Você está na página 1de 206

Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA)

Member of the International Association for Analytical Psychology (IAAP)


Junguiana
REVISTA LATINO-AMERICANA DA SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PSICOLOGIA ANALÍTICA
Volume 39-2/2021

Editoral A revista Junguiana tem por objetivo publicar trabalhos originais que
Vera Lúcia Viveiros Sá - editora chefe contribuam para o conhecimento da psicologia analítica e ciências
Rosana Rubini - editora assistente afins. Publica artigos de revisão, ensaios, relatos de pesquisas, comu-
nicações, entrevistas, resenhas. Os interessados em colaborar devem
Conselho Editorial seguir as normas de publicação especificadas no final da revista.
Fernanda da Silva Pimentel A Junguiana também está aberta a comentários sobre algum
Luísa de Oliveira artigo publicado, bastando para isso enviar o texto para o e-mail
Rosana Rubini
artigojunguiana@sbpa.org.br.
Vera Lúcia Viveiros Sá
Victor Roberto da Cruz Palomo

Conselho Editorial Internacional SOCIEDADE BRASILEIRA


Axel Capriles - Sociedad Venezolana de Analistas Junguianos DE PSICOLOGIA ANALÍTICA
Jacqueline Gerson - Asociación Mexicana de Analistas Junguianos
Juan Carlos Alonso - Asociación para el Desarrollo de la
Psicología Analítica en Colombia - Adepac SBPA-São Paulo
Marilene Rodrigues Fernandes - Sociedad Chilena de Psicología Presidente - Ana Maria Cordeiro
Analítica SCPA Diretoria Administrativo /Tesoureiro - Alexandre de Lima Freitas
Mario E. Saiz - Sociedad Uruguaya de Psicología Analítica Diretoria do departamento da Clínica - Dora Eli Martins Freitas
Fabián Flaiszman - Sociedad Uruguaya, Argentina de Diretoria de Departamento de Acervo - Elza Maria Lopes
Psicología Analítica SUAPA Diretoria do Instituto de Formação - Comissão de Ensino representado
Patricia Michan - Asociación Mexicana de Analistas Junguianos por Jane Eyre Sader de Siqueira
Vladimir Serrano Pérez - Fundación C. G. Jung del Ecuador
São Paulo
Consultores científicos Rua Dr. Flaquer, 63 – Paraíso – 04006-010
Dartiu Xavier da Silveira - Universidade Federal de São Telefax: (11) 5575-7296
Paulo, SP E-mail: sbpa@sbpa.org.br
Dilip Loundo - Universidade Federal de Juiz de Fora, MG Home page: www.sbpa.org.br
Guilherme Scandiucci - Pontifícia Universidade Católica de
São Paulos, SP SBPA-Rio de Janeiro
Luís Paulo Cotrim Amorim -Sociedade Brasileira de Presidente: Elizabeth Christina Cotta Mello
Psicologia Analítica, SP
Diretor de Finanças e Tesouraria: Marcelo Fiorillo Bogado
Maria Cristina Urrutigaray - Associação Junguiana do Brasil
Diretor de Administração e Secretaria: Alexandre Alves Domingues
pelo Instituto Junguiano do Rio de Janeiro, RJ
Diretor de Cursos e Eventos: Carla Maria Portella Dias
Mariluce Moura - revista Pesquisa Fapesp, SP
Marisa Müller - Pontifícia Universidade Católica do Rio Diretor de Ensino: Cynthia Pereira Lira
Grande do Sul, RS Diretor de Publicação e Biblioteca: Marcelo Fiorillo Bogado
Oswaldo Henrique Duek Marques - Pontifícia Universidade Tel.: (21) 2235-7294
Católica de São Paulo, SP Email SBPA/RJ: sbpa.rio@gmail.com
Walter Boechat - Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ Home page: www.sbpa-rj.org.br
Walter Melo Júnior - Universidade Federal de São João del
Rei, MG Indexação
Index Psi Periódicos: www.bvs-psi.org.br
Base de dados Lilacs/Bireme – Literatura Latino-
Capa: Ana Gabriela Barth
Americana e do Caribe da Saúde, da Organização
São Paulo, 2021
Pan-Americana da Saúde (Opas) e da Organização
Junguiana
Mundial da Saúde (OMS). www.bireme.br
PePSIC http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?lng=pt

Editoração: Ingroup Tecnologia e Serviços

Junguiana: Revista da Sociedade Brasileira


de Psicologia Analítica – n.1 (1983)
São Paulo: Sociedade, 1983 -
Semestral
ISSN 2595-1297 versão online
ISSN 0103-0825 versão impressa
1.Psicologia – periódicos
CDD 150

