Você está na página 1de 5

REFERtNCIAS

DESCARTES, R. CEuvres et lettres. Paris: Gallimard (Pléiade), 1953.


FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, s/d.
FREUD, S. Totem und Tabu (1915). ln: C. W., FrankfurtamMain, Fischer Verlag, t. IX,
A negação como saída da ontologia'
1999.
FREUD, S. Die Frage der Laienanalyse (1926). ln: C. W., Franijürt am Main, Fischer
Verlag, t. IX, 1999, t. XIV. Monique David-Ménard
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992.
T radução:Antônio Teixeira e Güson Iannini
KOJEVE, A. L'Origine chrétienne de la science moderne. ln: Recueil d'articles, mélanges
Alexandre Koyré, v. 2: L'Aventure de 1'esprit, Paris, Hermann, 1964 (versão brasileira publi-
cada em Opção lacaniana, n. 28, São Paulo: Eólia, julho 2000).
' -eJ~
KOJEVE, A. Introduction à la lecture de Hegel. Paris: Gallimard, 1947. O objeto desta exposição é duplo: trata-se, inicialmente, de definir o que está
KOYRÉ, A. Entretiens sur Descartes. ln: Introduction à la lecture de Platon suivi de Entre- em jogo no texto de Freud sobre A negarão (Die Verneinung, 1925) em vista das
tiens sur Descartes. Paris: Gallimard, 1962. elaborações filosóficas da questão, que datam do mesmo período. Trata-se, em se-
KOYRÉ, A. Galilée et la révolution scientifique. ln: Études d'histoire de la pensée scientifique. guida, de caracterizar a reflexão sobre a negação como parte integrante de uma crítica
Paris: Gallimard, 1973. da ontologia e de uma reflexão acerca das crenças, e isso na própria filosofia. A esse
respeito, notaremos uma convergência entre Freud e Kant ou mais exatamente, uma
LACAN, J. Écrits. Paris: Seuil, 1966.
maneira interessante de reler Kant graças a Freud.
LACAN, J: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001.
Frege interessava-se pelos "pensamentos sem portador". Freud interessa-se
LACAN, J. Le séminaire, livre IL Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la pela negação porque esse operador gramatical e lógico parece caracterizar, de um
psychana!yse. Paris: Seuil, 1978. modo particular, a maneira como um sujeito "porta seus pensamentos''. Negar um
LACAN, J. Le séminaire, livre III: Les psychoses. Paris: Seuil, 1981. conteúdo de pensamento, num julgamento, é distanciar-se de um movimento pulsio-
LACAN, J. Le séminaire, livre VII: L'Éthique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1996. nal que nos habita, graças ao fato de que aquele que se exprime constitui-se como
sujeito do conhecimento que ele capta desse movimento. Distanciar-se, diríamo1, 6
LALANDE, A. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. Paris: P.U.F., 1988.
recusar. Mas as coisas são mais complexas. Pois essa recusa de alguma coisa em 1!
MARION, J. L. Sur la théologie blanche de Descartes. Paris: P.U.F., 1981. mesma, que toma a forma de conhecimento que dela se retira, não é uma recuea
MILLER,J. A. Elementos de epistemologia. ln: Percurso de Lacan, Rio de Janeiro: Zahar, 1987. absoluta. Há algo pior, na vida da alma, do que a negação. Há algo mais destruidor,
para si e para o outro: trata-se, então, de·excluir radicalmente aquilo que nos faz mal
MILNER, J. C. L'CEuvre claire - Lacan, la science, la philosophie. Paris: Seuil, 1995.
naquilo que, no mesmo golpe, torna-se o fora, hostil por constituição, naquilo que, em
REGNAULT, F. Dieu est inconscient. Paris: Navarin, 1985. si, não se admitirá mais de forma alguma, estando fora de questão que ele nos diga
respeito. O que Freud chama, no fim de seu texto, "o negativismo de tantos psicóti-
cos", é essa conduta de aparência lingüística incapaz de inventar o compromisso com
o "mal" que a negação, ao contrário, inventa. Excluir, dizer não a tudo, é fechar-se
numa recusa absoluta do mundo, que pode tomar a forma do mutismo ou de um
delírio paranóico, noa quais não eatão presentes os recursos desta pequena palavra

1
Publicado ori,tn&lm1nt1 n• R"'"' '' M,,.,.,,lf"' 11 ' ' M•Nl1, n. 2, 1vrll·Juln 2001, P11'111 PUF.
