexo de castração. Dizendo de outro modo, esse caso se
desdobra, de início, em torno da questão d o falo e da castração.
Mais tarde, vocês encontrarão uma frase que retoma isso de modo impressionzinte,
pois pode-se dizer que é realmente nesses termos que Lacan evoca o falo em "De uma
questão preliminar...": Freud fala d o "sentimento de si viril do paciente"". Isto é ainda
retomado com insistência na página 186, em termos de "problema da castração".
Como esse problema se estrutura inicialmente para Freud? Eis o que ele diz: "Ele
pôde nessa época observar duas meninas, sua irmã e a amiga, urinando. Sua perspicácia
poderia tê-lo feito entender o estado das coisas pelo simples olhar, entretanto, ele se
comportou a esse respeito como [...I outras crianças d o sexo masculino. Ele descartou a
idéia de que via confirmada a ferida da qual o ameaçara Nania, e se deu a explicação
de que era o "popô da frente" das meninas. O tema da castração náo estava eliminado
por essa decisão; em tudo o que ele ouvia, via ali novas alusões". Podemos dizer que
há aí, em relação às significações? antes um "pleno demais" d o que um "não suficiente".
Com relação às significações fálicas: é realmente algo como "você quer, aí está": Quando
um dia foram distribuídos às crianças bastões coloridos de açúcar; a governanta, que era
inclinada às imaginaçòes [Phantasienl sinistras, explicou que eram pedaços de cobras
desmembradas. A partir de então, que um dia seu pai encontrara uma cobra em cima d o
feltro e a cortou em pedaços com sua bengala".

Opcào Lacaniana no 56/57 49 Julho ?O10


Freud acrescenta: "Ele estava, portanto, preocupado com a idéia da castração, mas
ainda não tinha nenhuma crença neiii angústia a esse respeito". O que Freud busca\la
cernir nessa diferença entre ter o pensamento da castração e não ter nem crença nem
angústia? Há aí uma lacuna sobre a qual podemos encontrar a solução conceitual na
distinção entre simbólico e imaginário. Aqui é preciso operar uni desenganche de nível
para chegar a organizar a convicção de Freud. Pode-se dizer que a estratificação d o
imaginário e d o siiiibólico é também a reescrita d o que em Freud aparece como esses
misteriosos "estratos d o recalcamento"2R,ao mesmo tempo simultâneos e opostos.
Notemos a esse respeito que, nesse mesmo episódio, conforiiie a teoria realista
que é a de Freud - e que já está em obra no episódio da sedução -, a castração é intro-
duzida por um incidente efetivo, real. Da mesma forma como ele recorre antes de tudo
a sedução peki irmã para explicar o que acredita ser uin desvio d o desenvolviiuento
normal da sexualidade, o que aqui anuncia a angústia de castração é igualmente uni
incidente, a saber, a ameaça que o Homem dos Lobos recebe de sua babá e que visa o
órgão sexual. É a uma inibição externa que Freud relaciona os problemas.
Leio a passagem que está em itálico e que é assinalada pelo próprio Freud coiiio
importante: "Ele conta que depois da recusa e da ameaça da Nania, renunciou logo ao
onanismo. A vida se.~ualque começava sob a direção da zona genital havia então su-
cumbido a uma inibição externa e havia sido reenviadapor sida i~zjlflrrência
a tima fme
anterior de orgunizaçãopré-genital" O importante aqui é constatar que o reinado da
doniinação genital está presente desde o início d o caso. A partir desse episóclio~o clesen-
volvimento do Homeni dos Lobos assume, se posso dizer, a aparfncia regressiva. Isso vai
ser constantemente retomado em seguida: "ele volta, ele não consegue ultrapassar aquilo
que é preciso ~iltrapassaretc..Temos, portanto, a cada vez, o sentimento de uma regres-
são, de uma retomada. A cada vez ele é como que remetido para trás. Há uma espécie de
barreira invisível que Freud não consegue nomear. Isso será retomado com o sonho dos
lobos nove meses depois. A cada vez há uma barreira invisível que Freud não nomeia.
Isso parece justificar que devamos conduzir aqui uma distinção caino aquela d o
simbólico e d o imaginário. A partir dessa página 188, vocês encontram essa anotação:
"nenhuma das posições d e libido criada foi completamente suspensa pela que a seguia".
Como vocês sabem, é o que se encontra no capítulo intitulado: "Erotismo anal e com-
plexo d e castração". Haverá o mesmo tipo cle observação, iiias ela será conduzida coiii
mais tambores. Mas, já na página 188, vocês encontrarão algumas pequenas anotações
que anunciam esse tema f~indamental:"Pelo contrário, ela subsistia ao lado de todas as
outras e lhe permitia uma oscilação incessante, que se revelou incompatível com a aqui-
sição d e um caráter fixado".
Esse capítiilo já vale como o anúncio do que segue; a saberl que em relaçiào à cas-
tração, o Homem dos Lobos tem o pensamento, mas nào tem a crença nem a angústia.

OpQo hcaniana no 56/57 50 Julho 2010


O Homem dos Lobos tem, portanto, uma relação com o fato. Há até unia relaqão com a
significação, quer dizer. que ele pensa, que coisas o faze111 pensar. Mas ao mesmo teiiipo
há um defeito de convicção ou de consentimento.

