Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ESTUDOS DE
PSICANÁLISE
ISSN - 0100-3437
Publicação do
Círculo Brasileiro de Psicanálise
ESTUDOS DE
PSICANÁLISE
Indexada em:
CLASE (UNAM – México)
IndexPsi Periódicos (BVS – PSI) – www.bvs-psi.org.br
Latindex (Sistema Regional de Información en Línea
para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal)
Diadorim
F ic ha C ata l o g r á f ic a
1. Psicanálise – periódicos
Revista Estudos de Psicanálise
Publicação do
Círculo Brasileiro de Psicanálise
EDITORES DA REVISTA
Anchyses Jobim Lopes (CBP-RJ)
Maria Auxiliadora Toledo Garcia Freire (CPMG)
Marli Piva Monteiro (CPB)
Magda Maria Colao (CPRS)
Paulo Roberto Ceccarelli (CPPA)
Ricardo Azevedo Barreto (CPS)
CONSELHO CONSULTIVO
Ana Cristina Teixeira da Costa Salles (CPMG)
Carlos Antônio Andrade Mello (CPMG)
Déborah Pimentel (CPS)
Maria Beatriz Jacques Ramos (CPRS)
Marie-Christine Laznik (ALI-França)
Marta Gerez Ambertín (Universidad Nacional de Tucumán)
Michell Alves Ferreira de Mello (CBP-RJ)
CONSELHO EDITORIAL
Ana Paula Perissé (CBP-RJ)
Elizabeth Samuel Levy (CPPA)
Juliana Marques Caldeira Borges (CPMG)
ENDEREÇO DA REDAÇÃO
Av. Nossa Senhora de Copacabana, 769/504 - Copacabana
22050-002 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: (21) 2236-0655
E-mail: cbp.rj@terra.com.br
Site: www.cbp-rj.com.br
IDEALIZAÇÃO DE CAPA
Renata de Brito Pedreira
Foto: Gil Cerryle Fonkwo
REVISÃO
Português e normalização
Dila Bragança de Mendonça
Inglês
Anchyses Jobim Lopes
IMPRESSÃO E ACABAMENTOS
Gráfica Formato – Certificada – FSC®
Publicação do
Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP
Círculo Brasileiro de Psicanálise
DI R ETORIA 2023–2025
PRESIDEN T E
Anna Lúcia Leão López (CBP-RJ)
VIC E- PRESIDEN T E
Cleo José Mallmann (CPRS)
SEC RETÁRIA
Renata de Brito Pedreira (CBP-RJ)
T ESOU REIR A
Helena Maria Melo Dias (CPPA)
C OM ISSÃO C IEN T ÍF IC A
Déborah Pimentel (CPS)
Eliana Rodrigues Pereira Mendes (CPMG)
Elizabeth Samuel Levy (CPPA)
Maria Beatriz Jacques Ramos (CPRS)
Michell Alves de Mello (CBP-RJ)
AU TOR A C ON V I DA DA
ARTIGOS
NORMAS DE PUBLICAÇÃO
Stetina Trani de Meneses e Dacorso em Arte contemporânea: a mulher nos poemas de Elisa Lucinda
Estudos de Psicanálise n. 29, setembro 2006.
Editorial
Este número da Estudos de Psicanálise exemplifica bem sua missão. Iniciada e mantida há 54
anos, abrange vários estados do Brasil. Trata-se de uma publicação que traz autores das socie-
dades filiadas ao Círculo Brasileiro de Psicanálise, além de outras instituições. A Estudos 59
traz artigos originários de Minas Gerais, Pará, Piauí, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Sergi-
pe. Além da abrangência geográfica, mais importante é o alcance teórico clínico. Ao contrário
de outras federações psicanalíticas brasileiras, o CBP caracteriza-se pela completa autonomia
administrativa entre suas filiadas e ampla diversidade de leituras e práticas psicanalíticas.
Freud e sua obra unem o todo. Tanto no ofício psicanalítico quanto nas diversas leituras
que se seguiram da obra freudiana. Atendo-se apenas aos nomes mais conhecidos, nos textos
publicados há Ferenczi, Klein, Winnicott, Lacan. Herança da diversidade teórico clínica dos
fundadores do primeiro círculo em Viena em 1947 e do primeiro do Brasil, no Rio Grande do
Sul, em 1956. A mesma diversidade une os vários temas abordados nestes artigos. Muitos com
temas psicanalíticos universais, ali outro fundamentado diretamente na experiência clínica de
duas colegas, lá um sobre os povos indígenas da Amazônia e até um que sai da exclusividade
do homo sapiens e o compara com seus primos primatas. O lançamento de um novo número
da Estudos é sempre um dia de comemoração.
Mas o luto também tem de ser celebrado. Cada número da Estudos rememora um nome,
seja um autor muito difundido da psicanálise, seja um nome de peso na história do Círculo
Brasileiro de Psicanálise, seja um colega que se foi há pouco e deixou saudade em seu círculo.
A Estudos 59 homenageia Stetina Trani de Meneses e Dacorso, colega do Círculo Brasileiro de
Psicanálise – Seção Rio de Janeiro, que nos deixou em maio de 2023.
Todos os seres humanos são únicos. Mas alguns são mais. Stetina, há mais de duas déca-
das, era membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro. E a partir
dele presidiu o Círculo Brasileiro de Psicanálise entre 2010 e 2014. Mas era mineira e nesse
estado viveu e trabalhou toda a sua vida. Embora entre os cariocas haja controvérsias a qual
estado a cidade de Juiz de Fora realmente pertence. Seu lado mineiro era comprovado com a
assiduidade anual, durante décadas, às jornadas do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. E
sua por sua intensa participação, como docente e organizadora, na seção psicanalítica da SO-
BRAP (Instituto Brasileiro de Psicanálise, Dinâmica de Grupo e Psicodrama – Regional Juiz
de Fora), com a qual teceu várias pontes com o CBP-RJ.
Além do vasto conhecimento teórico e da capacidade ímpar de saber transmiti-lo, Ste-
tina jamais se afastou da clínica. Durante cerca de um ano, há mais uma década, aos sábados
tínhamos sua presença em uma supervisão clínica coletiva. Não foram gravadas, mas ficaram
consciente ou inconscientemente em todos que assistiram. Ficou em nossa memória a radica-
lidade de Stetina quanto à falta de pressa que se deve ter na clínica. Um bordão seu repetido
nas supervisões: “isto vai aparecer daqui a uns seis ou sete anos”.
Homenagear Stetina é lembrar sua forte personalidade, sua expansividade, seu bom hu-
mor e sua vasta experiência psicanalítica.
Resumo
Um fragmento de um caso clínico é apresentado para se pensar os fracassos do analisando e da
analista. Intercorrências na vida social e profissional do analisando levaram a uma interrupção
da análise. Haveria análise sem fracassos? Ficou uma escrita de textos livres do analisando e a
gentileza da analista em ler e comentar os escritos.
Há (o) fracasso na clínica? Ah! O fracasso na das quais ela é capaz, para poder, enfim, se
clínica... Não somente há, como também nos entregar à tendência ao retorno ao não ser.
traz o espanto e o assombro da polissemia: Por isso Freud acrescentou que
Ah! Quantos fracassos traz o psicanalisar! “o organismo deseja morrer apenas do seu
Será que haveria uma clínica sem fracas- próprio modo”. A expressão “morte natural”
sos? A psicanálise lida com as perdas, os in- parece implicar a percepção de que há algo na
sucessos de quem é analisando e os insuces- vida que aspira a essa morte que brota dela
sos da analista. Isso se revela na transferên- mesma sem nenhuma outra interferência ex-
cia, na mudez, no silêncio. Frustração, falta, terna.
ansiedade, sonhos e pesadelos.
E há o fracasso da palavra, do não nomea- Fracasso deriva de uma mistura do ita-
do. Do estranho sentimento que angustia e liano das palavras latinas frangere, “quebrar”
dói. O fracasso de não falar, de não pronun- e quassare, “sacudir, chacoalhar, bater repe-
ciar a palavra, do indizível. De não saber no- tidamente” e, por extensão, “ameaçar”. Essa
mear os sentimentos. origem etimológica da palavra estaria muito
A psicanálise vai investigar esses tijolos ligada ao propósito da clínica da psicanáli-
partidos e rotos das muitas casas que somos se. Quebrar e romper amarras e opressões.
e habitamos. A análise pode dar sentidos e Quebrar padrões rígidos. Quebrar rotinas e
formas aos tijolos esfacelados. Pode emendar repetições. Fraturar para olhar os pedaços
pedaços, substituir outros, mas a casa é sem- e remontar com um outro olhar. A transfe-
pre feita de remendos. Feita de labirintos e rência pode trazer rupturas. E o “bater repe-
de uma montagem de mosaicos das nossas tidamente” estaria associado à compulsão à
muitas partes. repetição.
A doença pode ser um fracasso do corpo, Ao falar a respeito da transferência Freud,
da medicina, da cura. E a morte? Seria o nos- em Além do princípio de prazer (1920/1996)
so maior fracasso? Uma entrega ao não ser, usa pela primeira vez o termo “compul-
como nos diz Jorge (2010, p. 165): são à repetição” [Wiederholungszwang].
São experiências reprimidas, das quais o
O sujeito deseja morrer, mas morrer significa paciente não pode recordar. São repetidas
aqui esgotar dentro do interior da vida todas como vivências atuais na situação analítica,
as suas capacidades de perseveração no ser após a repressão ter sido um pouco atenuada.
Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 59 | p. 17–24 | julho 2023 17
Da vida de sites a um sítio na Serra
vido. Assim, podemos pensar nas rupturas mudança da capital, a falência dos seus em-
e repetições trazidas pela palavra “fracas- preendimentos de trabalho, o rompimen-
so”. Os aspectos que poderiam identificar o to de longos relacionamentos de amor e de
paciente foram mudados sem prejuízo para amizade, a morte do seu médico espírita em
a discussão do caso e sem possibilidade de quem tinha total confiança, a traição de um
permitir algum tipo de semelhança. irmão, o calote da sócia, a batida de um carro
Atendi um analisando, aqui nomeado com perda total, uma infiltração na sua casa,
Beni, ao mesmo tempo em que ele mantinha que destruiu arquivos fotográficos, os senti-
o tratamento psiquiátrico para acompanhar mentos suicidas, a inadimplência de inquili-
suas crises de depressão e surtos. Inicialmen- nos, o despejo de um apartamento alugado,
te eram três vezes por semana, até que ele se um infarto, covid-19 por duas vezes.
estabilizou emocional e profissionalmente. Isso tudo ampliou a impotência, a fobia, a
Começamos a ter sessões duas vezes por insegurança e a tristeza.
semana e, depois, uma. Com isso, Beni teve E da minha parte, como me sentia? Ora
bons momentos, distanciado dos tratamen- frustrada com os impedimentos, ora anima-
tos psiquiátricos, da medicação e das inter- da com pequenas coisas. Os fracassos davam
nações. Ele conseguiu recuperar o trabalho sinais nas interrupções da análise, quando
(empresa de produção) do qual ficara afas- ele teve que se mudar de bairro, e depois de
tado anos por causa do medo e de outras cidade. Ele foi se distanciando, da Zona Nor-
ameaças persecutórias quando iniciou a aná- te da cidade, para o subúrbio, para a perife-
lise comigo. ria, para a Baixada, para a Serra Fluminen-
Foi um processo longo, marcado por se. Quanto mais distanciamento da “Cidade
rompimentos de relações amorosas, distan- Maravilhosa”, do “Beni maravilhoso, cheio
ciamento da família, perda do pai, poste- de amizades”, mais impactado ele ficava pe-
riormente, da mãe, internações, mudanças las coisas e pelas pessoas que perdia. Ou que
de casa. Ora com autonomia, custeando sua sumiam, ou se afastavam. Para ele, eram fra-
vida; ora morando de favor, em um quarto cassos profundos, no fundo de um poço sem
da casa da irmã, e até na casa de uma ex-ba- fim, como nomeava.
bá, por exemplo. Quando fiz a mudança fí- Para mim, os fracassos impediam o de-
sica do meu consultório, ele estranhou bas- senvolvimento da análise e me deixavam
tante e trabalhamos isso na transferência. As com um sentimento de impotência. O que eu
mudanças eram recebidas como perdas, com poderia fazer? Para além de acolher, de escu-
sofrimento e não possibilidade de reparação. tar, de estar disponível nos dias combinados,
Ele namorou, teve vida social, manteve de nomear as mudanças, de trabalhar os so-
seu espaço duplo de morada e escritório com nhos. Manter a análise com aquele furacão
grande movimento como gostava: reuniões de perdas reforçaria a não possibilidade de
de trabalho, finais de semana com amigos, seguir o trabalho analítico? Às vezes, parece
e viagens de lazer. Além disso, fotografava e que interromper o que não pode acontecer
fazia poemas. Houve uma época em que ele pode ser menos doído. Deveríamos, ali, ter
desenvolvia um correio semanal de envios colocado um fim? Fomos tentando fazer o
de foto-poema, por e-mail. Foi um perío- possível, o que significava driblar com o qua-
do repleto de afazeres que apreciava e vivia se impossível.
cercado de familiares. Viveu inesquecíveis Em relação à distância da capital, onde foi
encontros, relembrados com nostalgia nos morar, podemos olhar como algo dúbio. Por
momentos melancólicos. um lado, ele perdia autonomia, sim. Coinci-
Ele encarou também fracassos, principal- de com o momento em que não trabalhava e
mente nos últimos anos: a perda da mãe, a vivia da renda de um aluguel. E dependia da
saída do bairro onde morou a vida toda, a irmã ou do irmão para administrar sua vida.
Por outro lado, ganhava qualidade de vida ele deseja falar comigo deve ser pelo apare-
longe do centro urbano da capital. Podia ir lho da irmã. Ou por um aparelho adquiri-
a pé a lugares, andando poucos metros, sem do de segunda mão, com poucos recursos
depender de companhias. tecnológicos.
Para ele, tudo isso representava um sen- Teve um momento em que ele começou a
timento paradoxal, confuso. Beni tinha di- pesquisar blogs e sites sobre suicídio e doen-
ficuldades em lidar com mudanças, mesmo ças psiquiátricas, na busca de entender seus
que fossem para circunstâncias mais saudá- (im)possíveis diagnósticos apontados por
veis. No interior, onde está, conhece os mé- diferentes médicos. Numa dessas vezes, ele
dicos, os laboratórios, as farmácias. Mora me ligou atordoado com o que leu. Chorava
numa casa-sítio, com quintal, jardim, ani- compulsivamente e se sentia perdido. Per-
mais domésticos. guntei para que ele fazia aquelas pesquisas
Os fracassos na análise seguiam: quan- na internet se não se sentia bem. E o que
do ele precisava diminuir a quantidade de ele ia fazer com aquilo? Respondeu-me que
atendimentos e não conseguia pagar nem eram curiosidades ou tampões para a sua
dar continuidade ao tratamento. Quando angústia. Sinalizei que as consultas a sites na
foi compelido a se entupir de medicamentos internet estavam intensificando os sintomas
e até se internar. Quando se deprimia e pa- ameaçadores. E que era uma repetição de
recia que a vida havia parado. Quando não coisas persecutórias e assustadoras. Parecia
conseguia um aparelho para fazer atendi- ser a escolha da companhia de um fantasma.
mentos virtuais, nem contava com recursos E aquilo era monitorado pela irmã? Ou seria
para pagar uma internet. Quando queria vir incentivado por ela?
à análise e não contava com uma pessoa para Percebi que surtiram efeito as questões
acompanhá-lo e estava com fobia social. Já que coloquei porque ele diminuiu a com-
não conseguia se deslocar sozinho pela cida- pulsão para buscar sites (isso foi relatado
de grande. Nem se deslocar da pequena cida- por mensagens escritas). Quando tivemos
de para o meu consultório. oportunidade de conversar, falamos algu-
E o fracasso maior (dele? meu?): Beni foi mas vezes sobre as escolhas dele, inclusive
obrigado a se mudar para a cidade do inte- por buscas na internet quando tinha acesso
rior do estado, onde mora com a irmã e a a um aparelho. E o que representavam aque-
companheira dela. Isolado, com fobias e de- las pesquisas? O que Beni procurava e não
pressão, depois de algumas internações em encontrava?
hospitais psiquiátricos, vive preso, onde não Substituir as pesquisas foi uma das ques-
faz atividades físicas nem trabalha. Está re- tões que trabalhamos com espaços de duas a
cluso e insatisfeito. Não convive com a vizi- três semanas entre os atendimentos por tele-
nhança, tem uma relação ruim com a irmã e fone. A análise não era por vídeo, nem sema-
a cunhada. nal. Acontecia quando era possível.
Não usa o transporte público, não tem E que tal transformar palavras assustado-
recursos financeiros para otimizar a sua so- ras em outras coisas? Ou que tal voltar a criar
brevida. E não se sente seguro com os des- textos, como havia feito antes? Ler poemas,
locamentos na pequena cidade. Sua irmã com a pesquisa de blogs e sites de poetas. Ele
recebe um valor de aluguel de um imóvel fazia isso anos atrás, quando desfrutava de
comercial dele, quantia usada na casa e na momentos lúdicos e retornos satisfatórios no
manutenção da saúde de Beni (plano de correio de envios a alguns amigos e conhe-
saúde básico e remédios). Ele perdeu o con- cidos.
trole dos ganhos e gastos, do mover-se com Beni não dispõe de acesso a uma biblio-
autonomia. Suas ligações e contatos são vi- teca nem a livros. E não quer frequentar a
giados pela irmã, segundo ele me conta. Se biblioteca pública da cidade serrana. Está
Sobre a autora
Ninfa Parreiras
Psicanalista.
Membro titular da Sociedade
de Psicanálise Iracy Doyle (SPID).
Coordenadora do seminário
Conversa entre a Literatura e a Psicanálise.
Participante da Coordenação
do Conselho Gestor da SPID.
Graduada em letras e psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Mestre em literatura comparada pela Universidade
de São Paulo (USP).
Foi pesquisadora da Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil (FNLIJ).
Foi pesquisadora sobre o desamparo na Biblioteca
Internacional da Juventude de
Munique, na Alemanha.
Agraciada em 2019 com o 2° lugar no Prêmio
Biblioteca Nacional, categoria criança, da Fundação
Biblioteca Nacional.
Atuou nos projetos Caminhando: atendimentos na
Creche Cristo Redentor, no Rio de Janeiro,
e PSIFERIA: supervisão
ao grupo psicanalítico social, em Florianópolis (SC).
Autora de obras literárias e ensaios sobre literatura e
psicanálise.
Autora de mais de 15 obras para crianças: premiadas,
traduzidas e adquiridas em compras governamentais.
Autora de mais de 20 obras teóricas sobre leitura,
educação infantil, literatura, psicanálise.
Organizadora de antologias e de coletâneas literárias.
Como produtora cultural, fundou a Letra Falante
(grupo de pesquisa de literatura infantil e juvenil),
o sarau Poesia Andarilha (desde 2013), a Cartonera
Carioca (selo de livros artesanais), o projeto Recordar
Infâncias, a Família Literária.
Tem artigos publicados em revistas e livros em
países como Brasil, Colômbia, Alemanha, Argentina
e Suécia nas áreas de literatura e psicanálise,
desamparo, literatura infantil, sonho e cinema, e
psicanálise, educação infantil, infância.
E-mail: ninfaparreiras@gmail.com
Resumo
A importância de Darwin na obra freudiana. A primatologia, ciência incriada ao tempo do pai
da psicanálise. Classificação geral dos hominídeos, destacando as duas espécies mais próximas
aos seres humanos: chimpanzés e bonobos. Paralelos entre a sexualidade segundo os Três en-
saios e as descobertas sobre comportamento desses primatas. A frequência da bissexualidade
observada nessas duas espécies conflui com as conclusões de Freud e as pesquisas de Kinsey.
Frequência e variedade de condutas sexuais em ambas as espécies, amplamente contrárias e/
ou superando a necessidade para reprodução. Também confluindo com a descrição da sexua-
lidade perverso polimorfa. Bonobos como espécie que é governada por fêmeas alfa. Diferença
entre sexo e gênero também observada em ambas as espécies próximas de primatas. Criação
do conceito de sublimação por Freud tendo similaridade com o de “cola social” observado pe-
los primatólogos. O parentesco entre o conceito freudiano de pulsão com o biológico de neo-
tenia – capacidade de aprendizado a vida inteira. O mito do patriarcado, desde os Três ensaios
até Moisés e o monoteísmo, desmitificação como culturalmente recente e não sendo biológico.
o que pode ocorrer em mamíferos menos A candidata perfeita a esposa não deve ter
complexos. Mas a sexualidade dos primatas tido nenhuma experiência sexual anterior ao
também foi, até recentemente, condiciona- matrimônio. Crença consciente ou incons-
da por estudiosos a um papel meramen- cientemente hipócrita, porque os homens
te reprodutivo: puro instinto à procura de não lhe obedecem, e a maioria sabe que, para
um objeto específico predeterminado. Esse eles, desde o início que não será obedecida.
desejo só ocorreria durante limitado perío- Além domais, previamente ao matrimônio,
do e só para a sobrevivência da espécie. E os homens já tiveram várias experiências se-
muitos primatólogos ainda acreditam desse xuais. Contudo, impõem toda forma de res-
modo que seja a sexualidade dos chimpan- trição às mulheres.
zés e bonobos. Apesar de sua prescrição milenar, todo
esse sistema parece ter frequentemente fun-
Ela não inclui amor, diversão, gratificação e cionado pior do que se supõe. Freud discorre
só pode ocorrer entre um macho maduro e sobre a repressão sexual do sexo das mulhe-
uma fêmea fértil. Talvez projetemos nos ani- res na adolescência e início da idade adulta,
mais o tipo de vida sexual que pensamos que acarretando um descompasso que, quando
deveríamos ter. [...] Deixamos para lá o fato ocorre o casamento legal, religiosa e social-
de que em algumas espécies, como os bo- mente reconhecido, leva ao fracasso a sexua-
nobos, três quartos da atividade sexual não lidade do casal. O domínio do patriarcado
têm relação alguma com a reprodução (Waal, permite que todo poder e lucro do trabalho
2023, p. 412). feminino (acima de todos o trabalho do-
méstico) aumente muito o capital exclusiva-
Mesmo sem ser adepto da psicanálise, mente utilizado por homens. Mas conduz ao
Waal acertou em cheio o uso do termo “pro- fracasso da parceria, da felicidade e explode
jeção”. A sexualidade animal sempre foi vista em neuroses e transtornos psicossomáticos
de uma perspectiva meramente funcional, de todos os tipos. O mundo em que viveu e
tendo como único objetivo a reprodução. sobre o qual escreveu Freud.
Hoje é tida como mera projeção, racionali- Mas, igual a muitas outras áreas do co-
zando a suposta superioridade do sexo mas- nhecimento, e em países mais democráticos,
culino, que em realidade só ocorre quando onde também obrigatoriamente também se
predomina o patriarcado. Por essa visão o separa o estado da religião, o sexo feminino
sexo masculino deve concentrar em si todo também penetrou na primatologia. Comenta
poder econômico e militar. Um dos objetivos Waal (2023, p. 325):
principais é tentar garantir que sua heran-
ça irá para seus filhos biológicos. E para tal [...] acho bom que a antropologia moderna
garantia, a liberdade das mulheres deve ser tenha deixado para trás seu enfoque andro-
completamente cerceada. cêntrico. Como na primatologia, tem havido
Só podemos especular o que veio primei- tem havido nessa disciplina um afluxo de mu-
ro: o patriarcado exclusivo ou o monoteísmo. lheres e uma consequente mudança de pers-
A base das religiões monoteístas originais é pectiva.
legitimar a figura de um deus masculino. E
chega ao paroxismo de que o sexo só deve Mas a atividade sexual amplamente ultra-
ocorrer quando autorizado pela instituição passando a quantidade de relações necessá-
religiosa, apenas para reprodução e sem con- rias para a reprodução não é exclusiva dos
cupiscência. Deste modo, partir de Santo humanos, chimpanzés e bonobos. No entan-
Agostinho temos uma das mais exatas e radi- to, o primeiro dos dois itens mais importan-
cais definições do patriarcado sacramentado tes recentemente reforçados ou descobertos,
pelas religiões monoteístas. é que em todos – chimpanzés, bonobos e hu-
sexo biológico, escolha objetal e gênero fo- pulavam com ela. [...] Sabia sentar-se apru-
ram indiretamente intuídas no primeiro dos mada como um macho. [...] Quando eriçava
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. os pelos [...] ela era bem intimidante, graças
Freud fala das escolhas objetais pelo sexo aos ombros largos. [...] Como Donna também
oposto ou pelo mesmo sexo, ou ambas. Mas nunca se masturbava, provavelmente não ti-
que a bissexualidade ou a homossexualidade nha um forte impulso sexual. Ela nunca foi
várias vezes não são acompanhadas por mãe. [...] Quando os machos começavam suas
exibições de força [...] Donna se juntava ao
[...] alterações paralelas tanto em qualidades coro e arremetia ao lado deles. [...] Os gritos
mentais, pulsões e traços de caráter que ca- de Donna eram mais agudos que os dos ma-
racterizam o sexo oposto. [...] Nos homens a chos, mas só o fato de ela os emitir já era atípi-
mais completa masculinidade mental pode co para uma fêmea. Agindo como camarada
estar combinada com a inversão (Freud, dos machos adultos, ela podia adquirir uma
1905/1978, p. 142, tradução nossa). dominância temporária. Donna ocupava uma
posição intermediária na hierarquia, mas até
Waal acrescenta também o mesmo con- as fêmeas superiores saíam do caminho [...].
tínuo, há tempos observado nos humanos, (Waal, 2023. p. 77-80).
para caracterizar comportamentos de nos-
sos primos primatas mais próximos. Conclui Além da questão de que o conceito de gê-
que não apenas os humanos têm gênero, mas nero, diferenciado de sexo, também pode
também chimpanzés e bonobos. ser aplicado a chimpanzés e bonobos, há
várias semelhanças entre algumas das ca-
Nas minhas décadas de trabalho com grandes racterísticas de Donna e as transexualida-
primatas, conheci vários deles que era difícil des humanas. São paralelos entre o sapiens
classificar como feminino ou masculino. Em- e os primatas parentes mais próximos que
bora minoritários, parecem estar presentes seguramente precisam de mais pesquisa.
em todos os grupos. [...] Infelizmente não te- Mesmo assim destrói o mito moralista, de
mos ideia de quanto são comuns indivíduos que o que é contrário à natureza (contrana-
de gênero inconforme, pois os cientistas pro- tura) e apenas ocorre nos seres humanos
curam comportamentos típicos (Waal, 2023, seria perverso.
p. 82-83).