"não". Ao contrário, negar ou denegar - segundo as primeiras traduções francesas da Jean Hyppolite a lê-lo ao mesmo tempo em que ele. Os Escritos de Jacques Lacnn,
Verneinung-, é fazer um reconhecimento naquilo que fora abolido ao rejeitá-lo sem publicados em 1966, levam em consideração essa troca, tendo sido publicada 11
palavra nas trevas exteriores. "Você vai pensar que eu quero lhe dizer algo ofensivo, contribuição de Hyppolite separadamente em Figures de la pensée phi!osophiqm,
com essa idéia que me ocorre, mas não é nada disso". Tal é a estrutura do exemplo de tomo I, (PUF, 1971). A revistaLe Coq Héron publicou diversos comentários e tradu-
que parte Freud, que insiste no aspecto criador do recurso à linguagem, que verda- ções em 1975 e 1976; depois Jean Laplanche estabeleceu o texto nas edições da
deiramente forma o sujeito, quando ele sabe empregar a palavra "não" de tal maneira PUF em 1985. Em seguida, foi a vez de François RoustangeMonique Schneider se
que ela envolve e faz surgir de umá determinada forma aquilo que fora rejeitado. Ao voltarem aos enfrentamentos do texto.
contrário, os psicóticos, estes que dizem "não" a tudo que cerca, não conseguem jogar Freud parte de três enunciados que acentuam diversas características da nega-
com aquilo que eles recusam, tal como a negação permite. ção: o primeiro valoriza a violência, cometida e recusada, de uma idéia que ocorre ll
É de propósito que, ao apresentar a negação como acabo de fazer, ligando o um paciente: "Você vai pensar agora que eu vou dizer algo ofensivo, mas eu efetiva-
início e o fim do texto freudiano num curto-circuito, faço economia, por enquanto, do mente não tenho essa intenção". O segundo exemplo precisa que esta forma de
encontro com a problemática lógica do juízo. Freud, com efeito, encontra esta última desconhecimento supõe a atribuição a um outro, o analista, do conteúdo recusado
porque foi aluno de Brentano. Mas, ao mesmo tempo, o que ele tem a dizer sobre a que surge. "Você me pergunta quem pode ser essa pessoa no meu sonho. Não 6
negação vem de outro lugar: de uma reflexão sobre a proximidade e a diferença entre minha mãe". Essa dimensão de alteridade já estava presente no primeiro exemplo, >
o real exterior, entendido como aquilo que foi excluído de si, e o poder que a lingua-
gem tem, graças à negação, de retornar, através do saber, ao excluído. Não se trata de
mas aqui, a atenção explícita do analista dizia respeito à violência do movimento
pulsional que acedia à linguagem. j,
uma aceitação do que foi excluído, mas de uma possibilid~de de não ficar num "não
querer saber de nada" tão radical que nem mesmo se pode dizer.
O terceiro exemplo explicita o fato de que a negação é como que o emblema, a
marca de fábrica do conhecimento como distanciamento de si, desde que a palavri-
i
Para que esse dispositivo da negação possa efetuar-se, é preciso que o sujeito
possa desconhecer um conteúdo ao atribuí-lo a um outro: "Você vai pensar que[ ... ],
nha "não" esteja ou não presente no enunciado: "O que você tomaria como o mais I·
inverossímil em toda essa situação? O que está, na sua opinião, mais longe de voce? i
mas não, não é nada disso!"; e, por outro lado, é o mau juízo que detém o outro. A Se o paciente cai na armadilha e nomeia aquilo que ele menos acredita, desta maneira
reflexão freudiana abre-se, então, para uma problemática da alteridade e não sobre
uma ontologia. A negação não tem a ver com a questão do não-ser, mas com a
violência exercida contra si e contra o outro. Se ela encontra a lógica do juízo, sobre a
ele confessou, quase sempre, a coisa exata".
