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Nº 59 - JULHO 2023

ESTUDOS DE
PSICANÁLISE
ISSN - 0100-3437

Publicação do
Círculo Brasileiro de Psicanálise

Estudos de Psicanálise Rio de Janeiro - RJ n. 59 p. 17 – 162 julho 2023


REVISTA

ESTUDOS DE
PSICANÁLISE

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Os artigos são de total responsabilidade dos autores.

F ic ha C ata l o g r á f ic a

ESTUDOS DE PSICANÁLISE. Rio de Janeiro: Círculo Brasileiro de Psicanálise,


n. 59, jul. 2023. 162 p.

Semestral. ISSN: 0100-3437 – 28 x 21cm

1. Psicanálise – periódicos
Revista Estudos de Psicanálise
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EDI TORES DA RE VISTA EST UD O S DE P SIC ANÁL ISE


Anchyses Jobim Lopes (CBP-RJ)
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REPRE SEN TA N T E JU N TO À ART IC UL AÇ ÃO


DAS E N T I DADE S P SIC ANAL ÍT IC AS BR ASIL EIR AS
Anchyses Jobim Lopes (CBP- RJ)
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Círculo Brasileiro de Psicanálise
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Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul – CPRS


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São José Ed. Centro Médico Odontológico
49015-130 - Aracaju - SE
Tel.: (79) 3211-2055
E-mail: cps@infonet.com.br
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Sumário
15 Editorial

AU TOR A C ON V I DA DA

17 Da vida de sites a um sítio na Serra


From the Life of Websites to a Place in the Mountains
Ninfa Parreiras

ARTIGOS

25 Freud e os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” –


interlocução com a primatologia em “Diferentes”, de Frans de Waal
Freud and the “Three essays on the theory of sexuality” –
dialogue with primatology in “Differents” by Frans de Waal
Anchyses Jobim Lopes

41 Supervisão no Núcleo de Estudos Psicanalíticos


da Infância e Adolescência
– NEPsI: ofício e transmissão da Psicanálise
Supervision at the Center for Psychoanalytic Studies
of Childhood and Adolescence
– NEPsI: the craft and transmission of Psychoanalysis
Anna Lucia Leão López

47 Breves considerações acerca do “Recalcamento” em Freud


Brief considerations about “Repression” in Freud
Cássio Eduardo Soares Miranda

55 O corpo e a subjetividade do sujeito


The body and subjectivity of the subject
Déborah Pimentel

67 A escrita do feminino em Dias de abandono, de Elena Ferrante


The writing of the feminine
in “The Days of Abandonment”, by Elena Ferrante
Clarissa Ribeiro Vicente
Elizabeth Samuel Levy

75 Os 125 anos da psicanálise e a ética do psicanalista


125 years of psychoanalysis and the ethics of the psychoanalyst
Eliana Rodrigues Pereira Mendes

83 O concern e a liquidez das relações humanas:


uma leitura winnicottiana
Concern and the liquidity of human relations:
a winnicottian reading
Luan Sampaio Silva
Janari da Silva Pedroso

97 Teoria dos sistemas de justificação (JUST)


e alguns pressupostos psicanalíticos: reflexões transdisciplinares
Justification Systems Theory (JUST)
and some psychoanalytic assumptions: transdisciplinary reflections
Márcia Gralha
Paulo Roberto Ceccarelli
109 A supervisão na clínica do curso do NEPIA-CPRS
Supervision in clinic at the NEPIA-CPRS training course
Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski

119 As (des)construções identitárias:


reflexões sobre os povos indígenas na Amazônia
Identity (de)constructions: reflections on indigenous peoples in the Amazon
Maria do Rosário de Castro Travassos

127 O desenho e a clínica psicanalítica com crianças e adolescentes


Drawings and the psychoanalytic clinic with children and adolescents
Noeli Reck Maggi
Paola Giacomini Fachini

135 Considerações sobre a sensibilidade do cuidado poético-analítico:


coisa versus humano em pandemia
Considerations about the sensibility of the poetic-analytical care:
thing versus human in pandemic
Ricardo Azevedo Barreto

141 A atemporalidade do inconsciente entre restos


e crocodilos que ainda vivem
The timelessness of the unconscious among remains
and crocodiles that still live
Scheherazade Paes de Abreu

151 Presos na rede:


efeitos do virtual na subjetividade contemporânea dos adolescentes
Trapped in the net:
effects of the virtual on the contemporary subjectivity of adolescents
Vanessa Campos Santoro

NORMAS DE PUBLICAÇÃO

157 Normas de publicação

161 Roteiro de avaliação dos artigos


Este ofício de ser mulher
requer cuidar de tudo que nossa mullherice exige.
[...] somos tantas que às vezes rimos sós
diante do matreiro das diversidades.

Stetina Trani de Meneses e Dacorso em Arte contemporânea: a mulher nos poemas de Elisa Lucinda
Estudos de Psicanálise n. 29, setembro 2006.
Editorial

Este número da Estudos de Psicanálise exemplifica bem sua missão. Iniciada e mantida há 54
anos, abrange vários estados do Brasil. Trata-se de uma publicação que traz autores das socie-
dades filiadas ao Círculo Brasileiro de Psicanálise, além de outras instituições. A Estudos 59
traz artigos originários de Minas Gerais, Pará, Piauí, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Sergi-
pe. Além da abrangência geográfica, mais importante é o alcance teórico clínico. Ao contrário
de outras federações psicanalíticas brasileiras, o CBP caracteriza-se pela completa autonomia
administrativa entre suas filiadas e ampla diversidade de leituras e práticas psicanalíticas.
Freud e sua obra unem o todo. Tanto no ofício psicanalítico quanto nas diversas leituras
que se seguiram da obra freudiana. Atendo-se apenas aos nomes mais conhecidos, nos textos
publicados há Ferenczi, Klein, Winnicott, Lacan. Herança da diversidade teórico clínica dos
fundadores do primeiro círculo em Viena em 1947 e do primeiro do Brasil, no Rio Grande do
Sul, em 1956. A mesma diversidade une os vários temas abordados nestes artigos. Muitos com
temas psicanalíticos universais, ali outro fundamentado diretamente na experiência clínica de
duas colegas, lá um sobre os povos indígenas da Amazônia e até um que sai da exclusividade
do homo sapiens e o compara com seus primos primatas. O lançamento de um novo número
da Estudos é sempre um dia de comemoração.
Mas o luto também tem de ser celebrado. Cada número da Estudos rememora um nome,
seja um autor muito difundido da psicanálise, seja um nome de peso na história do Círculo
Brasileiro de Psicanálise, seja um colega que se foi há pouco e deixou saudade em seu círculo.
A Estudos 59 homenageia Stetina Trani de Meneses e Dacorso, colega do Círculo Brasileiro de
Psicanálise – Seção Rio de Janeiro, que nos deixou em maio de 2023.
Todos os seres humanos são únicos. Mas alguns são mais. Stetina, há mais de duas déca-
das, era membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro. E a partir
dele presidiu o Círculo Brasileiro de Psicanálise entre 2010 e 2014. Mas era mineira e nesse
estado viveu e trabalhou toda a sua vida. Embora entre os cariocas haja controvérsias a qual
estado a cidade de Juiz de Fora realmente pertence. Seu lado mineiro era comprovado com a
assiduidade anual, durante décadas, às jornadas do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. E
sua por sua intensa participação, como docente e organizadora, na seção psicanalítica da SO-
BRAP (Instituto Brasileiro de Psicanálise, Dinâmica de Grupo e Psicodrama – Regional Juiz
de Fora), com a qual teceu várias pontes com o CBP-RJ.
Além do vasto conhecimento teórico e da capacidade ímpar de saber transmiti-lo, Ste-
tina jamais se afastou da clínica. Durante cerca de um ano, há mais uma década, aos sábados
tínhamos sua presença em uma supervisão clínica coletiva. Não foram gravadas, mas ficaram
consciente ou inconscientemente em todos que assistiram. Ficou em nossa memória a radica-
lidade de Stetina quanto à falta de pressa que se deve ter na clínica. Um bordão seu repetido
nas supervisões: “isto vai aparecer daqui a uns seis ou sete anos”.
Homenagear Stetina é lembrar sua forte personalidade, sua expansividade, seu bom hu-
mor e sua vasta experiência psicanalítica.

Anchyses Jobim Lopes


Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise
– Seção Rio de Janeiro
AU T O R A C O N VNinfa
I DA DA
Parreiras

Da vida de sites a um sítio na Serra


From the Life of Websites to a Place in the Mountains
Ninfa Parreiras

Resumo
Um fragmento de um caso clínico é apresentado para se pensar os fracassos do analisando e da
analista. Intercorrências na vida social e profissional do analisando levaram a uma interrupção
da análise. Haveria análise sem fracassos? Ficou uma escrita de textos livres do analisando e a
gentileza da analista em ler e comentar os escritos.

Palavras-chave: Fracasso, Perdas, Escrita como elaboração.

Há (o) fracasso na clínica? Ah! O fracasso na das quais ela é capaz, para poder, enfim, se
clínica... Não somente há, como também nos entregar à tendência ao retorno ao não ser.
traz o espanto e o assombro da polissemia: Por isso Freud acrescentou que
Ah! Quantos fracassos traz o psicanalisar! “o organismo deseja morrer apenas do seu
Será que haveria uma clínica sem fracas- próprio modo”. A expressão “morte natural”
sos? A psicanálise lida com as perdas, os in- parece implicar a percepção de que há algo na
sucessos de quem é analisando e os insuces- vida que aspira a essa morte que brota dela
sos da analista. Isso se revela na transferên- mesma sem nenhuma outra interferência ex-
cia, na mudez, no silêncio. Frustração, falta, terna.
ansiedade, sonhos e pesadelos.
E há o fracasso da palavra, do não nomea- Fracasso deriva de uma mistura do ita-
do. Do estranho sentimento que angustia e liano das palavras latinas frangere, “quebrar”
dói. O fracasso de não falar, de não pronun- e quassare, “sacudir, chacoalhar, bater repe-
ciar a palavra, do indizível. De não saber no- tidamente” e, por extensão, “ameaçar”. Essa
mear os sentimentos. origem etimológica da palavra estaria muito
A psicanálise vai investigar esses tijolos ligada ao propósito da clínica da psicanáli-
partidos e rotos das muitas casas que somos se. Quebrar e romper amarras e opressões.
e habitamos. A análise pode dar sentidos e Quebrar padrões rígidos. Quebrar rotinas e
formas aos tijolos esfacelados. Pode emendar repetições. Fraturar para olhar os pedaços
pedaços, substituir outros, mas a casa é sem- e remontar com um outro olhar. A transfe-
pre feita de remendos. Feita de labirintos e rência pode trazer rupturas. E o “bater repe-
de uma montagem de mosaicos das nossas tidamente” estaria associado à compulsão à
muitas partes. repetição.
A doença pode ser um fracasso do corpo, Ao falar a respeito da transferência Freud,
da medicina, da cura. E a morte? Seria o nos- em Além do princípio de prazer (1920/1996)
so maior fracasso? Uma entrega ao não ser, usa pela primeira vez o termo “compul-
como nos diz Jorge (2010, p. 165): são à repetição” [Wiederholungszwang].
São experiências reprimidas, das quais o
O sujeito deseja morrer, mas morrer significa paciente não pode recordar. São repetidas
aqui esgotar dentro do interior da vida todas como vivências atuais na situação analítica,
as suas capacidades de perseveração no ser após a repressão ter sido um pouco atenuada.
Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 17–24 | julho 2023 17
Da vida de sites a um sítio na Serra

Assim, a compulsão à repetição, que se Textos produzidos naquele momento – A


manifesta como transferência, é de início adaptação da criança à família, O problema
apresentada como uma manifestação do do fim da análise e Elasticidade da técnica
reprimido inconsciente. A repressão, como psicanalítica – podem nos guiar sobre como
a resistência que depois se opõe ao retorno ele atenuou a força de suas intervenções. Em
do reprimido, é uma operação executada vez das ordens e dos interditos da técnica ati-
pelo eu. va, escolheu conselhos e sugestões.
Tanto a repressão quanto a resistência Mais tarde, abandonou por completo a
podem ser compreendidas a serviço do prin- mais suave forma de intervenção. Ferenczi
cípio do prazer. Elas têm como finalidade foi sincero ao admitir e publicar que o au-
evitar o desprazer que seria despertado se as mento da tensão provocada por sua técnica
representações reprimidas fossem liberadas ativa levava muitos dos pacientes a uma es-
e tivessem acesso à consciência. Logo, a opo- pécie de reativação infrutífera das experiên-
sição à recordação, levada a cabo pela resis- cias traumáticas da infância. Ou seja, repe-
tência, parece estar totalmente a serviço do tiam sintomas e regrediam na transferência.
princípio do prazer. A técnica seria para facilitar as repetições e
Michael Balint (1967/2011), um dos prin- regressões.
cipais discípulos de Sándor Ferenczi, nos A terceira fase (1928-1933) foi marcada
aponta a divisão em três fases do percurso por uma considerável queda em sua produ-
ferencziano, marcadas por alterações técni- ção científica. Teria sido o indicativo de uma
cas e teóricas na clínica da psicanálise. crise intelectual. Na verdade, a história do
Na primeira e mais extensa (1908-1927), movimento psicanalítico caracteriza como
Ferenczi se debruçou sobre o estudo apro- uma crescente indisposição e um distancia-
fundado da técnica psicanalítica tradicional mento entre Ferenczi e a sociedade psicanalí-
à época. Era caracterizada pela objetividade, tica. (Foi examinado por Balint, 1967/2011).
pela neutralidade e por uma paciência ilimi- Por que não mais publicara suas observa-
tada. Ele iniciou a transição para a sua polê- ções? Isso seria devido à acolhida que seus
mica técnica ativa, baseada em intervenções textos (não) recebiam?
diretivas, orientadas por uma observação A técnica e os resultados clínicos obtidos
atenta da transferência. Nesse sentido, ele nessa fase refletiam a solução encontrada por
praticava uma clínica marcada pela subjeti- Ferenczi para fixar os limites de tolerância
vidade e não pela neutralidade. Apesar dos e complacência com que o analista deveria
avanços terapêuticos e do rico material clíni- tratar seu paciente: tal qual um adulto afe-
co resultante da aplicação daquela nova téc- tuoso trataria uma criança. Ele afirmava que,
nica, Ferenczi pôde reconhecer que alguns caso as interpretações se mostrassem inúteis,
pacientes não tiravam proveito. o analista, em uma atitude de acolhimento
Quando ele tomou como princípio nor- diante do sofrimento do paciente, poderia
teador que caberia ao analista encontrar recorrer à afeição e à gentileza sinceras.
uma forma de ajudar ao paciente que de- Anos depois, Balint questionaria: a in-
sejasse prosseguir o tratamento, indepen- serção dessas experiências afetivas no set-
dentemente das dificuldades, o fracasso da ting analítico seria legítima? Ou expressaria
técnica ativa representou um grande de- o sintoma do imenso desejo de amor e de
safio. A busca pela mudança marcou a se- afeição que Ferenczi carregava consigo? São
gunda fase (1927-1928) que levou Ferenczi questões que afetam minha clínica e voltare-
a modificar suas intervenções para manter mos a elas após a apresentação de um frag-
a atenção nas expectativas do paciente em mento de um caso clínico.
relação ao analista. Esse deveria ser flexí- Passo agora a relatar esse fragmento de
vel ao máximo. um fracasso da clínica que tenho desenvol-

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Ninfa Parreiras

vido. Assim, podemos pensar nas rupturas mudança da capital, a falência dos seus em-
e repetições trazidas pela palavra “fracas- preendimentos de trabalho, o rompimen-
so”. Os aspectos que poderiam identificar o to de longos relacionamentos de amor e de
paciente foram mudados sem prejuízo para amizade, a morte do seu médico espírita em
a discussão do caso e sem possibilidade de quem tinha total confiança, a traição de um
permitir algum tipo de semelhança. irmão, o calote da sócia, a batida de um carro
Atendi um analisando, aqui nomeado com perda total, uma infiltração na sua casa,
Beni, ao mesmo tempo em que ele mantinha que destruiu arquivos fotográficos, os senti-
o tratamento psiquiátrico para acompanhar mentos suicidas, a inadimplência de inquili-
suas crises de depressão e surtos. Inicialmen- nos, o despejo de um apartamento alugado,
te eram três vezes por semana, até que ele se um infarto, covid-19 por duas vezes.
estabilizou emocional e profissionalmente. Isso tudo ampliou a impotência, a fobia, a
Começamos a ter sessões duas vezes por insegurança e a tristeza.
semana e, depois, uma. Com isso, Beni teve E da minha parte, como me sentia? Ora
bons momentos, distanciado dos tratamen- frustrada com os impedimentos, ora anima-
tos psiquiátricos, da medicação e das inter- da com pequenas coisas. Os fracassos davam
nações. Ele conseguiu recuperar o trabalho sinais nas interrupções da análise, quando
(empresa de produção) do qual ficara afas- ele teve que se mudar de bairro, e depois de
tado anos por causa do medo e de outras cidade. Ele foi se distanciando, da Zona Nor-
ameaças persecutórias quando iniciou a aná- te da cidade, para o subúrbio, para a perife-
lise comigo. ria, para a Baixada, para a Serra Fluminen-
Foi um processo longo, marcado por se. Quanto mais distanciamento da “Cidade
rompimentos de relações amorosas, distan- Maravilhosa”, do “Beni maravilhoso, cheio
ciamento da família, perda do pai, poste- de amizades”, mais impactado ele ficava pe-
riormente, da mãe, internações, mudanças las coisas e pelas pessoas que perdia. Ou que
de casa. Ora com autonomia, custeando sua sumiam, ou se afastavam. Para ele, eram fra-
vida; ora morando de favor, em um quarto cassos profundos, no fundo de um poço sem
da casa da irmã, e até na casa de uma ex-ba- fim, como nomeava.
bá, por exemplo. Quando fiz a mudança fí- Para mim, os fracassos impediam o de-
sica do meu consultório, ele estranhou bas- senvolvimento da análise e me deixavam
tante e trabalhamos isso na transferência. As com um sentimento de impotência. O que eu
mudanças eram recebidas como perdas, com poderia fazer? Para além de acolher, de escu-
sofrimento e não possibilidade de reparação. tar, de estar disponível nos dias combinados,
Ele namorou, teve vida social, manteve de nomear as mudanças, de trabalhar os so-
seu espaço duplo de morada e escritório com nhos. Manter a análise com aquele furacão
grande movimento como gostava: reuniões de perdas reforçaria a não possibilidade de
de trabalho, finais de semana com amigos, seguir o trabalho analítico? Às vezes, parece
e viagens de lazer. Além disso, fotografava e que interromper o que não pode acontecer
fazia poemas. Houve uma época em que ele pode ser menos doído. Deveríamos, ali, ter
desenvolvia um correio semanal de envios colocado um fim? Fomos tentando fazer o
de foto-poema, por e-mail. Foi um perío- possível, o que significava driblar com o qua-
do repleto de afazeres que apreciava e vivia se impossível.
cercado de familiares. Viveu inesquecíveis Em relação à distância da capital, onde foi
encontros, relembrados com nostalgia nos morar, podemos olhar como algo dúbio. Por
momentos melancólicos. um lado, ele perdia autonomia, sim. Coinci-
Ele encarou também fracassos, principal- de com o momento em que não trabalhava e
mente nos últimos anos: a perda da mãe, a vivia da renda de um aluguel. E dependia da
saída do bairro onde morou a vida toda, a irmã ou do irmão para administrar sua vida.

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 17–24 | julho 2023 19


Da vida de sites a um sítio na Serra

Por outro lado, ganhava qualidade de vida ele deseja falar comigo deve ser pelo apare-
longe do centro urbano da capital. Podia ir lho da irmã. Ou por um aparelho adquiri-
a pé a lugares, andando poucos metros, sem do de segunda mão, com poucos recursos
depender de companhias. tecnológicos.
Para ele, tudo isso representava um sen- Teve um momento em que ele começou a
timento paradoxal, confuso. Beni tinha di- pesquisar blogs e sites sobre suicídio e doen-
ficuldades em lidar com mudanças, mesmo ças psiquiátricas, na busca de entender seus
que fossem para circunstâncias mais saudá- (im)possíveis diagnósticos apontados por
veis. No interior, onde está, conhece os mé- diferentes médicos. Numa dessas vezes, ele
dicos, os laboratórios, as farmácias. Mora me ligou atordoado com o que leu. Chorava
numa casa-sítio, com quintal, jardim, ani- compulsivamente e se sentia perdido. Per-
mais domésticos. guntei para que ele fazia aquelas pesquisas
Os fracassos na análise seguiam: quan- na internet se não se sentia bem. E o que
do ele precisava diminuir a quantidade de ele ia fazer com aquilo? Respondeu-me que
atendimentos e não conseguia pagar nem eram curiosidades ou tampões para a sua
dar continuidade ao tratamento. Quando angústia. Sinalizei que as consultas a sites na
foi compelido a se entupir de medicamentos internet estavam intensificando os sintomas
e até se internar. Quando se deprimia e pa- ameaçadores. E que era uma repetição de
recia que a vida havia parado. Quando não coisas persecutórias e assustadoras. Parecia
conseguia um aparelho para fazer atendi- ser a escolha da companhia de um fantasma.
mentos virtuais, nem contava com recursos E aquilo era monitorado pela irmã? Ou seria
para pagar uma internet. Quando queria vir incentivado por ela?
à análise e não contava com uma pessoa para Percebi que surtiram efeito as questões
acompanhá-lo e estava com fobia social. Já que coloquei porque ele diminuiu a com-
não conseguia se deslocar sozinho pela cida- pulsão para buscar sites (isso foi relatado
de grande. Nem se deslocar da pequena cida- por mensagens escritas). Quando tivemos
de para o meu consultório. oportunidade de conversar, falamos algu-
E o fracasso maior (dele? meu?): Beni foi mas vezes sobre as escolhas dele, inclusive
obrigado a se mudar para a cidade do inte- por buscas na internet quando tinha acesso
rior do estado, onde mora com a irmã e a a um aparelho. E o que representavam aque-
companheira dela. Isolado, com fobias e de- las pesquisas? O que Beni procurava e não
pressão, depois de algumas internações em encontrava?
hospitais psiquiátricos, vive preso, onde não Substituir as pesquisas foi uma das ques-
faz atividades físicas nem trabalha. Está re- tões que trabalhamos com espaços de duas a
cluso e insatisfeito. Não convive com a vizi- três semanas entre os atendimentos por tele-
nhança, tem uma relação ruim com a irmã e fone. A análise não era por vídeo, nem sema-
a cunhada. nal. Acontecia quando era possível.
Não usa o transporte público, não tem E que tal transformar palavras assustado-
recursos financeiros para otimizar a sua so- ras em outras coisas? Ou que tal voltar a criar
brevida. E não se sente seguro com os des- textos, como havia feito antes? Ler poemas,
locamentos na pequena cidade. Sua irmã com a pesquisa de blogs e sites de poetas. Ele
recebe um valor de aluguel de um imóvel fazia isso anos atrás, quando desfrutava de
comercial dele, quantia usada na casa e na momentos lúdicos e retornos satisfatórios no
manutenção da saúde de Beni (plano de correio de envios a alguns amigos e conhe-
saúde básico e remédios). Ele perdeu o con- cidos.
trole dos ganhos e gastos, do mover-se com Beni não dispõe de acesso a uma biblio-
autonomia. Suas ligações e contatos são vi- teca nem a livros. E não quer frequentar a
giados pela irmã, segundo ele me conta. Se biblioteca pública da cidade serrana. Está

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Ninfa Parreiras

perdido num mundo decadente, controla- também de escrever em bulas de remédios.


dor, capitalista, consumista, como ele me Ele me mandou textos em que parafraseia
sinaliza. E no paradoxo que é morar no inte- escritos de diferentes poetas.
rior, ambiente pacato, vida simples e segura A exemplo, coloco aqui.
versus a falta de seu lugar na capital. Ou no
capital? Ou na análise? Beni e suas cápsulas
Dentro dessa situação de extremo sofri- Beni O.
mento, ele veio ao meu consultório poucas
vezes, trazido pela irmã que o esperou e avi- Não te deixe abater...
sou que não continuaria a voltar com Beni. Tomando novas cápsulas
Ela não disponibilizava de tempo nem de re- e buscando novos problemas.
cursos para tornar viável a vinda para o Rio. Sonhe, sempre.
Passei indicação de uma analista que atende Remove cápsulas e plante amigos.
na Serra. Faz de tua vida de sites um sítio verde.
Beni não conseguiu se ajustar ao novo E sobreviverá da crise.
momento de medicamentos, não tem acesso E da Cris. [ex-namorada de Beni].
a amigos antigos, detesta a casa onde mora e
a comida oferecida. Está preso a um passado. O texto de Beni conversa com a poesia de
Vive uma apatia. Nada lhe apetece. Sente- Cora Coralina, autora goiana. Fui pesquisar
se em uma casa desmoronada e, ao mesmo e trago um trecho.
tempo, se sente na sua própria casa: despeda-
çada. O despedaçamento de si, da cidade, da Aninha e suas pedras
capital, do capital. Cora Coralina
O que conseguimos: estabelecer uma
comunicação eventual, via WhatsApp. Ele Não te deixes destruir…
se comunica comigo quando tem algo para Ajuntando novas pedras
compartilhar: uma dúvida, uma raiva, um e construindo novos poemas.
breve desabafo. Conversamos quando ele Recria tua vida, sempre, sempre.
está sozinho em casa. Sente-se sempre per- Remove pedras e planta roseiras e faz doces.
seguido pela cunhada. Ou mesmo que esteja Recomeça.
sozinho, ele se sente vigiado, como se uma Faz de tua vida mesquinha
câmera o estivesse gravando o tempo todo. um poema.
Sabe o que ele conseguiu para fugir das per- E viverás no coração dos jovens
seguições tecnológicas? e na memória das gerações que hão de vir.
Ele descobriu onde ficam o correio e a Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
papelaria, perto de onde mora. Começou a Toma a tua parte.
se comunicar com as pessoas por bilhetes e Vem a estas páginas
cartas. Não tem certeza se os destinatários e não entraves seu uso
recebem sua correspondência e se ele recebe aos que têm sede.
respostas de todos. Desconfia das pessoas e
das instituições, inclusive do correio. Mas é o Um texto parafraseado pode parecer pou-
único modo de comunicação onde se entre- co. Beni precisaria de prosseguir o atendi-
ga e se sente acolhido. mento terapêutico diante de tantos lutos e
Beni decidiu me enviar, pelos correios, perdas. E meu sentimento de impotência é
textos que parafraseia ou parodia. Ou mes- grande. Indiquei atendimentos no local onde
mo reinventa na escrita a lápis no verso de ele mora, contudo ele precisaria estar acom-
papeis aproveitados. Isso depois de ler poe- panhado para ir, porque demanda ir de con-
mas de diferentes autorias na internet. Gosta dução (ônibus ou carro). Por enquanto, não

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 17–24 | julho 2023 21


Da vida de sites a um sítio na Serra

há disponibilidade afetiva da irmã para isso, Abstract


porque ela não acredita em psicanálise nem A fragment of a clinical case is presented to
em terapia. É evangélica e estabelece uma reflect on the failures of the analysand and
aversão a tudo que o irmão pratica: ser kar- the analyst. Intercurrences in the social and
decista, ser poeta e fazer análise/terapia, etc. professional life of the analysand led to an in-
E para ele, ainda é difícil um deslocamento terruption of the analysis. Would there be an
mais longo, que esperamos acontecer. Ou analysis without failures? There was a writing
estaria esperando de uma outra (a irmã) as of free texts by the analyzing and a kindness
pernas para caminhar? in reading and commenting on the writings by
Talvez os textos poéticos sejam um cami- the analyst.
nho para manter uma comunicação com o
mundo além da casa-despedaçada. E com Keywords: Failure, Loss, Written as elabora-
seus muitos eus e casas. Algo como um ado- tion.
be – parede orgânica que sustentaria as fra-
turas dos tijolos.
Volto à terceira fase das investigações Referências
teórico-clínicas de Ferenczi quando ele afir-
mava que, caso as interpretações se mostras-
BALINT, M. As experiências técnicas de Sándor Fe-
sem inúteis, o analista, em uma tentativa de
renczi: perspectivas para uma evolução futura (1967).
acolhimento diante do sofrimento do pa- In: FERENCZI, S. Psicanálise IV. São Paulo: Martins
ciente, poderia recorrer à afeição e à genti- Fontes, 2011. p. xvii-xxv.
leza sinceras. Esse desejo de afetividade pelo
analisando seria um sintoma do fracasso? A CORALINA, C. Melhores poemas. São Paulo: Global,
análise dele foi atropelada não somente pela 2017.
pandemia de covid-19, como também pela
CUNHA, A. G. D. Dicionário etimológico da língua
falência de Beni e pela mudança de cidade. portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.
O que significa escutar esses pequenos mo-
vimentos de escrita, de ida ao correio? Seria FERENCZI, S. Psicanálise I, II, II e IV. São Paulo:
uma gentileza sincera? Uma elaboração dos Martins Fontes, 2011. (Obras completas).
tantos fracassos?
FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920). In:
Volto ao meu fracasso e, ao escrever esse
______. Além do princípio de prazer, psicologia de gru-
caso, confirmo que a escrita pode ser organi- po e outros trabalhos (1920-1922). Direção da tradu-
zadora. Pode significar pequenos movimen- ção: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.
tos de subjetivação e uma possibilidade de 17-75. (Edição standard brasileira das obras comple-
olhar o atendimento e o que é caracterizado tas de Sigmund Freud, 18).
como ruptura, fratura.
JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud
a Lacan 2: A clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Zahar,
Sonhe, sempre. 2010.
Remove cápsulas e plante amigos.
Faz de tua vida de sites um sítio verde.
Recebido em: 10/03/2023
Ah! Quantos fracassos há na clínica! Aprovado em: 26/06/2023
Voltamos à polissemia: há fracassos e ah,
fracassos!

22 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 17–24 | julho 2023


Ninfa Parreiras

Sobre a autora

Ninfa Parreiras
Psicanalista.
Membro titular da Sociedade
de Psicanálise Iracy Doyle (SPID).
Coordenadora do seminário
Conversa entre a Literatura e a Psicanálise.
Participante da Coordenação
do Conselho Gestor da SPID.
Graduada em letras e psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Mestre em literatura comparada pela Universidade
de São Paulo (USP).
Foi pesquisadora da Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil (FNLIJ).
Foi pesquisadora sobre o desamparo na Biblioteca
Internacional da Juventude de
Munique, na Alemanha.
Agraciada em 2019 com o 2° lugar no Prêmio
Biblioteca Nacional, categoria criança, da Fundação
Biblioteca Nacional.
Atuou nos projetos Caminhando: atendimentos na
Creche Cristo Redentor, no Rio de Janeiro,
e PSIFERIA: supervisão
ao grupo psicanalítico social, em Florianópolis (SC).
Autora de obras literárias e ensaios sobre literatura e
psicanálise.
Autora de mais de 15 obras para crianças: premiadas,
traduzidas e adquiridas em compras governamentais.
Autora de mais de 20 obras teóricas sobre leitura,
educação infantil, literatura, psicanálise.
Organizadora de antologias e de coletâneas literárias.
Como produtora cultural, fundou a Letra Falante
(grupo de pesquisa de literatura infantil e juvenil),
o sarau Poesia Andarilha (desde 2013), a Cartonera
Carioca (selo de livros artesanais), o projeto Recordar
Infâncias, a Família Literária.
Tem artigos publicados em revistas e livros em
países como Brasil, Colômbia, Alemanha, Argentina
e Suécia nas áreas de literatura e psicanálise,
desamparo, literatura infantil, sonho e cinema, e
psicanálise, educação infantil, infância.

E-mail: ninfaparreiras@gmail.com

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 17–24 | julho 2023 23


A rtJobim
Anchyses igLopes
os

Freud e os “Três ensaios


sobre a teoria da sexualidade”
– interlocução com a primatologia em
“Diferentes”, de Frans de Waal
Freud and the “Three essays
on the theory of sexuality”
– dialogue with primatology in
“Differents” by Frans de Waal
Anchyses Jobim Lopes

Resumo
A importância de Darwin na obra freudiana. A primatologia, ciência incriada ao tempo do pai
da psicanálise. Classificação geral dos hominídeos, destacando as duas espécies mais próximas
aos seres humanos: chimpanzés e bonobos. Paralelos entre a sexualidade segundo os Três en-
saios e as descobertas sobre comportamento desses primatas. A frequência da bissexualidade
observada nessas duas espécies conflui com as conclusões de Freud e as pesquisas de Kinsey.
Frequência e variedade de condutas sexuais em ambas as espécies, amplamente contrárias e/
ou superando a necessidade para reprodução. Também confluindo com a descrição da sexua-
lidade perverso polimorfa. Bonobos como espécie que é governada por fêmeas alfa. Diferença
entre sexo e gênero também observada em ambas as espécies próximas de primatas. Criação
do conceito de sublimação por Freud tendo similaridade com o de “cola social” observado pe-
los primatólogos. O parentesco entre o conceito freudiano de pulsão com o biológico de neo-
tenia – capacidade de aprendizado a vida inteira. O mito do patriarcado, desde os Três ensaios
até Moisés e o monoteísmo, desmitificação como culturalmente recente e não sendo biológico.

Palavras-chave: Três ensaios, Neotenia, Chimpanzés e bonobos, Bissexualidade, Patriarcado


e matriarcado, Waal.

Comportamento “instintivo” soa inflexível,


não merecedor de atenção
porque sem dúvida dispensa inteligência.
O termo “instinto” agora não é bem-visto
no estudo do comportamento animal.
Frans de Waal. Diferentes, 2023.

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 25–40 | julho 2023 25


Freud e os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
– interlocução com a primatologia em “Diferentes”, de Frans de Waal

Introdução - alguma divergência, pode-se resumir que os


da primatologia à psicanálise orangotangos tenham sido os primeiros a se
Freud teve grande influência da obra de separar da linhagem comum, entre 16 e 14
Charles Darwin. A bibliografia das obras milhões de anos atrás e depois foram os go-
completas de Freud cita todos os livros do rilas, entre 9 e 7,5 milhões de anos.
pai da ideia de seleção natural, inclusive car- Entre as três espécies seguintes, que se
tas e a autobiografia. Utilizada ao longo de separaram e possuem muitas afinidades bio-
toda a sua obra, Freud classifica o darwinis- lógicas e comportamentais entre si, a pri-
mo como uma das três feridas narcísicas da meira foi a dos humanos, que mais tarde se
humanidade, precedida pela copernicana autodenominaram homo sapiens sapiens. Os
e sucedida pela da psicanálise. Copérnico, ancestrais dos seres humanos e os ancestrais
Darwin e Freud, os três estão no mesmo pla- dos chimpanzés e bonobos foram viver sepa-
no quanto ao processo de crítica dos pilares rados entre 6 e 5,5 milhões de anos. Já chim-
judaico-cristãos do ocidente, e é o último da panzés e bonobos se separaram entre si por
tríade que mais de uma vez veio a afirmar volta de 2 a 1,5 milhões de anos. Em termos
isso. As hipóteses freudianas do processo de evolutivos e na história dos mamíferos, es-
antropogênese e das bases da cultura, inicia- sas distâncias são mínimas. Todos os primos
do em Totem e tabu (1913) e ainda inconclu- hominídeos compartilham entre si 97% do
so ao tempo de Moisés e monoteísmo (1939), DNA, sendo que com os de primeiro grau
tem sua semente no projeto darwinista. – chimpanzés e bonobos – temos 98,4% de
Ciência muito mais recente, a primato- DNA igual.
logia – o estudo dos grandes primatas, seus Há cerca de um século a ciência que estu-
corpos, mas, acima de tudo, sua psicologia da os primatas – primatologia - vem fazendo
e suas sociedades trazem novidades interes- grandes descobertas. Que têm refletido no
santíssimas para uma complementação da conhecimento sobre o primo mais complica-
linhagem psicanalítica acima mencionada. do da família, que sem qualquer modéstia se
Os hominídeos, grandes primatas sem autodenominou homo sapiens sapiens. Frans
cauda, nossos primos mais próximos, são de Waal, de origem holandesa e radicado há
orangotangos, gorilas, chimpanzés e bono- décadas nos Estados Unidos, é o mais divul-
bos. Ao contrário da asserção atribuída a gado de todos primatólogos. Editou nas úl-
Darwin, que tanto ofende os fundamenta- timas três décadas mais de dezesseis livros,
listas de várias religiões, não somos parentes dos quais seis foram publicados no Brasil
próximos e muito menos descendemos dos desde 2007, ano em que também foi eleito
macacos. Estes têm rabo, os grandes prima- pela revista Time uma das 100 pessoas mais
tas não. Infelizmente não temos em nosso influentes do mundo. O presente artigo uti-
idioma termos específicos, como em inglês, liza em sua maior parte seu livro mais recen-
em que monkeys designa aqueles com cauda te, publicado em 2022, nos Estados Unidos
e apes os sem cauda. A separação das duas e este ano no Brasil: Diferentes. O que os pri-
linhagens, com ou sem cauda, ocorreu há matas nos ensinam sobre gênero (Waal, 2023).
cerca de 30 milhões de anos. Waal sempre traça paralelos entre os nos-
Classificado como a superfamília hominí- sos primos mais próximos, chimpanzés e
dea*, o ramo de nossos antepassados surgiu bonobos com os sapiens e, com frequência,
há cerca de 20 milhões de anos. Embora haja também com aqueles um pouco mais afas-
tados. Em quase todos os livros menciona
Freud. Mas não o tem em grande simpatia e
* As classificações diferem um pouco, inclusive na nomen- o conhece pouco. Quanto ao behaviorismo, é
clatura. Também são utilizados os termos “hominínios” e
“hominoides”. A classificação usada neste texto seguirá a de crítico feroz e explicitamente lhe nega qual-
Waal: hominídeos. quer valor científico.

26 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 25–40 | julho 2023


Anchyses Jobim Lopes

Há dez anos publicamos nesta revista, ao primeiro e mais revolucionário texto de


n.° 40 (Lopes, 2013), um artigo com apro- Freud (1905/1978): Três ensaios sobre a teo-
ximações psicanalíticas com obras de Frans ria da sexualidade.
de Waal e Takayoshi Kano, outro renomado
primatólogo. A principal é que, nossos pri- Freud e os Três ensaios -
mos mais próximos, chimpanzés e bonobos, bissexualidade
além levar cerca de 16 anos para se tornarem Desde a época de sua amizade com Fliess, a
adultos, incluídos 4 a 6 anos e sempre reco- bissexualidade foi defendida por Freud como
nhecem a mãe e os irmãos. Isso significa que, categorização básica da sexualidade huma-
mesmo com corpo adulto, jamais têm rela- na. Princípio sedimentado nos Três ensaios
ções sexuais com a mãe e irmãs. Isto é, pos- sobre a sexualidade e que Freud manteve ao
suem cérebro quase do tamanho do humano, longo de toda a sua obra. Apesar de certa du-
é tanto aprendizado na infância, e é tanta a biedade em alguns escritos, ao longo de sua
memória infantil que, diante da mãe bioló- obra e correspondência, também sustentou a
gica ou adotiva, sempre se comportam como despatologização da homossexualidade.
filhotes. No referido artigo, propusemos um A bissexualidade tornou Freud refém de
estágio primeiro na filogênese do complexo críticas por ambos os lados. A psiquiatria
de Édipo. e o saber médico em geral consideravam a
“Os grandes primatas estão entre as pou- homossexualidade patológica e a bissexuali-
cas espécies que se reconhecem no espelho” dade apenas um eufemismo para disfarçá-la.
(Waal, 2023, p. 197). “Os chimpanzés re- Muitos, senão a maioria dos psicanalistas,
conhecem as vozes uns dos outros” (Waal, qual fosse sua formação profissional, explici-
2023, p. 261). A morte de um bebê não é fato tamente também viam a homossexualidade
isolado apenas para sua mãe. Que pode ser como doença e a bissexualidade como um
a mãe biológica ou não, porque, faltando a cacoete do mestre a ser piedosamente deixa-
mãe biológica, os bebês são adotados, inclu- do de lado.
sive há relatos de adoção por machos. Uma Ao final dos anos 1960, quando se inicia
chimpanzé pariu um filhote natimorto, a despatologização das homossexualidades,
a obra e a pessoa de Freud passaram também
[...] a colônia inteira, inclusive indivíduos que a receber críticas pelo viés oposto. Para mui-
não eram próximos, solidarizaram-se beijan- tos do movimento gay, a bissexualidade não
do e abraçando frequentemente a mãe infe- existiria, era apenas um eufemismo para ho-
liz. E a mudança foi prolongada. Durante no mossexualidades não aceitas.
mínimo um mês, a colônia prodigalizou-lhe Contudo, as pesquisas com nossos pri-
mais afeição que o habitual (Waal, 2023, p. mos hominídeos nas últimas décadas, têm
398). caminhado na direção da bissexualidade.
Waal é um dos pesquisadores que retornou à
No presente artigo desenvolvemos outras escala Kinsey formulada em 1948. Escala em
semelhanças com o sapiens, principalmente que uma linha foi subdividida de 0 a 6, desde
quanto à sexualidade. Ao início do século a heterossexualidade exclusiva até a homos-
XX, ainda com grandes lacunas até sua me- sexualidade exclusiva. Embora ao longo das
tade, o comportamento dos primatas mais décadas seguintes tenham existido grandes
próximos era desconhecido e toda uma espé- controvérsias e variações estatísticas, a maio-
cie – os bonobos – sequer identificada. Hoje, ria dos humanos está entre 1 e 5.
quando há muito mais informações, várias Durante décadas os bonobos nos zooló-
confirmam algumas das descobertas mais ra- gicos foram escondidos dos visitantes hu-
dicais de Freud. Escolhemos principalmente manos. Enquanto espécie hominídea inde-
aquelas que podem ser diretamente referidas pendente, os bonobos foram a última a ser

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 25–40 | julho 2023 27


Freud e os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
– interlocução com a primatologia em “Diferentes”, de Frans de Waal

identificada. Só ocorreu em 1929. O estu- res mantinha a honra patriarcal possível da


do dos bonobos ficou décadas atrás do dos família hominídea como um todo. Pesqui-
chimpanzés porque biólogos e estudiosos sas de campo mais recentes mostram uma
humanos, até poucas décadas atrás todos do crescente direção menos exclusiva, senão
sexo masculino, tinham vergonha de pesqui- até mesmo ao meio, na escala Kinsey. Assim
sá-los. Pesquisadores e cientistas deveriam como o comportamento sexual em bonobos
ser observadores neutros. Essa conduta, possui intensa função socializante, o mesmo
nada científica, intencional ou inconsciente, ocorreu em alguns estudos mais recentes em
aos leigos pode parecer absurda. Mas para chimpanzés. Mas um eufemismo foi criado:
muitos psicanalistas, que são especialistas
em detectar o recalque sexual, bastante com- No entanto, quando esses comportamentos
preensível. nos bonobos são classificados como “socios-
Os bonobos são conhecidos como os hi- sexuais”, enquanto nos chimpanzés são clas-
ppies do mundo primata. Sua diversidade de sificados como “tranquilização”, isso impede-
orientação sexual levou-os a “tornarem-se -nos de comparar e contrastar diretamente os
os favoritos da comunidade LGBTQIAP+” comportamentos entre as duas espécies irmãs
(Waal, 2023, p. 413). Embora não se tenha (Rodrigues, 2023).
encontrado um único bonobo que seja ex-
clusivamente homossexual, embora possa Entretanto, o subterfúgio a eufemismos
ser criticado que categorias humanas não se não mais impede que hoje novos primató-
aplicam a bonobos. Mas, mesmo assim, po- logos leiam relatos passados e mesmo dire-
demos aplicar Kinsey. tamente observem em natureza com mais
objetividade. Como a caracterização de pri-
Na famosa escala de zero a seis de Alfred Kin- matólogos de gerações passadas de vários
sey – de exclusivamente heterossexual a ex- comportamentos entre chimpanzés machos,
clusivamente homossexual –, a maioria dos sendo o melhor exemplo o da detalhada des-
humanos até pode estar do lado heterossexu- crição do que hoje pode ser facilmente ca-
al, mas cada bonobo é totalmente um bi, um racterizado como coito anal, foi no passado
três perfeito na escala Kinsey. Além da cópula interpretado lentes culturais defasadas.
de macho com fêmea em grande variedade de
posições, o padrão mais característico é o da Freud e os Três ensaios -
fricção gênito-genital entre fêmeas (Waal, p. sexualidade perverso polimorfa
413). [...] Essa postura frontal – na qual uma Freud separou a noção de instinto, com ob-
fêmea pode ser erguida do chão por outra en- jeto de sua satisfação biologicamente prede-
quanto se agarra nela como um bebê à mãe – terminado, de seu novo conceito de pulsão,
permite que ambas façam rápidos movimen- cuja satisfação é construída pela história da
tos para os lados. Elas friccionam seus clitóris primeira infância de cada ser humano. Con-
intumescidos um no outro ao ritmo médio de clui já no primeiro dos Três ensaios sobre a
2,2 movimentos pélvicos dos machos. Todo sexualidade que “[...] entre a pulsão sexual e
estudioso dos bonobos já observou a fricção o objeto sexual há apenas uma solda” (Freud,
gênito genital em cativeiro ou na natureza 1905/1978, p. 148, tradução nossa).
(Waal, 2023, p. 413). Até pouco tempo, a sexualidade dos ani-
mais em geral, não apenas de nossos primos
Até quase uma década atrás, os chim- mais próximos, quase sempre foi compreen-
panzés eram tidos como exclusivamente he- dida muito mais pela fantasia humana, em
terossexuais, outra categorização humana vez de observações neutras. Nessa fantasia a
erroneamente aplicada a esses primos ho- sexualidade era vista como algo puramente
minídeos. Mas que para muitos pesquisado- funcional e com objetivo apenas reprodutivo,

28 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 25–40 | julho 2023


Anchyses Jobim Lopes

o que pode ocorrer em mamíferos menos A candidata perfeita a esposa não deve ter
complexos. Mas a sexualidade dos primatas tido nenhuma experiência sexual anterior ao
também foi, até recentemente, condiciona- matrimônio. Crença consciente ou incons-
da por estudiosos a um papel meramen- cientemente hipócrita, porque os homens
te reprodutivo: puro instinto à procura de não lhe obedecem, e a maioria sabe que, para
um objeto específico predeterminado. Esse eles, desde o início que não será obedecida.
desejo só ocorreria durante limitado perío- Além domais, previamente ao matrimônio,
do e só para a sobrevivência da espécie. E os homens já tiveram várias experiências se-
muitos primatólogos ainda acreditam desse xuais. Contudo, impõem toda forma de res-
modo que seja a sexualidade dos chimpan- trição às mulheres.
zés e bonobos. Apesar de sua prescrição milenar, todo
esse sistema parece ter frequentemente fun-
Ela não inclui amor, diversão, gratificação e cionado pior do que se supõe. Freud discorre
só pode ocorrer entre um macho maduro e sobre a repressão sexual do sexo das mulhe-
uma fêmea fértil. Talvez projetemos nos ani- res na adolescência e início da idade adulta,
mais o tipo de vida sexual que pensamos que acarretando um descompasso que, quando
deveríamos ter. [...] Deixamos para lá o fato ocorre o casamento legal, religiosa e social-
de que em algumas espécies, como os bo- mente reconhecido, leva ao fracasso a sexua-
nobos, três quartos da atividade sexual não lidade do casal. O domínio do patriarcado
têm relação alguma com a reprodução (Waal, permite que todo poder e lucro do trabalho
2023, p. 412). feminino (acima de todos o trabalho do-
méstico) aumente muito o capital exclusiva-
Mesmo sem ser adepto da psicanálise, mente utilizado por homens. Mas conduz ao
Waal acertou em cheio o uso do termo “pro- fracasso da parceria, da felicidade e explode
jeção”. A sexualidade animal sempre foi vista em neuroses e transtornos psicossomáticos
de uma perspectiva meramente funcional, de todos os tipos. O mundo em que viveu e
tendo como único objetivo a reprodução. sobre o qual escreveu Freud.
Hoje é tida como mera projeção, racionali- Mas, igual a muitas outras áreas do co-
zando a suposta superioridade do sexo mas- nhecimento, e em países mais democráticos,
culino, que em realidade só ocorre quando onde também obrigatoriamente também se
predomina o patriarcado. Por essa visão o separa o estado da religião, o sexo feminino
sexo masculino deve concentrar em si todo também penetrou na primatologia. Comenta
poder econômico e militar. Um dos objetivos Waal (2023, p. 325):
principais é tentar garantir que sua heran-
ça irá para seus filhos biológicos. E para tal [...] acho bom que a antropologia moderna
garantia, a liberdade das mulheres deve ser tenha deixado para trás seu enfoque andro-
completamente cerceada. cêntrico. Como na primatologia, tem havido
Só podemos especular o que veio primei- tem havido nessa disciplina um afluxo de mu-
ro: o patriarcado exclusivo ou o monoteísmo. lheres e uma consequente mudança de pers-
A base das religiões monoteístas originais é pectiva.
legitimar a figura de um deus masculino. E
chega ao paroxismo de que o sexo só deve Mas a atividade sexual amplamente ultra-
ocorrer quando autorizado pela instituição passando a quantidade de relações necessá-
religiosa, apenas para reprodução e sem con- rias para a reprodução não é exclusiva dos
cupiscência. Deste modo, partir de Santo humanos, chimpanzés e bonobos. No entan-
Agostinho temos uma das mais exatas e radi- to, o primeiro dos dois itens mais importan-
cais definições do patriarcado sacramentado tes recentemente reforçados ou descobertos,
pelas religiões monoteístas. é que em todos – chimpanzés, bonobos e hu-

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 25–40 | julho 2023 29


Freud e os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
– interlocução com a primatologia em “Diferentes”, de Frans de Waal

manos – as fêmeas copulam muito mais do Freud e os Três ensaios -


que seria de esperar caso a concepção fosse o início da diferença
único objetivo. entre sexo e gênero
Em seu mais recente livro – Diferentes. O
Segundo estimativas, na natureza uma fêmea que os primatas nos ensinam sobre gênero
chimpanzé participará, ao longo da vida, de 6 (Waal, 2023) – são abordados temas que
mil cópulas com mais de uma dúzia de machos. tem provocado polemica crescente em to-
No entanto, ela terá no total apenas cinco ou das as áreas, inclusive a psicanálise: iden-
seis crias sobreviventes (Waal, 2023, p. 241). tidade de gênero e transexualidades. O
primatólogo retorna ao conceito que nos
O segundo item foi confirmado em to- dois hominídeos que nos são mais próxi-
dos os hominídeos. Apesar de todo o cer- mos, os chimpanzés e os bonobos, “[...]
ceamento do comportamento feminino, indivíduos adquirem hábitos com aqueles
também nos sapiens as fêmeas têm rela- que se sentem mais próximos. O aprendi-
ções sexuais com muito mais machos do zado observacional é guiado pela vincu-
que se supunha. E o mesmo ocorre na es- lação e identificação” (Waal, 2023, p. 71).
pécie humana. Testes genéticos em nossos O termo “gênero” há décadas tem origi-
primos chimpanzés e nas fêmeas humanas, nado diferentes conceitos. Utilizemos o mais
nestas complementados com entrevistas comum: uma gama de características não
em sigilo absoluto e até detector de men- biológicas pertencentes e diferenciadas entre
tiras, revelaram que a multiplicidade de a masculinidade e a feminilidade. “Expres-
parceiros sexuais ao longo da vida é muito são de gênero” denomina as características
maior do que supunham os antropólogos e não biológicas, mas o que é cultural e social-
primatólogos mais antigos. E bem mais do mente tido como masculino ou feminino.
que acreditam seus parceiros humanos do Podendo mesmo designar algo mais amplo:
sexo masculino. “identidade de gênero”, alguém conside-
rar-se homem ou mulher, geralmente desde
De um modo geral, é hora de abandonar quando se lembre na infância, que em algu-
o mito de que os machos têm desejo sexual mas pessoas diverge do sexo biológico. Waal
mais intenso e são mais promíscuos que as também segue essas distinções, igualmente
fêmeas. Deixamos que esse mito se introdu- utilizadas pela psicanálise contemporânea.
zisse na biologia na era vitoriana, quando ele Repete em seu mais recente livro a máxima
foi adotado com entusiasmo como normal e “toda espécie tem sexo, só os humanos têm
natural (Waal, 2023, p. 245). gênero” (Waal, 2023, p. 73). O sexo biológico
é binário, mas o gênero um contínuo entre
Ou, como rotulou Freud em 1905, uma dois polos.
sexualidade perverso polimorfa, mantendo
as diversas características da sexualidade da Quando falamos em gênero, os termos apro-
primeira infância. Algumas condutas mais priados não são “fêmea” e “macho”, e sim
comuns: fricção gênito-genital entre fê- “masculino” e “feminino” [...] O gênero resis-
meas, masturbação de um macho em outro, te à divisão em duas categorias nitidamente
sexo anal, beijo de língua e, possivelmente, distintas, e o melhor é vê-lo ao longo de um
outras práticas. Que a cegueira e o pudor espectro que vai suavemente do feminino ao
humano rejeitaram ver na observação dos masculino, com todos os tipos de misturas de
de sua espécie e extrapolaram para outros permeio (Waal, 2023, p. 79).
hominídeos. O relato foi reprimido, porque
a observação foi negada. Usando conceito Gênero é um termo das últimas décadas
psicanalítico: puro recalque. do século XX. Mas as discrepâncias entre