O sonho e a cena de sedução

Freud relaciona também esse episódio ao que é para ele a posição fundamental d o
sujeito que se mantém ao longo d o caso, a saber, a posição passiva. Essa posição passi-
va é realmente a base fundamental do caso. Sob essa base de passividade, vocés terão
inicialmente a fase de maldade e sadismo. Ora, Freud destaca bem que essa fase denota
uin desejo da criança de que batani nela, e que a chave desse sadisiiio é porcanto um
masoquisnio fundamental. Mais tarde, vocês terão exatamente o mesmo esquema em
relação ao sonho. Aí taiiibém: fugindo do que o sonho quer dizer, o sujeito vai negar a
angústia de castração adotando unia "posição viril''29que o próprio Freud nos convida
a colocar entre aspas. Ele a considera como uma virilidade de semblante, essa posição
sendo na verdade correlativa de uma homossexualidade inconsciente.
Esse sonho não é um fato como a sedução, mas há, entre a sedução e o sonho:
uma repetição dos mesmos pensamentos de Freud Vemos inicialmente uma passividade
que é aparente e intrínseca: ele parecia uma menina, ele era dócil etc.. E depois, na sedu-
ção e sob anieaça. O Hoinem dos Lol~ospassa em seguida a uma atitude sádica que é na
verdade masoquista. Há a separaçào entre seu comportamento aparente e sua posição,
não aparente, mas intrínseca. Aí está a sedução. Em seguida, com o sonho, os mesiiios
elementos adquirem um novo valor (virilidade e homossexualidade):

/ "Virilidade"

Passividade / - -

I
Sedugáo
Masoquismo

Sonho
Homossexualidade

Tento avançar na clireção da formalização clínica do caso, que me parece bastante


engenhoso se vocês comparam simplesmente o capítulo 3 e o 4 desse texto. O capítulo
3, dissemos, termina com a questão do pai. Retornaremos a isso quando tratarmos da
neurose obsessiva, mas lembro que aparece com todas as letras na página 198 da edição
francesa a anotação de Freud de que o que aparece como a maldade d o garoto é na

Opção Lacani:ina no j6/57 51 Julho 2010


verdade masoquismo: "Quando o p a i retornou, no final d o verão ou no outonol seus
acessos de raiva e suas cenas de furor adquiriram uma nova utiliza~ão.Contra a Nania,
eles lhe serviram como pedaços ativos sádicos; contra o pai, eles perseguiam intenções
masoquistas. Ele queria. pela representação de sua maldade, extorquir um castigo e gol-
pes da parte de seu pai L.. ]. Seus acessos d e gritos eram?portanto, verdadeiras tentativas
d e sedução. Conforme a motivação do masoquismo, ele teria também encontrado nesse
castigo a satisfação de seu sentimento de culpabilidade."
Consideremos agora a posição homóloga d o sonho em relaçào à sedução. Esse
sonho, vocês o têm em mente. E sabem que Freud conta com sua convicção de que por
trás desses sonho de oculta a causa da neurose infantil. Ele estabelece esse sonho coino
hoinólogo à sedução. Isto é inclusive mencionado também na página 189 da edição
francesa: "Quanto ao incidente que autoriza essa separação, este não foi um traumatisino
exterior, mas um sonho, d o qual ele despertou angustiado". O que aparece aqui em po-
sição de causa? É esse nó entre a posicão paterna e a castração. Freud nos fornece inclu-
sive um resumo sobre o conjunto da existência d o paciente: "O medo d o pai [Angst uorl
fora o motivo mais forte de seu adoecimento, e a atitude ambivalente em relação a todo
substituto d o pai dominou sua vida."30Sob o ponto de vista estrutural, d o que se trata?
Trata-se de fazer valer que esse sonho exprime uma angústia de castração intrínseca,
com a característica d o espanto, que faz com que a posição passiva do sujeito encontre
uma referência genital. Essa posição de passividade comporta um preço a pagar que se
relaciona ao que já havia aparecido antes como "o sentimento de si viril" d o sujeito. Isto
se relaciona ao gozo d o pai. Ainda que não seja imediatamente aparente, esse sonho. tal
como Freud o decifra, é: como goza o pai e como se pode gozar de ser gozado por ele?
Desta vez, isto parece dever ser pago com uma castração: aquela que já estava presente
na atiieaça da Nania.
Freud coloca o acento na descontinuidade entre o sonho e o conteúdo latente -
que é a cena originária -, mas qual é a conexão exata que faz passar de um para o outro?
Podemos encontrá-la no final da página 196 da e d i ~ ã ofrancesa. É em termos de ima-
gem que Freud coloca a questâo: "que imagem podia ter evocado uma aspiração sexual
que agisse à noite e que estivesse em condições de fornecer a esse ponto apavorante a
sarisfaçâo requerida?" A questâo central que conduz Freud nesse capítulo é saber que
imagem é essa. O que ele constrói como cena originária tem como função nos fornecer
um esboço da imagem operatória e constitucional desse esquema. Dizendo de outro
modo: ela vem no lugar de um operador: "Essa imagem deveria, a partir d o material da
análise, preencher uma condição; ela deveria ser susceptível d e fundar a convicção da
existência da castraçào. A angústia de castração foi em seguida o motor da transformação
de afetos."