A partir daí, Freud teoriza as relações entre conhecimento consciente e recalca-
1
qual Husserl e Frege debatem, é porque a ligação e o desligamento que a cópula
efetua nos juízos afirmativos e negativos respectivamente são um dos atos pelos
mento por negação. Ele se exprime de uma maneira paradoxal ao dizer que a negação
mostra como "o intelectual se separa do afetivo". Essa formulação, embora pareça ser
ri
uma gênese abstrata e geral da inteligência, corresponde antes de tudo à atenção
quais as pulsões se estruturam. É também porque a idéia freudiana, segundo a qual
clínica ao conflito interno de um paciente em análise, e não à contemplação de um
o real é aquilo que excluímos de nós como algo tão ruim que dele nada podemos
nascimento do intelecto ... Conhecer um conteúdo intelectualmente é deixar persistir
saber, faz surgir sob nova luz a questão da dobra entre ser e discurso, que a lógica
o essencial do recalcamento, quer dizer, o movimento violento através do qual recu-
elabora ao distinguir o juízo de atribuição e o juízo de existência: é somente tirando
samos alguma coisa que nos atravessa. O importante aqui é compreender que a
o corpo fora que se capta um elemento de real. E esse corpo que se defende ao
pensar, é aquele que organiza a Verneinung. A negação não tem relação com o não- negação é uma formação de dupla face, radicalmente ambígua: conhecer é recalcar.
ser, ela tem relação com a diferença entre ser excluído e existir. Perguntar-se-á se Mas esse recalcamento que estanca o sujeito no desconhecimento é, ao mesmo tem·
ainda existe um denominador comum entre a abordagem filosófica da questão do ser, po, uma conquista, e isso de dois pontos de vista: por um lado se compara-se, como o
a abordagem lógica da questão da existência e a abordagem psicanalítica do real. final do texto diz, ao negativismo, que, ao aplicar-se a tudo não permite constituir um
Entretanto, essas divergências se definem no exame do que é um juízo. conteúdo determinado em torno do qual o sujeito se forma; e, por outro lado, porque
há alguma coisa de criador nessa recusa. Eis o ponto preciso que Jean Hyppolite ir4
Mas tomemos inicialmente o texto de Freud, que foi objeto, na França, de
reter ao insistir no fato de que a negação não é um simples equivalente (Ersa~) da
, numerosas traduções e de leituras não menos de numerosas: a primeira tradução data
exclusão, mas que ela é o sucessor (Nachfalge), que ela cria "a margem do pensamen·
de 1934; ela se deve a H. Hoesli e apareceu naRevuejhmçai.redep.ryc/Jrmaly.rt(7,2).
Mas foi Jacques Lacan que, em 1954, impulsionou as reflexões sobre esse texto que to". E11a obeervaçlo de Hyppolite teria permitido colocar uma novà que1tlo: todo
traz à luz a questão das relaçõea entre a paicani\liae e a filosofia, quando convidou pen11m1nto conc1ltual 6 1u1tentado pela negaçllo? Tal 6 uma d11 vi11 do ace110 a

~1.t:i.1.~-Lti_sn.ái._,.
"(.'

uma interrogação psicanalítica sobre o estatuto da filosofia, aquela que trabalhei em exterior? Freud não diz que a negação intervém nessa prova pela qual o aparelho d"
minha primeira obra sobre Kant: A loucura na razão pura (Editora 34, 1996). alma sai do regime alucinatório dos pensamentos ao elaborar uma decepção: para que
É a fim de especificar o estatuto ambíguo, porém criador, da negação como se instaure o princípio de realidade, é preciso que esse aparelho tire conseqüências <lo
emblema do trabalho do pensamento que transforma os desafios pulsionais da vida fato de que "foram perdidos os objetos que haviam fornecido anteriormente uma
da alma, que Freud chega em seguida a uma teoria do juízo sob suas duas formas: .$' satisfação real". Pode-se, não obstante, colocar essa questão .
juízo de atribuição e juízo de existência. Do ponto de vista da maneira pela qual o Seja como for, o que caracteriza essa abordagem freudiana da negação e seu
sujeito "porta" seus pensamentos, que é o ponto de vista da psicanálise, a ligação e o estudo do juízo é que Freud não faz jamais com que a negação seja referida direta-
desligamento que os juízos de atribuição positivo e negativo respectivamente efe- mente a um não-ser. É no interior das ilusões próprias aos fantasmas, isto é, aoN
tuam concernem justamente ao destino disso que é excluído: dizer "S não é P" é traços em nós das primeiras satisfações que ignoram a diferença entre desejo e reali-
·separar um sujeito lógico de um predicado, o que quer dizer, por intermédio de um dade, que a negação vem se instaurar.