2 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.3-4

Editorial

Embora a chegada da primavera pareça também trazer o


anúncio do fim da pandemia, continuamos na busca da ela-
boração do símbolo da morte constelado em função de tantas
perdas. A avalanche de ansiedade que perturbou milhões de
pessoas na eclosão da COVID-19 deu lugar à depressão, des-
cida aos ínferos, operação alquímica da mortificatio, para o
resgate e a reflexão sobre o que foi perdido ou abandonado
e a consequente transformação da consciência. Ainda esta-
mos nesse processo reflexivo. A simbologia constelada está
vinculada à derrota, à tortura, ao apodrecimento, mas tam-
bém conduz às imagens de crescimento, da ressurreição, do
renascimento. Esta é uma jornada heroica, requer coragem
e determinação para se alcançar o potencial transformador
inerente à morte e efetivar as mudanças necessárias ao novo
começo, à retomada da vida. O símbolo da morte está asso-
ciado ao plantio e à germinação de sementes que, posterior-
mente, crescerão, atingindo a luz.
Nossa homenageada na 39ª edição da Junguiana é a Dra.
Nise da Silveira, psiquiatra nordestina, que reúne características heroicas e que tanto lutou pela transfor-
mação do tratamento das pessoas com transtornos mentais pela medicina no século passado e, para isso,
valeu-se de armas poderosas: o afeto e a arte. Toda sua história de vida e luta em defesa de uma atitude ética
na relação com os doentes foi permeada pelo respeito ao outro, pelo tratamento humano. Sua afinidade pelo
profundo, sua prática e o legado que deixou nos servem como inspiração para crermos na possibilidade de
transformação através da semeadura do amor e do respeito. Dra. Nise dizia: “Após minha morte, quero ser
lembrada com emoção”1. Como já cantou Gilberto Gil, outro nordestino: “[...] é como um grão, uma semente
de ilusão, tem que morrer pra germinar”. É com arte e emoção que a homenageamos, cientes de que sua jor-
nada fez nascer luz onde antes só havia escuridão.
Começamos a segunda parte do Dossiê Nise da Silveira com três depoimentos. No primeiro, “Nise da
Silveira: primeira e única”, o autor enaltece a alma visionária, aquariana, aberta a flagrar e a decodificar o
significado de qualquer fenômeno que se apresentasse aos seus olhos atentos e a seus ouvidos antenados.
Em “Da mandala terapêutica à mandala dramatúrgica: epístola à Dra. Nise”, são feitas aproximações entre
as práticas das mandalas terapêuticas, inauguradas pela psiquiatra alagoana e as mandalas dramatúrgicas,
procedimento da Mitodologia em Arte. “A importante contribuição da obra de Nise da Silveira para a Psicolo-
gia Analítica de Jung” traça uma retrospectiva histórica nos ajudando a compreender a paixão de Nise por seu
trabalho e compartilhando a experiência da autora na Casa das Palmeiras.

1
Cf. MACEDO, V. (2021) A importante contribuição da obra de Nise da Silveira para a Psicologia Analítica de Jung, Junguiana, São Paulo, n.39/2.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 3


Junguiana
v.39-2, p.3-4

Após esta seção de depoi- diferença: nas sexualidades, relacionam silenciamento e psi-
mentos, apresentamos os ar- nas teorias, na comunicação, cologia, buscando compreen-
tigos que compõem o dossiê. na interface entre a literatura e der o que leva ao silenciamento
“Por um método niseano na saú- a psicologia. “O complexo hete- imposto, seu contexto e conse-
de mental: a construção de um ropatriarcal: uma contribuição quências. “O áporo de Drum-
ateliê de arte na emergência psi- para o estudo da sexualidade mond: um olhar junguiano” tem
quiátrica” relata a experiência na Psicologia Analítica a par- como objetivo descrever e ana-
da intervenção artística propos- tir da Teoria Social” apresenta lisar os aspectos simbólicos
ta pelo Programa de Residência uma articulação teórica entre do poema “Áporo”, de Carlos
de Psicologia em Saúde Mental a Psicologia Analítica de C. G. Drummond de Andrade, partin-
do Hospital Psiquiátrico Ulysses Jung e referências contemporâ- do de um sonho e concluindo
Pernambucano e da Universi- neas na teoria social, tendo o que sua progressão sugere um
dade de Pernambuco, buscan- objetivo de aprimorar a escu- processo de individuação.
do atualizar o método de Nise ta clínica de psicólogos e ou-
Mesmo em um país ferido
da Silveira na atenção à saúde tros profissionais que prestem
por tantas perdas, desolado e
mental. O artigo “Do chão do pá- atendimento à população, em
repartido, esperamos fortale-
tio a um encontro possível: argi- relação a questões de gênero e
cer a cultura, a democracia e os
la no tratamento de um paciente sexualidade. “Os instintos nas
ideais de uma sociedade mais
psiquiátrico” descreve o aten- Neurociências Afetivas e na Psi-
justa, menos polarizada e sem
cologia Analítica” estabelece
dimento psicológico realizado tantas discriminações e desi-
relações entre a Psicologia Ana-
com um paciente residente em gualdades. Buscamos, como
lítica de Carl Gustav Jung e as
um hospital especializado em nossa homenageada, crer e
Neurociências Afetivas de Jaak
saúde mental, usando a argila apostar na possibilidade de
Panksepp, comparando os sis-
como recurso expressivo e ins- transformação através do inte-
temas instintivos básicos pro-
pirado nos ensinamentos que resse genuíno e afetivo no dife-
postos por ambas as teorias.
a Dra. Nise defendia. rente, no outro, na alteridade.
Em “Chamado de eco: a expres-
Em seguida, apresentamos são de vozes silenciadas”, é
os artigos que completam esta realizado um levantamento de Outubro, 2021
edição. São trabalhos sobre te- estudos em Psicologia Analítica
mas que abordam, de um modo sobre a figura mitológica de Eco Editoras
ou de outro, a diversidade, a e de estudos literários que cor-