Freud e os Três ensaios -
Além da separação entre sexo e gênero da sublimação à cola social
não ser exclusiva dos sapiens, mas também Uma vez que a sexualidade dos primos ho-
exposta por chimpanzés e bonobos, pois ne- minídeos em muito ultrapassa a necessária
les há uma diversidade de gênero ao longo de para a reprodução, também ocorre aquém e
um contínuo. E nela também Waal observou além de práticas genitais. A sexualidade dos
um comportamento até recentemente pou- bonobos, em menor grau à dos chimpanzés,
co aceito ou compreendido entre os sapiens: possui a função de que o sexo é “sua cola so-
algo semelhante à transexualidade. O prima- cial” (Waal, 2023, p. 415).
tólogo relata suas observações de uma chim- Mas o conceito da sexualidade enquanto
panzé apelidada de Donna. “cola social” é aplicável também aos huma-
Selecionamos algumas de suas observa- nos. Desde a libido que une grupos e inte-
ções sobre Donna: resses comuns, até sua transformação em ob-
jetos e comportamentos que aparentemente
[...] uma fêmea robusta de atitudes mais não possuiriam origem sexual, mas sem os
masculinas do que as outras fêmeas. [...] Os quais não se vive. Práticas cuja origem é de-
machos não mostravam interesse e não co- nominada genericamente por Freud de “su-
Considerando o quanto temos em comum [...] No entanto vejo com ceticismo esse tipo
com os bonobos, inclusive nossa célebre ne- de interpretação, pois a palavra “instinto” im-
aos invertidos (termo utilizado por Freud) conexão com o postulado freudiano da pul-
“buscarem como objeto sexual um homem são de morte, comenta Waal (2003, p. 286)
jovem que lembre eles mesmos, o qual tam- em seu livro mais recente:
bém possam amar, como suas mães amaram
a eles mesmos” (Freud, 1905/1978, p. 145). A ciência ainda vê a violência e a guerra
O investimento narcísico no pênis e o como indissociáveis da herança da nossa es-
medo da castração e também foram descri- pécie, apesar da escassez de evidências des-
tos por Freud nos Três ensaios sobre a teoria se tipo de comportamento durante a nossa
da sexualidade e posteriormente fundamen- pré-história. O registro arqueológico, por
tados no caso clínico por ele ilustrado: A exemplo, não contém evidência alguma de
análise de uma fobia num menino de cinco matança em grande escala antes de 12 mil
anos, mais conhecido como O pequeno Hans anos atrás. Isso torna altamente especulati-
(1909). vos os cenários que pressupõem que a guerra
Usando o tipo de interpretação um tanto está em nosso DNA.
selvagem de antigos psicanalistas, os defen-
sores fanáticos do patriarcado negam em si Em vários de seus livros, artigos e car-
mesmos qualquer acesso ao muito humano e tas, Freud escreveu de modo extremamente
universal medo que os homens têm de serem crítico contra as religiões. Mas de todos es-
concretamente privados de seu pênis. Assim critos, o que mais se aprofundou foram os
como recalcam e refutam qualquer traço de três ensaios que compõem um de seus dois
homo ou bissexualidade. últimos e inacabados livros: Moisés e o mo-
Mas o medo inconsciente ou não da cas- noteísmo (1939). Herdeiro final do primeiro
tração pode ter construído algo muito além livro sobre o tema Totem e tabu, Moisés e o
de quadros psicopatológicos individuais. Po- monoteísmo possui uma de suas ênfases em
demos acreditar ou não na postulação freu- um termo, tanto quanto tenhamos conhe-
diana de uma pulsão de morte. Mas as cren- cimento, não usado antes na obra de Freud:
ças discricionárias do patriarcado justificam “imperialismo”.
e potencializam todas as formas agressão Citando diretamente Freud (1939/1978,
contra os inferiores e “diferentes”. Passa-se da p. 21, 59, 65):
agressividade necessária para a sobrevivência
e a defesa, para outro nível, ao qual se pode Este imperialismo refletiu-se na religião
associar palavras como: violência, aniqui- como universalismo e imperialismo. [...]
lação, extermínio, apagamento, selvageria, Como resultado das conquistas da décima oi-
entre outras, alcançando mesmo a autodes- tava dinastia, o Egito tornou-se um império
truição. O que infelizmente lembra nossos mundial. O novo imperialismo refletiu-se no
primos chimpanzés, capazes de tantas con- desenvolvimento das ideias religiosas, senão
dutas amorosas individuais e grupais – fortes de todo povo, pelo menos na camada dirigen-
vínculos afetivos com os de sua espécie e até te e intelectualmente mais elevada. [...] No
de outras, adotar órfãos, consolar quem sofre Egito, tanto quanto podemos compreender,
a perda de uma cria – mas também capazes o monoteísmo cresceu como um subproduto
de surtos de agressividade assassina contra do imperialismo.
outros grupos de sua própria espécie.
O perigo da crença na pulsão de morte O monoteísmo judaico, que embasa o
freudiana é ser cooptada por alguma expli- cristão e o islâmico, configura-se na adora-
cação biologizante ou, como está na moda, ção de um deus único que quase sempre é
‘neurocientífica’. Contudo, toda obra de Waal descrito em termos masculinos nas fontes
tende a colocar o adquirido como tão ou bíblicas. E assim representado quando há
mais importante que o inato. E sem qualquer autorização para fazê-lo por uma imagem.
FREUD, S. Moses and monotheism: three essays WAAL, F. The bonobos and the atheist – in seatch of
(1939/1934-1938). In: The Standard Edition of the humanism among the primates. New York; London:
Complete Psychological Works of Sigmund Freud, v. Norton & Company, Inc., 2013.
XXII. London: The Hogarth Press and the Institute of
Psycho-Analysis, 1978. WAAL, F. Eu primata. Tradução: Laura Teixeira Motta.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
FREUD, S. O tabu da virgindade (1918)
(Contribuições para a psicologia da vida amorosa
III). In: ______. Amor, sexualidade, feminilidade. Recebido em: 20/05/2023
Tradução: Maria Rita Salzano Morais. Belo Aprovado em: 05/06/2023
Horizonte: Autêntica, 2018. p. 155-178. (Obras
incompletas de Sigmund Freud, 7).
Sobre o autor
E-mail: anchyses@terra.com.br
Resumo
Este trabalho aborda o lugar da supervisão de atendimentos psicanalíticos de crianças e ado-
lescentes na formação do analista, realizando uma articulação entre a constituição do analista
e a constituição do sujeito. Também apresenta questões sobre a especificidade da supervi-
são de atendimentos psicanalíticos com crianças e adolescentes e seus efeitos no analista em
formação, que está encontrando o seu estilo. Para essa reflexão, fazemos uma costura com a
vivência como supervisora da clínica do Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância e Ado-
lescência (NEPsI), que pertence a Clínica Social do Círculo Brasileiro de Psicanálise – seção
Rio de Janeiro (CBP-RJ).
1. Trabalho apresentado na VIII Jornada do NEPsI e I Jornada do NEPIA: Clínica psicanalítica com crianças e ado-
lescentes no século XXI, Rio de Janeiro, 23-24 jun. 2023.
adolescentes, além de acesso a outros espa- sempre encontra a rocha da castração, sem-
ços de troca, como jornada, apresentação de pre ficam restos inanalisáveis.
trabalhos, encontro clínico e outros eventos. Stein apud Garrafa (2006, p. 84-85) afir-
Também pontuamos a importância das ma:
reuniões das clínicas sociais do CBP, desde
2021, com frequência mensal. Não temos Percebeu-se, portanto, que as extensas narra-
uma pauta, os assuntos vão surgindo. Os tivas das sessões informam mais a respeito do
participantes dessas reuniões são os coorde- analista, e de sua própria análise, do que de
nadores das clínicas sociais das seis filiadas seu paciente, pois os atendimentos são relata-
pertencentes ao CBP (CBP-RJ; CPRS; Cír- dos tal como o analista pode escutá-los.
culo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG;
Círculo Psicanalítico da Bahia - CPB; Círcu- Nessa direção, Mendes (2012, p. 53) vai
lo Psicanalítico de Sergipe - CPS e Círculo trazer a supervisão como “um lugar de ela-
Psicanalítico do Pará - CPPA). São momen- boração de saber do analista: antes, durante,
tos ricos de troca entre os supervisores das e depois de cada encontro com o supervisor”.
filiadas que ajudam a sustentar o nosso lugar A supervisão não como uma sucessão de en-
de supervisor. Um continente para as angús- contros, e sim como um processo.
tias dos supervisores, para que possam dar
continência para seus supervisionados. Um momento de elaboração de saber e de
Destacamos outro ponto interessante: a confronto com a elaboração de outro analista,
escassa bibliografia sobre o tema da super- não como uma prova ou exame, mas de con-
visão na clínica psicanalítica com crianças e frontação de sua pertinência e coerência sob a
adolescentes. E por isso, como sustentação prova da clínica (Mendes, 2012, p. 53).
teórica, num chão freudiano, recorremos ao
texto O psicanalista e o sujeito em formação: Um espaço que articula o caso a caso com
Supervisão e análise com crianças, de Adela a teoria psicanalítica, ou seja, a supervisão
Judith Stoppel de Gueller. Também utiliza- “articula o universal da teoria ao particular
mos outros autores: Daniel Delouya e Eliana da clínica e reabre o lugar da escuta, isto é,
Mendes. o lugar do analista para a subjetividade em
Refletir sobre o lugar da supervisão no questão” (Mendes, 2012, p. 54).
ofício do analista nos leva a pensar no tripé Gueller (2020) contribui nos apresentan-
analítico. Se um dos pés fica bambo, a pol- do uma importante reflexão: O que significa
trona do analista bambeia. Nesse sentido, uma articulação entre teoria e clínica? Não é
recorremos a Freud para conseguir mais fer- esse o espaço da supervisão?
ramentas a fim de realizar a articulação da O primeiro modelo de supervisão sur-
vivência da clínica psicanalítica com crian- giu na Clínica de Berlim, onde trabalha-
ças e adolescentes, a formação do analista e o vam Max Eitingon e Karl Abraham, que
lugar da supervisão. propuseram que a supervisão fosse feita
Mendes (2012) nos diz que Freud, como por um analista diferente do que condu-
fundador da psicanálise, não podia contar zia a análise do analista em formação, para
com o auxílio de um supervisor, mas fre- promover a diversidade. Essa proposta foi
quentemente podemos vê-lo reavaliando o formulada no Congresso de Budapeste, em
seu trabalho junto com os pacientes. Sabe- 1918, ratificada em 1920 por Max Eitingon
mos que o lugar do terceiro entre ele e seus e delineou o tripé clássico da formação em
analisandos era desempenhado pela escrita psicanálise: análise pessoal, estudo teórico
de sua obra. e supervisão.
Freud (1937/2017), em A análise finita e a A proposta considerava que mais super-
infinita, ressalta que a análise é infinita, pois visores e linhas teóricas aumentam o leque
por de experiência clínica, um certo dom da formação de escutar o que fala a sua criança,
transmissão e familiaridade com a metapsi- assim como ajudá-lo a encontrar o seu pró-
cologia. Por isso, concordamos com Delouya prio estilo, a constituir-se enquanto analista.
(2020) que diz que enquanto supervisor aju- Dessa forma, oportunizando que mais crian-
damos ao supervisionado a se tornar analista ças e adolescentes encontrem mais espaços
para o seu paciente. Ajudamos a escutar! de escuta.
A metapsicologia é um órgão de percep-
ção da transferência, assim como da confi-
guração clínica a ela implícita: de nomeação Abstract
e de articulação das cenas e dos processos This work addresses the place of supervision
que comparecem em meio à regressão em of psychoanalytic care for children and ado-
relação ao material trazido, e que se tornam, lescents in the training of the analyst, creating
assim, objeto de diálogo e elaboração da du- a link between the constitution of the analyst
pla da supervisão. Como na análise, as elabo- and the constitution of the subject. It also pres-
rações na supervisão tendem a propiciar no ents questions about the specificity of supervis-
supervisionado a rede associativa do campo ing psychoanalytic care with children and ad-
transferencial, que se segue às formulações olescents and its effects on the analyst in train-
construtivas. ing, who is finding his style. For this reflection,
A prática clínica da supervisão diz respei- we draw on my experience as supervisor of the
to à percepção, no atendimento psicanalíti- clinic at the Center for Psychoanalytic Studies
co, das próprias transferências do analista, of Childhood and Adolescence - NEPsI, which
valorizando a supervisão como um instru- belongs to the Social Clinic of the Brazilian
mento para analisar a contratransferência do Psychoanalysis Circle - Rio de Janeiro - Sec-
analista em formação. tion CBP-RJ.
E, de acordo com Delouya (2020, p. 29), “é
preciso que haja um descolamento, um des- Keywords: Supervision, Psychoanalysis with
prendimento, lenta e progressivamente, das children and adolescents, Analyst’s place, An-
miragens identificatórias e contra identifica- alyst training, NEPsI.
tórias do supervisionado”, possibilitando ao
analista em formação se apropriar da posi-
ção de se tornar analista do seu paciente.
Pensando que o conhecimento produzido
no dispositivo da supervisão não é exterior à
experiência vivida na clínica, e que vem a ser
sua característica própria, trazemos o espaço
da supervisão no NEPsI. Espaço que possi-
bilita abordar a singularidade da experiência
psicanalítica com crianças e adolescentes e a
particularidade de sua transmissão.
Se a escuta do caso em supervisão traz as
marcas daquele que o escutou, o espaço da
supervisão no NEPsI pode ser compreendi-
do como um lugar de acolhimento da escuta
do analista em formação, na clínica psica-
nalítica com crianças e adolescentes, com a
delicadeza necessária para a releitura com-
partilhada de uma experiência de escuta.
Criando a possibilidade para o analista em
Resumo
Este ensaio tem como finalidade discutir a elaboração do conceito de recalque presente no
artigo Recalcamento, de Freud. A partir de uma vinheta clínica, busca circunscrever o conceito
freudiano orientado pela perspectiva da primeira topologia do aparelho psíquico, dialogando
com fragmentos de um filme. O artigo freudiano em discussão se configura como um dos
temas metapsicológicos de Freud e ainda hoje nos auxilia na direção do tratamento psicana-
lítico.
1. Este ensaio é parte das discussões apresentadas no seminário O sintoma: de Marx a Lacan, coordenado por Clarice
Gatto no Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro, a quem agradeço a acolhida e as considerações ao texto exposto.
essa antinomia não é insolúvel tendo em vis- mas neuróticos são causados pelas fantasias
ta que é em nome de uma profilaxia médica e vivências sexuais submetidas à repressão
que ele se posiciona. pelo processo civilizatório. Entretanto, con-
Freud (1893/1996, p. 136) destaca: forme pode ser visto nas modificações pro-
postas por ele em sua teoria ao escutar suas
Na ausência de qualquer solução possível, a pacientes, nota-se que a aposta no poder da
sociedade parece condenada a tornar-se ví- palavra permite a ele verificar que é possível
tima de neuroses incuráveis que reduzem ao advir uma palavra no lugar do sintoma e, de
mínimo a alegria de viver, destroem as rela- algum modo,
ções conjugais e, pela hereditariedade, trazem
consigo a ruína das gerações vindouras. [...] o que obstaculiza a palavra se opõe [...] ao
progresso da civilização e até mesmo ao da hu-
Orientado pela crença de que existe um manidade [...]. Assim, Freud é levado a denun-
antagonismo entre a sexualidade do indiví- ciar aqui os abusos de uma moral sexual que,
duo e a civilização, Freud se imbui de um não contente com reprimir os atos eventual-
ânimo reformista, ao acreditar que “a repres- mente prejudiciais à sociedade, chega mesmo a
são sexual, essa nossa velha (des)conhecida”, proibir as intenções e até o mero pensamento,
encontrava seu respaldo necessariamente em acarretando, desta maneira, a inibição da ativi-
uma sociedade conservadora e até mesmo dade intelectual (Millot, 1995, p. 16).
reacionária. É certo que a repressão social
contribui para o incremento das neuroses e, Essas considerações iniciais nos permi-
de algum modo, como Freud (1896/1996, p. tem verificar que existe um mecanismo de
278) mesmo sustenta: poder que se impõe de fora pra dentro, em-
bora se encontre uma certa vulgarização da
Seria necessário mudar muitas coisas. É pre- psicanálise que defende a noção de que a
ciso vencer a resistência de uma geração de repressão é um mecanismo consciente que
médicos que já não podem lembrar-se de sua atua ao nível da segunda censura. É o po-
própria juventude, triunfar sobre o orgulho de sicionamento encontrado em Laplanche e
pais que não querem se rebaixar ao nível hu- Pontalis (1988), a título de exemplificação.
mano diante de seus filhos, combater a hipo- Segundo esses autores, Freud situa a repres-
crisia insensata das mães, essas mães que con- são entre o consciente e o pré-consciente,
sideram atualmente como um golpe imerecido tratando-se da exclusão de algum material
e incompreensível do destino o fato de que seus do campo da consciência. As motivações
filhos sejam os únicos a tornar-se neuróticos. morais desempenham um papel predomi-
Mas é preciso sobretudo dar lugar à discussão nante na repressão.
dos problemas da vida sexual junto à opinião Com Michel Foucault (1987), destaca-
pública. Teria que ser possível falar dessas mos que os mecanismos de controle social
coisas sem sermos considerados um fator de na modernidade evidenciaram uma forma
problemas ou alguém que explora os instintos de poder denominada de “poder disciplinar”.
mais baixos. E aqui também há muito o que Essa prática visa modelar as formas de con-
fazer para que, no decorrer dos próximos cem dutas do corpo social, ou seja, de todos os
anos, nossa civilização aprenda a se compor indivíduos que o constituem. Talvez essa seja
com as exigências de nossa sexualidade. a concepção mais corriqueira de poder, com
seu caráter repressor que, de maneira impie-
Esses apontamentos iniciais servem, de dosa, exclui e comanda as condutas sociais.
algum modo, para destacar que desde a Co- Embora essa compreensão de repressão seja
municação preliminar, de 1893, Sigmund importante, o recalque, ao que nos parece, é
Freud defendeu a proposição de que os sinto- algo de outra ordem.
te ideia de que a psicanálise é uma teoria da se que esse tempo consiste em negar a pas-
clínica. sagem para a consciência do representante
Freud (1915/1993, p. 154) diz: psíquico da pulsão. Com isso se estabeleceria
uma fixação, por meio da qual o represen-
Ao executarmos a técnica da psicanálise, con- tante em questão permaneceria inalterado e
tinuamos exigindo que o paciente produza, a pulsão ali permaneceria concentrada. O se-
de tal forma, derivados do recalcado, que, gundo tempo do recalque seria o do recalque
em consequência de sua distância no tempo, propriamente dito, que afetaria os derivados
ou de sua distorção, eles possam passar pela mentais dos representantes recalcados ou os
censura do consciente. [...]. No correr desse resquícios de pensamentos a eles ligados. Por
processo, observamos que o paciente pode fim, o terceiro tempo caracteriza o retorno
continuar a desfiar sua meada de associações, do recalcado, deixando “sintomas em seu
até ser levado de encontro a um pensamento, rastro”.4
cuja relação com o recalcado fique tão óbvia, Freud argumenta que só é possível ter
que o force a repetir sua tentativa de recalque. acesso ao recalque a partir de seus resulta-
dos, ou seja, na formação substitutiva sur-
A repetição, em ato, apontada por Freud gida como sintoma. Em sua argumentação,
nessa citação, a meu ver, é um ponto que apa- Freud (1915/1996, p. 153) se interroga:
rece na vinheta clínica apresentada na aber-
tura deste ensaio. Quando Antônio, mesmo Podemos então supor que a formação de
envergonhado frente ao gesto de carinho de substitutos e a formação de sintomas coinci-
seu “paquera fixo” permite-se continuar e dem, e, admitindo que isso aconteça de um
retribuir, um pouco mais tarde, os presentes modo geral, será o mecanismo formador de
recebidos, talvez tenhamos o esboço de um sintomas o mesmo que o do recalque?
posicionamento diferente do sujeito frente a
seu desejo, o que lhe permite se colocar de Conforme apontado, naquilo que diz res-
outra forma frente ao Outro, saindo do dese- peito aos efeitos do recalque sobre a parcela
jo anônimo para um amor que ousa dizer seu ideacional do representante da representa-
nome, parafraseando Oscar Wilde.2 ção, Freud salienta que o procedimento ini-
Em síntese, ouso dizer que esse momento cia a operação de geração de formações subs-
da obra freudiana é orientado pela perspec- titutas. Se o recalque deixa sintomas em seu
tiva da primeira tópica do aparelho psíquico, rastro, Freud assevera que tanto as chamadas
em que o recalcado e o inconsciente se equi- formações substitutas quanto o recalque são
param. Na suposição apresentada por Freud retornos do recalcado, ao que ele indica: (1)
de um recalque primevo ou primeiro,3 nota- o mecanismo do recalque não coincide com
o mecanismo das formações substitutas; (2)
há numerosos e diferentes mecanismos de
2. O amor que não ousa dizer seu nome é uma frase da linha
final do poema Dois amantes, de Lorde Alfred Douglas, de formações substitutas; e (3) ambos os meca-
setembro de 1892. Tornou-se expressão notável ao ser men- nismos se caracterizam por uma retirada do
cionada por Oscar Wilde como metáfora para a homosse- investimento de energia.
xualidade no processo em que foi condenado por atos ho-
mossexuais envolvendo sua relação com Lorde Douglas).
Ora, de algum modo esse texto de Freud
Peço licença para apresentar um trecho do belo poema ao
final deste artigo.
3. O recalque originário ou primário é uma construção hi-
potética elaborada por Freud. Trata-se, segundo essa elabo- 4. “Retorno do recalcado” é uma das clássicas definições do
ração, de um primeiro momento da operação do recalque. sintoma em Freud. Refere-se a um processo pelo qual os
A consequência desse primeiro tempo do recalcamento se elementos que foram extraídos do campo da consciência,
dá na formação de representações inconscientes que forma- ou seja, os elementos recalcados, reaparecem de modo de-
rão os núcleos inconscientes responsáveis pela “atração” de formado em razão do caráter indestrutível dos conteúdos
elementos a serem posteriormente recalcados. inconscientes.
nos permite, mais uma vez, apostar que a obsessiva. Não entraremos nos pormenores
linguagem está posta tanto em causa quan- apresentados pelo autor, mas apontaremos
to em consequência. Com Lacan (1954- algumas questões que poderão ser úteis para
1955/1985), a partir do Seminário 2:O eu o diagnóstico e a consequente condução de
na teoria de Freud e na técnica da psicaná- tratamentos atuais. De início, na chamada
lise, podemos defender que a novidade da histeria de angústia, um caso de fobia ani-
empreitada freudiana é que o humano não mal é utilizado por Freud para exemplificar
domina a linguagem primordial, tendo sido como a pulsão sujeita ao recalque é uma ati-
introduzido nessa engrenagem, e nela se en- tude libidinal para com o pai, aliado ao medo
contra, de algum modo, aprisionado. Para dele. Após o recalque dessa moção pulsional,
Lacan (1954-1955/1985), o homem se en- ele desaparece da consciência: o pai perde
contra posto em um primitivo simbolismo seu lugar de objeto de investimento libidinal
que difere das representações imaginárias, e e o animal surge como um substituto ao pai;
é aí que algo dele precisa fazer-se reconhecer. a parcela quantitativa de afeto ligado à ideia
Mas isso, conforme o ensinamento de Freud, original não desapareceu, mas foi transfor-
está recalcado. mada em angústia, tendo como resultante
Declara Lacan (1954-1955/1985, p. 385): sintomática o medo do animal. A formação
da fobia, desse modo, age como uma forma
É preciso maravilhar-nos com o paradoxo. O de fuga e impedimento da angústia.
homem não é aqui senhor em sua casa. Há Já na chamada histeria de conversão, o
algo no qual ele se integra e que já reina por autor assevera que o conteúdo ideacional
intermédio de suas combinações. A passagem é completamente retirado da consciência
do homem da ordem da natureza à ordem da e, como um substituto sintomático, surge a
cultura segue as mesmas combinações mate- conversão somática.
máticas que as que servirão para classificar e Por fim, na neurose obsessiva, o recalca-
explicar. Claude Lévi-Strauss as denomina es- mento é exitoso e o conteúdo ideacional é
truturas elementares do parentesco. E, no en- afastado, fazendo com que o afeto desapa-
tanto, os homens primitivos não são supostos reça. Entretanto, como uma espécie de re-
terem sido Pascal. O homem se acha metido, calcamento malsucedido, permanecendo o
seu ser todo, na procissão dos números, num conteúdo ideacional na consciência permi-
primitivo simbolismo que se distingue das tindo com que emoção que estava desapare-
representações imaginárias. É no meio disto cida retorne, de maneira modificada, como
que algo do homem tem de fazer-se reconhe- angústia social, moral e autocensura.
cer. Mas o que tem de fazer-se reconhecer não Finalizo este breve comentário, indicando
está expresso, nos ensina Freud, porém recal- o filme O dia em que eu não nasci.5 Trata-
cado. se da história de uma nadadora alemã que,
durante uma escala em Buenos Aires, re-
Essa longa citação nos faz recordar que conhece uma canção de ninar cantada por
o recalcado, conforme extraímos de Freud, uma jovem mãe. Maria não sabe sequer uma
sempre insiste, pede para ser. Nesse sentido, palavra da língua espanhola, mas começa a
é possível destacar que, em Lacan, seguindo cantar acompanhando a jovem mãe que em-
o caminho aberto por Freud, o sintoma é bala seu filho na sala de espera do aeroporto.
concebido como “o retorno, por via de subs- Emocionada, ela telefona para o pai, na Ale-
tituição significante, do que se encontra na manha, e fala sobre sua experiência. O título
ponta da pulsão como seu alvo [a satisfa-
ção]” (Lacan, 1959-1960/1988, p. 139).