enunciado que diz respeito ao mundo, separar de si alguma coisa, ao passo que dizer É, então, como ele sublinhava a propósito de um dos exemplos citados, nos
"Sé P" é admitir em si alguma coisa, ato pelo qual o si como espaço interno é consti- quadros de uma problemática das alucinações, das ilusões e das crenças que se
tuído. Aqui, Freud joga explicitamente com a etimologia do termo Urteilen, julgar,
elaboram no pensamento, e mesmo na lógica do pensamento, que Freud considera a
que quer dizer separação originária. Se o que está em questão pode ser um julgamen-
função da palavra "não". É nesse ponto preciso que seu estudo das crenças encontra,
to afirmativo, ele se assenta sobre a base dessa atividade judicatória que é, inicial-
sem procurar, o estudo, feito por Kant, das ilusões ou delírios do pensamento em
mente, uma separação. Do ponto de vista da vida pulsional que se elabora no pensa-
metafísica, e particularmente nos raciocínios que concernem ao mundo. É nesse
mento lógico, só há reunião de um sujeito a um predicado como variação sobre um
ponto também, das crenças do pensamento, que Kant, em 1781, avança bastante na
poder originário de distinguir, isto é, de separar isso daquilo. Ora, a negação é um
idéia de que toda tese metafísica sobre a realidade dos objetos exteriores a nós é uma
destino desse desligamento originário, uma possibilidade de limitar seus efeitos.
crença que regula a negação.
A construção lógica do texto de Freud é complexa: passa-se da questão da
Comecemos pelo primeiro ponto: o que aproxima Freud de Kant é que um e
negação à do juízo por duas razões conjugadas: a primeira é que a negação é a "marca
outro apreendem a função da negação nos juízos, embora ambos se interessem por
registrada" do recalcamento que se instaura pela entrada em ação da inteligência.
algo diverso da simples forma judicatória do pensamento tomada em si mesma. Freud,
Freud se autoriza então a passar da questão da Verneinung à sua teoria do juízo em
nós o vimos, se interessa pela maneira como um sujeito porta seus pensamentos e,
geral, com çm sem negação;
mais precisamente, como o sujeito do conhecimento se forma ao inventar um com-
O segundo fio lógico que liga os parágrafos sobre a negação aos parágrafos
promisso acerca daquilo que ele recusa em si-mesmo, o que supõe o campo expe-
sobre o juízo é essa relação entre desligamento e negação (que é um destino ulterior).
rimental da transferência que faz aparecer a negação como uma certo arranjo dn
Üterceiro fio concerne ao problema da negação no juízo de existência, e não mais no
alteridade, no outro e em si-mesmo. Kant, ao submeter a lógica formal a um novo
juízo de atribuição: do ponto de vista do jogo das pulsões, pronunciar juízos de
exame, pergunta-se em que caso a negação permite formar o objeto real (conflito
existência não é simplesmente falar do mundo ou pronunciar-se sobre a referência de
real), e em que caso a negação perde de vista a formação de um real (conflito
um enunciado, é tentar reencontrar nà realidade exterior o objeto de satisfação cujo
dialético). Em nenhum dos dois casos a negação tem função ontológica: o conflito
traço se inscreveu em nós e, verdadeiramente, constituiu nossos desejos - pelo rein-
vestimento desse traço - em sua especificidade. A negação é requisitada para dar real, introduzido desde 1763, representa a maneira pela qual se enuncia no diecur•
forma, por um lado, à esperança de redescobertas do objeto e, por outro lado, à so uma operação algébrica que inventa, no conflito das forças, uma nova forma de
desilusão pela qual nós saímos da esperança alucinada de reencontrar o objeto que negação: esta última não dilacera o ser, como diria Frege, mas determina um real
decretávamos como nosso antes mesmo de todo questionamento sobre sua disponi- como o correlato objetivo de uma operação que escreve"= O" no pensamento. O
bilidade. O problema que Freud explicita mal, no que concerne à negação em sua movimento de um navio de leste a oeste é de 20 milhas; depois retorna a mesma
relação ao juízo é o seguinte: seria a negação que nos faz diferenciar o objeto desejado trajetória de 20 milhas. O resultado é nulo, mas a determinação desta nulidade
que trazemos em nós e aquele que ali se encontra - o objeto que me atrai não é constitui o deslocamento como real. É a isto que se opõe, na "dialética transcenden-
exatamente aquele que eu aspirava reencontrar- a mesma negação que nos permite tal", o que Kant chama de conflito dialético ( Crftica da razão pura, dialética trans-
voltar, pela invenção de uma "margem do pensamento", àquilo que havíamos excluído, cendental, sétima seção. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 441 sq.; W8rJuu1gaJ"
separado de nós mesmos, ao rejeitá-lo naquilo que se tornou, por isso mesmo, o IV, p. 468 sq., Surkamp). Contrariamente ao que se passa no caso das grandez111
t
,,
,,.