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sexo biológico, escolha objetal e gênero fo- pulavam com ela. [...] Sabia sentar-se apru-
ram indiretamente intuídas no primeiro dos mada como um macho. [...] Quando eriçava
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. os pelos [...] ela era bem intimidante, graças
Freud fala das escolhas objetais pelo sexo aos ombros largos. [...] Como Donna também
oposto ou pelo mesmo sexo, ou ambas. Mas nunca se masturbava, provavelmente não ti-
que a bissexualidade ou a homossexualidade nha um forte impulso sexual. Ela nunca foi
várias vezes não são acompanhadas por mãe. [...] Quando os machos começavam suas
exibições de força [...] Donna se juntava ao
[...] alterações paralelas tanto em qualidades coro e arremetia ao lado deles. [...] Os gritos
mentais, pulsões e traços de caráter que ca- de Donna eram mais agudos que os dos ma-
racterizam o sexo oposto. [...] Nos homens a chos, mas só o fato de ela os emitir já era atípi-
mais completa masculinidade mental pode co para uma fêmea. Agindo como camarada
estar combinada com a inversão (Freud, dos machos adultos, ela podia adquirir uma
1905/1978, p. 142, tradução nossa). dominância temporária. Donna ocupava uma
posição intermediária na hierarquia, mas até
Waal acrescenta também o mesmo con- as fêmeas superiores saíam do caminho [...].
tínuo, há tempos observado nos humanos, (Waal, 2023. p. 77-80).
para caracterizar comportamentos de nos-
sos primos primatas mais próximos. Conclui Além da questão de que o conceito de gê-
que não apenas os humanos têm gênero, mas nero, diferenciado de sexo, também pode
também chimpanzés e bonobos. ser aplicado a chimpanzés e bonobos, há
várias semelhanças entre algumas das ca-
Nas minhas décadas de trabalho com grandes racterísticas de Donna e as transexualida-
primatas, conheci vários deles que era difícil des humanas. São paralelos entre o sapiens
classificar como feminino ou masculino. Em- e os primatas parentes mais próximos que
bora minoritários, parecem estar presentes seguramente precisam de mais pesquisa.
em todos os grupos. [...] Infelizmente não te- Mesmo assim destrói o mito moralista, de
mos ideia de quanto são comuns indivíduos que o que é contrário à natureza (contrana-
de gênero inconforme, pois os cientistas pro- tura) e apenas ocorre nos seres humanos
curam comportamentos típicos (Waal, 2023, seria perverso.
p. 82-83).
Freud e os Três ensaios -
Além da separação entre sexo e gênero da sublimação à cola social
não ser exclusiva dos sapiens, mas também Uma vez que a sexualidade dos primos ho-
exposta por chimpanzés e bonobos, pois ne- minídeos em muito ultrapassa a necessária
les há uma diversidade de gênero ao longo de para a reprodução, também ocorre aquém e
um contínuo. E nela também Waal observou além de práticas genitais. A sexualidade dos
um comportamento até recentemente pou- bonobos, em menor grau à dos chimpanzés,
co aceito ou compreendido entre os sapiens: possui a função de que o sexo é “sua cola so-
algo semelhante à transexualidade. O prima- cial” (Waal, 2023, p. 415).
tólogo relata suas observações de uma chim- Mas o conceito da sexualidade enquanto
panzé apelidada de Donna. “cola social” é aplicável também aos huma-
Selecionamos algumas de suas observa- nos. Desde a libido que une grupos e inte-
ções sobre Donna: resses comuns, até sua transformação em ob-
jetos e comportamentos que aparentemente
[...] uma fêmea robusta de atitudes mais não possuiriam origem sexual, mas sem os
masculinas do que as outras fêmeas. [...] Os quais não se vive. Práticas cuja origem é de-
machos não mostravam interesse e não co- nominada genericamente por Freud de “su-

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Freud e os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
– interlocução com a primatologia em “Diferentes”, de Frans de Waal

blimação”. Descoberta freudiana descrita otenia, a ideia de que descendemos de um


pela primeira vez em dois artigos de 1908 grande primata parecido com um bonobos
que são a continuação direta dos Três ensaios não é absurda (Waal, 2023, p. 163).
sobre a teoria da sexualidade: Caráter e ero-
tismo anal e Moral sexual “cultural” e doença A neotenia tanto possibilita a permanên-
nervosa. Da “cola social” dos primos hominí- cia durante toda a vida de uma característi-
deos, a aumentamos e complicamos tanto ca encontrada em muitos outros seres vivos
que produzimos arte, cultura, tecnologia, apenas na infância: a curiosidade e a plasti-
talvez a linguagem humana como o primeiro cidade para a descoberta e o uso de novos
de todos os produtos. conhecimentos, o que justifica a comparação
A sublimação, além de constituir um dos com as descobertas de Freud sobre a sexua-
pilares da descoberta freudiana, neutraliza lidade da primeira infância. Para Freud, essa
todas as proposições de uma “energia” cul- curiosidade permanece a vida toda em adul-
tural e/ou espiritual específica dos huma- tos. E dela deriva o dom de adquirir durante
nos. Força mística de origem sobrenatural toda a vida novos conhecimentos e compor-
que também seria desprovida de qualquer tamentos. Em outras palavras, o excesso da
elo com a sexualidade. A existência comum pulsão sexual infantil, sempre insatisfeita, é a
entre todos os hominídeos da “cola social” origem da pulsão epistemofílica.
fornece o embasamento para as ideias de Já Melanie Klein acreditava que a pulsão
Darwin, o evolucionismo e parentesco de epistemofílica era distinta da sexual. Con-
toda vida na Terra. tudo, poderia ser potencializada ou inibida
Mas se os grupos humanos hoje nume- pela pulsão sexual da infância. A neotenia
ricamente reúnem-se até a casa de dezenas também embasa muitas ideias de Winnico-
de milhões, os intensos e perenes conflitos tt. Possibilita que o brincar, mesmo quando
ainda deixam muito a desejar. Principalmen- transmutado e disfarçado nas mais sofistica-
te quando comparados com os bonobos. A das técnicas ou conhecimentos adultos, dure
“cola social” ainda tem muito a ser melhora- pela vida inteira.
da em sua função original. Nossos primos, embora de modo muito
A ideia de “cola social” dos três hominí- reduzido em comparação aos sapiens, tam-
deos de parentesco mais próximo – chim- bém aproveitam objetos da natureza como
panzés, bonobos e sapiens – pode ser mais artefatos, os quais passam à geração seguin-
bem teorizada e explicada. Podem ser feitos te, embora não possam fabricar eles mesmos
alguns acréscimos. Propomos um deles. novos objetos. Mesmo assim, diante de no-
vos desafios, criam novas soluções. Waal cri-
Pulsão e neotenia tica tanto quanto Freud a noção de instinto.
É inquestionável a proximidade do cérebro hu- Isto é, a forma como as pessoas ou animais
mano com o dos nossos primos hominídeos. reagiriam ou se comportariam mecanica-
Quando comparados em tamanho e estrutu- mente, sem ter que pensar, aprender e passar
ra, compõem-se de um número gigantesco de às gerações seguintes. Crítica extensiva tam-
neurônios e sinapses, pouco diferindo do hu- bém ao comportamento de nossos primos,
mano. Além desses números, ou mesmo por com os quais, para o primatólogo, mesmo
causa deles, chimpanzés e bonobos partilham existindo tendências inatas, necessitam in-
conosco a neotenia, que é a propriedade da re- teragir e aperfeiçoar com o aprendizado no
tenção, durante toda a idade adulta, de carac- meio ambiente.
terísticas típicas da sua infância e adolescência. Sintetiza Waal (2023, p. 54):

Considerando o quanto temos em comum [...] No entanto vejo com ceticismo esse tipo
com os bonobos, inclusive nossa célebre ne- de interpretação, pois a palavra “instinto” im-

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plica comportamento estereotípico. Compor- um ou mais filhos, também há a possibilida-


tamento “instintivo” soa inflexível, não mere- de de mortes psíquicas. A carência materna,
cedor de atenção porque sem dúvida dispensa levando em conta que pode ser suprida pelo
inteligência. O termo “instinto” agora não é pai, que também pode faltar, é a causa mais
bem-visto no estudo do comportamento ani- que provável de quadros psicóticos e depres-
mal. Embora todos os animais, assim como sivos muito graves, e mesmo de muitos sui-
os humanos, possuam tendências inatas, elas cídios. Não faltam relatos na clínica, além de
são suplementadas por muita experiência. observações pessoais corroboradas a partir
[...] Pouquíssimos comportamentos são ins- de supervisão, seja na clínica particular, seja
tintivos no sentido de não exigirem prática. na clínica social do CBP-RJ.
Outro questionamento contra a noção de
Hominídeas fêmeas, das três espécies instinto é a capacidade dos outros primatas
mais próximas, são criadas com outras, des- machos nossos primos para cuidar filhotes.
de suas mães (biológicas ou adotivas) até Algo ainda mais difícil de compreender pela
outras das mais diversas idades. Justifica-se noção biológica de instinto, que no caso dos
que o comportamento maternal seja com- humanos. No caso do homo sapiens sapiens,
partilhado e incentivado desde a tenra idade, pode-se apelar como justificativa para a no-
o que não quer dizer que nasçam com ins- ção de paternidade ou parentesco. Mas tanto
tintos maternais. Na perda da mãe biológica, quanto se saiba, são noções desconhecidas
outras fêmeas adotam órfãos. O quanto não por chimpanzés ou bonobos. Voltemos aos
é fruto de um instinto biológico e sim de afe- relatos sobre adoções.
to e aprendizado?
Descreve Waal (2023, p. 56): Na natureza, já foram observados chimpan-
zés machos adultos que adotaram um bebê
Um recém-nascido pode buscar automatica- e cuidaram dele amorosamente, às vezes du-
mente um mamilo, mas a mãe ainda precisa rante anos. O macho desacelera seus deslo-
aprender a amamentar. Isso vale para huma- camentos para que o pequeno adotado con-
nos e outros grandes primatas. Muitos prima- siga acompanhá-lo, procura-o quando ele se
tas em zoológicos não têm êxito em cuidar de perde e tem um comportamento tão protetor
suas crias por falta de experiência e exemplos. quanto o de uma mãe (Waal, 2023, p. 18).
Frequentemente precisam de modelos huma-
nos para preencher a lacuna de conhecimen- Instinto implica uma reação impensada e
to. Zoológicos que têm uma primata grávida mecânica, disparada por algum tipo de for-
costumam convidar mulheres voluntárias ma externa que a desperte, um estímulo ou
para demonstrarem como alimentar o bebê. forma previamente determinado. Trata-se de
A maternidade e a similaridade dos corpos comportamento automático e estereotipado,
aproximam naturalmente humanas e grandes muito defendido por teorias como o beha-
primatas. Estas observam a humana nutriz e viorismo. Waal defende que, embora todos
copiam cada movimento quando seu próprio os animais, assim como os humanos, pos-
bebê nasce. suam tendências inatas, elas são suplemen-
tadas por muita experiência. “Pouquíssimos
Desde a publicação do livro Um amor comportamentos são instintivos no sentido
conquistado – o mito do amor materno, de de não exigirem prática” (Waal, 2023, p. 54).
Elizabeth Badinter (1985), temos o embasa- Na última década, direta ou indiretamen-
mento por um estudo sério, de que na espécie te, surgiu toda uma gama de supostos saberes
humana um instinto materno é inexistente. e teorias que procuram justificar comporta-
Na prática, além dos casos policiais de mães mentos e quadros clínicos em seres huma-
que intencionalmente matam fisicamente nos com um “neuro” antes: neuropsicologia,

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 25–40 | julho 2023 33


Freud e os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
– interlocução com a primatologia em “Diferentes”, de Frans de Waal

neuropediatria, neuropsiquiatria, neuropsi- neurobióloga se deva à crença de que todo


copedagogia e outras “neuros”. A busca de aprendizado é consciente. Aqui retornamos
todas é reduzir o psíquico ao cerebral, isto é, a Freud. Há aprendizado que pode ir dire-
ao instinto. O que é surpreendente, quando to ao pré-consciente ou ao inconsciente. O
biólogos e primatólogos, que não se dedicam inconsciente da primeira tópica e o eu in-
aos seres humanos, contestam o uso reducio- consciente e o isso da segunda tópica con-
nista implícito no termo “instinto”. figuram-se no sapiens como gigantescos
Contudo, há muitos interesses políticos celeiros de conhecimentos adquiridos, mas
e econômicos nesse reducionismo de retor- hoje recalcados. Se não usado o referencial
no ao “instinto”. Valida que se neguem várias psicanalítico, o que já ao final da infância ou
condições – sociais, familiares, econômicas na adolescência é inconsciente pode parecer
– tenham qualquer importância. Qualquer inato. Debates sobre conceitos e clínica psi-
comportamento pode ser patologizado e pas- canalítica muitas vezes também são compli-
sível ao uso de medicações. Além do redu- cados, entre eles, a distinção feita por Freud
cionismo em aplicar essa lógica para além de entre instinto e pulsão.
transtornos facilmente reconhecíveis como A pulsão pode ser confundida com ins-
fruto de lesões orgânicas, mesmo que exis- tinto enquanto produtora do sintoma. Em
tam alterações físicas em comportamentos muitos casos a resposta da pulsão, aparen-
sutis, “como diz o mantra científico, correla- temente mera reação, além de inadequada à
ção não é causa” (Waal, 2023, p. 88). Qual é realidade externa, é automática. Isto ocorre
o efeito e qual a causa? Como estas “neuros” porque um conjunto de processos incons-
explicariam mães humanas que abandonam cientes recalcados associaram a situação ex-
seu(s) filho(s)? Ou chimpanzés machos que terna com antigos conflitos internos. E a res-
adotam bebês de sua espécie? posta predominantemente se dirige a esses
Entretanto, sempre existem exceções. Em- conflitos hoje inconscientes, e não aos que
bora em inglês seja designada como ‘neuro- hoje vêm do mudo externo.
bióloga’ e na edição brasileira como ‘neuro- Contudo, na maioria das vezes, a pul-
cientista cognitiva’, também há Gina Rippon, são, por não possuir objeto predetermina-
Professora Emérita da Aston Brain Centre, do, pode aos poucos moldar-se aos objetos
Aston University, Birmingham. Defensora externos. Simultânea e gradualmente ajus-
de A nova neurociência que destrói o mito do tar-se ao objeto e aperfeiçoá-lo, provocan-
cérebro feminino, tradução do título original do um crescimento do eu e do objeto. E
de um extenso livro, embasado pelos relatos domesticando o lado agressivo de ambos.
de muitos anos de inúmeras pesquisas. Obra Como sempre há uma sobra, e um exceden-
que também foi publicada há dois anos no te de pulsão, predominando o lado amoroso,
Brasil: Gênero e os nossos cérebros – como a ocorre um aperfeiçoamento incessante do eu
neurociência acabou om o mito de um cérebro e do outro. Tanta sobra, que no homo sapiens
masculino ou feminino (2021). Livro citado sapiens, dela nasceram a linguagem e a arte.
por Waal em Diferentes. que nele dedica mais Ocorrendo a predominância de experiências
de duas páginas para refutar Rippon. boas, a neotenia se mantém, pois nunca ces-
A neurobióloga defende que o cérebro sa a capacidade de criação.
humano começa neutro no que diz respeito Embora possua raízes bem mais antigas,
ao gênero. Waal discorda, defendendo que em sua acepção freudiana o termo novo tam-
nos hominídeos o sexo simultaneamente bém nasceu ao início do primeiro dos Três
possui uma parte inata, embora também seja ensaios sobre a teoria da sexualidade. Mais
necessária a outra parte, a do aprendizado. especificamente, na primeira frase: “pulsão
E o aprendizado pode superpor-se ao inato. sexual [Geschlechtstriebes]” (Freud, 2023).
Talvez a divergência entre o primatólogo e a Surge o contraponto ao “instinto”, no qual

34 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 25–40 | julho 2023


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o objeto de satisfação está biologicamente mais próxima, é exatamente o oposto: as fê-


predeterminado. Já “[...] há entre a pulsão meas são as dominantes. E além da dualida-
sexual e o objeto sexual apenas uma solda” de biológica e reprodutiva sexual – macho e
(Freud, 1905/1996, p. 148, tradução nossa). fêmea – os comportamentos são complexos
Na maioria das vezes, a origem da soldadura e variam em uma escala contínua, com todas
tornou-se inconsciente. Mas foi adquirida e as combinações e percentagens entre mascu-
não inata. lino e feminino.
Entre outras qualidades, e através de uma O mais próximo possível aos homens de
leitura contemporânea, o termo “pulsão” qualquer grupo cultural ou étnico são as
completa o conceito de neotenia. Porque ins- mulheres desse mesmo grupo. Se podem ser
tinto é biologicamente hereditário e especí- consideradas seres inferiores, é fácil estender
fico. Encontrando a forma externa que o sa- a inferioridade para todos de ambos os sexos
tisfaça, pode ser completamente saciado. Ao de outros grupos étnicos e culturais inteiros.
menos por algum tempo. Ou por ser orga- Uma vez que o princípio da superioridade
nicamente predeterminado, pode de tempos masculina é aceito, pode-se justificar quais-
em tempos desaparecer. quer outras formas de discriminação. E para
Já para a pulsão, que preexiste ao objeto compreender o que inconscientemente sub-
que a satisfaça, o encaixe de ambos permite jaz a origem de quaisquer discriminações,
muito mais incompletude. O objeto nunca podemos referir a Freud, utilizando sua pró-
satisfaz de modo absoluto ou permanente. pria interpretação.
E ao oposto do instinto, que pode desapa- Em O tabu da virgindade (Contribuições
recer por longos períodos, a pulsão, exceto para a psicologia da vida amorosa III), afirma
por breves momentos de satisfação, se tanto,
é permanente. E esse excesso coloca a pul- [...] que justamente as pequenas diferenças,
são como manancial para a criação, através em meio à semelhança em todo o resto, fun-
de todas as formas de cultura e arte, talvez damentam os sentimentos de estranheza e
da própria linguagem, que é a única e radi- hostilidade entre eles. Seria convidativo per-
cal distinção entre nós e nossos primos mais seguir essa ideia e propor derivar desse “nar-
próximos: bonobos e chimpanzés. cisismo das pequenas diferenças” a hostilida-
de que vemos em todas as relações humanas
O mito do patriarcado - lutar com sucesso contra os sentimentos de
desde os Três ensaios união e vencer o mandamento do amor gene-
até Moisés e o monoteísmo ralizado aos seres humanos. Sobre o funda-
O patriarcado baseia-se na discriminação do mento dessa rejeição narcísica da mulher pelo
sexo feminino como inferior ao masculino. homem, bastante deslocada para o menos-
Os homens mantêm o poder, predominam prezo, a psicanálise acredita ter descoberto
em funções de liderança política, religiosa, uma parte crucial, ao remetê-la ao complexo
autoridade moral, privilégio social, controle de castração e sua influência no julgamento
das propriedades e exercem autoridade sobre sobre a mulher (Freud, 1918/2018, p. 164).
as mulheres e as crianças.
O sistema social do patriarcado só pode O termo “narcisismo” surge a primeira
ser mantido se fundamentado num rígido vez em uma nota de rodapé acrescentada por
binarismo sexual, superposto na crença de Freud em 1910 ao primeiro dos Três ensaios
que o sexo masculino é superior ao femini- sobre a teoria da sexualidade. Para horror
no. Uma das justificativas mais populares é dos defensores mais radicais do patriarcado,
que os animais na natureza assim se compor- que rejeitam em si mesmos quaisquer carac-
tam. Vimos como os bonobos, uma das duas terísticas do sexo oposto, e ainda mais a ho-
espécies mais próximas do sapiens, senão a mossexualidade, a nota de rodapé refere-se

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Freud e os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
– interlocução com a primatologia em “Diferentes”, de Frans de Waal

aos invertidos (termo utilizado por Freud) conexão com o postulado freudiano da pul-
“buscarem como objeto sexual um homem são de morte, comenta Waal (2003, p. 286)
jovem que lembre eles mesmos, o qual tam- em seu livro mais recente:
bém possam amar, como suas mães amaram
a eles mesmos” (Freud, 1905/1978, p. 145). A ciência ainda vê a violência e a guerra
O investimento narcísico no pênis e o como indissociáveis da herança da nossa es-
medo da castração e também foram descri- pécie, apesar da escassez de evidências des-
tos por Freud nos Três ensaios sobre a teoria se tipo de comportamento durante a nossa
da sexualidade e posteriormente fundamen- pré-história. O registro arqueológico, por
tados no caso clínico por ele ilustrado: A exemplo, não contém evidência alguma de
análise de uma fobia num menino de cinco matança em grande escala antes de 12 mil
anos, mais conhecido como O pequeno Hans anos atrás. Isso torna altamente especulati-
(1909). vos os cenários que pressupõem que a guerra
Usando o tipo de interpretação um tanto está em nosso DNA.
selvagem de antigos psicanalistas, os defen-
sores fanáticos do patriarcado negam em si Em vários de seus livros, artigos e car-
mesmos qualquer acesso ao muito humano e tas, Freud escreveu de modo extremamente
universal medo que os homens têm de serem crítico contra as religiões. Mas de todos es-
concretamente privados de seu pênis. Assim critos, o que mais se aprofundou foram os
como recalcam e refutam qualquer traço de três ensaios que compõem um de seus dois
homo ou bissexualidade. últimos e inacabados livros: Moisés e o mo-
Mas o medo inconsciente ou não da cas- noteísmo (1939). Herdeiro final do primeiro
tração pode ter construído algo muito além livro sobre o tema Totem e tabu, Moisés e o
de quadros psicopatológicos individuais. Po- monoteísmo possui uma de suas ênfases em
demos acreditar ou não na postulação freu- um termo, tanto quanto tenhamos conhe-
diana de uma pulsão de morte. Mas as cren- cimento, não usado antes na obra de Freud:
ças discricionárias do patriarcado justificam “imperialismo”.
e potencializam todas as formas agressão Citando diretamente Freud (1939/1978,
contra os inferiores e “diferentes”. Passa-se da p. 21, 59, 65):
agressividade necessária para a sobrevivência
e a defesa, para outro nível, ao qual se pode Este imperialismo refletiu-se na religião
associar palavras como: violência, aniqui- como universalismo e imperialismo. [...]
lação, extermínio, apagamento, selvageria, Como resultado das conquistas da décima oi-
entre outras, alcançando mesmo a autodes- tava dinastia, o Egito tornou-se um império
truição. O que infelizmente lembra nossos mundial. O novo imperialismo refletiu-se no
primos chimpanzés, capazes de tantas con- desenvolvimento das ideias religiosas, senão
dutas amorosas individuais e grupais – fortes de todo povo, pelo menos na camada dirigen-
vínculos afetivos com os de sua espécie e até te e intelectualmente mais elevada. [...] No
de outras, adotar órfãos, consolar quem sofre Egito, tanto quanto podemos compreender,
a perda de uma cria – mas também capazes o monoteísmo cresceu como um subproduto
de surtos de agressividade assassina contra do imperialismo.
outros grupos de sua própria espécie.
O perigo da crença na pulsão de morte O monoteísmo judaico, que embasa o
freudiana é ser cooptada por alguma expli- cristão e o islâmico, configura-se na adora-
cação biologizante ou, como está na moda, ção de um deus único que quase sempre é
‘neurocientífica’. Contudo, toda obra de Waal descrito em termos masculinos nas fontes
tende a colocar o adquirido como tão ou bíblicas. E assim representado quando há
mais importante que o inato. E sem qualquer autorização para fazê-lo por uma imagem.

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Anchyses Jobim Lopes

Como na criação de Adão por Michelangelo Bem antes de Moisés e o monoteísmo,


na capela Sistina. Mas em seguida a queda Freud (1939/1978) já assinalava em O futuro
pela pecado original cuja culpada parece ter de uma ilusão (1927/1978) sua crítica à re-
sido exclusivamente Eva. ligião. Nesse texto tenta salvar as aparências
Embora também haja o termo “shekhi- diagnosticando a religião como ilusão, até
nah”, uma palavra feminina em hebraico, perpetrar uma “escrita falha” em que con-
referindo-se a uma outra manifestação divi- fessa: “[...] minhas ilusões não são, como as
na da presença de Deus, com base especial- ilusões religiosas, incapazes de serem corri-
mente nas leituras do Talmud. O conceito de gidas [...] não tem o caráter de delírios” (The
shekhinah também está associado ao concei- future of an illusion, Freud, 1927/1978; p. 53,
to do Espírito Santo no judaísmo e, eventual- tradução nossa). Mas em O mal-estar na civi-
mente, no cristianismo. Poderia ser inter- lização, Freud (1930/1978, p. 82) abre o jogo:
pretado como o lado feminino de Deus. Mas
constitui uma interpretação ou esquecida, ou As religiões da humanidade devem ser classi-
muito pouco comentada. ficadas entre os delírios de massa [...] desne-
Em Moisés e o monoteísmo, Freud cessário dizer que quem compartilha de um
(1939/1978) defende a hipótese de que o delírio, nunca o reconhece como tal (tradu-
deus do velho testamento foi herdeiro direto ção nossa).
do primeiro monoteísmo, criado no Egito e
posteriormente adotado pelos judeus. Dei- O que nossos primos primatas
xaremos de lado discussões sobre um lado podem nos ensinar
feminino de deus ou a polêmica sobre ori- A pesquisa sobre os hominídeos mais próxi-
gem dos três monoteísmos. mos – chimpanzés e bonobos – e sua difusão
Com a questão de Eva ter sido a causado- pelo primatólogo mais difundido – Frans de
ra do pecado original, o feminino pode ser Waal – nos fez retornar a vários conceitos e
estigmatizado de todas as formas possíveis. descobertas de Freud, que durante décadas
Na igreja católica, até hoje, nenhuma mulher foram pouco aceitas. Tivemos especial apre-
pode ministrar sacramentos ou ter qualquer ço pelas ideias de neotenia e da sexualidade
papel relevante na hierarquia eclesiástica. Na como “cola social” entre chimpanzés e bono-
ausência de um sacerdote do sexo masculino, bos. Da qual fizemos o paralelismo com uma
mesmo que haja uma religiosa do mais alto das origens do excesso pulsional dos sapiens,
escalão, um laico homem é quem pode mi- sublimado para a sua cultura e pulsão episte-
nistrar sacramentos. O mesmo quase sempre mofílica. Mas tendo em contrapartida tam-
ocorre nos demais monoteísmos. bém o excesso agressivo dos chimpanzés.
Do monoteísmo ao patriarcado, parece Quem sabe, os ancestrais do sapiens, há
imperar o narcisismo das pequenas diferen- quantas centenas de milhares de anos ou
ças postulado em 1918. Gigantescas guerras mais, sendo mais fracos e mal adaptados,
religiosas, que se tornaram até internas. Des- precisaram desses excessos para sobreviver
truições maciças e imensos massacres, por cada vez mais longe de seu local de origem e
interpretações e variações de comportamen- em novos ambientes ainda mais hostis? Será
to supostamente embasadas nos mesmos tex- que esta aposta evolutiva será válida em lon-
tos. Exemplo mais próximo a nós, as guerras go prazo?
europeias entre católicos e protestantes, que Uma lista incompleta, baseada nos Três
se estenderam por três séculos. Haja narci- ensaios sobre a teoria da sexualidade: a pri-
sismo das pequenas diferenças para negar a meira infância e sua sexualidade perverso
castração! Nos anos seguintes, Freud chegará polimorfa, a bissexualidade como condição
a um ponto de inflexão em sua obra que irá humana universal, a pulsão que em muito
além da neurose. difere do instinto. E mesmo que existam pre-

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Freud e os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
– interlocução com a primatologia em “Diferentes”, de Frans de Waal

disposições inatas de comportamento nos Abstract


três hominídeos mais próximos – chimpan- The importance of Darwin in Freud’s work.
zés, bonobos e sapiens – há grandes varieda- Primatology, uncreated science or time of the
des devidas à interação com outros do grupo father of psychoanalysis. General classification
e com o meio ambiente. of hominids, highlighting the two species clos-
É como se os Três ensaios, descritos a par- est to humans: chimpanzees and bonobos. Par-
tir da clínica e da observação humana de allels between sexuality according to the Three
Freud, terminasse por confluir com as pes- Essays and discoveries about the behavior of
quisas dos primatólogos. As divisões cria- these primates. The frequency of bisexuality
das pelas principais sociedades humanas, e observed in these two species converges with
muito acentuadas pelo patriarcado, não pos- Freud’s conclusions and Kinsey’s research. Fre-
suem justificativas biológicas. Como defen- quency and variety of sexual behaviors in both
deu Waal (2023, p. 286) em seu mais recente species, largely contrary to and/or exceeding
livro. the need for reproduction. Also converging
Muitas das principais descobertas de with the description of polymorphous perverse
Freud explicam os maiores mitos que o pró- sexuality. Bonobos as a species that are ruled
prio sapiens criou sobre si: a negação das três by alpha females. Difference between sex and
feridas narcísicas da humanidade. A crença gender also observed in both closely related
da superioridade do sapiens em relação a to- primate species. Creation of the concept of
dos os outros seres vivos. Negando qualquer sublimation by Freud, similar to that of “social
continuidade com a natureza e atacando glue” observed by primatologists. The kinship
qualquer racionalidade que lhe fira a vaida- between the Freudian concept of drive and the
de narcísica. A crença da superioridade do biological concept of neoteny – the ability to
sapiens masculino sobre a sapiens feminina. learn throughout life. The myth of patriarchy,
A negação do fato do quão pouco sabemos from the Three Essays to Moses and monothe-
da mente humana, principalmente sobre a ism, demystification as culturally recent and
psique humana e suas pulsões. E as guerras, not biological.
o imperialismo fundamentado em superiori-
dades religiosas e ambições compensatórias Keywords: Three essays, Neoteny, Chimpan-
ideologicamente disfarçadas, ameaçando zees and bonobos, Bisexuality, Patriarchy and
toda vida na terra. matriarchy, Waal.
Esse patriarcado, em que predominam
comportamentos violentos e restrições à
sexualidade feminina, recusa qualquer con-
tinuidade com a natureza e ataca qualquer
racionalidade. A fraqueza em tolerar a dor
imposta pelas três feridas narcísicas leva ao
absurdo de negar a astronomia e as ciên-
cias correlatas (a terra é plana), a origem e
o parentesco dos seres humanos com toda a
natureza (o evolucionismo não foi compro-
vado) e o inconsciente (psicanálise é uma
pseudociência).

38 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 25–40 | julho 2023


Anchyses Jobim Lopes

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III). In: ______. Amor, sexualidade, feminilidade. Recebido em: 20/05/2023
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Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 25–40 | julho 2023 39


Freud e os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
– interlocução com a primatologia em “Diferentes”, de Frans de Waal

Sobre o autor

Anchyses Jobim Lopes


Psicanalista e membro efetivo
do Círculo Brasileiro de Psicanálise
– Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP)
e à International Federation
of Psychoanalytic Societies (IFPS).
Médico e bacharel em filosofia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mestre em medicina (psiquiatria)
e em filosofia pela UFRJ.
Doutor em filosofia pela UFRJ.
Professor do curso de formação psicanalítica do
Centro de Estudos Antônio Franco Ribeiro da Silva
do CBP-RJ.
Supervisor clínico do Centro de Atendimento
Psicanalítico (CAP) do CBP-RJ.
Coordenador do Grupo de Trabalho Sobre
Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.
Foi professor assistente do quadro principal do
Departamento de Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
Professor adjunto da Faculdade de Educação e da
graduação em psicologia da Universidade Católica
de Petrópolis (UCP),
Professor titular III dos cursos de graduação em
psicologia e de especialização em teoria
e clínica psicanalítica da Universidade Estácio de Sá
(UNESA).
Patrono das turmas de formandos
em Psicologia da PUC-RJ, 1998 e 1999.
Patrono da turma de formandos em Psicologia 2012,
UNESA, Campus Ilha.
Presidente do CBP-RJ e do CBP em vários mandatos.
Delegado do CBP para a International Federation of
Psychoanalytic Societies (IFPS).
Um dos editores regionais para a América do Sul
da revista International Forum of Psychoanalysis.

E-mail: anchyses@terra.com.br

40 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 25–40 | julho 2023


Anna Lucia Leão López

Supervisão no Núcleo de Estudos Psicanalíticos


da Infância e Adolescência – NEPsI:
ofício e transmissão da Psicanálise1
Supervision at the Center for Psychoanalytic Studies
of Childhood and Adolescence – NEPsI:
the craft and transmission of Psychoanalysis
Anna Lucia Leão López

Resumo
Este trabalho aborda o lugar da supervisão de atendimentos psicanalíticos de crianças e ado-
lescentes na formação do analista, realizando uma articulação entre a constituição do analista
e a constituição do sujeito. Também apresenta questões sobre a especificidade da supervi-
são de atendimentos psicanalíticos com crianças e adolescentes e seus efeitos no analista em
formação, que está encontrando o seu estilo. Para essa reflexão, fazemos uma costura com a
vivência como supervisora da clínica do Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância e Ado-
lescência (NEPsI), que pertence a Clínica Social do Círculo Brasileiro de Psicanálise – seção
Rio de Janeiro (CBP-RJ).

Palavras-chave: Supervisão, Psicanálise com crianças e adolescentes, Lugar do analista, For-


mação do analista, NEPsI.

Se o que você diz ressoa (em alguém),


houve transmissão.
Houve um dizer que vale a pena.
Inês Catão

Este trabalho é fruto da experiência como CBP-RJ (Núcleo de Estudos Psicanalíticos da


supervisora do NEPsI, com supervisionados Infância e Adolescência – Círculo Brasileiro
no consultório e nas trocas realizadas duran- de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro) e I Jor-
te as reuniões mensais das Clínicas Sociais nada do NEPIA – CPRS (Núcleo de Estudos
do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP). Psicanalíticos da Infância e Adolescência –
E encontra oportunidade para a sua cons- Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul).
trução a partir da apresentação sobre Su- Partindo do tripé analítico proposto por
pervisão da Clínica Psicanalítica da Infância Freud, que nos sustenta ao longo do nosso
e Adolescência na VIII Jornada do NEPsI – ofício de analista – análise pessoal, teoria e

1. Trabalho apresentado na VIII Jornada do NEPsI e I Jornada do NEPIA: Clínica psicanalítica com crianças e ado-
lescentes no século XXI, Rio de Janeiro, 23-24 jun. 2023.

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 41–46 | julho 2023 41


Supervisão no Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância e Adolescência – NEPsI:
ofício e transmissão da Psicanálise

supervisão –, apresentamos aqui algumas re- pervisões torna-se obrigatória e ocorrem em


flexões sobre a experiência de algumas déca- grupo com frequência semanal.
das na supervisão de analistas em formação, Logo no início das atividades do NEPsI,
que realizam atendimentos psicanalíticos de observou-se a importância de utilizar uma
crianças e adolescentes. Qual a especificida- ficha específica para a realização da triagem,
de dessa supervisão? Quais efeitos da clínica uma vez que as informações da ficha de tria-
com crianças (com o sujeito em constituição gem do CAP não atendiam às particularida-
e imprimindo sua identidade) no analista em des da clínica com crianças e adolescentes.
formação? Qual o lugar da supervisão com o A ficha de triagem do NEPsI foi reformu-
analista em formação, que está encontrando lada e está de acordo com tais especificida-
o seu estilo? des, como não é o próprio sujeito que busca
Seguindo essas reflexões, podemos dizer atendimento; quem participa da primeira
que tornar-se analista é descobrir a sua mão, triagem são os pais ou responsáveis; existem
encontrar o seu estilo. Na formação do analista, informações importantes a serem escutadas
ele vai sendo atravessado pela psicanálise, se sobre a primeira infância do sujeito que será
constituindo artesanalmente como analista. atendido (de quem será o analisando).
E o NEPsI, a partir de sua criação, passa Destacamos algo importante que compa-
a funcionar como um espaço específico de rece ao longo da existência do NEPsI. Com
supervisão para analistas em formação que frequência, observa-se que a entrada no
realizam atendimentos psicanalíticos das NEPsI ocorre após o analista em formação
crianças e adolescentes, oriundos da Clíni- ter entrado no CAP. E nesse momento, es-
ca Social do CBP-RJ. O NEPsI e o Centro de cutamos relatos, falas de um certo “medo”,
Atendimento Psicossocial (CAP) do CBP-RJ assustados com o infantil: “Não quero aten-
conformam a Clínica Social, e são recebidos der criança” ou “Não quero atender criança
pelo NEPsI os encaminhamentos de pessoas ainda”.
de 0 a 18 anos. Durante o trabalho, optamos Nessa direção, pensamos no adulto cro-
por chamar de analistas em formação aque- nológico que atendemos, que somos. O bebê,
les alunos ou candidatos que estão realizan- a criança e o adolescente que fomos ou so-
do a sua formação analítica no CBP-RJ, sua mos, atualizados nas nossas relações atuais.
travessia do vir a ser analista, e participam Aqui vemos pistas para refletir sobre o lugar
do NEPsI. da supervisão dos atendimentos psicanalíti-
Existem requisitos para participar do cos de crianças e adolescentes na formação
NEPsI. O analista em formação deve ter per- do analista.
corrido os dois primeiros anos de seminários Segundo Gueller (2020, p. 18), “[c]omo o
teóricos; ter aprovados os trabalhos de final candidato, a criança é alguém em formação e
de semestre; apresentar declaração de estar que precisa ser conduzido a bom porto”, ou
em análise pessoal, no mínimo duas vezes seja, tanto na posição da criança como na do
por semana, há pelo menos dois anos; e ter supervisionado que inicia sua formação, há
iniciado a sua supervisão individual. Aqui algo de inacabado.
esclarecemos que o CBP-RJ exige que todo Nessa direção, o espaço da supervisão no
analista em formação realize duas supervi- NEPsI com o analista em formação oferece
sões individuais, de 50 horas cada, com dois uma forma de atenuar a solidão do lugar do
supervisores diferentes que sejam membros analista. Solidão vivenciada no exercício do
efetivos da instituição. ofício do analista. O nosso ofício clínico é
A participação do analista em formação muito solitário.
nas atividades do CAP e do NEPsI não é O espaço da supervisão do NEPsI oportu-
obrigatória. Porém, caso ele opte por parti- niza também a troca de indicações bibliográ-
cipar de suas atividades, a frequência às su- ficas, de material de trabalho com crianças e

42 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 41–46 | julho 2023


Anna Lucia Leão López

adolescentes, além de acesso a outros espa- sempre encontra a rocha da castração, sem-
ços de troca, como jornada, apresentação de pre ficam restos inanalisáveis.
trabalhos, encontro clínico e outros eventos. Stein apud Garrafa (2006, p. 84-85) afir-
Também pontuamos a importância das ma:
reuniões das clínicas sociais do CBP, desde
2021, com frequência mensal. Não temos Percebeu-se, portanto, que as extensas narra-
uma pauta, os assuntos vão surgindo. Os tivas das sessões informam mais a respeito do
participantes dessas reuniões são os coorde- analista, e de sua própria análise, do que de
nadores das clínicas sociais das seis filiadas seu paciente, pois os atendimentos são relata-
pertencentes ao CBP (CBP-RJ; CPRS; Cír- dos tal como o analista pode escutá-los.
culo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG;
Círculo Psicanalítico da Bahia - CPB; Círcu- Nessa direção, Mendes (2012, p. 53) vai
lo Psicanalítico de Sergipe - CPS e Círculo trazer a supervisão como “um lugar de ela-
Psicanalítico do Pará - CPPA). São momen- boração de saber do analista: antes, durante,
tos ricos de troca entre os supervisores das e depois de cada encontro com o supervisor”.
filiadas que ajudam a sustentar o nosso lugar A supervisão não como uma sucessão de en-
de supervisor. Um continente para as angús- contros, e sim como um processo.
tias dos supervisores, para que possam dar
continência para seus supervisionados. Um momento de elaboração de saber e de
Destacamos outro ponto interessante: a confronto com a elaboração de outro analista,
escassa bibliografia sobre o tema da super- não como uma prova ou exame, mas de con-
visão na clínica psicanalítica com crianças e frontação de sua pertinência e coerência sob a
adolescentes. E por isso, como sustentação prova da clínica (Mendes, 2012, p. 53).
teórica, num chão freudiano, recorremos ao
texto O psicanalista e o sujeito em formação: Um espaço que articula o caso a caso com
Supervisão e análise com crianças, de Adela a teoria psicanalítica, ou seja, a supervisão
Judith Stoppel de Gueller. Também utiliza- “articula o universal da teoria ao particular
mos outros autores: Daniel Delouya e Eliana da clínica e reabre o lugar da escuta, isto é,
Mendes. o lugar do analista para a subjetividade em
Refletir sobre o lugar da supervisão no questão” (Mendes, 2012, p. 54).
ofício do analista nos leva a pensar no tripé Gueller (2020) contribui nos apresentan-
analítico. Se um dos pés fica bambo, a pol- do uma importante reflexão: O que significa
trona do analista bambeia. Nesse sentido, uma articulação entre teoria e clínica? Não é
recorremos a Freud para conseguir mais fer- esse o espaço da supervisão?
ramentas a fim de realizar a articulação da O primeiro modelo de supervisão sur-
vivência da clínica psicanalítica com crian- giu na Clínica de Berlim, onde trabalha-
ças e adolescentes, a formação do analista e o vam Max Eitingon e Karl Abraham, que
lugar da supervisão. propuseram que a supervisão fosse feita
Mendes (2012) nos diz que Freud, como por um analista diferente do que condu-
fundador da psicanálise, não podia contar zia a análise do analista em formação, para
com o auxílio de um supervisor, mas fre- promover a diversidade. Essa proposta foi
quentemente podemos vê-lo reavaliando o formulada no Congresso de Budapeste, em
seu trabalho junto com os pacientes. Sabe- 1918, ratificada em 1920 por Max Eitingon
mos que o lugar do terceiro entre ele e seus e delineou o tripé clássico da formação em
analisandos era desempenhado pela escrita psicanálise: análise pessoal, estudo teórico
de sua obra. e supervisão.
Freud (1937/2017), em A análise finita e a A proposta considerava que mais super-
infinita, ressalta que a análise é infinita, pois visores e linhas teóricas aumentam o leque

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 41–46 | julho 2023 43


Supervisão no Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância e Adolescência – NEPsI:
ofício e transmissão da Psicanálise

de opções ao analista em formação, possi- p. 29) pergunta/interroga/questiona: “Seria


bilitando escolhas de como se posicionar possível aventar que o modo como se apren-
no ofício de analista. Todavia, a supervisão de o ofício de analisar tem relação como de
acabava sendo transformada numa análise tomar/ser tomado pela linguagem?”.
de controle, o controle da análise do analista Gueller (2020) prossegue levantando
em formação. Tal como câmeras de vigilân- questões: se a psicanálise é um modo de
cia sobre o agir do analista em formação, vi- aprender uma função que habita o incons-
sando limitar os riscos do ofício do analista. ciente de todo ser falante, será que o ofício de
No primeiro modelo de supervisão, que analista se aprende do mesmo modo como
considera importante ter um leque de op- se aprende a falar? A linguagem se ensina?
ções, a questão da multiplicidade de trans- Aprende-se a falar falando com os outros
ferências que encontramos é também uma e, para isso, é preciso que esse outro seja si-
das especificidades da clínica psicanalítica tuado como suposto interlocutor. Assim, que
com crianças e adolescentes. Somos, com possamos pensar em tomar a apreensão da
frequência, convocados a fazer algum traba- língua como matriz para conceituar a forma-
lho com os pais, com a escola, o pediatra ou ção dos analistas, saindo do modelo peda-
outros profissionais que estejam em contato gógico tradicional que delineia os lugares de
com o analisando. mestre e aluno.
É importante compreender a formação, A clínica psicanalítica com crianças vem
com suas riquezas e incertezas. Perrier apud recriando a teoria psicanalítica e seus modos
Gueller (2020) nos provoca a pensá-la quan- de intervenção. Apresentando uma proposta
do nos diz: de formação que se detenha nas particulari-
dades desse atendimento. Uma prática psica-
[...] não é querer tornar-se analista o que fun- nalítica marcada pela impureza, pela sujeira
damenta o problema, mas antes o ter se torna- e por entrar em cena o corpo do analista,
do analista que o cria retroativamente. Desse uma vez que não podemos intervir no brin-
modo, ele inverte o problema da formação: car sem vibrar num jogo, sem pôr as mãos na
em vez de pensar geneticamente, propõe pen- massinha, sem deixar respingar de tinta, sem
sar que só depois se poderá dizer se houve mudar o tom de voz.
análise, assim como só depois se poderá dizer Como exemplo desse movimento, o
se houve formação (Gueller, 2020, p. 28). CPRS, onde está o NEPIA, compreendendo
tais especificidades, criou em 2022 e ofereceu
Como diz Gueller (2020, p. 21): o primeiro Curso Complementar de Forma-
ção Psicanalítica – Psicanálise da Infância e
Assim como não há autoanálise, também não da Adolescência, com duração de um ano,
há como autoavaliar a condução de uma aná- contando com a participação das filiadas do
lise. É, pois, falando a um outro que podemos CBP.
escutar o que nós mesmos dissemos ou não Afinal, atender crianças e adolescentes
dissemos no campo transferencial. Assim, a muda a maneira de pensar a análise com
supervisão deve favorecer a elaboração disso adultos. Como diz Gueller (2020, p. 31), “fico
que transcorre no espaço analítico, no après- mais livre para brincar, menos abstinente e
-coup do ato e do dito, do tempo do aconteci- formal, sem medo de me fazer de bruxa, ca-
mento em que é impossível pensar. pitão, dinossauro, mãe, pai ou professor”.
Todos os analistas foram criança um dia,
Esse é um desafio da supervisão. Encon- e aqui abordamos dois pontos cruciais na clí-
trar uma matriz diferente, tanto da matriz do nica com crianças e adolescentes: as múlti-
modelo patriarcal de transmissão quanto da plas transferências em jogo e o lugar do brin-
matriz do modelo do amor. Gueller (2020, car. Nesse sentido, o supervisor precisa dis-

44 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 41–46 | julho 2023


Anna Lucia Leão López

por de experiência clínica, um certo dom da formação de escutar o que fala a sua criança,
transmissão e familiaridade com a metapsi- assim como ajudá-lo a encontrar o seu pró-
cologia. Por isso, concordamos com Delouya prio estilo, a constituir-se enquanto analista.
(2020) que diz que enquanto supervisor aju- Dessa forma, oportunizando que mais crian-
damos ao supervisionado a se tornar analista ças e adolescentes encontrem mais espaços
para o seu paciente. Ajudamos a escutar! de escuta.
A metapsicologia é um órgão de percep-
ção da transferência, assim como da confi-
guração clínica a ela implícita: de nomeação Abstract
e de articulação das cenas e dos processos This work addresses the place of supervision
que comparecem em meio à regressão em of psychoanalytic care for children and ado-
relação ao material trazido, e que se tornam, lescents in the training of the analyst, creating
assim, objeto de diálogo e elaboração da du- a link between the constitution of the analyst
pla da supervisão. Como na análise, as elabo- and the constitution of the subject. It also pres-
rações na supervisão tendem a propiciar no ents questions about the specificity of supervis-
supervisionado a rede associativa do campo ing psychoanalytic care with children and ad-
transferencial, que se segue às formulações olescents and its effects on the analyst in train-
construtivas. ing, who is finding his style. For this reflection,
A prática clínica da supervisão diz respei- we draw on my experience as supervisor of the
to à percepção, no atendimento psicanalíti- clinic at the Center for Psychoanalytic Studies
co, das próprias transferências do analista, of Childhood and Adolescence - NEPsI, which
valorizando a supervisão como um instru- belongs to the Social Clinic of the Brazilian
mento para analisar a contratransferência do Psychoanalysis Circle - Rio de Janeiro - Sec-
analista em formação. tion CBP-RJ.
E, de acordo com Delouya (2020, p. 29), “é
preciso que haja um descolamento, um des- Keywords: Supervision, Psychoanalysis with
prendimento, lenta e progressivamente, das children and adolescents, Analyst’s place, An-
miragens identificatórias e contra identifica- alyst training, NEPsI.
tórias do supervisionado”, possibilitando ao
analista em formação se apropriar da posi-
ção de se tornar analista do seu paciente.
Pensando que o conhecimento produzido
no dispositivo da supervisão não é exterior à
experiência vivida na clínica, e que vem a ser
sua característica própria, trazemos o espaço
da supervisão no NEPsI. Espaço que possi-
bilita abordar a singularidade da experiência
psicanalítica com crianças e adolescentes e a
particularidade de sua transmissão.
Se a escuta do caso em supervisão traz as
marcas daquele que o escutou, o espaço da
supervisão no NEPsI pode ser compreendi-
do como um lugar de acolhimento da escuta
do analista em formação, na clínica psica-
nalítica com crianças e adolescentes, com a
delicadeza necessária para a releitura com-
partilhada de uma experiência de escuta.
Criando a possibilidade para o analista em

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 41–46 | julho 2023 45


Supervisão no Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância e Adolescência – NEPsI:
ofício e transmissão da Psicanálise

Referências Sobre a autora

Anna Lucia Leão Lopez


Psicanalista e membro efetivo
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Aprovado em: 15/08/2023

46 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 41–46 | julho 2023


Cássio Eduardo Soares Miranda

Breves considerações acerca


do “Recalcamento” em Freud1
Brief considerations about
“Repression” in Freud
Cássio Eduardo Soares Miranda

Resumo
Este ensaio tem como finalidade discutir a elaboração do conceito de recalque presente no
artigo Recalcamento, de Freud. A partir de uma vinheta clínica, busca circunscrever o conceito
freudiano orientado pela perspectiva da primeira topologia do aparelho psíquico, dialogando
com fragmentos de um filme. O artigo freudiano em discussão se configura como um dos
temas metapsicológicos de Freud e ainda hoje nos auxilia na direção do tratamento psicana-
lítico.

Palavras-chave: Recalcamento, Metapsicologia, Direção do tratamento.

Introdução “paquera fixo”, conforme dizia, e, junto com


“Minha adolescência e boa parte da juventu- o presente, recebe um toque carinhoso no
de foram bastante inibidas em razão de uma seu rosto seguido de um beijo. Incomodado,
obesidade e uma homossexualidade repri- Antônio o afasta. Tempos depois, ao relatar
mida”. É assim que Antônio se apresenta em tal cena em análise, questiona-se o porquê
uma de suas primeiras idas ao analista. Pas- de ser tomado por uma vergonha tamanha e
sou boa parte de sua vida morando em uma sentir que poderia estar sendo vigiado ou até
pequena cidade no interior do Brasil. Suas punido, mesmo estando a milhares de qui-
experiências sexuais eram marcadas pelo lômetros de distância de casa, em um país
anonimato em práticas fortuitas em parques liberal e aberto, conforme ele mesmo dizia.
e banheiros públicos de uma cidade vizinha Tal vinheta clínica talvez nos permita pensar
à sua, um pouco maior. Dizia que aquela era no tema proposto aqui para nossa reflexão
a única forma de viver a sua sexualidade, teórica, que é uma leitura do precioso texto
pois temia as consequências de ser gay em freudiano de 1915, intitulado de O recalca-
um lugar tão provinciano quanto aquele em mento (ou O recalque, a depender da edição).
que vivia. Seus estudos universitários lhe No Rascunho B. A etiologia das neuroses,
permitiram realizar parte de seu doutorado Freud (08 fev. 1893/1996) chama a atenção
no interior da França, levando consigo al- para a etiologia sexual das neuroses o que,
guns anos de análise. Numa tarde qualquer, é para ele, associava-se com os impasses exis-
interpelado por um rapaz com quem come- tentes entre as exigências de uma sexualida-
ça a ter encontros públicos. Em uma visita a de sadia e as imposições sociais contraditó-
um hipermercado, é lá presenteado por seu rias de seu tempo. Para Freud, no entanto,

1. Este ensaio é parte das discussões apresentadas no seminário O sintoma: de Marx a Lacan, coordenado por Clarice
Gatto no Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro, a quem agradeço a acolhida e as considerações ao texto exposto.