Freud finaliza seu trabalho apontando as- 5. Drama produzido conjuntamente por Alemanha e Ar-
gentina, dirigido por Florian Micoud Cossen e lançado em
pectos do recalque na histeria e na neurose 2010.
em alemão [A canção em mim] talvez possa mar e tentar avançar, inclusive associando-as
nos dar uma pista do que Freud (1915/1996) ao sintoma e à condução do caso clínico. Tra-
afirma sobre uma lembrança latente ser um tar disso, no entanto, já é outra coisa a ser
resíduo de um processo psíquico; além disso, retomada em momento oportuno.
aponta as ressonâncias lacanianas no final do
Seminário 2: O eu na teoria de Freud e na téc- Considerações finais
nica da psicanálise, de que “o recalcado pede A proposta deste comentário acerca do recal-
para ser”. Contudo, como defende Freud que foi fazer uma breve incursão pelo texto
(1915/1996, p. 162) no texto em discussão, O recalcamento, de Freud (1915/1996). Tra-
ta-se de uma apresentação do modo como o
[...] cada abordagem isolada do assunto será conceito se apresenta no interior de um ar-
incompleta em si mesma, não podendo dei- tigo seminal sobre um tema que se constitui
xar de haver obscuridades sempre que ela se como um dos pilares do edifico teórico freu-
defrontar com material ainda não examinado; diano. Desse modo, é importante retomar as
no entanto, podemos esperar que uma síntese palavras de Lacan sobre o tema, tendo em
final conduza a uma compreensão adequada. vista que suas considerações nos auxiliam na
leitura do texto freudiano.
Nesses termos, o filme nos ajuda a pensar Para Lacan (1955-1956/1985, p. 23), aqui-
em outros elementos presentes no recalque, lo que é atingido pelo recalque sempre retor-
como os efeitos de alíngua6 [lalangue] no na,
corpo. É em lalangue que o sujeito vai enla-
çar seu desejo, ou seja, no excesso que escapa [...] pois o recalque e o retorno do recalcado
à língua, na fratura que a lalangue propor- são apenas o direito e o avesso de uma mes-
ciona. E Milner (1987) nos ajuda a pensar ma coisa. O recalcado está sempre aí, e ele se
em lalangue como algo que torna possível o exprime de maneira perfeitamente articulada
ser falante, tendo em vista que amor e lín- nos sintomas e numa multidão de outros fe-
gua se enraízam em lalangue, enquanto lugar nômenos.
do impossível, daquilo que excede à língua e
marca sua presença no desejo do ser falante. Como os textos de Freud e Lacan nos dei-
Para Milner, a existência de lalangue permite xam antever, o entendimento do processo do
dizer que o amor é possível e que o signo de recalque é de fundamental importância tan-
um sujeito pode causar um desejo. to para as pesquisas que entrelaçam à práxis
Retomar as discussões em torno do recal- psicanalítica quanto para o ensino e trans-
que, a nosso ver, é muito importante; reto- missão da psicanálise.
Resumo
Trata-se de uma revisão sistemática sobre o tema corpo, cuja base de dados foi a revista Estu-
dos de Psicanálise. Método: Os critérios de inclusão dos artigos foram a palavra-chave “corpo”
e a limitação temporal dos últimos 10 anos. Durante os 54 anos em que a revista foi editada,
apenas 15 trabalhos foram publicados com essa temática e 8 foram publicados de 2012 a 2022.
Objetivo: Descobrir se houve mudanças na forma de pensar ou sentir o corpo, do ponto de
visto psicanalítico, nestes últimos dez anos. Resultados: Cada texto ofereceu uma perspectiva
única sobre a relação entre corpo e a lente poderosa da psicanálise para compreender o sofri-
mento psíquico expresso através do corpo. Conclusão: Com as novas formas de subjetivação
na contemporaneidade, os sofrimentos não mais seguem a lógica do conflito psíquico, do
recalque e da representação, pois são sofrimentos que se caracterizam pela impossibilidade de
representação e nomeação. Entretanto, a psicanálise mantém a sua relevância, viva e atual, na
análise das respostas humanas aos desafios sociais.
4
Tabela 1 – Artigos e respectivos autores
de todas as edições da revista Estudos de Psicanálise (54 anos)
que trazem “corpo” como palavra-chave
Joel Birman foi o autor mais citado depois Entre outros autores que foram citados
de Lacan. Foram sete referências, e em três duas vezes, em dois artigos,, estão: Anzieu
artigos distintos a obra Mal-estar na atuali- com O eu-pele (2000); Fernandes com o tí-
dade (2014) teve destaque. tulo Corpo (2005); Fontes com Psicanálise
Winnicott foi citado sete vezes com obras do sensível: fundamentos e clínica (2010),
distintas. Roudinesco e Plon, com Dicionário de
Ainda merece destaque Joyce Mcdougall, ci- Psicanálise (1998); e Laplanche ê Ponta-
tada quatro vezes, considerando que a obra Tea- lis, com o Vocabulaire de la psychanalyse
tros do corpo (2013) foi citada em dois artigos. (1973).
́ ́
O corpo e a subjetividade do sujeito
lhada das obras de Almodóvar, destacando ções infantis até cerca de 5 a 6 anos de idade.
como esses filmes desafiam as normas sociais Tais impressões tornam-se o cerne estrutu-
e psicológicas, além de abrir espaço para a ral do sujeito que leva a uma subjetivação e
reflexão sobre o “Eu” e o corpo na psicanálise singularidade em relação ao diálogo com a
e na cultura contemporânea. cultura e o social.
Em 2018, Retondar investiga a construção Quando um sujeito, um aluno, por exem-
do sentido de corpo na teoria psicanalítica plo, lança mão de estratégias-limite como
de Sigmund Freud e as suas implicações para anorexia, bulimia, vigorexia, violência e hos-
a educação. Retondar explora como Freud tilidade gratuita com o outro, é necessário
abordou o corpo humano em sua obra, des- o professor acolher e provocar que o sujeito
tacando a importância da sexualidade na fale de si e de sua vida. E isso funcionará me-
formação do sentido de corpo. lhor do que orientações moralistas que aque-
O corpo, com Freud, aparece a partir dos le jovem está cansado de ouvir, afinal trata-se
Estudos sobre a histeria (1893), quando ele de um sujeito de desejo e que por seu sinto-
contrapõe o corpo biológico das histéricas ma, se reconhece como tal.
ao corpo como lugar de inscrição de signifi- O professor tem que ouvir mais e falar
cados, marcado com desejos inconscientes e menos. Quando um aluno fala de si para o
sexuais (Retondar, 2018). professor é porque há um nível de confiança
Ao estudar as histéricas e seus sofrimen- e, falando, ele pode aprender sobre si mesmo
tos, Freud percebeu que a fisiologia era in- e sobre o seu corpo. Falando sobre sua vida,
suficiente para justificar tais sintomas que o aluno aprende consigo mesmo, desde que
não eram orgânicos. Para Freud, a histeria, não haja receios de julgamentos (Retondar,
sempre inconsciente, estava ligada a algum 2018).
evento vivido ou imaginado e produzia uma O professor deve compreender que, mes-
imensa excitação em sua estrutura psíquica, mo quando não há um sentido imediato a
diante de algum desejo não satisfeito. O cor- ser visto no comportamento do aluno, não
po é o lugar dos desejos reprimidos (Reton- significa ausência de sentido. Certamente o
dar, 2018). aluno sentir-se-á acolhido e mobilizado pela
O corpo histérico ignora a anatomia ou escuta do professor gerando dúvidas, provo-
fisiologia, pois o que importa é um corpo cando reflexões, exigindo que pense e repen-
fantasmático, uma vez que o corpo expressa se suas ações, enquanto se sente valorizado e
as representações recalcadas, diz Freud em com garantias de espaço para comunicação e
As neuropsicoses de defesa (1894). Os desejos expressão, e jamais qualquer palavra sobre a
querem se manifestar e por estarem bloquea- imagem corporal do aluno (Retondar, 2018).
dos, o caminho psíquico viável é o corpo Anorexia e bulimia não são distúrbios
(Retondar, 2018). alimentares de um corpo que tem de voltar
Para Freud, todas as representações têm a funcionar como antes desse desajuste or-
uma base erógena e a atividade sexual per- gânico. Na verdade, são sofrimentos psíqui-
passa a vida humana, inaugurada no nasci- cos de negação obstinada e dolorosa e que,
mento, quando existe uma primeira tensão ao negar alimento, talvez deseje negar algu-
entre prazer e desprazer no ato da amamen- ma outra coisa e firmando para si uma nova
tação vivido pela criança. Desse encontro imagem desse corpo (Retondar, 2018).
fica o primeiro registro inconsciente de pra- O que se supõe é que a cadaverização do
zer que o sujeito perseguirá por toda a vida corpo, o suplicio da dor por carência alimen-
(Retondar, 2018). tar traga um elogio como compensação psí-
O corpo e sua imagem inconsciente for- quica que justifiquem o sofrimento mesmo
mam um conjunto das primeiras impressões que esteja na contramão do padrão saúde e
gravadas no psiquismo infantil pelas sensa- do que se diz ser normal. Assim, não pode-
sob a perspectiva da psicanálise, destacando leza e dentro de um padrão que, quando não
a importância dessa teoria na compreensão reconhecido, torna-se potencialmente amea-
das experiências humanas. çador, porquanto a uma sensação de comple-
Vários artigos discutem a relação entre o tude, características das vivências primárias
corpo e a identidade. Isso pode ser visto na do narcisismo. Isso transformaria a busca
análise da travestilidade, da busca pela esté- por um corpo ou rosto harmónico na tenta-
tica facial, da expressão de gênero, da sexua- tiva de evitar a frustração, a falta e a insatis-
lidade e da linguagem corporal. Todos esses fação do desejo (Melo et al., 2021).
aspectos estão ligados à forma como os indi- E por fim, alguns autores incluíram análi-
víduos constroem e percebem sua identida- ses de casos clínicos para ilustrar conceitos e
de em relação ao corpo. aplicar a teoria psicanalítica.
Alguns artigos exploram a intersecção
entre a psicanálise e outras disciplinas, como Diferenças entre os artigos
odontologia, educação e cinema. Eles desta- Cada texto aborda tópicos específicos e
cam como a psicanálise pode fornecer insi- únicos. Por exemplo, Sampaio e Camarotti
ghts úteis para abordar questões específicas (2016) lidam com o mal-estar na tríade de
em diferentes campos e compreender o cor- profissionais de saúde-pais-bebê, enquanto
po do ponto de visto psicanalítico. Melo et al. (2021) abordam a harmonização
Muitos ressaltam a importância da comu- orofacial em relação à pandemia de covid-19.
nicação não verbal, incluindo a linguagem Cada um desses tópicos apresenta uma pers-
corporal, expressão facial e gestos, como pectiva única sobre a relação entre corpo e
meios de expressar emoções, desejos e con- psicanálise.
flitos que podem não ser verbalizados dire- Os artigos abrangem um período signifi-
tamente. cativo desde 2012 até 2021. Isso significa que
Alguns autores fazem referência a even- refletem mudanças nas preocupações e nas
tos ou contextos contemporâneos, a exemplo perspectivas ao longo dos anos. Por exemplo,
da pandemia de covid-19, e exploram como Melo et al. (2021) exploram as implicações
esses eventos impactam a experiência psico- da pandemia na autoimagem do sujeito, uma
lógica e a relação com o corpo. questão que não estava presente nos anos an-
Birman (2012) nos diz que nos sentimos teriores.
sempre faltosos e que sempre queremos fazer Os procedimentos estéticos, em meio à
algo para melhorar a performance corpórea pandemia, tinham como finalidade aumen-
que sempre estará aquém do desejado, prin- tar a autoestima, corrigindo as assimetrias,
cipalmente em um período em que existem realçar e melhorar expressões faciais em
múltiplas possibilidades e ofertas no que tan- desequilíbrio, reduzindo também os efeitos
ge ao cuidado com o corpo. do envelhecimento. É inquestionável que
Considerando a beleza uma questão sub- a lógica mercantil e consumista faz um es-
jetiva, que pode ser moldada pelos valores forço para tornar o corpo desse sujeito em
sociais e culturais, mobilizando questões que espelho dos modelos vendidos como ideali-
afetam a aceitação e a autoestima dos indiví- zados e, por conseguinte, perfeitos, enquanto
duos, o desamparo torna-se uma marca da a psique fica à deriva e, por isso mesmo, os
subjetivação contemporânea e das novas for- psicofármacos ganham espaço anestesiando
mas de sofrimento psíquico levando a uma emoções, negando o sofrimento na busca da
precarização da relação entre corpo e ima- tal felicidade (Melo et al., 2021).
gem. Já outros autores trouxeram uma abor-
Considere-se que a transformação do de- dagem mais teórica e exploratória, Cardoso,
samparo em onipotência narcísica gera um Demantova e Maia (2016) nos enriqueceram
aprisionamento a um ideal especular de be- com uma ênfase maior nos aspectos clínicos,
A escrita do feminino em
Dias de abandono,
de Elena Ferrante1
The writing of the feminine in
“The Days of Abandonment”,
by Elena Ferrante
Clarissa Ribeiro Vicente
Elizabeth Samuel Levy
Resumo
Analisar uma obra literária para desenvolver conceitos psicanalíticos e apresentar os conflitos
inerentes à subjetividade foi um recurso que Freud utilizou diversas vezes. Com esse objetivo,
este trabalho examina a produção literária Dias de abandono, de Elena Ferrante, para refletir
sobre a escrita e o encontro com o desejo de narrar como possibilidade de sobrevivência à
experiência de devastação, que perpassa as mulheres ao perder o amor do objeto.
1. Trabalho a ser apresentado no XXV Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise e na XLI Jornada do Círculo
Psicanalítico de Minas Gerais, realizados em Belo Horizonte (MG), nos dias 28, 29 e 30 set. 2023.
vras e dos pensamentos, tomados por pala- destinos na religião, nas ligações cegas aos
vrões, ditos e imagens obscenos. As fantasias mestres, nas ideologias, nas teorias inquestio-
que atormentam Olga encenam relações se- náveis, nas adicções, e no mais sofrível, que
xuais de Mário com outra. Ela tenta contro- são os relacionamentos interpessoais (Levy;
lar os gestos e as palavras, e evita modificar a Ceccarelli; Dias, 2017, p. 49).
vida e os sentidos em razão do fim do casa-
mento. Não quer se parecer com a mulher de Não ser mais o objeto do amor do marido
um livro que lhe foi sugerido pela professora esvazia Olga como mulher. Ela vivencia
na escola, no qual a mulher abandonada su- uma experiência sexual com o vizinho
cumbe. Olga tenta manter o controle. desconhecido, o qual despreza, na tentativa
Ela é assombrada pelas palavras da mãe, de se sentir desejada e valorizada.
costureira no bairro de Nápoles. Durante a Freud (1930/2016, p. 75) afirma que o
infância, Olga escutava a mãe contar para valor quantitativo do desamparo, sua inten-
amigas e clientes a história da “pobre coita- sidade, está diretamente ligado à maneira
da”, mulher que tentou o suicídio após ser como foi elaborada a total dependência (de
abandonada pelo marido infiel e trocada por uma ajuda externa) no início da vida. Ou
outra. Olga tentar fugir da imagem da mu- seja. a maneira como cada sujeito vivenciará
lher abandonada, mas a incorpora ao longo uma (nova) situação de perda, sua capacida-
da narrativa, ao se perceber em uma perda de de ressignificá-la, de recuperar-se dela,
de sentido. Ressente-se em relação ao ex dependerá de como ele lidou, que recursos
-marido. Enumera tudo o que entregou a ele. teve, para enfrentar a situação de desampa-
Liga para os amigos em comum para relatar ro inerente ao humano: “jamais nos torna-
o abandono, mas sente que eles protegem mos tão desamparadamente infelizes do que
Mário e não querem escutar o que ela tem quando perdemos o objeto amado ou o seu
a dizer. amor”.
Olga parece (re)viver um sentimento de Sem saber como lidar com a ausência de
desamparo que constitui todo ser vivente. O margens de si, Olga começa a escrever. Pri-
desamparo2 traduz a situação antropológi- meiro, escreve cartas para Mário, na espe-
ca fundamental do humano que, ao nascer, rança de que ele a ajude a compreender os
encontra-se em um estado de total depen- fios da história partilhada. Depois, escreve
dência de um outro que lhe forneça ações como expressão de um desejo antigo. Olga
específicas para garantir a sua sobrevivência. queria ser escritora. Mário a convenceu de
Esse outro que acolhe, alimenta e lhe fornece largar o emprego em uma editora para culti-
vida psíquica, pela linguagem e introdução var a escrita, mas ela não conseguiu escrever
na cultura. e se dedicou às necessidades do marido e dos
filhos.
Freud (1930/2016), em O mal-estar na cul- Ao longo da narrativa, Olga descobre que
tura, ressalta que a dinâmica pulsional que o marido entrou na casa quando não havia
configura o desamparo aponta para novas ninguém e levou embora uma joia de famí-
necessidades como o amor, o afeto, o reco- lia. Ela encontra Mário com a nova namora-
nhecimento, a palavra, a linguagem, ocasio- da, Carla, que usa os brincos. Olga os agride
nando dependência psíquica, buscando seus verbal e fisicamente. O episódio do sumiço
dos brincos aumenta a sensação de insegu-
rança que Olga sente em sua casa: invadida
2. A palavra “desamparo” é a tradução da palavra alemã Hil-
flosigkeit. Ela é composta de três partes: Hilfe, que significa por animais, como o cachorro, um lagarto,
socorro; los, que pode ser definido por sem; keit que forma muitas formigas e por Mário. A insegurança
o substantivo. Hilflosigkeit, em inglês helplessness, seria me- também é sentida pelos filhos, que lhe lem-
lhor traduzido pelo neologismo “insocorribilidade”: somos,
por definição, “insocorríveis” (Ceccarelli, 2005).
bram constantemente que ela é insuficiente
e que o pai faria melhor. Na tentativa de se mergulha. Em seu mergulho, ela vislumbra
proteger, Olga instala uma porta mais resis- a mulher que se matou depois de entregar
tente, mas não consegue girar a chave e fica tudo ao marido.
presa em casa. Em Frantumaglia, Ferrante (2017) des-
A ‘virada de chave’ da narrativa ocor- creve Olga como uma mulher culta, pre-
re quando Olga se encontra aprisionada no parada, cheia de defesas, que é tomada por
apartamento com o filho doente, com a fi- uma desestruturação, um vazio de sentido.
lha que a espeta constantemente para que A autora explica que Medeia, Ariadne, Dido,
ela não perca o vínculo com o que acontece Anna Karenina e a mulher abandonada pelo
ao seu redor, com formigas por toda parte marido na obra A mulher desiludida, de Si-
e com Otto, o cachorro que está em conva- mone de Beauvoir são referências e imagens
lescência por ingerir veneno. O cachorro é dessa “pobre coitada”, cuja herança chega a
mais um habitante da casa que lembra Olga Olga misturadas à fala da mãe. Contudo, Ele-
de sua insuficiência e da ausência de Mário, na Ferrante almejou um final diferente para
pois era o cachorro do ex-marido. Com a a sua personagem.
morte de Otto, ela abre mão do controle e Os textos de Freud sobre a feminilidade
se depara com o absurdo do abismo no qual e a relação pré-edípica da menina com a sua
se encontra. Aos poucos, Olga constrói uma mãe podem ajudar a compreender a expe-
nova rotina. Inicia um emprego, desmonta a riência de “vazio de sentido” ou de desestru-
idealização da figura de Mário, percebe no turação na qual Olga se encontra ao ser dei-
vizinho um homem interessante, com quem xada pelo marido e trocada por uma mulher
se relaciona amorosamente. Olga consegue mais nova. Freud considerou importante o
retomar as margens e criar nexos para a sua estudo da fase pré-edípica da menina no que
narrativa: diz respeito à relação com a mãe para a com-
preensão da feminilidade. A mãe é o primei-
[...] cada movimento era narrável em todas as ro objeto amoroso da menina. O investimen-
suas razões, boas ou más, que em suma che- to libidinal da garota em relação à mãe altera
gara o momento de voltar à força dos nexos de acordo com a fase, apresentando desejos
que enlaçam juntos os espaços e os tempo- orais, sádico-anais (ambivalência e hostili-
sOlga (Ferrante, 2016, p. 182). dade manifesta em momentos de profunda
angústia) e fálicos (vontade de fazer um fi-
Perda do amor e a experiência lho na mãe ou dar um filho à mãe). Após um
de devastação acúmulo de hostilidades, o ódio marca o fim
Quando o casamento de Olga chega ao fim dessa relação. A filha tem diversas acusações
por decisão do marido, ela não quer agir contra a mãe.
como as mulheres abandonadas das histórias Segundo Freud ([1916], 2010), a filha
que escutou em sua infância. Essas histórias acusa a mãe de não amamentar o suficiente,
eram contadas por sua mãe. Ela sentia as pa- de estimular a descoberta sexual e depois a
lavras da mãe. Ao tentar fugir dessas pala- proibir, de dedicar amor a outros irmãos ou
vras, Olga é tomada por um vocabulário que ao pai, o que gera ciúmes. A relação pré-e-
escapa à polidez que ela costurou para si na dípica com a mãe apresenta reflexos nas de-
vida adulta. A costura rompe, e ela emite pa- mais relações que uma mulher desenvolve ao
lavras obscenas. Essas palavras remetem ao longo da vida, em especial com o pai e com o
mundo infantil, no qual a violência do bairro primeiro marido (Freud, 1917/2013).
napolitano era parte do cotidiano e no qual Para Lacan (1972/2003), a relação mãe e
uma mulher abandonada pelo marido tentou filha é marcada pela devastação, pois a meni-
o suicídio. O tom da narrativa evoca o deses- na espera receber de sua mãe o que esta não
pero e a perda de si nos quais a personagem tem: a transmissão da feminilidade. Contu-
do, como não há um significante que se re- e uma sintaxe para dar margem ao vazio. O
fira à mulher de modo universal, cada uma livro encerra com o retorno de Olga à vida
deve inventar o seu caminho para a constru- cotidiana, ao amor e à possibilidade de nar-
ção da feminilidade e se deparar com o vazio rar e construir nexos para os movimentos da
no campo do feminino: um gozo suplemen- vida.
tar que não cessa de não se escrever (La- Ferrante (2022) define a escrita como um
can, 1972-1973/2008). A devastação que se processo de permanecer às margens, permi-
apresenta na relação da mãe com a sua filha tindo a abertura para que o obscuro se torne
pode comparecer nas relações amorosas de visível. Olga encontra as margens, o fio da
uma mulher, que sente tudo entregar e que narrativa, mas sabe que o vazio de sentido
se ressente ao ser abandonada, pois perde a pode irromper a qualquer momento (Fer-
imagem da feminilidade forjada no olhar do rante, 2017). A mulher contemporânea pode
outro. buscar o léxico para a perda do amor, de
Em Dias de abandono, Olga busca no de- modo a transformar o negativo da falta em
sejo masculino um modo de mascarar a sua experiência de desejo.
falta e se ressente diante da perda do amor, O mesmo processo ocorre na travessia de
quando se depara com o abismo do que não uma análise, na qual a falta se coloca como
tem representação. Ela experiencia a devas- espaço para a palavra e para o silêncio. O de-
tação como perda de sentido, de desmargi- sejo do analisante se encontra com o desejo
nação, de descontrole das palavras e do cor- do analista na aposta de que o romance fami-
po, de encarceramento. Contudo, Olga se en- liar se transforme em poesia na reinvenção
contra com o seu desejo ao perder o amor do do feminino.
objeto. O desejo de Olga é o desejo de escrita.
FREUD, S. Análise terminável e interminável (1937). LEVY, E. S.; CECCARELLI, P. R: DIAS, H. M. M. Vio-
In:________. Moisés e o monoteísmo, Compêndio de lência e terror nas redes sociais: considerações sobre
psicanálise e outros textos (1937-1939). Tradução: cultura, desamparo e narcisismo. Estudos de Psicaná-
Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia das lise, n. 48, p. 43-52, dez. 2017.
Letras, 2018. p. 274-326. (Obras completas, 19).
RANCIÈRE, J. O inconsciente estético. Tradução:
FREUD, S. O escritor e a fantasia (1908). In: ______. O Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009.
delírio e os sonhos na Gradiva, Análise da fobia de um
garoto de cinco anos e outros textos (1906-1909). Tra- SECCHES, F. V. A. Elena Ferrante: uma longa expe-
dução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia riência de ausência. São Paulo: Claraboia, 2020.
das Letras, 2015. p. 325-338. (Obras completas, 8).
Sobre as autoras
E-mail: clarissavicente2@gmail.com
E-mail: bethslevy@gmail.com
Resumo
A autora apresenta um panorama da evolução cultural humana, partindo dos primórdios da
humanidade até o aparecimento da psicanálise, no final do século XIX e começo do século
XX. Introduz a figura de Sigmund Freud, o criador da psicanálise, e a trajetória desse novo
saber, que traz à luz a instância do inconsciente. Fala também das principais obras freudianas,
chegando até Jacques Lacan, no século XX, que faz uma releitura de Freud. Discute ainda o
conceito de ética, salientando que a psicanálise tem uma ética própria, que é a ética do sujeito
do inconsciente, a ética do bem dizer. Por fim, destaca o papel do analista na sociedade e as
diversas aberturas que a psicanálise trouxe para o ser humano.
A psicanálise é um tipo de saber relativa- que de hoje, foram criados o eixo da roda, a
mente novo – 125 anos – em relação às ori- astronomia, a matemática e a escritura.
gens da humanidade. O ser humano segue
um padrão semelhante ao desenvolvimento Esses progressos pareciam tão desconcer-
da humanidade em suas conquistas: a onto- tantes que Aristóteles, nos anos 300 a.C, no
gênese repete a filogênese em sua evolução. seu primeiro livro de metafísica, afirmava
Nada nos é dado sem que seja conquistado. que tudo que se podia imaginar para tornar
Embora os seres humanos já existam desde a vida humana mais confortável já tinha sido
os tempos imemoriais, a psicanálise, como inventado. Portanto era hora de se dedicar à
um saber sobre o próprio ser humano, teve elevação dos espíritos (De Masi, 1993, p. 42).
também um tempo para seu surgimento.