4 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.5-6

Editorial

Although the arrival of spring also seems to bring the an-


nouncement of the end of the pandemic, we continue in the
search for the elaboration of the symbol of death constellat-
ed due to so many losses. The avalanche of anxiety that dis-
turbed millions of people at the outbreak of COVID-19, gave
way to depression, descent into the underworld, alchemical
operation of mortificatio, for the rescue and reflection on what
was lost or abandoned and the consequent transformation
of consciousness. We are still in this reflective process. The
constellated symbolism is linked to defeat, torture, decay, but
it also leads to images of growth, resurrection, and rebirth.
This is a heroic journey, requiring courage and determination
to reach the transformative potential inherent in death and
effect the necessary changes for a new beginning, for the re-
sumption of life. The symbol of death is associated with the
planting and germination of seeds that will later grow and
reach light.
Our honored in the 39th edition of Junguiana is Dr. Nise
da Silveira, a psychiatrist from the Northeast of Brazil, who has heroic characteristics and who fought so
hard for the transformation of the treatment of people with mental disorders by medicine in the last century,
using powerful weapons: affection and art. Her entire life story and struggle in defense of an ethical attitude
relating to patients was permeated by respect for others, by humane treatment. Her affinity for the profound,
her practice and the legacy she left behind serve as inspiration for us to believe in the possibility of transfor-
mation through the sowing of love and respect. Dr. Nise said: “After my death, I want to be remembered with
emotion”1. As Gilberto Gil, another northeasterner, has already sung: “(...) it is like a grain, a seed of illusion, it
has to die to germinate”. It is with art and emotion that we pay tribute to her, aware that her journey gave birth
to light where before there was only darkness.
We begin the second part of the Nise da Silveira dossier with three testimonials. In the first, “Nise da Silvei-
ra: first and unique”, the author praises the visionary soul, Aquarian, open to catch and decode the meaning
of any phenomenon that presents itself to her attentive eyes and tuned ears. In “From therapeutic mandala to
dramaturgical mandala: epistle to dra. Nise” approximations are made between the practices of the therapeu-
tic mandalas, inaugurated by the psychiatrist from Alagoas, and the dramaturgical mandalas, procedure of the
Mitodologia em Arte. “The important contribution of Nise da Silveira’s work to Jung’s Analytical Psychology”
traces a historical retrospective, helping us to understand Nise’s passion for her work and sharing the author’s
experience in working with her at Casa das Palmeiras. After this testimonial session, we present the articles
that compose the dossier. “Towards a nisean method in mental health: creating an art studio in a psychiátric

1
Cf. MACEDO, V. (2021) The important contribution of Nise da Silveira’s work to Jung’s Analytical Psychology, Junguiana, São Paulo, n.39/2.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 5