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 47–54 | julho 2023 47


Breves considerações acerca do “Recalcamento” em Freud

essa antinomia não é insolúvel tendo em vis- mas neuróticos são causados pelas fantasias
ta que é em nome de uma profilaxia médica e vivências sexuais submetidas à repressão
que ele se posiciona. pelo processo civilizatório. Entretanto, con-
Freud (1893/1996, p. 136) destaca: forme pode ser visto nas modificações pro-
postas por ele em sua teoria ao escutar suas
Na ausência de qualquer solução possível, a pacientes, nota-se que a aposta no poder da
sociedade parece condenada a tornar-se ví- palavra permite a ele verificar que é possível
tima de neuroses incuráveis que reduzem ao advir uma palavra no lugar do sintoma e, de
mínimo a alegria de viver, destroem as rela- algum modo,
ções conjugais e, pela hereditariedade, trazem
consigo a ruína das gerações vindouras. [...] o que obstaculiza a palavra se opõe [...] ao
progresso da civilização e até mesmo ao da hu-
Orientado pela crença de que existe um manidade [...]. Assim, Freud é levado a denun-
antagonismo entre a sexualidade do indiví- ciar aqui os abusos de uma moral sexual que,
duo e a civilização, Freud se imbui de um não contente com reprimir os atos eventual-
ânimo reformista, ao acreditar que “a repres- mente prejudiciais à sociedade, chega mesmo a
são sexual, essa nossa velha (des)conhecida”, proibir as intenções e até o mero pensamento,
encontrava seu respaldo necessariamente em acarretando, desta maneira, a inibição da ativi-
uma sociedade conservadora e até mesmo dade intelectual (Millot, 1995, p. 16).
reacionária. É certo que a repressão social
contribui para o incremento das neuroses e, Essas considerações iniciais nos permi-
de algum modo, como Freud (1896/1996, p. tem verificar que existe um mecanismo de
278) mesmo sustenta: poder que se impõe de fora pra dentro, em-
bora se encontre uma certa vulgarização da
Seria necessário mudar muitas coisas. É pre- psicanálise que defende a noção de que a
ciso vencer a resistência de uma geração de repressão é um mecanismo consciente que
médicos que já não podem lembrar-se de sua atua ao nível da segunda censura. É o po-
própria juventude, triunfar sobre o orgulho de sicionamento encontrado em Laplanche e
pais que não querem se rebaixar ao nível hu- Pontalis (1988), a título de exemplificação.
mano diante de seus filhos, combater a hipo- Segundo esses autores, Freud situa a repres-
crisia insensata das mães, essas mães que con- são entre o consciente e o pré-consciente,
sideram atualmente como um golpe imerecido tratando-se da exclusão de algum material
e incompreensível do destino o fato de que seus do campo da consciência. As motivações
filhos sejam os únicos a tornar-se neuróticos. morais desempenham um papel predomi-
Mas é preciso sobretudo dar lugar à discussão nante na repressão.
dos problemas da vida sexual junto à opinião Com Michel Foucault (1987), destaca-
pública. Teria que ser possível falar dessas mos que os mecanismos de controle social
coisas sem sermos considerados um fator de na modernidade evidenciaram uma forma
problemas ou alguém que explora os instintos de poder denominada de “poder disciplinar”.
mais baixos. E aqui também há muito o que Essa prática visa modelar as formas de con-
fazer para que, no decorrer dos próximos cem dutas do corpo social, ou seja, de todos os
anos, nossa civilização aprenda a se compor indivíduos que o constituem. Talvez essa seja
com as exigências de nossa sexualidade. a concepção mais corriqueira de poder, com
seu caráter repressor que, de maneira impie-
Esses apontamentos iniciais servem, de dosa, exclui e comanda as condutas sociais.
algum modo, para destacar que desde a Co- Embora essa compreensão de repressão seja
municação preliminar, de 1893, Sigmund importante, o recalque, ao que nos parece, é
Freud defendeu a proposição de que os sinto- algo de outra ordem.

48 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 47–54 | julho 2023


Cássio Eduardo Soares Miranda

Do recalque: uma proposição freudiana cença filológica: no Dicionário comentado do


Ora, se durante um tempo de seu percurso alemão de Freud, Luiz Alberto Hanns (1996,
Freud utilizou os termos “recalque” e “defe- p. 355) informa:
sa” quase indistintamente, em 1915 o termo
assume uma precisão maior, fazendo com O verbo verdrängen genericamente signi-
que a teoria do recalque seja “a pedra angu- fica “empurrar para o lado”, “desalojar” [...]
lar sobre a qual repousa toda a estrutura da Conotativamente, verdrängen remete a uma
psicanálise”, como bem nos lembra a nota do sensação de “sufoco”, “incômodo”, que leva
editor. É Freud mesmo quem destaca o que o sujeito a desalojar o material que o inco-
vem a ser o recalque. Para ele, a clínica per- moda.
mite dizer que
Hanns (1996) destaca que a palavra
[...] o recalque não é um mecanismo defensivo “recalque” não é utilizada coloquialmen-
que esteja presente desde o início; que ele só te e abarca um sentido originário da lin-
pode surgir quando tiver ocorrido uma cisão guagem da construção, como um rebai-
marcante entre a atividade mental consciente xamento da terra ou de paredes após a
e a inconsciente; e que a essência do recalque construção. De fato, na engenharia civil, o
consiste simplesmente em afastar determinada recalque nada mais é do que o fenômeno
coisa do consciente, mantendo-a à distância que ocorre quando uma edificação sofre
(Freud, 1915/1996, p. 152, grifos do autor). um rebaixamento devido ao adensamen-
to do solo sob sua fundação. Ou seja, é
O que se mantém à distância? Talvez o de- quando o solo “afunda”. Mas o problema
sejo inconsciente que tem no objeto sexual a mesmo, segundo os engenheiros estru-
sua proeminência. turais, é quando esses recalques são dife-
Freud diferencia as modalidades do re- rentes ao longo da fundação ocasionando
calque: o recalque originário e o recalque trincas na estrutura.
secundário. O recalque originário não in- Hans (1996, p. 358) argumenta ainda
cide sobre a pulsão propriamente, mas em que o radical “calcar” tem diversos usos, tais
seus representantes, aqueles que não têm como calcar a terra ou o terreno, no sentido
acesso à consciência e aos quais a pulsão de pressionar, pisar, apertar. Também se apli-
permanece fixada. Consequência? O esta- ca, em linguagem figurada, a ideia de opri-
belecimento de um núcleo inconsciente que mir, vexar, desprezar, etc.
atua como uma espécie de “estação primei- A aposta na palavra e seus efeitos mobi-
ra” para o direcionamento dos elementos a lizadores da transferência fazem com que
serem recalcados. Freud constate que no núcleo do inconscien-
Esse recalque te se encontram representantes pulsionais e o
recalque, com sua característica – (1) atuar
[...] consiste em negar entrada no conscien- de forma altamente individual, com as vicis-
te ao representante psíquico (ideacional) da situdes próprias do recalcado; (2) e seu cará-
pulsão. Com isso, estabelece-se uma fixação; ter extremamente móbil, com seu dispêndio
a partir de então, o representante em questão persistente de força – passe a ser visto tam-
continua inalterado, e a pulsão permanece li- bém como uma operação que consiste em
gada a ele (Freud, 1915/1996, p. 153, grifo do retirar do campo da consciência aquilo que
autor). é intolerável. A relação sempre presente em
Freud do conceito com a dita “técnica” é des-
O recalque propriamente dito é um recal- tacado por ele, o que nos faz sustentar, mais
que posterior que, aliado à repulsa, é atraído uma vez, na aposta que Freud faz no poder
para fora da consciência. Uma pequena li- da palavra, bem como na sempre recorren-

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Breves considerações acerca do “Recalcamento” em Freud

te ideia de que a psicanálise é uma teoria da se que esse tempo consiste em negar a pas-
clínica. sagem para a consciência do representante
Freud (1915/1993, p. 154) diz: psíquico da pulsão. Com isso se estabeleceria
uma fixação, por meio da qual o represen-
Ao executarmos a técnica da psicanálise, con- tante em questão permaneceria inalterado e
tinuamos exigindo que o paciente produza, a pulsão ali permaneceria concentrada. O se-
de tal forma, derivados do recalcado, que, gundo tempo do recalque seria o do recalque
em consequência de sua distância no tempo, propriamente dito, que afetaria os derivados
ou de sua distorção, eles possam passar pela mentais dos representantes recalcados ou os
censura do consciente. [...]. No correr desse resquícios de pensamentos a eles ligados. Por
processo, observamos que o paciente pode fim, o terceiro tempo caracteriza o retorno
continuar a desfiar sua meada de associações, do recalcado, deixando “sintomas em seu
até ser levado de encontro a um pensamento, rastro”.4
cuja relação com o recalcado fique tão óbvia, Freud argumenta que só é possível ter
que o force a repetir sua tentativa de recalque. acesso ao recalque a partir de seus resulta-
dos, ou seja, na formação substitutiva sur-
A repetição, em ato, apontada por Freud gida como sintoma. Em sua argumentação,
nessa citação, a meu ver, é um ponto que apa- Freud (1915/1996, p. 153) se interroga:
rece na vinheta clínica apresentada na aber-
tura deste ensaio. Quando Antônio, mesmo Podemos então supor que a formação de
envergonhado frente ao gesto de carinho de substitutos e a formação de sintomas coinci-
seu “paquera fixo” permite-se continuar e dem, e, admitindo que isso aconteça de um
retribuir, um pouco mais tarde, os presentes modo geral, será o mecanismo formador de
recebidos, talvez tenhamos o esboço de um sintomas o mesmo que o do recalque?
posicionamento diferente do sujeito frente a
seu desejo, o que lhe permite se colocar de Conforme apontado, naquilo que diz res-
outra forma frente ao Outro, saindo do dese- peito aos efeitos do recalque sobre a parcela
jo anônimo para um amor que ousa dizer seu ideacional do representante da representa-
nome, parafraseando Oscar Wilde.2 ção, Freud salienta que o procedimento ini-
Em síntese, ouso dizer que esse momento cia a operação de geração de formações subs-
da obra freudiana é orientado pela perspec- titutas. Se o recalque deixa sintomas em seu
tiva da primeira tópica do aparelho psíquico, rastro, Freud assevera que tanto as chamadas
em que o recalcado e o inconsciente se equi- formações substitutas quanto o recalque são
param. Na suposição apresentada por Freud retornos do recalcado, ao que ele indica: (1)
de um recalque primevo ou primeiro,3 nota- o mecanismo do recalque não coincide com
o mecanismo das formações substitutas; (2)
há numerosos e diferentes mecanismos de
2. O amor que não ousa dizer seu nome é uma frase da linha
final do poema Dois amantes, de Lorde Alfred Douglas, de formações substitutas; e (3) ambos os meca-
setembro de 1892. Tornou-se expressão notável ao ser men- nismos se caracterizam por uma retirada do
cionada por Oscar Wilde como metáfora para a homosse- investimento de energia.
xualidade no processo em que foi condenado por atos ho-
mossexuais envolvendo sua relação com Lorde Douglas).
Ora, de algum modo esse texto de Freud
Peço licença para apresentar um trecho do belo poema ao
final deste artigo.
3. O recalque originário ou primário é uma construção hi-
potética elaborada por Freud. Trata-se, segundo essa elabo- 4. “Retorno do recalcado” é uma das clássicas definições do
ração, de um primeiro momento da operação do recalque. sintoma em Freud. Refere-se a um processo pelo qual os
A consequência desse primeiro tempo do recalcamento se elementos que foram extraídos do campo da consciência,
dá na formação de representações inconscientes que forma- ou seja, os elementos recalcados, reaparecem de modo de-
rão os núcleos inconscientes responsáveis pela “atração” de formado em razão do caráter indestrutível dos conteúdos
elementos a serem posteriormente recalcados. inconscientes.

50 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 47–54 | julho 2023


Cássio Eduardo Soares Miranda

nos permite, mais uma vez, apostar que a obsessiva. Não entraremos nos pormenores
linguagem está posta tanto em causa quan- apresentados pelo autor, mas apontaremos
to em consequência. Com Lacan (1954- algumas questões que poderão ser úteis para
1955/1985), a partir do Seminário 2:O eu o diagnóstico e a consequente condução de
na teoria de Freud e na técnica da psicaná- tratamentos atuais. De início, na chamada
lise, podemos defender que a novidade da histeria de angústia, um caso de fobia ani-
empreitada freudiana é que o humano não mal é utilizado por Freud para exemplificar
domina a linguagem primordial, tendo sido como a pulsão sujeita ao recalque é uma ati-
introduzido nessa engrenagem, e nela se en- tude libidinal para com o pai, aliado ao medo
contra, de algum modo, aprisionado. Para dele. Após o recalque dessa moção pulsional,
Lacan (1954-1955/1985), o homem se en- ele desaparece da consciência: o pai perde
contra posto em um primitivo simbolismo seu lugar de objeto de investimento libidinal
que difere das representações imaginárias, e e o animal surge como um substituto ao pai;
é aí que algo dele precisa fazer-se reconhecer. a parcela quantitativa de afeto ligado à ideia
Mas isso, conforme o ensinamento de Freud, original não desapareceu, mas foi transfor-
está recalcado. mada em angústia, tendo como resultante
Declara Lacan (1954-1955/1985, p. 385): sintomática o medo do animal. A formação
da fobia, desse modo, age como uma forma
É preciso maravilhar-nos com o paradoxo. O de fuga e impedimento da angústia.
homem não é aqui senhor em sua casa. Há Já na chamada histeria de conversão, o
algo no qual ele se integra e que já reina por autor assevera que o conteúdo ideacional
intermédio de suas combinações. A passagem é completamente retirado da consciência
do homem da ordem da natureza à ordem da e, como um substituto sintomático, surge a
cultura segue as mesmas combinações mate- conversão somática.
máticas que as que servirão para classificar e Por fim, na neurose obsessiva, o recalca-
explicar. Claude Lévi-Strauss as denomina es- mento é exitoso e o conteúdo ideacional é
truturas elementares do parentesco. E, no en- afastado, fazendo com que o afeto desapa-
tanto, os homens primitivos não são supostos reça. Entretanto, como uma espécie de re-
terem sido Pascal. O homem se acha metido, calcamento malsucedido, permanecendo o
seu ser todo, na procissão dos números, num conteúdo ideacional na consciência permi-
primitivo simbolismo que se distingue das tindo com que emoção que estava desapare-
representações imaginárias. É no meio disto cida retorne, de maneira modificada, como
que algo do homem tem de fazer-se reconhe- angústia social, moral e autocensura.
cer. Mas o que tem de fazer-se reconhecer não Finalizo este breve comentário, indicando
está expresso, nos ensina Freud, porém recal- o filme O dia em que eu não nasci.5 Trata-
cado. se da história de uma nadadora alemã que,
durante uma escala em Buenos Aires, re-
Essa longa citação nos faz recordar que conhece uma canção de ninar cantada por
o recalcado, conforme extraímos de Freud, uma jovem mãe. Maria não sabe sequer uma
sempre insiste, pede para ser. Nesse sentido, palavra da língua espanhola, mas começa a
é possível destacar que, em Lacan, seguindo cantar acompanhando a jovem mãe que em-
o caminho aberto por Freud, o sintoma é bala seu filho na sala de espera do aeroporto.
concebido como “o retorno, por via de subs- Emocionada, ela telefona para o pai, na Ale-
tituição significante, do que se encontra na manha, e fala sobre sua experiência. O título
ponta da pulsão como seu alvo [a satisfa-
ção]” (Lacan, 1959-1960/1988, p. 139).
Freud finaliza seu trabalho apontando as- 5. Drama produzido conjuntamente por Alemanha e Ar-
gentina, dirigido por Florian Micoud Cossen e lançado em
pectos do recalque na histeria e na neurose 2010.

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 47–54 | julho 2023 51


Breves considerações acerca do “Recalcamento” em Freud

em alemão [A canção em mim] talvez possa mar e tentar avançar, inclusive associando-as
nos dar uma pista do que Freud (1915/1996) ao sintoma e à condução do caso clínico. Tra-
afirma sobre uma lembrança latente ser um tar disso, no entanto, já é outra coisa a ser
resíduo de um processo psíquico; além disso, retomada em momento oportuno.
aponta as ressonâncias lacanianas no final do
Seminário 2: O eu na teoria de Freud e na téc- Considerações finais
nica da psicanálise, de que “o recalcado pede A proposta deste comentário acerca do recal-
para ser”. Contudo, como defende Freud que foi fazer uma breve incursão pelo texto
(1915/1996, p. 162) no texto em discussão, O recalcamento, de Freud (1915/1996). Tra-
ta-se de uma apresentação do modo como o
[...] cada abordagem isolada do assunto será conceito se apresenta no interior de um ar-
incompleta em si mesma, não podendo dei- tigo seminal sobre um tema que se constitui
xar de haver obscuridades sempre que ela se como um dos pilares do edifico teórico freu-
defrontar com material ainda não examinado; diano. Desse modo, é importante retomar as
no entanto, podemos esperar que uma síntese palavras de Lacan sobre o tema, tendo em
final conduza a uma compreensão adequada. vista que suas considerações nos auxiliam na
leitura do texto freudiano.
Nesses termos, o filme nos ajuda a pensar Para Lacan (1955-1956/1985, p. 23), aqui-
em outros elementos presentes no recalque, lo que é atingido pelo recalque sempre retor-
como os efeitos de alíngua6 [lalangue] no na,
corpo. É em lalangue que o sujeito vai enla-
çar seu desejo, ou seja, no excesso que escapa [...] pois o recalque e o retorno do recalcado
à língua, na fratura que a lalangue propor- são apenas o direito e o avesso de uma mes-
ciona. E Milner (1987) nos ajuda a pensar ma coisa. O recalcado está sempre aí, e ele se
em lalangue como algo que torna possível o exprime de maneira perfeitamente articulada
ser falante, tendo em vista que amor e lín- nos sintomas e numa multidão de outros fe-
gua se enraízam em lalangue, enquanto lugar nômenos.
do impossível, daquilo que excede à língua e
marca sua presença no desejo do ser falante. Como os textos de Freud e Lacan nos dei-
Para Milner, a existência de lalangue permite xam antever, o entendimento do processo do
dizer que o amor é possível e que o signo de recalque é de fundamental importância tan-
um sujeito pode causar um desejo. to para as pesquisas que entrelaçam à práxis
Retomar as discussões em torno do recal- psicanalítica quanto para o ensino e trans-
que, a nosso ver, é muito importante; reto- missão da psicanálise.

6. É oportuno destacar que não discutiremos aqui acerca


desse importante tema apresentado por Lacan no seminá-
rio O saber do psicanalista (1972). Entretanto, em razão de
lalangue ter relação com o inconsciente e com a gramática
advinda do Outro em sua relação com o desejo do Outro e
com a repetição, é importante, para uma breve consideração
no que tange ao tema proposto aqui, neste ensaio/comen-
tário, retomar o que Lacan considera sobre isso: “Eu faço
lalangue porque isso quer dizer lalala, a lalação, ou seja, é
um feito muito precoce do ser humano fazer lalações, as-
sim, basta apenas ver um bebê, escutá-lo, e verificar pou-
co a pouco que há uma pessoa, a mãe, que é exatamente a
mesma coisa que lalangue, exceto que se trata de alguém
encarnado que lhe transmite lalangue” (Lacan, 1974, s/p).

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Cássio Eduardo Soares Miranda

Extrato do poema Dois amantes, de Lorde Abstract


Alfred Douglas This essay aims to discuss the elaboration of
the concept of repression present in the article
[...] Enquanto me assombrava, da parte oposta a esta “Repression”, by Freud. Based on a clinical vi-
chegou um jovem, que levantou a palma num gesto gnette, it seeks to circumscribe the Freudian
contra o sol, suas madeixas em desarranjo concept guided by the perspective of the first
ao vento ornadas de flores; topology of the psychic apparatus, dialoguing
[...] Branco como a neve with fragments of a film. The Freudian article
intacta dos montes gelados, nu ele estava. under discussion is configured as one of Freud’s
Lábios da cor do vinho que caíra no soalho metapsychological themes and still helps us in
de alabastro; de calcedônia era sua pele. the direction of psychoanalytic treatment.
De mim se aproximou, amáveis lábios cindidos,
segurou minha mão e minha boca beijou, Keywords: Repression, Metapsychology,
deu-me de comer suas uvas e disse: Treatment direction.
“Vem, te mostrarei imagens da vida, doce amigo,
e as sombras do mundo. Repara desde o sul
como o espetáculo sem fim previsto vem.” [...]
Mas havia um colega caminhando ao seu lado,
terno e lastimoso, com olhos esquisitos
pois eram tão assombrosamente iluminados.
Destarte me olhou e suspirou vários suspiros
que me comoveram. [...]
Quando o vi, para ele gritei, desconsolado:
“Amável jovem, dize-me por qual razão
andarilhas por este reino encantador
tão triste e suspirante?
Conta de antemão, qual é teu nome?”
E ele diz: “Meu nome é Amor”.
De imediato, o primeiro se voltou pra mim
e gritou: “Ele mente, pois
Vergonha é seu nome!
Amor sou eu, e estava habituado a neste jardim
andar sozinho, até que ele veio
sem que a noite o invitasse.
Sou a chama do amor verdadeiro,
que mutuamente o rapaz e a moça consome.”
E diz o outro, suspirante,
“Pois como queiras, eu sou o amor que não se atreve
a dizer seu nome”.

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 47–54 | julho 2023 53


Breves considerações acerca do “Recalcamento” em Freud

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FREUD, S. Sobre o mecanismo psíquico dos Graduado em psicologia pela Faculdade
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(1893) (Breuer e Freud). In: ______. Estudos sobre Mineira de Educação e Cultura (FCH/FUMEC).
a histeria (1893-1895). Direção da tradução: Jayme Psicanalista.
Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 39-53. Coordenador do Núcleo de Estudos Lacanianos
(Edição standard brasileira das obras psicológicas de Teresina, iniciativa da Escola de Psicanálise
completas de Sigmund Freud, 2). dos Fóruns do Campo Lacaniano
Doutor em psicologia pela Universidade Federal
HANNS, L. A. Dicionário comentado do alemão de do Rio de Janeiro (UFRJ).
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Doutor em estudos linguísticos
pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
LACAN, J. Le Séminaire, livre XXII: RSI (1974- Pós-doutor pela Faculdade de Letras da UFMG
1975). Version de l’Association Freudienne (FALE-UFMG).
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(FAE-UFMG)
LACAN, J. O seminário, livro 2: O eu na teoria de Professor adjunto da Universidade Federal do Piauí.
Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Texto Professor permanente do Programa de Pós-
estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Graduação em Saúde da Família da Universidade
Marie Christine Lasnik Penot. Rio de Janeiro: Zahar, Federal do Piauí (UFPI)
1985. (Campo Freudiano no Brasil). Membro do GT Psicanálise e Educação da ANPEPP
(Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
LACAN, J. O seminário, livro 3: As psicoses (1955- em Psicologia).
1956). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller.
Tradução: Aluísio Menezes. Rio de Janeiro: Zahar, E-mail: cassioedu@ufpi.edu.br
1985. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise


(1959-1960). Texto estabelecido por Jacques-Alain

54 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 47–54 | julho 2023


Déborah Pimentel

O corpo e a subjetividade do sujeito


The body and subjectivity of the subject
Déborah Pimentel

Resumo
Trata-se de uma revisão sistemática sobre o tema corpo, cuja base de dados foi a revista Estu-
dos de Psicanálise. Método: Os critérios de inclusão dos artigos foram a palavra-chave “corpo”
e a limitação temporal dos últimos 10 anos. Durante os 54 anos em que a revista foi editada,
apenas 15 trabalhos foram publicados com essa temática e 8 foram publicados de 2012 a 2022.
Objetivo: Descobrir se houve mudanças na forma de pensar ou sentir o corpo, do ponto de
visto psicanalítico, nestes últimos dez anos. Resultados: Cada texto ofereceu uma perspectiva
única sobre a relação entre corpo e a lente poderosa da psicanálise para compreender o sofri-
mento psíquico expresso através do corpo. Conclusão: Com as novas formas de subjetivação
na contemporaneidade, os sofrimentos não mais seguem a lógica do conflito psíquico, do
recalque e da representação, pois são sofrimentos que se caracterizam pela impossibilidade de
representação e nomeação. Entretanto, a psicanálise mantém a sua relevância, viva e atual, na
análise das respostas humanas aos desafios sociais.

Palavras-chave: Corpo, Subjetividade, Imagem corporal, Revisão sistemática.

Falo com meu corpo, e isto sem saber.


Digo, portanto, sempre mais do que sei.
É aí que chego ao sentido da palavra sujeito
no discurso analítico.
O que fala sem saber me faz eu,
sujeito do verbo.
Jacques Lacan. Seminário 20.

O registro psíquico do desamparo


é algo de ordem originária,
marcando a subjetividade humana
para todo o centro,
de maneira indelével e insofismável.
Joel Birman. Mal-estar na atualidade.

Introdução canálise, editada pela primeira vez em 1969


A nossa revista Estudos de Psicanálise, com pelo Círculo Brasileiro de Psicanálise.
edições semestrais na atualidade, traz artigos A minha curiosidade era saber como o
das múltiplas federadas pertencentes ao Cír- corpo era entendido e tratado pelos psicana-
culo Brasileiro de Psicanálise (CBP), portan- listas dessa instituição, considerando os pre-
to é um verdadeiro mosaico que representa ceitos de Sigmund Freud.
todas as instituições que são a ele filiadas. Esta minha proposta abrange 54 anos de
Decidi me debruçar sobre a palavras-cha- edições da nossa revista. O primeiro deles foi
ve “corpo” dentro da revista Estudos de Psi- escrito em 1989 e, neste período até os dias

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 55–66 | julho 2023 55


O corpo e a subjetividade do sujeito

atuais, foram publicados apenas 15 artigos O tesauro multilíngue DeCS/MeSH –


sobre o tema. A Tabela 1 traz a relação dos Descritores em Ciências da Saúde/Medical
títulos, dos autores, e o ano de publicação. Subject Headings foi criado pela BIREME
para servir como uma linguagem única na
Critérios para seleção indexação de artigos de revistas científicas,
dos artigos livros, anais de congressos, relatórios técni-
Para começar a revisão, definimos a pergunta cos, e outros tipos de materiais, para serem
que orientaria este artigo: Houve mudanças usados na pesquisa e na recuperação de as-
na forma de pensar ou sentir o corpo nestes suntos da literatura científica nas fontes de
últimos dez anos? informação disponíveis no mundo, inclusive
Para efeito de corte, detive-me em apenas na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) como
dois filtros: a palavra-chave “corpo” e o es- LILACS, MEDLINE e BVS-PSI, esta última, a
paço temporal referente aos últimos 10 anos. plataforma onde nossa revista está indexada.
Destarte, para efeito deste artigo, examinei Se fizermos um trabalho mais acurado,
apenas os últimos oito textos. diremos que somos, na revista Estudos de Psi-
Mas sem dúvida, se eu me tivesse aten- canálise, os autores mais criativos do mundo,
tado apenas sobre os títulos dos trabalhos, ou os mais rebeldes com relação às normas
a despeito da palavra-chave escolhida, teria acadêmicas, com muitos neologismos, inclu-
descoberto que a palavra “corpo” aparecia sive, como palavras-chave.
mais vezes, a exemplo da última revista Estu- Mas voltemos para a pergunta princi-
dos de Psicanálise em circulação, número 58, pal, objetivo do nosso trabalho: algo mudou
de dezembro de 2022, onde na p. 73, consta desde o entendimento de Freud até os dias
o artigo de Márcia Costa Barbosa intitulado atuais sobre a compreensão do corpo e, em
Escutando o corpo, e paradoxalmente, “cor- especial, nos últimos 10 anos de publicação
po”, não consta nas palavras-chave. da Estudos de Psicanálise?
Nesse trabalho mencionado, a autora
(Barbosa, 2022) relata que, na clínica, ana- Referências de maior destaque
lisandos apresentam um discurso vazio, nos oito artigos analisados
evocando sensações e dando origem a uma Os artigos juntos produziram 162 referências
experiência que vai além do uso e da apreen- de autores consagrados da psicanálise in-
são da própria palavra, demonstrando como cluindo os pioneiros. Esses artigos contem-
o sujeito-corpo pode dar voz ao sofrimento plaram Sigmund Freud 26 vezes, com desta-
psíquico não passível de elaboração. Ou- que para os textos O ego e o id, (1923), citado
trossim, o trabalho de Barbosa (2022) não em quatro dos oito artigos, seguido por Três
preencheu os critérios de inclusão, aqui es- ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905);
tabelecidos, ainda que seu texto fale sobre o Inibição, sintoma e angústia (1826-1929) e
corpo. Vale lembrar que as palavras de desta- O mal-estar na civilização e outros trabalhos
que do título devem constar necessariamente (1927-1931), que foram citados por três arti-
entre as palavras-chave. Isso deve ter aconte- gos distintos. Freud ainda teve os trabalhos
cido inúmeras vezes e passou despercebido Além do princípio de prazer (1917-1920),
até então. Moisés e o monoteísmo, esboço de psicanáli-
Aliás, nesta pesquisa descobri outra ques- se e outros trabalhos; Pulsions et destins des
tão considerada relevante no mundo acadê- pulsions; Sobre o narcisismo: uma introdução
mico: não podemos inventar palavras-chave (1914), usados em dois artigos diferentes.
sob pena de sermos ignorados e não sermos Jacques Lacan foi citado dez vezes dife-
lidos. Palavras-chave devem, no mundo das rentes e três artigos repetiram a mesma obra,
publicações, ser reconhecidas em qualquer qual seja, O Seminário, livro 20: Mais, ainda
parte do planeta. (1972-1973).

56 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 55–66 | julho 2023


Déborah Pimentel

4
Tabela 1 – Artigos e respectivos autores
de todas as edições da revista Estudos de Psicanálise (54 anos)
que trazem “corpo” como palavra-chave

Joel Birman foi o autor mais citado depois Entre outros autores que foram citados
de Lacan. Foram sete referências, e em três duas vezes, em dois artigos,, estão: Anzieu
artigos distintos a obra Mal-estar na atuali- com O eu-pele (2000); Fernandes com o tí-
dade (2014) teve destaque. tulo Corpo (2005); Fontes com Psicanálise
Winnicott foi citado sete vezes com obras do sensível: fundamentos e clínica (2010),
distintas. Roudinesco e Plon, com Dicionário de
Ainda merece destaque Joyce Mcdougall, ci- Psicanálise (1998); e Laplanche ê Ponta-
tada quatro vezes, considerando que a obra Tea- lis, com o Vocabulaire de la psychanalyse
tros do corpo (2013) foi citada em dois artigos. (1973).

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́ ́
O corpo e a subjetividade do sujeito

Resultados e discussões rante os cuidados de saúde iniciais, particu-


O texto de Cristian Hoffmann (2012) aden- larmente em situações de desconforto. Eles
tra nas complexas relações entre o desejo de destacam como o mal-estar pode surgir nes-
servidão voluntária, a violência e o corpo se contexto e discutem suas implicações para
humano. Hoffmann argumenta que, em di- o desenvolvimento dos vínculos iniciais. Este
versas circunstâncias, os indivíduos volunta- texto fornece uma visão valiosa sobre as di-
riamente se submetem a estruturas de poder nâmicas psicológicas envolvidas na tríade de
opressivas. A psicanálise é empregada como profissionais de saúde, pais e bebês, com re-
uma lente para compreender a psicologia levância para a prática clínica e a compreen-
subjacente a esses atos de submissão volun- são do desenvolvimento infantil.
tária. O autor explora como o corpo, tanto Cardoso, Demantova e Maia (2016) avan-
em sua dimensão individual quanto como çam para outra fase da vida do sujeito e abor-
um componente do corpo social, é profun- dam a questão da relação entre o corpo e a
damente influenciado por essas dinâmicas dor em condutas escarificatórias na adoles-
de poder. Em particular, Hoffmann analisa cência. As autoras nos levam a uma tentativa
as interações intricadas entre o corpo do su- de compreensão sobre as complexas intera-
jeito, o corpo social e o corpo do gozo. Este ções entre corpo e dor na adolescência. O
trabalho estabelece uma base teórica sólida adolescente sofre transformações no próprio
para uma investigação mais aprofundada das corpo, na sua sexualidade e no que tange o
complexidades inerentes às relações de po- seu meio social.
der e submissão sob uma perspectiva psica- O novo corpo é percebido inicialmente
nalítica. como estranho, exigindo do sujeito um pro-
Já Hoenisch e Pacheco (2012) abordam a cesso de reconstrução subjetiva, a partir das
questão complexa da feminilidade no con- transformações próprias da puberdade. As
texto da experiência travesti. Eles exploram imensas transformações na puberdade colo-
as nuances das identidades de gênero e como cam em risco os limites do corpo, podendo
a condição travesti desafia as concepções fazer com que o sujeito perca o sentimento
convencionais de feminilidade. Os autores de continuidade de si, resultante de um dese-
enfatizam a contribuição da psicanálise para quilíbrio no plano do conflito psíquico (Car-
a compreensão das experiências das pessoas doso; Demantova; Maia, 2016).
travestis, especialmente no que diz respeito à Quais seriam as repercussões internas
relação com seu corpo e à busca por expres- de um corpo transformado, nessa fase tão
são de gênero. Por meio de análise de casos especial da vida de um sujeito? O que isso
clínicos e teorias psicanalíticas, o texto for- significa pensando na relação entre corpo e
nece insights valiosos sobre como a travestili- psiquismo e naquela existente entre o Eu e
dade é vivenciada, examinando a interseção o outro?
entre psicologia e identidade de gênero. Seu Há uma alta incidência de quadros clíni-
trabalho enriquece nosso entendimento da cos cuja principal via de expressão é o cor-
diversidade das experiências de gênero e das po. Pode-se, com facilidade, enumerar mo-
complexas relações entre corpo, identidade e dalidades que demostram passagens ao ato,
psicanálise. com implicação corporal, a exemplo dos ca-
Sampaio e Camarotti (2016) exploram sos de anorexia e bulimia, os quadros crôni-
o fenômeno do mal-estar na tríade forma- cos álgicos, automutilações, entre outros.
da por profissionais de saúde, pais e bebês, Além disso, percebe-se que esses quadros
e como isso afeta os vínculos iniciais entre têm em comum a carência de uma elabora-
os membros dessa tríade. Os autores aplicam ção psíquica no que diz respeito à singulari-
a perspectiva psicanalítica para examinar os dade de seu modo de funcionamento psíqui-
desafios enfrentados por pais e bebês du- co (Cardoso; Demantova; Maia, 2016).

58 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 55–66 | julho 2023


Déborah Pimentel

As autoras nos apontam as motivações e recursos para uma elaboração, há um risco


os significados subjacentes a essas condutas à integridade narcísica e ao sentimento de
autolesivas, que envolvem a autoinfligência continuidade de si, frente a uma passividade
de dor no próprio corpo e exploram como o egoica e de desamparo (Cardoso; Demanto-
corpo funciona à semelhança de um veículo va; Maia, 2016).
para expressar o sofrimento psíquico e como O adolescente tenta recuperar o controle
a dor física pode ser uma forma de lidar com de sua existência, fazendo uso do seu maso-
conflitos internos. quismo erógeno, se machucando e, assim,
Ao atingir a fase da genitalização, o ado- materializa no corpo esse sofrimento de
lescente será exigido para que realize o dis- existir (Cardoso; Demantova; Maia, 2016).
tanciamento dos seus objetos edipianos e das Infligir-se dor coloca o sofrimento psíqui-
imagens parentais que antes interiorizou, a co na superfície do corpo, local onde ela é
real possibilidade da concretização das suas visível e controlada, como se possibilitasse a
fantasias incestuosas. Esse distanciamento restauração das fronteiras entre corpo e psi-
dos objetos parentais requer investimen- quismo e o controle do objeto, uma espécie
to em outros objetos fora do meio familiar de erotização do corpo por meio da dor.
gerando um estado de desamparo e o seu A repetição do ato de automutilação, em
Eu deverá realizar um imenso trabalho de seu aspecto compulsivo, mostra experiências
elaboração psíquica dessa violência interna subjetivas que não foram simbolizadas. A
(Cardoso; Demantova; Maia, 2016). passagem ao ato específico “busca dominar a
A adolescência acaba se transformando irrupção das marcas do traumático, circuns-
em uma experiência subjetiva, que pode ser crevendo-as pela via da dor física” (Cardoso;
considerada traumática e, às vezes, com ca- Demantova; Maia, 2016, p. 117).
ráter desestruturante. A precariedade da elaboração psíquica
E uma das possibilidades de defesa é o se revela através da ausência de associações,
mecanismo da passagem ao ato, tão frequen- do vazio de linguagem, da falta de produ-
te nessa fase (Cardoso; Demantova; Maia, ção fantasística, e os registros sensoriais são
2016). As passagens ao ato são verdadeiras invocados. O corpo, por conseguinte, é um
descargas de uma quantidade excessiva de corpo apresentado em lugar de representado,
energia pulsional em uma ação extrema que situado aquém do processo de simbolização
leva a uma ruptura e uma alienação radicais (Cardoso; Demantova; Maia, 2016). O arti-
com o desmoronamento de qualquer media- go também examina as implicações clínicas
ção simbólica (Cardoso; Demantova; Maia, e terapêuticas dessas condutas autolesivas e
2016). destaca a importância de abordagens sensí-
A automutilação favorece a projeção veis para lidar com adolescentes que as pra-
ao espaço corporal de uma luta travada no ticam.
mundo interno onde o Eu se encontra trans- Já Isabela Cribari, no ano seguinte (2017),
bordado pela força pulsional (Cardoso; explora a relação entre cinema, psicanálise e
Demantova; Maia, 2016). A dor diante da o conceito de identidade. Ela analisa filmes
escarificação da pele constitui um recurso do diretor espanhol Pedro Almodóvar, exa-
defensivo como uma tentativa do ego de se minando como as representações cinema-
apropriar do próprio corpo (Cardoso; De- tográficas do corpo e da identidade refletem
mantova; Maia, 2016). questões psicanalíticas.
Ou seja, a passagem ao ato é uma respos- Cribari investiga como o cinema pode
ta defensiva precária a uma invasão de um servir como um espaço para a exploração da
pulsional desligado que adentra o Eu. O ape- subjetividade e da corporeidade, especial-
lo ao ato violento seria uma tentativa para a mente em relação à identidade de gênero e
contenção dessa invasão e, na ausência de à sexualidade. Ela oferece uma análise deta-

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 55–66 | julho 2023 59


O corpo e a subjetividade do sujeito

lhada das obras de Almodóvar, destacando ções infantis até cerca de 5 a 6 anos de idade.
como esses filmes desafiam as normas sociais Tais impressões tornam-se o cerne estrutu-
e psicológicas, além de abrir espaço para a ral do sujeito que leva a uma subjetivação e
reflexão sobre o “Eu” e o corpo na psicanálise singularidade em relação ao diálogo com a
e na cultura contemporânea. cultura e o social.
Em 2018, Retondar investiga a construção Quando um sujeito, um aluno, por exem-
do sentido de corpo na teoria psicanalítica plo, lança mão de estratégias-limite como
de Sigmund Freud e as suas implicações para anorexia, bulimia, vigorexia, violência e hos-
a educação. Retondar explora como Freud tilidade gratuita com o outro, é necessário
abordou o corpo humano em sua obra, des- o professor acolher e provocar que o sujeito
tacando a importância da sexualidade na fale de si e de sua vida. E isso funcionará me-
formação do sentido de corpo. lhor do que orientações moralistas que aque-
O corpo, com Freud, aparece a partir dos le jovem está cansado de ouvir, afinal trata-se
Estudos sobre a histeria (1893), quando ele de um sujeito de desejo e que por seu sinto-
contrapõe o corpo biológico das histéricas ma, se reconhece como tal.
ao corpo como lugar de inscrição de signifi- O professor tem que ouvir mais e falar
cados, marcado com desejos inconscientes e menos. Quando um aluno fala de si para o
sexuais (Retondar, 2018). professor é porque há um nível de confiança
Ao estudar as histéricas e seus sofrimen- e, falando, ele pode aprender sobre si mesmo
tos, Freud percebeu que a fisiologia era in- e sobre o seu corpo. Falando sobre sua vida,
suficiente para justificar tais sintomas que o aluno aprende consigo mesmo, desde que
não eram orgânicos. Para Freud, a histeria, não haja receios de julgamentos (Retondar,
sempre inconsciente, estava ligada a algum 2018).
evento vivido ou imaginado e produzia uma O professor deve compreender que, mes-
imensa excitação em sua estrutura psíquica, mo quando não há um sentido imediato a
diante de algum desejo não satisfeito. O cor- ser visto no comportamento do aluno, não
po é o lugar dos desejos reprimidos (Reton- significa ausência de sentido. Certamente o
dar, 2018). aluno sentir-se-á acolhido e mobilizado pela
O corpo histérico ignora a anatomia ou escuta do professor gerando dúvidas, provo-
fisiologia, pois o que importa é um corpo cando reflexões, exigindo que pense e repen-
fantasmático, uma vez que o corpo expressa se suas ações, enquanto se sente valorizado e
as representações recalcadas, diz Freud em com garantias de espaço para comunicação e
As neuropsicoses de defesa (1894). Os desejos expressão, e jamais qualquer palavra sobre a
querem se manifestar e por estarem bloquea- imagem corporal do aluno (Retondar, 2018).
dos, o caminho psíquico viável é o corpo Anorexia e bulimia não são distúrbios
(Retondar, 2018). alimentares de um corpo que tem de voltar
Para Freud, todas as representações têm a funcionar como antes desse desajuste or-
uma base erógena e a atividade sexual per- gânico. Na verdade, são sofrimentos psíqui-
passa a vida humana, inaugurada no nasci- cos de negação obstinada e dolorosa e que,
mento, quando existe uma primeira tensão ao negar alimento, talvez deseje negar algu-
entre prazer e desprazer no ato da amamen- ma outra coisa e firmando para si uma nova
tação vivido pela criança. Desse encontro imagem desse corpo (Retondar, 2018).
fica o primeiro registro inconsciente de pra- O que se supõe é que a cadaverização do
zer que o sujeito perseguirá por toda a vida corpo, o suplicio da dor por carência alimen-
(Retondar, 2018). tar traga um elogio como compensação psí-
O corpo e sua imagem inconsciente for- quica que justifiquem o sofrimento mesmo
mam um conjunto das primeiras impressões que esteja na contramão do padrão saúde e
gravadas no psiquismo infantil pelas sensa- do que se diz ser normal. Assim, não pode-

60 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 55–66 | julho 2023


Déborah Pimentel

mos tratar, considerando a psicanálise, como também revela a indiferença e a precarieda-


pessoas doentes, mas as que apresentam sin- de das relações (Melo et al., 2021).
tomas por se tratar de manifestações de uma Como elaborar as questões do corpo, sa-
tensão intrapsíquica de desejos que só conse- ber de si, via imagem e nela se reconhecer, e
guem se manifestar sob a forma de sofrimen- ao mesmo tempo se reconhecer e se diferen-
to e dor (Retondar, 2018). ciar do outro que é seu semelhante? Como
Retondar (2018) revela como as ideias eu me relaciono com a diversidade de outros
freudianas podem ser aplicadas à educação, que também sou eu? (Melo et al., 2021).
fornecendo insights sobre o desenvolvimen- A pandemia, a quarentena, o distancia-
to emocional e psicológico das crianças. O mento familiar e o exponencial crescimento
autor argumenta ainda que compreender a de experiências virtuais com o home office,
relação entre psicanálise e corpo pode ser fizeram com que as pessoas passassem a se
valioso para educadores ao lidar com ques- preocupar mais com a própria imagem, uma
tões de desenvolvimento infantil, identida- vez que estavam mais tempo nas redes so-
de e sexualidade. O seu artigo oferece uma ciais, assim houve uma crescente demanda
ponte entre a teoria psicanalítica e a prática por procedimentos estéticos, haja vista o ros-
educacional. to ser a imagem de referência de cada sujeito
Enquanto isso, Melo et al. (2021) destacam (Melo et al., 2021).
a importância da interdisciplinaridade en- Entretanto, os procedimentos estéticos
tre odontologia e psicanálise na abordagem de harmonização facial ou qualquer outro
de questões relacionadas à imagem corpo- convocam o registro corporal, de sorte que
ral e saúde mental em tempos desafiadores. o sujeito em situação de sofrimento psíquico
Os autores exploram a interseção entre aproprie-se sintomaticamente do procedi-
odontologia e psicanálise em um contexto mento como solução para os sintomas pró-
específico: a harmonização orofacial duran- prios da sua subjetividade e, assim, simboli-
te a pandemia de covid-19. Eles investigam zar o seu sofrimento (Melo et al., 2021).
como a busca pela estética facial pode estar Já o último artigo, o de Rocha (2021),
relacionada a questões psíquicas, especial- explora a comunicação não verbal e a lin-
mente em tempos de crise como a pandemia. guagem corporal na psicanálise. Ela investi-
Os autores analisam as dinâmicas de desejo ga como os corpos dos pacientes “falam” e
e desamparo psíquico envolvidas na busca como os analistas podem aprender a escutar
por intervenções estéticas no rosto e como a essas mensagens não verbais. Rocha argu-
psicanálise pode contribuir para uma com- menta que, muitas vezes, as emoções e os
preensão mais profunda dessas motivações. desamparos indizíveis podem ser expressos
É claro que, muito além da demanda de através do corpo e da postura. Ela discute
harmonização facial, as mudanças desejadas a importância de desenvolver sensibilidade
de cunho corporal são fachada para anseios para a linguagem corporal na prática clínica
de transformações, quer pessoais, amorosas e como isso pode enriquecer a compreensão
e familiares, quer profissionais. Muitas dos processos psicológicos dos pacientes.
vezes esses procedimentos representariam o Esse texto destaca a relevância da comunica-
reencontro com o seu amor-próprio, com sua ção não verbal na psicanálise e sua capaci-
imagem rejuvenescida e com a sua vaidade dade de revelar aspectos profundos da expe-
(Melo et al., 2021). riência humana.
O corpo é um reflexo dos modelos ideais
que são vendidos nas plataformas digitais Semelhanças e temas
como Instagram, Facebook, Tik-Tok, onde recorrentes entre estes autores
celebridades e influenciadores colaboram na Todos exploram as questões do corpo vincu-
formação de uma sociedade narcísica que ladas à identidade, ao desejo e à subjetividade

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 55–66 | julho 2023 61


O corpo e a subjetividade do sujeito

sob a perspectiva da psicanálise, destacando leza e dentro de um padrão que, quando não
a importância dessa teoria na compreensão reconhecido, torna-se potencialmente amea-
das experiências humanas. çador, porquanto a uma sensação de comple-
Vários artigos discutem a relação entre o tude, características das vivências primárias
corpo e a identidade. Isso pode ser visto na do narcisismo. Isso transformaria a busca
análise da travestilidade, da busca pela esté- por um corpo ou rosto harmónico na tenta-
tica facial, da expressão de gênero, da sexua- tiva de evitar a frustração, a falta e a insatis-
lidade e da linguagem corporal. Todos esses fação do desejo (Melo et al., 2021).
aspectos estão ligados à forma como os indi- E por fim, alguns autores incluíram análi-
víduos constroem e percebem sua identida- ses de casos clínicos para ilustrar conceitos e
de em relação ao corpo. aplicar a teoria psicanalítica.
Alguns artigos exploram a intersecção
entre a psicanálise e outras disciplinas, como Diferenças entre os artigos
odontologia, educação e cinema. Eles desta- Cada texto aborda tópicos específicos e
cam como a psicanálise pode fornecer insi- únicos. Por exemplo, Sampaio e Camarotti
ghts úteis para abordar questões específicas (2016) lidam com o mal-estar na tríade de
em diferentes campos e compreender o cor- profissionais de saúde-pais-bebê, enquanto
po do ponto de visto psicanalítico. Melo et al. (2021) abordam a harmonização
Muitos ressaltam a importância da comu- orofacial em relação à pandemia de covid-19.
nicação não verbal, incluindo a linguagem Cada um desses tópicos apresenta uma pers-
corporal, expressão facial e gestos, como pectiva única sobre a relação entre corpo e
meios de expressar emoções, desejos e con- psicanálise.
flitos que podem não ser verbalizados dire- Os artigos abrangem um período signifi-
tamente. cativo desde 2012 até 2021. Isso significa que
Alguns autores fazem referência a even- refletem mudanças nas preocupações e nas
tos ou contextos contemporâneos, a exemplo perspectivas ao longo dos anos. Por exemplo,
da pandemia de covid-19, e exploram como Melo et al. (2021) exploram as implicações
esses eventos impactam a experiência psico- da pandemia na autoimagem do sujeito, uma
lógica e a relação com o corpo. questão que não estava presente nos anos an-
Birman (2012) nos diz que nos sentimos teriores.
sempre faltosos e que sempre queremos fazer Os procedimentos estéticos, em meio à
algo para melhorar a performance corpórea pandemia, tinham como finalidade aumen-
que sempre estará aquém do desejado, prin- tar a autoestima, corrigindo as assimetrias,
cipalmente em um período em que existem realçar e melhorar expressões faciais em
múltiplas possibilidades e ofertas no que tan- desequilíbrio, reduzindo também os efeitos
ge ao cuidado com o corpo. do envelhecimento. É inquestionável que
Considerando a beleza uma questão sub- a lógica mercantil e consumista faz um es-
jetiva, que pode ser moldada pelos valores forço para tornar o corpo desse sujeito em
sociais e culturais, mobilizando questões que espelho dos modelos vendidos como ideali-
afetam a aceitação e a autoestima dos indiví- zados e, por conseguinte, perfeitos, enquanto
duos, o desamparo torna-se uma marca da a psique fica à deriva e, por isso mesmo, os
subjetivação contemporânea e das novas for- psicofármacos ganham espaço anestesiando
mas de sofrimento psíquico levando a uma emoções, negando o sofrimento na busca da
precarização da relação entre corpo e ima- tal felicidade (Melo et al., 2021).
gem. Já outros autores trouxeram uma abor-
Considere-se que a transformação do de- dagem mais teórica e exploratória, Cardoso,
samparo em onipotência narcísica gera um Demantova e Maia (2016) nos enriqueceram
aprisionamento a um ideal especular de be- com uma ênfase maior nos aspectos clínicos,

62 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 55–66 | julho 2023


Déborah Pimentel

trazendo as condutas autolesivas na adoles- Hoenisch e Pacheco (2012) indicam


cência. a necessidade de pesquisas adicionais
sobre como as normas de gênero são
Implicações práticas desafiadas e representadas na cultura
para futuras pesquisas e artigos contemporâneas.
As implicações práticas e as sugestões para 5. Comunicação não verbal. Rocha
futuras pesquisas variam de acordo com os (2021) enfatiza a importância da co-
temas específicos abordados em cada tex- municação não verbal na psicanálise.
to, mas há oportunidades para avançar na Pesquisas futuras podem aprofundar
compreensão das complexas interações entre nossa compreensão do modo como a
corpo e psicanálise e aplicar esses insights em linguagem corporal e a expressão não
contextos clínicos, educacionais e interdisci- verbal podem ser melhor percebidas
plinares. e trabalhadas pelo psicanalista no set-
Senão vejamos: ting.

1. Intervenções terapêuticas. Os arti- Conclusão


gos que abordam questões clínicas, Embora haja uma base comum na perspec-
como autolesões (Cardoso; Demanto- tiva psicanalítica e na exploração das com-
va; Maia, 2016) e mal-estar na tríade plexas relações entre corpo, identidade, de-
de saúde-pais-bebê (Sampaio; Cama- sejo e subjetividade, as diferenças entre os
rotti, 2016), têm implicações práticas artigos surgem dos tópicos específicos, do
para a psicoterapia e as intervenções contexto temporal, da interdisciplinaridade
terapêuticas. Pesquisas futuras podem e da inconteste relevância contemporânea
se concentrar no desenvolvimento de percebida nas ênfases individuais dos auto-
abordagens que enfatizem as questões res e dos meios de expressão utilizados. Cada
transferenciais eficazes para lidar com texto oferece uma contribuição única para o
esses desafios. entendimento das questões que envolvem o
2. Educação e psicanálise. Destaca a apli- corpo.
cação da psicanálise na educação. Pes- O corpo é objeto de troca em uma socie-
quisas futuras podem explorar como dade capitalista, marcada pelo consumo que
as teorias psicanalíticas podem ser in- exige a perfeição idealizada pela cultura e
tegradas ao currículo educacional para nesse tipo de sofrimento há uma tentativa de
promover o desenvolvimento emo- existir psiquicamente através da convocação
cional saudável em criança (Retondar, do registro do corpo, da passagem ao ato e
2018). das doenças psicossomáticas
3. Interdisciplinaridade. Artigos que Retomando a pergunta objetivo deste
abordam a interdisciplinaridade, como ,artigo, conclui-se que com as novas formas
o de Melo et al. (2021) sugerem a im- de subjetivação na contemporaneidade, os
portância de colaborações entre dife- sofrimentos não mais seguem a lógica do
rentes campos, como odontologia e conflito psíquico, do recalque e da represen-
psicanálise. Futuras pesquisas podem tação, pois se caracterizam pela impossibili-
explorar mais a fundo como essas co- dade de representação e nomeação.
laborações podem beneficiar a prática Os textos aqui analisados, em última ins-
clínica. tância, demonstram que a psicanálise pode
4. Identidade de gênero e sexualidade. ter aplicações práticas, podendo inclusive
Os artigos que exploram as questões estar nas escolas e nas ruas, em diversos con-
de identidade de gênero e sexualida- textos, além do clínico. A velha e centenária
de, como os de Cribari (2017) e de dona psicanálise continua viva e cada vez

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 55–66 | julho 2023 63


O corpo e a subjetividade do sujeito

mais atual na análise das respostas humanas Referências


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2000.

Abstract BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise


This is a systematic review on the topic of the e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro:
body, with the database being the journal Civilização Brasileira, 2014.
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clusion criteria for the articles were the key- D. C. S. Corpo e dor nas condutas escarificatórias na
word “body” and a time limitation of the last adolescência. Estudos de Psicanálise, Rio de Janeiro, n.
10 years. Over the 54 years during which the 47, p. 115-121, dez. 2016.
journal was published, only 15 papers were
published on this theme, with eight of them CRIBARI, I. As peles de Almadóvar ou Existe alguém
aí dentro? Estudos de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 47,
being published from 2012 to 2022. Objective: p. 149-156, jul. 2017.
To discover whether there have been changes
in the way the body is thought about or felt, FERNANDES, M. H. Corpo. 2. ed. São Paulo: Casa do
from a psychoanalytic point of view, in the last Psicólogo, 2005
ten years. Results: Each text offered a unique
perspective on the relationship between the FONTES, I. Psicanálise do sensível: fundamentos e
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conflict, repression, and representation, as it is São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 162-239.
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characterized by the impossibility of represen-
tation and naming. However, psychoanalysis FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia. In:
remains relevant, alive, and current in analyz- ______. Inibição, sintoma e angústia, o futuro de uma
ing human responses to social challenges. ilusão e outros textos (1926-1929). Tradução: Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
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64 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 55–66 | julho 2023


Déborah Pimentel

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Recebido em: 18/06/2023
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1905). Direção da tradução: Jayme Salomão. Rio de Sobre a autora
Janeiro: Imago, 1996. p. 128-229. (Edição standard
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Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 55–66 | julho 2023 65


Clarissa Ribeiro Vicente & Elizabeth Samuel Levy

A escrita do feminino em
Dias de abandono,
de Elena Ferrante1
The writing of the feminine in
“The Days of Abandonment”,
by Elena Ferrante
Clarissa Ribeiro Vicente
Elizabeth Samuel Levy

Resumo
Analisar uma obra literária para desenvolver conceitos psicanalíticos e apresentar os conflitos
inerentes à subjetividade foi um recurso que Freud utilizou diversas vezes. Com esse objetivo,
este trabalho examina a produção literária Dias de abandono, de Elena Ferrante, para refletir
sobre a escrita e o encontro com o desejo de narrar como possibilidade de sobrevivência à
experiência de devastação, que perpassa as mulheres ao perder o amor do objeto.