·~
negativas, o jogo da negação não constitui nenhum real, .ela não mais faz do que modo algum ser dado enquanto coisa em si e, por conseguinte, nem como infinito
acomodar a miragem, a alucinação (BLENDWERK). nem como finito quanto à grandeza" (p. 445). É, então, desde que numa oposição de
Trata-se para Kant de mostrar que desde que dois juízos sejam opostos um ao dois juízos, um não se limita a contradizer o outro, mas diz alguma coisa a mais que o
outro e que eles parecem ser contraditóriOs do ponto de vista da lógica formal, eles requerido pela contradição, quer dizer, desde que se arrisca, mesmo que a contra-
tempo, a decidir sobre a existência, que a negação é interessante. Na crítica que Kant
podem, não obstante, ser ambos falsos, porque sua oposição não constitui nada de
real; ela não chega a captar o que quer que seja na malha de uma operação intelectual, faz do formalismo da lógica, sua teoria da negação é um instrumento essencial. É em
contrariamente ao que se passa no "conflito real", chamado de real exatamente por torno dela, do estudo de seu poder e das ilusões das quais é capaz, que se define esse
causa deste recurso. distanciamento da ontologia que tem por nome filosofia transcendental. De uma
maneira diferente da de Freud, a negação e o juízo de existência estão mutuamente
Kant começa com um exemplo no qual a "condição inadmissível" que torna vã
comprometidos, em Kant, mas nos dois casos a questão da existência supõe um
a oposição de dois juízos é banal, e não ainda transcendental: "Se alguém disser:
atravessamento crítico do regime alucinatório do pensamento.
Todos os corpos cheiram bem ou mal, verifica-se ainda uma terceira possibilidade,
que é a de nenhum deles cheirar a nada (não ter cheiro), e então as duas proposições De uma outra maneira ainda, o pensamento de Freud e o de Kant sobre a
contrárias podem ser falsas" (CRP, B 531, p. 444) 2 • Não se trata, então, de uma negação, ou antes, sobre as negações, se cruzam. Esse plural está presente aqui para
verdadeira contradição. Mas desde que se trate de uma verdadeira contradição, esta lembrar que a Verneinung não.é a única maneira, em psicanálise; de inventar um
compromisso com aquilo que ataca ou ameaça a alma, a Seele. Freud diferenciava,
>
não tem nenhum poder ontológico ou, no sentido transcendental, determinante: "se
eu disser que todos os corpos são odoríferos ou não são odoríferos (vel suaveolens vel como se sabe, a psicose, a neurose e a perversão como três maneiras de negar a
diferença dos sexos: dito de outra forma, a aceitação, por nosso pensamento e nossa
j,
non suaveolens), os dois juízos são contraditórios entre si, e só o primeiro é falso, mas
o seu oposto contraditório, ou seja, alguns corpos não são odoríferos inclui os corpos
que não cheiram absolutamente nada" (CRP, B 531, p. 445). O exemplo seguinte,
percepção, da diferença dos sexos, nos obriga a sair da onipotência alucinatória de
nossos desejos. A psicose é uma recusa absoluta, uma l/erwet;fitngdo que é inad-
i
que concerne aos raciocínios sobre a Idéia de mundo, explicita o desafio transcen- missível - Jacques Lacan traduziu este termo pelo vocábulo forclusão-, a pervcr· I·
i
dental: quando é que um juízo negativo - ou negação de um termo de uma são é uma negação ou um desmentido do inadmissível, que em alemão se diz
proposição, pois, para o que interessa a Kant, esse não é o ponto decisivo - deter- Verleugnung, e a neurose nega o que perturba, no sentido largamente desenvolvido
mina alguma coisa e como é que a ele falha em determinar o "alguma coisa"?