Cada progresso material foi sendo dura- Na Antiguidade, na ânsia de buscar uma
mente conseguido. Muitos séculos se pas- explicação para o mundo, o ser humano cria
saram para que descobertas simples fossem a mitologia, onde vários deuses se encarre-
sendo consumadas. Elas custaram o esforço gavam de ordenar o Universo e responder às
e o uso do engenho do ser humano. Desde a perguntas que já se faziam sobre a origem e o
descoberta do fogo, das vestimentas, da coc- destino dos humanos.
ção dos alimentos, foi havendo um aumen- A Idade Média, período que vai do século
to na qualidade da vida humana. Há 5.000 V até o século XV, iniciou-se com a desagre-
anos, na Mesopotâmia, nosso devastado Ira- gação do Império Romano do Ocidente, no
1. Texto apresentado no evento on-line comemorativo dos 65 anos do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS), na
jornada intitulada A psicanálise através dos tempos, realizada em 24 e 25 set. 2021.
século V. Dessa época histórica destacam-se tona um novo mundo interno e levantar o
o período de ruralização que a Europa viveu véu que encobre seu cerne. O que é a existên-
entre os séculos V e X, o fortalecimento da cia humana? Que atitudes cabem a nós? Já
Igreja Católica, a estruturação do sistema que estamos entregues a nós mesmos, somos
feudal, os quais propiciaram que a Europa os nossos próprios escultores. Temos em nós
fosse o centro do mundo não só econômi- misturadas a razão e as paixões. E o nosso
co mas também político e social. A religião, destino final é o mesmo, reis ou mendigos:
já agora com um só Deus, no cristianismo, o pó. Hamlet, com sua angústia, inaugura o
era o instrumento regulador das condutas e homem moderno com dúvidas existenciais.
prometia o inferno para os que transgredis- Somos solitários, temos que arcar com a
sem as normas, mas ainda justificava as desi- nossa consciência e a nossa liberdade. So-
gualdades sociais, ao considerar os escravos mos responsáveis por nossa condição huma-
inferiores e os reis e nobres como ungidos na. Shakespeare foi uma grande influência
por Deus. Do século X até o século XV, a para Freud, que não se cansou de citá-lo e de
chamada Baixa Idade Média, temos o perío- aprender com ele.
do do auge do feudalismo, no qual a Europa No século XVI aparece o empirismo com
começou a sofrer transformações através da o filósofo inglês Francis Bacon, que, inver-
urbanização e do comércio entre os países. tendo a lógica de Aristóteles, declara que
Vemos, então, a chegada do Renascimento. tudo que se podia criar pela elevação do
Esse movimento consistiu na revaloriza- espirito já tinha sido feito pelos gregos (na
ção da Antiguidade Clássica, principiado na filosofia e na ética) e os romanos (nas leis
Itália tendo como principais características o e na política). Quando os escravos começa-
humanismo, o antropocentrismo, o indivi- ram a rarear, nossos antepassados de então
dualismo, o universalismo, o racionalismo, o se lembraram das oportunidades oferecidas
cientificismo e a valorização da Antiguidade pelos instrumentos e passaram a se preocu-
Clássica (greco-romana). Daí o nome de Re- par com as inovações que levariam ao pro-
nascença. Se, na Idade Média, a privacidade gresso da ciência e à revolução industrial (De
era quase inexistente, com as pessoas viven- Masi, 1993). Iniciava-se, assim, a Economia
do muito mais no coletivo, no Renascimen- Moderna, e estava sendo estabelecido o Ilu-
to, já se valorizava mais a interioridade e a minismo, dos séculos XVII, XVIII e XIX, os
possibilidade das diferenças. chamados de séculos das luzes por seu gran-
Nesse final do século XV e princípio do de avanço nas ciências e nos ideais de liber-
século XVI não posso deixar de citar não um dade e do afastamento de mistérios e crenças
filósofo, mas um escritor e dramaturgo de religiosas rígidas. Seus seguidores queriam
imensa importância, William Shakespeare impulsionar o ser humano a investigar cien-
(1564-1616), que revolucionou a literatura e tificamente todos os fenômenos e buscar
o teatro com suas magníficas peças sobre o respostas sobre questões que antes somente
ser humano. Em toda a obra de Shakespea- eram respondidas por meio da fé. Atingiu
re, tanto em suas grandes tragédias, quanto seu apogeu no século XVIII, mas chegou até
nas comédias mais leves, há sempre uma o século XIX.
tentativa de descobrir quem somos nós, os A sociedade dos séculos XVIII e XIX
humanos. Já libertos de uma ideia religiosa foi marcada pelo Romantismo, movimento
opressiva, os personagens shakespearianos cultural e artístico que deixando para trás
se interrogam sobre as grandes questões da valores clássicos inaugura a modernidade.
vida e da morte, do poder, do amor, da liber- Eram seus valores o egocentrismo, com o in-
dade. O mundo medieval se desmoronava e divíduo encarado como o centro do mundo,
começava outro mundo, com a modernida- um sentimentalismo exacerbado, o nacio-
de. Urge ao ser humano a tarefa de trazer à nalismo, a idealização do amor romântico,
e o tom depressivo de vários autores, achan- momento, quando menos se espera: o in-
do uma fuga da realidade pela morte, pelo consciente.
sonho ou pela própria arte (Goethe, Byron, Ao considerar a normalidade como um
Victor Hugo, este já abordando o romantis- conceito econômico e a sexualidade como
mo social, representando a miséria do povo, um contínuo desde o nascimento até a morte
com Os miseráveis, chegando até aos india- do ser humano, Freud não só intrigou e re-
nistas brasileiros como Gonçalves Dias e voltou seus contemporâneos, mas principal-
José de Alencar). mente trouxe luz à constituição do sujeito: o
Em meados do século XIX nasce Freud que faz do Homem um ser humano? Apesar
(6 de maio de 1856), em Freiberg, na antiga da polêmica toda, inaugurou-se com a psica-
Morávia, hoje República Tcheca. Emigra com nálise um novo capítulo na história das men-
sua família para Viena, na Áustria, que era a talidades, com a subjetividade devidamente
capital da Confederação Alemã, congregan- considerada, sob o domínio da ciência e não
do vários países da Europa Central e do Les- mais apenas sob o domínio religioso e mís-
te, sob a batuta do imperador Francisco José tico.
I de Habsburgo. Em 1867, ano de sua coroa- Mas trazia uma novidade desconcer-
ção, se dá o compromisso da Áustria com a tante: o ser humano não é o senhor de sua
Hungria, formando o estado Austro-Húnga- própria morada. Muitos já tinham conside-
ro, que seria em sua breve existência o centro rado o inconsciente como uma gradação da
do mundo moderno. A emancipação dos ju- consciência. No entanto, Freud trazia agora
deus foi decretada pelo imperador em 1869, a consideração de que sua natureza era to-
o que possibilitou ao jovem Sigmund o estu- talmente diferente e possuía leis particulares
do da medicina. No período de sua fundação de funcionamento como atemporalidade,
até seu término em 1919, depois da Primeira lógica singular e não dependência da razão,
Guerra Mundial, o Império Austro-Húnga- não sendo acessível em termos volitivos ou
ro testemunhou uma intensa transformação cognitivos.
nas ciências, em geral, nas artes (pintura, li- Ao constatar seu interesse no psiquismo
teratura, música), na arquitetura, na filoso- humano e no estudo dos estados mentais,
fia, na política, engendrando e consolidando Freud parte para Paris, a fim de fazer um
a modernidade, numa verdadeira explosão estágio com Martin Charcot no Hospital La
do espírito criativo da época. Nesse cenário Salpetrière, onde se tratavam as histéricas
novo e aberto, surge a necessidade de se usar pela hipnose. Chegando da França, se liga ao
também a ciência para se aprofundar no ser médico judeu e amigo Joseph Breuer, que co-
humano e em suas idiossincrasias. A psica- meçava a lidar com a histeria através de um
nálise é inventada, no caudal de todos esses novo método catártico, de associação livre.
avanços (Schorske, 1979). “cura pela fala” ou “limpeza da chaminé”, foi
Criada no final do século XIX e conso- assim chamado esse novo tratamento pela
lidada na primeira metade do século XX, a paciente Anna O., pseudônimo de Bertha
psicanálise representa um mergulho no psi- Pappenheim (Breuer e Freud, 1895/1969).
quismo humano, dando espaço e relevo à Com a desistência de Breuer de continuar
subjetividade. Ao se embrenhar nos enigmas a atender Anna O., por causa dos ciúmes
da mente humana, o neurologista de então de sua esposa, Freud herda Anna O. e segue
se depara com a questão dos diferentes, dos com a experimentação desse novo formato
que não seguem o rebanho (as histéricas de de tratamento. Através de Breuer, Freud che-
Freud) e vai se dedicar à descoberta de uma ga até Wilhelm Fliess, médico judeu como
outra instância, até então não reconhecida, ele, ficam amigos e trocam uma longa cor-
que se aloja no mais profundo do psiquismo, respondência, relatando suas ideias e seus
mas que pode fazer uma irrupção a qualquer sonhos, casos pessoais e clínicos, o que vai
se constituir no que Freud chamou de sua edifício universal. Ao contrário, ela fala do
autoanálise. que há de inconsciente na cultura, daquilo
A princípio confinado apenas entre mé- que se manifesta no discurso da cultura. Em-
dicos judeus, Freud deseja abrir sua desco- bora a ciência não se preocupe com o sujeito
berta ao mundo e tenta uma parceria com que trabalha como produtor dela mesma, a
Carl Jung, não judeu e muito bem relaciona- psicanálise parte do que a ciência deixa de
do com o mundo psiquiátrico da época. Mas lado, que é justamente o sujeito do incons-
essa parceria não se sustentou, tendo Jung ciente e o mal-estar nas relações com a civili-
se dedicado a outros domínios mais místi- zação. Apesar disso, Freud usou o referencial
cos do psiquismo, o que Freud queria evi- da ciência para construir as ficções teóricas
tar a qualquer custo, pois almejava que seu com as quais o discurso analítico opera, o
conhecimento nascente fosse reconhecido que fez também Lacan, ao usar da linguística
como uma ciência, com toda a credibilidade e da topologia nas suas teorizações. A psica-
que ela implica. Freud trabalhou suas desco- nálise não é aplicável como a ciência, nem é
bertas validando-as primeiro em si mesmo e passível de verificações imediatas. Ela é um
depois em sua prática clínica, mas sem deixar discurso que se constitui como um efeito da
de construir uma teorização concomitante, a interdiscursividade, ou seja, ela possibilita
metapsicologia. Esses dois polos se influen- que diferentes discursos da cultura se rela-
ciam mutuamente: a clínica dá legitimação cionem.
à teoria e esta dá estrutura à clínica. Como Desdenhado a princípio pelo mundo
ciência do inconsciente a psicanálise ainda científico de sua época, que considerou suas
não tinha sido confrontada com nada que a teorizações um “conto de fadas científico”
superasse. A ótica freudiana enfocou desde nas palavras pejorativas de Krafft Ebing
os atos mais corriqueiros da vida cotidiana, (Freud apud Masson, 1986) Freud não de-
como um lapso de memória ou uma troca sistiu de seus achados e foi em frente como
de palavras, passando pela compreensão dos pôde.
sonhos como realização de desejos latentes, Formou, depois da separação de Jung, seu
à sexualidade presente desde o nascimento, pequeno comitê, com colegas de sua con-
à universalidade do complexo de Édipo, até fiança (Karl Abraham, Sandor Ferenczi, Otto
questões mais altamente estimadas, como a Rank, Max Eitington, Hans Sachs e Ernest
sublimação das pulsões sexuais pelo trabalho Jones, o único não judeu), para garantir a
intelectual e pela arte. As questões ligadas às sobrevivência da psicanálise. É dessa época
instituições culturais como a ordem social, a criação da IPA (International Psychoanaly-
a religião, a moral e a ética foram minucio- tic Association) e o desenvolvimento dessa
samente trabalhadas em seus textos sobre a ciência em Berlim como sua sede principal,
cultura. e com desdobramentos, como as clínicas so-
Ao considerar a psicanálise primordial- ciais criadas então.
mente como uma ciência do inconsciente, A Primeira Guerra Mundial trouxe uma
deixando em outro plano os procedimen- validação para a psicanálise, pois consolidou
tos terapêuticos, Freud quis evitar que ela uma ruptura com a razão, trazendo uma vi-
se transformasse apenas num capítulo a são pulsional dos processos históricos coleti-
mais da psicopatologia e que fosse colocada vos. Na guerra a pulsão é superdimensionada
como tal nos manuais de psiquiatria. Não e pode-se ver que a tradição é extremamen-
quis também que a psicanálise fosse ligada te precária e a cultura tem limitações. Além
à religião ou à ideologia. Tampouco quis disso, tudo que é produzido pelo ser humano
considerá-la como uma visão de mundo ou é relativo e nessa circunstância de um con-
um sistema filosófico, porque a psicanálise flito armado há uma quebra de padrões de
nunca se encarrega de preencher os furos do normalidade.
No pós-guerra Freud se dedicou à sus- Nos anos 1940 e 1950, a psicanálise é leva-
tentação teórica de sua clínica e produziu da aos Estados Unidos da América pelos psi-
muitos textos importantes: Além do princí- canalistas judeus exilados que escaparam do
pio do prazer, O ego e o id, Inibição, sintoma Holocausto. Mas com a morte desses o Ame-
e angústia, Análise leiga, entre outros. Mais rican way of life, com sua hegemonia adapta-
no final de sua vida, escreveu, os grandes tiva, vai propiciar uma psicanálise rala, dife-
textos culturais, como O futuro de uma ilu- rente da psicanálise subversiva proposta por
são, O mal-estar na civilização, A questão de Freud. Nesse meio tempo, entre os anos 1950
uma weltanshauung, O homem Moisés e a e 1960, surge o psiquiatra francês Jacques La-
religião monoteísta, O esboço da psicanálise, can, que vai reler Freud. Suas contribuições
que iriam se juntar aos já publicados Totem e mantêm e fazem evoluir o ideário freudiano,
tabu e Psicologia das massas e análise do ego. com uma leitura da sociedade pós-moderna,
A década de 1930 vai encontrá-lo doente, inaugurada na década de 1960, atualizada
com um câncer na mandíbula e confrontado para os contemporâneos. Freud, um homem
à ascensão dos nazistas. Com a anexação da marcado pelo iluminismo e o romantismo
Áustria ao Terceiro Reich de Berlim (1938), de sua época, rompeu com a moral vitoriana
as obras de Freud foram destruídas, o que do século XIX, batalhou pela desrepressão
lhe valeu o seguinte comentário: “Fizemos do sexo e deu voz às histéricas. Lacan, por
progresso. Na Idade Média teriam queima- sua vez vai trazer o conceito de gozo, muito
do o autor, hoje se contentam em queimar pertinente à época atual, em que a radicali-
os livros” (vídeo A invenção da psicanálise, dade e a busca do prazer aparecem em pri-
de Roudinesco e Kapnist). Mal sabia ele que meiro plano. Sintomas tais como a adição
os campos de concentração se encarregariam à droga, ao álcool, ao jogo, à comida, bem
de exterminar também os homens. Essa fú- como a anorexia e a bulimia são comuns nes-
ria destrutiva e sua decepção com a cultura ses novos tempos, além dos comportamen-
alemã culminaram com sua aceitação do exí- tos radicais que envolvem o corpo em perigo
lio na Inglaterra, patrocinado por sua amiga, mortal como a prática de alguns esportes, a
a princesa da Grécia Marie Bonaparte, que variação intensa de parceiros sexuais, com a
pagou à Gestapo por sua liberação. O regi- exposição a doenças letais e altamente lesivas
me de Hitler devastou a psicanálise de língua à saúde, como Aids, hepatite e outras. Lacan
alemã. A psicanálise nunca pode sobreviver é bem recebido na América Latina, sendo
em governos autoritários, pois é libertária que sua teoria baseada na constituição do
em sua essência. A submissão e a repressão inconsciente como uma linguagem é favo-
são incompatíveis com os princípios psica- recida pelas línguas de origem latina como
nalíticos. o francês, além de representar uma abertura
Com sua morte em Londres, em 23 de maior ao novo e à pós-modernidade. As tra-
setembro de 1939, e a subida macabra dos duções editoradas na Argentina contribuí-
nazistas na Alemanha, a Inglaterra passa a ram muito para a divulgação da sua obra nos
ser o centro da psicanálise, com a rivalida- países latinos.
de entre as psicanalistas Melanie Klein (que A psicanálise está tão imbricada na cul-
trouxe grandes contribuições principalmen- tura atual que já não podemos entender o
te à psicanálise da criança e ao papel da mãe) mundo sem seus conceitos básicos e seu
e Anna Freud, que não aderiu à teoria klei- jargão peculiar. A influência claramente as-
niana, favorecendo aspectos mais pedagógi- sumida dos conceitos psicanalíticos por mo-
cos da terapia. Um pouco mais tarde aparece vimentos artísticos como o surrealismo nas
Winnicott, também dedicado ao desenvolvi- artes plásticas, no cinema, e no teatro se fez
mento infantil, trazendo novos aportes à clí- logo notar. Salvador Dali, André Breton, Luis
nica psicanalítica. Buñuel, entre outros, com seu arrojo criativo
cial a questão do desejo do analista, que se dos seus portadores, o enriquecimento das
encontra na base da ética da psicanálise, pois artes, em geral, a busca de maior igualdade
o desejo é correlato à ação do analista em sua social (hoje vemos atendimentos em praça
clínica. Ele não se encontra do lado do ana- pública), até uma abertura às descobertas da
lista, e sim do analisando, mas vai depender neurociência, que Freud previu para o futu-
do analista e do desejo dele que todo o pro- ro. Enfim, todo um caudal de procedimentos
cesso ocorra ou não. O analista tem desejo, e da criação de uma mentalidade que valo-
mas não é o desejo singular dele que está em riza o ser humano em si mesmo, pelo que
causa. Mesmo após uma longa análise o ana- ele é. Sigamos, pois, adiante. Ainda há muito
lista não fica desprovido de desejo nem de caminho a palmilhar.
inconsciente. Os desejos são sempre infan-
tis, inconscientes e indestrutíveis. O analista,
pela própria experiência de análise, adquire Abstract
não só uma nova forma de saber reconhecer
o que é o desejo; essa é uma das vertentes do The author presents an overview of human
seu ‘saber fazer’ no processo analítico. O de- cultural evolution, starting from the begin-
sejo do analista é o de que a análise ocorra, nings of humanity, until the appearance of
que o analisando vá/compareça à sessão para psychoanalysis, in the late 19th and early 20th
falar. O analista não pode ceder de sua po- centuries. It introduces the figure of Sigmund
sição, caso contrário acabará demonstrando Freud, the creator of Psychoanalysis, and the
autoritariamente seu saber sobre o outro. É trajectory of this new knowledge, which brings
ele quem guia a análise, mas isso não quer to light the instance of the unconscious. She
dizer que ele guia a vida de quem ele escu- also talks about the main Freudian works,
ta. O analisando vai ao tratamento procu- reaching Jacques Lacan, in the 20th century,
rando o suposto saber do analista, mas este who rereads Freud. It also discusses the con-
deve reendereçar essa suposição de saber ao cept of Ethics, emphasizing that Psychoanaly-
inconsciente do analisando. O analista não sis has its own ethics, which is the ethics of the
pode dar consistência ao lugar que ocupa, subject of the unconscious, the ethics of saying
porque não pode se colocar como o grande this subject’s truth. Finally, she highlights the
Outro e repetir a condição do analisando de role of the analyst in society and the various
assujeitamento ao desejo do Outro, ao dese- openings that Psychoanalysis has brought to
jo dos pais. Como analista ele é apenas uma human beings.
função operadora. Essa é a ética lacaniana
para o par analista-analisando. Keywords: Cultural evolution, Psychoanalysis
Para concluir, temos de dizer que estes 125 and its trajectory, Subject of the unconscious,
anos de história psicanalítica transformam Ethics of psychoanalysis.
Freud talvez no principal pensador do século
XX, alguém que realmente arejou o conheci-
mento sobre o mundo e o incidiu na vida das
pessoas. Como ganhos para a humanidade,
a psicanálise legou todo um empenho que
assistimos em relação à pedagogia e à edu-
cação infantil, assim como aos movimentos
que foram fortificados pela sua ótica como:
maior paridade entre os sexos, o acatamento
às diversidades sexuais, a luta pela aceitação
das minorias étnicas, a compreensão do so-
frimento psíquico e a escuta incondicional
Resumo
O artigo discute o fenômeno da modernidade líquida sob a ótica da teoria do amadureci-
mento humano, de Winnicott. Para isso, analisou-se fragmentos do livro e cenas do filme
homônimos Precisamos falar sobre o Kevin, com foco na relação de Kevin e seu ambiente, para
sustentar a proposição de que a liquidez e a fragilidade dos laços sociais humanos são um
fenômeno macrossocial, composto por vários fenômenos microssociais, que apontam para
“falhas ambientais” em diversas esferas, mas que, de forma microssocial, têm sua origem na
qualidade da relação entre o ambiente-cuidador e o bebê, em um período primitivo específico
do desenvolvimento emocional – estágio de concern –, que compromete a aquisição da capa-
cidade de se preocupar com o outro.
De acordo com Bauman (2004), em linhas Os seres humanos, na visão desse autor,
gerais, os relacionamentos interpessoais, são estão sendo ensinados a não ter apego por
objetivados e adquirem o valor de mercado- nada nem ninguém, para não se sentirem
rias. Caso haja algum defeito em um deles, sozinhos. Com isso, na modernidade líqui-
troca-se por outro, porém nada garante que da, não se pensa mais na qualidade e sim
o indivíduo goste do novo produto ou que na quantidade, isto é, quanto mais houver
receberá seu dinheiro de volta. O fato é que dinheiro e relacionamentos, melhor será.
as mercadorias são trocadas em alta veloci- O consumismo cresce a cada dia, fazendo
dade e rotatividade, por exemplo, automó- com que os indivíduos não comprem mais
veis, aparelhos telefônicos ou computadores por desejo, e sim por impulsividade, tal qual
em bom estado são descartados como deje- acontece nas relações humanas.
tos quando versões atualizadas eclodem no Apesar de Bauman descrever o fenômeno
mercado de consumo. da modernidade líquida sob o ponto de vis-
Assim acontece nos relacionamentos hu- ta sociológico, carece de uma compreensão
manos: se não estiver satisfeito, troque por do ponto de vista psicológico mais abran-
outro e, supostamente, evite o sofrimento. gente. Em consequência disso, recorremos
Há também o que Bauman (2004) denomi- a Donald Woods Winnicott para refletir
na de “relacionamentos de bolso”: aqueles sobre esse fenômeno da liquidez dos laços
em que o indivíduo pode usufruir e dispor humanos a partir de seu referencial teórico
a qualquer momento de conveniência e de- do amadurecimento humano, com ênfase no
pois guardá-lo para ser utilizado em outras conceito de concern.
ocasiões.
Procure as pessoas apenas quando estiver O estágio de concern em Winnicott
precisando de algo, depois delete, já que não Um dos principais textos em que Winnico-
lhe servirão mais para nada. Caso um supos- tt (1954-1955/2021) aborda o conceito de
to amigo faça algo que o desaponte, desco- concern é A posição depressiva no desenvol-
necte-se dele e procure outro para exercer o vimento emocional normal. O termo “posi-
papel de ombridade. Isso também serve para ção depressiva”, na verdade, é uma expres-
frustações geradas por familiares: afaste-se são formulada por Melanie Klein, de quem
deles sem ao menos entender o contexto da o autor faz uma releitura particular ao apre-
situação vivenciada geradora do conflito. To- sentar ao leitor uma forma de articular esse
dos são descartáveis e servem apenas para sa- conceito com a teoria do amadurecimento
tisfação das necessidades de quem as utiliza. humano. A ênfase do artigo recai sobre a
A sociedade se pauta em uma nova ética posição depressiva como uma conquista do
das relações sociais, que estão cada vez mais desenvolvimento emocional primitivo do
desumanas e fragilizadas. A confiança no ser humano.
próximo está em ruínas, há uma dificuldade A respeito da nomenclatura “posição de-
de se confiar no outro. Nesse sentido, os pressiva”, Winnicott (1954-1955/2021) con-
seres humanos estão sendo usados por eles sidera que o termo não é adequado para
mesmos. Os seres humanos temem o so- descrever um processo normal do desenvol-
frimento e, de acordo com Bauman (2004) vimento emocional que engloba a totalida-
imaginam, que, como não mantêm uma re- de dos fenômenos ocorrentes nesse período.
lação duradoura e estável, poderão controlar Todavia, é preciso frisar que, até o momento
esse sofrimento ou diminuir a dor ao descar- da redação do seu artigo, na década de 1950,
tar os amigos, se afastar de seus familiares ninguém havia lançado uma terminologia
etc. O desgaste emocional e a solidão, sob mais adequada para essa fase. Diante disso,
essa perspectiva, são os principais problemas o autor propõe “estágio de concern”, que foi
para a humanidade. adotado neste trabalho.
O estágio do concern, de acordo com mais estabelecida; e (d) que consiga diferen-
Winnicott (1954-1955/2021), é uma aquisi- ciar fantasias de fatos (Moraes, 2010).
ção pertencente à idade do desmame. Quan- No estágio de concern, um dos fenômenos
do há um “ambiente suficientemente bom”, mais importantes diz respeito à percepção da
essa posição é alcançada e se estabelece em criança de que ela e o cuidador são pessoas
algum período da segunda metade do pri- únicas e totais, seja no estado excitado, seja
meiro ano de vida. O estágio de concern lo- no estado tranquilo. Além disso, a partir da
caliza-se na fase de dependência relativa e integração da vida instintual de forma con-
aponta para a construção de um espaço in- sistente, o bebê se torna uma pessoa inteira,
termediário inserido entre o pequeno ser – com capacidade para se relacionar com pes-
que se encontra totalmente dependente de soas inteiras e não apenas com pessoas par-
seu ambiente cuidador –, mas que já começa ciais.
a caminhar, a reconhecer seus aspectos ins- Winnicott (1954-1955/2021, p. 440) afir-
tintivos e se preparar para as relações inter- ma:
pessoais.