Palavras-chave: Psicanálise e literatura, Elena Ferrante, Devastação, Feminino.

Introdução que estão à frente das descobertas científicas


A psicanálise tem a sua gênese na fala das no conhecimento da alma (ou da subjetivi-
mulheres histéricas e no impossível da pa- dade) porque utilizam fontes que a ciência
lavra escrita no corpo. Palavra e escrita que desconhece: a fantasia e o desejo inconscien-
encontraram no médico Sigmund Freud um te. Através das obras de ficção, o ser humano
atento ouvinte e leitor. O significado des- pode vivenciar seus conflitos psíquicos de
sas palavras escritas nos sintomas de suas modo prazeroso, sem vergonha ou censura
pacientes permaneceu como enigma para (Freud, 1908/2015).
Freud. A quem deseja se aventurar na deci- Contudo, há escritos literários que geram
fração desse enigma, ele sugere buscar na li- mais interesse no estudo da subjetividade do
teratura uma fonte de conhecimento (Freud, que outros. Segundo Freitas (2009), a iden-
1916/2010). tificação com o herói ou a heroína confere a
Como observa Rancière (2009), as figuras uma obra o destaque cultural. Quanto maior
literárias e artísticas são testemunho do in- a ambivalência nos afetos dos personagens,
consciente e expressam a relação do pensa- maior a possibilidade de identificação e de
mento com o não pensamento, do voluntário perpetuação no tempo da relevância que se
com o involuntário, da construção conscien- atribui ao livro.
te com a manifestação inconsciente, que pro- Este trabalho é de costura da psicanálise
põe um enigma ao leitor. com a literatura, da palavra com o incons-
Vale lembrar que Freud (1907/2015) con- ciente, do feminino e do percurso de análise
siderou os escritores de ficção como aqueles com a escrita como modo de proposição de

1. Trabalho a ser apresentado no XXV Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise e na XLI Jornada do Círculo
Psicanalítico de Minas Gerais, realizados em Belo Horizonte (MG), nos dias 28, 29 e 30 set. 2023.

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 67–74 | julho 2023 67


A escrita do feminino em Dias de abandono, de Elena Ferrante

um caminho para a mulher contemporânea Dias de abandono: Elena, a autora;


que se depara com o sofrimento irrepresen- Olga, a personagem, e a escrita da ausência
tável de perder o amor do objeto. Elena Ferrante é o pseudônimo de uma es-
A mitologia e a literatura ocidentais per- critora italiana. Ela insiste em permanecer
petuam figuras femininas que expressam afe- anônima, mesmo após o sucesso dos seus
tos ambivalentes e carregam o traço comum livros e das adaptações para filmes e séries,
de sucumbir perante o abandono, cada uma sucesso que a psicanalista Fabiane Secches
a seu modo, como é próprio do feminino: (2020) denomina “febre Ferrante”. Apesar do
Medeia, Ariadne, Dido, a mulher desiludida, anonimato, Elena Ferrante concede entrevis-
de Simone de Beauvoir. Mulheres que ama- tas e palestras, todas escritas, pois ela afirma
ram, se entregaram ao ser amado e perderam que Elena Ferrante é constituída por suas pa-
tudo quando a relação terminou por vonta- lavras (Ferrante, 2017), incorporando a afir-
de do parceiro. O “tudo” pode se apresentar mação de Freud (1930/2015) de que a escrita
como a terra natal, a família, a maternidade, é o lugar do ausente.
a cidade, a força de viver, os bens materiais, a Em quase todas as obras ficcionais de Fer-
vida. As margens se dissolvem. O final é trá- rante, a ambivalência na relação mãe e filha
gico. Essas personagens são lidas, encenadas, tece o conflito central da narrativa. Essa te-
interpretadas e reinterpretadas há séculos e mática é desenvolvida em Dias de abandono,
décadas porque com elas o público se identi- segundo livro da autora, romance publicado
fica, seja pelo horror, seja pela dor de perder na Itália, em 2002 e no Brasil, em 2016 pela
o amor. Elas ensinam sobre o feminino, que editora Biblioteca Azul.
se depara com o radical da falta na experiên- Dias de abandono é narrado em primeira
cia do abandono. pessoa por Olga, uma mulher de trinta e oito
O que essas personagens têm a nos dizer anos, casada com o arquiteto Mário e mãe
na contemporaneidade, quando as mulhe- de duas crianças, Gianni e Ilaria. Ela nas-
res, ao menos de um determinado contex- ceu num bairro pobre e violento de Nápo-
to socioeconômico privilegiado, ocupam o les. Mora em Turim. Não trabalha, mas vive
mercado de trabalho, os espaços públicos, confortavelmente com os ganhos do marido.
escolhem o casamento ou o modo de viver o É uma mulher culta, polida, educada, pon-
arranjo amoroso, se terão filhos ou não? Na derada nas palavras e nos gestos.
tentativa de encontrar uma resposta, este tra- A narrativa inicia com o ruir do mundo
balho segue o caminho indicado por Freud: organizado de Olga. Em uma cena cotidiana,
buscar na ficção uma fonte de conhecimento ela e o marido arrumam a cozinha após o al-
do feminino. moço quando Mário anuncia que quer se se-
O livro Dias de abandono, da escritora ita- parar. Inicialmente, Olga atribui a decisão do
liana Elena Ferrante, participa da literatura marido a um lapso de sentido da parte dele e
contemporânea que carrega a herança das relembra um episódio de separação na época
personagens mencionadas. A hipótese des- do namoro e de traição no casamento, quan-
te trabalho é que Elena Ferrante, por meio do Mário se envolveu com Carla, adolescente
das palavras de Olga, personagem principal filha de uma amiga dele. Ambas as situações,
de Dias de abandono, aponta um caminho relembra Olga, foram resolvidas com longas
para a mulher que perde o amor do objeto, conversas a portas fechadas, vozes baixas e
um final outro que escapa ao trágico. Essa palavras polidas. Contudo, ao perceber que
via de sobrevivência à devastação é possibi- Mário não retornará para casa, a narradora
litada pelo encontro com o desejo. No caso mergulha num processo de devastação que
de Olga, a realização do desejo de escrever, o implica a perda do controle corporal (bate o
que se aproxima do trabalho de reescrita do carro, deixa cair objetos), na perda da noção
romance familiar em uma análise. lógico-temporal e no descontrole das pala-

68 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 67–74 | julho 2023


Clarissa Ribeiro Vicente & Elizabeth Samuel Levy

vras e dos pensamentos, tomados por pala- destinos na religião, nas ligações cegas aos
vrões, ditos e imagens obscenos. As fantasias mestres, nas ideologias, nas teorias inquestio-
que atormentam Olga encenam relações se- náveis, nas adicções, e no mais sofrível, que
xuais de Mário com outra. Ela tenta contro- são os relacionamentos interpessoais (Levy;
lar os gestos e as palavras, e evita modificar a Ceccarelli; Dias, 2017, p. 49).
vida e os sentidos em razão do fim do casa-
mento. Não quer se parecer com a mulher de Não ser mais o objeto do amor do marido
um livro que lhe foi sugerido pela professora esvazia Olga como mulher. Ela vivencia
na escola, no qual a mulher abandonada su- uma experiência sexual com o vizinho
cumbe. Olga tenta manter o controle. desconhecido, o qual despreza, na tentativa
Ela é assombrada pelas palavras da mãe, de se sentir desejada e valorizada.
costureira no bairro de Nápoles. Durante a Freud (1930/2016, p. 75) afirma que o
infância, Olga escutava a mãe contar para valor quantitativo do desamparo, sua inten-
amigas e clientes a história da “pobre coita- sidade, está diretamente ligado à maneira
da”, mulher que tentou o suicídio após ser como foi elaborada a total dependência (de
abandonada pelo marido infiel e trocada por uma ajuda externa) no início da vida. Ou
outra. Olga tentar fugir da imagem da mu- seja. a maneira como cada sujeito vivenciará
lher abandonada, mas a incorpora ao longo uma (nova) situação de perda, sua capacida-
da narrativa, ao se perceber em uma perda de de ressignificá-la, de recuperar-se dela,
de sentido. Ressente-se em relação ao ex dependerá de como ele lidou, que recursos
-marido. Enumera tudo o que entregou a ele. teve, para enfrentar a situação de desampa-
Liga para os amigos em comum para relatar ro inerente ao humano: “jamais nos torna-
o abandono, mas sente que eles protegem mos tão desamparadamente infelizes do que
Mário e não querem escutar o que ela tem quando perdemos o objeto amado ou o seu
a dizer. amor”.
Olga parece (re)viver um sentimento de Sem saber como lidar com a ausência de
desamparo que constitui todo ser vivente. O margens de si, Olga começa a escrever. Pri-
desamparo2 traduz a situação antropológi- meiro, escreve cartas para Mário, na espe-
ca fundamental do humano que, ao nascer, rança de que ele a ajude a compreender os
encontra-se em um estado de total depen- fios da história partilhada. Depois, escreve
dência de um outro que lhe forneça ações como expressão de um desejo antigo. Olga
específicas para garantir a sua sobrevivência. queria ser escritora. Mário a convenceu de
Esse outro que acolhe, alimenta e lhe fornece largar o emprego em uma editora para culti-
vida psíquica, pela linguagem e introdução var a escrita, mas ela não conseguiu escrever
na cultura. e se dedicou às necessidades do marido e dos
filhos.
Freud (1930/2016), em O mal-estar na cul- Ao longo da narrativa, Olga descobre que
tura, ressalta que a dinâmica pulsional que o marido entrou na casa quando não havia
configura o desamparo aponta para novas ninguém e levou embora uma joia de famí-
necessidades como o amor, o afeto, o reco- lia. Ela encontra Mário com a nova namora-
nhecimento, a palavra, a linguagem, ocasio- da, Carla, que usa os brincos. Olga os agride
nando dependência psíquica, buscando seus verbal e fisicamente. O episódio do sumiço
dos brincos aumenta a sensação de insegu-
rança que Olga sente em sua casa: invadida
2. A palavra “desamparo” é a tradução da palavra alemã Hil-
flosigkeit. Ela é composta de três partes: Hilfe, que significa por animais, como o cachorro, um lagarto,
socorro; los, que pode ser definido por sem; keit que forma muitas formigas e por Mário. A insegurança
o substantivo. Hilflosigkeit, em inglês helplessness, seria me- também é sentida pelos filhos, que lhe lem-
lhor traduzido pelo neologismo “insocorribilidade”: somos,
por definição, “insocorríveis” (Ceccarelli, 2005).
bram constantemente que ela é insuficiente

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 67–74 | julho 2023 69


A escrita do feminino em Dias de abandono, de Elena Ferrante

e que o pai faria melhor. Na tentativa de se mergulha. Em seu mergulho, ela vislumbra
proteger, Olga instala uma porta mais resis- a mulher que se matou depois de entregar
tente, mas não consegue girar a chave e fica tudo ao marido.
presa em casa. Em Frantumaglia, Ferrante (2017) des-
A ‘virada de chave’ da narrativa ocor- creve Olga como uma mulher culta, pre-
re quando Olga se encontra aprisionada no parada, cheia de defesas, que é tomada por
apartamento com o filho doente, com a fi- uma desestruturação, um vazio de sentido.
lha que a espeta constantemente para que A autora explica que Medeia, Ariadne, Dido,
ela não perca o vínculo com o que acontece Anna Karenina e a mulher abandonada pelo
ao seu redor, com formigas por toda parte marido na obra A mulher desiludida, de Si-
e com Otto, o cachorro que está em conva- mone de Beauvoir são referências e imagens
lescência por ingerir veneno. O cachorro é dessa “pobre coitada”, cuja herança chega a
mais um habitante da casa que lembra Olga Olga misturadas à fala da mãe. Contudo, Ele-
de sua insuficiência e da ausência de Mário, na Ferrante almejou um final diferente para
pois era o cachorro do ex-marido. Com a a sua personagem.
morte de Otto, ela abre mão do controle e Os textos de Freud sobre a feminilidade
se depara com o absurdo do abismo no qual e a relação pré-edípica da menina com a sua
se encontra. Aos poucos, Olga constrói uma mãe podem ajudar a compreender a expe-
nova rotina. Inicia um emprego, desmonta a riência de “vazio de sentido” ou de desestru-
idealização da figura de Mário, percebe no turação na qual Olga se encontra ao ser dei-
vizinho um homem interessante, com quem xada pelo marido e trocada por uma mulher
se relaciona amorosamente. Olga consegue mais nova. Freud considerou importante o
retomar as margens e criar nexos para a sua estudo da fase pré-edípica da menina no que
narrativa: diz respeito à relação com a mãe para a com-
preensão da feminilidade. A mãe é o primei-
[...] cada movimento era narrável em todas as ro objeto amoroso da menina. O investimen-
suas razões, boas ou más, que em suma che- to libidinal da garota em relação à mãe altera
gara o momento de voltar à força dos nexos de acordo com a fase, apresentando desejos
que enlaçam juntos os espaços e os tempo- orais, sádico-anais (ambivalência e hostili-
sOlga (Ferrante, 2016, p. 182). dade manifesta em momentos de profunda
angústia) e fálicos (vontade de fazer um fi-
Perda do amor e a experiência lho na mãe ou dar um filho à mãe). Após um
de devastação acúmulo de hostilidades, o ódio marca o fim
Quando o casamento de Olga chega ao fim dessa relação. A filha tem diversas acusações
por decisão do marido, ela não quer agir contra a mãe.
como as mulheres abandonadas das histórias Segundo Freud ([1916], 2010), a filha
que escutou em sua infância. Essas histórias acusa a mãe de não amamentar o suficiente,
eram contadas por sua mãe. Ela sentia as pa- de estimular a descoberta sexual e depois a
lavras da mãe. Ao tentar fugir dessas pala- proibir, de dedicar amor a outros irmãos ou
vras, Olga é tomada por um vocabulário que ao pai, o que gera ciúmes. A relação pré-e-
escapa à polidez que ela costurou para si na dípica com a mãe apresenta reflexos nas de-
vida adulta. A costura rompe, e ela emite pa- mais relações que uma mulher desenvolve ao
lavras obscenas. Essas palavras remetem ao longo da vida, em especial com o pai e com o
mundo infantil, no qual a violência do bairro primeiro marido (Freud, 1917/2013).
napolitano era parte do cotidiano e no qual Para Lacan (1972/2003), a relação mãe e
uma mulher abandonada pelo marido tentou filha é marcada pela devastação, pois a meni-
o suicídio. O tom da narrativa evoca o deses- na espera receber de sua mãe o que esta não
pero e a perda de si nos quais a personagem tem: a transmissão da feminilidade. Contu-

70 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 67–74 | julho 2023


Clarissa Ribeiro Vicente & Elizabeth Samuel Levy

do, como não há um significante que se re- e uma sintaxe para dar margem ao vazio. O
fira à mulher de modo universal, cada uma livro encerra com o retorno de Olga à vida
deve inventar o seu caminho para a constru- cotidiana, ao amor e à possibilidade de nar-
ção da feminilidade e se deparar com o vazio rar e construir nexos para os movimentos da
no campo do feminino: um gozo suplemen- vida.
tar que não cessa de não se escrever (La- Ferrante (2022) define a escrita como um
can, 1972-1973/2008). A devastação que se processo de permanecer às margens, permi-
apresenta na relação da mãe com a sua filha tindo a abertura para que o obscuro se torne
pode comparecer nas relações amorosas de visível. Olga encontra as margens, o fio da
uma mulher, que sente tudo entregar e que narrativa, mas sabe que o vazio de sentido
se ressente ao ser abandonada, pois perde a pode irromper a qualquer momento (Fer-
imagem da feminilidade forjada no olhar do rante, 2017). A mulher contemporânea pode
outro. buscar o léxico para a perda do amor, de
Em Dias de abandono, Olga busca no de- modo a transformar o negativo da falta em
sejo masculino um modo de mascarar a sua experiência de desejo.
falta e se ressente diante da perda do amor, O mesmo processo ocorre na travessia de
quando se depara com o abismo do que não uma análise, na qual a falta se coloca como
tem representação. Ela experiencia a devas- espaço para a palavra e para o silêncio. O de-
tação como perda de sentido, de desmargi- sejo do analisante se encontra com o desejo
nação, de descontrole das palavras e do cor- do analista na aposta de que o romance fami-
po, de encarceramento. Contudo, Olga se en- liar se transforme em poesia na reinvenção
contra com o seu desejo ao perder o amor do do feminino.
objeto. O desejo de Olga é o desejo de escrita.

A escrita do feminino: Abstract


outras possibilidades em análise Mobilizing a literary work to develop psycho-
No ensaio O riso da Medusa, Hélène Cixous analytic concepts and present the conflicts
(2022) dialoga com Freud e com Lacan no inherent to subjectivity was a resource that
que se refere ao feminino. Ela convoca as mu- Freud used several times. To this end, this
lheres à escrita do feminino como modo de work mobilizes the literary production “Days
afirmar a diferença sexual e criar uma nova of abandonment” by Elena Ferrante to reflect
sintaxe, na qual as sensações, a felicidade, os on writing and the encounter with the desire
segredos e os sofrimentos ganhem corpo nas to narrate as a possibility of surviving the ex-
palavras: negra e bela. É possível costurar o perience of devastation that pervades women
convite à escrita feminina de Cixous com a when they lose the love of the object.
proposição de Freud de que é na literatura
que se encontra a fonte de aprendizado so- Keywords: Psychoanalysis and literature, Ele-
bre o feminino. Nessa costura, a relação do na Ferrante, Devastation, Feminine.
feminino com a literatura, para além de um
lugar de aprendizado para os psicanalistas,
possibilita a experiência de escrita, na qual
as mulheres façam contorno ao vazio devas-
tador no fim de uma relação amorosa.
Olga reescreve a sua história. Ela é a nar-
radora de Dias de abandono, roteirista das
imagens e diretora do olhar que o leitor lan-
ça sobre Mário, sobre Carla, sobre os filhos e
sobre o fim da relação. Ela inventa um léxico

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A escrita do feminino em Dias de abandono, de Elena Ferrante

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sobre um caso de neurose obsessiva [“O homem dos ra-
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72 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 67–74 | julho 2023


Clarissa Ribeiro Vicente & Elizabeth Samuel Levy

Sobre as autoras

Clarissa Ribeiro Vicente


Mestre em Teoria do Estado
e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Analista Judiciário do Tribunal de Justiça
do Estado do Pará (TJ/PA).
Candidata a psicanalista em Formação
pelo Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).

E-mail: clarissavicente2@gmail.com

Elizabeth Samuel Levy


Psicóloga (UFPA).
Psicanalista e sócia fundadora do Círculo
Psicanalítico do Pará (CPPA) filiado ao Círculo
Brasileiro de Psicanálise (CBP) e a International
Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).
Mestre em Psicologia Clínica e Social pela
Universidade Federal do Pará (UFPA).
Especialização em Psicologia Hospitalar pelo
Conselho Regional de Psicologia 10.ª região.
Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise e
Psicopatologia Fundamental (UFPA).
Ex-docente do curso de Psicologia
da Universidade da Amazônia (1999/2019).
Presidente do Círculo Psicanalítico
do Pará (CPPA).

E-mail: bethslevy@gmail.com

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Eliana Rodrigues Pereira Mendes

Os 125 anos da psicanálise e


a ética do psicanalista1
125 years of psychoanalysis and
the ethics of the psychoanalyst
Eliana Rodrigues Pereira Mendes

Resumo
A autora apresenta um panorama da evolução cultural humana, partindo dos primórdios da
humanidade até o aparecimento da psicanálise, no final do século XIX e começo do século
XX. Introduz a figura de Sigmund Freud, o criador da psicanálise, e a trajetória desse novo
saber, que traz à luz a instância do inconsciente. Fala também das principais obras freudianas,
chegando até Jacques Lacan, no século XX, que faz uma releitura de Freud. Discute ainda o
conceito de ética, salientando que a psicanálise tem uma ética própria, que é a ética do sujeito
do inconsciente, a ética do bem dizer. Por fim, destaca o papel do analista na sociedade e as
diversas aberturas que a psicanálise trouxe para o ser humano.

Palavras-chave: Evolução cultural, Psicanálise e sua trajetória, Sujeito do inconsciente, Ética


da psicanálise.

A psicanálise é um tipo de saber relativa- que de hoje, foram criados o eixo da roda, a
mente novo – 125 anos – em relação às ori- astronomia, a matemática e a escritura.
gens da humanidade. O ser humano segue
um padrão semelhante ao desenvolvimento Esses progressos pareciam tão desconcer-
da humanidade em suas conquistas: a onto- tantes que Aristóteles, nos anos 300 a.C, no
gênese repete a filogênese em sua evolução. seu primeiro livro de metafísica, afirmava
Nada nos é dado sem que seja conquistado. que tudo que se podia imaginar para tornar
Embora os seres humanos já existam desde a vida humana mais confortável já tinha sido
os tempos imemoriais, a psicanálise, como inventado. Portanto era hora de se dedicar à
um saber sobre o próprio ser humano, teve elevação dos espíritos (De Masi, 1993, p. 42).
também um tempo para seu surgimento.
Cada progresso material foi sendo dura- Na Antiguidade, na ânsia de buscar uma
mente conseguido. Muitos séculos se pas- explicação para o mundo, o ser humano cria
saram para que descobertas simples fossem a mitologia, onde vários deuses se encarre-
sendo consumadas. Elas custaram o esforço gavam de ordenar o Universo e responder às
e o uso do engenho do ser humano. Desde a perguntas que já se faziam sobre a origem e o
descoberta do fogo, das vestimentas, da coc- destino dos humanos.
ção dos alimentos, foi havendo um aumen- A Idade Média, período que vai do século
to na qualidade da vida humana. Há 5.000 V até o século XV, iniciou-se com a desagre-
anos, na Mesopotâmia, nosso devastado Ira- gação do Império Romano do Ocidente, no

1. Texto apresentado no evento on-line comemorativo dos 65 anos do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS), na
jornada intitulada A psicanálise através dos tempos, realizada em 24 e 25 set. 2021.

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Os 125 anos da psicanálise e a ética do psicanalista

século V. Dessa época histórica destacam-se tona um novo mundo interno e levantar o
o período de ruralização que a Europa viveu véu que encobre seu cerne. O que é a existên-
entre os séculos V e X, o fortalecimento da cia humana? Que atitudes cabem a nós? Já
Igreja Católica, a estruturação do sistema que estamos entregues a nós mesmos, somos
feudal, os quais propiciaram que a Europa os nossos próprios escultores. Temos em nós
fosse o centro do mundo não só econômi- misturadas a razão e as paixões. E o nosso
co mas também político e social. A religião, destino final é o mesmo, reis ou mendigos:
já agora com um só Deus, no cristianismo, o pó. Hamlet, com sua angústia, inaugura o
era o instrumento regulador das condutas e homem moderno com dúvidas existenciais.
prometia o inferno para os que transgredis- Somos solitários, temos que arcar com a
sem as normas, mas ainda justificava as desi- nossa consciência e a nossa liberdade. So-
gualdades sociais, ao considerar os escravos mos responsáveis por nossa condição huma-
inferiores e os reis e nobres como ungidos na. Shakespeare foi uma grande influência
por Deus. Do século X até o século XV, a para Freud, que não se cansou de citá-lo e de
chamada Baixa Idade Média, temos o perío- aprender com ele.
do do auge do feudalismo, no qual a Europa No século XVI aparece o empirismo com
começou a sofrer transformações através da o filósofo inglês Francis Bacon, que, inver-
urbanização e do comércio entre os países. tendo a lógica de Aristóteles, declara que
Vemos, então, a chegada do Renascimento. tudo que se podia criar pela elevação do
Esse movimento consistiu na revaloriza- espirito já tinha sido feito pelos gregos (na
ção da Antiguidade Clássica, principiado na filosofia e na ética) e os romanos (nas leis
Itália tendo como principais características o e na política). Quando os escravos começa-
humanismo, o antropocentrismo, o indivi- ram a rarear, nossos antepassados de então
dualismo, o universalismo, o racionalismo, o se lembraram das oportunidades oferecidas
cientificismo e a valorização da Antiguidade pelos instrumentos e passaram a se preocu-
Clássica (greco-romana). Daí o nome de Re- par com as inovações que levariam ao pro-
nascença. Se, na Idade Média, a privacidade gresso da ciência e à revolução industrial (De
era quase inexistente, com as pessoas viven- Masi, 1993). Iniciava-se, assim, a Economia
do muito mais no coletivo, no Renascimen- Moderna, e estava sendo estabelecido o Ilu-
to, já se valorizava mais a interioridade e a minismo, dos séculos XVII, XVIII e XIX, os
possibilidade das diferenças. chamados de séculos das luzes por seu gran-
Nesse final do século XV e princípio do de avanço nas ciências e nos ideais de liber-
século XVI não posso deixar de citar não um dade e do afastamento de mistérios e crenças
filósofo, mas um escritor e dramaturgo de religiosas rígidas. Seus seguidores queriam
imensa importância, William Shakespeare impulsionar o ser humano a investigar cien-
(1564-1616), que revolucionou a literatura e tificamente todos os fenômenos e buscar
o teatro com suas magníficas peças sobre o respostas sobre questões que antes somente
ser humano. Em toda a obra de Shakespea- eram respondidas por meio da fé. Atingiu
re, tanto em suas grandes tragédias, quanto seu apogeu no século XVIII, mas chegou até
nas comédias mais leves, há sempre uma o século XIX.
tentativa de descobrir quem somos nós, os A sociedade dos séculos XVIII e XIX
humanos. Já libertos de uma ideia religiosa foi marcada pelo Romantismo, movimento
opressiva, os personagens shakespearianos cultural e artístico que deixando para trás
se interrogam sobre as grandes questões da valores clássicos inaugura a modernidade.
vida e da morte, do poder, do amor, da liber- Eram seus valores o egocentrismo, com o in-
dade. O mundo medieval se desmoronava e divíduo encarado como o centro do mundo,
começava outro mundo, com a modernida- um sentimentalismo exacerbado, o nacio-
de. Urge ao ser humano a tarefa de trazer à nalismo, a idealização do amor romântico,

76 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 75–82 | julho 2023


Eliana Rodrigues Pereira Mendes

e o tom depressivo de vários autores, achan- momento, quando menos se espera: o in-
do uma fuga da realidade pela morte, pelo consciente.
sonho ou pela própria arte (Goethe, Byron, Ao considerar a normalidade como um
Victor Hugo, este já abordando o romantis- conceito econômico e a sexualidade como
mo social, representando a miséria do povo, um contínuo desde o nascimento até a morte
com Os miseráveis, chegando até aos india- do ser humano, Freud não só intrigou e re-
nistas brasileiros como Gonçalves Dias e voltou seus contemporâneos, mas principal-
José de Alencar). mente trouxe luz à constituição do sujeito: o
Em meados do século XIX nasce Freud que faz do Homem um ser humano? Apesar
(6 de maio de 1856), em Freiberg, na antiga da polêmica toda, inaugurou-se com a psica-
Morávia, hoje República Tcheca. Emigra com nálise um novo capítulo na história das men-
sua família para Viena, na Áustria, que era a talidades, com a subjetividade devidamente
capital da Confederação Alemã, congregan- considerada, sob o domínio da ciência e não
do vários países da Europa Central e do Les- mais apenas sob o domínio religioso e mís-
te, sob a batuta do imperador Francisco José tico.
I de Habsburgo. Em 1867, ano de sua coroa- Mas trazia uma novidade desconcer-
ção, se dá o compromisso da Áustria com a tante: o ser humano não é o senhor de sua
Hungria, formando o estado Austro-Húnga- própria morada. Muitos já tinham conside-
ro, que seria em sua breve existência o centro rado o inconsciente como uma gradação da
do mundo moderno. A emancipação dos ju- consciência. No entanto, Freud trazia agora
deus foi decretada pelo imperador em 1869, a consideração de que sua natureza era to-
o que possibilitou ao jovem Sigmund o estu- talmente diferente e possuía leis particulares
do da medicina. No período de sua fundação de funcionamento como atemporalidade,
até seu término em 1919, depois da Primeira lógica singular e não dependência da razão,
Guerra Mundial, o Império Austro-Húnga- não sendo acessível em termos volitivos ou
ro testemunhou uma intensa transformação cognitivos.
nas ciências, em geral, nas artes (pintura, li- Ao constatar seu interesse no psiquismo
teratura, música), na arquitetura, na filoso- humano e no estudo dos estados mentais,
fia, na política, engendrando e consolidando Freud parte para Paris, a fim de fazer um
a modernidade, numa verdadeira explosão estágio com Martin Charcot no Hospital La
do espírito criativo da época. Nesse cenário Salpetrière, onde se tratavam as histéricas
novo e aberto, surge a necessidade de se usar pela hipnose. Chegando da França, se liga ao
também a ciência para se aprofundar no ser médico judeu e amigo Joseph Breuer, que co-
humano e em suas idiossincrasias. A psica- meçava a lidar com a histeria através de um
nálise é inventada, no caudal de todos esses novo método catártico, de associação livre.
avanços (Schorske, 1979). “cura pela fala” ou “limpeza da chaminé”, foi
Criada no final do século XIX e conso- assim chamado esse novo tratamento pela
lidada na primeira metade do século XX, a paciente Anna O., pseudônimo de Bertha
psicanálise representa um mergulho no psi- Pappenheim (Breuer e Freud, 1895/1969).
quismo humano, dando espaço e relevo à Com a desistência de Breuer de continuar
subjetividade. Ao se embrenhar nos enigmas a atender Anna O., por causa dos ciúmes
da mente humana, o neurologista de então de sua esposa, Freud herda Anna O. e segue
se depara com a questão dos diferentes, dos com a experimentação desse novo formato
que não seguem o rebanho (as histéricas de de tratamento. Através de Breuer, Freud che-
Freud) e vai se dedicar à descoberta de uma ga até Wilhelm Fliess, médico judeu como
outra instância, até então não reconhecida, ele, ficam amigos e trocam uma longa cor-
que se aloja no mais profundo do psiquismo, respondência, relatando suas ideias e seus
mas que pode fazer uma irrupção a qualquer sonhos, casos pessoais e clínicos, o que vai

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 75–82 | julho 2023 77


Os 125 anos da psicanálise e a ética do psicanalista

se constituir no que Freud chamou de sua edifício universal. Ao contrário, ela fala do
autoanálise. que há de inconsciente na cultura, daquilo
A princípio confinado apenas entre mé- que se manifesta no discurso da cultura. Em-
dicos judeus, Freud deseja abrir sua desco- bora a ciência não se preocupe com o sujeito
berta ao mundo e tenta uma parceria com que trabalha como produtor dela mesma, a
Carl Jung, não judeu e muito bem relaciona- psicanálise parte do que a ciência deixa de
do com o mundo psiquiátrico da época. Mas lado, que é justamente o sujeito do incons-
essa parceria não se sustentou, tendo Jung ciente e o mal-estar nas relações com a civili-
se dedicado a outros domínios mais místi- zação. Apesar disso, Freud usou o referencial
cos do psiquismo, o que Freud queria evi- da ciência para construir as ficções teóricas
tar a qualquer custo, pois almejava que seu com as quais o discurso analítico opera, o
conhecimento nascente fosse reconhecido que fez também Lacan, ao usar da linguística
como uma ciência, com toda a credibilidade e da topologia nas suas teorizações. A psica-
que ela implica. Freud trabalhou suas desco- nálise não é aplicável como a ciência, nem é
bertas validando-as primeiro em si mesmo e passível de verificações imediatas. Ela é um
depois em sua prática clínica, mas sem deixar discurso que se constitui como um efeito da
de construir uma teorização concomitante, a interdiscursividade, ou seja, ela possibilita
metapsicologia. Esses dois polos se influen- que diferentes discursos da cultura se rela-
ciam mutuamente: a clínica dá legitimação cionem.
à teoria e esta dá estrutura à clínica. Como Desdenhado a princípio pelo mundo
ciência do inconsciente a psicanálise ainda científico de sua época, que considerou suas
não tinha sido confrontada com nada que a teorizações um “conto de fadas científico”
superasse. A ótica freudiana enfocou desde nas palavras pejorativas de Krafft Ebing
os atos mais corriqueiros da vida cotidiana, (Freud apud Masson, 1986) Freud não de-
como um lapso de memória ou uma troca sistiu de seus achados e foi em frente como
de palavras, passando pela compreensão dos pôde.
sonhos como realização de desejos latentes, Formou, depois da separação de Jung, seu
à sexualidade presente desde o nascimento, pequeno comitê, com colegas de sua con-
à universalidade do complexo de Édipo, até fiança (Karl Abraham, Sandor Ferenczi, Otto
questões mais altamente estimadas, como a Rank, Max Eitington, Hans Sachs e Ernest
sublimação das pulsões sexuais pelo trabalho Jones, o único não judeu), para garantir a
intelectual e pela arte. As questões ligadas às sobrevivência da psicanálise. É dessa época
instituições culturais como a ordem social, a criação da IPA (International Psychoanaly-
a religião, a moral e a ética foram minucio- tic Association) e o desenvolvimento dessa
samente trabalhadas em seus textos sobre a ciência em Berlim como sua sede principal,
cultura. e com desdobramentos, como as clínicas so-
Ao considerar a psicanálise primordial- ciais criadas então.
mente como uma ciência do inconsciente, A Primeira Guerra Mundial trouxe uma
deixando em outro plano os procedimen- validação para a psicanálise, pois consolidou
tos terapêuticos, Freud quis evitar que ela uma ruptura com a razão, trazendo uma vi-
se transformasse apenas num capítulo a são pulsional dos processos históricos coleti-
mais da psicopatologia e que fosse colocada vos. Na guerra a pulsão é superdimensionada
como tal nos manuais de psiquiatria. Não e pode-se ver que a tradição é extremamen-
quis também que a psicanálise fosse ligada te precária e a cultura tem limitações. Além
à religião ou à ideologia. Tampouco quis disso, tudo que é produzido pelo ser humano
considerá-la como uma visão de mundo ou é relativo e nessa circunstância de um con-
um sistema filosófico, porque a psicanálise flito armado há uma quebra de padrões de
nunca se encarrega de preencher os furos do normalidade.

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Eliana Rodrigues Pereira Mendes

No pós-guerra Freud se dedicou à sus- Nos anos 1940 e 1950, a psicanálise é leva-
tentação teórica de sua clínica e produziu da aos Estados Unidos da América pelos psi-
muitos textos importantes: Além do princí- canalistas judeus exilados que escaparam do
pio do prazer, O ego e o id, Inibição, sintoma Holocausto. Mas com a morte desses o Ame-
e angústia, Análise leiga, entre outros. Mais rican way of life, com sua hegemonia adapta-
no final de sua vida, escreveu, os grandes tiva, vai propiciar uma psicanálise rala, dife-
textos culturais, como O futuro de uma ilu- rente da psicanálise subversiva proposta por
são, O mal-estar na civilização, A questão de Freud. Nesse meio tempo, entre os anos 1950
uma weltanshauung, O homem Moisés e a e 1960, surge o psiquiatra francês Jacques La-
religião monoteísta, O esboço da psicanálise, can, que vai reler Freud. Suas contribuições
que iriam se juntar aos já publicados Totem e mantêm e fazem evoluir o ideário freudiano,
tabu e Psicologia das massas e análise do ego. com uma leitura da sociedade pós-moderna,
A década de 1930 vai encontrá-lo doente, inaugurada na década de 1960, atualizada
com um câncer na mandíbula e confrontado para os contemporâneos. Freud, um homem
à ascensão dos nazistas. Com a anexação da marcado pelo iluminismo e o romantismo
Áustria ao Terceiro Reich de Berlim (1938), de sua época, rompeu com a moral vitoriana
as obras de Freud foram destruídas, o que do século XIX, batalhou pela desrepressão
lhe valeu o seguinte comentário: “Fizemos do sexo e deu voz às histéricas. Lacan, por
progresso. Na Idade Média teriam queima- sua vez vai trazer o conceito de gozo, muito
do o autor, hoje se contentam em queimar pertinente à época atual, em que a radicali-
os livros” (vídeo A invenção da psicanálise, dade e a busca do prazer aparecem em pri-
de Roudinesco e Kapnist). Mal sabia ele que meiro plano. Sintomas tais como a adição
os campos de concentração se encarregariam à droga, ao álcool, ao jogo, à comida, bem
de exterminar também os homens. Essa fú- como a anorexia e a bulimia são comuns nes-
ria destrutiva e sua decepção com a cultura ses novos tempos, além dos comportamen-
alemã culminaram com sua aceitação do exí- tos radicais que envolvem o corpo em perigo
lio na Inglaterra, patrocinado por sua amiga, mortal como a prática de alguns esportes, a
a princesa da Grécia Marie Bonaparte, que variação intensa de parceiros sexuais, com a
pagou à Gestapo por sua liberação. O regi- exposição a doenças letais e altamente lesivas
me de Hitler devastou a psicanálise de língua à saúde, como Aids, hepatite e outras. Lacan
alemã. A psicanálise nunca pode sobreviver é bem recebido na América Latina, sendo
em governos autoritários, pois é libertária que sua teoria baseada na constituição do
em sua essência. A submissão e a repressão inconsciente como uma linguagem é favo-
são incompatíveis com os princípios psica- recida pelas línguas de origem latina como
nalíticos. o francês, além de representar uma abertura
Com sua morte em Londres, em 23 de maior ao novo e à pós-modernidade. As tra-
setembro de 1939, e a subida macabra dos duções editoradas na Argentina contribuí-
nazistas na Alemanha, a Inglaterra passa a ram muito para a divulgação da sua obra nos
ser o centro da psicanálise, com a rivalida- países latinos.
de entre as psicanalistas Melanie Klein (que A psicanálise está tão imbricada na cul-
trouxe grandes contribuições principalmen- tura atual que já não podemos entender o
te à psicanálise da criança e ao papel da mãe) mundo sem seus conceitos básicos e seu
e Anna Freud, que não aderiu à teoria klei- jargão peculiar. A influência claramente as-
niana, favorecendo aspectos mais pedagógi- sumida dos conceitos psicanalíticos por mo-
cos da terapia. Um pouco mais tarde aparece vimentos artísticos como o surrealismo nas
Winnicott, também dedicado ao desenvolvi- artes plásticas, no cinema, e no teatro se fez
mento infantil, trazendo novos aportes à clí- logo notar. Salvador Dali, André Breton, Luis
nica psicanalítica. Buñuel, entre outros, com seu arrojo criativo

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Os 125 anos da psicanálise e a ética do psicanalista

e a desconstrução das convenções descon- ceito é desenvolvido a partir da necessidade


certaram o próprio Freud, ele mesmo um de tomar decisões como um ato moral, sem
burguês comportado em sua vida particular, afetar ou agredir outras pessoas. Desde o Re-
embora tivesse revolucionado o mundo com nascimento o ser humano é o princípio que
sua ciência nascente, a psicanálise. O terre- norteia a organização social e a produção do
no da ética, como não podia deixar de ser, conhecimento. Com a revolução científica e
é também muito caro à psicanálise, também o Iluminismo a razão impulsiona o desen-
chamada de a ética do bem dizer. volvimento tecnológico. Novos ramos da éti-
ca se desenvolvem, como a bioética, que faz
A ética através dos tempos uma intercessão entre a filosofia e as ciências
A palavra ética tem origem do grego ethos da saúde, se ocupando dos limites que se de-
que significa costume, caráter ou modo ser. vem impor ao avanço tecnológico e à ciência,
Ela é um ramo da filosofia que estuda os para balizar as transformações que se fazem
princípios que regem a ação dos humanos. no ser humano: eutanásia, aborto, clonagem,
Ou seja, ela analisa os valores por trás das transplante de órgãos, fertilização in vitro,
ações humanas. A moral, por sua vez, é o suicídio, alimentos transgênicos e outros.
conjunto de regras que determinam os com- A psicanálise, como ciência do incons-
portamentos. A ética é uma reflexão sobre ciente e da subjetividade, não poderia ficar
a moral. É importante frisar que a ética e a de fora dessas formulações. Freud (1930),
moral variam de sociedade para sociedade; n’O mal-estar da civilização, vai dizer que a
além disso, são sujeitas à variação das men- ética trata das relações dos seres humanos
talidades de cada tempo. A ética e a morali- uns com os outros. Dentro das três causas
dade pressupõem que o comportamento hu- de maior sofrimento humano estão a falta de
mano deve buscar o bem-estar de todos que domínio da natureza, a fragilidade de nosso
integram o grupo. Para isso, é imprescindível corpo e a inadequação das regras que procu-
que haja consciência de si (o eu que constitui ram ajustar relacionamentos mútuos entre os
a própria identidade) e consciência do outro seres humanos na família, no estado e na so-
(saber os limites dessa identidade). ciedade. Este último item é um assunto que
A ética surge na Grécia Antiga, no século pode facilmente ser identificado como sendo
V a.C. Na Antiguidade compreendia o estu- “o ponto mais doloroso de toda a civilização”
do das formas de alcançar a felicidade. Os (Freud, 1930/1969, p. 95).
gregos entendiam que os princípios morais Para Freud, o mandamento máximo das
eram resultado de convenções sociais e não religiões “Amar ao próximo como a si mes-
de uma moral religiosa. Na Idade Média, po- mo” é mais fácil de ser dito do que ser vi-
rém, houve uma mudança e a ética passa a ser vido. Só a ética é capaz de fazer face a isso.
regida pela interpretação dos mandamentos “Ela deve, portanto, ser considerada como
e preceitos religiosos (do cristianismo e do uma tentativa terapêutica como um esforço
islamismo). Com o fim da idade Média são por alcançar, através de uma ordem do su-
retomados os temas éticos da Antiguidade. perego, algo até agora não conseguido por
A ética deixa as tradições religiosas e volta meio de quaisquer outras atividades cultu-
a ser entendida como um meio de se alcan- rais” (Freud, 1930/1969, p. 167). Com a nova
çar a felicidade e o bom convívio social. Há ciência vai existir uma ética do sujeito do in-
diversos tipos de ética segundo as escolas de consciente, mais próxima à verdade de cada
filosofia grega (ética helenística, ética epi- um.
curista, ética estoica, ética cínica, ética céti- Segundo Lacan, o desejo do homem é
ca, ética utilitarista, ética deontológica). Aí sempre o desejo do Outro. Isso nada mais é
também se inclui o imperativo categórico do que o desejo de desejar. Entre suas muitas
de Kant, que é uma forma de ética cujo con- elaborações teóricas sobre esse tema, é essen-

80 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 75–82 | julho 2023


Eliana Rodrigues Pereira Mendes

cial a questão do desejo do analista, que se dos seus portadores, o enriquecimento das
encontra na base da ética da psicanálise, pois artes, em geral, a busca de maior igualdade
o desejo é correlato à ação do analista em sua social (hoje vemos atendimentos em praça
clínica. Ele não se encontra do lado do ana- pública), até uma abertura às descobertas da
lista, e sim do analisando, mas vai depender neurociência, que Freud previu para o futu-
do analista e do desejo dele que todo o pro- ro. Enfim, todo um caudal de procedimentos
cesso ocorra ou não. O analista tem desejo, e da criação de uma mentalidade que valo-
mas não é o desejo singular dele que está em riza o ser humano em si mesmo, pelo que
causa. Mesmo após uma longa análise o ana- ele é. Sigamos, pois, adiante. Ainda há muito
lista não fica desprovido de desejo nem de caminho a palmilhar.
inconsciente. Os desejos são sempre infan-
tis, inconscientes e indestrutíveis. O analista,
pela própria experiência de análise, adquire Abstract
não só uma nova forma de saber reconhecer
o que é o desejo; essa é uma das vertentes do The author presents an overview of human
seu ‘saber fazer’ no processo analítico. O de- cultural evolution, starting from the begin-
sejo do analista é o de que a análise ocorra, nings of humanity, until the appearance of
que o analisando vá/compareça à sessão para psychoanalysis, in the late 19th and early 20th
falar. O analista não pode ceder de sua po- centuries. It introduces the figure of Sigmund
sição, caso contrário acabará demonstrando Freud, the creator of Psychoanalysis, and the
autoritariamente seu saber sobre o outro. É trajectory of this new knowledge, which brings
ele quem guia a análise, mas isso não quer to light the instance of the unconscious. She
dizer que ele guia a vida de quem ele escu- also talks about the main Freudian works,
ta. O analisando vai ao tratamento procu- reaching Jacques Lacan, in the 20th century,
rando o suposto saber do analista, mas este who rereads Freud. It also discusses the con-
deve reendereçar essa suposição de saber ao cept of Ethics, emphasizing that Psychoanaly-
inconsciente do analisando. O analista não sis has its own ethics, which is the ethics of the
pode dar consistência ao lugar que ocupa, subject of the unconscious, the ethics of saying
porque não pode se colocar como o grande this subject’s truth. Finally, she highlights the
Outro e repetir a condição do analisando de role of the analyst in society and the various
assujeitamento ao desejo do Outro, ao dese- openings that Psychoanalysis has brought to
jo dos pais. Como analista ele é apenas uma human beings.
função operadora. Essa é a ética lacaniana
para o par analista-analisando. Keywords: Cultural evolution, Psychoanalysis
Para concluir, temos de dizer que estes 125 and its trajectory, Subject of the unconscious,
anos de história psicanalítica transformam Ethics of psychoanalysis.
Freud talvez no principal pensador do século
XX, alguém que realmente arejou o conheci-
mento sobre o mundo e o incidiu na vida das
pessoas. Como ganhos para a humanidade,
a psicanálise legou todo um empenho que
assistimos em relação à pedagogia e à edu-
cação infantil, assim como aos movimentos
que foram fortificados pela sua ótica como:
maior paridade entre os sexos, o acatamento
às diversidades sexuais, a luta pela aceitação
das minorias étnicas, a compreensão do so-
frimento psíquico e a escuta incondicional

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 75–82 | julho 2023 81


Os 125 anos da psicanálise e a ética do psicanalista

Referências Sobre a autora

Eliana Rodrigues Pereira Mendes


Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade
De Masi, D. Em busca do ócio. Veja 25 anos.
Católica de Minas Gerais. Especialização em
Reflexões para o futuro. Tradução: Marco Antônio de
Psicologia Clínica na PUC/MG.
Rezende. São Paulo: Abril, 1993. p. 40-49.
Psicanalista formada pelo Círculo Psicanalítico de
Minas Gerais (CPMG), filiado ao Círculo Brasileiro
FREUD, S. Estudos sobre a histeria (Breuer e Freud)
de Psicanálise (CBP) e à International Federation
(1893-1895). Direção da tradução: Jayme Salomão.
of Psychoanalytic Societies (IFPS).
Rio de Janeiro: Imago, 1969. p. 43-369. (Edição
Coordenadora do Seminário Psicanálise e Cultura
standard brasileira das obras psicológicas completas
na formação de psicanalistas no CPMG, presidente
de Sigmund Freud, 2).
do CPMG 1997-1999 e 2011-2014,
e vice-presidente de 2017-2021.
FREUD, S. História de uma neurose infantil (1919
membro do corpo editorial da Revista Reverso,
[1918]). In: ______. Uma neurose infantil e outros
publicação semestral do CPMG. Delegada do Brasil
trabalhos (1917-1918). Direção da tradução: Jayme
junto à International Federation of Psychoanalytic
Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969. p. 171-184.
Societies (IFPS) desde 1998. Editora Regional para
(Edição standard brasileira das obras psicológicas
a América do Sul da revista International Forum of
completas de Sigmund Freud, 17).
Psychoanalysis (IFP) de 1997 a 2020.
Artigos publicados em livros e revistas nacionais
FREUD, S. Uma dificuldade no caminho da
e estrangeiros. Publicou três números da revista
psicanálise (1917). In: ______. Uma neurose infantil
IFP como editora convidada: Psychoanalysis and
e outros trabalhos (1917-1918). Direção da tradução:
Social Realities; The Multiple Faces of Perversion; e
Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 142-
Psychoanalysis and Work in Contemporary Times.
153. (Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, 17).
E-mail: elianarpmendes@hotmail.com
https://descomplica.com.br/blog/o-que-e-etica-
historia-e-resumo.

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Recebido em: 16/04/.2023


Aprovado em: 20/05/2023

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Luan Sampaio Silva & Janari da Silva Pedroso

O concern e a liquidez das relações humanas:


uma leitura winnicottiana
Concern and the liquidity of human relations:
a winnicottian reading
Luan Sampaio Silva
Janari da Silva Pedroso

Resumo
O artigo discute o fenômeno da modernidade líquida sob a ótica da teoria do amadureci-
mento humano, de Winnicott. Para isso, analisou-se fragmentos do livro e cenas do filme
homônimos Precisamos falar sobre o Kevin, com foco na relação de Kevin e seu ambiente, para
sustentar a proposição de que a liquidez e a fragilidade dos laços sociais humanos são um
fenômeno macrossocial, composto por vários fenômenos microssociais, que apontam para
“falhas ambientais” em diversas esferas, mas que, de forma microssocial, têm sua origem na
qualidade da relação entre o ambiente-cuidador e o bebê, em um período primitivo específico
do desenvolvimento emocional – estágio de concern –, que compromete a aquisição da capa-
cidade de se preocupar com o outro.

Palavras-chave: Winnicott, Bauman, Modernidade líquida, Concern.

Introdução objetifica os indivíduos que fazem parte de


Na contemporaneidade, vive-se um momen- seu convívio social.
to no qual as relações intersubjetivas estão Em sua obra Modernidade líquida, Zyg-
cada vez mais fragilizadas e inconsistentes. munt Bauman (2001) sustenta que a socieda-
O ser humano desprovido de empatia não de carece de relações sociais afetivas sólidas.
adquire a capacidade de se preocupar genui- E usa o adjetivo “líquido” para designar o es-
namente com os vínculos interpessoais es- tado transitório com que os líquidos alteram
tabelecidos. A esse respeito, Bauman (2004) seu estado, sem muito esforço, levando em
desenvolve uma teoria que explica, do ponto conta que os líquidos são incapazes de man-
de vista sociológico, a vulnerabilidade e a fle- ter seu estado por muito tempo.
xibilidade das relações humanas, que ocasio- Partindo da analogia dos líquidos e das
nam diversos níveis de insegurança poten- relações, Bauman (2001) defende que, no
cializados no dia a dia, os quais denominou cenário da modernidade líquida, os líquidos
de “modernidade líquida”. não encontram meios e alternativas para se
Nesse cenário, há uma valorização dos solidificar. A elevação da temperatura, isto é,
relacionamentos e contatos em rede (inter- o impulso à transgressão, bem como a subs-
net, WhatsApp, e-mail, mensagens de texto tituição, a aceleração e a circulação de mer-
etc.), que podem ser diluídos/desconectados cadorias lucrativas não oferecem ao fluxo a
a qualquer momento e de forma instantâ- oportunidade de abrandamento nem o tem-
nea. Como consequência desse processo, as po suficiente para o condensamento e a so-
pessoas não conseguem se preocupar afeti- lidificação em formas estáveis, visando uma
vamente com suas relações interpessoais, e expectativa de vida mais ampla.