"<2!iando digo, pois: o mundo, quanto ao espaço, é infinito ou não é infinito (non est
precedentemente da Verneinung. Em todas essas formas de experiências, a manei-
ra de negar produz formas de certeza, de crença e, por meio disso, de diferentes 1
infinitus), se a primeira proposição é falsa, deve ser verdadeiro seu oposto contra-
ditório, a saber, o mundo não é infinito" (p. 445). Kant acrescenta apenas que esta
relações com a realidade.
Ora, convém nos espantarmos de encontrar em Kant, quando ele reflete sobre
i
dicotomia formalmente bem formada não tem nenhum poder referencial ou onto- as ilusões e delírios ( Wahn) que habitam o pensamento humano desde que ele racio ..
lógico: "Desse modo só suprimiria um mundo infinito mas não poria outro, ou seja, cína acerca da relação do pensamento com o real exterior, o mesmo tipo de distinção
finito" (CRP, B532, p. 445). que aquela que Freud trabalha para caracterizar as diversas formas de negação di110
No segundo exemplo, a oposição não é uma contradição, mas o que está em que chamamos de castração. Leiamos o texto da primeira edição da Critica da razio
jogo na constituição de um real é decisivo, e, paradoxalmente, é no càso em que o pura, intitulada Paralogismo da idealidade. Nesse texto, Kant estabelece a realidade
desafio do real falha (comporta um efeito de ilusão ou de alucinação) que o filósofo dos objetos no espaço. Mas ele não procede por demonstração, ele critica do interior
faz esse problema aparecer: "Porém, se disser que o mundo é ou infinito ou finito as diversas posições metafísicas que negam a realidade dos objetos no espaço. Para
(não-infinito) poderiam ser ambas falsas. Com efeito, vejo então o mundo determi- distinguir o idealismo dogmático - Berkeley, por exemplo- do idealismo problom,tl•
nado em si próprio, quanto à grandeza, porque na proposição oposta não só suprimo co - Descartes -, ele emprega dois termos distintos: "O idealisto dogmtllt°aJ 1erla
simplesmente a infinitude e, conjuntamente, talvez toda a sua existência própria, aquele que nega (leugnet) a existência da matéria, o idealista cpltcoaquele a põe em
mas também acrescento uma determinação ao mundo como a uma coisa real em si dúvida (bezweifClt), pois a considera não demonstrada" (Suhrkamo Taschmhuch,
mesma, o que pode ser igualmente falso, se na verdade o mundo não devesse de tome IV, p. 381; CRP, A 377, p. 355). As duas teses metafísicas são apresentadaa
explicitamente como crenças ( Glauben) das quais se trata de sair por uma via diver·
2
Sempre que necessário, a versão portuguesa da Critica da razllo pura publicada peln Cnlouate sa da demonstração; o erro dessas teses, com efeito, é pensar que a relação do
Gulbenkian foi ligeiramente modificada para adcquar•1c à vcrallo citada pola autora [N. do T.] pensamento com o real poderia ser objeto de uma demonstração. Trata-se, entlo,
de sair dessas crenças por uma "colocação fora de dúvida" da realidade dos objetos no
espaço, já que a realidade desses objetos é exterior apenas à nossa representação, e
não em si. Esses textos têm um grande alcance, pois realizam dois atos decisivos ao
mesmo tempo: caracterizam as teses metafísicas como crenças forjadas por negações,
e, porque o filósofo aceita caminhar no interior das ilusões para encontrar o caminho
que permite delas sair, eles definem a posição metafísica do próprio Kant como um
certo tipo de crença, de evidência aceitável, porquanto soube encontrar o motivo das Verdade e assentimento: o impasse de
ilusões precedentes. É a crítica das ilusões que torna a verdade do idealismo trans-
cendental coesa do realismo empírico. Wittgenstein diante de Freud
O idealismo dogmático e o idealismo problemático ou cético erram ao opor a
certeza da intuição do sujeito pensante por ele mesmo à incerteza das asserções sobre
Frederico Zeymer Feu de Carvalho
a realidade das coisas exteriores. Se o sujeito só se apresenta intuitivamente a si
mesmo através do tempo, essa pretensa disparidade da percepção de si e da percep-
ção das coisas exteriores cai por terra. O sofisma comum a Descartes e a Berkeley é o
de supor que haveria um privilégio da relação a si como númeno sobre a relação às·
coisas exteriores. Mas porque o tempo é a forma do sentido interno e o espaço a do As observações de Lacan acerca do tratamento dado por Wittgenstein à que.1-
sentido externo, a certeza da realidade de si-mesmo e a dos objetos no espaço são da tão da verdade explicitam o impasse do filósofo vienense frente à novidade freudianu.