Nesse sentido, entende-se o concern como Os estágios anteriores devem ter sido nego-
a culpa instaurada após o bebê se integrar a ciados com sucesso, na vida ou na análise, ou
uma unidade. Trata-se de uma conquista do em ambas, para que a posição depressiva seja
amadurecimento na vida desse pequeno ser alcançada. A fim de alcançá-la, o bebê deve
que aponta para o estabelecimento do círcu- ter com conseguido estabelecer-se como uma
lo benigno, o qual se mantém sem rupturas. pessoa inteira, e relacionar-se com pessoas in-
Diante dessa conquista, o concern pode ser teiras como pessoa inteira.
vivenciado na posição do Eu Sou, momento
em que o infans é capaz de adquirir posição E é nessa perspectiva que Winnicott (1954-
mais autônoma, reconhecer seu potencial 1955/2021) finaliza ao ressaltar que, caso
instintivo e agressivo e responsabilizar-se tudo ocorra bem no desenvolvimento emo-
por seus atos e pensamentos, adquirindo, as- cional da dupla cuidador-bebê, é possível
sim, a capacidade de reparação (Winnicott, perceber um bebê inteiro (pessoa inteira)
1954-1955/2021). relacionado a um cuidador inteiro (pessoa
Para que haja a conquista do concern, são inteira), no qual foi alcançado o estágio de
necessárias algumas condições ambientais concern. Do contrário, há outros percalços a
ofertadas pelo ambiente-cuidador, que facilita serem trilhados, que serão analisados a par-
esse processo de amadurecimento. A saber: tir do personagem Kevin e sua relação com
a sobrevivência do ambiente-cuidador aos seu ambiente/cuidadores: a mãe, o pai e seu
ataques instintivos do bebê, possibilitando contexto de relações, tendo como referência
que ele vá em direção ao mundo externo; e o livro (Shriver, 2012) e o filme homônimos
a sustentação da situação no tempo – o que Precisamos falar sobre o Kevin (2011), dirigi-
favorece a noção de temporização do bebê. A do por Lynne Ramsay, do qual esses perso-
conquista do concern possibilita à criança vir nagens fazem parte.
a tornar-se pertencente e relacionar-se com o
mundo, além de contribuir para com ele por Kevin e seu ambiente:
meio do uso construtivo dos instintos. por uma incapacidade
As condições essenciais para que ocorra de se preocupar com os outros
esse processo são: (a) que o bebê consiga es- Logo na contracapa do livro é possível entre-
tar integrado a uma unidade; (b) que os está- ver o resumo da obra. Lionel Shriver narra
gios primitivos tenham sido percorridos sem a história de Kevin Khatchadourian, jovem
inúmeros entraves e problemas na vida; (c) de 16 anos, responsável por cometer uma
que o indivíduo tenha uma noção temporal chacina no ginásio de uma escola localizada
no subúrbio da cidade de Nova Iorque, que chas e as pusemos nessa aposta ridícula de ter
vitimou, ao todo, sete colegas, uma profes- um filho? (Shriver, 2012, p. 22).
sora e um servente. Segundo a autora, não se
trata de mais uma ficção de crime, castigo e Gradativamente, a vida profissional exito-
pesadelos americanos. A obra em questão é, sa e a relação amorosa estável que Eva tinha,
sobremaneira, um romance epistolar em que cedem espaço à discussão de ter um filho.
Eva, mãe de Kevin, redige cartas ao pai do Nessas discussões, entre ela e o companhei-
adolescente, Flanklin, já falecido. ro, Eva admite que
Com essas cartas, Eva tenta racionalizar as
possíveis razões que levaram Kevin ao ato ex- [...] quando o assunto era procriar, um de
tremista de extermínio em massa, mediante nós sempre acabava entalado no papel de
reflexões e meditações que envolvem as lem- desmancha-prazeres e, em nossa última con-
branças construídas durante o seu relaciona- tenda, eu havia jogado água fria na fervura da
mento com Franklin, ao mesmo tempo em procriação: uma criança significava barulho,
que relembra sua trajetória profissional, na sujeira, restrições e ingratidão (Shriver, 2012,
qual, num dado momento, precisou abando- p. 33).
nar suas atribuições bem-sucedidas de fun-
dadora de uma empresa de guia de turismo. É como se Eva não se sentisse confortável
Por fim, Eva realiza um reexame global: com a ideia da maternidade, ainda assim
desde o fato de ter medo de ser mãe e do mo- acabou cedendo em prol de que algo maior
mento do parto, passando pelo distinto bebê poderia acontecer na vida do até então casal,
que já causava pânico nas baby-sitters. Expõe em “querer mais alguém para amar” (Shriver,
os relatos biográficos de um garoto maquia- 2012, p. 31). Contudo, a fantasia que vai
vélico que apresentou desvios de condutas sendo construída em torno da vinda de
sociais e comportamentos incomuns na ado- um filho é igualada ao sentimento de “uma
lescência, quando, por exemplo, colecionou menina de sete anos de idade à espera de
vírus de computadores e praticou exercícios ganhar de Natal uma boneca que fizesse xixi”
de arco e flecha, uma de suas poucas distra- (Shriver, 2012, p. 23), isto é, um brinquedo,
ções. Eva também revela o sentimento de fe- completamente distante de qualquer dimen-
licidade interior que encontrou após o nasci- são real de implicações e responsabilidades
mento de segunda filha, que, diferentemen- que envolvem criar uma criança.
te da gestação de Kevin, foi desejada e com É quando Eva enumera uma lista de
quem tinha uma relação amável. ressalvas sobre a maternidade, que aprendeu
ao longo de suas vivências:
A relação cuidador-ambiente
e Kevin: os primórdios de sua história 1. Pentelhação;
Já nos afirma Winnicott que o bebê por si 2. Menos tempo só para nós dois. (Que tal
só não existe, porém existe dentro de uma tempo nenhum só para nós dois?);
relação com alguém que dele cuida. Partin- 3. Os outros. (Reunião de pais e mestres. Pro-
do dessa premissa, as nossas discussões em fessores de balé. Os amigos insuportáveis
torno da história ficcional começam com o das crianças e seus insuportáveis pais);
estágio de gestação de Eva Katchadourian, 4. Virar uma vaca gorda, (Eu era esbelta e
mulher que não nutre o desejo de ser mãe. preferia ficar como estava. Minha cunha-
De imediato, da teve varizes durante a gravidez, aquelas
Eva se questiona: veias enormes nas pernas dela nunca mais
desincharam, e a perspectiva de ver mi-
O que deu em nós? Éramos tão felizes! Então nhas panturrilhas se ramificando em radí-
por que motivo retiramos todas as nossas fi- culas azuis me torturava mais do que eu
poderia admitir. De modo que não admiti ral normativo do patriarcado (modelo de sis-
nada. Sou vaidosa, ou já fui um dia, e uma tema social/cultural que favorece o homem),
de minhas vaidades era fingir que eu não que, ao instaurá-la como a obrigação prio-
tinha vaidade); ritária e o destino de toda mulher, acarreta
5. Altruísmo artificial: ser reforçada a tomar intensos sofrimentos psíquicos a ela, pois
decisões segundo o que é melhor para não está em questão aqui o instinto biológi-
uma outra pessoa. (Eu sou pavorosa); co materno, mas sim o desejo de maternar.
6. Redução nas minhas viagens. (Note que eu Eva, talvez, sinta-se cobrada em ter o “algo a
disse redução. Não fim delas); mais” em seu relacionamento, situação que
7. Tédio enlouquecedor. (Eu achava criança vem à tona quando argumenta que o filho
pequena uma chatice inominável. E, desde fará companhia ao marido.
o princípio, sempre admiti isso para mim
mesma); Você tivesse me deixado com um filho na bar-
8. Vida social imprestável. (Nunca consegui riga. Com um filho na barriga: há uma resso-
ter uma conversa decente na presença de nância quente e gostosa nessas palavras, um
crianças de cinco anos na sala); reconhecimento arcaico, mas terno de que,
9. Rebaixamento social. (Eu era uma empre- pelos nove meses seguintes, você terá compa-
sária respeitada. Assim que aparecesse nhia para onde quer que vá (Shriver, 2012, p.
com uma criança a tiracolo, todos os ho- 39).
mens que eu conhecia – e todas as mulhe-
res também, o que é deprimente – deixa- Em contraposição ao termo “grávida”,
riam de me levar tão a sério); que Eva considera “pesado, volumoso, que
10. Arcar com as consequências. (Procriar é aos meus ouvidos sempre me pareceu uma
saldar uma dívida. Mas quem quer saldar péssima notícia”, prefere “eu estou grávida”. E
uma dívida da qual se pode escapar? Tudo complementa:
indica que as mulheres sem filhos escapam
impune e furtivamente. Além do mais, Instintivamente, já imagino uma garota de
de que adianta pagar uma dívida para o dezesseis anos, à mesa do jantar –pálida, do-
credor errado? Só a mais desalmada das entia, com um namorado canalha – fazendo
mães poderia se sentir recompensada da um esforço danado para desembuchar os pio-
trabalheira ao ver a própria filha levando res temores de sua mãe (Shriver, 2012, p. 39).
finalmente uma vida tão horrenda quanto
a sua) (Shriver, 2012, p. 38-39). Trata-se de uma representação da diferen-
ça quando o filho é pensado para si, o filho,
É notório que as inúmeras preocupações aqui, irá apenas trazer prejuízos a si mesma.
de Eva recaem sobre sua própria pessoa, Eva parece não conceber positivamente o de-
inclusive a vida profissional, social, sejo de maternar e conseguir cuidar de uma
amorosa. Em nenhum momento cogita- criança, fator que aponta para o não surgi-
se as necessidades naturais de uma criança mento de uma “preocupação materna pri-
de receber um olhar especial como se mária”, que, futuramente, irá incidir na sua
as suas demandas devessem ser sempre relação com Kevin. Infere-se que suas repre-
prioritárias diante das necessidades do sentações sobre a maternidade e gravidez são
filho. “Qualquer que seja o gatilho, o sempre atravessadas por sentimentos hostis
chamado não penetrou meu sistema e isso e confusos.
me deixou com a sensação de que havia A preocupação materna primária, é apon-
sido enganada” (Shriver, 2012, p. 39). tada por Winnicott (1956/2021) como uma
A qual chamado Eva se refere? À materni- “doença normal” que possibilita ao cuidador
dade, enraizada a um sistema social e cultu- uma adaptação delicada e sensível às neces-
sidades do bebê nos primórdios de sua vida, Essa falha ambiental vivida pelo bebê no
pela via da identificação, deixando de lado início de sua vida provoca uma ameaça de
temporariamente seus interesses pessoais, aniquilação, um sentimento de ameaça à
não se materializa na relação de Eva e Kevin. existência pessoal. No romance, observamos
Isso porque o cuidador que desenvolve esse o descompasso dessa ausência de identifica-
estado de adaptação fornece um contexto ção entre cuidador e bebê, quando Kevin,
para que se manifeste o desenvolvimento da ainda pequeno, chora frequentemente e des-
criança, em que tendências ao amadureci- perta em Eva o sentimento da frustação e do
mento começam a ser desdobradas e o bebê incômodo, já que ela não consegue abrandar
experimenta movimentos espontâneos e se o filho.
apropria das sensações equivalentes a essa A mãe está tão perdida nessa função de
etapa inicial de vida (Winnicott, 1956/2021). cuidados, que nem sabe o que fazer e quais
É por meio do cuidado ofertado ao bebê decisões deveria tomar em relação a Kevin.
que a continuidade de seu ser se manteria. No filme, este momento é muito nítido na
Falha o ambiente/cuidador que não consegue cena em que Eva aparece na rua diante de
ofertar esses cuidados ao bebê. Tais falhas es- uma obra de construção, depois de várias
tão presentes em todas as relações entre cui- tentativas frustradas de apaziguar o choro
dador e bebê, mas que aqui dizem respeito a de Kevin, porém muito satisfeita ao perceber
uma falha ambiental que para o bebê é insu- que o filho cessava o choro com o barulho
portável e persiste no tempo continuamente. das máquinas.
Nesse sentido, o bebê sente-se invadido Outro aspecto importante que cabe ressal-
por algo que Winnicott denominou de in- tar nas dificuldades de Eva – nesse primeiro
trusão: aquilo que interrompe a continuida- momento, quanto ao cuidado de Kevin – re-
de de ser do bebê. E a natureza dessa intru- porta aos cuidados da mãe recebidos quando
são provém do ambiente. Quando se trata era um bebê. Cumpre esclarecer que não está
de uma intrusão persistente no tempo, por em discussão aqui a hipótese de culpabiliza-
demais intensa ou prematura, e o resultado é ção do ambiente-cuidador que falha no sen-
traumático, cabendo ao bebê apenas reagir a tido de uma intencionalidade de cuidados
essas intrusões/falhas ambientais, conforme não ofertados, mas de uma incapacidade de
o psicanalista salienta: identificação com um lugar que não pôde
ocupar quando também era um bebê e, assim,
[...] pode-se dizer que uma proteção do ego poder desfrutar de um ambiente facilitador.
suficientemente boa pela mãe (em relação a Winnicott (1966/2019, p. 20) articula a
ansiedades inimagináveis) possibilita ao novo preocupação materna primária com esse fa-
ser humano construir uma personalidade tor:
que segue o padrão de um continuar a exis-
tir. Todas as falhas (passíveis de produzir an- [...] penso que é comum a mulher entrar em
siedade inimaginável) acarretam uma reação uma fase, da qual é comum ela se recuperar
do bebê, e essa reação intercepta o continuar em algumas semanas ou meses após o nasci-
a ser do bebê. Se esse tipo de reação persis- mento do bebê. Não há nada de místico nis-
te e, o continuar a ser do bebê é recorrente- so. Afinal, ela já foi um bebê e tem em si as
mente interrompido, instaura-se um padrão memórias de já ter sido um bebê; ela também
de fragmentação do ser. O bebê cujo padrão tem a memória de ter sido cuidada, e essas
é o de fragmentação da continuidade de ser memórias ou ajudam ou atrapalham suas ex-
tem uma tarefa de desenvolvimento que fica, periências como mãe.
praticamente desde o início, sobrecarrega-
da no sentido da psicopatologia (Winnicott, A relação de Eva e sua mãe também é des-
1962/2022, p. 76). crita nas cartas endereçadas ao companheiro
Frankin, quando confessa que um de seus dá muita opção de escolha” (Shriver, 2012, p.
esportes favoritos era falar mal de seus pais, 35). Após a apresentação de um panorama
que foram, nas palavras de Eva, “pessoas que do ambiente psíquico-familiar em que Eva
me deixaram maluca” (Shriver, 2012, p. 34). esteve refém por muito tempo, dedicaremos
Em um desses momentos comenta o seu re- nossa atenção a partir de agora à relação tur-
ceio de se parecer com a própria mãe e de bulenta de Eva e Kevin, marcada por uma
ter o mesmo destino desta, descrita como série de dificuldades de estabelecimentos
alguém ausente, ainda que presente em sua de vínculos afetivos entre mãe e filho, cujas
casa. A possível falta de identificação da mãe causas remontam, entre outros fatores, a as-
para com Eva é ainda mais notável no tre- pectos transgeracionais, isto é, aqueles que
cho em que afirma que precisava estar sem- estão envolvidos na transmissão da relação
pre disponível para realizar as necessidades e cuidador-bebê.
desejos de sua mãe, sem ter as suas próprias Um tópico interessante que merece a sus-
necessidades consideradas. citação de debates, e que está presente nessa
relação, é o holding, na passagem em que Eva
Quando criança, estava sempre indo fazer não consegue conter e aconchegar Kevin em
algo para o qual era pequena demais, e isso, seu colo. Já no filme, por sua vez, é mostrada
portanto, me apavorava. Ela me fez sair para a cena da mãe balançando o filho para cima
procurar uma junta de vedação para a pia da e para baixo, longe de seu próprio corpo,
cozinha quando eu tinha oito anos de idade. numa tentativa desesperada de acalmá-lo.
Ao me forçar a ser sua emissária, quando eu Sobre o holding, Winnicott (1967/2019, p.
ainda era muito nova, minha mãe conseguiu 76) reitera:
reproduzir em mim a mesma angústia des-
proporcional diante das pequenas interações [...] no início, entretanto, é o segurar físico
com o mundo externo que ela própria sentira da estrutura física do bebê que fornece uma
aos trinta e dois anos (Shriver, 2012, p. 44). condição psicológica boa ou ruim. Segurar e
manusear bem facilita os processos de ama-
Com base nessa citação, /Diante disso, durecimento, enquanto segurar mal implica
podemos depreender que Eva se sentia for- interrompê-los repetidamente em decorrên-
çada a ter que atender sempre às demandas cia das reações do bebê ante falhas na adap-
de sua mãe, de quem relembrava com pavor. tação.
São recordações associadas a um ambiente
não facilitador que anulava as necessidades O fato é que o holding é a base sobre a qual
pessoais de Eva, como se ela fosse apenas um a confiança é estabelecida em um mundo
brinquedo, expressão utilizada pela persona- amigável, pois, ao ser bem segurado, o bebê
gem para se referir ao filho Kevin. se torna apto a amadurecer emocionalmen-
Desse modo, a ausência de cuidados exer- te. Como pudemos observar, Eva não conse-
cidos continuamente no tempo e no espaço guiu oferecer esse suporte a Kevin. E quanto
dificulta o processo de internalização de um à figura do pai? Qual a sua função nesse pro-
ambiente suficientemente bom, que possibi- cesso?
litasse a Eva transmitir ao próprio filho uma Winnicott (1966/2019, p. 21) trata desse
experiência ambiental satisfatória, pois ela momento inicial da relação cuidador-bebê:
mesma não foi uma criança valorizada e aco-
lhida em seus gestos espontâneos. [...] penso que, quando o bebê está pronto
No que diz respeito ao seu pai, Eva rela- para o nascimento, a mãe — se amparada
ta que faleceu um ano antes de ela nascer e adequadamente por seu companheiro, pelo
que, por isso, se queixava já que restaram a Estado de bem-estar social ou por ambos —
ela somente “minha mãe e irmão, e isso não está preparada para essa experiência em que
ela sabe extremamente bem quais as necessi- uma briga. Não, era tudo alegrinho, na base
dades do bebê. do cachorro-quente e das pastinhas de queijo.
Uma fraude completa, sabe? Era tudo Vamos
É inegável nesse momento o apoio do am- ao Museu de História Natural, Kev, eles têm
biente, inclusive todas as pessoas envolvidas umas pedras que são mesmo geniais! Ele era
no processo de amadurecimento do bebê, se- ligado numa espécie de fantasia da Liga In-
jam elas o pai, sejam outras representações fantil de baisebol, ficou congelado lá nos anos
significativas ou substitutas de referências, cinquenta. Eu ouvia aquele negócio de Eu te
uma vez que compõem o ambiente facilita- aaaaaaaamo, parceiro! e ficava só olhando
dor. Em relação/Quanto ao ambiente-facili- pra cara dele, tipo assim, Com quem você tá
tador, Winnicott (1968/2019, p. 38) pontua: falando, cara? Que quer dizer esse negócio de
o papai ‘amar’ você e não ter uma p[bip] de
Do meu ponto de vista, a saúde mental do ideia de quem você é? Então, quem é que ele
indivíduo começa a se estabelecer desde o amava? Algum garoto do Happy Days, não eu
início pela mãe que fornece o que chamei de (Shriver, 2012, p. 411).
ambiente-facilitador, em meio ao qual os pro-
cessos naturais do crescimento do bebê e as Nesse ponto, o pai de Kevin parece ter fa-
interações com o ambiente podem evoluir de lhado também como parte de um ambiente
acordo com o padrão herdado pelo indivíduo. facilitador sob inúmeros aspectos, em razão
das dificuldades psíquicas e dos aspectos
De forma mais ampla engloba-se, ao lon- subjetivos que atravessaram o seu desenvol-
go do desenvolvimento da criança, a rede vimento emocional pessoal. Em outras pa-
de apoio do cuidador de referência, como lavras, Franklin não conseguiu ofertar a sua
a escola, o Estado etc. No tocante à rede de companheira uma “capa protetora” para que
apoio de Eva, ela se faz precária, já que ao ela pudesse exercer a maternagem adequada
seu redor não há pessoas que possam ajudá nos momentos iniciais da vida de Kevin.
-la nesse processo complexo de maternagem. Além disso, diante da ausência de alguma
Em se tratando do pai de Kevin, não houve figura de referência que ofertasse uma ma-
demonstrações de atenção às necessidades ternagem suficientemente boa, não conse-
de Eva, a ponto de menosprezá-las taxativa- guiu exercer tal função que perpassaria pela
mente ou até de achar que estaria inventan- figura de um “pai suficientemente simbóli-
do coisas sobre Kevin, falhando, assim, em co” (Dethiville, 2014), que viria, mais adian-
perceber os comportamentos desafiadores e te, durante o percurso do desenvolvimento
violentos expressos pelo filho. emocional.
Já no que diz respeito à percepção de Ke- Ademais, fica evidente no filme que o pai
vin, vislumbramos que seu pai vivia distan- não reconhecia os comportamentos desafia-
te, aparentando estar em uma realidade pa- dores e violentos, expressos pelo filho, mini-
ralela. Kevin reclama até de que o pai não o mizando os problemas sob o argumento de
conhecia de verdade, como o leitor pode ser que era apenas um menino e que, portanto,
perceber na cena em que há o diálogo entre era natural os garotos apresentarem esse per-
Kevin e Marlin, apresentador de um veículo fil.
de comunicação. Todas as situações aqui discutidas em
torno de Kevin e de seu ambiente/cuida-
Podemos falar um pouco de seus pais, Ke- dores nos conduziram a conjecturas acerca
vin? Recomeçou Marlin. Mãos atrás da cabe- de determinados entraves relacionados ao
ça. “Manda ver”. “O seu pai... vocês se davam desenvolvimento emocional e ao compro-
bem, ou brigavam?” “O sr. Plástico?”, zombou metimento em estabelecer e manter os laços
Kevin. “Seria sorte minha se a gente tivesse sociais do protagonista, sobretudo quanto à
sua incapacidade de reconhecer a alteridade da mãe como parte do ambiente total (Winni-
– não importando se os outros são pessoas cott, 1963/2022, p. 24).
ou animais.
Em circunstâncias ambientais favoráveis
O estágio de concern em Kevin ao desenvolvimento emocional, a face de
e suas raízes na relação líquida mãe-objeto do cuidador sobrevive aos im-
cuidador-bebê pulsos instintivos emitidos pelo bebê, assim
Sobre a capacidade de concern, Winnicott como na condição de face de mãe-ambiente
(1963/2022) afirma que é um aspecto cen- do cuidador há uma função primordial: estar
tral da vida em sociedade. O concern implica lá para receber o gesto espontâneo do bebê,
mais integração, mais amadurecimento e se ser empática e cuidar desse pequeno ser.
relaciona com o senso de responsabilidade Os impulsos instintivos levam ao uso des-
do indivíduo, principalmente no que se re- medido dos objetos, fazendo com que surja
fere aos relacionamentos que envolvem os um sentimento de culpa, que é aplacado pela
impulsos instintivos. “A consideração é um contribuição à mãe-ambiente que o bebê
indício de que o indivíduo se preocupa, ou se pode fazer no decorrer temporal. Além do
importa, e tanto sente como aceita responsa- mais, há que considerar
bilidade” (Winnicott, 1963/2022, p. 92). Tra-
ta-se de uma organização mais complexa do [...] a oportunidade para doar e fazer repa-
ego, uma conquista do cuidado do bebê, da ração – que a mãe-ambiente oferece por sua
criança e dos processos internos de cresci- presença consistente – permite que o bebê se
mento destes. torne cada vez mais ousado ao experimentar
Em vários momentos do livro e do filme, seus impulsos instintivos; ou, dito de outro
somos surpreendidos pelo nível de frieza que modo, libera a vida instintiva do bebê (Win-
Kevin demonstra pelas pessoas ao seu redor, nicott, 1963/2022, p. 96).
revelando incapacidade de se preocupar com
os outros e ausência de empatia ou conside- Consoante Winnicott (1963/2022), o fra-
ração por outrem. Essa falta de benevolên- casso das faces de mãe-objeto em sobreviver
cia, como já foi discutido em parágrafos an- ou de mãe-ambiente em fornecer oportuni-
teriores, se traduz pelo estágio de concern, à dades sólidas para a reparação coordena não
luz da concepção winnicottiana. somente a perda da capacidade de concern
Cumpre esclarecer que o concern surge na como também sua substituição por ansieda-
vida do pequeno ser como uma experiência des e determinados tipos de defesas, a exem-
de união, na mente do bebê, envolvendo a plo da cisão e desintegração.