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 83–96 | julho 2023 83


O concern e a liquidez das relações humanas: uma leitura winnicottiana

De acordo com Bauman (2004), em linhas Os seres humanos, na visão desse autor,
gerais, os relacionamentos interpessoais, são estão sendo ensinados a não ter apego por
objetivados e adquirem o valor de mercado- nada nem ninguém, para não se sentirem
rias. Caso haja algum defeito em um deles, sozinhos. Com isso, na modernidade líqui-
troca-se por outro, porém nada garante que da, não se pensa mais na qualidade e sim
o indivíduo goste do novo produto ou que na quantidade, isto é, quanto mais houver
receberá seu dinheiro de volta. O fato é que dinheiro e relacionamentos, melhor será.
as mercadorias são trocadas em alta veloci- O consumismo cresce a cada dia, fazendo
dade e rotatividade, por exemplo, automó- com que os indivíduos não comprem mais
veis, aparelhos telefônicos ou computadores por desejo, e sim por impulsividade, tal qual
em bom estado são descartados como deje- acontece nas relações humanas.
tos quando versões atualizadas eclodem no Apesar de Bauman descrever o fenômeno
mercado de consumo. da modernidade líquida sob o ponto de vis-
Assim acontece nos relacionamentos hu- ta sociológico, carece de uma compreensão
manos: se não estiver satisfeito, troque por do ponto de vista psicológico mais abran-
outro e, supostamente, evite o sofrimento. gente. Em consequência disso, recorremos
Há também o que Bauman (2004) denomi- a Donald Woods Winnicott para refletir
na de “relacionamentos de bolso”: aqueles sobre esse fenômeno da liquidez dos laços
em que o indivíduo pode usufruir e dispor humanos a partir de seu referencial teórico
a qualquer momento de conveniência e de- do amadurecimento humano, com ênfase no
pois guardá-lo para ser utilizado em outras conceito de concern.
ocasiões.
Procure as pessoas apenas quando estiver O estágio de concern em Winnicott
precisando de algo, depois delete, já que não Um dos principais textos em que Winnico-
lhe servirão mais para nada. Caso um supos- tt (1954-1955/2021) aborda o conceito de
to amigo faça algo que o desaponte, desco- concern é A posição depressiva no desenvol-
necte-se dele e procure outro para exercer o vimento emocional normal. O termo “posi-
papel de ombridade. Isso também serve para ção depressiva”, na verdade, é uma expres-
frustações geradas por familiares: afaste-se são formulada por Melanie Klein, de quem
deles sem ao menos entender o contexto da o autor faz uma releitura particular ao apre-
situação vivenciada geradora do conflito. To- sentar ao leitor uma forma de articular esse
dos são descartáveis e servem apenas para sa- conceito com a teoria do amadurecimento
tisfação das necessidades de quem as utiliza. humano. A ênfase do artigo recai sobre a
A sociedade se pauta em uma nova ética posição depressiva como uma conquista do
das relações sociais, que estão cada vez mais desenvolvimento emocional primitivo do
desumanas e fragilizadas. A confiança no ser humano.
próximo está em ruínas, há uma dificuldade A respeito da nomenclatura “posição de-
de se confiar no outro. Nesse sentido, os pressiva”, Winnicott (1954-1955/2021) con-
seres humanos estão sendo usados por eles sidera que o termo não é adequado para
mesmos. Os seres humanos temem o so- descrever um processo normal do desenvol-
frimento e, de acordo com Bauman (2004) vimento emocional que engloba a totalida-
imaginam, que, como não mantêm uma re- de dos fenômenos ocorrentes nesse período.
lação duradoura e estável, poderão controlar Todavia, é preciso frisar que, até o momento
esse sofrimento ou diminuir a dor ao descar- da redação do seu artigo, na década de 1950,
tar os amigos, se afastar de seus familiares ninguém havia lançado uma terminologia
etc. O desgaste emocional e a solidão, sob mais adequada para essa fase. Diante disso,
essa perspectiva, são os principais problemas o autor propõe “estágio de concern”, que foi
para a humanidade. adotado neste trabalho.

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Luan Sampaio Silva & Janari da Silva Pedroso

O estágio do concern, de acordo com mais estabelecida; e (d) que consiga diferen-
Winnicott (1954-1955/2021), é uma aquisi- ciar fantasias de fatos (Moraes, 2010).
ção pertencente à idade do desmame. Quan- No estágio de concern, um dos fenômenos
do há um “ambiente suficientemente bom”, mais importantes diz respeito à percepção da
essa posição é alcançada e se estabelece em criança de que ela e o cuidador são pessoas
algum período da segunda metade do pri- únicas e totais, seja no estado excitado, seja
meiro ano de vida. O estágio de concern lo- no estado tranquilo. Além disso, a partir da
caliza-se na fase de dependência relativa e integração da vida instintual de forma con-
aponta para a construção de um espaço in- sistente, o bebê se torna uma pessoa inteira,
termediário inserido entre o pequeno ser – com capacidade para se relacionar com pes-
que se encontra totalmente dependente de soas inteiras e não apenas com pessoas par-
seu ambiente cuidador –, mas que já começa ciais.
a caminhar, a reconhecer seus aspectos ins- Winnicott (1954-1955/2021, p. 440) afir-
tintivos e se preparar para as relações inter- ma:
pessoais.
Nesse sentido, entende-se o concern como Os estágios anteriores devem ter sido nego-
a culpa instaurada após o bebê se integrar a ciados com sucesso, na vida ou na análise, ou
uma unidade. Trata-se de uma conquista do em ambas, para que a posição depressiva seja
amadurecimento na vida desse pequeno ser alcançada. A fim de alcançá-la, o bebê deve
que aponta para o estabelecimento do círcu- ter com conseguido estabelecer-se como uma
lo benigno, o qual se mantém sem rupturas. pessoa inteira, e relacionar-se com pessoas in-
Diante dessa conquista, o concern pode ser teiras como pessoa inteira.
vivenciado na posição do Eu Sou, momento
em que o infans é capaz de adquirir posição E é nessa perspectiva que Winnicott (1954-
mais autônoma, reconhecer seu potencial 1955/2021) finaliza ao ressaltar que, caso
instintivo e agressivo e responsabilizar-se tudo ocorra bem no desenvolvimento emo-
por seus atos e pensamentos, adquirindo, as- cional da dupla cuidador-bebê, é possível
sim, a capacidade de reparação (Winnicott, perceber um bebê inteiro (pessoa inteira)
1954-1955/2021). relacionado a um cuidador inteiro (pessoa
Para que haja a conquista do concern, são inteira), no qual foi alcançado o estágio de
necessárias algumas condições ambientais concern. Do contrário, há outros percalços a
ofertadas pelo ambiente-cuidador, que facilita serem trilhados, que serão analisados a par-
esse processo de amadurecimento. A saber: tir do personagem Kevin e sua relação com
a sobrevivência do ambiente-cuidador aos seu ambiente/cuidadores: a mãe, o pai e seu
ataques instintivos do bebê, possibilitando contexto de relações, tendo como referência
que ele vá em direção ao mundo externo; e o livro (Shriver, 2012) e o filme homônimos
a sustentação da situação no tempo – o que Precisamos falar sobre o Kevin (2011), dirigi-
favorece a noção de temporização do bebê. A do por Lynne Ramsay, do qual esses perso-
conquista do concern possibilita à criança vir nagens fazem parte.
a tornar-se pertencente e relacionar-se com o
mundo, além de contribuir para com ele por Kevin e seu ambiente:
meio do uso construtivo dos instintos. por uma incapacidade
As condições essenciais para que ocorra de se preocupar com os outros
esse processo são: (a) que o bebê consiga es- Logo na contracapa do livro é possível entre-
tar integrado a uma unidade; (b) que os está- ver o resumo da obra. Lionel Shriver narra
gios primitivos tenham sido percorridos sem a história de Kevin Khatchadourian, jovem
inúmeros entraves e problemas na vida; (c) de 16 anos, responsável por cometer uma
que o indivíduo tenha uma noção temporal chacina no ginásio de uma escola localizada

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 83–96 | julho 2023 85


O concern e a liquidez das relações humanas: uma leitura winnicottiana

no subúrbio da cidade de Nova Iorque, que chas e as pusemos nessa aposta ridícula de ter
vitimou, ao todo, sete colegas, uma profes- um filho? (Shriver, 2012, p. 22).
sora e um servente. Segundo a autora, não se
trata de mais uma ficção de crime, castigo e Gradativamente, a vida profissional exito-
pesadelos americanos. A obra em questão é, sa e a relação amorosa estável que Eva tinha,
sobremaneira, um romance epistolar em que cedem espaço à discussão de ter um filho.
Eva, mãe de Kevin, redige cartas ao pai do Nessas discussões, entre ela e o companhei-
adolescente, Flanklin, já falecido. ro, Eva admite que
Com essas cartas, Eva tenta racionalizar as
possíveis razões que levaram Kevin ao ato ex- [...] quando o assunto era procriar, um de
tremista de extermínio em massa, mediante nós sempre acabava entalado no papel de
reflexões e meditações que envolvem as lem- desmancha-prazeres e, em nossa última con-
branças construídas durante o seu relaciona- tenda, eu havia jogado água fria na fervura da
mento com Franklin, ao mesmo tempo em procriação: uma criança significava barulho,
que relembra sua trajetória profissional, na sujeira, restrições e ingratidão (Shriver, 2012,
qual, num dado momento, precisou abando- p. 33).
nar suas atribuições bem-sucedidas de fun-
dadora de uma empresa de guia de turismo. É como se Eva não se sentisse confortável
Por fim, Eva realiza um reexame global: com a ideia da maternidade, ainda assim
desde o fato de ter medo de ser mãe e do mo- acabou cedendo em prol de que algo maior
mento do parto, passando pelo distinto bebê poderia acontecer na vida do até então casal,
que já causava pânico nas baby-sitters. Expõe em “querer mais alguém para amar” (Shriver,
os relatos biográficos de um garoto maquia- 2012, p. 31). Contudo, a fantasia que vai
vélico que apresentou desvios de condutas sendo construída em torno da vinda de
sociais e comportamentos incomuns na ado- um filho é igualada ao sentimento de “uma
lescência, quando, por exemplo, colecionou menina de sete anos de idade à espera de
vírus de computadores e praticou exercícios ganhar de Natal uma boneca que fizesse xixi”
de arco e flecha, uma de suas poucas distra- (Shriver, 2012, p. 23), isto é, um brinquedo,
ções. Eva também revela o sentimento de fe- completamente distante de qualquer dimen-
licidade interior que encontrou após o nasci- são real de implicações e responsabilidades
mento de segunda filha, que, diferentemen- que envolvem criar uma criança.
te da gestação de Kevin, foi desejada e com É quando Eva enumera uma lista de
quem tinha uma relação amável. ressalvas sobre a maternidade, que aprendeu
ao longo de suas vivências:
A relação cuidador-ambiente
e Kevin: os primórdios de sua história 1. Pentelhação;
Já nos afirma Winnicott que o bebê por si 2. Menos tempo só para nós dois. (Que tal
só não existe, porém existe dentro de uma tempo nenhum só para nós dois?);
relação com alguém que dele cuida. Partin- 3. Os outros. (Reunião de pais e mestres. Pro-
do dessa premissa, as nossas discussões em fessores de balé. Os amigos insuportáveis
torno da história ficcional começam com o das crianças e seus insuportáveis pais);
estágio de gestação de Eva Katchadourian, 4. Virar uma vaca gorda, (Eu era esbelta e
mulher que não nutre o desejo de ser mãe. preferia ficar como estava. Minha cunha-
De imediato, da teve varizes durante a gravidez, aquelas
Eva se questiona: veias enormes nas pernas dela nunca mais
desincharam, e a perspectiva de ver mi-
O que deu em nós? Éramos tão felizes! Então nhas panturrilhas se ramificando em radí-
por que motivo retiramos todas as nossas fi- culas azuis me torturava mais do que eu

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Luan Sampaio Silva & Janari da Silva Pedroso

poderia admitir. De modo que não admiti ral normativo do patriarcado (modelo de sis-
nada. Sou vaidosa, ou já fui um dia, e uma tema social/cultural que favorece o homem),
de minhas vaidades era fingir que eu não que, ao instaurá-la como a obrigação prio-
tinha vaidade); ritária e o destino de toda mulher, acarreta
5. Altruísmo artificial: ser reforçada a tomar intensos sofrimentos psíquicos a ela, pois
decisões segundo o que é melhor para não está em questão aqui o instinto biológi-
uma outra pessoa. (Eu sou pavorosa); co materno, mas sim o desejo de maternar.
6. Redução nas minhas viagens. (Note que eu Eva, talvez, sinta-se cobrada em ter o “algo a
disse redução. Não fim delas); mais” em seu relacionamento, situação que
7. Tédio enlouquecedor. (Eu achava criança vem à tona quando argumenta que o filho
pequena uma chatice inominável. E, desde fará companhia ao marido.
o princípio, sempre admiti isso para mim
mesma); Você tivesse me deixado com um filho na bar-
8. Vida social imprestável. (Nunca consegui riga. Com um filho na barriga: há uma resso-
ter uma conversa decente na presença de nância quente e gostosa nessas palavras, um
crianças de cinco anos na sala); reconhecimento arcaico, mas terno de que,
9. Rebaixamento social. (Eu era uma empre- pelos nove meses seguintes, você terá compa-
sária respeitada. Assim que aparecesse nhia para onde quer que vá (Shriver, 2012, p.
com uma criança a tiracolo, todos os ho- 39).
mens que eu conhecia – e todas as mulhe-
res também, o que é deprimente – deixa- Em contraposição ao termo “grávida”,
riam de me levar tão a sério); que Eva considera “pesado, volumoso, que
10. Arcar com as consequências. (Procriar é aos meus ouvidos sempre me pareceu uma
saldar uma dívida. Mas quem quer saldar péssima notícia”, prefere “eu estou grávida”. E
uma dívida da qual se pode escapar? Tudo complementa:
indica que as mulheres sem filhos escapam
impune e furtivamente. Além do mais, Instintivamente, já imagino uma garota de
de que adianta pagar uma dívida para o dezesseis anos, à mesa do jantar –pálida, do-
credor errado? Só a mais desalmada das entia, com um namorado canalha – fazendo
mães poderia se sentir recompensada da um esforço danado para desembuchar os pio-
trabalheira ao ver a própria filha levando res temores de sua mãe (Shriver, 2012, p. 39).
finalmente uma vida tão horrenda quanto
a sua) (Shriver, 2012, p. 38-39). Trata-se de uma representação da diferen-
ça quando o filho é pensado para si, o filho,
É notório que as inúmeras preocupações aqui, irá apenas trazer prejuízos a si mesma.
de Eva recaem sobre sua própria pessoa, Eva parece não conceber positivamente o de-
inclusive a vida profissional, social, sejo de maternar e conseguir cuidar de uma
amorosa. Em nenhum momento cogita- criança, fator que aponta para o não surgi-
se as necessidades naturais de uma criança mento de uma “preocupação materna pri-
de receber um olhar especial como se mária”, que, futuramente, irá incidir na sua
as suas demandas devessem ser sempre relação com Kevin. Infere-se que suas repre-
prioritárias diante das necessidades do sentações sobre a maternidade e gravidez são
filho. “Qualquer que seja o gatilho, o sempre atravessadas por sentimentos hostis
chamado não penetrou meu sistema e isso e confusos.
me deixou com a sensação de que havia A preocupação materna primária, é apon-
sido enganada” (Shriver, 2012, p. 39). tada por Winnicott (1956/2021) como uma
A qual chamado Eva se refere? À materni- “doença normal” que possibilita ao cuidador
dade, enraizada a um sistema social e cultu- uma adaptação delicada e sensível às neces-

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O concern e a liquidez das relações humanas: uma leitura winnicottiana

sidades do bebê nos primórdios de sua vida, Essa falha ambiental vivida pelo bebê no
pela via da identificação, deixando de lado início de sua vida provoca uma ameaça de
temporariamente seus interesses pessoais, aniquilação, um sentimento de ameaça à
não se materializa na relação de Eva e Kevin. existência pessoal. No romance, observamos
Isso porque o cuidador que desenvolve esse o descompasso dessa ausência de identifica-
estado de adaptação fornece um contexto ção entre cuidador e bebê, quando Kevin,
para que se manifeste o desenvolvimento da ainda pequeno, chora frequentemente e des-
criança, em que tendências ao amadureci- perta em Eva o sentimento da frustação e do
mento começam a ser desdobradas e o bebê incômodo, já que ela não consegue abrandar
experimenta movimentos espontâneos e se o filho.
apropria das sensações equivalentes a essa A mãe está tão perdida nessa função de
etapa inicial de vida (Winnicott, 1956/2021). cuidados, que nem sabe o que fazer e quais
É por meio do cuidado ofertado ao bebê decisões deveria tomar em relação a Kevin.
que a continuidade de seu ser se manteria. No filme, este momento é muito nítido na
Falha o ambiente/cuidador que não consegue cena em que Eva aparece na rua diante de
ofertar esses cuidados ao bebê. Tais falhas es- uma obra de construção, depois de várias
tão presentes em todas as relações entre cui- tentativas frustradas de apaziguar o choro
dador e bebê, mas que aqui dizem respeito a de Kevin, porém muito satisfeita ao perceber
uma falha ambiental que para o bebê é insu- que o filho cessava o choro com o barulho
portável e persiste no tempo continuamente. das máquinas.
Nesse sentido, o bebê sente-se invadido Outro aspecto importante que cabe ressal-
por algo que Winnicott denominou de in- tar nas dificuldades de Eva – nesse primeiro
trusão: aquilo que interrompe a continuida- momento, quanto ao cuidado de Kevin – re-
de de ser do bebê. E a natureza dessa intru- porta aos cuidados da mãe recebidos quando
são provém do ambiente. Quando se trata era um bebê. Cumpre esclarecer que não está
de uma intrusão persistente no tempo, por em discussão aqui a hipótese de culpabiliza-
demais intensa ou prematura, e o resultado é ção do ambiente-cuidador que falha no sen-
traumático, cabendo ao bebê apenas reagir a tido de uma intencionalidade de cuidados
essas intrusões/falhas ambientais, conforme não ofertados, mas de uma incapacidade de
o psicanalista salienta: identificação com um lugar que não pôde
ocupar quando também era um bebê e, assim,
[...] pode-se dizer que uma proteção do ego poder desfrutar de um ambiente facilitador.
suficientemente boa pela mãe (em relação a Winnicott (1966/2019, p. 20) articula a
ansiedades inimagináveis) possibilita ao novo preocupação materna primária com esse fa-
ser humano construir uma personalidade tor:
que segue o padrão de um continuar a exis-
tir. Todas as falhas (passíveis de produzir an- [...] penso que é comum a mulher entrar em
siedade inimaginável) acarretam uma reação uma fase, da qual é comum ela se recuperar
do bebê, e essa reação intercepta o continuar em algumas semanas ou meses após o nasci-
a ser do bebê. Se esse tipo de reação persis- mento do bebê. Não há nada de místico nis-
te e, o continuar a ser do bebê é recorrente- so. Afinal, ela já foi um bebê e tem em si as
mente interrompido, instaura-se um padrão memórias de já ter sido um bebê; ela também
de fragmentação do ser. O bebê cujo padrão tem a memória de ter sido cuidada, e essas
é o de fragmentação da continuidade de ser memórias ou ajudam ou atrapalham suas ex-
tem uma tarefa de desenvolvimento que fica, periências como mãe.
praticamente desde o início, sobrecarrega-
da no sentido da psicopatologia (Winnicott, A relação de Eva e sua mãe também é des-
1962/2022, p. 76). crita nas cartas endereçadas ao companheiro

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Luan Sampaio Silva & Janari da Silva Pedroso

Frankin, quando confessa que um de seus dá muita opção de escolha” (Shriver, 2012, p.
esportes favoritos era falar mal de seus pais, 35). Após a apresentação de um panorama
que foram, nas palavras de Eva, “pessoas que do ambiente psíquico-familiar em que Eva
me deixaram maluca” (Shriver, 2012, p. 34). esteve refém por muito tempo, dedicaremos
Em um desses momentos comenta o seu re- nossa atenção a partir de agora à relação tur-
ceio de se parecer com a própria mãe e de bulenta de Eva e Kevin, marcada por uma
ter o mesmo destino desta, descrita como série de dificuldades de estabelecimentos
alguém ausente, ainda que presente em sua de vínculos afetivos entre mãe e filho, cujas
casa. A possível falta de identificação da mãe causas remontam, entre outros fatores, a as-
para com Eva é ainda mais notável no tre- pectos transgeracionais, isto é, aqueles que
cho em que afirma que precisava estar sem- estão envolvidos na transmissão da relação
pre disponível para realizar as necessidades e cuidador-bebê.
desejos de sua mãe, sem ter as suas próprias Um tópico interessante que merece a sus-
necessidades consideradas. citação de debates, e que está presente nessa
relação, é o holding, na passagem em que Eva
Quando criança, estava sempre indo fazer não consegue conter e aconchegar Kevin em
algo para o qual era pequena demais, e isso, seu colo. Já no filme, por sua vez, é mostrada
portanto, me apavorava. Ela me fez sair para a cena da mãe balançando o filho para cima
procurar uma junta de vedação para a pia da e para baixo, longe de seu próprio corpo,
cozinha quando eu tinha oito anos de idade. numa tentativa desesperada de acalmá-lo.
Ao me forçar a ser sua emissária, quando eu Sobre o holding, Winnicott (1967/2019, p.
ainda era muito nova, minha mãe conseguiu 76) reitera:
reproduzir em mim a mesma angústia des-
proporcional diante das pequenas interações [...] no início, entretanto, é o segurar físico
com o mundo externo que ela própria sentira da estrutura física do bebê que fornece uma
aos trinta e dois anos (Shriver, 2012, p. 44). condição psicológica boa ou ruim. Segurar e
manusear bem facilita os processos de ama-
Com base nessa citação, /Diante disso, durecimento, enquanto segurar mal implica
podemos depreender que Eva se sentia for- interrompê-los repetidamente em decorrên-
çada a ter que atender sempre às demandas cia das reações do bebê ante falhas na adap-
de sua mãe, de quem relembrava com pavor. tação.
São recordações associadas a um ambiente
não facilitador que anulava as necessidades O fato é que o holding é a base sobre a qual
pessoais de Eva, como se ela fosse apenas um a confiança é estabelecida em um mundo
brinquedo, expressão utilizada pela persona- amigável, pois, ao ser bem segurado, o bebê
gem para se referir ao filho Kevin. se torna apto a amadurecer emocionalmen-
Desse modo, a ausência de cuidados exer- te. Como pudemos observar, Eva não conse-
cidos continuamente no tempo e no espaço guiu oferecer esse suporte a Kevin. E quanto
dificulta o processo de internalização de um à figura do pai? Qual a sua função nesse pro-
ambiente suficientemente bom, que possibi- cesso?
litasse a Eva transmitir ao próprio filho uma Winnicott (1966/2019, p. 21) trata desse
experiência ambiental satisfatória, pois ela momento inicial da relação cuidador-bebê:
mesma não foi uma criança valorizada e aco-
lhida em seus gestos espontâneos. [...] penso que, quando o bebê está pronto
No que diz respeito ao seu pai, Eva rela- para o nascimento, a mãe — se amparada
ta que faleceu um ano antes de ela nascer e adequadamente por seu companheiro, pelo
que, por isso, se queixava já que restaram a Estado de bem-estar social ou por ambos —
ela somente “minha mãe e irmão, e isso não está preparada para essa experiência em que

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O concern e a liquidez das relações humanas: uma leitura winnicottiana

ela sabe extremamente bem quais as necessi- uma briga. Não, era tudo alegrinho, na base
dades do bebê. do cachorro-quente e das pastinhas de queijo.
Uma fraude completa, sabe? Era tudo Vamos
É inegável nesse momento o apoio do am- ao Museu de História Natural, Kev, eles têm
biente, inclusive todas as pessoas envolvidas umas pedras que são mesmo geniais! Ele era
no processo de amadurecimento do bebê, se- ligado numa espécie de fantasia da Liga In-
jam elas o pai, sejam outras representações fantil de baisebol, ficou congelado lá nos anos
significativas ou substitutas de referências, cinquenta. Eu ouvia aquele negócio de Eu te
uma vez que compõem o ambiente facilita- aaaaaaaamo, parceiro! e ficava só olhando
dor. Em relação/Quanto ao ambiente-facili- pra cara dele, tipo assim, Com quem você tá
tador, Winnicott (1968/2019, p. 38) pontua: falando, cara? Que quer dizer esse negócio de
o papai ‘amar’ você e não ter uma p[bip] de
Do meu ponto de vista, a saúde mental do ideia de quem você é? Então, quem é que ele
indivíduo começa a se estabelecer desde o amava? Algum garoto do Happy Days, não eu
início pela mãe que fornece o que chamei de (Shriver, 2012, p. 411).
ambiente-facilitador, em meio ao qual os pro-
cessos naturais do crescimento do bebê e as Nesse ponto, o pai de Kevin parece ter fa-
interações com o ambiente podem evoluir de lhado também como parte de um ambiente
acordo com o padrão herdado pelo indivíduo. facilitador sob inúmeros aspectos, em razão
das dificuldades psíquicas e dos aspectos
De forma mais ampla engloba-se, ao lon- subjetivos que atravessaram o seu desenvol-
go do desenvolvimento da criança, a rede vimento emocional pessoal. Em outras pa-
de apoio do cuidador de referência, como lavras, Franklin não conseguiu ofertar a sua
a escola, o Estado etc. No tocante à rede de companheira uma “capa protetora” para que
apoio de Eva, ela se faz precária, já que ao ela pudesse exercer a maternagem adequada
seu redor não há pessoas que possam ajudá nos momentos iniciais da vida de Kevin.
-la nesse processo complexo de maternagem. Além disso, diante da ausência de alguma
Em se tratando do pai de Kevin, não houve figura de referência que ofertasse uma ma-
demonstrações de atenção às necessidades ternagem suficientemente boa, não conse-
de Eva, a ponto de menosprezá-las taxativa- guiu exercer tal função que perpassaria pela
mente ou até de achar que estaria inventan- figura de um “pai suficientemente simbóli-
do coisas sobre Kevin, falhando, assim, em co” (Dethiville, 2014), que viria, mais adian-
perceber os comportamentos desafiadores e te, durante o percurso do desenvolvimento
violentos expressos pelo filho. emocional.
Já no que diz respeito à percepção de Ke- Ademais, fica evidente no filme que o pai
vin, vislumbramos que seu pai vivia distan- não reconhecia os comportamentos desafia-
te, aparentando estar em uma realidade pa- dores e violentos, expressos pelo filho, mini-
ralela. Kevin reclama até de que o pai não o mizando os problemas sob o argumento de
conhecia de verdade, como o leitor pode ser que era apenas um menino e que, portanto,
perceber na cena em que há o diálogo entre era natural os garotos apresentarem esse per-
Kevin e Marlin, apresentador de um veículo fil.
de comunicação. Todas as situações aqui discutidas em
torno de Kevin e de seu ambiente/cuida-
Podemos falar um pouco de seus pais, Ke- dores nos conduziram a conjecturas acerca
vin? Recomeçou Marlin. Mãos atrás da cabe- de determinados entraves relacionados ao
ça. “Manda ver”. “O seu pai... vocês se davam desenvolvimento emocional e ao compro-
bem, ou brigavam?” “O sr. Plástico?”, zombou metimento em estabelecer e manter os laços
Kevin. “Seria sorte minha se a gente tivesse sociais do protagonista, sobretudo quanto à

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Luan Sampaio Silva & Janari da Silva Pedroso

sua incapacidade de reconhecer a alteridade da mãe como parte do ambiente total (Winni-
– não importando se os outros são pessoas cott, 1963/2022, p. 24).
ou animais.
Em circunstâncias ambientais favoráveis
O estágio de concern em Kevin ao desenvolvimento emocional, a face de
e suas raízes na relação líquida mãe-objeto do cuidador sobrevive aos im-
cuidador-bebê pulsos instintivos emitidos pelo bebê, assim
Sobre a capacidade de concern, Winnicott como na condição de face de mãe-ambiente
(1963/2022) afirma que é um aspecto cen- do cuidador há uma função primordial: estar
tral da vida em sociedade. O concern implica lá para receber o gesto espontâneo do bebê,
mais integração, mais amadurecimento e se ser empática e cuidar desse pequeno ser.
relaciona com o senso de responsabilidade Os impulsos instintivos levam ao uso des-
do indivíduo, principalmente no que se re- medido dos objetos, fazendo com que surja
fere aos relacionamentos que envolvem os um sentimento de culpa, que é aplacado pela
impulsos instintivos. “A consideração é um contribuição à mãe-ambiente que o bebê
indício de que o indivíduo se preocupa, ou se pode fazer no decorrer temporal. Além do
importa, e tanto sente como aceita responsa- mais, há que considerar
bilidade” (Winnicott, 1963/2022, p. 92). Tra-
ta-se de uma organização mais complexa do [...] a oportunidade para doar e fazer repa-
ego, uma conquista do cuidado do bebê, da ração – que a mãe-ambiente oferece por sua
criança e dos processos internos de cresci- presença consistente – permite que o bebê se
mento destes. torne cada vez mais ousado ao experimentar
Em vários momentos do livro e do filme, seus impulsos instintivos; ou, dito de outro
somos surpreendidos pelo nível de frieza que modo, libera a vida instintiva do bebê (Win-
Kevin demonstra pelas pessoas ao seu redor, nicott, 1963/2022, p. 96).
revelando incapacidade de se preocupar com
os outros e ausência de empatia ou conside- Consoante Winnicott (1963/2022), o fra-
ração por outrem. Essa falta de benevolên- casso das faces de mãe-objeto em sobreviver
cia, como já foi discutido em parágrafos an- ou de mãe-ambiente em fornecer oportuni-
teriores, se traduz pelo estágio de concern, à dades sólidas para a reparação coordena não
luz da concepção winnicottiana. somente a perda da capacidade de concern
Cumpre esclarecer que o concern surge na como também sua substituição por ansieda-
vida do pequeno ser como uma experiência des e determinados tipos de defesas, a exem-
de união, na mente do bebê, envolvendo a plo da cisão e desintegração.
“mãe-objeto” e a “mãe-ambiente”. Essas ex- Retomemos alguns dos principais episó-
pressões de Winnicott (1963/2022) destacam dios e fatos da vida de Kevin, que nos permi-
duas faces dos cuidados maternos ofertados tem apresentar exegeses a respeito da manei-
pela figura de referência para o bebê. ra/do modo como a capacidade de concern
Nas palavras do teórico, há falhou no desenvolvimento emocional do
personagem central, cujas consequências,
[...] a mãe como objeto, ou possuidora do ob- quando levadas ao extremo, revelam, senão,
jeto parcial que pode satisfazer as necessida- sua incapacidade de consideração pelas pes-
des urgentes do bebê, e a mãe como a pessoa soas. E aqui estamos aludindo diretamen-
que evita o imprevisto e que ativamente provê te à cena da famosa quinta-feira, abordada
o cuidado, por meio do manuseio e do ma- no livro e no filme, na qual Kevin arquiteta,
nejo em geral. O que o bebê faz no ápice da friamente, todos os passos do seu plano de
tensão do id e o uso que assim faz do objeto assassinar cada uma das pessoas que foram
me parecem muito diferentes do uso que faz atraídas até o ginásio da escola. A maneira

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 83–96 | julho 2023 91


O concern e a liquidez das relações humanas: uma leitura winnicottiana

como Kevin se relacionava com sua irmã, acidente que fez a irmã perder um dos olhos.
seu pai e sua mãe nesse sentido, revela alguns Frente a esses atos condenáveis socialmente,
dos indícios de comprometimento dessa ca- Kevin não manifesta nenhum tipo de sen-
pacidade de concern. timento de culpa ou remorso. Na verdade,
Um dos atos dessa trama que ilustra a in- mostra-se apático diante dos sentimentos da
capacidade de Eva de sobreviver aos ataques irmã, que sofre duplamente, tanto pela perda
e não conseguir conter os impulsos instin- de seu animal quanto pelo trauma de ter um
tivos de Kevin é o instante em que o ado- dos olhos lesionados permanentemente.
lescente pintou, com diversas tintas, a sala Por tudo que foi problematizado até aqui,
inteira da mãe, destruindo o trabalho dela. julgamos a análise de Kevin e seu ambiente
Esse episódio gerou excessiva fúria e reação como um tipo de relação revoltosa, marcada
desmedida por parte de Eva em relação ao fundamentalmente por sentimentos ambi-
filho, que é segurado por ela e arremessado valentes e inúmeras dificuldades de inves-
contra a parede, resultando na fratura de um timento emocional, quando se trata do am-
dos braços de Kevin. biente e da manifestação da fragilidade de
Há outros momentos turbulentos nos estabelecimento de vínculos afetivos.
quais Eva não sabe lidar com a agressividade Esses tipos de vínculo podem ser lidos,
de Kevin e, ao mesmo tempo, não consegue diante das passagens retomadas do livro e do
se identificar com as necessidades do primo- filme ao longo do trabalho, como entraves ao
gênito, no sentido de oferecer a ele atenção estágio de concern, ainda que não tenhamos
e cuidados necessários enquanto mãe-am- desprezado outras abordagens teóricas com-
biente, o que nos possibilita usar o argumen- plementares em torno dessa categoria psica-
to da dificuldade de Kevin em integrar essas nalítica, principalmente aquelas que estão
duas facetas da mãe. situadas no campo das psicopatologias, as
Kevin, por causa disso, não poderia desen- quais também podem ser apropriadas, para
volver nenhum tipo de sentimento de culpa fins de análise, com base no caso de Kevin.
que, hipoteticamente, o fizesse ter considera- Eis uma pequena amostra de um contexto
ção pelo outro e isso pressupõe naturalmente mais amplo de modernidade líquida, em que
tentativas de reparação/aniquilação dos seus os laços sociais são efêmeros e precários.
impulsos agressivos direcionados ao mesmo
objeto, caso conseguisse integrá-los psiqui- Considerações finais
camente. O caso de Kevin ilustra as fragilidades e pre-
Os seus laços sociais, destituídos da não cariedades dos laços humanos desprovidos
aquisição da capacidade de concern, são ex- de empatia. É na direção desse quadro de
tremamente frágeis, como se a ele não fosse fragilidade que Bauman (2001) descreveu
concedido o exercício de reconhecer a alteri- suas observações em torno do conceito de
dade, ou ainda mesmo que ela existisse, ma- modernidade líquida – os laços sociais efê-
terializa-se precariamente. Sob esse prisma, meros, atravessados por uma lógica neolibe-
o reconhecimento do outro não é ponderado ral consumista, nos quais as pessoas são re-
como pessoa total, isto é, Kevin se relaciona duzidas a mercadorias. Ao realizar leituras,
com objetos parciais mediante mecanismos de caráter sociológico, o estudioso apontou
primitivos como a cisão. para a ausência de solidificação nas relações
Outras cenas que evidenciam a ausência humanas e capacidade de se preocupar com
do sentimento de culpa de Kevin são aquelas o outro.
protagonizadas entre ele e Célia, sua irmã. Tendo como parâmetro o caso Kevin,
No filme fica subentendido que o adolescen- propusemos examinar a modernidade líqui-
te matou o ratinho de estimação de sua irmã, da com base na teoria do amadurecimento,
além de ter sido o responsável direto pelo de Winnicott, enquanto fenômeno macros-

92 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 83–96 | julho 2023


Luan Sampaio Silva & Janari da Silva Pedroso

social permeado por incontáveis ambien- de responsabilidade do indivíduo frente aos


tes microssociais que falharam e não foram seus vínculos afetivos.
capazes de facilitar o desenvolvimento da
capacidade de concern nesses seres huma-
nos. A respeito desse ambiente microssocial, Abstract
denominamos de “relação cuidador-bebê The article discusses the phenomenon of liquid
líquida”, como forma de analogia aos precei- modernity from the perspective of Winnicott’s
tos de Bauman (2001) em torno da liquidez theory of human maturation. For this, literary
primeira na relação primordial entre o bebê fragments and scenes from the homonymous
o ambiente que dele cuida — e que aqui foi film were analyzed: “We need to talk about
representado pela família e por pessoas sig- Kevin”, focusing on Kevin’s relationship and
nificativas. his environment, to support the proposition
A modernidade líquida é, à vista disso, a that liquidity and the fragility of human so-
soma desses seres humanos que tiveram per- cial ties are a macrosocial phenomenon, com-
calços durante o estágio de desenvolvimento posed of several microsocial phenomena that
emocional primitivo, o qual, ao se transfigu- point to “environmental failures” in different
rar substancialmente, nos estimula a refletir spheres; but which, in a microsocial way, have
em torno de algumas das principais falhas, their origins in the quality of the relationship
em termos ambientais, mais macrossociais: between the caregiver-environment and the
seria o ambiente de políticas públicas vol- baby, in a specific primitive period of emo-
tadas à facilitação dos cuidados ofertados tional development – stage of concern –, which
pelos ambientes microssociais ou o investi- compromises the acquisition of the ability to
mento em escolas e educação como elemen- worry about the other.
tos pertencentes a esse mesmo ambiente? Há
várias questões a serem consideradas nesses Keywords: Winnicott, Bauman, Liquid mo-
debates, em que determinadas questões ori- dernity, Concern.
ginais são inevitavelmente desencadeadas e
certamente poderão ser desdobradas em fu-
turas pesquisas.
Em suma, ao longo do trabalho, após aná-
lises, procuramos sustentar a proposição de
que o fenômeno da modernidade líquida e
a origem da fragilidade dos laços humanos
minuciados por Bauman (que argumenta
com base numa linha de pensamento socio-
lógico da sociedade de consumo), podem ser
localizadas coerentemente em um período
primitivo particular do desenvolvimento
emocional do ser humano, que foi apontado
por Winnicott como o estágio de concern.
Essa designação nos possibilitou com-
preender a qualidade dos vínculos estabe-
lecidos na infância seguidos de suas reper-
cussões psíquicas na criança e no adulto. E é
nesse estágio, em verdade, que ocorre a cons-
trução da capacidade de se preocupar com o
outro, fator que demanda mais integração e
amadurecimento no que se refere ao senso

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 83–96 | julho 2023 93


O concern e a liquidez das relações humanas: uma leitura winnicottiana

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94 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 83–96 | julho 2023


Luan Sampaio Silva & Janari da Silva Pedroso

Sobre os autores

Luan Sampaio Silva


Psicanalista.
Formação em psicanálise pelo Círculo Psicanalítico
do Pará (CPPA), filiado ao Círculo Brasileiro de
Psicanálise (CBP) e à International Federation of
Psychoanalytic Societies (IFPS).
Filiado ao Instituto Brasileiro de Psicanálise
Winnicottiana (IBPW) e à International Winnicott
Association (IWA).
Psicólogo pela Universidade da Amazônia
(UNAMA).
Aperfeiçoamento em psicoterapia psicanalítica de
casal pelo Instituto Sedes Sapientiae.
Especialista em psicanálise com crianças e
adolescentes: teoria e clínica pelo Instituto de Pós-
Graduação e Graduação (IPOG).
Mestre em psicologia na linha de psicanálise, teoria e
clínica pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e
doutorando em psicologia pela UFPA.
Professor do curso de Graduação em Psicologia do
Centro Universitário Metropolitano da Amazônia
(UNIFAMAZ) e do cursos de especialização em
psicanálise com crianças e adolescentes; Psicanálise
e clínica contemporânea; e Psicopatologia e
Psicanálise, do Instituto de Pós-Graduação e
Graduação (IPOG).
Supervisor clínico de psicanálise.

E-mail: psi_luansampaio@hotmail.com

Janari da Silva Pedroso


Psicólogo pela Universidade da Amazônia
(UNAMA).
Mestre e doutor em desenvolvimento sustentável do
trópico úmido pela Universidade Federal do Pará
(UFPA).
Pós-doutor em psicologia pela Universidade Católica
de Brasília (UCB/DF).
Professor Associado IV da Faculdade de Psicologia
e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
UFPA.
Coordenador do Laboratório de Desenvolvimento e
Saúde (LADS/UFPA).
Participa da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Psicologia (ANPEPP), no Grupo de
Trabalho “Família, Processos de Desenvolvimento e
Promoção da Saúde”.
Participa da diretoria da Associação Brasileira de
Psicologia da Saúde (ABPSA).
Membro associado do Instituto Brasileiro de
Avaliação Psicológica (IBAP).

E-mail: pedrosoufpa@gmail.com

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 83–96 | julho 2023 95


Márcia Gralha & Paulo Roberto Ceccarelli

Teoria dos sistemas de justificação (JUST)


e alguns pressupostos psicanalíticos:
reflexões transdisciplinares
Justification Systems Theory (JUST)
and some psychoanalytic assumptions:
transdisciplinary reflections
Márcia Gralha
Paulo Roberto Ceccarelli

Resumo
Este ensaio estabelece pontos de contato entre uma abordagem metateórica denominada Teo-
ria dos Sistemas de Justificação (JUST; Henriques, 2022) e algumas premissas psicanalíticas.
A Teoria dos Sistemas de Justificação oferece um arcabouço explicativo visando esclarecer a
singularidade da consciência e da comunicação humana. Essa abordagem mantém uma pers-
pectiva evolutiva, preservando a continuidade com a experiência primata e enquadrando a
cultura humana como sistemas de justificação. Destaca-se a convergência com pressupostos
freudianos, notavelmente evidenciados pelo modelo tripartido atualizado, composto por eu
experiencial, eu privado (ego) e eu público (persona), paralelos com a estrutura tripartida do
isso, eu e supereu na teoria freudiana. A consciência humana é interpretada como um aparato
mental evolutivamente novo, cumprindo uma função adaptativa de narrar justificações que
legitimam e coordenam ações no plano cultural. Parte inferior do formulário

Palavras-chave: Metateoria; Transdisciplinaridade; Consciência; Cultura.

Introdução funcionamentos propiciaria a ampliação do


O pensamento de Freud se caracteriza por limite e da operacionalidade de cada um des-
um diálogo constante com a produção fi- tes modelos e, consequentemente, uma trans-
losófica e científica de sua época. Não por formação destes últimos (Ceccarelli, 2005, p.
acaso, sua teoria sofreu constantes modifica- 374).
ções, reflexo da inquietação intelectual que
sempre o acompanhou (Trotta, 2010). Trata-se, pois, de uma transdisciplinari-
Adentramos aqui o campo da psicopato- dade que reúne em uma rede de significa-
logia fundamental, que entende a noção de ções conhecimentos específicos e singulares
fundamental de cada modelo em torno de uma concepção
ética, possibilitando o surgimento de novos
[...] no sentido de uma “fundamentalidade”, campos discursivos que produzam intera-
uma “intercientificidade” dos objetos con- ções e levem a novas construções metafóri-
ceituais. Trata-se de um projeto de natureza cas.
intercientífica onde a comparação epistemo- Com essa ideia em mente, procuramos
lógica dos modelos teórico-clínicos e de seus pontos de contato que nos propiciem um

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 97–108 | julho 2023 97


Teoria dos sistemas de justificação (JUST) e alguns pressupostos psicanalíticos: reflexões transdisciplinares

diálogo produtivo e nos levem a traçar inter- está além do escopo deste artigo e detalhes
conexões entre a teoria dos sistemas de justi- aprofundados podem ser encontrados em
ficação [Justification Systems Theory – JUST] Henriques (2022).
(Henriques, 2022) – e algumas premissas da
teoria psicanalítica. 1.1 As três alegações da teoria
dos sistemas de justificação
1. A teoria dos sistemas de justificação A questão central explorada pela JUST é a
(JUST) seguinte: Quais desafios adaptativos emer-
A JUST é uma metateoria que propõe uma giram com o desenvolvimento da linguagem
hipótese sobre a transição dos primatas para proposicional e quais foram as implicações
o homo sapiens. Ela busca compreender estruturais e funcionais subsequentes desse
como a aquisição da consciência1 e do mun- processo evolutivo?
do social ocorreram em resposta à capacida- Para investigar a interligação entre o uso
de singular da espécie humana para desen- da linguagem proposicional e a estrutura e a
volver linguagem proposicional. função da mente humana, a JUST adota uma
Parte-se da hipótese segundo a qual um abordagem de “engenharia reversa” (Denne-
problema adaptativo transformou a evolu- tt, 1995; Pinker, 1997; Kaminski; Milkowski,
ção da comunicação humana, tornando-a 2013). Essa abordagem baseia-se na observa-
qualitativamente única no reino animal e ção fundamental de Darwin de que o design
moldando os caminhos pulsionais responsá- funcional dos organismos é resultante da
veis pela dinâmica da consciência humana. seleção natural. Dessa forma, a metodolo-
Esse processo levou o ancestral do homem gia teórica da JUST consiste em associar as
a desenvolver a linguagem em uma fase es- características do design da consciência hu-
pecífica do desenvolvimento da espécie, mana e do uso da linguagem aos problemas
foram mudanças climáticas de proporções enfrentados no ambiente ancestral, orien-
avassaladoras, e esse desenvolvimento faz tando a formulação de hipóteses sobre a fun-
parte de nossa herança filogenética (Freud, ção evoluída da linguagem e a consciência
1915/1987). humana. Para um aprofundamento na for-
A metateoria JUST está inserida no con- mulação teórica da JUST, remetemos o leitor
texto mais amplo da teoria unificada do interessado a Henriques (2003).
conhecimento [Unified Theory of Knowle- A JUST propõe a possibilidade de que
dge – UTOK] (Henriques, 2022). A UTOK a autoconsciência humana tenha evoluído
se configura como uma metapsicologia que como resposta a uma nova pressão seletiva
viabiliza um alinhamento entre as ciências enfrentada por nossos ancestrais hominí-
naturais, a experiência subjetiva e o conhe- deos: a necessidade – que surgiu pela pri-
cimento intersubjetivo. Essa teoria encontra meira vez na história evolutiva – de nossos
seus fundamentos na ciência da psicologia e antepassados justificarem suas ações para si
na prática da psicoterapia, cumprindo a fun- e para os outros. Essa necessidade foi um
ção de estruturar um panorama integrativo problema adaptativo: o problema da justi-
na ciência psicológica e nas diversas escolas ficação.
de pensamento em psicoterapia. Cabe ressal- A JUST defende que a natureza da cons-
tar que uma descrição completa da UTOK ciência humana apresenta diferenças funda-
mentais em relação à dos outros animais e
que o problema da justificação deu origem à
1. Para Freud (1920), o desenvolvimento da consciência
num estrato particular da matéria viva foi um processo si- organização estrutural e funcional do eu hu-
milar aos atributos da vida que, em determinada ocasião, mano e ao desenvolvimento de sistemas de
foram “evocados na matéria inanimada pela ação de uma justificação em larga escala que coordenam
força de cuja natureza não podemos formar concepção”
(Freud, 1920/1996, p. 56).
grupos de pessoas, de tribos a nações.

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Márcia Gralha & Paulo Roberto Ceccarelli

A JUST é composta por três alegações in- liadas como verdadeiras ou falsas de acordo
terligadas: (1) a evolução da linguagem ge- com sua correspondência com a realidade.
rou dinâmicas que podem ser enquadradas Consequentemente, as proposições se esta-
como problema adaptativo da justificação, belecem como unidades fundamentais de
tendo moldado a evolução da consciên- significado que sustentam a comunicação e
cia e da cultura humana, de forma que (2) o pensamento lógico.
a natureza da consciência humana pode ser Dessa maneira, a linguagem pode ser
caracterizada pelo modelo tripartido atua- entendida como um sistema composto por
lizado da JUST, consistente com as noções proposições que carregam asserções de ver-
fundamentais de Freud a respeito da tensão dade, o que as torna sujeitas a questionamen-
entre as pulsões e os julgamentos do mundo to (Henriques, 2022). Tal questionamento dá
social, e (3) os ancestrais dos seres humanos origem a um ciclo de retroalimentação cru-
se tornam sujeitos por meio do processo de cial para a evolução da comunicação huma-
socialização em sistemas de justificação. Nas na: a dinâmica de perguntas e respostas.
seções subsequentes, exploramos mais essas Aqui, o termo “respostas” refere-se a afir-
ideias centrais. mações ou proposições que conferem sig-
nificado, enquanto o termo “perguntas” diz
2. O problema adaptativo respeito a questionamentos com a finalidade
da justificação: a hipótese da justificação de: (1) adquirir conhecimento proposicio-
A primeira ideia que compõe a teoria dos nal sobre o estado das coisas (“o que acon-
sistemas de justificação (JUST) é delineada teceu?”), (2) contestar afirmações (“por que
pela hipótese da justificação. Essa hipótese isso ocorreu?”) ou (3) destacar a ausência de
se apoia na premissa fundamental de que, conhecimento (“como isso se desenrolou?”).
em contraste com qualquer outra espécie Ao considerar a interação dinâmica entre
animal, os seres humanos desenvolveram a perguntas e respostas, a JUST reconfigura a
capacidade de fornecer explicações para seus unidade elementar de significado linguístico,
pensamentos, seus sentimentos e suas ações. frequentemente identificada como uma pro-
Dessa maneira, a JUST estabelece sua análise posição, como uma justificação.
a partir da evolução da linguagem proposi- A premissa para tal é a seguinte: o papel
cional, argumentando que, à medida que a funcional das proposições no campo social é
linguagem se desenvolveu para abranger o delineado por justificações empregadas para
uso de proposições e a habilidade de questio- legitimar algum conhecimento. Qualquer
ná-las, os seres humanos se tornaram os pri- proposição inserida no contexto social é sus-
meiros animais a apresentar a necessidade de cetível de questionamentos, seja por parte do
se justificar para os outros e para si próprios. indivíduo que a apresenta, seja por parte de
Ainda que diversas outras espécies ani- terceiros quanto a, pelo menos, (a) seu con-
mais exibam sistemas de comunicação com- teúdo lógico ou empírico; (b) o propósito
plexos, a linguagem humana permanece úni- para enfatizá-la naquele momento específi-
ca dentro do reino animal. Em sua essência, co; e (c) as implicações para o que deveria
a linguagem humana abrange a habilidade de acontecer, dada a proposição. A partir dessa
conferir símbolos a objetos e eventos manti- perspectiva, emerge um aspecto importante
dos na memória de trabalho e organizá-los da dinâmica da justificação. O problema da
em uma estrutura semântica e gramatical justificação envolve um conjunto de ques-
para compor significados (Henriques, 2022). tões relacionadas tanto aos aspectos factuais
Ao expressar asserções, os seres humanos quanto aos aspectos de valor de dada pro-
empregam proposições, unidades linguísti- posição. Uma distinção entre esses dois do-
cas que transportam informações de caráter mínios foi destacada por David Hume, que
factual ou descritivo e que podem ser ava- propôs a divisão entre questões de fatos ou

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Teoria dos sistemas de justificação (JUST) e alguns pressupostos psicanalíticos: reflexões transdisciplinares

precisão (ou seja, o que é) e questões de valor básica, o problema analítico permeia nossas
ou interesse pragmático (ou seja, o que deve interações cotidianas, manifestando-se sem-
ser). Embora esses elementos estejam inti- pre que a veracidade de uma justificação é
mamente entrelaçados na experiência coti- questionada. A partir do momento em que
diana, eles podem ser discernidos de forma os sistemas de justificação evoluíram e se
conceitual. refinaram na era moderna, o problema ana-
O aspecto factual da justificação diz res- lítico tornou-se um elemento central para o
peito à avaliação das proposições quanto à empreendimento filosófico e científico. Por
sua veracidade, isto é, se podem ser consi- exemplo, a questão do comportamento dos
deradas como correspondentes à realidade objetos físicos na mecânica clássica é um
atual. Esse aspecto é prontamente identifi- problema analítico de justificação.
cado quando questionamos se a informa- Os elementos pessoal e social podem ser
ção que estamos obtendo de outra pessoa entendidos através do processo de “filtra-
é verdadeira ou não. O aspecto de valor do gem” que emerge à medida que a nossa ca-
problema da justificação se refere às consi- pacidade de justificar evolui. Primeiramen-
derações sobre o que deveria ser, ou como as te, a linguagem humana pode ser concebida
coisas deveriam ser conduzidas, no contexto como uma rodovia intersubjetiva de infor-
em que a justificação é empregada. Em sua mações que flui entre os sujeitos sem perder
forma mais pragmática, esse aspecto é repre- sua forma informativa. Em outras palavras,
sentado pela indagação: Por que atenção está o nosso uso da linguagem estabelece uma
sendo direcionada para essa afirmação pro- conexão mental direta entre sujeitos, dando
posicional neste momento e quais são as im- origem a uma forma de intersubjetividade
plicações disso para os envolvidos caso acre- explícita única na comunicação humana
ditem nela ou tomem ações com base nela? (Henriques, 2022). Esse desenvolvimento
Essas posições da JUST guardam resso- representa tanto vantagens quanto desa-
nâncias com uma das questões centrais da fios. Quando um grupo apresenta coesão
psicanálise, a saber, a da realidade psíquica. em seus valores, seus interesses e seus ob-
Para Freud (1914/1996), uma modificação jetivos, a via de intersubjetividade explícita
psíquica só pode ser compreendida, e talvez facilita o compartilhamento de informações
alterada, quando se alcança a verdade do su- e a coordenação em empreendimentos con-
jeito. Contudo, só podemos falar de verdade juntos, como caças organizadas ou decisões
em psicanálise se evidenciarmos a realidade políticas. Entretanto, quando há divergên-
que sustenta: a histórica ou a material? E, cias nos interesses, nos valores e nos obje-
mais ainda: como essas verdades são cons- tivos de um grupo, surgem questões, como:
truídas e de que elementos dispomos para (1) Quais informações você planeja com-
diferenciá-las (Ceccarelli, 2019). partilhar? Quando e como deseja fazê-lo? e
(2) Como você pode determinar se as in-
2.1 Três elementos do problema formações compartilhadas por outros são
adaptativo da justificação verdadeiras, válidas e úteis?
Além das dimensões factuais e dos valores É plausível considerar a existência de um
presentes na dinâmica da justificação, três processo de filtragem dessas informações,
componentes adicionais do problema adap- uma vez que é provável que certos dados
tativo podem ser identificados: (1) o proble- sejam preferencialmente mantidos em
ma analítico; (2) o problema social; e (3) o sigilo. Dessa forma, mesmo com a presença
problema pessoal. de uma via explícita de compartilhamento
O problema analítico se alinha com a di- de informações por meio da linguagem,
mensão factual da justificação e abrange uma supomos que os seres humanos ainda
ampla gama de questões. Em sua forma mais teriam que enfrentar a demanda de avaliar

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Márcia Gralha & Paulo Roberto Ceccarelli

e controlar tanto as informações que Figura 1 – O modelo tripartido


compartilham com os outros quanto as que atualizado da consciência humana
recebem. Essa análise nos permite começar
a diferenciar os aspectos pessoal e social do
problema da justificação. A relação entre
esses dois aspectos diz respeito aos interesses
pessoais e como essas/suas explicações
influenciam as relações sociais.
A referência aos processos de filtra-
gem entre o campo privado e o social no
problema adaptativo da justificação traz à
tona como a formulação teórica de JUST
se alinha com as considerações freudianas
sobre a dinâmica do aparelho psíquico e
talvez sobre as posições freudianas em re- Fonte: Henriques, 2011, p. 124.
lação ao narcisismo e seus desdobramentos
(Freud, 1914/1996). Mais especificamen- 3.1 O eu privado ou ego
te, essa perspectiva esclarece por que o eu Na JUST, o eu privado, também conhecido
deve adestrar as moções pulsionais (Freud, como ego, pode ser considerado como o
1914/1996) do isso para se adaptar às de- “órgão mental da justificação” (Henriques,
mandas do trabalho de cultura [Kulturar- 2022). Isso significa que a dinâmica de in-
beit]. Há interesses pessoais que devem ser terpretação e a explicação de sentimentos,
resguardados dos olhares críticos da socie- pensamentos e ações, que está envolvida na
dade e dos interesses sociais promovidos e criação de justificações, ocorre principal-
protegidos por ela. A partir dessas conclu- mente no âmbito privado do ego. Na JUST,
sões, podemos explorar como o problema o eu privado ou ego é definido como o nú-
adaptativo da justificação deu origem ao cleo da autoconsciência reflexiva, composto
modelo de consciência humana proposto pelo diálogo interno que constrói narrativas
na metateoria JUST: o modelo tripartido sobre o que está acontecendo e por quê. É
atualizado. um sistema de consciência que traduz even-
tos e sentimentos em linguagem, além de
3. A evolução reintroduzir esses pensamentos no sistema
da consciência humana: experiencial. Embora outros animais pos-
o modelo tripartido atualizado sam ter elementos rudimentares de auto-
O modelo tripartido atualizado (Henri- consciência, esse domínio de consciência
ques, 2011) constitui uma revisão contem- autorreflexiva mediado pela linguagem é
porânea das observações de Freud sobre o qualitativamente diferente em seres huma-
isso, o eu e o supereu (FIG. 1) Esse modelo nos, devido à nossa capacidade de formar
é composto por: (1) um eu experiencial, justificações e à nossa socialização em um
que engloba a vivência e a experiência de contexto cultural composto por sistemas
estar no mundo, combinado a um modelo de justificação. Freud (1938/2020) susten-
relacional do eu que reside em nosso nú- ta que nos animais superiores há que supor
cleo emocional; (2) um eu privado ou ego, um esquema geral de um aparelho psíquico
que ocupa uma posição de autorreflexão e semelhante ao do homem: “é de se presumir
narração interna sobre o que ocorre e por um supereu onde quer que, assim como en-
quê; e (3) o eu público ou persona, que ad- tre os humanos, tenha existido uma depen-
ministra os papéis sociais e as impressões dência infantil de longa duração” (Freud,
externas. 1938/2020, p. 21).