Opç3o Llcaniana no 56/57 52 Julho 2010


Do imaginário ao simbólico

A leitura de Freud oscila nesse ponto preciso. Qual é o paradoxo que ele encontra?
De um lado, esse sonho deve efetuar o recalque da posiqâo fácil como homossexual, e
deve produzir també a ereção da virilidade de seiiiblante. Para Freud, a con\~icçãoda
existência da castração está no âmago desse sonho. Não devemos esquecer a funçzo
que Freud confere à cena originária, ao coito dos pais etc.. A imagem deve fundar a con-
vicção da existência da castração. Essa imagem nos é fornecida como devendo prov:ir e
engendrar no sujeito a convicção da castração, que é o motor que explica a noIra divisão
de sua existência. Mas, por outro lado, vocês sabem pela seqüência do texto que será
preciso que essa convicção a existência, que é um motor e uma causa, esteja ao mesmo
tempo situa1 no exterior, pois há uma rejeição simultânea de seu reconhecimento.
Há qiie distinguir aqui o imaginário e o simbólico. Algo se passa no campo da irna-
gem. Temos um conjunto de imagens: lobos com caudas cortadas; bastões de açúcar co-
loridos que são pedaços de cobras desinembradas etc.. I'odemos dizer que elas fundam
a convicção da castração no Homem dos Lol>os.Mas, ao niesmo tempo, há um nível em
que essa convicção não está fundamentada. Há algo que justifica que que distingamos
simbólico e imaginário, é o ponto de articulação que destaco. Por que nós prescindiiiios
dessa cena orininária? Porque não temos a idéia freudiana de que é uma imagem que
deve fundar a existência da castração. Nem as imagens. nem os sonhos, nem as múlti-
plas significações fundam para um sujeito a existência da castração. Se nossos relatórios
sobre os casos são evidentemente menos ricos e floridos, é porque já estão ordenados
pela função simbólica. Não pensamos, portanto, em produzir da mesma forma a imagern
fundadora. Não pensamos que isto se dá no âmbito da irnagem. Isto para para não dizer
que estamos bem adiante de Freud. Pelo contrário, nos seria necessário, nos relatórios
de casos, saber que talvez seja necessário refazer o caminho d o imaginário ao simbólico,
e não nos instalarmos de cara onde os elementos não aparecem mais d o que uina vez.
Retomarei esse ponto da próxima vez. Notemos que essa neurose obsessiva - que
se seguirá ao capítulo 6 -, tem seu enquadre em dois fenômenos de influência. A reli-
gião é de todo modo incutida nesse garoto por sua mãe. É a influência de sua mãe que,
em certo momento, o precipita na religião. Ele se desvencilha disso com uma facilidade
desconcertante quando um preceptor alemão lhe diz, quando tem dez anos, que tudo
isso é mentira. Então, rapidamente, sua convicção se desfaz. Na página 223, Freud diz
o seguinte: "Chegamos a isso sem nos ocupar da sintomatologia posterior da neurose
obsessiva, e é por isso que gostaríamos de falar de sua saída, negligenciando todo o
resto. Quando tinha dez anos, teve um preceptor aleinão que rapidamente adquiriu uma
grande influência sobre ele." Eis algiiém que se inscreve indiscutivelmente nessa série
d e pessoas que não deixarão de influenciar o Homem dos Lobos. "É bastante instrutivo

O ~ ã boa n i a n a no 56/57 53 Julho 2010


que toda a sua piedade bastante estrita se esvaeceu para jamais renascer depois que
percebeu e apreendeu, no decorrer das entrevistas com o mestre, que essa suhstituiçào
d o pai náo atribuía nenhum valor à piedade e nào acreditava em nenhuma verdade re-
ligiosa". Ainda assim: isso remete ao que diz respeito à convicção e ao que se esconde
nesse texto, a saber, a incredulidade assinalada por Freud desde o início. Há nisso uma
plasticidade impressionante: 'i\ piedade cessou com a dependência em relação ao pai,
que então era substituído por um novo pai, mais acessível".

(28 de janeiro de 1988)


Três descontinuidades

Eu tive de constatar, ao reler minha fala, que fora bastante claro. Isto me encoraja
a prosseguir através d o nevoeiro desse caso que, me parece, não conseguiremos dissipar
hoje. Podemos, no entanto, avançar um pouco na sua formalização. Retomemos então a
cronologia fundamental do caso, até conhecê-la de cor.
A primeira descontinuidade é marcada pela sedução, a segunda pelo sonho, e a
terceira pela religião, que por sua vez é objeto de sua educação pela parte da mãe, até
o surgimento d o preceptor alemão, que fará desaparecer essa referência. Temos, então,
três descontinuidades totalmente demarcadas e que são lembradas como cais no mesmo
plano apresentado no início d o capítulo quatro. A sedugão é objeto d o capítulo três; a
neurose e a obsessão são objeto d o capítulo seis:

Sedução Sonho Reliqião

No primeiro período d o caso, conio vocês sabem, somos reiiietidos - a partir do


sonho - à cena originária, e encontraremos o valor da cena com Groucha no capítulo
8. Tudo isso é igualmente datado. Vocês sabem que situar as datas nesse caso é um dos
grandes esforços de Freud nesse caso. A sedução se dá aos três anos e iiieio. O sonho.
aos quatro anos. A religião, com quatro anos e meio. A cena primária se situa na idade
de um ano e meio e aquela com Groucha aos dois anos e meio. Aí está a cronologia que
começamos a conhecer de cor:

I I I I I
Cena primária Cena Groucha Sedução Sonho Religião
1 ano e meio 2 anos e meio 3 anos e meio 4 anos 4 anos e meio
Retornei várias vezes a esse capítulo da sedução, pois é um capítulo ainda bastan-
te simples e que não tem a complexidade dos seguintes. Eles nos oferece urna espécie
de miniatura cla abordagem freudiana d o caso. Destaquei que nele Freud os apresenta
logo uma localização fundamental e que, na seqüência, terá repercussões, será ampliada
e renovada. Freud atribui à sedução o caráter de evento traumático, uma função com-
pletamente causal no desenvolvimento lihidinal, a saber, que o Homem dos Lobos se
encontra ein uma posição fundamentalmente passiva após a sedução. Quando tivermos.
mais adiante, o conheciinento da cena com Groucha, na qual o sujeito se apresenta, pelo
contrário, como ativo, se produzirá, in entrem&,uma espécie de inversão da perspectiva.
Isto apenas denuncia o papel de causa que Freud atribui à sedução, e isto como
desvio d o desenvolvimento libidinal. Essa sedução tem, portanto, uma função determi-
nante. Ela instala o sujeito eiii uma posição passiva, nias ao mesmo tempo produz - des-
taquei isso da última vez - um efeito inverso em outro nível. Ao mesmo tempo em que
essa sedução causa uma posição passiva, também provoca o surgimento de uma conduta
funclamentalmente inversa. Este é um ponto crucial. Temos, então, uma passividade fun-
damental e; ao mesmo tempo, uma atitude conqiiistadora, viril, sádica e agressiva que é
o inverso da primeira. Em um primeiro tempo, a sedução é a causa da posição passiva.
Ilepois, em um segundo tempo, há a atitude agressiva d o sujeito.
O motor dessa inversão, diz Freud, é: "o sentimento de si viril do paciente" - o
Selbstgejiihl como viril. Para Freud, o tempo da sedução é correlativo de uma ameaça de
castração proveniente da mulher, especialmente da Nania, para a qual o sujeito deslocou
a passividade em relagào a irmã. Isso nos indica que a essa cronologia pura e simples
d o caso podeinos acrescentar uma segunda cronologia, que não tem o mesmo sentido
da primeira. Nesse vetor, o sujeito encontra a ameaça de castração pela Nania, o que
faz com que a passagem da posição passiva a atitude agressiva se relacione ao estádio
sádico-anal:

,K
Estado sádico-anal Ameasa de castração pela Nania

Eu Ihes havia citado a passagem que indica: "a vida sexual, que começava sob a
direção da zona genital, havia sucumbido a uina inibição exterior e fora remetida por
sua influência a uma fase anterior de organização pré-genital". Aí está uma regressão que
Freud nos apresenta. Ela é apresentada duas vezes. Quando se trata da sedução que co-

O p ~ ã oLacaniana no 56/57 56 Julho 2010


loca o sujeito em uma posição passiva, ela é d e certo modo conipensada por uma atitude
agressiva. Temos aí o início de uma clivagem fundamental. A passividade fundamental
se converte em agressividade e o motor é o "sentimento de si viril". Eu já havia indicado
que poderíamos colocar esse "sentimento de si viril" na linha do falo imaginário.

al

1I
INVERSÃO

Passividade Aqressividade

Teinos um duplo comentário d o processo. Aqui, há uma clivagem entre dois pla-
nos, e é uma primeira apresentação da coisa. Há uma segunda, no plano do desenvol-
vimento. A ameaça de castração produz uina regressão. É o esquema de regressão que
produzi antes daquele da inversão. Ao mesino tempo em que isola uma constante que
é a passividade, Freud isola uma variável que é aquela d o agente da sedução desejado.
Primeiro, o agente da sedução é a irmã. Depois o sujeito desloca esse agente para a Na-
nia. Em seguida vem o pai, que ocupa então a posição de terceira variável e que é, nos
diz Freud, o último destino sexual do Homem dos Lobos.
Estudamos muito cuidadosamente esse estabelecimento feito por Freud, pois se
apresenta em pouquíssiinas páginas e é ali que conseguimos entender esse entrelaça-
mento da inversão com a regressão. No fundo. tudo isso é bastante simples. Nao coloca
eni jogo relações particularmente complexas, mas permite ver - este é um ponto decisivo
-que não há correlação entre o pai e a castração. A castração é trazida pela a ameaça da
mulher, e Freud só evoca o pai na série da passividade. Portanto, há um desejo de ordem
sexual dirigido a três objetos que, para ele, se inscreveiii eni série. Nesse nível, não há
relação entre a castração e o pai. É até bastante singular, pois, em relação ã Nania, há
uma correlação. Releio a passagem: "Tem-se a partir disso a impressão de que a sedução
pela irmã o impulsionou ao papel passivo e lhe conferiu um destino sexual passivo. Sob
a persistente influência dessa experisncia, ele passou a descrever o caminho que foi da
irmã ao pai, passando pela Nania, da atitude passiva em face da mulher à atitude passiva
diante do homem'"'. É aí que se encontra a evocação da relação entre o objeto de iden-
tificação e o objeto sexual, nos termos exatos que Lacan retomará mais tarde.
O que se passa n o tempo seguinte? É necessário o sonho para que o pai e a cas-
tração se conjuguem. O que a operação propriamente d o sonho marca para Freud, é
conjugar o pai e a castração. Retomaremos precisamente a cotnparaçâo entre esses dois
tempos: o da sedução e da ameaça de castração, e o d o sonho. pois são sitiiados por
Freud de modo totalmente simétrico. Veremos como esses dois esquemas, o da inversão
e o da regressão, se modificam em relação ao passo atrás que esse sonho apresent:i.