“mãe-objeto” e a “mãe-ambiente”. Essas ex- Retomemos alguns dos principais episó-
pressões de Winnicott (1963/2022) destacam dios e fatos da vida de Kevin, que nos permi-
duas faces dos cuidados maternos ofertados tem apresentar exegeses a respeito da manei-
pela figura de referência para o bebê. ra/do modo como a capacidade de concern
Nas palavras do teórico, há falhou no desenvolvimento emocional do
personagem central, cujas consequências,
[...] a mãe como objeto, ou possuidora do ob- quando levadas ao extremo, revelam, senão,
jeto parcial que pode satisfazer as necessida- sua incapacidade de consideração pelas pes-
des urgentes do bebê, e a mãe como a pessoa soas. E aqui estamos aludindo diretamen-
que evita o imprevisto e que ativamente provê te à cena da famosa quinta-feira, abordada
o cuidado, por meio do manuseio e do ma- no livro e no filme, na qual Kevin arquiteta,
nejo em geral. O que o bebê faz no ápice da friamente, todos os passos do seu plano de
tensão do id e o uso que assim faz do objeto assassinar cada uma das pessoas que foram
me parecem muito diferentes do uso que faz atraídas até o ginásio da escola. A maneira
como Kevin se relacionava com sua irmã, acidente que fez a irmã perder um dos olhos.
seu pai e sua mãe nesse sentido, revela alguns Frente a esses atos condenáveis socialmente,
dos indícios de comprometimento dessa ca- Kevin não manifesta nenhum tipo de sen-
pacidade de concern. timento de culpa ou remorso. Na verdade,
Um dos atos dessa trama que ilustra a in- mostra-se apático diante dos sentimentos da
capacidade de Eva de sobreviver aos ataques irmã, que sofre duplamente, tanto pela perda
e não conseguir conter os impulsos instin- de seu animal quanto pelo trauma de ter um
tivos de Kevin é o instante em que o ado- dos olhos lesionados permanentemente.
lescente pintou, com diversas tintas, a sala Por tudo que foi problematizado até aqui,
inteira da mãe, destruindo o trabalho dela. julgamos a análise de Kevin e seu ambiente
Esse episódio gerou excessiva fúria e reação como um tipo de relação revoltosa, marcada
desmedida por parte de Eva em relação ao fundamentalmente por sentimentos ambi-
filho, que é segurado por ela e arremessado valentes e inúmeras dificuldades de inves-
contra a parede, resultando na fratura de um timento emocional, quando se trata do am-
dos braços de Kevin. biente e da manifestação da fragilidade de
Há outros momentos turbulentos nos estabelecimento de vínculos afetivos.
quais Eva não sabe lidar com a agressividade Esses tipos de vínculo podem ser lidos,
de Kevin e, ao mesmo tempo, não consegue diante das passagens retomadas do livro e do
se identificar com as necessidades do primo- filme ao longo do trabalho, como entraves ao
gênito, no sentido de oferecer a ele atenção estágio de concern, ainda que não tenhamos
e cuidados necessários enquanto mãe-am- desprezado outras abordagens teóricas com-
biente, o que nos possibilita usar o argumen- plementares em torno dessa categoria psica-
to da dificuldade de Kevin em integrar essas nalítica, principalmente aquelas que estão
duas facetas da mãe. situadas no campo das psicopatologias, as
Kevin, por causa disso, não poderia desen- quais também podem ser apropriadas, para
volver nenhum tipo de sentimento de culpa fins de análise, com base no caso de Kevin.
que, hipoteticamente, o fizesse ter considera- Eis uma pequena amostra de um contexto
ção pelo outro e isso pressupõe naturalmente mais amplo de modernidade líquida, em que
tentativas de reparação/aniquilação dos seus os laços sociais são efêmeros e precários.
impulsos agressivos direcionados ao mesmo
objeto, caso conseguisse integrá-los psiqui- Considerações finais
camente. O caso de Kevin ilustra as fragilidades e pre-
Os seus laços sociais, destituídos da não cariedades dos laços humanos desprovidos
aquisição da capacidade de concern, são ex- de empatia. É na direção desse quadro de
tremamente frágeis, como se a ele não fosse fragilidade que Bauman (2001) descreveu
concedido o exercício de reconhecer a alteri- suas observações em torno do conceito de
dade, ou ainda mesmo que ela existisse, ma- modernidade líquida – os laços sociais efê-
terializa-se precariamente. Sob esse prisma, meros, atravessados por uma lógica neolibe-
o reconhecimento do outro não é ponderado ral consumista, nos quais as pessoas são re-
como pessoa total, isto é, Kevin se relaciona duzidas a mercadorias. Ao realizar leituras,
com objetos parciais mediante mecanismos de caráter sociológico, o estudioso apontou
primitivos como a cisão. para a ausência de solidificação nas relações
Outras cenas que evidenciam a ausência humanas e capacidade de se preocupar com
do sentimento de culpa de Kevin são aquelas o outro.
protagonizadas entre ele e Célia, sua irmã. Tendo como parâmetro o caso Kevin,
No filme fica subentendido que o adolescen- propusemos examinar a modernidade líqui-
te matou o ratinho de estimação de sua irmã, da com base na teoria do amadurecimento,
além de ter sido o responsável direto pelo de Winnicott, enquanto fenômeno macros-
WINNICOTT, D. W. O desenvolvimento
da capacidade para a consideração (1963).
In: ______. Processos de amadurecimento e
ambiente facilitador: estudos sobre a teoria do
desenvolvimento emocional. São Paulo: Ubu, 2022.
p. 91-103.
Sobre os autores
E-mail: psi_luansampaio@hotmail.com
E-mail: pedrosoufpa@gmail.com
Resumo
Este ensaio estabelece pontos de contato entre uma abordagem metateórica denominada Teo-
ria dos Sistemas de Justificação (JUST; Henriques, 2022) e algumas premissas psicanalíticas.
A Teoria dos Sistemas de Justificação oferece um arcabouço explicativo visando esclarecer a
singularidade da consciência e da comunicação humana. Essa abordagem mantém uma pers-
pectiva evolutiva, preservando a continuidade com a experiência primata e enquadrando a
cultura humana como sistemas de justificação. Destaca-se a convergência com pressupostos
freudianos, notavelmente evidenciados pelo modelo tripartido atualizado, composto por eu
experiencial, eu privado (ego) e eu público (persona), paralelos com a estrutura tripartida do
isso, eu e supereu na teoria freudiana. A consciência humana é interpretada como um aparato
mental evolutivamente novo, cumprindo uma função adaptativa de narrar justificações que
legitimam e coordenam ações no plano cultural. Parte inferior do formulário
diálogo produtivo e nos levem a traçar inter- está além do escopo deste artigo e detalhes
conexões entre a teoria dos sistemas de justi- aprofundados podem ser encontrados em
ficação [Justification Systems Theory – JUST] Henriques (2022).
(Henriques, 2022) – e algumas premissas da
teoria psicanalítica. 1.1 As três alegações da teoria
dos sistemas de justificação
1. A teoria dos sistemas de justificação A questão central explorada pela JUST é a
(JUST) seguinte: Quais desafios adaptativos emer-
A JUST é uma metateoria que propõe uma giram com o desenvolvimento da linguagem
hipótese sobre a transição dos primatas para proposicional e quais foram as implicações
o homo sapiens. Ela busca compreender estruturais e funcionais subsequentes desse
como a aquisição da consciência1 e do mun- processo evolutivo?
do social ocorreram em resposta à capacida- Para investigar a interligação entre o uso
de singular da espécie humana para desen- da linguagem proposicional e a estrutura e a
volver linguagem proposicional. função da mente humana, a JUST adota uma
Parte-se da hipótese segundo a qual um abordagem de “engenharia reversa” (Denne-
problema adaptativo transformou a evolu- tt, 1995; Pinker, 1997; Kaminski; Milkowski,
ção da comunicação humana, tornando-a 2013). Essa abordagem baseia-se na observa-
qualitativamente única no reino animal e ção fundamental de Darwin de que o design
moldando os caminhos pulsionais responsá- funcional dos organismos é resultante da
veis pela dinâmica da consciência humana. seleção natural. Dessa forma, a metodolo-
Esse processo levou o ancestral do homem gia teórica da JUST consiste em associar as
a desenvolver a linguagem em uma fase es- características do design da consciência hu-
pecífica do desenvolvimento da espécie, mana e do uso da linguagem aos problemas
foram mudanças climáticas de proporções enfrentados no ambiente ancestral, orien-
avassaladoras, e esse desenvolvimento faz tando a formulação de hipóteses sobre a fun-
parte de nossa herança filogenética (Freud, ção evoluída da linguagem e a consciência
1915/1987). humana. Para um aprofundamento na for-
A metateoria JUST está inserida no con- mulação teórica da JUST, remetemos o leitor
texto mais amplo da teoria unificada do interessado a Henriques (2003).
conhecimento [Unified Theory of Knowle- A JUST propõe a possibilidade de que
dge – UTOK] (Henriques, 2022). A UTOK a autoconsciência humana tenha evoluído
se configura como uma metapsicologia que como resposta a uma nova pressão seletiva
viabiliza um alinhamento entre as ciências enfrentada por nossos ancestrais hominí-
naturais, a experiência subjetiva e o conhe- deos: a necessidade – que surgiu pela pri-
cimento intersubjetivo. Essa teoria encontra meira vez na história evolutiva – de nossos
seus fundamentos na ciência da psicologia e antepassados justificarem suas ações para si
na prática da psicoterapia, cumprindo a fun- e para os outros. Essa necessidade foi um
ção de estruturar um panorama integrativo problema adaptativo: o problema da justi-
na ciência psicológica e nas diversas escolas ficação.
de pensamento em psicoterapia. Cabe ressal- A JUST defende que a natureza da cons-
tar que uma descrição completa da UTOK ciência humana apresenta diferenças funda-
mentais em relação à dos outros animais e
que o problema da justificação deu origem à
1. Para Freud (1920), o desenvolvimento da consciência
num estrato particular da matéria viva foi um processo si- organização estrutural e funcional do eu hu-
milar aos atributos da vida que, em determinada ocasião, mano e ao desenvolvimento de sistemas de
foram “evocados na matéria inanimada pela ação de uma justificação em larga escala que coordenam
força de cuja natureza não podemos formar concepção”
(Freud, 1920/1996, p. 56).
grupos de pessoas, de tribos a nações.
A JUST é composta por três alegações in- liadas como verdadeiras ou falsas de acordo
terligadas: (1) a evolução da linguagem ge- com sua correspondência com a realidade.
rou dinâmicas que podem ser enquadradas Consequentemente, as proposições se esta-
como problema adaptativo da justificação, belecem como unidades fundamentais de
tendo moldado a evolução da consciên- significado que sustentam a comunicação e
cia e da cultura humana, de forma que (2) o pensamento lógico.
a natureza da consciência humana pode ser Dessa maneira, a linguagem pode ser
caracterizada pelo modelo tripartido atua- entendida como um sistema composto por
lizado da JUST, consistente com as noções proposições que carregam asserções de ver-
fundamentais de Freud a respeito da tensão dade, o que as torna sujeitas a questionamen-
entre as pulsões e os julgamentos do mundo to (Henriques, 2022). Tal questionamento dá
social, e (3) os ancestrais dos seres humanos origem a um ciclo de retroalimentação cru-
se tornam sujeitos por meio do processo de cial para a evolução da comunicação huma-
socialização em sistemas de justificação. Nas na: a dinâmica de perguntas e respostas.
seções subsequentes, exploramos mais essas Aqui, o termo “respostas” refere-se a afir-
ideias centrais. mações ou proposições que conferem sig-
nificado, enquanto o termo “perguntas” diz
2. O problema adaptativo respeito a questionamentos com a finalidade
da justificação: a hipótese da justificação de: (1) adquirir conhecimento proposicio-
A primeira ideia que compõe a teoria dos nal sobre o estado das coisas (“o que acon-
sistemas de justificação (JUST) é delineada teceu?”), (2) contestar afirmações (“por que
pela hipótese da justificação. Essa hipótese isso ocorreu?”) ou (3) destacar a ausência de
se apoia na premissa fundamental de que, conhecimento (“como isso se desenrolou?”).
em contraste com qualquer outra espécie Ao considerar a interação dinâmica entre
animal, os seres humanos desenvolveram a perguntas e respostas, a JUST reconfigura a
capacidade de fornecer explicações para seus unidade elementar de significado linguístico,
pensamentos, seus sentimentos e suas ações. frequentemente identificada como uma pro-
Dessa maneira, a JUST estabelece sua análise posição, como uma justificação.
a partir da evolução da linguagem proposi- A premissa para tal é a seguinte: o papel
cional, argumentando que, à medida que a funcional das proposições no campo social é
linguagem se desenvolveu para abranger o delineado por justificações empregadas para
uso de proposições e a habilidade de questio- legitimar algum conhecimento. Qualquer
ná-las, os seres humanos se tornaram os pri- proposição inserida no contexto social é sus-
meiros animais a apresentar a necessidade de cetível de questionamentos, seja por parte do
se justificar para os outros e para si próprios. indivíduo que a apresenta, seja por parte de
Ainda que diversas outras espécies ani- terceiros quanto a, pelo menos, (a) seu con-
mais exibam sistemas de comunicação com- teúdo lógico ou empírico; (b) o propósito
plexos, a linguagem humana permanece úni- para enfatizá-la naquele momento específi-
ca dentro do reino animal. Em sua essência, co; e (c) as implicações para o que deveria
a linguagem humana abrange a habilidade de acontecer, dada a proposição. A partir dessa
conferir símbolos a objetos e eventos manti- perspectiva, emerge um aspecto importante
dos na memória de trabalho e organizá-los da dinâmica da justificação. O problema da
em uma estrutura semântica e gramatical justificação envolve um conjunto de ques-
para compor significados (Henriques, 2022). tões relacionadas tanto aos aspectos factuais
Ao expressar asserções, os seres humanos quanto aos aspectos de valor de dada pro-
empregam proposições, unidades linguísti- posição. Uma distinção entre esses dois do-
cas que transportam informações de caráter mínios foi destacada por David Hume, que
factual ou descritivo e que podem ser ava- propôs a divisão entre questões de fatos ou
precisão (ou seja, o que é) e questões de valor básica, o problema analítico permeia nossas
ou interesse pragmático (ou seja, o que deve interações cotidianas, manifestando-se sem-
ser). Embora esses elementos estejam inti- pre que a veracidade de uma justificação é
mamente entrelaçados na experiência coti- questionada. A partir do momento em que
diana, eles podem ser discernidos de forma os sistemas de justificação evoluíram e se
conceitual. refinaram na era moderna, o problema ana-
O aspecto factual da justificação diz res- lítico tornou-se um elemento central para o
peito à avaliação das proposições quanto à empreendimento filosófico e científico. Por
sua veracidade, isto é, se podem ser consi- exemplo, a questão do comportamento dos
deradas como correspondentes à realidade objetos físicos na mecânica clássica é um
atual. Esse aspecto é prontamente identifi- problema analítico de justificação.
cado quando questionamos se a informa- Os elementos pessoal e social podem ser
ção que estamos obtendo de outra pessoa entendidos através do processo de “filtra-
é verdadeira ou não. O aspecto de valor do gem” que emerge à medida que a nossa ca-
problema da justificação se refere às consi- pacidade de justificar evolui. Primeiramen-
derações sobre o que deveria ser, ou como as te, a linguagem humana pode ser concebida
coisas deveriam ser conduzidas, no contexto como uma rodovia intersubjetiva de infor-
em que a justificação é empregada. Em sua mações que flui entre os sujeitos sem perder
forma mais pragmática, esse aspecto é repre- sua forma informativa. Em outras palavras,
sentado pela indagação: Por que atenção está o nosso uso da linguagem estabelece uma
sendo direcionada para essa afirmação pro- conexão mental direta entre sujeitos, dando
posicional neste momento e quais são as im- origem a uma forma de intersubjetividade
plicações disso para os envolvidos caso acre- explícita única na comunicação humana
ditem nela ou tomem ações com base nela? (Henriques, 2022). Esse desenvolvimento
Essas posições da JUST guardam resso- representa tanto vantagens quanto desa-
nâncias com uma das questões centrais da fios. Quando um grupo apresenta coesão
psicanálise, a saber, a da realidade psíquica. em seus valores, seus interesses e seus ob-
Para Freud (1914/1996), uma modificação jetivos, a via de intersubjetividade explícita
psíquica só pode ser compreendida, e talvez facilita o compartilhamento de informações
alterada, quando se alcança a verdade do su- e a coordenação em empreendimentos con-
jeito. Contudo, só podemos falar de verdade juntos, como caças organizadas ou decisões
em psicanálise se evidenciarmos a realidade políticas. Entretanto, quando há divergên-
que sustenta: a histórica ou a material? E, cias nos interesses, nos valores e nos obje-
mais ainda: como essas verdades são cons- tivos de um grupo, surgem questões, como:
truídas e de que elementos dispomos para (1) Quais informações você planeja com-
diferenciá-las (Ceccarelli, 2019). partilhar? Quando e como deseja fazê-lo? e
(2) Como você pode determinar se as in-
2.1 Três elementos do problema formações compartilhadas por outros são
adaptativo da justificação verdadeiras, válidas e úteis?
Além das dimensões factuais e dos valores É plausível considerar a existência de um
presentes na dinâmica da justificação, três processo de filtragem dessas informações,
componentes adicionais do problema adap- uma vez que é provável que certos dados
tativo podem ser identificados: (1) o proble- sejam preferencialmente mantidos em
ma analítico; (2) o problema social; e (3) o sigilo. Dessa forma, mesmo com a presença
problema pessoal. de uma via explícita de compartilhamento
O problema analítico se alinha com a di- de informações por meio da linguagem,
mensão factual da justificação e abrange uma supomos que os seres humanos ainda
ampla gama de questões. Em sua forma mais teriam que enfrentar a demanda de avaliar
A relação entre o filtro de atenção e o freu- ção da JUST envolve considerações sobre a
diano pode ser descrita da seguinte manei- formação cultural humana, tendo por base o
ra: quando uma imagem mental, pulsão ou conceito de justificação como elemento fun-
sentimento emerge na atenção do domínio damental na comunicação linguística.
do eu experencial, o sistema de filtragem de- Embora o termo “cultura” seja desafiador
tecta as suas possíveis associações ou impli- de definir, pode-se apontar para um consen-
cações e, em seguida, determina se a imagem so entre os teóricos de que o termo não abar-
deve ser trazida à consciência. Se as impli- ca a totalidade da experiência humana e da
cações forem identificadas como problemá- sociedade (Henriques, 2022). Em vez disso,
ticas, emerge a experiência de ansiedade, que podemos nos referir mais especificamente
por sua vez ativa um deslocamento de aten- aos padrões nas esferas de crenças, valores,
ção que visa inibir ou afastar a imagem ou símbolos e discursos que são compartilhados
pulsão emergente da atenção do indivíduo. por um grupo de indivíduos (Smith, 2001).
Esse deslocamento de atenção é inconsciente Alinhada à essa percepção, a JUST oferece
e tem a função de afastar o estímulo que re- uma nova perspectiva sobre a interrelação
presenta ameaça e gera ansiedade, manten- entre linguagem, autoconsciência humana
do-o fora da consciência do eu privado. Esse e a evolução da cultura, interpretando tanto
mecanismo é clássico na teoria psicanalítica: a autoconsciência humana quanto à cultura
o recalque. As formulações freudianas ex- como sistemas de justificação. Nesse contex-
postas em Inibição, sintoma e medo (Freud, to, os sistemas de justificação são tidos como
1926/2016), sobretudo no que diz respeito à redes interconectadas de crenças e valores
teoria sobre a angústia como sinal de perigo, fundamentados na linguagem, que operam
vão no mesmo sentido. para legitimar uma determinada interpreta-
Finalmente, o modelo tripartido atualiza- ção da realidade ou visão de mundo específi-
do da JUST também inclui um filtro entre os ca (Henriques, 2011).
domínios do eu privado e o eu público (ou A ideia é que os sistemas de justificação
persona). Esse filtro é denominado filtro ro- emergem em contextos sócio-históricos com
geriano, uma alusão direta às ideias de Carl o propósito de atuar como referências de
Rogers (1995) sobre a relação entre o eu e o pensamento e comportamento, coordenan-
mundo social. Rogers observou que parte do do as ações das pessoas. Por exemplo, a le-
sofrimento humano está ligada ao impacto gislação pode ser considerada um conjunto
do julgamento dos outros em suas ações e na formalizado de justificações respaldadas por
sua autopercepção. Esse processo de filtra- poder institucional, com o intuito de legiti-
gem é ilustrado por situações em que omiti- mar o controle social sobre condutas consi-
mos ou ajustamos informações ao mover da deradas impróprias. A ciência, a governança
esfera privada para a esfera pública, a fim de e a religião também podem ser compreendi-
proteger essa informação e controlar sua in- das como sistemas coletivos de justificação.
fluência no contexto social. Temos aqui, em Em um nível mais abstrato da cultura huma-
linguagem diferente, as diferenciações psica- na, encontra-se uma organização desses sis-
nalíticas entre o Eu-ideal, e o Ideal do Eu. temas de justificação composta por visões de
mundo, narrativas, conceitos, valores e de-
5. Os sistemas de justificação clarações centrais que atuam para estruturar
que compõem a cultura humana e organizar os processos de construção cole-
O esforço metateórico da JUST pode ser tiva de significado. Dito de outra forma, os
resumido como a construção de um funda- sistemas de pensamento, assim como os la-
mento teórico que explique a singularidade ços sociais em suas mais variadas expressões,
da consciência e a comunicação humana. nos dão a impressão de sermos protegidos
Nesse empenho, a terceira e última alega- em nosso desamparo, condição antropológi-
E-mail: paulorcbh@mac.com
Homepage: www.ceccarelli.psc.br
Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_
Roberto_Ceccarelli
A supervisão na clínica do
curso do NEPIA-CPRS
Supervision in clinic
at the NEPIA-CPRS training course
Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski
Resumo
Este ensaio objetiva caracterizar a demanda da supervisão em grupo do curso complementar
em formação psicanalítica na clínica com crianças e adolescentes do Núcleo de Estudos de
Psicanálise da Infância e Adolescência (NEPIA) do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do
Sul (CPRS), situando a história da supervisão na formação psicanalítica e examinando seus
efeitos no processo formativo. A presente reflexão parte de recortes clínicos fornecidos por
analistas ou candidatos do curso. A partir desses fragmentos, procura-se abrir possibilidades
de intervenções, analisando algumas das hipóteses diagnósticas com fundamentos teóricos de
Freud, Gutfreind, Rassial, Sigal, Volich, entre outros.
ção; um subtítulo caracteriza o tema do caso. 2.2 Dificuldades de lidar com frustrações
Nossa intenção é examinar as demandas de e um possível sentimento de incerteza
crianças e adolescentes que chegam à clíni- No primeiro atendimento, os pais relatam
ca e pensar alguns vieses psicanalíticos para que João (com 6 anos de idade), na escola,
compreender a clínica contemporânea. apresenta choro, briga com os colegas, agres-
sividade; em casa, quando contrariado, deita
2.1 Possíveis entraves ou impactos no chão e chora como um bebê, brigando
na constituição psíquica muito com o irmão menor.
Maria tem 2 anos e 9 meses de idade. Na en- Como, na psicanálise, podemos enten-
trevista com a psicanalista, os pais referem der a agressividade da criança? O que é mais
as crises de choro sistemáticas e prolongadas primitivo no ser humano, a violência ou a
e a pouca interação. Nas primeiras semanas agressão? Enquanto, na agressividade, há um
de vida, ela fora hospitalizada em função de predomínio da pulsão de vida, na agressão,
complicações sanguíneas. prevalece a pulsão de morte. Ao examinar a
A hospitalização e o choro prolongado violência na evolução afetiva humana, Ber-
podem remeter a rupturas abruptas, separa- geret e colaboradores (2006) mostram que a
ções não nomeadas, ansiedades ou angústias. violência é um fenômeno universal, uma ten-
Angústia é o afeto por excelência. Na psica- dência instintiva, presente de alguma forma
nálise, Freud, ao longo de seus escritos, tem na raça humana. A agressividade é caracte-
examinado a ansiedade ou a angústia, espe- rizada como uma atividade mental elabora-
cificando a da separação, a da castração, a da, e não como parte do processo primário,
angústia como sinal, e assim por diante. Ou- como a violência.
tros autores, igualmente, analisam o assun- Até que ponto o comportamento agres-
to, entre os quais Winnicott (1990), que se sivo de João é um sintoma relacionado ao
centra na angústia de aniquilamento ou nas que não entendeu o suficiente, com a vin-
agonias impensáveis, em etapas pré-edípicas. da do irmão, a necessidade de dividir um
Maria, é bem possível, vivenciou angús- espaço que antes era só dele, uma vez que
tias marcantes quando hospitalizada. Ao fa- se encontrava em uma etapa mais narcísica
larmos de bebê, falamos de um psiquismo se e/ou egocêntrica? Para McDougall (1997,
constituindo, se organizando e se estruturan- p. 168), “os sintomas são, sem exceção, re-
do, o que remete ao arcaico, ou seja, às primei- sultados de esforços infantis no sentido de
ras marcas, inscrições, representações-coisa, encontrar soluções para a dor mental e o
ainda não simbolizadas ou em processo de conflito psíquico”.
simbolização. O bebê precisa da palavra, da João, “quando contrariado, deita-se no
nomeação, da narrativa, do toque, do cheiro, chão e chora como um bebê”. Isso nos parece
do olhar e da escuta da voz do outro. Acredi- que tem a ver com sua dificuldade em aceitar
tamos que a menor interação de Maria possa o não do outro. Kupfer e Bernardino (2022)
ser um reflexo da pandemia, que afetou a so- fazem a diferenciação entre birra e desorga-
cialização das crianças. Antes de pensarmos nização. A birra é um comportamento da
em transtorno do espectro autista, no caso criança para obter reconhecimento; busca
de Maria, defendemos ser importante inves- chamar a atenção do adulto sobre si mesma.
tigar com os pais histórias de doenças trans- Ela cuida do lugar, ao se jogar no chão. Na
geracionais na família, suas fantasias sobre desorganização, demonstra uma imagem
possíveis entraves nessa constituição de su- frágil e pouco constituída; a criança “não
jeito, bem como oferecer à criança diferentes percebe o outro, não se cuida em relação às
espaços de interação, observando, na clínica, consequências físicas de se jogar no chão,
na relação transferencial, o que Maria mani- descontrola-se completamente” (Kupfer;
festa de mal-estar ainda não nomeado. Bernardino, 2022, p. 52).