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Teoria dos sistemas de justificação (JUST) e alguns pressupostos psicanalíticos: reflexões transdisciplinares

3.2 O eu experencial especificamente à ideia da “máscara” que os


O eu experencial pode ser compreendido a seres humanos usam em suas interações so-
partir de dois domínios distintos. Um deles ciais. Além disso, esse aspecto da consciên-
abrange a consciência sensorial e perceptual cia se relaciona com a noção de que os se-
do mundo exterior, estando mais relaciona- res humanos se tornam pessoas a partir do
do ao aspecto “experencial” dessa parte da aprendizado da dinâmica de troca de relatos
consciência. Esse é o assento da experiên- sociais que envolvem justificações e alocação
cia de estar ciente do mundo, a função de de papéis sociais. Em alinhamento com esse
testemunhar o mundo ao abrir os olhos e pensamento, Dan McAdams (2013) aponta
percebê-lo conforme se apresenta, antes de para a primeira fase do desenvolvimento da
qualquer interpretação ou afeto em rela- autoconsciência como a fase do “ator social”,
ção a ele (Wright, 2018). O segundo domí- abrangendo dos 2 aos 10 anos de idade, fai-
nio diz respeito à maneira como reagimos xa etária correspondente à socialização das
a essas percepções, ou seja, as motivações crianças sobre regras e papéis sociais que de-
que levam o indivíduo a prestar atenção sempenham, e se serão aplaudidas ou disci-
aos estímulos do ambiente que são relevan- plinadas por suas ações.
tes para si e reagir a eles com uma valência No modelo de McAdams, a fase subse-
emocional e desejo de se aproximar ou se quente é a do agente, em que o eu se esta-
afastar desses estímulos. biliza com o desenvolvimento do autocon-
De acordo com a JUST, essa camada da ceito e da capacidade de refletir e tomar
consciência é compartilhada com outros decisões. Finalmente, McAdams identifi-
animais que também experenciam o mundo ca a fase adulta plena, em que a criança é
através de sua consciência sensorial e per- capaz de narrar os acontecimentos e in-
ceptual, suas motivações e suas emoções. terpretá-los em uma linha contínua para
Em referência à hierarquia de necessidades contextualizar o “eu” em uma trajetória
de Maslow (1954), os dois primeiros níveis de desenvolvimento. Esse mapeamento
referentes às necessidades fisiológicas e de do desenvolvimento do narrador inter-
segurança de alinhariam com esse aspec- no é consistente com os domínios do ego
to da consciência, abrangendo coisas como e persona no modelo tripartido atualizado.
prazer e dor, fome e sede, e as sensações de Em conclusão, de acordo com o modelo
segurança ou perigo, confiança ou ameaça. tripartido atualizado da teoria dos sistemas
Podemos também identificar uma camada de justificação (JUST), o sistema de cons-
do eu experencial alinhada com nossa expe- ciência humana é um aparato mental evolu-
riência como primatas inseridos no contexto tivamente novo, que funciona para construir
social, com redes relacionais complexas. Na narrativas de justificação que legitimam
hierarquia de Maslow, essa camada é enqua- ações e proposições. Em outras palavras, a
drada em termos de pertencimento e estima, autoconsciência humana é a parte da mente
associada às necessidades de amor, poder ou baseada na linguagem que narra o que está
influência social, além da necessidade de ser acontecendo, por que está acontecendo e por
visto, conhecido e valorizado por pessoas que alguém está agindo de determinada for-
importantes. ma nesse contexto.
O que se depreende sobre a constitui-
3.3 O eu público ou persona ção do aparelho psíquico na perspectiva da
O eu público, ou persona, se refere à arti- JUST é a sua proximidade da constituição
culação explícita e pública das justificações do sujeito na psicanálise, embora as pala-
antes reservadas ao âmbito privado. Tal do- vras e os autores citados não façam parte do
mínio da consciência ganha esse nome com arsenal teórico da psicanálise. No Projeto
referência ao trabalho de Carl Jung (2008), para uma psicologia científica (Freud, 1950

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Márcia Gralha & Paulo Roberto Ceccarelli

[1895]/1996), as concepções da neurologia 4. Os filtros entre os domínios


refletem a evolução da consciência humana da consciência no modelo tripartido
tal como entendida pela JUST. Mais tarde, o atualizado
eu é uma instância psíquica a ser compreen- Um aspecto importante do modelo de cons-
dida entre as outras (isso e supereu) e as exi- ciência humana proposto pela JUST é a pre-
gências da realidade. No narcisismo, o Eu se sença de três filtros que operam entre os
opõe ao objeto e pode ocupar seu lugar ofe- domínios da consciência para regular a in-
recendo-se ao amor do isso. Em O ego e o id, terface de informações, a fim de manter o
Freud (1923/1996, p. 41) atribui ao ego um equilíbrio psíquico. Os filtros são: (1) o filtro
precipitado de identificações; uma instância de atenção, (2) o filtro freudiano e (3) o filtro
psíquica e, mais tarde, uma “projeção men- rogeriano.
tal da superfície do corpo”: um “eu corporal” O filtro de atenção se refere ao processo
derivado de sensações. de filtragem neurocognitiva em relação ao
Falar que nos tornamos sujeitos “a par- que entra no domínio subjetivo da cons-
tir do aprendizado da dinâmica de troca de ciência. Ele envolve processos de atenção
relatos sociais que envolvem justificações e direcionada e de percepção, que medeiam a
alocação de papéis sociais” é dizer que somos correspondência entre informações senso-
constituídos pelo desejo do Outro, instân- riais e a construção cognitiva de sentido para
cia fundamental para a inserção da criança identificar estímulos relevantes e prever mu-
na linguagem e na cultura (Lacan, (1957- danças no ambiente.
1958/1999). O filtro freudiano opera entre o eu expe-
Piera Aulagnier (1975), em sua obra rencial e o eu privado e se refere à visão fun-
de referência A violência da interpretação damental de Freud de que existe uma relação
apresenta uma teoria inovadora na psica- dinâmica e um processo de filtragem entre
nálise ao falar do eu como instância, algo as percepções e impulsos e o processo narra-
ligado à consciência e a um projeto identi- tivo autoconsciente. Esse filtro desempenha
ficatório. a função de inibir, evitar ou reprimir sen-
Ainda utilizando a noção lacaniana de timentos, imagens e impulsos disruptivos,
Outro, Aulagnier modifica o conteúdo do perturbadores ou problemáticos, enquanto
Eu ao historicizá-lo, ao redefini-lo nas cir- emprega estratégias de racionalização para
cunstâncias de seu surgimento. O que faz redução de dissonância cognitiva, visando
a particularidade da teoria de Aulagnier é manter um senso de equilíbrio psíquico. O
que se refere ao lugar que ela atribui à no- triângulo do conflito proposto por David
ção de encontro e à de complementaridade. Malan (Malan; Osimo, 2014) é congruente
Seu pensamento inova no que diz respeito com a concepção do filtro freudiano.
àquilo que precede a chegada da criança no
mundo. Figura 2 – O triângulo
Nessa perspectiva, a questão em relação do conflito de Malan
ao Outro começa, para o sujeito, em um
tempo outro. O Outro lhe é preexistente e
constitui, como sustenta Aulagnier, o espa-
ço onde o eu pode aparecer. Enfatizando a
temporalidade, Aulagnier dá nova dimen-
são à relação mãe-bebê, em uma dinâmica
profundamente psicanalítica, redimensio-
nando a noção de a posteriori [Nachträgli-
ch] para pensar tanto o traumatismo quanto
o sexual no humano. Fonte: Henriques, 2011, p. 128.

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 97–108 | julho 2023 103


Teoria dos sistemas de justificação (JUST) e alguns pressupostos psicanalíticos: reflexões transdisciplinares

A relação entre o filtro de atenção e o freu- ção da JUST envolve considerações sobre a
diano pode ser descrita da seguinte manei- formação cultural humana, tendo por base o
ra: quando uma imagem mental, pulsão ou conceito de justificação como elemento fun-
sentimento emerge na atenção do domínio damental na comunicação linguística.
do eu experencial, o sistema de filtragem de- Embora o termo “cultura” seja desafiador
tecta as suas possíveis associações ou impli- de definir, pode-se apontar para um consen-
cações e, em seguida, determina se a imagem so entre os teóricos de que o termo não abar-
deve ser trazida à consciência. Se as impli- ca a totalidade da experiência humana e da
cações forem identificadas como problemá- sociedade (Henriques, 2022). Em vez disso,
ticas, emerge a experiência de ansiedade, que podemos nos referir mais especificamente
por sua vez ativa um deslocamento de aten- aos padrões nas esferas de crenças, valores,
ção que visa inibir ou afastar a imagem ou símbolos e discursos que são compartilhados
pulsão emergente da atenção do indivíduo. por um grupo de indivíduos (Smith, 2001).
Esse deslocamento de atenção é inconsciente Alinhada à essa percepção, a JUST oferece
e tem a função de afastar o estímulo que re- uma nova perspectiva sobre a interrelação
presenta ameaça e gera ansiedade, manten- entre linguagem, autoconsciência humana
do-o fora da consciência do eu privado. Esse e a evolução da cultura, interpretando tanto
mecanismo é clássico na teoria psicanalítica: a autoconsciência humana quanto à cultura
o recalque. As formulações freudianas ex- como sistemas de justificação. Nesse contex-
postas em Inibição, sintoma e medo (Freud, to, os sistemas de justificação são tidos como
1926/2016), sobretudo no que diz respeito à redes interconectadas de crenças e valores
teoria sobre a angústia como sinal de perigo, fundamentados na linguagem, que operam
vão no mesmo sentido. para legitimar uma determinada interpreta-
Finalmente, o modelo tripartido atualiza- ção da realidade ou visão de mundo específi-
do da JUST também inclui um filtro entre os ca (Henriques, 2011).
domínios do eu privado e o eu público (ou A ideia é que os sistemas de justificação
persona). Esse filtro é denominado filtro ro- emergem em contextos sócio-históricos com
geriano, uma alusão direta às ideias de Carl o propósito de atuar como referências de
Rogers (1995) sobre a relação entre o eu e o pensamento e comportamento, coordenan-
mundo social. Rogers observou que parte do do as ações das pessoas. Por exemplo, a le-
sofrimento humano está ligada ao impacto gislação pode ser considerada um conjunto
do julgamento dos outros em suas ações e na formalizado de justificações respaldadas por
sua autopercepção. Esse processo de filtra- poder institucional, com o intuito de legiti-
gem é ilustrado por situações em que omiti- mar o controle social sobre condutas consi-
mos ou ajustamos informações ao mover da deradas impróprias. A ciência, a governança
esfera privada para a esfera pública, a fim de e a religião também podem ser compreendi-
proteger essa informação e controlar sua in- das como sistemas coletivos de justificação.
fluência no contexto social. Temos aqui, em Em um nível mais abstrato da cultura huma-
linguagem diferente, as diferenciações psica- na, encontra-se uma organização desses sis-
nalíticas entre o Eu-ideal, e o Ideal do Eu. temas de justificação composta por visões de
mundo, narrativas, conceitos, valores e de-
5. Os sistemas de justificação clarações centrais que atuam para estruturar
que compõem a cultura humana e organizar os processos de construção cole-
O esforço metateórico da JUST pode ser tiva de significado. Dito de outra forma, os
resumido como a construção de um funda- sistemas de pensamento, assim como os la-
mento teórico que explique a singularidade ços sociais em suas mais variadas expressões,
da consciência e a comunicação humana. nos dão a impressão de sermos protegidos
Nesse empenho, a terceira e última alega- em nosso desamparo, condição antropológi-

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Márcia Gralha & Paulo Roberto Ceccarelli

ca fundamental do ser humano (Ceccarelli, Abstract


2009). This essay establishes conceptual connections
between a metatheoretical approach, namely,
Considerações finais Justification Systems Theory (JUST; Hen-
A influência do pensamento seminal de riques, 2022) and some psychoanalytic prem-
Freud na teoria dos sistemas de justificação ises. Justification Systems Theory provides
(JUST) é indiscutível. O modelo tripartido an explanatory framework aiming to clarify
atualizado é nomeado explicitamente em re- the uniqueness of human consciousness and
ferência ao trabalho de Freud, uma vez que communication. This approach maintains an
os domínios do eu experencial, eu privado evolutionary perspective, preserving continu-
(ego) e eu público (persona) apresentam pa- ity with the primate experience and framing
ralelos com o modelo tripartido do isso, eu e human culture as systems of justification. The
supereu. convergence with Freudian assumptions is
Em consonância com a ideia de que highlighted, notably evidenced by the updated
os seres humanos são “animais culturais” tripartite model, composed of experiential self,
(Baumeister, 2005), ou de horda (Freud, private self (ego), and public self (persona),
1921/1996) o eu humano desempenha um paralleling the tripartite structure of id, ego,
papel central na dinâmica da cultura, uma and superego in Freudian theory. Human con-
vez que permite aos indivíduos aprender os sciousness is interpreted as an evolutionarily
padrões de linguagem e comportamento dos novel mental apparatus, serving an adaptive
contextos em que nascem, possibilitando, function by narrating justifications that le-
assim, a sua socialização como membros da gitimize and coordinate actions in the culture
sociedade. Essa conexão entre o eu privado e plane.
o domínio cultural público nos permite esta-
belecer um paralelo com o conceito de supe- Keywords: Metatheory; Transdisciplinarity;
reu em Freud, que reflete os padrões sociais Consciousness; Culture.
internalizados e idealizados. O conceito de
supereu se sobrepõe significativamente ao eu
público, ou persona, na teoria dos sistemas
de justificação, podendo ser compreendido
como a imagem que o indivíduo procura
projetar e regular para administrar a forma
como é percebido pelos outros.

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Teoria dos sistemas de justificação (JUST) e alguns pressupostos psicanalíticos: reflexões transdisciplinares

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106 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 97–108 | julho 2023


Márcia Gralha & Paulo Roberto Ceccarelli

MILKOWSKI, M. Reverse engineering in cognitive Sobre os autores


science. In: KAMINSKI, K.; MILKOWSKI, M. (Org.).
Regarding the mind, naturally: Naturalist approaches Márcia Gralha
to the sciences of the mental. United Kingdom: Psicóloga.
Cambridge Scholars Publishing, 2013. pp. 12-29. Mestre em psicologia clínica pela Western Carolina
University, Cullowhee, Carolina do Norte, EUA.
PINKER, S. How the mind works. New York, 1997.
E-mail: mdgralha@gmail.com
ROGERS, C. R. On becoming a person: A therapist’s
view of psychotherapy. United States: Houghton Paulo Roberto Ceccarelli
Mifflin, 1995. Psicólogo. Psicanalista.
Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
SMITH, P. Cultural theory: An introduction. New (CPMG) e sócio fundador do Círculo Psicanalítico
York. Blackwell, 2001. do Pará (CPPA), ambos filiados ao Círculo Brasileiro
de Psicanálise (CBP) e à International Federation of
TROTTA, F. C. Considerações sobre o afeto em Psychoanalytic Societies (IFPS).
psicanálise. Dissertação (Mestrado em psicologia). Doutor em psicopatologia fundamental e psicanálise
2010. 101 fl. Departamento de Psicologia da Pontifícia pela Université Paris 7 - Diderot. Pós-doutor pela
Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2010. Université Paris 7 - Diderot. Chercheur associé de
l’université Paris 7 - Diderot.
WRIGHT, R. Por que o budismo funciona: como a Membro da Société de Psychanalyse Freudienne
psicologia evolucionista e a neurociência explicam os (SPF) - Paris, França.
benefícios da meditação. Cidade: Rio de Janeiro, RJ. Membro do Corpo Docente do Contemporâneo:
Sextante, 2018. Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade –
POA, RS. Professor das especializações do Instituto
ESPE e coordenador de programas de formação livre.
Recebido em: 20/06/2023 Professor na pós em Psicanálise do Hospital Santa
Aprovado em: 26/06/2023 Catarina, Blumenau, SC. Pesquisador Associado do
LIPIS (PUC-RJ).
Membro da Associação Universitária de Pesquisa em
Psicopatologia Fundamental.
Professor e orientador de pesquisas na Pós-
Graduação em Psicologia/UFPA. Professor e
orientador de pesquisas do Mestrado em Promoção
de Saúde e Prevenção da Violência/MP da Faculdade
de Medicina da UFMG. Coordenador e professor da
pós em Sexualidade Humana, da Fac. Santa Casa,
BH. Membro do Programa Antártico Brasileiro.
Diretor científico da Clínica Ampliada de Saúde
Mental (CASM).
Fundador e Coordenador do Instituto Mineiro de
Sexualidade (IMSEX).

E-mail: paulorcbh@mac.com
Homepage: www.ceccarelli.psc.br
Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_
Roberto_Ceccarelli

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 97–108 | julho 2023 107


Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski

A supervisão na clínica do
curso do NEPIA-CPRS
Supervision in clinic
at the NEPIA-CPRS training course
Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski

Resumo
Este ensaio objetiva caracterizar a demanda da supervisão em grupo do curso complementar
em formação psicanalítica na clínica com crianças e adolescentes do Núcleo de Estudos de
Psicanálise da Infância e Adolescência (NEPIA) do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do
Sul (CPRS), situando a história da supervisão na formação psicanalítica e examinando seus
efeitos no processo formativo. A presente reflexão parte de recortes clínicos fornecidos por
analistas ou candidatos do curso. A partir desses fragmentos, procura-se abrir possibilidades
de intervenções, analisando algumas das hipóteses diagnósticas com fundamentos teóricos de
Freud, Gutfreind, Rassial, Sigal, Volich, entre outros.

Palavras-chave: Supervisão, Crianças e adolescentes, Recortes clínicos.

Introdução Examinar a clínica da criança e do adoles-


Escrever sobre a supervisão em grupo do cente requer pensarmos, além do seu mundo
curso do Núcleo de Estudos de Psicanáli- interno, o seu mundo externo, o ambiente
se da Infância e Adolescência (NEPIA) do de que esse psiquismo dispõe para se cons-
Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul tituir, que, por vezes, pode não oferecer as
(CPRS), que é um espaço de reflexão sobre condições minimamente saudáveis. Assim,
a clínica, faz com que nos deparemos com este ensaio pretende situar a história da su-
algumas interrogações: Qual é a diferença pervisão no tripé da formação psicanalítica
na constituição psíquica do sujeito de hoje (teoria, análise, supervisão), bem como tra-
em relação aos tempos de Freud? Será que zer alguns fragmentos de vinhetas clínicas
a economia psíquica está se organizando examinados nos encontros de supervisão em
no ser humano de forma diferente, consi- grupo no curso do NEPIA-CPRS, abrindo
derando as mudanças nas relações familia- possibilidades de pensar alternativas de in-
res e o maior uso das tecnologias digitais? tervenção para os casos.
Se, para Freud (1915/2010), a repressão ou
o recalque foram a pedra angular, nas úl- 1 A história da supervisão
timas décadas, a renegação ou o desmen- na formação psicanalítica
tido parecem estar em evidência. Ou seja, A história da supervisão remete aos dados de
as defesas de um funcionamento psíquico sua fundação. Mendes (2012), no artigo Sobre
mais arcaico ou primitivo aparecem, com a supervisão, discute sobre o que ela consiste.
frequência, com falta de vínculo, de apego, Quais as demandas e os efeitos, na prática, de
de laço com o outro, ou mesmo em menor quem a busca? O que está em sua origem? Sa-
intensidade. be-se do relato de que a primeira supervisão

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 109–118 | julho 2023 109


A supervisão na clínica do curso do NEPIA-CPRS

na história da psicanálise ocorreu entre Freud da imagem, e não a capacidade de um dis-


e Fliess. O termo “supervisão” foi utilizado curso próprio. Para Kristeva (2002, p. 15),
por Freud em 1919. Mendes (2012, p. 49) assi- nas novas sintomatologias do mal-estar da
nala que “o nascimento formal da Supervisão atualidade, há “um denominador comum:
aconteceu no primeiro instituto de formação a dificuldade de representar”. Rassial (2000)
de analistas, fundado por Karl Abraham e aponta a grande dificuldade dos jovens de
Max Eitingon, em 1920, em Berlim”. vencer a etapa da adolescência e de realizar a
O termo “supervisão” pode ter diferentes travessia ao mundo adulto, fenômeno deno-
denominações. Alguns o definem como uma minado de “estado limite”. Gutfreind (2021),
visão a mais, uma covisão, ou uma intervisão no livro A nova infância em análise, sugere
clínica, mas todos concordam que seja um que algo vem mudando na constituição do
dos pilares do tripé da formação psicanalíti- sujeito ou no processo de subjetivação.
ca. Duvidovich, Goldenberg e Broide (2020, Na mesma direção de mudanças que es-
p. 117) destacam que a supervisão é o “es- tão sendo observadas, Forbes (2012) analisa
paço intermediário” entre a análise pessoal e a segunda clínica descrita por Lacan, em que
os seminários teóricos. Volich (2015, p. 287) o simbólico, o complexo de Édipo e a vertica-
menciona que sua função é “a criação de um lidade nas relações perdem lugar para o Real,
espaço de continência para as vivências mo- com novos sintomas, com o mundo das re-
bilizadas no terapeuta pelo encontro com des, em que as relações são mais horizontais.
seu paciente”. Percebemos que esses são temas a serem
Mas o que tem mudado nas últimas déca- aprofundados, uma vez que, para Forbes
das nas pessoas que buscam o espaço analí- (2012, p. xxix):
tico? Quais as implicações das relações mais
líquidas, conforme Bauman (2007), no pro- Temos hoje uma série de novos sintomas,
cesso de subjetivação? Por que tantas crian- próprios da horizontalidade do laço social
ças ou adolescentes chegam ao consultório da globalização, que não respondem ao tra-
com diagnósticos de transtorno do espec- tamento standard da Psicanálise do século
tro autista ou com outras denominações do passado.
DSM-5 (2013)?
Percebemos que alguns paradigmas na 2 Supervisão em grupo
clínica precisam receber uma escuta e um com recortes clínicos
olhar diferentes daqueles do século XX. Vo- Por ser uma supervisão em grupo, cada ana-
lich (2022, p. 447-448) refere que o fio do lista ou candidato(a) do curso complementar
recalcamento, que sempre tem orientado a (NEPIA-CPRS) que se dispunha a apresen-
clínica, depara-se com novas manifestações tar um caso clínico fornecia-nos os dados
psicopatológicas: com antecedência. A partir desses recortes,
procuramos abrir possibilidades de escuta e
Atravessados por esse fio, intuído e preconi- de intervenção, examinando hipóteses diag-
zado por Freud, recordar, repetir e elaborar nósticas, indicando alguns fundamentos da
são operadores fundamentais de uma análise. psicanálise.
[...]: Ao longo desse caminho, evidencia-se a Assim, vamos abordar oito fragmentos,
importância de outro paradigma clínico, no- aqui bastante resumidos, de casos apresen-
mear, subverter, organizar (Grifos do autor). tados em quatro encontros, nos módulos 1 e
3 do curso: As entrevistas preliminares na clí-
Birman (2004) segue a mesma perspec- nica psicanalítica da infância e adolescência;
tiva ao examinar o empobrecimento da ca- e As histórias contadas, escritas e comparti-
pacidade de pensar e o reflexo disso na lin- lhadas. Todos os nomes citados são fictícios.
guagem. Muitos têm apenas a representação As vinhetas não contêm nenhuma identifica-

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Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski

ção; um subtítulo caracteriza o tema do caso. 2.2 Dificuldades de lidar com frustrações
Nossa intenção é examinar as demandas de e um possível sentimento de incerteza
crianças e adolescentes que chegam à clíni- No primeiro atendimento, os pais relatam
ca e pensar alguns vieses psicanalíticos para que João (com 6 anos de idade), na escola,
compreender a clínica contemporânea. apresenta choro, briga com os colegas, agres-
sividade; em casa, quando contrariado, deita
2.1 Possíveis entraves ou impactos no chão e chora como um bebê, brigando
na constituição psíquica muito com o irmão menor.
Maria tem 2 anos e 9 meses de idade. Na en- Como, na psicanálise, podemos enten-
trevista com a psicanalista, os pais referem der a agressividade da criança? O que é mais
as crises de choro sistemáticas e prolongadas primitivo no ser humano, a violência ou a
e a pouca interação. Nas primeiras semanas agressão? Enquanto, na agressividade, há um
de vida, ela fora hospitalizada em função de predomínio da pulsão de vida, na agressão,
complicações sanguíneas. prevalece a pulsão de morte. Ao examinar a
A hospitalização e o choro prolongado violência na evolução afetiva humana, Ber-
podem remeter a rupturas abruptas, separa- geret e colaboradores (2006) mostram que a
ções não nomeadas, ansiedades ou angústias. violência é um fenômeno universal, uma ten-
Angústia é o afeto por excelência. Na psica- dência instintiva, presente de alguma forma
nálise, Freud, ao longo de seus escritos, tem na raça humana. A agressividade é caracte-
examinado a ansiedade ou a angústia, espe- rizada como uma atividade mental elabora-
cificando a da separação, a da castração, a da, e não como parte do processo primário,
angústia como sinal, e assim por diante. Ou- como a violência.
tros autores, igualmente, analisam o assun- Até que ponto o comportamento agres-
to, entre os quais Winnicott (1990), que se sivo de João é um sintoma relacionado ao
centra na angústia de aniquilamento ou nas que não entendeu o suficiente, com a vin-
agonias impensáveis, em etapas pré-edípicas. da do irmão, a necessidade de dividir um
Maria, é bem possível, vivenciou angús- espaço que antes era só dele, uma vez que
tias marcantes quando hospitalizada. Ao fa- se encontrava em uma etapa mais narcísica
larmos de bebê, falamos de um psiquismo se e/ou egocêntrica? Para McDougall (1997,
constituindo, se organizando e se estruturan- p. 168), “os sintomas são, sem exceção, re-
do, o que remete ao arcaico, ou seja, às primei- sultados de esforços infantis no sentido de
ras marcas, inscrições, representações-coisa, encontrar soluções para a dor mental e o
ainda não simbolizadas ou em processo de conflito psíquico”.
simbolização. O bebê precisa da palavra, da João, “quando contrariado, deita-se no
nomeação, da narrativa, do toque, do cheiro, chão e chora como um bebê”. Isso nos parece
do olhar e da escuta da voz do outro. Acredi- que tem a ver com sua dificuldade em aceitar
tamos que a menor interação de Maria possa o não do outro. Kupfer e Bernardino (2022)
ser um reflexo da pandemia, que afetou a so- fazem a diferenciação entre birra e desorga-
cialização das crianças. Antes de pensarmos nização. A birra é um comportamento da
em transtorno do espectro autista, no caso criança para obter reconhecimento; busca
de Maria, defendemos ser importante inves- chamar a atenção do adulto sobre si mesma.
tigar com os pais histórias de doenças trans- Ela cuida do lugar, ao se jogar no chão. Na
geracionais na família, suas fantasias sobre desorganização, demonstra uma imagem
possíveis entraves nessa constituição de su- frágil e pouco constituída; a criança “não
jeito, bem como oferecer à criança diferentes percebe o outro, não se cuida em relação às
espaços de interação, observando, na clínica, consequências físicas de se jogar no chão,
na relação transferencial, o que Maria mani- descontrola-se completamente” (Kupfer;
festa de mal-estar ainda não nomeado. Bernardino, 2022, p. 52).

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A supervisão na clínica do curso do NEPIA-CPRS

2.3 Um ambiente conturbado, a cama compartilhada? Quais os ganhos se-


um jeito de agredir o ambiente com dejetos cundários em seguir sentindo medo de dor-
do corpo que não passavam pela palavra mir após determinado horário? Quais são as
A mãe relatou, na entrevista preliminar, que tentativas dos pais em tranquilizá-la em seu
a encoprese de Pedro iniciou por volta dos 6 quarto?
anos de idade, no início da pandemia. O que Gutfreind (2021) examinou várias vinhe-
significa a encoprese na psicanálise? tas de casos que nos ajudam a pensar dife-
Barbosa, Silva e Ceccarelli (2020), no arti- rentes maneiras de possibilitar que o outro
go A psicanálise e os ‘transtornos da excreção: (re)escreva sua história. O autor menciona:
enurese e encoprese na clínica com crianças, “Imperam sintomas, sobram atos, faltam
destacam, em relação à encoprese, “que o pensamentos, escondem-se sentimentos, ca-
termo é introduzido por S. Weissenberg, em rece interesse por aquilo que as inibe” (Gu-
1926, para designar qualquer defecação in- tfreind, 2021, p. xii). Como entender, na ci-
voluntária que ocorra em uma criança que já tação de Gutfreind (2021), que “faltam pen-
tenha ultrapassado a idade de 2 anos, e na au- samentos”?
sência de lesão evidente do sistema nervoso Ao examinar a noção de mentalização, nos
ou de outra afecção orgânica”. Alvarez (1994) fundamentos psicanalíticos da clínica psicos-
afirma que o passado patogênico da crian- somática, na perspectiva do modelo econô-
ça pode estar causando danos no momento mico, Volich (2007, p. 19) refere as três vias
presente. A confiança e a regularidade nos das excitações e suas descargas. São elas: “a
atendimentos (mesma sala, mesmo horário) via orgânica, a ação e o pensamento, que re-
são aspectos importantes, “para que a estru- presentam, nesta ordem, o grau hierárquico
tura e a ordem comecem a desenvolver-se progressivo da evolução das respostas do in-
na mente da criança” (Alvarez, 1994, p. 14). divíduo”. Essa terceira via, a do pensamento,
Gutfreind (2022), em O livro dos lugares: em alguns casos, encontra-se em uma forma
dos pais na análise da criança, do bebê na muito empobrecida, em função de menos
análise do adolescente, escreve sobre a im- narrativas, de mais uso de tecnologias e de
portância de um trabalho com os pais, no relações interpessoais mais variadas e menos
enquadre da psicanálise da criança, escutan- intensas.
do deles as fantasias ou resistências diante da A falta do diálogo em muitas famílias
situação apresentada pela criança. tem repercussões no corpo e na capacidade
de simbolizar, ou seja, a capacidade de sim-
2.4 Os entraves edípicos bolizar é necessária à capacidade de pensar:
que podem perturbar o desenvolvimento “Quando a simbolização falha, algo que de-
Júlia, com 10 anos, frequenta o 4.º ano do veria ter sido transformado, derivado, reapa-
ensino fundamental. Na primeira entrevista, rece em seu estado arcaico, primitivo, puro”
os pais se queixaram de que, durante a pan- (Sigal, 2009, p. 180).
demia, a menina passou a não querer dormir
sozinha. 2.5 O desejo de nascer e o desejo
Freud (1926/1996), em Inibições, sintomas de dar nascimento em meio ao jogo da vida
e ansiedade, evidenciou sua compreensão Felipe, com 10 anos de idade, foi atendido de
acerca da angústia em relação às situações forma on-line. Em uma das sessões, muito
de perigo. As fobias correspondem aos sinto- empolgado com seu álbum de figurinhas da
mas de angústia e estão associadas a perdas, Copa do Mundo, diz-se um ótimo jogador.
insatisfações e desamparo. A angústia passa Com o passar dos atendimentos, resolveu
a ocupar um lugar na teoria das neuroses. fazer o próprio pacotinho de figurinhas, di-
No caso de Júlia, será que as fantasias zendo à analista: “Esse é o meu pacotinho.
edípicas não estão sendo alimentadas com Vamos abri-lo?”. A analista associou a fala

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Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski

“abrir o pacotinho” ao ato de ele nascer. Nes- a elaboração dos lutos de seu paciente, que
sa interação de Felipe com a analista, esta se sai da indiscriminação temporal e passa para
interroga sobre qual é o seu lugar. Como de- a temporalidade conceitual.
fende Sílvia Bleichmar (2005, p. 11), em seu
livro Clínica psicanalítica e neogênese: “A psi- 2.7 Falhas no suporte ambiental
canálise continua se revelando como a teoria na constituição psíquica
mais fecunda para sustentar e firmar esse ca- A mãe de Bárbara relata, na entrevista, que o
minho, nestes tempos em que a dessubjetiva- casal está separado e que a adolescente tem
ção espreita constantemente”. vivido um período de lutos e mudanças sig-
O ambiente de convívio de Felipe parece nificativas na capacidade de pensar, sentir e
bastante saudável, por ele conseguir pen- agir. A adolescente comenta sua dificuldade
sar, representar, criar novos jogos durante de relacionamento com a mãe, motivo de ter
os atendimentos, o que nos parece não ser ido morar com o pai.
a realidade de muitos brasileiros. Hoje, inú- Parece-nos que Bárbara, quando bebê,
meros caminhos são possíveis, tão possíveis não experimentou um ambiente seguro, de
que algumas crianças podem estar se sentin- confiança no outro, o que sugere que pode
do diante de uma encruzilhada, muitas vezes ter sido difícil para ela realizar a diferencia-
desamparadas da palavra de um adulto de ção entre o eu e o não eu.
referência. Os vínculos iniciais de amor adu- Para Sigal (2009, p. 180),
bam o psiquismo para aí seguirem brotando
sentimentos amorosos na relação com o (O) [...] o pânico se apresenta como produto de
outro. uma patologia do arcaico, ou seja, produz-se
um desamparo do eu diante de uma invasão
2.6 A arte surrealista pulsional causadora de momentos de falência
como resgate das memórias do aparelho psíquico.
escondidas no pátio da infância
Aline, uma adolescente, começou a pintar no Anne Brun (2018, p. 39) menciona que,
período pandêmico mundial. Na ausência de nas últimas décadas, está sendo percebido
um quadro, utilizou a parede lateral de seu um “retraimento da subjetivação”: “Passa-se
guarda-roupa como espaço possível para ex- de uma psicanálise concebida como toma-
ternar suas emoções. da de consciência do inconsciente para uma
Para Aberastury (1983), todo adolescente psicanálise centrada nos processos de subje-
leva, além do selo individual, o selo do meio tivação”. Rassial (2000, p. 27) defende que o
cultural, social e histórico. Aline nos lembra estado limite afeta o sujeito, o laço social e o
do caso Anne Frank: Aberastury (1983, p. próprio pensamento, requerendo que a psi-
242) justifica que Anne teve pais saudáveis canálise aprofunde esse tema. Em suas pala-
em seu mundo interno, “quis falar de sua vras: “O estado limite é, em primeiro lugar,
adolescência e da de todos e despertar em uma resposta adequada a uma incerteza das
todos o impulso para lutar pela conservação referências que caracteriza o laço social con-
da liberdade e do amor”. temporâneo”.
Aline, além de seu gosto pela pintura,
enviou três músicas à analista, nas quais foi 2.8 Uma adolescente confusa
observado algo em comum: uma referência em relação ao seu corpo, à sexualidade,
ao tempo. Qual é a importância do tempo ao trabalho e com marcas
para os adolescentes? Algumas respostas à de “ausência” das funções
pergunta encontramos no texto de Knobel materna e paterna
(1983) O pensamento e a temporalidade na Sofia buscou a clínica por causa de sua ansie-
psicanálise da adolescência, no qual comenta dade, por não conseguir finalizar as coisas,

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 109–118 | julho 2023 113


A supervisão na clínica do curso do NEPIA-CPRS

trazendo a hipótese diagnóstica de transtor- grupo, diferentemente da supervisão indivi-


no de ansiedade. dual, favorece uma troca, ampliando, a partir
Como demonstra dificuldades de con- das diferentes contribuições, o entendimento
cluir as coisas, é possível inferir que o trans- sobre o caso e as possibilidades de interven-
torno de ansiedade esteja acompanhado de ção na clínica com crianças, adolescentes, fa-
algumas características de depressão. Kehl mília e escola.
(2009), em O tempo e o cão: a atualidade das Cabe mencionar que as vinhetas descritas
depressões, faz uma retomada histórica do são de filhos e filhas de mães e pais que re-
conceito de depressão e justifica o título do conheceram a necessidade de consultar um
livro, fazendo a analogia de um cão atraves- profissional da saúde mental, certamente
sando uma estrada com automóveis e a velo- percebendo que algo poderia estar pertur-
cidade dessa travessia. Uma das característi- bando o desenvolvimento psicomotor, afe-
cas do depressivo é não dar conta do que tem tivo, psíquico ou relacional. Sabe-se que o
por fazer. atendimento clínico atinge um percentual
Segundo McDougall (1997, p. 169): “É bastante reduzido de pessoas, uma vez que
importante aqui discernir em que medida os muitas crianças e adolescentes não conse-
problemas inconscientes dos pais tornaram guem esse tipo de atenção, mesmo que mui-
mais difícil do que já é a tarefa de crescer, tas instituições ofereçam atendimento por
da infância à vida adulta”. Percebe-se que, meio da clínica social.
em diferentes momentos, a adolescente não A partir das vinhetas citadas e de casos
pôde contar com a mãe e o pai como amparo. atendidos no consultório, constata-se que
Para Winnicott (1982, p. 257), a crian- muitos deles apresentam prejuízos no que
ça, nas primeiras fases do desenvolvimento diz respeito à etapa narcísica, ou seja, evi-
emocional, tem uma personalidade e um ego denciam-se perturbações na etapa pré-edí-
ainda não integrados, e o “amor primitivo pica. Possivelmente, por vezes, o ambiente
tem uma finalidade destrutiva”. A criança, não consegue ser continente às angústias de
desde cedo, precisa aprender a tolerar frus- desamparo em que o bebê se encontra, nes-
trações, a conhecer a realidade interna e a se novo mundo fora da placenta materna.
externa e a estabelecer vínculos de continui- Acreditamos que as mudanças nas relações,
dade. mais líquidas, horizontais e variáveis, estão
As frequentes mudanças de emprego po- trazendo mais incertezas sobre o processo
dem sugerir um comportamento de sempre resultante da presença ou ausência da fun-
estar à procura, achando que o melhor se en- ção materna. Em contrapartida, a função
contra em outro lugar. Para Rassial (2000), paterna, há algumas décadas, tem se mostra-
o estado limite é instável, mas suscetível de do, em muitos casos, mais ausente. Isso não
mudança. favoreceria um espaço de maior permanên-
cia na etapa perverso polimorfa descrita por
3 Tecendo considerações Freud (1905/1996)?
Descrever algumas vinhetas clínicas da su- Entendemos que as primeiras inscrições
pervisão de grupo leva-nos a pensar que a ou marcas no psiquismo abrem caminho
clínica da criança e do adolescente convoca para as representações-coisa ou representa-
ao diálogo com a psicanálise sobre a cons- ções-palavras, conforme Freud (1915/2010).
tituição psíquica do sujeito. Para que o bebê Mas o que significa cada uma dessas repre-
possa sair do inconstituído ou inorganizado sentações e quais são os reflexos na clínica
e realizar a travessia para o mundo das re- contemporânea? As representações-coisa
lações, do laço social, dos vínculos, precisa são as marcas e sensações corporais, são in-
contar com o (O)outro para poder se inscre- conscientes e precisam ser nomeadas. Por
ver no circuito pulsional. A supervisão em exemplo, quando o bebê chora de fome, isso

114 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 109–118 | julho 2023


Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski

precisa ser-lhe dito, assim como as demais


sensações que ainda lhe são inomináveis e
ainda não são pensamentos. A representa-
ção-palavra tem acesso ao pré-consciente e
ao consciente, manifestando-se em palavras
simbolizadoras.
Finalizando, sabemos que o mundo sem-
pre está em movimento, mudança e transfor-
mação. Interrogamo-nos sobre os reflexos
do excesso de telas utilizadas por crianças e
adolescentes e a influência das tecnologias
digitais no convívio familiar. Qual é o espaço
da narrativa e do diálogo com o outro fora
das redes sociais? Como a inteligência artifi-
cial, que vem contribuindo com as ciências,
vai influenciar na constituição psíquica do
sujeito?

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 109–118 | julho 2023 115


A supervisão na clínica do curso do NEPIA-CPRS

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Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 109–118 | julho 2023 117


Maria do Rosário de Castro Travassos

As (des)construções identitárias:
reflexões sobre os povos indígenas
na Amazônia
Identity (de)constructions:
reflections on indigenous peoples
in the Amazon
Maria do Rosário de Castro Travassos

Resumo
Este trabalho visa provocar um debate sobre os processos identificatórios em relação às popu-
lações indígenas na Amazônia. A violência de atos discriminatórios que se opera em relação
a essa parcela da população brasileira, está presente desde os tempos coloniais e continuam
no presente. Neste recorte, representado pela história de Mary, uma indígena da etnia Tembé,
no Estado do Pará, emerge de sua escuta singular, o conflituoso laço com o social dominador.
Seguiremos o enfoque psicanalítico.

Palavras-chave: Psicanálise, Diversidade étnica, Processos identificatórios.

Introdução designações, pela diversidade que abriga. As


Para se conhecer algo dos intrincados ca- identidades formadas ao longo desse proces-
minhos das construções identitárias de um so, que garantem uma “unidade”, uma “igual-
povo, a história está aí implicada, visto que dade”, uma característica distintiva regional,
o homem não pode ser visto isoladamente, para a psicanálise, não recobrem o sujeito em
mas em sua relação com o outro, marcado sua singularidade.
pelos ideais de poder, da cultura, da religião Há um profundo silêncio da historiografia
e outros aspectos que prevalecem em um de- em relação à história indígena, registros que
terminado espaço e tempo. A região amazô- ficaram restritos ao campo laboral e religioso.
nica brasileira tem sido atravessada, desde os A miscigenação resultante do encontro – eu-
tempos coloniais, por conjunturas político-i- ropeu e nações autóctones – justificava atri-
deológicas impostas pelo colonizador, se- buir à “mistura de raças” a responsabilidade
guindo um projeto de supremacia eurocên- pela dificuldade de implantação do “proces-
trico, com justificativas de salvar os povos so civilizador” em terras coloniais, em que os
“primitivos” e “selvagens”, o que resultou em nativos eram tomados como objeto do pro-
uma nova ordem sociocultural, com conse- cesso civilizatório e do evangelismo, come-
quências psíquicas na dinâmica dos sujeitos. çando, assim, um processo desagregador da
O encontro étnico forjou novas identida- ordem simbólica entre as nações.
des sociais na região, a partir de categorias Cabe às sociedades indígenas hoje, rema-
que podem ser reconhecidas hoje como os nescentes do processo colonizador, o desafio
caboclos, os pescadores, os ribeirinhos, os de manter um contato com a sociedade na-
remanescentes quilombolas, entre outras cional, sem perder sua integridade cultural e

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 119–126 | julho 2023 119


As (des)construções identitárias: reflexões sobre os povos indígenas na Amazônia

étnica. Esse desafio é enfrentado tanto pelas multiplicidade. Diversidade é a reunião de


populações indígenas em suas aldeias como tudo que apresenta múltiplos aspectos e di-
por aqueles que migraram para os centros ferenças entre si, como a diversidade cultural
urbanos. Tal mobilidade fragiliza extrema- e a étnica, entre outras.
mente os traços culturais no trânsito entre A diversidade cultural é constituída pelos
dois universos distintos, o que compromete, múltiplos elementos que representam as di-
em muitos casos, a saúde mental desses su- ferentes culturas, como a linguagem, as tra-
jeitos. dições, a religião, os costumes, a organização
A psicanálise, ao especificar a singulari- familiar, a política, entre outros, com carac-
dade do sujeito, reconhece a diversidade a se terísticas próprias de cada grupo social.
expressar por diversos caminhos pulsionais A Constituição Federal de 1988, no título
frente às diferenças, sejam étnicas, de gêne- que trata da Ordem Social, no artigo 231, es-
ro, sejam outras formas culturais. Propõe-se, pecífico sobre os indígenas, determina que:
assim, a abordar pontos carregados de uma
história antiga de violência vivida na Ama- São reconhecidos aos índios sua organização
zônia brasileira pelos povos originários, mas social, costumes, línguas, crenças e tradi-
que é, ao mesmo tempo, recente, provocando ções, e os direitos originários sobre as terras
cicatrizes narcísicas profundas, pois, como que tradicionalmente ocupam, competindo à
argumenta Ceccarelli (2007, p. 2), “a psique União demarcá-las, proteger e fazer respeitar
é função da história e, ao mesmo tempo, a todos os seus bens.
história determina a constituição da psique”.
A visão inovadora da Carta Magna, para
População indígena no Pará além do reconhecimento do direito à ter-
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís- ra ocupada pelos indígenas, reconhece sua
tica (IBGE) publicou dados preliminares do organização social, seus costumes, suas lín-
Censo Demográfico realizado em 2022, que guas, crenças e tradições, valida a existência
registrou a presença de aproximadamente de minorias nacionais e institui normas de
1.700.000 indígenas no Brasil, distribuídos proteção à singularidade étnica, especial-
em 305 etnias. O maior contingente concen- mente da língua, dos usos e costumes, ou
tra-se na Região Norte. No Estado do Pará, seja, reconhece uma plurietnicidade.
segundo o censo de 2010, conta-se 56 etnias Temos, assim, um ordenamento jurídico
originárias de troncos linguísticos diferentes. estabelecendo certos códigos de conduta –
Muitas cidades amazônicas são indianizadas, um direito, para harmonizar a existência de
pois possuem, entre seus habitantes, grande indivíduos e grupos sociais. A lei no Brasil
número de indígenas.1 reconhece hoje direitos individuais e coleti-
Mary é uma mulher indígena da etnia vos, tais como os direitos culturais e de iden-
Tembé, que vive na cidade e que dá significa- tidade. Fundamentalmente reconhece “que
tiva singularidade à história do convívio com as pessoas indígenas têm o direito a integri-
o não índio, cujo recorte apresenta-se aqui. dade física e mental, liberdade e segurança,
A diversidade, como vivência e interação ou seja, que os povos ou pessoas indígenas
humana, sempre existiu. O sentido do sig- têm o direito a não serem forçosamente assi-
nificante “diversidade” é de pluralidade, de milados, ou destituídos de sua cultura”.2
diferença. É um substantivo feminino que
caracteriza tudo o que é diverso, que tem
2. Documento base, p. 31, jun. 2015. Texto apresentado du-
rante a I Conferência Nacional de Política Indigenis-
1. Próximo a Belém, encontra-se a etnia Tembé (do tron- ta, fórum democrático entre a administração pública e a
co Tupy), que habita a Reserva Indígena Alto Rio Guamá sociedade civil, realizada entre 14 e 17 dez. 2015, no Centro
(RIAG), próximo à cidade de Capitão Poço. Internacional de Convenções de Brasília.