mesma ordem; as duas são imediatamente certas já que o espaço e o tempo estão em Sabemos q_ue o primeiro contato de Wittgenstein com a obra de Freud teria ocorrido
nós e não nas coisas. O texto multiplica os termos a descrever que o pensamento pode pouco depois do ano de 1919, logo após a conclusão do Tractatus. "Eu tive um
admitir nele como real (annehmen), deixar valer (gelten lassen), concordar (gestehen), sobressalto de surpresa, teria dito Wittgenstein, ali estava alguém que tinha algo 1.1
e trata-se de deixar valer o testemunho (Zeugnis) da percepção ao compreender em dizer". Pelo resto de sua vida, "ele considerou Freud um dos poucos autores digno"
que condições transcendentais ele se produz, ao invés de disparatar sobre uma su- de serem lidos" e costumava referir-se a si mesmo como um "discípulo de Freud e um
posta necessidade de demonstrar a existência de coisas exteriores. Esse caminho seguidor de Freud" (LC, 73) 1• É ainda esse prazer da leitura de Freud que será
através das formas boas e ruins de negação da existência da realidade exterior; essa evocado em 1951, ano de sua morte, em uma de suas últimas anotações: "Freud
idéia de que não se vai diretamente por meio de provas ao estabelecimento do que é escreve admiravelmente e é um prazer lê-lo, embora ele não seja nunca grande cm
a realidade, mas que é preciso caminhar através das tentações de ilusões, que nada sua escritura" (VB, 87). Esse contraste entre o prazer da leitura e a condenação de
mais são do que negações mal situadas, para encontrar o justo jogo do negativo que, sua escritura sintetiza a ambigüidade característica de Wittgenstein diante de Freud.
voltando-se sobre as primeiras exclusões, coloca fora de dúvida a realidade dos obje- É justamente por nos sentirmos mistificados pelo prazer de sua leitura que se faz
tos no espaço, faz pensar sobre o que poderia ser, no cruzamento entre o pensamento necessário, segundo Wittgenstein, o trabalho de esclarecimento filosófico, manten·
de Kant e o de Freud, um novo pensamento da relação indireta dos homens à reali- do-se em suspensão o assentimento a ser dado à explicaçãofreudiana. "Para uprendar
dade que acomodam as negações que eles dispõem. com Freud, dirá Wittgenstein, é preciso manter uma atitude crítica"; mas - aqui
intervém a objeção- "a psicanálise em geral impede isto" (LC, 74). O argumento
wittgensteiniano repousa, assim, sobre o paradigma da crítica vienense de Fr1ud, 10
qual ainda podemos identificar Karl Kraus e Popper: a impossibilidade de se entrar
em contradição com o discurso psicanalítico que faz, da questão do assentimento l
explicação psicanalítica, um impasse insolúvel.
Mas a novidade freudiana escapa a Wittgenstein, como o pássaro que se quer
tomar pela cauda, no ponto mesmo onde ele pensava colocar-lhe as mãos. De fato,

1
Em relação a Wittgcn1tcin utilizaremos, nas referencias bibliogrdficn1, 111 abrcvlnturu J4
conaagradu à 1un obra 111uld1 da paalnnçllo .

..... f ·+

Você também pode gostar