“abrir o pacotinho” ao ato de ele nascer. Nes- a elaboração dos lutos de seu paciente, que
sa interação de Felipe com a analista, esta se sai da indiscriminação temporal e passa para
interroga sobre qual é o seu lugar. Como de- a temporalidade conceitual.
fende Sílvia Bleichmar (2005, p. 11), em seu
livro Clínica psicanalítica e neogênese: “A psi- 2.7 Falhas no suporte ambiental
canálise continua se revelando como a teoria na constituição psíquica
mais fecunda para sustentar e firmar esse ca- A mãe de Bárbara relata, na entrevista, que o
minho, nestes tempos em que a dessubjetiva- casal está separado e que a adolescente tem
ção espreita constantemente”. vivido um período de lutos e mudanças sig-
O ambiente de convívio de Felipe parece nificativas na capacidade de pensar, sentir e
bastante saudável, por ele conseguir pen- agir. A adolescente comenta sua dificuldade
sar, representar, criar novos jogos durante de relacionamento com a mãe, motivo de ter
os atendimentos, o que nos parece não ser ido morar com o pai.
a realidade de muitos brasileiros. Hoje, inú- Parece-nos que Bárbara, quando bebê,
meros caminhos são possíveis, tão possíveis não experimentou um ambiente seguro, de
que algumas crianças podem estar se sentin- confiança no outro, o que sugere que pode
do diante de uma encruzilhada, muitas vezes ter sido difícil para ela realizar a diferencia-
desamparadas da palavra de um adulto de ção entre o eu e o não eu.
referência. Os vínculos iniciais de amor adu- Para Sigal (2009, p. 180),
bam o psiquismo para aí seguirem brotando
sentimentos amorosos na relação com o (O) [...] o pânico se apresenta como produto de
outro. uma patologia do arcaico, ou seja, produz-se
um desamparo do eu diante de uma invasão
2.6 A arte surrealista pulsional causadora de momentos de falência
como resgate das memórias do aparelho psíquico.
escondidas no pátio da infância
Aline, uma adolescente, começou a pintar no Anne Brun (2018, p. 39) menciona que,
período pandêmico mundial. Na ausência de nas últimas décadas, está sendo percebido
um quadro, utilizou a parede lateral de seu um “retraimento da subjetivação”: “Passa-se
guarda-roupa como espaço possível para ex- de uma psicanálise concebida como toma-
ternar suas emoções. da de consciência do inconsciente para uma
Para Aberastury (1983), todo adolescente psicanálise centrada nos processos de subje-
leva, além do selo individual, o selo do meio tivação”. Rassial (2000, p. 27) defende que o
cultural, social e histórico. Aline nos lembra estado limite afeta o sujeito, o laço social e o
do caso Anne Frank: Aberastury (1983, p. próprio pensamento, requerendo que a psi-
242) justifica que Anne teve pais saudáveis canálise aprofunde esse tema. Em suas pala-
em seu mundo interno, “quis falar de sua vras: “O estado limite é, em primeiro lugar,
adolescência e da de todos e despertar em uma resposta adequada a uma incerteza das
todos o impulso para lutar pela conservação referências que caracteriza o laço social con-
da liberdade e do amor”. temporâneo”.
Aline, além de seu gosto pela pintura,
enviou três músicas à analista, nas quais foi 2.8 Uma adolescente confusa
observado algo em comum: uma referência em relação ao seu corpo, à sexualidade,
ao tempo. Qual é a importância do tempo ao trabalho e com marcas
para os adolescentes? Algumas respostas à de “ausência” das funções
pergunta encontramos no texto de Knobel materna e paterna
(1983) O pensamento e a temporalidade na Sofia buscou a clínica por causa de sua ansie-
psicanálise da adolescência, no qual comenta dade, por não conseguir finalizar as coisas,
Abstract Referências
This essay aims to characterize the demand
ABERASTURY, A. Adolescência. Porto Alegre: Art-
for group supervision under the scope of the med, 1983.
complementary course in psychoanalytic
training in children’s and adolescents’ clinic at ALVAREZ, A. Companhia viva: psicoterapia psicana-
the Núcleo de Estudos de Psicanálise da Infân- lítica com crianças autistas, borderline, carentes e mal-
cia e Adolescência (Center for Psychoanalyti- tratadas. Porto Alegre: Artmed, 1994.
cal Studies of Childhood and Adolescence —
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Ma-
NEPIA) of the Círculo Psicoanalítico do Rio nual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
Grande do Sul (Psychanalytical Circle of Rio (DSM-5). Porto Alegre: Artmed, 2013.
Grande do Sul — CPRS), situating the history
of supervision in psychoanalytic training and BARBOSA, K.; SILVA, L.; CECCARELLI, P. R. A
examining its effects on the training process. psicanálise e os “transtornos da excreção”: enurese e
encoprese na clínica com crianças. Revista Latinoa-
This reflection is based on clinical clippings
mericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo,
provided by analysts or course candidates. 2020. Disponível em: https://www.fundamentalp-
From these fragments, we try to open up pos- sychopathology.org.br/wp-content/uploads/2020/07/
sibilities for interventions, analyzing some KELVINN-LUAN-SAMPAIO...-TRANSTORNOS-
of the diagnostic hypotheses with theoretical -DA-EXCRE%C3%87%C3%83O.-1.pdf. Acesso em:
foundations from Freud, Gutfreind, Rassial, 20 jul. 2023.
Sigal, and Volich, among others.
BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Tradução: Carlos Al-
berto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
Keywords: Supervision, Children and adoles-
cents, Clinical clippings. BERGERET, J. et al. Psicopatologia: teoria e clínica.
Tradução: Maria Elisa Viallitti Flores. Porto Alegre:
Artmed, 2006.
As (des)construções identitárias:
reflexões sobre os povos indígenas
na Amazônia
Identity (de)constructions:
reflections on indigenous peoples
in the Amazon
Maria do Rosário de Castro Travassos
Resumo
Este trabalho visa provocar um debate sobre os processos identificatórios em relação às popu-
lações indígenas na Amazônia. A violência de atos discriminatórios que se opera em relação
a essa parcela da população brasileira, está presente desde os tempos coloniais e continuam
no presente. Neste recorte, representado pela história de Mary, uma indígena da etnia Tembé,
no Estado do Pará, emerge de sua escuta singular, o conflituoso laço com o social dominador.
Seguiremos o enfoque psicanalítico.
O Governo Federal, por meio do Ministé- constatar são as leis indígenas se adaptando
rio da Educação e Cultura – MEC–, em 2006 às leis civis de nossa sociedade. A letra da lei
p. 71, como responsável pela política indíge- protetiva do Estado não se coaduna com o
na no Brasil, expressa que: desejo dos sujeitos. A tentativa de homoge-
neização do sujeito é, na verdade, uma vio-
[...] não tem como traçar programas de assis- lência imposta que provoca o apagamento de
tência aos índios fora das aldeias. Os índios desejo, ao destituir os signos culturais, afe-
que moram nas cidades vivem uma espécie tando tanto a cultura como o sujeito.
de “limbo jurídico” com dificuldade de fazer Aliás, o termo “índio”, que foi atribuí-
valer qualquer direito. Morar na cidade tem do aos povos autóctones devido a um erro
sido entendido “como um dado revelador da geográfico dos navegadores portugueses ao
perda da intenção de manter a condição in- “encontrarem” a Nova Terra, utilizado mui-
dígena, o que implicaria uma certa renúncia tas vezes para discriminar os sujeitos etni-
à proteção especial garantida pela legislação. camente diferenciados, com os direitos esta-
belecidos pela Carta de 1988, em seu artigo
Esse tipo de entendimento é conflitante 231, passou a ser defendido para dar susten-
para o indígena, pois fortalece velhos tipos tação ao movimento indígena organizado a
de preconceito não vislumbrados pelo or- partir da década de 1970, como uma identi-
denamento jurídico, posto que o sujeito é o dade, como textualiza Gérsen Luciano (2006,
efeito de sua relação com o outro e se consti- p. 30), antropólogo da etnia Baniwa:
tui a partir de sua inserção na cultura.
Por questão de sobrevivência, Mary mu- [...] os povos indígenas do Brasil chegaram
dou-se para a cidade, para estudar, trabalhar à conclusão de que era importante manter,
e sustentar os três filhos que ficaram na al- aceitar e promover a denominação genérica
deia. Nesse processo, teve de assimilar hábi- de índio ou indígena, como uma identidade
tos dos não indígenas sem perder sua iden- que une, viabiliza e fortalece todos os povos
tidade étnica. Ante o impasse do confronto, originários do atual território brasileiro e,
ao ter que transitar por dois universos distin- principalmente, para demarcar a fronteira
tos, Mary me endereça a seguinte pergunta: étnica e identitária entre eles, enquanto ha-
“Tira onça do mato e traz para a cidade, ela bitantes nativos e originários dessas terras,
deixa de ser onça?” e aqueles com procedência de outros conti-
O que é ameaçador para Mary é a violência nentes, como os europeus, os africanos e os
da cidade, os assaltos, o trânsito, mas, acima asiáticos.
de tudo, o preconceito que teve de enfrentar
por ser mulher, indígena e conquistar uma Temos aí uma relação entre individual e
vaga na universidade para cursar Direito. A social, entre Estado e indivíduo, enlaçados
castração – a perda metafórica – assinala os pela cultura. Para Freud (1930/1929, p. 87),
limites do corpo, os limites do convívio, os a palavra cultura implica:
limites sociais, que provocam a dor de exis-
tir, posto que a questão psíquica se encontra [...] soma total de realizações e disposições
intimamente relacionada com o cultural. pelas quais a nossa vida se afasta da de nossos
Os códigos simbólicos que estabelecem antepassados animais, sendo que tais realiza-
a ordem social nas aldeias, as crenças, as re- ções e disposições servem a dois fins: a prote-
gras de casamento, a filiação, os crimes, as ção do homem contra a natureza e a regula-
práticas sexuais, o culto aos antepassados, mentação das relações dos homens entre si.
os mitos de origem, os sistemas de cura, en-
tre outros, são quase sempre ignorados pelo Tecemos aqui uma breve articulação teó-
outro não índio. Diante disso, o que se pode rica sobre o conceito de identidade, estuda-
do principalmente pelas ciências sociais com ço que é “apagado” nos documentos civis de
outro conceito, o de identificação, mecanis- Mary. Assim,
mo psíquico ao qual o conceito de identida-
de encontra-se inter-relacionado. Etimolo- Evocamos aqui a questão da carteira de iden-
gicamente, a palavra “identidade” remete ao tidade, um papel que define a diferença do
pronome “idem”, que significa “o mesmo, a sujeito pelo fato de o documento civil identifi-
mesma coisa” de algo que se “assemelha” a car alguém no simbólico, mas que, no caso de
outro (Souza, 2007, p. 19). Mary, acabou criando impasses e constrangi-
Hall (2011, p. 8) analisa que as mentos ao Eu, haja vista que sua emissão pelo
órgão oficial não se deu em conformidade
[...] “crises de identidade” decorrem de mu- com seu “sentimento” de pertencimento étni-
danças estruturais das sociedades modernas, co e subjetivo, e sim com um nome no qual
que podem abalar a identidade cultural, defi- não se reconhecia e por isso rejeitava, por não
nidas como “aspectos de nossas identidades fazer sentido para ela (Travassos, 2014, p. 93,
que surgem do pertencimento a culturas étni- grifos da autora).
cas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de
tudo, nacionais. Por ocasião do registro civil de Mary, o
cartorário – o outro da cultura – não acei-
O duplo deslocamento – descentramento tou o nome indígena escolhido por sua mãe,
do indivíduo de seu lugar no mundo social e que quer dizer missanga, enfeite e mudou-o
cultural, assim como de si mesmo – constitui para Jaqueline, por considerar que o nome
uma crise de identidade. Para o sociólogo, a pretendido não era “nome de gente”.
identidade se forja a partir de atributos cul- Quando a menina cresceu e foi para a es-
turais que passam a fazer parte do sujeito, cola, se deparou com o nome “estranho” em
sutura o sujeito à estrutura (Hall, 2011, p. 8). seus documentos legais oficiais, com o qual
não se identifica, por não encontrar repre-
Processos identificatórios e a psicanálise sentação em seus signos culturais, não fazer
Para a psicanálise, a identificação é um pro- parte de sua história, por isso o recusa.
cesso pelo qual o sujeito humano se consti- A questão da nomeação que criava im-
tui. As primeiras relações são primordiais passes para Mary se estendia ao grupo social
para garantir a sobrevivência da criança, que do qual faz parte, que hoje luta na justiça
antes mesmo de nascer, já é falada pela cul- pelo direito de acrescentar o nome étnico ao
tura, porta os desejos e anseios das figuras nome próprio.
parentais. Freud (1921, p. 42) denomina de A identidade, no sentido de ser “idêntico
identificação primária o processo de identifi- ou igual a si mesmo no tempo, não é dada
cação com o “pai de sua própria pré-história pelo nascimento, é, antes de tudo, uma cons-
pessoal”, lei que se encontra velada na cultu- trução que se dá a partir dos processos de
ra, mas que é duradoura e será a base para os identificação com o outro”, como textualiza
futuros vínculos a serem construídos. Ceccarelli (2008, p. 97). A identidade é uma
Em 1921, Freud teoriza sobre o Einziger construção, dinâmica e complexa, que se in-
Zug, único traço que, na identificação ao tra- terliga ao processo identificatório, mecanis-
ço, o Eu copia do objeto tomado como mo- mo pelo qual cada sujeito adquire não sua
delo. Trata-se de um tipo de identificação unidade, mas sua singularidade, que no caso
no qual o nome próprio é seu principal re- de Mary, parece sofrer uma desconstrução.
presentante, processo pelo qual o indivíduo A falta originária que funda o sujeito será
constrói sua identidade como experiência repetida pelo adulto, como protótipo infantil.
subjetiva e que permite guardar os traços de Uma das formas de preencher o desamparo
sua história familiar. É justamente esse tra- é por meio das referências identificatórias
Sobre a autora
MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E CULTURA -
MEC/UNESCO. Povos indígenas e a Lei dos “Brancos”: Maria do Rosário de Castro Travassos
o direito à diferença. Série Via dos Saberes, v. 3. 2006. Psicóloga.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo
SOUZA, E. M. S. Processos identificatórios e suas vicis- Psicanalítico do Pará (CPPA), filiado ao Círculo
situdes em uma comunidade quilombola. 2007. Disser- Brasileiro de Psicanálise (CBP) e à International
tação (Mestrado em psicologia) - Universidade Fede- Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).
ral do Pará, Belém, 2007. Pós-graduada em teoria psicanalítica pela Faculdade
Integrada Brasil Amazônia (FIBRA), Mestre em
TRAVASSOS, M. R. C. Mitos de origem e processos psicologia clínica e cultura pela Universidade Federal
identificatórios: uma visão psicanalítica. 2014. Dis- do Pará (UFPA).
sertação (Mestrado em psicologia clínica e cultura) -
Universidade Federal do Pará, Belém, 2014. E-mail: rosatravassos23@gmail.com
Resumo
O presente trabalho apresenta parte dos estudos desenvolvidos no módulo O desenho infan-
til na clínica psicanalítica com crianças e adolescentes, promovido pelo Núcleo de Estudos da
Infância e Adolescência (NEPIA) do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS). Um
dos recursos utilizados pelos profissionais que trabalham na área o desenho atende à demanda
anunciada pelos que buscam compreender e amenizar o sofrimento de pacientes que estão
vivenciando a infância e a adolescência. O estudo tem como propósito refletir sobre o desenho
como possibilidade de entrar em contato com o mundo interno desses pacientes e perceber
os movimentos pulsionais, libidinais e agressivos que estabelecem um vínculo e um diálogo
com os seus conteúdos conscientes e inconscientes. As reflexões propostas se fundamentam
em Donald Winnicott e Antonino Ferro, complementados com atividades de pesquisadores
nesta área de conhecimento.
Palavras-chave: Desenho como recurso clínico, Psicanálise, Clínica com crianças e adoles-
centes.
A clínica com crianças e adolescentes possibi- e inconscientes. Nesse sentido, não se trata
lita pensar num trabalho em que estão impli- de fornecer elementos para fazer um psico-
cados muitos recursos materiais que realçam diagnóstico: esse é objetivo da psicologia.
as significações e representações simbólicas. Na Antiguidade e na Idade Média, não
O desenho é uma das ferramentas recorri- se dava importância à criança, que era vista
das com frequência entre os profissionais da como um adulto em formação (Ariés, 1986):
área. Trata-se de uma ferramenta importante a criança, logo que caminhasse, era mistura-
e necessária para o atendimento à demanda da aos adultos, partilhando trabalhos e jogos,
anunciada pelos que buscam compreender e transformando-se em um jovem adulto sem
amenizar o sofrimento desses pacientes. Se- passar pelas etapas do desenvolvimento que
guindo Winnicott e Antonino Ferro, o pro- hoje consideramos essenciais nas sociedades
pósito de pensar o desenho como recurso na evoluídas. Foi com Rousseau, no fim do sé-
clínica com crianças e adolescentes é forne- culo XVIII, com a obra Émile, que a infância
cer elementos para entrar em contato com adquiriu importância. Por isso, Rousseau é
o mundo interno de tais pacientes, a fim de considerado o primeiro filósofo da educação.
perceber os movimentos pulsionais, libidi- Em 1909 Freud escreve a história do Pe-
nais e agressivos que estabelecem um vínculo queno Hans, criança de cinco anos que era
e um diálogo com os conteúdos conscientes atendida pelo pai sob supervisão dele. Na
O desenho e a clínica
O desenho é uma entre as diferentes ex-
pressões da função simbólica, que envolve Fonte: Chamat, 2004, p. 192.
O jogo do rabisco é uma atividade da qual Um aspecto que nos chama a atenção no
duas pessoas quaisquer podem participar, trabalho de Winnicott com as crianças é a
mas geralmente, na vida social, o jogo rapi- disponibilidade para brincar e para ser fle-
damente deixa de ter significado. A razão por xível. O jogo, o desenho, a história falada
que essa atividade pode ter valor para a con- e contada fazem parte de uma importante
sulta terapêutica é que o terapeuta utiliza os comunicação. O desenho é indissociado do
resultados de acordo com o seu conhecimen- amadurecimento da criança e do adolescen-
to sobre o que a criança gostaria de comu- te.
nicar. O que mantém a criança interessada é Um aspecto importante na utilização do
a maneira pela qual o material produzido é desenho como recurso clínico é a verbali-
utilizado no ato de brincar ou jogar. zação que a criança emite sobre o seu dese-
O desenho, como o jogo do rabisco, pode nho. Na FIG. 11, a criança inclui os irmãos
ser aprendido facilmente e tem a vantagem na família, mas eles se encontram dentro de
de facilitar muito a tomada de notas. Se um casa.
menino ou uma menina se comunicam pela
fala ou pelo relato de sonhos, então a tomada Figura 11 – Desenho da família,
de notas torna-se um problema. O desenho incluindo os irmãos dentro
como o jogo do rabisco pode ser um jogo de casa e o bebê no carrinho
natural que duas pessoas quaisquer podem
jogar. Não é um teste, e o psicanalista con-
tribui com sua própria engenhosidade tan-
to quanto a criança o faz. A contribuição do
terapeuta é abandonada por ser a criança e
não o psicanalista quem está comunicando
aflição.
A forma como a criança representa a sua
realidade interna é bastante singular e está
relacionada com os aspectos tanto cognitivos
quanto afetivos. As crianças que vivenciam
o período de intensa fantasia, aproximada-
mente entre os 3 e 6 anos, fazem os seus de-
senhos como imaginam e como percebem a Fonte: Mèredieu, 2003, p. 71.
realidade, como na FIG. 10.
Somos povoados de medo e de angústia. A
Figura 10 – Fenômeno de transparência: criança precisa consolidar a angústia e o seu
o gato engoliu a velha e o papagaio esquema, que é de natureza cognitiva e afeti-
va, pois ela está elaborando através da repre-
sentação simbólica o que lhe falta. O psica-
nalista precisa se identificar com o desenho
e com a técnica para acompanhar o que a
criança ou o adolescente expressam.
Os desenhos ilustram também a dinâmica
familiar, como na FIG. 12. A criança com 11
anos se desenha junto com a mãe exercendo
as atividades da casa, enquanto o pai lê o jor-
nal. Esse desenho poderá responder a muitas
angústias e desigualdades vivenciadas pela
Fonte: Mèredieu, 2003, p. 21. criança.
Figura 12 – Criança de 11 anos desenha Isso é tudo o que existe a título de técnica, e
ela e a mãe trabalhando enquanto o pai se tem-se de enfatizar que sou totalmente fle-
queixa ao ler o jornal xível mesmo neste estágio muito inicial, de
maneira que, se a criança quer desenhar, ou
conversar, ou brincar com brinquedos, ou
fazer música ou traquinagens, fico livre para
adaptar-me aos desejos dela. Com frequên-
cia um menino quererá jogar o que chama
de “jogo de pontos”, isto é, algo que pode ser
ganho ou perdido. Apesar disso, em uma alta
proporção de casos de primeira entrevista, a
criança aceita por tempo suficiente longo os
meus desejos e o que gosto de jogar para que
algum progresso seja alcançado. Cedo as re-
Fonte: Di Leo, 1985, p. 74. compensas começam a aparecer, de maneira
que o jogo continua. Amiúde, no decorrer de
A criança escuta a história, rabisca o desenho uma hora, fizemos juntos 20 a 30 desenhos e,
e se diverte. As representações podem ocor- gradualmente, a significância destes desenhos
rer através do desenho, do teatro e do jogo. O conjuntos tornou-se cada vez mais profunda
trabalho com o desenho não pode atropelar e é sentida pela criança como fazendo parte
a narrativa. A criança joga com os persona- de uma comunicação de importância.
gens ou expressa o seu grafismo e tem auto-
ria sobre o que produz. Como na FIG. 13, Nesse sentido, o desenho é uma atividade
o menino com 12 anos reproduz através do livre ou com alguma indicação de um tema.
desenho a violência experimentada no seu Além disso, pode ser considerado um jogo
cotidiano, na sua cultura. sem regras. Na clínica com crianças e adoles-
centes, o jogo do rabisco (Winnicott, 1994,
Figura 13 – Menino de 12 anos, palestino: p. 243) é importante pelo “uso que se faz do
“um soldado matando uma criança” material que o jogo pode produzir, especial-
mente no trabalho de uma só sessão que é
chamada de “consulta (diagnóstica) terapêu-
tica”.
A descrição de um caso pode ilustrar o
desenho produzido pela criança ou adoles-
cente. Não existem dois casos iguais e um só
exemplo. Portanto, cada desenho é produ-
zido pelo paciente numa circunstância es-
pecífica, portanto deve-se considerar o que
é verbalizado também no momento de sua
produção. O que se considera importante
nesta técnica é que ela possibilita um diálogo
e uma “aproximação com o paciente”.
Referências
ARIÉS, P. História social da criança e da família. 2. ed.
Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
Sobre as autoras
E-mail: nrmaggi@gmail.com
E-mail: paola.fachini@gmail.com
Resumo
Este artigo resgata o contexto do evento comemorativo dos 65 anos do Círculo Psicanalítico
do Rio Grande do Sul (CPRS) em 2021, durante a pandemia da covid-19, bem como os eixos
centrais da apresentação do autor nesse evento e alguns outros elementos teóricos que têm
acompanhado seu pensamento na atualidade. Entre outras dimensões, a humanização e a sen-
sibilidade do cuidado poético-analítico são enfatizadas.
1. Texto sobre a apresentação do autor no evento on-line comemorativo dos 65 anos do Círculo Psicanalítico do Rio Grande
do Sul (CPRS), na jornada intitulada A psicanálise através dos tempos, realizada em 24 e 25 set. 2021.
Penso que nossa instituição é marcada a civilização [...]. Podemos levar em conta os
pela pluralidade fundante, pelas humanida- textos sociais e técnicos de Freud [...].
des que a constituem, pela psicanálise em Podemos, a partir do artigo de Di Matteo
interfaces com muitos saberes e não saberes, (2006) na revista Estudos de Psicanálise, pen-
por sócios sensíveis que labutam em investi- sar em moral e ética em psicanálise, passan-
mentos pulsionais diante dos desafios diários do por vários textos freudianos e o amor que
em busca da dignidade do viver. Freud coloca [...]. E, com base em muitos au-
Nossa instituição psicanalítica é um lugar tores, essa relação do sujeito com a cultura,
simbólico, paterno, materno, fraterno, psí- essa ética do desejo tão falada, que não é o
quico, social e democrático transformador desejo do psicanalista. O desejo do psicana-
com vetores potentes da psicanálise. E “falo” lista precisa silenciar para o analisando en-
da psicanálise em várias dimensões: do Cír- contrar-se como sujeito desejante. Podemos
culo Psicanalítico de Sergipe (CPS), através passar por Lacan. Também a questão da falta
de minha amiga-irmã Déborah Pimentel; [...].
do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), Podemos levar em conta vários autores.
representado por Anchyses Jobim Lopes; do Em Sergipe, Déborah Pimentel estuda a ética
Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul, voltada para a saúde dos médicos [...] inclu-
representado por Paola Fachini. E podemos sive valores e princípios na relação dos pro-
pensar na International Federation of Psy- fissionais com os pacientes. Podemos tam-
choanalytic Societies (IFPS). bém pensar em vários outros aspectos neste
Nossos laços de pertencimento estão sen- discurso polifônico e polissêmico da ética.
do pensados aqui! O que significa a psica- Como o “falo” circula – e estamos “falan-
nálise no Brasil, no mundo e quais são seus do” de círculos de psicanálise – caminharei
efeitos analíticos. Como são os pertencimen- pela po...ética, pois, na poesia, existem mui-
tos em um mundo tão coisificado e despa- tas possibilidades de sobrevivência, poten-
triotado! cialidades fecundas de reinvenção de sujei-
O “falo” circula. Somos falantes e castra- tos, das linguagens, da psicanálise e do mun-
dos. Supostamente maduros, temos uma re- do com as múltiplas reflexões éticas na diver-
lação com o pai, Sigmund Freud, que não é sidade dos caminhos do ser psicanalista.
de submissão, mas de filiação, pertencimen- Por isso, compreendo que a poética aco-
to, respeito e autonomia de continuidade da lhe a ética no que existe de possibilidades de
história da psicanálise. construção de um mundo melhor para si,
A função paterna não é efetiva quando a para os outros, para a Terra. E a psicanálise
relação com o pai se constitui em servidão se encontra nas marcações, nas pausas e nas
ou “ética servil”! rimas da poesia da ética da escuta.
Fala-se muito de ética em psicanálise. A poesia não liga significante a significa-
Já foram mencionados muitos aspectos. dos de maneira fixa. Ela é “uma brincalhona”.
Não vou me repetir, apenas retomar alguns. Na brincadeira, “falo” muitas “coisas” sérias.