O p ~ ã oLacaniana 'n 56/57 57 Julho 2010


Primeiro ponto: é no sonho, destaqueinos isso. que se conjugaiii pai e castração.
No episódio de sedução, o pai não aparece de iiiodo algum como a Nania. Segundo
ponto: a partir d o sonho, Freud percebe o que podenios chamar de uma inodificação
no próprio estatuto da castração. Há a castração K,, isto é; a castração pelas inulheres, e
depois, muito claramente em Freud, a castração K,, isto é, aquela ligada ao pai:

* K,
anal

Na sedução, Freud nos situa uma castração bastante singular. Nós a destacamos.
Há uiiia ameaça de castração, o interesse d o sujeito pelo fato de que as menininhas não
são como os menininhos, o interesse pelos bastões coloridos de açúcar, pelas cobras
etc.: mas se há o pensaiiiento, Gedanke, nos diz Freud, não há a crença, Glaube. Freud
sitiia isso no registro do complexo de castração, mas ele mesmo nota uma clivageiii entre
Gedailke e Glauhe. Em seguida, a castração K, iriuda o estatuto da castração K,, pois
o sujeito adquire a convicção da realidade da castração. Anteriormente; havia apenas o
pensaniento da possibilidade da castração: "Quando o paciente mergulhava profunda-
mente na situação da cena primária, a coisa essencialiiiente nova que a observação da
relagào entre seus pais Ilie trouxe foi a convicção da realidade da castração cuja possibili-
dade já havia ocupado seus pensamentos anteriorrnente". Há aí uma clivagerii que Freud
tenta formular entre a possibilidade e realidade da castração. K, é possível, e K, é real.
Valorizo essa observação porque pensamos que uiiia das vias de saída para a con-
ceitualização d o caso é a distinção entre os registros ou as ordens. Freud também; há
clivagens ou estratos. Sem forçar as coisas, há pelo menos a castração K, e a castração
K,. Freud diz o seguinte na página 231: "ele compreendera durante o processo d o sonho
que a mulher era castrada! que ela tinha n o lugar d o membro viril uma ferida". Estamos
aqui rentes ao texto d e Freud e 1iá portanto uma modificação no estatuto da castração.
Terceiro ponto: o deslocamento da sedução para o sonho se traduz correlativa-
iiiente por uma transformação da relação com o pai, isto é, por u n a transfortnagâo
da interpretação d o que significa a passividade em relação ao pai. Essa passividade é
inicialmente interpretada segundo o regime do estádio anal. Há inicialmente unia inter-
pretação sádico-anal da relaçâo com o pai. Vocés vêem como funcionam esses estádios.
Os estádios freudianos funcionam coiiio esquemas de interpretação. Há uma passividade
em relação ao pai que ficará. A primeira interpreta620 dessa passividade é sádico-anal,
isto é: ser surrado, ser castigado, ser punido pelo pai. É uma interpretação da relação

Op@o Lacaniana n" j6157 58 Julho 2010


com o pai em termos de tnasoquismo. O que ein seguida o K, acrescenta é, com riscos
para o sujeito, uma interpretação genital da passividade em relação ao pai. O "ser punido
pelo pai" se transforma em "ser castrado como uma inulher". A atitude feminina eiii rela-
ção ao homem, que se torna a constante a partir d o iiiomento em que o pai é atingido,
encontra então, falando propriamente, a significaçâo da Iiomossexualidade. A partir d o
niomento em que estainos em K,, temos uma interpretação genital.
O que observamos? Aí está o quarto ponto e é aí que é preciso se orientar no
próprio texto de Freud. Será que essa nova interpremção da passividade se traduz em
termos de regressão? Ela se traduz não em termos de regressào, iiias em termos de
recalcamento. Isto quer dizer que Freud traia o sonho ao mesmo tempo como revives-
céncia dessa cena - acreditação, para o sujeito, da interpretação genital - e como que
cumprindo um recalcamento. A passilridade em relação ao pai, que já vimos se conver-
ter em agressividade, agora é recalcada. Na página 225, Freud fala d o "recalcamento da
homossexualidade liiper-intensa, realizado durante o sonho de angústia". Ele considera
que o recalcamenro dessa passividade, que tomou o sentido da hoinossexualidade, se
realiza no próprio sonho.
O que aparece como força motriz do recalcamento? Tínhamos anteriormenle o
"sentimento de si viril", e agora temos o que destaquei da última vez e que Freud ch;ima
de "libido genital narcísica". Trzica-se de unia série que já sicuei sob o registro do falo
imaginário: "a partir do narcisismo ameaçado ele criou a ~ i r i l i d a d e " ~
diz
~ , Freud. Isto
nos indica que o recalque é a nova versão da inversão e que não deve ser situado sob a
rubrica da regressão. Agora, no lugar dessa simples inversão, temos um recalque. O que
era a simples passividade adquire o sentido de homossexualidade. O que Freud chama-
va de "sentimento de si viril" é o que a partir de então passa a chamar de libido genical
narcísica. O que era o comportaniento agressivo d o sujeito. agora é a virilidade que ele
criou para si. E o que era a inversão, é agora, falando propriamente, um recalque:

Passividade Sentimento viril de si Inversão

Pai

Homossexualidade Libido qenital narcísica Recalcamento

A força motriz é retomada de diversos modos, mas sempre no mesmo sentido, pois
Freud falará eni seguida da virilidade narcísica clo sujeito etc. Temos então, realmente, um
operador constante cumprindo no primeiro tempo uma inversão que, no momento em que
Freud situa uma operasão de recalcamento no sonho, torna-se a libido genital narcísica.
O que se passa, então, correlativaiiiente, no plano do desenvolvimento libidinal?
A castração K, produz uma regressão a uma etapa ainda mais primitiva do desenvolvi-
mento, isto é, ao estádio oral:

o
oral anal
K, K,

Esse esquema é então retomado de diversos modos no plano do desenvolvimento


libidinal. O que era a agressividade, e que aparece entre a sedução e o sonho: aparece
aqui como atitude própria ao estádio anal. Isto se observa. A agressividade é o que cor-
responde ao estádio anal, e isto se observa na conduta do sujeito. Se Freud se põe então
a falar do estádio oral, não é por capricho, mas porque entre o sonho e a religião há a
fobia de animais, a angústia de ser devorado. É a partir disso que Freud conclui que há
uma regressão ao estádio oral.
Continuemos nossa colocação. Talvez possamos dar lugar ao capítulo sobre a neu-
rose obsessiva que evocatnos várias vezes. Faço algumas marcações a esse respeito:
"Pela terceira vez ele conheceu uma influência que modificou seu desenvolvimento de
modo decisivo. Quando tinha quatro anos e meio: [...I sua mãe decidiu fazê-lo conhecer
a história bíblica, na esperança de distraí-lo e edificá-10. Isto funcionou. A introdução
da religiào pôs fim ao período precedente, mas arrastou ao mesmo tempo a substituição
de sintomas de angústia por sintoiras obsessivos."" Há uma continuidade da influência
entre a fobia de animais e a religião. De certo modo, poderíamos dizer - mas é mais
dificil apoiar-se no texto para isso - que o que nesse moiiiento seria evocado, seria uma
castração 3, pois vimos que a K, conduz o sujeito ao estádio oral. Com efeito, ele só
chega a resolver a castração 2 por meio de uma fobia:

oral
fobia
anal
masoquismo
K, -- K* K3
Nesse terceiro corte deveria corresponder uma castração 3 que, por sua vez, deve-
ria alcançar o estádio genital. Ouso apenas situá-la deste modo. Com efeito, isto não é
totalmente coerente, pois não deveria mais ser uma regressão, mas uma adequação. I'ara
simplificar as coisas, podemos apresentar as coisas desce modo:

oral anal qenital


K, -- K K,

fobia masoquismo

Nesse ponto esperaríamos a correlação desse ulcrapassamento com a manifestação


da personalidade d o sujeito. Foi inclusive isso que ele ensaiou. Freud o diz na página
220: "O conhecimento da história santa lhe deu a possibilidade de sublimar a atitude
masoquista predominante ein relação ao pai." Reservemos esse termo sublimação para
sublinhar o que seria justamente o nível de pacificação simbólica. Trata-se, nesse c;iso:
de sublimar por meio de um relato e ao mesmo tempo por uma estrutura que é essen-
cialmente coletiva. Aprender a história bíblica é aprender um esquema fixo que é não
não apenas familiar, mas transindividual, transsecular, e em relação ao qual podemos
localizar Lima solução preparada para o conflito precedente.
Já fiz a observação de que não parecia que a história bíblica tivesse um efeito pa-
cificador sobre o Hoinem dos Lobos. Pelo contrário? ele se preocupou coin a existência
de um traseiro n o Cristo. É o que observa Freud: "Na dúvida da existência de um trasei-
ro no Cristo transparecia a atitude homossexual recalcada, pois a ruminação não podia
significar nada além da questão de saber se ele podia ser utilizado pelo pai como uma
mulher." Portanto, longe de resolver e fazer esquecer os problemas da fase anterior, a
história bíblica não os impediram de continuar presentes. O que o próprio Freud chama
de uma tentativa de sublimação fracassa, na medida em que ela é continuaiiiente falada
nos termos da fase anterior: "Si ele fosse o Cristo, o pai seria Deus. mas se Deus lhe
impunha sua religiào, não era um substituto correto d o pai que ele amara? e que não
queria que tirassem dele." O que é dito aí gentilmente é que o sujeito continua mesino
assim a ter o pai como objeto sexual, exatamente como nas fases precedentes. O objeto
da sul~limaçãoreligiosa é diferente, pois conferiria os meios de um ponto de referência
propriamente simbólico, uma vez que aqui o pai continua a ser um objeto para o sujeito:
"O amor por esse pai lhe deu perspicácia crítica. Ele resistiu a Deus, para poder perina-
necer ligado a seu pai." Aí se traduz o fracasso da sublimação do terceiro tempo: ele "na
realidade, protegia desse modo o antigo pai do novo."