120 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 119–126 | julho 2023


Maria do Rosário de Castro Travassos

O Governo Federal, por meio do Ministé- constatar são as leis indígenas se adaptando
rio da Educação e Cultura – MEC–, em 2006 às leis civis de nossa sociedade. A letra da lei
p. 71, como responsável pela política indíge- protetiva do Estado não se coaduna com o
na no Brasil, expressa que: desejo dos sujeitos. A tentativa de homoge-
neização do sujeito é, na verdade, uma vio-
[...] não tem como traçar programas de assis- lência imposta que provoca o apagamento de
tência aos índios fora das aldeias. Os índios desejo, ao destituir os signos culturais, afe-
que moram nas cidades vivem uma espécie tando tanto a cultura como o sujeito.
de “limbo jurídico” com dificuldade de fazer Aliás, o termo “índio”, que foi atribuí-
valer qualquer direito. Morar na cidade tem do aos povos autóctones devido a um erro
sido entendido “como um dado revelador da geográfico dos navegadores portugueses ao
perda da intenção de manter a condição in- “encontrarem” a Nova Terra, utilizado mui-
dígena, o que implicaria uma certa renúncia tas vezes para discriminar os sujeitos etni-
à proteção especial garantida pela legislação. camente diferenciados, com os direitos esta-
belecidos pela Carta de 1988, em seu artigo
Esse tipo de entendimento é conflitante 231, passou a ser defendido para dar susten-
para o indígena, pois fortalece velhos tipos tação ao movimento indígena organizado a
de preconceito não vislumbrados pelo or- partir da década de 1970, como uma identi-
denamento jurídico, posto que o sujeito é o dade, como textualiza Gérsen Luciano (2006,
efeito de sua relação com o outro e se consti- p. 30), antropólogo da etnia Baniwa:
tui a partir de sua inserção na cultura.
Por questão de sobrevivência, Mary mu- [...] os povos indígenas do Brasil chegaram
dou-se para a cidade, para estudar, trabalhar à conclusão de que era importante manter,
e sustentar os três filhos que ficaram na al- aceitar e promover a denominação genérica
deia. Nesse processo, teve de assimilar hábi- de índio ou indígena, como uma identidade
tos dos não indígenas sem perder sua iden- que une, viabiliza e fortalece todos os povos
tidade étnica. Ante o impasse do confronto, originários do atual território brasileiro e,
ao ter que transitar por dois universos distin- principalmente, para demarcar a fronteira
tos, Mary me endereça a seguinte pergunta: étnica e identitária entre eles, enquanto ha-
“Tira onça do mato e traz para a cidade, ela bitantes nativos e originários dessas terras,
deixa de ser onça?” e aqueles com procedência de outros conti-
O que é ameaçador para Mary é a violência nentes, como os europeus, os africanos e os
da cidade, os assaltos, o trânsito, mas, acima asiáticos.
de tudo, o preconceito que teve de enfrentar
por ser mulher, indígena e conquistar uma Temos aí uma relação entre individual e
vaga na universidade para cursar Direito. A social, entre Estado e indivíduo, enlaçados
castração – a perda metafórica – assinala os pela cultura. Para Freud (1930/1929, p. 87),
limites do corpo, os limites do convívio, os a palavra cultura implica:
limites sociais, que provocam a dor de exis-
tir, posto que a questão psíquica se encontra [...] soma total de realizações e disposições
intimamente relacionada com o cultural. pelas quais a nossa vida se afasta da de nossos
Os códigos simbólicos que estabelecem antepassados animais, sendo que tais realiza-
a ordem social nas aldeias, as crenças, as re- ções e disposições servem a dois fins: a prote-
gras de casamento, a filiação, os crimes, as ção do homem contra a natureza e a regula-
práticas sexuais, o culto aos antepassados, mentação das relações dos homens entre si.
os mitos de origem, os sistemas de cura, en-
tre outros, são quase sempre ignorados pelo Tecemos aqui uma breve articulação teó-
outro não índio. Diante disso, o que se pode rica sobre o conceito de identidade, estuda-

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 119–126 | julho 2023 121


As (des)construções identitárias: reflexões sobre os povos indígenas na Amazônia

do principalmente pelas ciências sociais com ço que é “apagado” nos documentos civis de
outro conceito, o de identificação, mecanis- Mary. Assim,
mo psíquico ao qual o conceito de identida-
de encontra-se inter-relacionado. Etimolo- Evocamos aqui a questão da carteira de iden-
gicamente, a palavra “identidade” remete ao tidade, um papel que define a diferença do
pronome “idem”, que significa “o mesmo, a sujeito pelo fato de o documento civil identifi-
mesma coisa” de algo que se “assemelha” a car alguém no simbólico, mas que, no caso de
outro (Souza, 2007, p. 19). Mary, acabou criando impasses e constrangi-
Hall (2011, p. 8) analisa que as mentos ao Eu, haja vista que sua emissão pelo
órgão oficial não se deu em conformidade
[...] “crises de identidade” decorrem de mu- com seu “sentimento” de pertencimento étni-
danças estruturais das sociedades modernas, co e subjetivo, e sim com um nome no qual
que podem abalar a identidade cultural, defi- não se reconhecia e por isso rejeitava, por não
nidas como “aspectos de nossas identidades fazer sentido para ela (Travassos, 2014, p. 93,
que surgem do pertencimento a culturas étni- grifos da autora).
cas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de
tudo, nacionais. Por ocasião do registro civil de Mary, o
cartorário – o outro da cultura – não acei-
O duplo deslocamento – descentramento tou o nome indígena escolhido por sua mãe,
do indivíduo de seu lugar no mundo social e que quer dizer missanga, enfeite e mudou-o
cultural, assim como de si mesmo – constitui para Jaqueline, por considerar que o nome
uma crise de identidade. Para o sociólogo, a pretendido não era “nome de gente”.
identidade se forja a partir de atributos cul- Quando a menina cresceu e foi para a es-
turais que passam a fazer parte do sujeito, cola, se deparou com o nome “estranho” em
sutura o sujeito à estrutura (Hall, 2011, p. 8). seus documentos legais oficiais, com o qual
não se identifica, por não encontrar repre-
Processos identificatórios e a psicanálise sentação em seus signos culturais, não fazer
Para a psicanálise, a identificação é um pro- parte de sua história, por isso o recusa.
cesso pelo qual o sujeito humano se consti- A questão da nomeação que criava im-
tui. As primeiras relações são primordiais passes para Mary se estendia ao grupo social
para garantir a sobrevivência da criança, que do qual faz parte, que hoje luta na justiça
antes mesmo de nascer, já é falada pela cul- pelo direito de acrescentar o nome étnico ao
tura, porta os desejos e anseios das figuras nome próprio.
parentais. Freud (1921, p. 42) denomina de A identidade, no sentido de ser “idêntico
identificação primária o processo de identifi- ou igual a si mesmo no tempo, não é dada
cação com o “pai de sua própria pré-história pelo nascimento, é, antes de tudo, uma cons-
pessoal”, lei que se encontra velada na cultu- trução que se dá a partir dos processos de
ra, mas que é duradoura e será a base para os identificação com o outro”, como textualiza
futuros vínculos a serem construídos. Ceccarelli (2008, p. 97). A identidade é uma
Em 1921, Freud teoriza sobre o Einziger construção, dinâmica e complexa, que se in-
Zug, único traço que, na identificação ao tra- terliga ao processo identificatório, mecanis-
ço, o Eu copia do objeto tomado como mo- mo pelo qual cada sujeito adquire não sua
delo. Trata-se de um tipo de identificação unidade, mas sua singularidade, que no caso
no qual o nome próprio é seu principal re- de Mary, parece sofrer uma desconstrução.
presentante, processo pelo qual o indivíduo A falta originária que funda o sujeito será
constrói sua identidade como experiência repetida pelo adulto, como protótipo infantil.
subjetiva e que permite guardar os traços de Uma das formas de preencher o desamparo
sua história familiar. É justamente esse tra- é por meio das referências identificatórias

122 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 119–126 | julho 2023


Maria do Rosário de Castro Travassos

com os ideais da cultura na qual se insere. pulsional. A civilização substitui o poder do


Quando esses ideais são incompatíveis com indivíduo pelo poder da comunidade. O mal
seu acervo individual, pode ocorrer a perda -estar na civilização é o mal-estar dos laços
das referências identitárias – aquilo que ele sociais.
tinha como “verdade”, não o é mais e, sem ter Essas posições parecem subscrever o et-
onde se apoiar, pode desorganizar-se (Cec- nocídio, que significa erradicar as cultu-
carelli, 2007). ras tradicionais ou desfigurá-las, o que nos
Mesmo que haja uma lei civil para pro- conduz aos pressupostos freudianos sobre a
teger os direitos dos indígenas quanto ao íntima implicação da cultura na questão do
direito a terra, sua organização social, seus inconsciente. Pressupomos, assim, uma mu-
costumes, suas línguas, crenças e tradições, dança de lugar psíquico, pois os indígenas
ou seja, quanto à singularidade étnica, essa deixam de reconhecer o território onde vi-
norma não é capaz de recobrir o sujeito em vem pela interferência do desejo do outro, ou
seu desejo, e por isso escapa ao que é simbo- de reconhecer a si mesmos em sua singulari-
lizado. dade, afetados na sua forma de ler o mundo.
A ressonância psíquica dos fragmentos É como se o indígena fosse um refugiado em
do caso abordado nos permite vislumbrar o seu próprio país, um “outro” estranho, divi-
sujeito dividido em sua singularidade, cujos dido e desamparado, sem um lugar de per-
sintomas sobredeterminados pelo incons- tencimento e reconhecimento. Com as refe-
ciente colocam em evidência a primazia do rências de mundo abaladas, com a violência
simbólico na constituição do sujeito. A bus- do outro dominador, além do trauma, vem o
ca por uma identidade ressoa como a busca adoecimento.
de uma completude do vazio, que se almeja Aproprio-me da análise de Melman
alcançar. (2000), segundo o qual, quando a castração
É a singularidade dos povos tradicionais, é feita por meio de violência, pode entrar no
seus traços, sua história, sua vida, que é registro do traumatismo, sem nenhuma re-
confrontada pela cultura hegemônica do não lação com a castração simbólica. O sujeito,
indígena, muitas vezes de forma violenta e estruturalmente insatisfeito, como no caso
invasiva, que precisa ser questionada. Assim, do colonialismo, e hoje o mesmo colonialis-
ter de conviver com a invasão do outro mo com outra roupagem, mantém indígenas
em seus territórios ou deslocar-se para a e ribeirinhos “numa relação com o seu obje-
cidade em busca de sobrevivência, como to, não como se ele tivesse sido perdido, mas
aconteceu com Mary, pode levar o sujeito a como se ele tivesse sido roubado” (Melman,
ser atravessado por uma confusão psíquica, 2000, p. 18), o que desorganiza o sujeito
pela paralisação das funções simbólicas e quanto à manutenção de sua existência.
imaginárias, e ser afetado nos laços sociais
e nos processos identificatórios que lhes dão Considerações finais
sustentação. O sujeito se constitui a partir de múltiplos
No confronto homem versus meio, os as- enlaces, a partir do Outro, assim como com
pectos psíquicos estão presentes, pois, como os outros. Contudo, subsistem na atualida-
enuncia Freud (1930/1996), o sofrimento do de, formas de laço social de dominação que
humano provém de três fontes principais: destituem o sujeito do seu lugar, tanto físico
do mundo externo, do corpo e dos relacio- quanto psíquico, evidenciando o enunciado
namentos “na família, no Estado e na socie- freudiano de ser “a psicologia individual [...],
dade” (Freud, 1930/1996, p. 93). A cultura é ao mesmo tempo, também psicologia social”
produtora de mal-estar, pois, para o bem da (Freud, 1921/1996, p. 81).
sociedade, o indivíduo é sacrificado, tendo Nessa medida, a psicanálise, cuja práxis é
que pagar o preço da renúncia da satisfação o discurso sobre a subjetividade é convoca-

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As (des)construções identitárias: reflexões sobre os povos indígenas na Amazônia

da ao debate das práticas de dominação que Referências


segrega essa parcela de brasileiros a encon-
trar seu lugar no campo social, escutar suas
demandas – sujeitos que, em sua diversidade BELTRÃO, J. F. Povos indígenas na Amazônia. Estu-
étnica, precisam ser reconhecidos e reconhe- dos Amazônicos: Belém, 2012. (Col. Estudos Amazô-
nicos História).
cer a si mesmos em sua singularidade, a fim
de sustentar na forma possível, suas referên- BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Repú-
cias identificatórias. blica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Grá-
fico, 1988.

Abstract CECCARELLI, P. R. Mitologia e processos identifi-


catórios. Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 39, p.
This work aims to provoke a debate about the
179-193, 2007.
identification processes in relation to indige-
nous populations in the Amazon. The violence FREUD, S. O ego e o id (1923). In: ______. O ego e o
of discriminatory acts that operates in relation id e outros trabalhos (1923-1925). Direção da tradu-
to this portion of the Brazilian population has ção: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.
been presente since colonial times, which are 27-80. (Edição standard brasileira das obras psicoló-
gicas completas de Sigmund Freud, 19).
updated in the presente. The violence of dis-
criminatory acts that operates in relation to FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In:
this portion of the Brazilian population has ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civili-
been present since colonial times, which are zação e outros trabalhos (1927-1931). Direção da tra-
updated in the present. In this clipping, rep- dução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.
resented by the story of Mary, na indigenous 73-148. (Edição standard brasileira das obras psicoló-
gicas completas de Sigmund Freud, 21).
woman from the Tembé ethnic group, in the
State of Pará, the conflicting bond with the FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego
dominant social emerges from her singular lis- (1921). In: ______. Além do princípio de prazer, psico-
tening. We will the psychoanalytic approach. logia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção
da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago,
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Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes
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TATÍSTICA - IBGE. Censo de 2012. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatística. Acesso em
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cios, 2000.

124 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 119–126 | julho 2023


Maria do Rosário de Castro Travassos

Sobre a autora
MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E CULTURA -
MEC/UNESCO. Povos indígenas e a Lei dos “Brancos”: Maria do Rosário de Castro Travassos
o direito à diferença. Série Via dos Saberes, v. 3. 2006. Psicóloga.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo
SOUZA, E. M. S. Processos identificatórios e suas vicis- Psicanalítico do Pará (CPPA), filiado ao Círculo
situdes em uma comunidade quilombola. 2007. Disser- Brasileiro de Psicanálise (CBP) e à International
tação (Mestrado em psicologia) - Universidade Fede- Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).
ral do Pará, Belém, 2007. Pós-graduada em teoria psicanalítica pela Faculdade
Integrada Brasil Amazônia (FIBRA), Mestre em
TRAVASSOS, M. R. C. Mitos de origem e processos psicologia clínica e cultura pela Universidade Federal
identificatórios: uma visão psicanalítica. 2014. Dis- do Pará (UFPA).
sertação (Mestrado em psicologia clínica e cultura) -
Universidade Federal do Pará, Belém, 2014. E-mail: rosatravassos23@gmail.com

Recebido em: 27/05/2023


Aprovado em: 20/06/2023

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 119–126 | julho 2023 125


Noeli Reck Maggi & Paola Giacomini Fachini

O desenho e a clínica psicanalítica


com crianças e adolescentes
Drawings and the psychoanalytic clinic
with children and adolescents
Noeli Reck Maggi
Paola Giacomini Fachini

Resumo
O presente trabalho apresenta parte dos estudos desenvolvidos no módulo O desenho infan-
til na clínica psicanalítica com crianças e adolescentes, promovido pelo Núcleo de Estudos da
Infância e Adolescência (NEPIA) do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS). Um
dos recursos utilizados pelos profissionais que trabalham na área o desenho atende à demanda
anunciada pelos que buscam compreender e amenizar o sofrimento de pacientes que estão
vivenciando a infância e a adolescência. O estudo tem como propósito refletir sobre o desenho
como possibilidade de entrar em contato com o mundo interno desses pacientes e perceber
os movimentos pulsionais, libidinais e agressivos que estabelecem um vínculo e um diálogo
com os seus conteúdos conscientes e inconscientes. As reflexões propostas se fundamentam
em Donald Winnicott e Antonino Ferro, complementados com atividades de pesquisadores
nesta área de conhecimento.

Palavras-chave: Desenho como recurso clínico, Psicanálise, Clínica com crianças e adoles-
centes.

A clínica com crianças e adolescentes possibi- e inconscientes. Nesse sentido, não se trata
lita pensar num trabalho em que estão impli- de fornecer elementos para fazer um psico-
cados muitos recursos materiais que realçam diagnóstico: esse é objetivo da psicologia.
as significações e representações simbólicas. Na Antiguidade e na Idade Média, não
O desenho é uma das ferramentas recorri- se dava importância à criança, que era vista
das com frequência entre os profissionais da como um adulto em formação (Ariés, 1986):
área. Trata-se de uma ferramenta importante a criança, logo que caminhasse, era mistura-
e necessária para o atendimento à demanda da aos adultos, partilhando trabalhos e jogos,
anunciada pelos que buscam compreender e transformando-se em um jovem adulto sem
amenizar o sofrimento desses pacientes. Se- passar pelas etapas do desenvolvimento que
guindo Winnicott e Antonino Ferro, o pro- hoje consideramos essenciais nas sociedades
pósito de pensar o desenho como recurso na evoluídas. Foi com Rousseau, no fim do sé-
clínica com crianças e adolescentes é forne- culo XVIII, com a obra Émile, que a infância
cer elementos para entrar em contato com adquiriu importância. Por isso, Rousseau é
o mundo interno de tais pacientes, a fim de considerado o primeiro filósofo da educação.
perceber os movimentos pulsionais, libidi- Em 1909 Freud escreve a história do Pe-
nais e agressivos que estabelecem um vínculo queno Hans, criança de cinco anos que era
e um diálogo com os conteúdos conscientes atendida pelo pai sob supervisão dele. Na

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 127–134 | julho 2023 127


O desenho e a clínica psicanalítica com crianças e adolescentes

análise, o menino expressava o medo de ser A aparição do lápis e do papel em esca-


devorado por um cavalo, que anteriormente la industrial facilitou a inserção do desenho
ele vira cair. O material da análise dizia res- nas atividades lúdicas e pedagógicas. Antes
peito ao conflito edípico do Hans com seu se escrevia na areia, nos papiros, nas paredes
pai pela disputa do amor da mãe, deslocan- e nos pisos com carvão, tintas e outros ma-
do a raiva do pai para o cavalo. Um dia, o teriais. Assim como os homens primitivos
pai fez o desenho de um cavalo e o mostrou deixavam suas marcas registradas nos dese-
para Hans, que, muito surpreso, quis um lá- nhos rupestres que descreviam seus rituais e
pis e acrescentou algo que faltava ao animal: comemorações, também a criança tem pra-
um pipi grande! Freud apreciou a iniciati- zer em deixar uma marca de si nos seus de-
va do pai dizendo que era bem disso que se senhos.
tratava: o pipi grande do pai e seu medo de O que desenha uma criança? Primeiro
castração. são rabiscos, borrões, aglomerados, círculos,
quadrados, triângulos, abóbadas, imagens
Figura 1 – Alongamento desenhado que geram várias figuras do vocabulário in-
pelo pequeno Hans (medo de castração) fantil. A criança projeta no desenho seu pró-
prio esquema corporal, em forma narrativa
e figurativa. Durante seu desenvolvimento, a
criança usa seu traço para se situar no cam-
po espacial: é um espaço existencial aberto,
constituído pelo corpo que vai se estruturan-
do progressivamente. Primeiro são linhas e
formas, uma mancha, um rabisco, uma su-
perfície que se suja, um território imaginá-
rio. O espaço é afetivo, a grandeza das for-
mas é afetiva.
Os desenhos apresentados a seguir ilus-
tram o modo como uma criança de 20 meses
(FIG. 2) e uma criança entre 2 e 3 anos (FIG.
3) expressam o que sentem e percebem. O
psiquismo vai se revelando de diferentes mo-
dos e formas.
Fonte: Freud, 1909/1966, p. 23.
Figura 2 – Criança de 20 meses,
Em 1926 Sophie Morgen Stern introduz o traçado circular
desenho no tratamento psicanalítico de uma
criança com mutismo. Nas décadas seguin-
tes, a sociologia e a pedagogia comparam o
desenho infantil com a produção dos mes-
tres, sem ver seu valor de manifestação de
conteúdos tanto conscientes quanto incons-
cientes. Piaget (1978) contribuiu muito com
seu estudo sobre o conhecimento, para va-
lorar a expressão gráfica e plástica, gestual
e musical. Contribuiu para ver o grafismo
infantil como produto original do universo
infantil e não mais associado à inabilidade
motora. Fonte: Mèredieu, 2003, p. 26.

128 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 127–134 | julho 2023


Noeli Reck Maggi & Paola Giacomini Fachini

Figura 3 – Criança entre 2 e 3 anos, a capacidade de empregar símbolos e signos


aparecimento de formas isoladas para substituir as coisas. Através do desenho,
a criança sustenta as representações daquilo
que percebe. Ao mesmo tempo, a expressão
gráfica do desenho pode revelar a distância
entre o eu e o não eu, o pensamento, a pa-
lavra não falados, os conflitos intrapsíquicos
provocados pela forma de acolhimento con-
cedido à criança.
Os desenhos representados nas FIG. 5 e
6 revelam como uma criançade 10 anos com
dificuldades de aprendizagem se representa.
Esse menino expressa, através do seu dese-
Fonte: Mèredieu, 2003, p. 27. nho, como gostaria de ser percebido e como
percebe que o outros o veem.
A criança gosta de desenhar a casa, árvo-
res, flores, animais e aquilo que faz parte do Figura 5 – Menino de 10 anos
seu quotidiano, especialmente a sua família. desenha como gostaria de ser:
Aqui teríamos muitas observações a fazer “Normal, eu mesmo!”
a respeito daquilo que é desenhado, aquilo
que falta, as cores usadas, a proporção etc.
Para Klein (1997) tanto o jogo lúdico quan-
to a grafia correspondem à associação livre
dos adultos, expressando seus temores, suas
angústias e seu desenvolvimento afetivo e
intelectual. Lembramos também que há se-
melhanças entre o uso dos mecanismos de
deslocamento e condensação no ato de dese-
nhar, bem como na produção de um sonho.
Na ilustração seguinte (FIG. 4), a criança
pode falar do seu desenho, enquanto o psica-
nalista registra o que é verbalizado e auxilia Fonte: Chamat, 2004, p. 191.
nas associações possíveis diante da história
do paciente. Figura 6 – Menino de 10 anos
desenha como se vê: “Já disse! Normal!”
Figura 4 – O elefante
e o jacaré (angústia de castração)

Fonte: Mèredieu, 2003, p. 74.

O desenho e a clínica
O desenho é uma entre as diferentes ex-
pressões da função simbólica, que envolve Fonte: Chamat, 2004, p. 192.

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 127–134 | julho 2023 129


O desenho e a clínica psicanalítica com crianças e adolescentes

Figura 8 – Criança com 11 anos e 3 meses


Como diz Winnicott (1994), um lugar es- desenha todos os componentes da família
pecial precisa ser concedido às primeiras incluindo os animais de estimação:
entrevistas, e o desenho pode ser uma téc- cachorro e tartaruga
nica para explorar o material dessa entrevis-
ta. Um paciente, criança ou adulto, terá, no
atendimento clínico, uma certa capacidade
de acreditar na obtenção de auxílio e de con-
fiar naquele que o oferece. O que se espera
do psicólogo ou do psicanalista é um setting
estritamente profissional, no qual a criança
ou o adolescente fiquem livres para explorar
a oportunidade que a consulta proporciona
para a comunicação.
Donald Winnicott denominou o dese- Fonte: Di Leo, 1985, p. 72.
nho de área transicional, recurso utilizado
pela criança a meio caminho entre o subje- Winnicott propõe que no atendimento clíni-
tivo e o objetivo, vivência da desilusão, que co às crianças e adolescentes, embora ocor-
é substituída pela realidade e representação ram oportunidades para comentários inter-
de um espaço ambíguo entre um “dentro” e pretativos na produção dos desenhos, estes
um “fora”. podem ser mantidos em um mínimo ou, em
Uma criança com 5 anos e 6 meses, aban- verdade, deliberadamente excluídos. O psi-
donada pelo pai, pode revelar o seu esta- canalista, na consulta terapêutica com uma
do emocional através do desenho (FIG. 7). criança (ou um adulto também), precisa ser
Também a concepção de família e das pes- capaz de utilizar lucrativamente o tempo li-
soas, bem como os elementos que nela estão mitado e ter técnicas já prontas, por mais fle-
incluídos podem ser observados no desenho xíveis que possam ser. Em relação a qualquer
(FIG. 8). técnica, inclusive o desenho, é importante
que o terapeuta esteja preparado para usar,
Figura 7 – Criança de 5 anos e 6 meses, mas a base de todo o trabalho é o brincar.
abandonada pelo pai, desenha a si mesma Presume-se que o terapeuta possa brincar e
com a mãe tenha prazer em brincar.
A rotina proporcionada a uma criança no
decorrer do dia pode ser observada através
do seu desenho, ilustrando o que prioriza e
realiza predominantemente (FIG. 9).

Figura 9 – Menina se desenha assistindo


a um programa de TV de que gosta muito

Fonte: Di Leo, 1985, p. 82. Fonte: Visca, 1995, p. 101.

130 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 127–134 | julho 2023


Noeli Reck Maggi & Paola Giacomini Fachini

O jogo do rabisco é uma atividade da qual Um aspecto que nos chama a atenção no
duas pessoas quaisquer podem participar, trabalho de Winnicott com as crianças é a
mas geralmente, na vida social, o jogo rapi- disponibilidade para brincar e para ser fle-
damente deixa de ter significado. A razão por xível. O jogo, o desenho, a história falada
que essa atividade pode ter valor para a con- e contada fazem parte de uma importante
sulta terapêutica é que o terapeuta utiliza os comunicação. O desenho é indissociado do
resultados de acordo com o seu conhecimen- amadurecimento da criança e do adolescen-
to sobre o que a criança gostaria de comu- te.
nicar. O que mantém a criança interessada é Um aspecto importante na utilização do
a maneira pela qual o material produzido é desenho como recurso clínico é a verbali-
utilizado no ato de brincar ou jogar. zação que a criança emite sobre o seu dese-
O desenho, como o jogo do rabisco, pode nho. Na FIG. 11, a criança inclui os irmãos
ser aprendido facilmente e tem a vantagem na família, mas eles se encontram dentro de
de facilitar muito a tomada de notas. Se um casa.
menino ou uma menina se comunicam pela
fala ou pelo relato de sonhos, então a tomada Figura 11 – Desenho da família,
de notas torna-se um problema. O desenho incluindo os irmãos dentro
como o jogo do rabisco pode ser um jogo de casa e o bebê no carrinho
natural que duas pessoas quaisquer podem
jogar. Não é um teste, e o psicanalista con-
tribui com sua própria engenhosidade tan-
to quanto a criança o faz. A contribuição do
terapeuta é abandonada por ser a criança e
não o psicanalista quem está comunicando
aflição.
A forma como a criança representa a sua
realidade interna é bastante singular e está
relacionada com os aspectos tanto cognitivos
quanto afetivos. As crianças que vivenciam
o período de intensa fantasia, aproximada-
mente entre os 3 e 6 anos, fazem os seus de-
senhos como imaginam e como percebem a Fonte: Mèredieu, 2003, p. 71.
realidade, como na FIG. 10.
Somos povoados de medo e de angústia. A
Figura 10 – Fenômeno de transparência: criança precisa consolidar a angústia e o seu
o gato engoliu a velha e o papagaio esquema, que é de natureza cognitiva e afeti-
va, pois ela está elaborando através da repre-
sentação simbólica o que lhe falta. O psica-
nalista precisa se identificar com o desenho
e com a técnica para acompanhar o que a
criança ou o adolescente expressam.
Os desenhos ilustram também a dinâmica
familiar, como na FIG. 12. A criança com 11
anos se desenha junto com a mãe exercendo
as atividades da casa, enquanto o pai lê o jor-
nal. Esse desenho poderá responder a muitas
angústias e desigualdades vivenciadas pela
Fonte: Mèredieu, 2003, p. 21. criança.

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 127–134 | julho 2023 131


O desenho e a clínica psicanalítica com crianças e adolescentes

Figura 12 – Criança de 11 anos desenha Isso é tudo o que existe a título de técnica, e
ela e a mãe trabalhando enquanto o pai se tem-se de enfatizar que sou totalmente fle-
queixa ao ler o jornal xível mesmo neste estágio muito inicial, de
maneira que, se a criança quer desenhar, ou
conversar, ou brincar com brinquedos, ou
fazer música ou traquinagens, fico livre para
adaptar-me aos desejos dela. Com frequên-
cia um menino quererá jogar o que chama
de “jogo de pontos”, isto é, algo que pode ser
ganho ou perdido. Apesar disso, em uma alta
proporção de casos de primeira entrevista, a
criança aceita por tempo suficiente longo os
meus desejos e o que gosto de jogar para que
algum progresso seja alcançado. Cedo as re-
Fonte: Di Leo, 1985, p. 74. compensas começam a aparecer, de maneira
que o jogo continua. Amiúde, no decorrer de
A criança escuta a história, rabisca o desenho uma hora, fizemos juntos 20 a 30 desenhos e,
e se diverte. As representações podem ocor- gradualmente, a significância destes desenhos
rer através do desenho, do teatro e do jogo. O conjuntos tornou-se cada vez mais profunda
trabalho com o desenho não pode atropelar e é sentida pela criança como fazendo parte
a narrativa. A criança joga com os persona- de uma comunicação de importância.
gens ou expressa o seu grafismo e tem auto-
ria sobre o que produz. Como na FIG. 13, Nesse sentido, o desenho é uma atividade
o menino com 12 anos reproduz através do livre ou com alguma indicação de um tema.
desenho a violência experimentada no seu Além disso, pode ser considerado um jogo
cotidiano, na sua cultura. sem regras. Na clínica com crianças e adoles-
centes, o jogo do rabisco (Winnicott, 1994,
Figura 13 – Menino de 12 anos, palestino: p. 243) é importante pelo “uso que se faz do
“um soldado matando uma criança” material que o jogo pode produzir, especial-
mente no trabalho de uma só sessão que é
chamada de “consulta (diagnóstica) terapêu-
tica”.
A descrição de um caso pode ilustrar o
desenho produzido pela criança ou adoles-
cente. Não existem dois casos iguais e um só
exemplo. Portanto, cada desenho é produ-
zido pelo paciente numa circunstância es-
pecífica, portanto deve-se considerar o que
é verbalizado também no momento de sua
produção. O que se considera importante
nesta técnica é que ela possibilita um diálogo
e uma “aproximação com o paciente”.

Fonte: Mèredieu, 2003, p. 114.

Ao se referir ao desenho como técnica no


atendimento às crianças, Winnicott (1994, p.
232) nos diz:

132 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 127–134 | julho 2023


Noeli Reck Maggi & Paola Giacomini Fachini

Abstract GREIG, P. A criança e seu desenho: o nascimento da


arte e da escrita. Porto Alegre: Artmed, 2004.
This paper presents part of the studies devel-
KLEIN, M. A psicanálise de crianças. Rio de Janeiro:
oped in the module “Children’s drawings in Imago, 1997.
the psychoanalytic clinic with children and
adolescents”, promoted by the CPRS Child- MÈREDIEU, F. O desenho infantil. Tradução: Álvaro
hood and Adolescence Studies Center. Draw- Lorencini e Sandra M. Nitrini. São Paulo: Cultrix,
ing is one of the resources used by profession- 2003.
als working in the field that meets the demand
PIAGET, J. A formação do símbolo na criança: imita-
announced by those seeking to understand ção, jogo e sonho, imagem e representação. Tradução:
and alleviate the suffering of patients who are Álvaro Cabral e Cristiano Monteiro Oiticica. 3. ed.
experiencing childhood and adolescence. The Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
purpose of this study is to reflect on drawings
as a way of getting in touch with the internal ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou Da educação. São Paulo:
UNESP, 2022.
world of these patients and perceiving the im-
pulsive, libidinal and aggressive movements TANIS, B. O infantil na psicanálise: memória e tempo-
that establish a link and a dialog with their ralidades. 2. ed. São Paulo: Blucher, 2021.
conscious and unconscious contents. The pro-
posed reflections are based on Donald Win- VISCA, J. Técnicas proyectivas psicopedagógicas. 2. ed.
nicott, Françoise Dolto and Antonino Ferro, Buenos Aires: AG Servicios Gráficos, 1995.
complemented by the activities of researchers
WINNICOTT, C. Explorações psicanalíticas: D. W.
in this area of knowledge. Winnicott. Tradução: José Octavio de Aguiar Abreu.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
Keywords: Drawing as a clinical resource,
Psychoanalysis, Clinical practice with children
and adolescents. Recebido em: 28/05/2023
Aprovado em: 18/06/2023

Referências
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Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

CHAMAT, L. S. J. Técnicas de diagnóstico psicopedagó-


gico. São Paulo: Vetor, 2004.

DI LEO, J. H. A interpretação do desenho infantil. Tra-


dução: Marlene Nives Strey. Porto Alegre: Artes Mé-
dicas, 1985.

FERRO, A. A técnica na psicanálise infantil: a criança e


o analista da relação ao campo emocional. Tradução:
Mercia Justum. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

FREUD, S. Análise de uma fobia de um menino de


cinco anos (1909). In: ______. Duas histórias clíni-
cas: “O pequeno Hans” e “O homem dos ratos” (1909).
Direção da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Imago, 1996. p. 15-133. (Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud,
10).

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 127–134 | julho 2023 133


O desenho e a clínica psicanalítica com crianças e adolescentes

Sobre as autoras

Noeli Reck Maggi


Psicanalista e sócia efetiva do Círculo Psicanalítico
do Rio Grande do Sul (CPRS), filiado ao Círculo
Brasileiro de Psicanálise (CBP) e a International
Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).
Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), Psicóloga pela
Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
Doutora em educação pela UFRGS.
Líder do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em
Educação, Cultura e Sociedade (CNPQ) no período
de março de 2007 a dezembro de 2017.

E-mail: nrmaggi@gmail.com

Paola Giacomini Fachini


Psicanalista e Membro efetivo do Círculo
Psicanalítico do Rio Grande do
Sul (CPRS), filiado ao Círculo Brasileiro de
Psicanáliae (CBP) e a International Federation of
Psychoanalytic Societies (IFPS)
Professora do curso de formação do Instituto de
Estudos de Psicanálise do CPRS
Presidente do CPRS (2007-2008; 2008-2009; 2020-
2023.
Psicóloga. Graduada em Psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do SUL
(PUCRS).
Especialista em psicologia clínica pelo CRP/07.
Especialização em Saúde Mental Coletiva pela
Secretaria Municipal de Saúde (SMS Porto Alegre) e
Universitat de Roviri I Virgili.

E-mail: paola.fachini@gmail.com

134 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 127–134 | julho 2023


Ricardo Azevedo Barreto

Considerações sobre a sensibilidade


do cuidado poético-analítico:
coisa versus humano em pandemia1
Considerations about the sensibility
of the poetic-analytical care:
thing versus human in pandemic
Ricardo Azevedo Barreto

Resumo
Este artigo resgata o contexto do evento comemorativo dos 65 anos do Círculo Psicanalítico
do Rio Grande do Sul (CPRS) em 2021, durante a pandemia da covid-19, bem como os eixos
centrais da apresentação do autor nesse evento e alguns outros elementos teóricos que têm
acompanhado seu pensamento na atualidade. Entre outras dimensões, a humanização e a sen-
sibilidade do cuidado poético-analítico são enfatizadas.

Palavras-chave: Cuidado, Humanização, Pandemia.

Isso fala de psicanalistas e da psicanálise,


assim como de nosso mundo nem sempre poesia!...
Ricardo Azevedo Barreto

Considerações iniciais bela história na transmissão da psicanálise e


Em 26 de setembro de 2021, o Círculo Psi- no desenvolvimento dos ofícios psicanalíti-
canalítico do Rio Grande do Sul (CPRS) e o cos.
Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) com- O CBP inclui as filiadas Círculo Brasi-
pletaram 65 anos. leiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro
Nos dias 24 e 25 de setembro de 2021, foi (CBP-RJ), Círculo Psicanalítico da Bahia
realizada com muito esmero pelo CPRS uma (CPB), Círculo Psicanalítico de Minas Ge-
jornada on-line comemorativa de seus 65 rais (CPMG), Círculo Psicanalítico do Pará
anos em plena pandemia da covid-19, cujo (CPPA), Círculo Psicanalítico do Rio Gran-
tema central foi A psicanálise através dos de do Sul (CPRS) e Círculo Psicanalítico de
tempos e uma programação de conteúdos da Sergipe (CPS).
atualidade. A IFPS, à qual temos filiação institucio-
O CPRS vem contribuindo há muito tem- nal, abrange diferentes instituições psicana-
po com o campo da psicanálise brasileira. É líticas no mundo, diferenciando-se da IPA
filiado ao CBP e à IFPS (International Fede- (Associação Psicanalítica Internacional) e
ration of Psychoanalytic Societies), tendo uma dos grupos lacanianos.

1. Texto sobre a apresentação do autor no evento on-line comemorativo dos 65 anos do Círculo Psicanalítico do Rio Grande
do Sul (CPRS), na jornada intitulada A psicanálise através dos tempos, realizada em 24 e 25 set. 2021.

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 135–140 | julho 2023 135


Considerações sobre a sensibilidade do cuidado poético-analítico: coisa versus humano em pandemia

Junto com as amigas Eliana Mendes Resgatando a minha


(CPMG) e Marli Piva (CPB), psicanalistas participação no evento
notáveis, participei como palestrante do pai- Gostaria de cumprimentar os organiza-
nel A ética na diversidade dos caminhos do dores e os participantes deste belo evento.
ser psicanalista, sob a coordenação de Magda Agradeço ao Círculo Psicanalítico do Rio
Maria Colao (CPRS), que possibilitou com Grande do Sul (CPRS), por meio de sua ad-
seu conhecimento uma interlocução ímpar mirada presidente Paola Fachini, e a todos
à ocasião. os membros da criativa instituição gaúcha,
O painel foi muito especial. Eliana Men- onde encontro laços fraternos, pelo convi-
des discorreu de forma fulgurante sobre Os te para falar aqui em seu aniversário, assim
125 anos de psicanálise. Marli Piva, também como na data comemorativa do Círculo
de forma brilhante, desenvolveu sua temáti- Brasileiro de Psicanálise (CBP), que tam-
ca A ética da psicanálise e/ou a ética do psica- bém completa 65 anos!
nalista. Minha apresentação A sensibilidade Meus cumprimentos às amigas que comi-
do cuidado poético-analítico: coisa versus hu- go estão: Eliana Mendes e Marli Piva. Eu as
mano em pandemia trilhou os caminhos da admiro demais! Tantas representações que
poética, da poesia, e assim falei da po...ética têm e ações no campo internacional da psi-
em psicanálise. canálise, assim como no cenário brasileiro!
Após o lançamento de meu livro de poe- Entendo, neste momento, que a psicanálise
sia O sol ruivo em pandemia (Barreto, 2021a), está se reinventando, e a situação deste even-
que despertou em mim múltiplos significados to é histórica!
afetivos e resgates simbólicos, minha fala no Amplio meus gratos cumprimentos à
evento se desenvolveu com base no meu ar- coordenadora deste painel, a sensível psi-
tigo O cuidado poético-analítico em um mun- canalista do Círculo Psicanalítico do Rio
do pandêmico coisificado (Barreto, 2021b), Grande do Sul (CPRS): Magda Maria Colao.
publicado na revista Estudos de Psicanálise, Como mencionei anteriormente, cumpri-
número 55, em 2021. A capa desse número mento a todos os amigos gaúchos.
da revista estampa 65 e 26 de setembro de Cumprimento a todos de nossa federada
1956 em alusão à história do CPRS e do CBP. por meio de nosso presidente do CBP, tão
O presente artigo tem por objetivo tra- dedicado à causa psicanalítica, Anchyses Jo-
zer alguns eixos centrais de minha apresen- bim Lopes (CBP-RJ).
tação no evento comemorativo dos 65 anos Gratidão especial ao Círculo Psicanalítico
do CPRS e do CBP em 2021, no contexto da de Sergipe (CPS), instituição à qual pertenço
pandemia da covid-19, ministrada após as e onde encontro laços afetivos, intelectuais e
publicações de meu artigo O cuidado poéti- de admiração significativos. Cumprimento
co-analítico em um mundo pandêmico coisi- seus membros por meio da fundadora e pre-
ficado (Barreto, 2021b), que embasou minha sidente do CPS Déborah Pimentel.
apresentação, e de meu livro de poesia O sol Posteriormente aos cumprimentos e agra-
ruivo em pandemia (Barreto, 2021a) – isto é, decimentos, expressei-me da seguinte forma:
quando, frente ao sofrimento da pandemia Estamos em um momento histórico, úni-
do novo coronavírus, a poesia era minha co, entre outros aspectos, pela situação do
aliada, o que fala também de meu vínculo planeta Terra pandêmico e on-line de forta-
com a literatura poética e as artes desde a lecimento de laços de pertencimento e trans-
tenra infância. Este artigo tem ainda por fi- ferência com nossa instituição, a psicanálise,
nalidade contemplar alguns outros elemen- e os círculos psicanalíticos de nossa federa-
tos teóricos que vêm acompanhando meu da CBP, o que o ofício psicanalítico tem de
pensamento no momento e em algumas de inovador diante do mundo contemporâneo
minhas publicações psicanalíticas atuais. esmigalhado.

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Ricardo Azevedo Barreto

Penso que nossa instituição é marcada a civilização [...]. Podemos levar em conta os
pela pluralidade fundante, pelas humanida- textos sociais e técnicos de Freud [...].
des que a constituem, pela psicanálise em Podemos, a partir do artigo de Di Matteo
interfaces com muitos saberes e não saberes, (2006) na revista Estudos de Psicanálise, pen-
por sócios sensíveis que labutam em investi- sar em moral e ética em psicanálise, passan-
mentos pulsionais diante dos desafios diários do por vários textos freudianos e o amor que
em busca da dignidade do viver. Freud coloca [...]. E, com base em muitos au-
Nossa instituição psicanalítica é um lugar tores, essa relação do sujeito com a cultura,
simbólico, paterno, materno, fraterno, psí- essa ética do desejo tão falada, que não é o
quico, social e democrático transformador desejo do psicanalista. O desejo do psicana-
com vetores potentes da psicanálise. E “falo” lista precisa silenciar para o analisando en-
da psicanálise em várias dimensões: do Cír- contrar-se como sujeito desejante. Podemos
culo Psicanalítico de Sergipe (CPS), através passar por Lacan. Também a questão da falta
de minha amiga-irmã Déborah Pimentel; [...].
do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), Podemos levar em conta vários autores.
representado por Anchyses Jobim Lopes; do Em Sergipe, Déborah Pimentel estuda a ética
Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul, voltada para a saúde dos médicos [...] inclu-
representado por Paola Fachini. E podemos sive valores e princípios na relação dos pro-
pensar na International Federation of Psy- fissionais com os pacientes. Podemos tam-
choanalytic Societies (IFPS). bém pensar em vários outros aspectos neste
Nossos laços de pertencimento estão sen- discurso polifônico e polissêmico da ética.
do pensados aqui! O que significa a psica- Como o “falo” circula – e estamos “falan-
nálise no Brasil, no mundo e quais são seus do” de círculos de psicanálise – caminharei
efeitos analíticos. Como são os pertencimen- pela po...ética, pois, na poesia, existem mui-
tos em um mundo tão coisificado e despa- tas possibilidades de sobrevivência, poten-
triotado! cialidades fecundas de reinvenção de sujei-
O “falo” circula. Somos falantes e castra- tos, das linguagens, da psicanálise e do mun-
dos. Supostamente maduros, temos uma re- do com as múltiplas reflexões éticas na diver-
lação com o pai, Sigmund Freud, que não é sidade dos caminhos do ser psicanalista.
de submissão, mas de filiação, pertencimen- Por isso, compreendo que a poética aco-
to, respeito e autonomia de continuidade da lhe a ética no que existe de possibilidades de
história da psicanálise. construção de um mundo melhor para si,
A função paterna não é efetiva quando a para os outros, para a Terra. E a psicanálise
relação com o pai se constitui em servidão se encontra nas marcações, nas pausas e nas
ou “ética servil”! rimas da poesia da ética da escuta.
Fala-se muito de ética em psicanálise. A poesia não liga significante a significa-
Já foram mencionados muitos aspectos. dos de maneira fixa. Ela é “uma brincalhona”.
Não vou me repetir, apenas retomar alguns. Na brincadeira, “falo” muitas “coisas” sérias.
A ética como ramo da filosofia, que ajuda a E como é sério viver com ética em um mun-
refletir sobre a ação humana, o modo de vi- do de coisas! Pois é!
ver, e diferente da moral, da obediência a cos- Neste momento, fui, em minha palestra,
tumes socioculturais! A ética também pode a meu artigo O cuidado poético-analítico em
ser pensada em suas ramificações. Temos a um mundo pandêmico coisificado (Barreto,
bioética. Em Freud, há uma polifonia sobre 2021b), do qual, por esta ocasião, enfatizarei
o que se relaciona com a ética. O discurso algumas falas e eixos:
ético é polifônico. Não há algo linear. Pode-
mos pensar no superego, no conflito neuró- Há muito tenho visto o mundo contemporâ-
tico, na relação entre o pulsional e a cultura, neo como uma “pandemia” de coisas ou obje-

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Considerações sobre a sensibilidade do cuidado poético-analítico: coisa versus humano em pandemia

tos, sendo a humanização uma das perspecti- Enfatizo a singularidade do ofício psi-
vas preciosas para o reencantamento do que canalítico em um mundo mcdonaldizado e
tem sido coisificado ao longo dos tempos. disneyzado em meu artigo sobre o assunto
(Barreto, 2022), publicado na revista Estudos
Não estou falando de coisa ou objeto nos de Psicanálise n.º 58. A disneyzação é vis-
sentidos habituais da psicanálise, mas como ta por por Bryman (2004) como no âmago
aquilo que não tem vida e é destituído de hu- da sociedade de consumo de modo que os
manidade (Barreto, 2021b, p. 135). princípios dos parques temáticos da Disney
alcançariam distintos âmbitos da sociedade.
Continuei a “falar” do que destaco aqui: Ressalto que a psicanálise promove, entre
outras dimensões, o contato com o mal-estar
[...] o termo “pandemia” deslizará neste dis- de forma singular, a autenticidade, e não o
curso do sentido comum de uma doença que espetacular, o sensacional (Barreto, 2022).
se alastra no globo terrestre, em que há o caso Alguns pontos centrais de meu artigo
pandêmico exemplar e tenebroso da atualida- que embasou minha exposição no evento de
de – da covid-19 – para o significado plural 2021 serão resgatados aqui:
daquilo que se espalha intensamente na Terra. • Problematiza a pandemia ou da coisifi-
cação ou do humano.
[...] meu trabalho psicanalítico tem sido cri- • O humano se coisifica quando esquece
vado por minha análise psicossocial da coi- sua história.
sificação das subjetividades, pois percebo um • A psicanálise em sua ética é pensada
duelo na contemporaneidade: como um tensionamento para marcar sua
“Pandemizar” as coisas ou o humano, o sensí- posição periférica ou extraterritorial no
vel? (Barreto, 2021b, p. 135). mundo coisificado do século XXI.
• Acena para a importância da “pandemi-
Atualmente, e há algum tempo, quando zação” do paradigma da humanização para
falo de coisificação do humano e de amea- a psicanálise ganhar sustentação no futuro
ças à coisificação da psicanálise, tenho fei- em sua pluralidade teórico-técnica nos mais
to recortes e costuras com autores como diversos contextos e quanto a seu ofício poé-
Ritzer (1993), que aborda a a mcdonaldi- tico, sensível e sagrado.
zação da sociedade, e Bryman (2004), que • A escuta balizada pela sensibilidade do
apresenta a concepção de a disneyzação da cuidado poético-analítico é enfatizada.
sociedade. Fiz ainda algumas teorizações, como nú-
Não levei essas contribuições à palestra, cleos e dinâmicas de coisificação em antago-
todavia me acompanham em algumas con- nismo a núcleos e dinâmicas de humaniza-
ferências e publicações minhas, nas inter- ção, campo de “pandemização” (ou espalha-
locuções que faço, pois a racionalização do mento) versus campo de “reclusão” e ressal-
trabalho e do mundo nos atravessa de modo tei a importância do trabalho com as feridas
sistêmico. O que se faz nos fast-foods passa abertas ou não, assim como com o tecido
a fazer parte da vida social. Eficiência, cál- cicatricial em análise.
culo, previsibilidade e controle, entre outros Atualmente, observando essa trajetória,
aspectos, nos tocam, como nos ensina Ritzer percebo marcas de minha história pessoal
(1993) ao falar de a mcdonaldização da so- e profissional; experiências de vida antes,
ciedade (Thorpe, 2016). durante e depois da pandemia da covid-19
Fazer interface com essas ideias sociológi- atravessando meu pensar psicanalítico, as-
cas para pensar sobre os ofícios da psicanáli- sim como o trabalho em vários campos: con-
se e a clínica em sua singularidade me parece sultório, hospital geral e na docência univer-
importante. sitária, entre outros exemplos.

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Ricardo Azevedo Barreto

O tempo passa! O CBP e o CPRS têm poético-analítico em um mundo pandêmico


avançado na idade. No segundo semestre coisificado (Barreto, 2021b).
de 2023, teremos mais um congresso do Saliento, então, que, ao término de minha
CBP, e em Belo Horizonte, organizado pelo palestra de 2021, em um momento histórico
CPMG. Irei falar mais uma vez! Tenho, en- da pandemia da covid-19, das tecnologias on
tre outros aspectos, percebido a importân- -line em alta, dos 65 anos do CPRS e do CBP,
cia da clínica psicanalítica ampliada para o bem como do florescer das sensibilidades
futuro de nosso ofício singular como psica- humanas e “inconclusões”, fui às estrofes de
nalistas. minha poesia Caminhos de sol que se encon-
Também tenho me preocupado com a to- tra em meu livro O sol ruivo em pandemia
xicidade dos relacionamentos humanos na (Barreto, 2021a, p. 49):
contemporaneidade como gritos de socorro.
O século XXI precisa ser considerado ainda Palavras
com a Quarta Revolução Industrial, descri- guilhotinadas
ta por Schwab (2017), transformadora do sem amor
modo de viver, estabelecer relacionamentos e chaminé.
e trabalhar na confluência de tecnologias di-
gitais, biológicas e físicas. Insensatez
Nessas digressões entre passado, presente humana
e futuro, a olhar a minha participação na jor- sobredeterminada
nada do CPRS em 2021, e para além, volto a escombros da sorte?
“falar”, em contato com tantas mortes, perdas
e lutos que assolam nossos tempos em 2023, Confiança
retomando, em meus sentimentos e elabora- depurada
ções, o que fora pronunciado com ênfase na ao ar
jornada, entre outras dimensões: do desamparo...

O caminho da abordagem psicanalítica Insubordinação


adiante será de po...eira ou ética? aos autoritarismos...
Que o mundo e a psicanálise não se transfor- nos versos tortos do destino
mem em pó com a destruição e a morte do a liberdade e muito mais...
humano e da vida! em seus caminhos de sol
A poética da psicanálise e de seu cuidado sen- inacabados…
sível com os sujeitos, as coletividades, o mun-
do e o universo permaneça hoje e seja lançada Ricardo Azevedo Barreto
no amanhã! (Barreto, 2021b, p. 143).

Considerações finais
Não adentrarei outros pontos aqui de mi-
nha palestra no painel memorável de 2021
junto com Eliana Mendes (CPMG) e Marli
Piva (CPB), baluartes do Círculo Brasileiro
de Psicanálise (CBP), sob a coordenação da
sensível Magda Maria Colao (CPRS), numa
jornada de celebração da bela história do
CPRS e do CBP. Indico aos que me acom-
panham que complementem a leitura deste
artigo (Barreto, 2023) com a de O cuidado

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Considerações sobre a sensibilidade do cuidado poético-analítico: coisa versus humano em pandemia

Abstract Sobre o autor


This paper recounts the context of the com-
Ricardo Azevedo Barreto
memorative event of 65 years of the Círculo
Psicólogo graduado pela Universidade
Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS) in de São Paulo (USP).
2021 during the covid-19 pandemic, as well as Tem mestrado e doutorado em psicologia escolar e
the central axes of the author’s presentation at do desenvolvimento humano pela USP.
this event and some other theoretical elements Tem especialização em psicologia hospitalar pelo
that have accompanied his thinking today. CEPSIC da Divisão de Psicologia do Instituto
Central do Hospital das Clínicas da FMUSP.
Among other dimensions, the humanization
Teve experiência de treinamento no Butler Hospital
and the sensibility of the poetic-analytical care (RI-USA).
are emphasized. Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Sergipe
(CPS), filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise
Keywords: Care, Humanization, Pandemic. (CBP) e à International Federation of Psychoanalytic
Societies (IFPS).
Tem experiência de ensino na área de psicanálise.
Referências Foi presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise
(2014-2017).
Foi coordenador do programa de humanização,
assim como membro do conselho administrativo do
BARRETO, R. A. A singularidade do ofício psicanalí- hospital São Lucas em Aracaju-Sergipe por muitos
tico em um mundo “mcdonaldizado” e “disneyzado”. anos.
Estudos de psicanálise, Rio de Janeiro, n. 58, p. 121- Foi professor titular da Universidade Tiradentes
124, dez. 2022. (UNIT) por muitos anos, ensinando nos cursos de
psicologia e medicina.
BARRETO, R. A. O cuidado poético-analítico em um É um dos editores da revista Estudos de Psicanálise
mundo pandêmico coisificado. Estudos de psicanálise, do Círculo Brasileiro de Psicanálise.
Rio de Janeiro, n. 55, p. 135-146, jul. 2021b. É um dos editores regionais para a América do Sul
da revista International Forum of Psychoanalysis.
BARRETO, R. A. O sol ruivo em pandemia. Aracaju: J. Escritor e poeta.
Andrade, 2021a. Tem experiência de desenvolvimento de trabalhos
na área da humanização, articulando psicanálise,
BRYMAN, A. The disneyization of society. London: psicologia, artes e humanização.
Sage, 2004.
E-mail: riazebarreto@gmail.com
DI MATTEO, V. Os discursos éticos de Freud. Estu-
dos de psicanálise, Rio de Janeiro, n. 29, p. 57-66, set.
2006.

RITZER, G. The mcdonaldization of society. Thousand


Oaks: Pine Forge, 1993.

SCHWAB, K. The fourth industrial revolution. New


York: Crown Business, 2017.

THORPE, C. et al. O livro da sociologia. São Paulo:


Globo Livros, 2016.

Recebido em: 11/06/2023


Aprovado em: 18/07/2023

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Scheherazade Paes de Abreu

A atemporalidade do inconsciente
entre restos e crocodilos
que ainda vivem
The timelessness of the unconscious
among remains and crocodiles
that still live
Scheherazade Paes de Abreu

Resumo
Este artigo propõe como recorte metapsicológico as metáforas arqueológicas sobre o aspecto
atemporal do inconsciente. O problema sobre a irrepresentabilidade do elemento que sobrevi-
ve ao lado, que Freud analisou em O mal-estar na cultura e na Carta 52, de Freud a Fließ, e deu
prosseguimento em A análise finita e infinita. O inconsciente é em absoluto atemporal, mas
o que exatamente isso significa? Não existem os tempos no inconsciente, ou, até que ponto
coexistem todos os instantes de tempo? Não por acaso, Freud insistiu em afirmar em muitos
escritos, que algo se conserva – uma sobrevivência, mesmo que um trapo, uma cicatriz, um
lampejo, um pedaço, um resto, uma ruína. Mas estará todo material sujeito a transformações
e reescritas em épocas posteriores? Na experiência de uma análise, os crocodilos são os com-
panheiros de viagem. Uma transformação é sempre incompleta: partes de uma organização
anterior continua a existir ao lado da mais recente, e mecanismos antigos podem permanecer
intocados pela análise. Sobrevivem os restos, o grão de Real que resiste.

Palavras-chave: Inconsciente, Atemporalidade, Real, Resto, Metapsicologia.