A ética como ramo da filosofia, que ajuda a E como é sério viver com ética em um mun-
refletir sobre a ação humana, o modo de vi- do de coisas! Pois é!
ver, e diferente da moral, da obediência a cos- Neste momento, fui, em minha palestra,
tumes socioculturais! A ética também pode a meu artigo O cuidado poético-analítico em
ser pensada em suas ramificações. Temos a um mundo pandêmico coisificado (Barreto,
bioética. Em Freud, há uma polifonia sobre 2021b), do qual, por esta ocasião, enfatizarei
o que se relaciona com a ética. O discurso algumas falas e eixos:
ético é polifônico. Não há algo linear. Pode-
mos pensar no superego, no conflito neuró- Há muito tenho visto o mundo contemporâ-
tico, na relação entre o pulsional e a cultura, neo como uma “pandemia” de coisas ou obje-
tos, sendo a humanização uma das perspecti- Enfatizo a singularidade do ofício psi-
vas preciosas para o reencantamento do que canalítico em um mundo mcdonaldizado e
tem sido coisificado ao longo dos tempos. disneyzado em meu artigo sobre o assunto
(Barreto, 2022), publicado na revista Estudos
Não estou falando de coisa ou objeto nos de Psicanálise n.º 58. A disneyzação é vis-
sentidos habituais da psicanálise, mas como ta por por Bryman (2004) como no âmago
aquilo que não tem vida e é destituído de hu- da sociedade de consumo de modo que os
manidade (Barreto, 2021b, p. 135). princípios dos parques temáticos da Disney
alcançariam distintos âmbitos da sociedade.
Continuei a “falar” do que destaco aqui: Ressalto que a psicanálise promove, entre
outras dimensões, o contato com o mal-estar
[...] o termo “pandemia” deslizará neste dis- de forma singular, a autenticidade, e não o
curso do sentido comum de uma doença que espetacular, o sensacional (Barreto, 2022).
se alastra no globo terrestre, em que há o caso Alguns pontos centrais de meu artigo
pandêmico exemplar e tenebroso da atualida- que embasou minha exposição no evento de
de – da covid-19 – para o significado plural 2021 serão resgatados aqui:
daquilo que se espalha intensamente na Terra. • Problematiza a pandemia ou da coisifi-
cação ou do humano.
[...] meu trabalho psicanalítico tem sido cri- • O humano se coisifica quando esquece
vado por minha análise psicossocial da coi- sua história.
sificação das subjetividades, pois percebo um • A psicanálise em sua ética é pensada
duelo na contemporaneidade: como um tensionamento para marcar sua
“Pandemizar” as coisas ou o humano, o sensí- posição periférica ou extraterritorial no
vel? (Barreto, 2021b, p. 135). mundo coisificado do século XXI.
• Acena para a importância da “pandemi-
Atualmente, e há algum tempo, quando zação” do paradigma da humanização para
falo de coisificação do humano e de amea- a psicanálise ganhar sustentação no futuro
ças à coisificação da psicanálise, tenho fei- em sua pluralidade teórico-técnica nos mais
to recortes e costuras com autores como diversos contextos e quanto a seu ofício poé-
Ritzer (1993), que aborda a a mcdonaldi- tico, sensível e sagrado.
zação da sociedade, e Bryman (2004), que • A escuta balizada pela sensibilidade do
apresenta a concepção de a disneyzação da cuidado poético-analítico é enfatizada.
sociedade. Fiz ainda algumas teorizações, como nú-
Não levei essas contribuições à palestra, cleos e dinâmicas de coisificação em antago-
todavia me acompanham em algumas con- nismo a núcleos e dinâmicas de humaniza-
ferências e publicações minhas, nas inter- ção, campo de “pandemização” (ou espalha-
locuções que faço, pois a racionalização do mento) versus campo de “reclusão” e ressal-
trabalho e do mundo nos atravessa de modo tei a importância do trabalho com as feridas
sistêmico. O que se faz nos fast-foods passa abertas ou não, assim como com o tecido
a fazer parte da vida social. Eficiência, cál- cicatricial em análise.
culo, previsibilidade e controle, entre outros Atualmente, observando essa trajetória,
aspectos, nos tocam, como nos ensina Ritzer percebo marcas de minha história pessoal
(1993) ao falar de a mcdonaldização da so- e profissional; experiências de vida antes,
ciedade (Thorpe, 2016). durante e depois da pandemia da covid-19
Fazer interface com essas ideias sociológi- atravessando meu pensar psicanalítico, as-
cas para pensar sobre os ofícios da psicanáli- sim como o trabalho em vários campos: con-
se e a clínica em sua singularidade me parece sultório, hospital geral e na docência univer-
importante. sitária, entre outros exemplos.
Considerações finais
Não adentrarei outros pontos aqui de mi-
nha palestra no painel memorável de 2021
junto com Eliana Mendes (CPMG) e Marli
Piva (CPB), baluartes do Círculo Brasileiro
de Psicanálise (CBP), sob a coordenação da
sensível Magda Maria Colao (CPRS), numa
jornada de celebração da bela história do
CPRS e do CBP. Indico aos que me acom-
panham que complementem a leitura deste
artigo (Barreto, 2023) com a de O cuidado
A atemporalidade do inconsciente
entre restos e crocodilos
que ainda vivem
The timelessness of the unconscious
among remains and crocodiles
that still live
Scheherazade Paes de Abreu
Resumo
Este artigo propõe como recorte metapsicológico as metáforas arqueológicas sobre o aspecto
atemporal do inconsciente. O problema sobre a irrepresentabilidade do elemento que sobrevi-
ve ao lado, que Freud analisou em O mal-estar na cultura e na Carta 52, de Freud a Fließ, e deu
prosseguimento em A análise finita e infinita. O inconsciente é em absoluto atemporal, mas
o que exatamente isso significa? Não existem os tempos no inconsciente, ou, até que ponto
coexistem todos os instantes de tempo? Não por acaso, Freud insistiu em afirmar em muitos
escritos, que algo se conserva – uma sobrevivência, mesmo que um trapo, uma cicatriz, um
lampejo, um pedaço, um resto, uma ruína. Mas estará todo material sujeito a transformações
e reescritas em épocas posteriores? Na experiência de uma análise, os crocodilos são os com-
panheiros de viagem. Uma transformação é sempre incompleta: partes de uma organização
anterior continua a existir ao lado da mais recente, e mecanismos antigos podem permanecer
intocados pela análise. Sobrevivem os restos, o grão de Real que resiste.
Construir um conceito, uma narrativa ou conceito? Observa-se que o tempo pode ser
uma metáfora sobre o que é o tempo, pres- um logro, como na epígrafe de Borges.
supõe perguntar o que é o tempo. Pois, o que Freud se apropria de palavras comuns em
está pressuposto não necessariamente está alemão e empresta-lhes um estatuto con-
posto. Então, de maneira mais restrita, o que ceitual, por exemplo, ao dizer do infamiliar
é o inconsciente atemporal [zeitlos] freudia- [Das Unheimliche], observa Iannini (2019, p.
no? Note-se: dizer que algo é atemporal é co- 7). Por outra forma, a atemporalidade recebe
mum e cotidiano, o que é palavra, o que é um conceito na psicanálise. As palavras de
Freud no primeiro esboço teórico do apare- passado, o presente e o futuro estão proscri-
lho psíquico – Carta 52, de 6 dez. 1896 – po- tos dos processos temporais inconscientes.
dem servir de rede epistemológica para nos- Entretanto, observou-se a presença dos tem-
sa escrita. Pois, é de “tempos em tempos” que pos nas instâncias e nas operações de pro-
o material inconsciente sofre uma reorgani- cessos inconscientes. Inferimos sobre a pos-
zação, uma reescrita, pois a experiência de sibilidade de uma coexistência dos tempos,
uma análise ocorre em um processo variável na qual, ao demarcar o inconsciente como
no tempo, como afirmou Freud (1937/2017, atemporal, Freud não abandona totalmente
p. 375) “ao longo dos acontecimentos” na a possibilidade da existência de tempos. Para
“continuidade da análise”. Estará todo mate- mais, destaca-se o problema da invariância,
rial sujeito a transformações e reescritas em da imutabilidade, dos restos, dos resíduos e
épocas posteriores? a permanência de materiais, e isso poderia
Então, algo atemporal é o que se mostra diferir de eternidade.
fora do campo de ação do tempo. Além dis- Nesse sentido, é importante examinar as
so, poderia ser uma operação subjetiva, mas relações entre atemporalidade e a irrepresen-
isso não faz desaparecer o problema sobre o tabilidade da morte. Se a morte não pode ser
que é a atemporalidade para a psicanálise. representada no inconsciente, ou seja, para o
Freud, por intermédio de uma palavra qual- inconsciente o que ocorre é a imortalidade,
quer, subverte concepções familiares sobre o pergunta-se até que ponto este só pode ser
tempo e, assim, dispõe o tempo do incons- atemporal.
ciente noutro lugar diverso do senso co- Na parte II - Nossa relação com a morte,
mum. Convidamos o leitor a ter em suspen- do artigo Considerações atuais sobre a guerra
são, temporariamente, os efeitos de sentidos e a morte, Freud (1915/2020, p. 127) analisa
já concedidos à perspectiva atemporal. O como o inconsciente se conduz em relação
que exatamente isso significa? Não existem ao problema da morte. Percebemos a morte
os tempos no inconsciente ou até que ponto apenas para aqueles que são estranhos e ini-
coexistem todos os instantes de tempos? migos. Além disso, nos desejos inconscientes
Com efeito, aqui está o trecho da Carta de morte, mata-se até por pequenas coisas.
52: No inconsciente há sobrevivências de um
desejo ávido por morte. Sobrevive o huma-
Você sabe que trabalho com a suposição de no primevo, de fato, é como um sujeito no
que nosso mecanismo psíquico tenha surgi- tempo pré-histórico que o inconsciente vai
do de uma sobreposição de camadas, na qual, nortear os efeitos sobre a morte.
de tempos em tempos, o material presente na Por outro lado, verifica-se que Freud ex-
forma de traços mnêmicos [Erinnerungsspu- trai o homem primevo de um tempo contí-
ren] sofre uma reorganização, uma reescrita, nuo pré-histórico, e de uma norma crono-
a partir de novas relações. Portanto, o que há lógica, para restituí-lo a uma dimensão de
de fundamentalmente novo em minha teoria insurgência. Cabe lembrar que o recurso
e a afirmação de que a memória não está dis- ao aspecto atemporal do inconsciente é um
posta em apenas uma, mas em várias cama- “fato polêmico”, como escreve Paul-Laurent
das, que é a escrita com vários tipos de signos Assoun (1978, p. 159). Note-se em Freud
(Freud, 1896/2021, p. 35). (1933/2010, p. 154) a radical particularida-
de de que o Isso é uma província sem leis,
Um dos impasses que surgem é que, quan- sem razão, um caldeirão de excitações fervi-
do Freud afirma que o tempo do inconscien- lhantes: as leis do pensamento e os processos
te como atemporal, pois nada se acha que de contradição não valem, não se conhece
corresponda à ideia de tempo, podemos juízo de valor, nem o bem, nem o mal, nem
compreender na leitura do seu texto que o a moral. No Isso, impulsos opostos podem
coexistir. Nada existe que se compare à No ponto de partida desta escrita encon-
negação. tra-se o problema da permanência do passa-
Em nosso campo de pesquisas, os tem- do anímico. Trata-se de uma pergunta que se
pos não se reduzem a uma linha na qual o extrai do texto freudiano: “podemos supor
que opera é o que sucede, pois os tempos sobrevivências do mais antigo ao lado do
e os sujeitos são inadequados e desiguais que lhe é posterior e dele surgiu por trans-
em relação a si mesmos. Não temos a pos- formação?” Isso interessa, pois o analista se
sibilidade de visitar exatamente os mesmos ocupa com material vivo, e o único lugar em
instantes de tempos do passado, nem te- que o tempo passado e o futuro podem vi-
mos notícias da chegada de um viajante do ver, e se intrometer é o tempo presente. Em
tempo proveniente do futuro. Lembremo- uma análise, o ancestral não está morto, não
nos da invenção do cientista H. G. Wells se trata de um passado morto, um passado
(1895/2019, p. 45), isto é, uma “máquina do que passou, mas um passado do qual efeitos
tempo” cuja possibilidade é se movimentar sobrevivem no presente.
entre o passado, o presente e o futuro, e sob Nesse ponto, elaboram-se as perguntas:
esse aspecto, trata-se de uma certa opera- de que maneira a metáfora de uma topo-
ção que desintegra a própria concepção de logia arqueológica das camadas em sobre-
que o tempo poderia ser absoluto. Talvez as posição e lado a lado sinalizam efeitos de
hipóteses do inconsciente e da máquina do atemporalidade no inconsciente? Que me-
tempo de Wells sejam as únicas máquinas táforas Freud utiliza para construir uma
capazes de atemporalidade. Dito de outro teoria dos tempos? O que é o inconsciente
modo, o material de outro tempo é um si- atemporal, e como este se distingue do tem-
nal de que há qualquer coisa em nós, que é po do recalcado e do esquema a posterio-
colonizada, ou seja, estruturada no e pelo ri? Inferimos que uma teoria dos tempos
discurso do Outro. presentes em Freud, encontra-se em redes
Freud construiu uma hipótese fundamen- fragmentadas e conexões laterais, e parece
tal e subversiva para a psicanálise, e é sobre construir-se em confluência com o conceito
o tempo em exceção – a atemporalidade que de inconsciente.
ocorre nos processos inconscientes. Por ou- No capítulo V do ensaio O inconsciente,
tro lado, essa é uma maneira de dizer que a ao afirmar as características especiais, Freud
representação abstrata de tempo se constrói (1915/2010, p. 93-94) dirá que os processos
no Eu (consciente) e de distinguir o tempo inconscientes são atemporais, isto é, não são
inconsciente por características negativas. ordenados temporalmente, não são altera-
De que maneira o inconsciente não conhece dos pela passagem do tempo, não têm rela-
o tempo? Qual o tempo que o inconsciente ção nenhuma com o tempo. É nesse sentido
não tem? que a atemporalidade significa para Assoun
Segundo Christian Dunker (2023, p. 237) (1978, p. 158) que os processos inconscientes
em Pequeno glossário lacaniano, do livro O não estão submetidos à ordenação temporal,
que é sexo?, de Alenka Zupančič, o sujeito à sucessividade do antes e do depois, portan-
se distingue do eu e da consciência, como to são não diacrônicos. E Freud, ao afirmar
função de descentramento, divisão e nega- que o tempo em nada os modifica, quer dizer
tividade; o sujeito é para Lacan, um efeito que de certa forma são eternos, entretanto,
de fala e de discurso que ocorre no tempo. por eternidade compreende-se não uma infi-
E para inserir certa complexidade, o analista nitude de tempo, tampouco oposição a tem-
deve operar de modo tão atemporal quanto poralidade, mas uma dimensão que é fora do
o próprio inconsciente. Com efeito, Freud tempo, é inacessível a uma modificação tem-
(1918/2022, p. 635) coloca diante dos analis- poral. Por isso, é que o inconsciente não está
tas esse dever para a psicanálise. sujeito às ações do tempo.
não está aprisionada a um tempo de nasci- cada estado anterior poderia ser recuperado,
mento. O que faz com que a época de Freud mesmo que seus elementos tenham trocado,
possa coexistir com o tempo atual [com a há muito tempo, todos os vínculos originá-
contemporaneidade]? E se “o contemporâ- rios por outros novos.
neo não é todo o tempo” em absoluto, até O ensaio O mal-estar na cultura, de 1930,
que ponto uma obra escrita no século XX, foi escrito num momento de conceitos já
como um texto da obra de Freud, poderá ser fundamentados. Não foi por acaso que Freud
um expoente do século XXI, isto é, operar de propôs como metáfora de sobrevivências do
modo atemporal, tal como o inconsciente e o material psíquico, a Cidade Eterna de Roma.
analista? Freud é tão inevitável agora quanto Podemos inferir as fronteiras porosas entre
em outro tempo? O que faz uma época es- o aparelho psíquico, o mundo [a cultura] ex-
tar fora de adesão ao seu tempo e, assim, ex- terior/interior na metáfora da cidade. Trata-
plodir em outro tempo ou outro mundo de se também de uma nova forma de escrever a
modo que o antigo e o novo possam se inter- clínica. A clínica nunca esteve desenraizada,
penetrar? Não é porque está pressuposto um a economia psíquica não é sem relação com
tempo sempre outro, que não se faz urgente a cultura e estruturas normativas da socieda-
situar que o tempo não é tão só um tempo de. Questões de cultura não são tratadas por
que sucede ou prevalece – tal como percebi- Freud sem uma contrapartida clínica, mas de
do no Eu, mas muito mais pode ser descon- modo algum isso significa a supremacia do
tinuidade e anacronismo. Que dificuldades clínico. A hipótese metapsicológica de que
e impasses teóricos se apresentam ao pensa- o mecanismo psíquico advém da sobrepo-
mento e à formalização, ao passo que a atem- sição de camadas, proposta feita por Freud
poralidade é um aspecto do inconsciente? na Carta 52 (1896/2021, p. 35) manifestará
Observa-se esse ponto para sinalizar que, complexidades e expressão mais elaborada
quando pensamos o tempo, esse pensamento nas metáforas arqueológicas de O mal-estar
se elabora no Eu. Mas não somente, pois se na cultura. Ocorre, para Freud, que o esque-
sabe estar advertido do determinismo psí- cimento não é a destruição ou apagamento
quico. Foi a partir do determinismo psíquico de traços, mas o contrário. Iniciaremos pela
que Freud (1901/2023, p. 331) demonstrou pergunta de Freud: até que ponto temos o di-
que efeitos inconscientes devem prevalecer reito de supor a sobrevivência daquilo que é
sobre motivações conscientes. Nossas esco- originário ao lado do que é posterior e que
lhas são, assim, inconscientemente determi- dele se originou?
nadas, e não se trata de um mal funciona- Freud recorreu ao desenvolvimento e
mento cerebral. Freud também nos adverte transformações na cidade de Roma. Apre-
que, para a psicanálise, nada é arbitrário, pe- sentou Roma como uma metáfora arqueo-
queno ou casual, O psicanalista se distingue lógica do aparelho psíquico. A cidade foi
pela convicção de que os sujeitos são desse reconstruída muitas vezes por cima das mes-
modo determinados. Mas isso não elimina a mas fundações e, em vez de morada humana,
questão colocada. Pode-se inferir que os ma- seria um ser psíquico. Nota-se que a metáfora
teriais serão identificados como “passado” incidirá sobre uma perspectiva temporal, na
em uma experiência de análise, pois o modo qual nada do que tenha uma vez acontecido
de tempo é atualizado no processo de análise, – o tempo passado, pereceu, e a última fase
na presença de analista. Foi também a partir de desenvolvimento ainda reflete fases ante-
dos esquecimentos que Freud (1901/2023, riores desse tempo. O que se pode encontrar
p. 369-370, nota 110), afirmou que o aspec- do passado na Roma atual? Apenas restos,
to atemporal é o mais importante e “assom- rastros, vestígios e fantasmas? Das constru-
broso” aspecto da experiência psíquica. O ções que não mais existem e que, algum dia,
inconsciente é em absoluto atemporal, pois ocuparam esses antigos contornos, não se
Assoun, P.-L. Freud: a filosofia e os filósofos (1978). Wells, H. G. A máquina do tempo: uma invenção
Tradução: Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Francisco (1895). Tradução: Adriano Scandolara. Rio de Janei-
Alves. ro: Zahar, 2019.
Resumo
A autora problematiza os efeitos danosos das redes sociais na constituição do sujeito ado-
lescente. A psicanálise pretende soltar o adolescente desse imaginário funesto, acedendo ao
simbólico e ao desejo.
Muito se tem falado sobre os efeitos do mun- de ser diferente. Trata-se de um eu idealiza-
do virtual na subjetividade de nosso tempo. do mas fragmentado.
Aqui, nesta plenária que trata de bebês e O exibicionismo virtual é um sintoma da
crianças, vamos abordar os jovens internau- vida moderna?
tas, presas fáceis das redes sociais. O que o sujeito busca com a revelação de
Redes sociais são espaços de subjetivi- sua intimidade?
dade em que os usuários se socializam e se Nos dias atuais, o sujeito só existe se esti-
reinventam, criando uma imagem, como ver na rede. Ali ele se sente visto e conectado
querem ser vistos, sem nenhuma restrição a uma tribo social. Adquire nova identidade
à veracidade do conteúdo. As redes sociais com seu perfil divulgado e daí é reconhecido
oferecem fontes de objetos de desejo múlti- pelo número de curtidas ou likes.
plos e variados, como o desejo de se conec- Quem de nós não escreveu um diário es-
tar com os semelhantes ou deles se desco- condido dos pais a sete chaves e mostrado
nectar. para poucos amigos? Na atualidade, vemos
As conexões das redes sociais, esse cole- que se rompem os limites entre o público e
tivo ilimitado, geram relações narcisistas, lí- o privado. Os diários virtuais favorecem o
quidas e escapistas. Propiciam a proliferação espetáculo de cada usuário. Facebook, Insta-
do imaginário e o deslizamento metonímico gram, Youtube, WhatsApp, blogs e fotoblogs,
do objeto. entre outros. Assim, o privado descamba
Nas redes os jovens podem viver vidas para o confidencialismo: o público se revela
sucessivas sem nenhum compromisso, haja na exposição da própria vida (exibicionis-
vista a possibilidade de ter várias fotos e vá- mo) ou em ver a vida do outro (voyerismo).
rios perfis, onde a pessoa apresenta a melhor A privacidade vai perdendo o valor. O
imagem, buscando na visibilidade o desejo gozo é se mostrar e despertar a inveja dos
1. Trabalho apresentado no XXIII Congresso do Círculo Brasileiro de psicanálise e III Jornada do Círculo Psica-
nalítico do Pará, de 7 a 11 nov. 2019, em Belém (PA).
Normas de Publicação1
1. Serão publicados apenas trabalhos inéditos de psicanálise e textos de colaboradores convi-
dados pela Comissão Editorial. Entende-se como inéditos os trabalhos que não foram publi-
cados – seja no todo, seja em parte – em periódicos, capítulos de livros, anais de jornadas das
filiadas ao Círculo Brasileiro de Psicanálise ou em congressos do CBP.
4. Formatação
• Papel: A-4
• Margens: superior e esquerda: 3 cm; inferior e direita: 2 cm
• Fonte: Times New Roman 12 – em todo o texto
• Espaçamento entre linhas nos parágrafos: 1,5 cm
• Espaçamento entre linhas nas citações: simples
• Primeira linha dos parágrafos: 1,25 cm
• Recuo das citações à esquerda: 1,25 cm assim como os parágrafos
5. Estrutura do trabalho
O trabalho deverá ser obrigatoriamente acompanhado de:
• Título em português e em inglês no corpo do trabalho
• Nome completo do autor ou autora, ou autores
• Resumo antes do texto, com o máximo de 250 palavras, seguido de 3 a 5 palavras-chave;
Abstract depois do texto, seguido de 3 a 5 Keywords
• Referências
6. Referências
• Segundo a ABNT (NBR 6023, de 2018), “tudo o que está citado no texto deve ser referencia-
do e tudo o que está referenciado deve ser citado no texto”. As obras citadas no texto devem ser
alinhadas à esquerda, principalmente por causa dos extensos links. Na Estudos de Psicanálise,
o título das obras fica em itálico.
Obs.: Não se usa mais o termo “bibliográficas” já que são citadas outras fontes além de livros.
a. Livro
AUTOR. Título: subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação: Editora, ano de publicação.
b. Capítulo de livro
AUTOR DO CAPÍTULO. Título do capítulo. In: Autor do livro. Título: subtítulo. Edição.
Local (cidade) de publicação: Editora, ano de publicação. Número do volume (se houver).
Intervalo das páginas.
• FREUD, S. As pulsões e seus destinos (1915). In: ______. As pulsões e seus destinos.
Tradução: Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 13-69. (Obras
incompletas de Sigmund Freud, 2).
• IANINNI, G.; SANTIAGO, J. Prefácio. Mal-estar: clínica e política. In: FREUD, S. Cultura,
sociedade e religião, O mal-estar na cultura e outros textos. Tradução: Maria Rita Salzano
Morais. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 33-63. (Obras incompletas de Sigmund Freud).
c. Artigo de revista
AUTOR. Título do artigo. Título do periódico, local de publicação (cidade), número do volu-
me, número do fascículo, páginas inicial e final, mês e ano.
6. Citações
Em 19 jul. 2023 passou a vigorar a norma NBR 10520 de citações, que a Associação Brasileira
de Normas Técnicas (ABNT) atualizou com o objetivo de facilitar a elaboração dos trabalhos
acadêmicos.
• Citação direta: Quando é extraído um trecho literal, copiado fielmente do original. Nesse
caso, deve-se colocar o sobrenome do autor, o ano da obra consultada e a(s) página(s).
As citações diretas podem ser de dois tipos, conforme o número de linhas.
• Mais de 3 linhas
Deve ser destacada com recuo de 1,25 cm da margem esquerda e espaçamento simples – sem
uso de aspas. Ex.:
Em Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte, Freud (1915/2020, p. 99) afirma:
Parece-nos que jamais um acontecimento destruiu tanto os bens preciosos comuns à hu-
manidade, confundiu tantas das mais lúcidas inteligências, rebaixou tão radicalmente o
que era elevado. A própria ciência perdeu sua desapaixonada imparcialidade; seus servi-
dores, profundamente exasperados, procuram extrair-lhe armas para oferecer uma contri-
buição na luta contra o inimigo.
a. Diversos autores citam a importância do estudo das perversões para entender as psicopatias
da vida cotidiana (Clauvreul, 1990; Dor, 1991; André, 2003; Corrêa, 2006).
c. Para a psicanálise, o Sujeito não seria natural como queria Sade, seria um Sujeito irreme-
diavelmente dividido, como demonstrou Freud, ao que Lacan acrescenta que isso aconteceria
pela relação dele, Sujeito, com a linguagem (Lacan, 1962/1998 citado por Leite, 2000).
7. Notas de rodapé
Devem ser usadas apenas as notas explicativas, já que as notas de referência fazem parte do
corpo do texto.
10. O Conselho Editorial reserva-se o direito de recusar os trabalhos que não se enquadrem ao
conteúdo (item 3) ou não tenham qualidade editorial.
11. Para submissão, os trabalhos deverão ser enviados por e-mail para cbp.rj@terra.com.br.
6. Relevância do tema.
7. Clareza de pensamento.
10. Aspectos éticos de acordo com a Resolução CNS 196/96 sobre privacidade e
anonimato das pessoas envolvidas, e declaração de conflitos de interesses.
Local
de
aplicação
do selo
FSC
Os
papéis
desta revista
são oriundos de
empreendimentos
florestais
que
seguem
normas
internacionais
de reflorestamento.
Papel Certificado, o papel da revista!