O n i a n a no 56/57
~ b aO 61 Julho 3010
Teiiios então a religião como apelo na direção da pacificação siinbólica. Mas Freud
reconduz continuaiiiente as marcas pelas quais vemos o sujeito preso à problemática
anterior. É por isso, logicamente, que o capítulo 7 se intitula "Erotismo anal e castração".
Efetivamente, o vetor que eu fazia aparecer como partindo de K, ao genital, não se fun-
da. Em contrapartida, o que aparece como fundado é o vetor que vai de K, ao anal, o
que significa que a referência privilegiada à analidade não foi abandonada. Para dizê-lo
eiii termos de teoria dos conjtintos, temos duas aplicações, K, e K, no mesmo ponto:

oral anal qenital


K, -- K, K,

fobia masoquismo

Introdução ao capitulo 7 de Freud, "Erotismo anal e castração'

Freud aponta, desse modo. que o sujeito protege o antigo pai do novo. É por isto
que, longe de poder desenvol\er o acesso d o sujeito ao estádio genital de modo puro e
convincente, Freud deve tratar duas aplicações que incidem sobre o mesmo ponto. Isso
é construído d e modo muito simples. Há três grandes descontinuidades correspondendo
a três estatutos da castração, e depois há o problema d o capítulo 7, que nos mostra que
não abandonamos a problemática anterior.
Proponho-me agora a toinar esse capítulo 7, no qual Freud vai situar os probleinas
intestinais d o sujeito, e em que nos apresentará sobretudo uma gama extraordinária de
significações diferentes d o ohjeto anal. Compreende-se porque Lacan, em um determi-
nado momento' inscrevia o objeto como significante. O objeto, aqui, se deixa realiiiente
transcrever em termos de clivagem d o significante e d o significado. Há as fezes como
significantes, e vemos que esse mesmo significante pode receber diferentes sentidos em
diversos momentos do desenvol\~imeiitolibidinal.
Evidentemente, isso nào alcança o cerne de nossa tarefa, que é a questão d o cliag-
nóstico. Isto não resolve essa questão, pois a dificuldade de conexão com o estádio oral
-que se situa entre K, e K,- representa na melhor das hipóteses uma neurose obsessiva.
É o que exige que atribuamos ao capítulo 7 toda a sua importância. Esse capítulo, devo
lembrar. é também aquele em que encontramos a VenuerJung situada como diferente da
Verdrangung, assim como a alucinação do dedo cortado.
Se quiseriiios fazer funcionar aqui um esquema de aposteriori, é evidente que há
retorno d o E(, ao K,. Efetivainente. o que foi apresentado de modo enigmático ao Homeni
dos Lobos pela Nania, só foi entendido por ele a partir do sonho, e isto na medida ein
que o próprio sonho é o retorno de algo ainda mais antigo. Portanto, há realmente um
enredarnento. Por ora: ainda não utilizamos o que precede a sedução e o papel logica-
mente exercido pela cena com Grouclia, que é, de todo iiiodo, o que para Freud costura
esse caso. Em certo sentido, essa cena com Groucha abre para Freiid outra perspectiva
sobre o caso.

A partir do pai, chegaremos certamente a "Inibição, sintoma e angústia". I'or ora?pro-


curo seguir o texto do caso. Será que desde antes desse capítulo 7 o anal já aparecia como
onipresente? Pode-se dizer que sim. Quando chegamos a esse capítulo, percebenios que a
castraçào é continuamente acompanhada de modo subliniinar por sua interpretação anzil.
Por exeinplo, Freiid nota que entre os três anos e meio e os quatro anos e meio: ou seja, eni
ambos os lados do sonho cle angústia, o fato de esquecer seus calções adquire outro sentido
para o sujeito. Na época da sedução, esse fato tein um valor de desafio; em contrapartida,
com quatro anos e meio, isto se torna urna vergonha para ele. De uin lado e de outro desse
sonho de angústia cle castração no qual se realiza uin recalque, venios então o anal mudar
de valor. O anal aparece coiiio índice do que acontece: ainda que Freud recorra ao oral. Ele
situa a posição d o sujeito eiii sua relação com o objeto anzil. Nesse ponto, talvez possamos
ver o que Agnès Aflalo nos havia apontado, a saber: o valor de sintoma do véu.