O tempo, se é que podemos intuir


essa identidade, é um logro:
a indiferenciação e a inseparabilidade de um momento
de seu aparente ontem de outro de seu aparente hoje
bastam para desintegrá-lo.
Jorge Luís Borges (1936/2010, p. 33-34)

Construir um conceito, uma narrativa ou conceito? Observa-se que o tempo pode ser
uma metáfora sobre o que é o tempo, pres- um logro, como na epígrafe de Borges.
supõe perguntar o que é o tempo. Pois, o que Freud se apropria de palavras comuns em
está pressuposto não necessariamente está alemão e empresta-lhes um estatuto con-
posto. Então, de maneira mais restrita, o que ceitual, por exemplo, ao dizer do infamiliar
é o inconsciente atemporal [zeitlos] freudia- [Das Unheimliche], observa Iannini (2019, p.
no? Note-se: dizer que algo é atemporal é co- 7). Por outra forma, a atemporalidade recebe
mum e cotidiano, o que é palavra, o que é um conceito na psicanálise. As palavras de

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A atemporalidade do inconsciente entre restos e crocodilos que ainda vivem

Freud no primeiro esboço teórico do apare- passado, o presente e o futuro estão proscri-
lho psíquico – Carta 52, de 6 dez. 1896 – po- tos dos processos temporais inconscientes.
dem servir de rede epistemológica para nos- Entretanto, observou-se a presença dos tem-
sa escrita. Pois, é de “tempos em tempos” que pos nas instâncias e nas operações de pro-
o material inconsciente sofre uma reorgani- cessos inconscientes. Inferimos sobre a pos-
zação, uma reescrita, pois a experiência de sibilidade de uma coexistência dos tempos,
uma análise ocorre em um processo variável na qual, ao demarcar o inconsciente como
no tempo, como afirmou Freud (1937/2017, atemporal, Freud não abandona totalmente
p. 375) “ao longo dos acontecimentos” na a possibilidade da existência de tempos. Para
“continuidade da análise”. Estará todo mate- mais, destaca-se o problema da invariância,
rial sujeito a transformações e reescritas em da imutabilidade, dos restos, dos resíduos e
épocas posteriores? a permanência de materiais, e isso poderia
Então, algo atemporal é o que se mostra diferir de eternidade.
fora do campo de ação do tempo. Além dis- Nesse sentido, é importante examinar as
so, poderia ser uma operação subjetiva, mas relações entre atemporalidade e a irrepresen-
isso não faz desaparecer o problema sobre o tabilidade da morte. Se a morte não pode ser
que é a atemporalidade para a psicanálise. representada no inconsciente, ou seja, para o
Freud, por intermédio de uma palavra qual- inconsciente o que ocorre é a imortalidade,
quer, subverte concepções familiares sobre o pergunta-se até que ponto este só pode ser
tempo e, assim, dispõe o tempo do incons- atemporal.
ciente noutro lugar diverso do senso co- Na parte II - Nossa relação com a morte,
mum. Convidamos o leitor a ter em suspen- do artigo Considerações atuais sobre a guerra
são, temporariamente, os efeitos de sentidos e a morte, Freud (1915/2020, p. 127) analisa
já concedidos à perspectiva atemporal. O como o inconsciente se conduz em relação
que exatamente isso significa? Não existem ao problema da morte. Percebemos a morte
os tempos no inconsciente ou até que ponto apenas para aqueles que são estranhos e ini-
coexistem todos os instantes de tempos? migos. Além disso, nos desejos inconscientes
Com efeito, aqui está o trecho da Carta de morte, mata-se até por pequenas coisas.
52: No inconsciente há sobrevivências de um
desejo ávido por morte. Sobrevive o huma-
Você sabe que trabalho com a suposição de no primevo, de fato, é como um sujeito no
que nosso mecanismo psíquico tenha surgi- tempo pré-histórico que o inconsciente vai
do de uma sobreposição de camadas, na qual, nortear os efeitos sobre a morte.
de tempos em tempos, o material presente na Por outro lado, verifica-se que Freud ex-
forma de traços mnêmicos [Erinnerungsspu- trai o homem primevo de um tempo contí-
ren] sofre uma reorganização, uma reescrita, nuo pré-histórico, e de uma norma crono-
a partir de novas relações. Portanto, o que há lógica, para restituí-lo a uma dimensão de
de fundamentalmente novo em minha teoria insurgência. Cabe lembrar que o recurso
e a afirmação de que a memória não está dis- ao aspecto atemporal do inconsciente é um
posta em apenas uma, mas em várias cama- “fato polêmico”, como escreve Paul-Laurent
das, que é a escrita com vários tipos de signos Assoun (1978, p. 159). Note-se em Freud
(Freud, 1896/2021, p. 35). (1933/2010, p. 154) a radical particularida-
de de que o Isso é uma província sem leis,
Um dos impasses que surgem é que, quan- sem razão, um caldeirão de excitações fervi-
do Freud afirma que o tempo do inconscien- lhantes: as leis do pensamento e os processos
te como atemporal, pois nada se acha que de contradição não valem, não se conhece
corresponda à ideia de tempo, podemos juízo de valor, nem o bem, nem o mal, nem
compreender na leitura do seu texto que o a moral. No Isso, impulsos opostos podem

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Scheherazade Paes de Abreu

coexistir. Nada existe que se compare à No ponto de partida desta escrita encon-
negação. tra-se o problema da permanência do passa-
Em nosso campo de pesquisas, os tem- do anímico. Trata-se de uma pergunta que se
pos não se reduzem a uma linha na qual o extrai do texto freudiano: “podemos supor
que opera é o que sucede, pois os tempos sobrevivências do mais antigo ao lado do
e os sujeitos são inadequados e desiguais que lhe é posterior e dele surgiu por trans-
em relação a si mesmos. Não temos a pos- formação?” Isso interessa, pois o analista se
sibilidade de visitar exatamente os mesmos ocupa com material vivo, e o único lugar em
instantes de tempos do passado, nem te- que o tempo passado e o futuro podem vi-
mos notícias da chegada de um viajante do ver, e se intrometer é o tempo presente. Em
tempo proveniente do futuro. Lembremo- uma análise, o ancestral não está morto, não
nos da invenção do cientista H. G. Wells se trata de um passado morto, um passado
(1895/2019, p. 45), isto é, uma “máquina do que passou, mas um passado do qual efeitos
tempo” cuja possibilidade é se movimentar sobrevivem no presente.
entre o passado, o presente e o futuro, e sob Nesse ponto, elaboram-se as perguntas:
esse aspecto, trata-se de uma certa opera- de que maneira a metáfora de uma topo-
ção que desintegra a própria concepção de logia arqueológica das camadas em sobre-
que o tempo poderia ser absoluto. Talvez as posição e lado a lado sinalizam efeitos de
hipóteses do inconsciente e da máquina do atemporalidade no inconsciente? Que me-
tempo de Wells sejam as únicas máquinas táforas Freud utiliza para construir uma
capazes de atemporalidade. Dito de outro teoria dos tempos? O que é o inconsciente
modo, o material de outro tempo é um si- atemporal, e como este se distingue do tem-
nal de que há qualquer coisa em nós, que é po do recalcado e do esquema a posterio-
colonizada, ou seja, estruturada no e pelo ri? Inferimos que uma teoria dos tempos
discurso do Outro. presentes em Freud, encontra-se em redes
Freud construiu uma hipótese fundamen- fragmentadas e conexões laterais, e parece
tal e subversiva para a psicanálise, e é sobre construir-se em confluência com o conceito
o tempo em exceção – a atemporalidade que de inconsciente.
ocorre nos processos inconscientes. Por ou- No capítulo V do ensaio O inconsciente,
tro lado, essa é uma maneira de dizer que a ao afirmar as características especiais, Freud
representação abstrata de tempo se constrói (1915/2010, p. 93-94) dirá que os processos
no Eu (consciente) e de distinguir o tempo inconscientes são atemporais, isto é, não são
inconsciente por características negativas. ordenados temporalmente, não são altera-
De que maneira o inconsciente não conhece dos pela passagem do tempo, não têm rela-
o tempo? Qual o tempo que o inconsciente ção nenhuma com o tempo. É nesse sentido
não tem? que a atemporalidade significa para Assoun
Segundo Christian Dunker (2023, p. 237) (1978, p. 158) que os processos inconscientes
em Pequeno glossário lacaniano, do livro O não estão submetidos à ordenação temporal,
que é sexo?, de Alenka Zupančič, o sujeito à sucessividade do antes e do depois, portan-
se distingue do eu e da consciência, como to são não diacrônicos. E Freud, ao afirmar
função de descentramento, divisão e nega- que o tempo em nada os modifica, quer dizer
tividade; o sujeito é para Lacan, um efeito que de certa forma são eternos, entretanto,
de fala e de discurso que ocorre no tempo. por eternidade compreende-se não uma infi-
E para inserir certa complexidade, o analista nitude de tempo, tampouco oposição a tem-
deve operar de modo tão atemporal quanto poralidade, mas uma dimensão que é fora do
o próprio inconsciente. Com efeito, Freud tempo, é inacessível a uma modificação tem-
(1918/2022, p. 635) coloca diante dos analis- poral. Por isso, é que o inconsciente não está
tas esse dever para a psicanálise. sujeito às ações do tempo.

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A atemporalidade do inconsciente entre restos e crocodilos que ainda vivem

Nesse sentido, a atemporalidade, para breposição de camadas”, de modo que a me-


Assoun, significa imutabilidade. Por fim, mória não se dispõe em apenas uma, mas em
no dizer que não se pode aplicar à noção várias camadas sobrepostas de escritas. Na
de tempo, é dizer que os processos psíqui- arqueologia, a estratigrafia é um método que
cos inconscientes exigem uma categorização estuda as camadas, estratos que aparecem so-
particular. Trata-se, portanto, do sentido ra- brepostos no corte geológico temporal. São
dical de Zeit-losigkeit. A atemporalidade é, sobreposições que, de tempos em tempos,
assim, um conceito de tempo para o sistema se reorganizam, sofrem uma reescrita, estão,
inconsciente. Nesse sentido, é importante assim, submetidas às subjetividades de cada
lembrar esta passagem da Conferência 31: A época, ao anacronismo, às sobrevivências e
dissecção da personalidade psíquica, em que às descontinuidades que ocorrem. E isso as
Freud (1933, p. 154-155) traz a imutabilida- relaciona com o fator tempo.
de do passado através dos tempos: Para o pensamento freudiano, a questão
era formular fundamentos sobre a memória
Nada existe no Isso que possamos equiparar e verificar hipóteses tópicas sobre o apare-
à negação, e também constatamos, surpresos, lho psíquico, assim como, nessa Carta ocor-
uma exceção à tese filosófica de que tempo e reu uma reflexão clínica e nosográfica ao
espaço são formas necessárias de nossos atos identificar as estruturas clínicas freudianas:
psíquicos. Nada se acha que corresponda à histeria, neurose obsessiva, paranoia e per-
ideia de tempo, não há reconhecimento de versão. Por um lado, tratava-se de assegurar
um transcurso temporal e, o que é muito no- um aparelho de escrita, em que, no primeiro
tável e aguarda consideração no pensamento sistema, a superfície estaria sempre lisa, dis-
filosófico, não há alteração do evento psíquico ponível e receptiva após receber o estímulo
pelo transcurso do tempo. Desejos que nunca sem, contudo, escrever vestígios. Por outro
foram além do Isso, mas também impressões lado, um outro sistema com possibilidades
que pela repressão afundaram no Isso, são de escrever o que foi apagado no sistema per-
virtualmente imortais, comportam-se, após ceptivo. Portanto, a novidade na teoria era
décadas, como se tivessem acabado de surgir. demonstrar que a memória estava disposta
Podem ser reconhecidos como passado, des- em camadas, mas tal como um sistema de es-
valorizados e privados de seu investimento crita. Então, Freud formulou um diagrama,
de energia somente quando se tornam cons- uma espécie de esquema em que diferentes
cientes mediante o trabalho analítico, e é nis- modos de escrita [Niederschriften] se apre-
so que se baseia, em medida nada pequena, sentam separados conforme os respectivos
o efeito terapêutico do tratamento analítico. neurônios portadores [Neuronträgern]. Em
Sempre tive a impressão de que tiramos pou- Notas do editor, os termos escolhidos por
co proveito, para a nossa teoria, desse indubi- Freud contribuíram para afirmar o aparelho
tável fato da imutabilidade do recalcado atra- como sistema de escrita, literal, pois são pro-
vés do tempo. Isso parece permitir um acesso cessos da ordem de uma escrita. Vejamos,
aos mais profundos vislumbres. Infelizmente, por exemplo, [Eindruck] que são efeitos ou a
tampouco fiz maiores progressos nesse ponto. impressão do mundo exterior assim dispos-
to em uma escrita [Niederschriften] e poste-
O que se verifica ao examinar a Carta 52, rior reescrita [Umschrift] do signo [Zeichen],
de Freud a Fließ (1896/2021, p. 35), é que que se modifica em traço de memória [Erin-
nessa/na construção conceitual do sistema nerungsspur].
de escrita, que é o aparelho psíquico, Freud Nessa rede conceitual, Freud procurou
utilizou metáforas e palavras retiradas da ar- mostrar que o inconsciente, esse sistema de
queologia, por exemplo, a demonstração de memória, tem como suporte a dimensão do
que o aparelho psíquico surgiu de uma “so- escrito. Com efeito, vamos partilhar o dia-

144 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 141–150| julho 2023


Scheherazade Paes de Abreu

grama1 pensado por Freud (1896/2021, p. roses se devem ao fato e às consequências


36). A propósito, P: neurônios nos quais se de que a tradução não ocorreu para deter-
originam as percepções ligadas a consciência, minado material, pois a escrita sobreposta
porém não retém vestígios do que aconteceu. [Überschrift] posterior inibe a escrita ante-
sP: signos de percepção trata-se do primeiro rior e desvia o processo excitatório. No en-
modo de escrita das percepções, incapaz de tanto, se falta a escrita sobreposta posterior,
consciência e se organiza por simultaneida- a excitação segue os caminhos e as soluções
de. Ic: inconsciência [Unbewusstsein], mas vigentes no tempo anterior. Essa falha na
neste ponto ainda não é o inconsciente [Das tradução é o recalque, que acontece devido
Unberwusste], trata-se do segundo modo a uma liberação de desprazer consequente
de escrita a partir de outras relações. E, Pc: da tradução. Por efeito, no que falha a escri-
pré-consciência, terceiro modo de escrita, ta sobreposta posterior, persiste o anacro-
ligado à representação da palavra [Wortvors- nismo, ou seja, em determinada província
tellungen], corresponde ao Eu. Investimen- ainda vigoram os fueros2 (uma região e seus
tos [Besetzungen] provenientes do Pc se fa- direitos), “sobrevivências acontecem”. Em
zem conscientes por regras determinadas, e outras palavras, o anacronismo é uma errân-
essa consciência secundária do pensamento cia cronológica, intempestividade, que con-
é algo da ordem da posterioridade [nachträ- siste em atribuir a uma época, ou a alguém,
gliches]. Outro aspecto, é que nesse trecho se ou a uma província, ou a um acontecimento,
observa que Freud introduziu novamente a efeitos que são de um outro tempo. De forma
questão do tempo e, em específico, o a poste- que, em algumas províncias ocorrem sobre-
riori [nachträgliches]. vivências, pois estão em vigor os fueros, asse-
O diagrama foi assim estabelecido por gurou Freud. As sobrevivências, esse desvio
Freud: que Freud assegurou, são apenas “lampejos”
(Huberman (2011, p. 84) porque a destruição
não é um absoluto, mesmo se fosse contínua.
Não por acaso, Freud insistiu em afirmar em
muitos escritos que algo se conserva – uma
sobrevivência, mesmo que um trapo, um
vestígio, um lampejo, um pedaço, um resto,
uma ruína. Sobrevivências e é exatamente o
resto, o que dispensa a salvação.
Fonte: Freud, 1896/2021, p. 36.
Onde quer que falte a escrita sobreposta pos-
Freud (1896/2021, p. 37) demonstrou ain- terior, a excitação é resolvida de acordo com as
da na Carta 112 [52] que o trabalho psíqui- leis psicológicas vigentes no período psíquico
co é representado por formas de escritas em anterior e segue pelos caminhos disponíveis
sobreposições, e sequências de épocas dife- naquela ocasião. Dessa maneira, subsiste um
rentes da vida. A tradução ou transposição anacronismo: numa determinada província
[Übersetzung] do material psíquico acontece ainda vigoram os fueros, “sobrevivências”
nas fronteiras entre duas épocas. Para Freud, acontecem (Freud, 1896/2021, p. 37).
as subjetividades que se constatam nas neu-
O que faz com que o contemporâneo não
seja todo, nem o único tempo? A psicanálise
1. Nota do editor: As siglas designam P: percepções; sP: sig-
nos de percepção; Ic: inconsciência; Pc: pré-consciência; Cs:
consciência. No original alemão, correspondem a W: Wahr- 2. A palavra “fueros”, de maneira geral, designa o conjunto
nehmungen; Wz: Wahrnehmungszeichen; Ub: Unbewusst- de direitos locais espanhóis na Idade Média e passa a signifi-
sein; Vb: Vorbewusstsein; Bew: Bewusstsein (N.E., p. 57). car o direito especial de alguma região (N.E. p. 57).

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 141–150 | julho 2023 145


A atemporalidade do inconsciente entre restos e crocodilos que ainda vivem

não está aprisionada a um tempo de nasci- cada estado anterior poderia ser recuperado,
mento. O que faz com que a época de Freud mesmo que seus elementos tenham trocado,
possa coexistir com o tempo atual [com a há muito tempo, todos os vínculos originá-
contemporaneidade]? E se “o contemporâ- rios por outros novos.
neo não é todo o tempo” em absoluto, até O ensaio O mal-estar na cultura, de 1930,
que ponto uma obra escrita no século XX, foi escrito num momento de conceitos já
como um texto da obra de Freud, poderá ser fundamentados. Não foi por acaso que Freud
um expoente do século XXI, isto é, operar de propôs como metáfora de sobrevivências do
modo atemporal, tal como o inconsciente e o material psíquico, a Cidade Eterna de Roma.
analista? Freud é tão inevitável agora quanto Podemos inferir as fronteiras porosas entre
em outro tempo? O que faz uma época es- o aparelho psíquico, o mundo [a cultura] ex-
tar fora de adesão ao seu tempo e, assim, ex- terior/interior na metáfora da cidade. Trata-
plodir em outro tempo ou outro mundo de se também de uma nova forma de escrever a
modo que o antigo e o novo possam se inter- clínica. A clínica nunca esteve desenraizada,
penetrar? Não é porque está pressuposto um a economia psíquica não é sem relação com
tempo sempre outro, que não se faz urgente a cultura e estruturas normativas da socieda-
situar que o tempo não é tão só um tempo de. Questões de cultura não são tratadas por
que sucede ou prevalece – tal como percebi- Freud sem uma contrapartida clínica, mas de
do no Eu, mas muito mais pode ser descon- modo algum isso significa a supremacia do
tinuidade e anacronismo. Que dificuldades clínico. A hipótese metapsicológica de que
e impasses teóricos se apresentam ao pensa- o mecanismo psíquico advém da sobrepo-
mento e à formalização, ao passo que a atem- sição de camadas, proposta feita por Freud
poralidade é um aspecto do inconsciente? na Carta 52 (1896/2021, p. 35) manifestará
Observa-se esse ponto para sinalizar que, complexidades e expressão mais elaborada
quando pensamos o tempo, esse pensamento nas metáforas arqueológicas de O mal-estar
se elabora no Eu. Mas não somente, pois se na cultura. Ocorre, para Freud, que o esque-
sabe estar advertido do determinismo psí- cimento não é a destruição ou apagamento
quico. Foi a partir do determinismo psíquico de traços, mas o contrário. Iniciaremos pela
que Freud (1901/2023, p. 331) demonstrou pergunta de Freud: até que ponto temos o di-
que efeitos inconscientes devem prevalecer reito de supor a sobrevivência daquilo que é
sobre motivações conscientes. Nossas esco- originário ao lado do que é posterior e que
lhas são, assim, inconscientemente determi- dele se originou?
nadas, e não se trata de um mal funciona- Freud recorreu ao desenvolvimento e
mento cerebral. Freud também nos adverte transformações na cidade de Roma. Apre-
que, para a psicanálise, nada é arbitrário, pe- sentou Roma como uma metáfora arqueo-
queno ou casual, O psicanalista se distingue lógica do aparelho psíquico. A cidade foi
pela convicção de que os sujeitos são desse reconstruída muitas vezes por cima das mes-
modo determinados. Mas isso não elimina a mas fundações e, em vez de morada humana,
questão colocada. Pode-se inferir que os ma- seria um ser psíquico. Nota-se que a metáfora
teriais serão identificados como “passado” incidirá sobre uma perspectiva temporal, na
em uma experiência de análise, pois o modo qual nada do que tenha uma vez acontecido
de tempo é atualizado no processo de análise, – o tempo passado, pereceu, e a última fase
na presença de analista. Foi também a partir de desenvolvimento ainda reflete fases ante-
dos esquecimentos que Freud (1901/2023, riores desse tempo. O que se pode encontrar
p. 369-370, nota 110), afirmou que o aspec- do passado na Roma atual? Apenas restos,
to atemporal é o mais importante e “assom- rastros, vestígios e fantasmas? Das constru-
broso” aspecto da experiência psíquica. O ções que não mais existem e que, algum dia,
inconsciente é em absoluto atemporal, pois ocuparam esses antigos contornos, não se

146 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 141–150| julho 2023


Scheherazade Paes de Abreu

encontrará nada, ou apenas restos escassos. trata-se mesmo de escrever a discordância,


“O que agora ocupa esses lugares são ruínas, e formalizar os impasses no ponto em que a
mas não são ruínas deles próprios, e sim de literalização3 do real é o principal dispositivo
suas renovações de épocas posteriores, após de formalização científica da psicanálise.
incêndios e destruições” (Freud, 1930/2020, É por efeito de que protozoários não são
p. 312). Nesse sentido, parte do material an- imortais que o leitor pode ler a perplexidade
tigo ainda está enterrado no solo da cidade, de imutabilidade da morte. Quando se
e é, de fato, um tipo de presença do passado. procura lembrar de algo que aconteceu,
Lembremos que a ruína é consubstancial aos aquilo que se ouviu de outros, se confunde
sujeitos como seres falantes, o quer dizer que com experiências próprias. Para todas as vi-
tem a mesma substância. É um objeto falan- das /existe a morte, e para os sobreviventes
te, o objeto que fala, como pronunciou Freud uma morte não representada dentro de si. O
em 1896, em conferência sobre a causa da mais elevado grau do infamiliar [unheimli-
histeria “as pedras falam” (saxa loquuntur!). ch] pode estar associado à morte, ao retor-
A Freud as pedras se permitiam falar. Ou no dos mortos, espíritos e fantasmas, e aos
seja, as ruínas revelam sozinhas seu próprio cadáveres, demonstrou Freud (1919/2019, p.
sentido. Dizer que há ruínas falantes, signifi- 87-89), na medida em que pensamentos per-
ca dizer que há linguagem. E, de modo recí- sistem em não representar a morte. Goethe,
proco, dizer que há linguagem é anunciar a dado como nascido “morto”, a ele somente
ruína nas palavras de Wajcman (2016, p. 58). com muitos cuidados foi possível sobreviver,
Diante do cenário de destruição em e embora tenha vindo ao mundo para mor-
Roma, o que se pode encontrar do primitivo rer, permaneceu vivo. Mas onde há a vida, há
são ruínas de sua renovação de tempos pos- também a morte, essa é uma maneira de lem-
teriores, isto é, são as sobrevivências, são as brar a tese de Freud (1920/2020, p. 137) em
permanências. Para Freud, no aparelho psí- Além do princípio de prazer, na qual o confli-
quico, preserva-se o que é primitivo ao lado to teórico opera frente ao problema da mor-
do que dele surgiu por transformação, ou te, para Freud a meta de toda vida é a morte,
seja, é diferente de uma operação de justapo- o inanimado esteve aqui antes do vivo. Com
sição ou sobreposição de camadas, que ocor- efeito, vejamos em Freud (1917/2021, p. 259)
re na perspectiva da cidade e Roma e na Car- o fragmento clínico exposto no primeiro pa-
ta 52. Os crocodilos ainda vivem entre nós. rágrafo de Uma lembrança de infância em
Freud nos apresentou um problema: o “irre- poesia e verdade: “[…] por imperícia da par-
presentável” e o “absurdo” no inconsciente. teira, vim ao mundo como morto e foram
Note-se que as cidades, Roma ou Londres, precisos grandes esforços para me trazer à
são “inapropriadas” – para comparar com vida”.
passado anímico. “Inapropriada” é a palavra Tomaremos um breve fragmento de caso
utilizada no texto freudiano, de forma dis- clínico, Júlia é também feita de fantasmas,
creta, por isso se faz necessária uma leitura e de mortes não representadas dentro de
em detalhes para não sucumbir à metáfora si. Então, na sessão clínica diz o seguinte:
como puro ornamento. A disjunção que se lembro-me do pequeno filhote de galinha,
observa é a dificuldade topológica de expor aqueles felpudos pintinhos amarelos, e ainda
um tempo contínuo (linear, sucessão) de ma- com poucos dias de vida, podem antecipar
neira espacial, pois o mesmo espaço não su- a nossa própria morte, pois sabemos que os
porta duas formas de preenchimento. E, com
efeito, as dificuldades de representar proces- 3. Para Badiou (2017, p. 20) o irrepresentável nos processos
sos inconscientes residuais que permanecem inconscientes, o Real, é exatamente o que frustra a repre-
de forma atemporal. Se o real é o impasse sentação. O Real se manifesta na ruína de um semblante, e
diante do impasse à formalização do conceito, trata-se mes-
da formalização impossível de se inscrever, mo de escrever a discordância.

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A atemporalidade do inconsciente entre restos e crocodilos que ainda vivem

outros morrem. Então, não sei por que re- Abstract


solvi enterrar a pequena ave recém-nascida. This paper proposes, as mearchaeological ap-
Cavei um buraco no quintal da casa, não tão proach, archeological metaphors about the
profundo, coloquei o animal morto. Apenas timeless aspect of the unconscious. The prob-
duas camadas de terra sobrepostas. Marquei lem that Freud analyzed in “Civilization and
o lugar. O buraco foi raso o suficiente para Its Discontents” and in “Letter 52 from Freud
que em pouco tempo, fosse possível escavar to Fließ” about the unrepresentability of the
e verificar as ocorrências. A terra já se mistu- element that survived alongside, Freud dem-
rava ao corpo, tal como um quiasmo. Ao le- onstrated elucidation in “The Finite and Infi-
vantar o pedaço de pano, que embrulhava o nite Analysis”. The unconscious is absolutely
que restou de corpo, vermes se mexiam, e es- timeless, but what exactly does that mean? Do
tavam vivos, um horror para os sobreviven- times not exist in the unconscious, or to what
tes. O infamiliar é exatamente o que recobre extent do all instants of time coexist? Not by
“sob uma fina coberta” a relação que cada chance, Freud insisted on stating, in many
sujeito vivo tem, com a angústia de morte, writings, that something is preserved – a sur-
demonstrou Freud (1919/2019, p. 87-89). vival, even if it is a rag, a scar, a flash, a piece,
Terminamos, sem a esses fragmentos a remainder, a ruin. But, will all material be
clínicos acrescentar substâncias. Mas uma subject to transformations and rewritings in
análise também exige não outorgar muito later times? In the experience of an analysis,
sentido. Por fim desta escrita, uma análise the crocodiles are our traveling companions.
pode movimentar e produzir restos de ma- A transformation is always incomplete, parts
teriais irrepresentáveis, crocodilos que exis- of an earlier organization continue to exist
tem de forma viscosa. O problema que Freud alongside the more recent one, and old mecha-
(1930/2010) analisou em O mal-estar na nisms may remain untouched by analysis. The
cultura sobre a irrepresentabilidade do ele- remains survive, the grain of reality that re-
mento que sobrevive ao lado e deu prosse- sists.
guimento em A análise finita e infinita. Nesse
texto, Freud (1937/2017, p. 331) estava preo- Keywords: Unconscious, Timeless, Real, Rest,
cupado com a questão da duração do trata- Metapsychology.
mento e dos fenômenos residuais. Para ele,
uma transformação nunca ocorre de forma
completa, ou seja, partes de uma organização
anterior continuam a existir ao lado da mais
recente, e mecanismos antigos podem per-
manecer intocados pela análise, de modo que
sobrevivem os restos. Na experiência de uma
análise, os crocodilos são os companheiros
de viagem. Faltam as palavras, dirão apon-
tando assim o sintoma do Real, mas convém
acrescentar que algo também se diz sempre a
mais, que não era pedido, escreve Jean-Clau-
de Milner (2006, p. 24-25). Um real é, pois, o
grão que resiste a qualquer jogo que pudesse
afetá-lo, aparece sob as espécies enganosas da
permanência e da impenetrabilidade, poderá
se inscrever como cicatriz do que permanece
e resiste. De fato, para Freud (1930/2020, p.
311), “os crocodilos ainda vivem entre nós”.

148 Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 141–150| julho 2023


Scheherazade Paes de Abreu

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de Souza. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2010.
(Obras completas, 12). Scheherazade Paes de Abreu
Psicanalista.
Freud, S. Psicopatologia da vida cotidiana (1904). Mestranda em Estudos Psicanalíticos pelo Programa
Tradução: Elizabeth Brose. Belo Horizonte, MG: Au- de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
têntica, 2023. (Obras incompletas de Sigmund Freud). Federal de Minas Gerais (UFMG).
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
Ianinni, G. Estilo e verdade em Jacques Lacan. Belo (CPMG), filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise
Horizonte: Autêntica, 2012. (CBP) e à International Federation of Psychoanalytic
Societies (IFPS).
Milner, J.-C. Os nomes indistintos. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 2006. E-mail: scheherazade_abreu@yahoo.com.br

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 141–150 | julho 2023 149


Vanessa Campos Santoro

Presos na rede: efeitos do virtual na


subjetividade contemporânea dos adolescentes1
Trapped in the net: effects of the virtual
on the contemporary subjectivity of adolescents
Vanessa Campos Santoro

Resumo
A autora problematiza os efeitos danosos das redes sociais na constituição do sujeito ado-
lescente. A psicanálise pretende soltar o adolescente desse imaginário funesto, acedendo ao
simbólico e ao desejo.

Palavras-chave: Redes sociais, Estádio do espelho, Discurso do capitalista, Ética da psicaná-


lise.

Muito se tem falado sobre os efeitos do mun- de ser diferente. Trata-se de um eu idealiza-
do virtual na subjetividade de nosso tempo. do mas fragmentado.
Aqui, nesta plenária que trata de bebês e O exibicionismo virtual é um sintoma da
crianças, vamos abordar os jovens internau- vida moderna?
tas, presas fáceis das redes sociais. O que o sujeito busca com a revelação de
Redes sociais são espaços de subjetivi- sua intimidade?
dade em que os usuários se socializam e se Nos dias atuais, o sujeito só existe se esti-
reinventam, criando uma imagem, como ver na rede. Ali ele se sente visto e conectado
querem ser vistos, sem nenhuma restrição a uma tribo social. Adquire nova identidade
à veracidade do conteúdo. As redes sociais com seu perfil divulgado e daí é reconhecido
oferecem fontes de objetos de desejo múlti- pelo número de curtidas ou likes.
plos e variados, como o desejo de se conec- Quem de nós não escreveu um diário es-
tar com os semelhantes ou deles se desco- condido dos pais a sete chaves e mostrado
nectar. para poucos amigos? Na atualidade, vemos
As conexões das redes sociais, esse cole- que se rompem os limites entre o público e
tivo ilimitado, geram relações narcisistas, lí- o privado. Os diários virtuais favorecem o
quidas e escapistas. Propiciam a proliferação espetáculo de cada usuário. Facebook, Insta-
do imaginário e o deslizamento metonímico gram, Youtube, WhatsApp, blogs e fotoblogs,
do objeto. entre outros. Assim, o privado descamba
Nas redes os jovens podem viver vidas para o confidencialismo: o público se revela
sucessivas sem nenhum compromisso, haja na exposição da própria vida (exibicionis-
vista a possibilidade de ter várias fotos e vá- mo) ou em ver a vida do outro (voyerismo).
rios perfis, onde a pessoa apresenta a melhor A privacidade vai perdendo o valor. O
imagem, buscando na visibilidade o desejo gozo é se mostrar e despertar a inveja dos

1. Trabalho apresentado no XXIII Congresso do Círculo Brasileiro de psicanálise e III Jornada do Círculo Psica-
nalítico do Pará, de 7 a 11 nov. 2019, em Belém (PA).

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 151–156 | julho 2023 151


Presos na rede: efeitos do virtual na subjetividade contemporânea dos adolescentes

outros, numa presentificação extrema, O homem atual se volta para o virtual e


como nos friendling. Busca-se a aprovação evita as pessoas. Estamos no tempo do su-
do outro através das postagens. Então, o jeito sem subjetividade, que cultua sua ima-
“penso, logo sou” passa a ser “posto, logo gem, interferindo na vida privada dos ou-
sou”. tros, supondo-se narcisicamente onipotente
A propaganda veicula fake news e falsos e inatingível pelo sofrimento, já que arranjou
selfs, tudo em nome do consumismo que fa- uma defesa para tamponá-la rápida e eficien-
vorece a ilusão de estar tudo disponível on-li- temente.
ne. Não há perdas. A promessa veiculada pelo discurso do
A desagregação do Facebook é o oposto capitalismo é preencher o jovem de tudo, ga-
da livre associação. O próprio desejo é supri- rantindo-lhe a satisfação imediata, que torna
mido em favor de uma vontade que se im- o desejo inconsistente e o objeto mais inde-
põe de fora e que é vendida como se fosse do terminado. Falta a falta e sobram falsas faltas.
próprio sujeito. Assim acontece nos cyber- Lacan (1949/1998) contribui para a psi-
bulling e trolling, onde o pensamento crítico canálise, quando teoriza sobre o estádio do
é eliminado mediante a rapidez da imagem espelho. Entre 8 e 12 meses, o bebê é capaz
(flashes), o anonimato e a falta de legisla- de se reconhecer no espelho, com uma ex-
ção específica, produzindo a desinibição da pressão de júbilo e diante do olhar do adul-
agressividade. to que, olhando, valida a imagem antecipa-
Fala-se da adicção sem droga, cyberadic- da refletida ali. Algumas criancinhas olham
ção, com a perda da noção de tempo, repe- atrás do espelho, buscando aquele outro
tições compulsivas e uma relação com a in- que é ela mesma. É a primeira imagem que
ternet como suporte para comportamentos se tem de si. Lacan, nesse artigo, cita Kon-
adictivos. rad Lorenz e sua etologia animal. A imagem
O WhatsApp, muito usado para mensa- da pomba refletida no espelho a faz ovular
gens, divulgação de pensamentos, tem seu como se estivesse diante de um semelhante
valor como meio de comunicação. Nas redes, da sua espécie.
os parentes se frustram menos e satisfazem O imaginário é a sede do narcisismo e
mais o ideal desejado, fazendo da distância do comportamento automático, mas preci-
um contraponto de presença/ausência. As samos dele para nos constituir como sujei-
redes dividem famílias e destroem e cons- tos. A virtualidade é do campo do Eu, que
troem amizades. é sempre, uma construção ilusória. A ética
É inegável o uso de internet como auxiliar da psicanálise é bem diferente. Procuramos
no estudo, no trabalho e na comunicação. A ressignificar a história e a memória de cada
internet oferece meios de aplacar o mal-estar sujeito.
inerente ao ser humano, com seu cardápio No Projeto para uma psicologia científica,
variado de serviços. O problema é o exagero Freud (1950 [1895]/1996). diz que se pode
das soluções imaginárias, o que cria outros obter satisfação com o objeto alucinado. Mas
tipos de mal-estar. Deve-se avaliar se há o ser humano tem que aprender desde cedo
prejuízo funcional na vida diária e detectar a fazer a distinção entre objeto alucinado e
quais motivos levam as pessoas a usar a o objeto relembrado. Disso depende não só
internet e o modo como usam. a sobrevivência física, mas a própria consti-
Transtornos de humor, como irritabili- tuição do eu. Se o objeto real estiver sempre
dade, ansiedade, depressão, transtornos ob- dando satisfação, há alucinação, não há falta,
sessivos-compulsivos, distúrbios de sono e não há desejo.
distúrbios alimentares ocorrem como efeito Segundo Gerez-Ambertín (2017, p. 13),
do mundo virtual sobre a subjetividade do “o individualismo e a coletivização são mo-
jovem. dos de gozo que impõem a decadência do

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Vanessa Campos Santoro

desejo, a fragilização do sujeito do incons- Ou seja, a maneira como a linguagem


ciente e de sua eventual dessubjetivação”. marca o corpo do infans através do traço
Isso acontece em decorrência do impera- unário faz parte da constituição daquele su-
tivo de gozo, que aniquila a malha simbólica jeito. Ele carrega na sua história a memória
na subjetividade tecida pela linguagem. Ani- dessa relação com o Outro.
quila-se os discursos e há proeminência da No caso do atendimento de adolescentes
imagem (olhar) e do real da pulsão. e como analistas, temos que despertar o su-
Sua majestade, o mercado, pretende reins- jeito para suas próprias marcas. Então, nesse
talar o campo perdido das pulsões, fazendo a momento de passagem, o jovem se depara
castração simbólica perder seu efeito, levan- inicialmente com o “despertar da primavera”,
do ao declínio da função paterna e oferecen- o sexual, e a possibilidade de vivê-lo em ato.
do seus gadgets. O sujeito fica esmagado pelo É o corpo na urgência pulsional e convocado
olhar e pelo objeto voz. É o próprio sujeito pela imagem.
quem fica ávido por olhos, para ser olhado. O sexual é polimorfo, múltiplo, infantil
A autora aponta como consequência a perda e perverso. É o recalcado, por excelência.
do pudor e a degradação do saber articulado É o próprio inconsciente que se manifes-
ao desejo inconsciente. ta nas fantasias, nos devaneios, nos atos
Quem faz hoje a função do Nome-do-Pai falhos, nos sintomas. Quando somos sur-
é a identificação ao discurso técnico-cientí- preendidos pelo estranho dentro de nós,
fico. temos que lidar com o retorno do recal-
Dufour (2005, p. 149) afirma que cado e seus temas superegoicos de culpa e
castigo.
[...] o sujeito pós-moderno se representa É importante marcar o papel da fantasia
como não engendrado, no sentido de que ele e do devaneio. Brincar de ser outra pessoa,
se vê na posição de não dever mais nada à ge- insatisfação com a própria imagem e a própria
ração precedente. Muito pelo contrário, até vida (família, contexto socioeconômico),
tudo se passa como se tudo lhe fosse devido. desconhecimento de si e de seus próprios
recursos “O do outro é melhor”. Esses são
Uma frase comum falada pelos jovens, temas recorrentes na análise de jovens, des-
principalmente quando lembramos a eles cambando nas dúvidas quanto à posição se-
deveres para com os mais velhos é a famosa xual e à escolha profissional. Mas aí temos
“eu não pedi para nascer”. um analista que é procurado e que escuta, ao
A passagem adolescente torna-se para- invés da imersão patológica e alienante no
digma de nosso sistema social, porque tanto mundo virtual.
quanto a adolescência. a própria cultura vive Temos na adolescência uma vacilação da
seu tempo de passagem. É o interregno tem- estrutura formada na infância e que só vai
po em que o velho está morrendo e o novo ser validada com a possibilidade de viver o
ainda não pode nascer. sexual em ato. A relação virtual com seu bi-
Lacan (1962-1963/2005) a partir do Semi- narismo e a relação imaginária dificultam a
nário 10: A angústia chega ao objeto a como inclusão do terceiro, garantia de um simbóli-
aquilo que causa o sujeito. co que sustenta a estrutura.
Sabemos que a estrutura e a contingência
Mas é preciso situar o objeto a no campo do determinam o modo de responder ao dis-
Outro por meio da nomeação da marca que curso do capitalismo que usa perversamen-
vai do objeto a a sua passagem para a história te dos meios virtuais para abolir a alterida-
(365-356) que conjuga tempo e constituições de. O discurso do capitalismo vinculado ao
do sujeito. Assim, nominar-se é estabelecer a mundo virtual tampona a falta e transforma
direção de seu desejo (Vorcaro, 2018, p. 73). os jovens em consumidores vorazes que não

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Presos na rede: efeitos do virtual na subjetividade contemporânea dos adolescentes

suportam frustração e buscam fazer um com reação terapêutica negativa e da compulsão


o semelhante. à repetição que aparece no jogar compulsivo.
Daí a impossibilidade de admirar o outro As duas são tentativas de elaboração simbó-
em sua diferença, por não conseguir descen- lica para bordejar o real.
trar de si mesmo. Diante do saber inconsciente temos duas
Pensando moebianamente (Lacan, banda posições: (1) não querer saber nada disso; (2)
de Moebius), há continuidade entre os cam- a magia, a religião e a ciência e tecnologia. A
pos do subjetivo e do social. É na interação psicanálise nos aponta outra posição: quero
com o outro e atravessado pela linguagem saber do meu inconsciente. Ou seja, a psica-
que o sujeito irá se formar como efeito de nálise nos liberta da “rede”.
discurso, isto é, como constituinte do meio O exagero desacerbado das redes sociais,
em que vive. comandado pelo discurso do capitalismo,
Quando o pré-púbere se vê desguarne- nos impede de pensar, de aproveitar as saídas
cido do amparo familiar, que lhe permite possíveis quando se toca no inconsciente.
tempo para construir identificações e ideais Para tal, atendemos adolescentes em análise
comuns e se torna, imaginariamente autos- nos tempos do virtual.
suficiente ele está obedecendo à lei perversa
da cultura. Vemos isso acontecer no trabalho
infantil, na prostituição de menores e no trá- Abstract
fico de drogas, muitas vezes induzido pelas The author discusses the harmful effects of so-
redes sociais. A adolescência é, portanto, um cial networks on the constitution of the ado-
tempo da delicadeza. Como aquele anúncio lescent subject. Psychoanalysis intends to free
nos carros “Atenção! Bebê a bordo”. the teenager from this disastrous imaginary,
Há pouco tempo tivemos no Círculo Psi- reaching the symbolic and the desire.
canalítico de Minas Gerais o trabalho de
Bruno Almeida Guimarães, que acompa- Keywords: Social networks, Mirror stage,
nhou durante anos a supervisão dada por Capitalist discourse, Ethics of psychoanalysis.
Célio Garcia junto ao Tribunal de Justiça
intitulada Clínica Social: Jovens em conflito
com a lei. As soluções dos jovens nas ofici-
nas clínicas davam espaço para formar sabe-
res desconhecidos por eles e desprezados no
laço social. Dando representabilidade a eles,
abriam-se brechas para construir um novo
modo de estar no mundo. Ou seja, em vez
do simbólico no lugar da Lei, os jovens cria-
ram suas “gambiarras”, vistas como soluções
hibridas para bordejar o real.
Freud (1914) nos brinda com Recordar,
repetir e elaborar, de onde se pode extrair
muitos aspectos sobre nosso psiquismo. Re-
cordar nos faz pensar no objeto rememora-
do, nos traços de memória e no modo como
nos constituímos, sempre a posteriori. A re-
petição tem duas vertentes: a repetição dife-
rencial, autômaton, que é o recordar relem-
brando, como na transferência e a repetição
do mesmo, tiquê, pulsão de morte, sede da

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Vanessa Campos Santoro

Referências LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia (1962-


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com a psicanálise. São Paulo: Escuta, 2017. p. 179-194. não fosse semblante (1970-1971). Texto estabelecido
por Jacques-Alain Miller. Tradução: Vera Ribeiro. Rio
BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e de Janeiro: Zahar, 2009. (Campo Freudiano no Bra-
as novas formas de subjetivação. 5. ed. Rio de Janeiro: sil).
Civilização Brasileira, 2005.
LOPES, A. J.; BARBIERI, C. P.; RAMOS, M. B. J.;
DUFFOR, D. R. A arte de reduzir cabeças: sobre a BARRETO, R. A. (Orgs.). Conexões virtuais: diálogos
nova servidão na sociedade ultraliberal (1969/1970). com a psicanálise. São Paulo: Escuta, 2017.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.
VORCARO, A. Identificação e nomeação na adoles-
FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica cência. In: ORNELAS, L. (Org.). Desafios da subjeti-
(1950 [1895]). In: ______. Publicações pré-psicanalí- vidade frente às vicissitudes contemporâneas: práticas
ticas e esboços inéditos (1886-1889). Direção da tradu- psicanalíticas. São Paulo: Instituto Langage, 2018. p.
ção: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 73-83.
347-454. (Edição standard brasileira das obras psico-
lógicas completas de Sigmund Freud, 1).
Recebido em: 25/05/2023
FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego Aprovado em: 03/07/2023
(1921). In: ______. Além do princípio de prazer, psi-
cologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Dire-
ção da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Ima-
go, 1996. p. 81-154. (Edição standard brasileira das Sobre a autora
obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18).
Vanessa Campos Santoro
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (Novas reco- Psicóloga.
mendações sobre a técnica da psicanálise II) (1914). Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
In: ______. O caso Schreber, artigos sobre técnica e ou- (CPMG), filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise
tros trabalhos (1911-1913). Direção da tradução: Jay- (CBP) e à International Federation of Psychoanalytic
me Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 163-171. Societies (IFPS).
(Edição standard brasileira das obras psicológicas Coordenadora dos seminários O pequeno Hans e
completas de Sigmund Freud, 12). O homem dos ratos no 2.º tempo de formação do
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução
(1914). In: ______. A história do movimento psicana- E-mail: vansantoro@uol.com.br
lítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos
(1914-1916). Direção da tradução: Jayme Salomão.
Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard bra-
sileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud, 14).

GEREZ-AMBERTÍN, M. O olhar planetarizado e o


espetáculo onivoyeur (nas conexões digitais). In: LO-
PES, A. J.; BARBIERI, C. P.; RAMOS, M. B. J.; BAR-
RETO, R. A. (Orgs.). Conexões virtuais: diálogos com
a psicanálise. São Paulo: Escuta, 2017. p. 13-27.

LACAN, J. O estádio do espelho como formador da


função do eu (1949). In: ______. Escritos. Tradução:
Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 96-103.
(Campo Freudiano no Brasil).

Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 151–156 | julho 2023 155


Normas de publicação

Normas de Publicação1
1. Serão publicados apenas trabalhos inéditos de psicanálise e textos de colaboradores convi-
dados pela Comissão Editorial. Entende-se como inéditos os trabalhos que não foram publi-
cados – seja no todo, seja em parte – em periódicos, capítulos de livros, anais de jornadas das
filiadas ao Círculo Brasileiro de Psicanálise ou em congressos do CBP.

2. Os trabalhos serão publicados em língua portuguesa ou em língua estrangeira. O autor é


responsável pela tradução para o português do texto, resumo e palavras-chave do seu trabalho.
A revisão de linguagem e a diagramação são responsabilidade da revista.

3. Conteúdo a ser publicado


• Casos clínicos
• Ensaios
• Entrevistas
• Reflexões sobre a psicanálise em articulação com outras áreas do conhecimento
• Resenhas

4. Formatação
• Papel: A-4
• Margens: superior e esquerda: 3 cm; inferior e direita: 2 cm
• Fonte: Times New Roman 12 – em todo o texto
• Espaçamento entre linhas nos parágrafos: 1,5 cm
• Espaçamento entre linhas nas citações: simples
• Primeira linha dos parágrafos: 1,25 cm
• Recuo das citações à esquerda: 1,25 cm assim como os parágrafos

5. Estrutura do trabalho
O trabalho deverá ser obrigatoriamente acompanhado de:
• Título em português e em inglês no corpo do trabalho
• Nome completo do autor ou autora, ou autores
• Resumo antes do texto, com o máximo de 250 palavras, seguido de 3 a 5 palavras-chave;
Abstract depois do texto, seguido de 3 a 5 Keywords
• Referências

6. Referências
• Segundo a ABNT (NBR 6023, de 2018), “tudo o que está citado no texto deve ser referencia-
do e tudo o que está referenciado deve ser citado no texto”. As obras citadas no texto devem ser
alinhadas à esquerda, principalmente por causa dos extensos links. Na Estudos de Psicanálise,
o título das obras fica em itálico.
Obs.: Não se usa mais o termo “bibliográficas” já que são citadas outras fontes além de livros.

1. Atualização em dezembro de 2023 para as próximas edições.

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Normas de publicação

a. Livro

AUTOR. Título: subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação: Editora, ano de publicação.

• LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964).


Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: M. D. Magno. 2. ed. Rio de Janeiro,
RJ: Zahar, 2008. (Campo Freudiano no Brasil).

• LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário de psicanálise. Direção: Daniel Lagache.


Tradução: Pedro Tamen. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

• WINNICOTT, D. W. A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe e o bebê:


convergências e divergências. In: ______. Os bebês e suas mães. Tradução: Jefferson Luiz
Camargo. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1994. p. 79-92.

b. Capítulo de livro

AUTOR DO CAPÍTULO. Título do capítulo. In: Autor do livro. Título: subtítulo. Edição.
Local (cidade) de publicação: Editora, ano de publicação. Número do volume (se houver).
Intervalo das páginas.

• FREUD, S. As pulsões e seus destinos (1915). In: ______. As pulsões e seus destinos.
Tradução: Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 13-69. (Obras
incompletas de Sigmund Freud, 2).

• FREUD, S. Os instintos e seus destinos (1915). In: ______. Introdução ao narcisismo,


Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução e notas: Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 51-81. (Obras completas, 12).

• FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes (1915). In: ______. A história do movimento


psicanalítico, Artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção da
tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996. p. 123-144. (Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).

• IANINNI, G.; SANTIAGO, J. Prefácio. Mal-estar: clínica e política. In: FREUD, S. Cultura,
sociedade e religião, O mal-estar na cultura e outros textos. Tradução: Maria Rita Salzano
Morais. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 33-63. (Obras incompletas de Sigmund Freud).

c. Artigo de revista

AUTOR. Título do artigo. Título do periódico, local de publicação (cidade), número do volu-
me, número do fascículo, páginas inicial e final, mês e ano.

• LOPES, A. J. Sigmund Freud - O manuscrito inédito de 1931 - As aventuras e desventuras


de um texto e as ideias desconhecidas de Freud sobre o cristianismo e a sublimação. Estudos
de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 50, p. 39-58, dez. 2018. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.
org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372018000200004. Acesso em: 06 out. 2021.
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Normas de publicação

• MENDES, E. R. P. Sobre a transmissão da psicanálise nas instituições psicanalíticas.


Reverso, Belo Horizonte, ano 40, n. 76, p. 23-30, dez. 2018. Disponível em: http://pepsic.
bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952018000200003&lng=pt&nrm=i
so. Acesso em: 12 maio 2020.

6. Citações
Em 19 jul. 2023 passou a vigorar a norma NBR 10520 de citações, que a Associação Brasileira
de Normas Técnicas (ABNT) atualizou com o objetivo de facilitar a elaboração dos trabalhos
acadêmicos.

O que foi alterado


A indicação de autoria pessoa física, dentro dos parênteses, deve ser feita em letras
maiúsculas e minúsculas (Freud, 1920/2020). O ponto final deve ser usado para encerrar a
frase e não a citação.

• As citações deverão ser acompanhadas de sua fonte e página(s).

• Citação direta: Quando é extraído um trecho literal, copiado fielmente do original. Nesse
caso, deve-se colocar o sobrenome do autor, o ano da obra consultada e a(s) página(s).
As citações diretas podem ser de dois tipos, conforme o número de linhas.

• Até três linhas


Aparece incorporada ao texto, entre aspas.
a. Pontalis (1998, p. 274) afirma: “Nossas memórias, para serem vivas, nossa psique, para ser
animada, devem se encarnar”.
b. “O objetivo da análise é preparar o paciente para a autoanálise” (Green, 1988, p. 302).

• Mais de 3 linhas
Deve ser destacada com recuo de 1,25 cm da margem esquerda e espaçamento simples – sem
uso de aspas. Ex.:
Em Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte, Freud (1915/2020, p. 99) afirma:

Parece-nos que jamais um acontecimento destruiu tanto os bens preciosos comuns à hu-
manidade, confundiu tantas das mais lúcidas inteligências, rebaixou tão radicalmente o
que era elevado. A própria ciência perdeu sua desapaixonada imparcialidade; seus servi-
dores, profundamente exasperados, procuram extrair-lhe armas para oferecer uma contri-
buição na luta contra o inimigo.

• Citação indireta ou paráfrase: Texto baseado na obra do autor consultado.

a. Diversos autores citam a importância do estudo das perversões para entender as psicopatias
da vida cotidiana (Clauvreul, 1990; Dor, 1991; André, 2003; Corrêa, 2006).

b. A concepção médica de oposição entre o normal e o perverso se desfaz, segundo Corrêa


(2006), à medida que o inconsciente vai sendo revelado.

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Normas de publicação

c. Para a psicanálise, o Sujeito não seria natural como queria Sade, seria um Sujeito irreme-
diavelmente dividido, como demonstrou Freud, ao que Lacan acrescenta que isso aconteceria
pela relação dele, Sujeito, com a linguagem (Lacan, 1962/1998 citado por Leite, 2000).

7. Notas de rodapé
Devem ser usadas apenas as notas explicativas, já que as notas de referência fazem parte do
corpo do texto.

8. Uso de destaques gráficos no texto/recursos visuais


• ‘Aspa simples’: Em destaque do autor do texto.
• “Aspas duplas”: Nas citações do autor consultado e nas transcrições das falas de pacientes,
entrevistados e outros interlocutores.
• Itálico: Em título de obras, palavras de língua estrangeira, em destaque ou grifo do autor.
• Negrito: Somente no título do texto e suas seções.

9. Ao Conselho Consultivo de cada sociedade participante do CBP cabe examinar e aprovar,


em primeira instância, os trabalhos de seus respectivos sócios e, posteriormente, encaminhá
-los ao Conselho Editorial, já dentro das normas de publicação da revista, que decidirá sobre
a sua publicação de acordo com a programação da revista.

10. O Conselho Editorial reserva-se o direito de recusar os trabalhos que não se enquadrem ao
conteúdo (item 3) ou não tenham qualidade editorial.

11. Para submissão, os trabalhos deverão ser enviados por e-mail para cbp.rj@terra.com.br.

Revista Estudos de Psicanálise


Av. Nossa Senhora de Copacabana, 769/504
22050-002 - Rio de Janeiro-RJ
Tel.: (21)2236-0655

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Normas de publicação

Roteiro de avaliação dos artigos

1. Título claro e preciso sobre o conteúdo do artigo.

2. Resumo claro e preciso sobre o conteúdo do artigo, máximo de 250 palavras.

3. Palavras-chave adequadas ao conteúdo, em número máximo de cinco.

4. Abstract e Keywords conforme instruções.

5. Normas para citações e referências conforme instruções.

6. Relevância do tema.

7. Clareza de pensamento.

8. Consistência e coerência na fundamentação teórico-metodológica do trabalho.

9. Linguagem, considerando objetividade, estilo e correção.

10. Aspectos éticos de acordo com a Resolução CNS 196/96 sobre privacidade e
anonimato das pessoas envolvidas, e declaração de conflitos de interesses.

11. O artigo deverá conter conclusão ou considerações finais.

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