Regressão

É certo que os estádios apareceiii a partir da regressào. Evidentemente, esse esque-


ma é singular: Freud formula que o sujeito, nesse ponto, regride de certo modo, mas que
essa regressão não o impede o desenvolvimento de continuar até um ponto que reenviii
ao oral. Certamente podemos tentar apreender o oral e o anal sob uma perspectiva dis-
tinta daquela da regressão. Nos textos de Freiicl isso se mistura todo o tempo. É difícil
apreender o oral puro; fazemo-lo sempre por retroação a partir da castração. Quanto à
idéia d e que isso se organiza retroativamente a partir da castração, vemos sua dificul-
dade no próprio texto de Freud. Pelo modo como se construiu, reinos realinente uma
idéia dos estádios a partir d o encontro d o desen\~olvimentocom a barreira da castraç5o
no sujeito.
O próprio texto é construído ein termos de tradução. Entre sedução e sonho,
vemos a passividade que se traduz inicialmente por "ser surrado pelo pai", para ser tra-
duzido por "sofrer a cópula pelo pai"'! A esse respeito, o que Freud chama de "genital"
funciona como doador de significações. Lacan, por sua vez? estabelece o causalismo do
significante sobre o significado para organizar o pai e a castração sob a égide d o que
vocês conhecem, o Nome-do-Pai e o falo como significado. Há uma oposição entre isso
e o momento em que ele fará do falo um significante simbólico. O que ele chamari de
0 se opõe, portanto, h metáfora NP -f O;mas, ao mesino tempo, Q resume a relação
entre o Nome-do-Pai e o falo imaginário. Não diremos simplesmente que Lacan mudou
quanto a esse ponto. Certamente as formulações mudam, mas esse 0 condensa e resume
a metáfora paterna. É por isso também que o 0 pôde, posteriormente, transformar-se
ein função.
(4 de fevereiro de 1988)

Traduçáo: Teresinha N. Meirelles do Prado

Notas

Texto publicado em Ia Causejwdienne. (72): 79-132, em no\.cmbro dc 2009.


1 Por ocasião de seu seminário de DEA sobre a clínica diferencial das psicoses, no período de 1987.1988, J-A Miller conaa-
gmu diversas sessões ao Homem dos Lobos. Encuntriremos nesia ediyão is se$& 1 a ;i 7. Wrias passagens tivcr;iin de
ser suprimidas, panirularmcnte as discussões com a platéia. Transcri~ào:JacquesPéraldi. Texto esiabelecido por Nathalie
Georges e Philippe Helleliais. com a conrribui@o dc Christinc Cartenon, Pascale Fan e Caroline Pauthc-Leduc. Texto não
relido pelo autor
2 Freud. S. (1981). "Extrair d e Ihisrairc d'iine néirrnsc infantile: CEilvres complltes. mll. NRF. Paris: Callimard, p.264.
3 C t Laca": J. (1998). "Resposta ao comentário deJean Hppolitc obre a Ifernonung de Frcud'. In Bentos. Kio de Janeiro:
iahar, p.383.
4 Frrud, S. (1981). "Extrair de iliisroire d'ilne névrose infantile: op.ci1.p.237.
e campo da fala c da linguagem em psicanálise". Opcit, p.265.
5 Lacan, J. (1998119531). "Fun~âo
6 Aliala; A. (2010). 'Rearalia~ãod o cdso do Homem dos lobos". Enrreuá"oi, (5).
7 I.;i<-a".!. (1998119531). ''Funçio e campo da fala e da linguagem eni psicanálise'. Opcit, p.312-13.
8 Freud, S. (1981). "Ertrait de I'histoire d'unc névroae infantile', opcit. p.231.
9 I i l a s relatadas por Katin Obholrer. (1981). Entrevistas com o Homem dosLobos Paris: Galiimard. Col Connaissance de
I'inconscicnt, p.63.
10 Idem. ibideni. p.87-90.
11 Freud. S. (1981). 'Fxtrait de I'histoiiç d'une névrore infantile: opcit. "264.
12 Ibid. p.248-49.
.
13 Ibid p.249.
14 Cf Lacan. J. I19521. .Seniinário sobre o Homem dos Lobos.. Notas de um ouvinte redigidas p0rJ.A. Miller Inédito.

O p ~ ã olacaniana n" 56/5i 64 !"lho 2010


15 CE lacan. J. (1998119531). 'Funcão e campo da fald e da linguagem ein psicanálise". Opcir, p.265.
16 IRMA: lnsráncia de Reflexão sobre o Marema Analítico.
17 N.T. Nas IriaQemde Giillirierl17261. na orimeiia oarada do orntaeonisi;i. , ,. os habitantes da ilha Lilliout discutiam inúmeras
í ~ ' 1 1 i ~ d cJ Ci n. i i C c1.i. o i n d o <.,iiio>e .~<.r~n.,lti<,ucbrii i r rx<i< pclr p n ~ r1.w
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18 Freud, S. (1981). "Extrai: de i'histoirc dgne névrose infanrile'. opcir., p.238.
19 Id, ibid., p.239.
20 Lacan, J. (1998119571). "De uma questão preliminar a todo traramento possível da psicose". Opcii.. p.577
21 Freud. S. "Errrair de i'hisioire d h n e nérrose infantile",ol>.cir.,p.174.
22 Id., ibid., p.205.
23 Poid., p.264.
24 Ibid., p.178.
25 Ibid., p.180.
26 lbid., p.l81.
27 Ibid, p.182.
28 lbid., p.257.
29 Ibid; p.257-259.
30 Ibid,p.193.
31 Ibid , p.188.
32 Ibid. p.205.
33 Ibid., p.217.
34 Ibid. p.132.

Opção lacaniana no 56/57

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