Junguiana
v.39-2, p.5-6

emergency ward” reports the a contribution to the study of seeking to understand what
experience of the artistic inter- sexuality in Analytical Psychol- leads to imposed silencing,
vention proposed by the Psy- ogy based on Social Theory” its context and consequences.
chology Residency Program in presents a theoretical articu- “Drummond’s áporo: a jung-
Mental Health at the Ulysses lation between the Analytical ian look” aims to describe and
Pernambucano Psychiatric Hos- Psychology of C. G. Jung and analyze the symbolic aspects
pital and the University of Per- contemporary references in of the poem “Áporo” by Car-
nambuco, seeking to update social theory, with the aim of los Drummond de Andrade,
the Nise da Silveira's method in improving the clinical listen- starting from a dream, and
mental health care. ing of psychologists and oth- concluding that its progression
er professionals who provide suggests a process of individ-
The article “From the court-
assistance to the population, uation.
yard to a possible encounter:
clay on the treatment of a psy- regarding issues of gender and Even in a country wound-
chiatric patient” describes the sexuality. “Instincts in Affec- ed by so many losses, deso-
psychological care provided to tive Neuroscience and Analyt- late and divided, we hope to
a patient residing in a hospital ical Psychology” establishes strengthen culture, democracy,
specialized in mental health, relationships between the and the ideals of a fairer soci-
using clay as an expressive re- Analytical Psychology of Carl ety, less polarized and without
source, inspired by the teach- Gustav Jung and the Affective so much discrimination and
ings of Dr. Nise. Next, we pres- Neuroscience of Jaak Pank- inequalities. We seek, like our
ent the articles that complete sepp, comparing the basic in- honoree, to believe and bet on
this edition. These are works stinctual systems proposed by the possibility of transforma-
on themes that address, in both theories. In “Eco’s calling: tion through genuine and affec-
one way or another, diversity, listening to silenced voices” a tive interest in the different, in
difference: in sexualities, in survey of Analytical Psychol- the other, in otherness.
theories, in communication, ogy studies on the mytholog- October 2021
in the interface between lit- ical figure of Eco and literary
erature and psychology. “The studies that correlate silencing Editors
heteropatriarcal complex: and psychology is carried out,

6 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.7-8

Editorial

Aunque la llegada de la primavera también parece traer


el anuncio del fin de la pandemia, seguimos en la búsqueda
de la elaboración del símbolo de la muerte constelado por
tantas pérdidas. La avalancha de ansiedad que inquietó a mi-
llones de personas por el estallido del COVID-19, dio paso a la
depresión, descenso a los infiernos, operación alquímica de
mortificatio, por el rescate y reflexión sobre lo perdido o aban-
donado y la consecuente transformación de la conciencia.
Todavía estamos en este proceso de reflexión. La simbología
constelada está ligada a la derrota, la tortura, la decadencia,
pero también conduce a imágenes de crecimiento, resurrec-
ción, renacimiento. Este es un viaje heroico, requiere coraje y
determinación para alcanzar el potencial transformador inhe-
rente a la muerte y efectuar los cambios necesarios para un
nuevo comienzo, para la reanudación de la vida. El símbolo
de la muerte está asociado con la siembra y germinación de
semillas que luego crecerán y alcanzarán la luz.
Nuestra homenajeada en la 39a edición de Junguiana es
la Dra. Nise da Silveira, psiquiatra nororiental, que tiene características heroicas y que luchó tan duro por la
transformación del tratamiento de las personas con trastornos mentales por la medicina en el último siglo y,
por eso, usó armas poderosas: cariño y arte. Toda su historia de vida y lucha en defensa de una actitud ética
en relación con los pacientes estuvo impregnada de respeto a los demás, de trato humano. Su afinidad por
lo profundo, su práctica y el legado que dejó nos sirven de inspiración para creer en la posibilidad de trans-
formación a través de la siembra del amor y el respeto. La Dra. Nise decía: “Después de mi muerte, quiero ser
recordado con emoción”1. Como cantaba Gilberto Gil, otro nororiental: “(...) es como un grano, una semilla de
ilusión, tiene que morir para germinar”. Es con arte y emoción que la honramos, conscientes de que su viaje
dio a luz a la luz donde antes solo había oscuridad.
Comenzamos la segunda parte del Dossier Nise da Silveira con tres testimonios. En el primero, “Nise da
Silveira: primera y única”, el autor ensalza el alma visionaria, acuariana, abierta a captar y descifrar el signi-
ficado de cualquier fenómeno que se presente a sus ojos y oídos atentos. En “De la mandala terapéutica a la
mandala dramatúrgica: epístola a la dra. Nise”, se realizan aproximaciones entre las prácticas de los manda-
las terapéuticos, inaugurada por el psiquiatra de Alagoas, y las mandalas dramatúrgicos, procedimiento de
la Metodología en el Arte. “La importante contribución de la obra de Nise da Silveira a la Psicología Analítica
de Jung” traza una retrospectiva histórica que nos ayuda a comprender la pasión de Nise por su trabajo y a
compartir la experiencia de la autora al trabajar con ella en la Casa das Palmeiras.

1
Cf. MACEDO, V. (2021) La importante contribución de la obra de Nise da Silveira para la Psicología Analítica de Jung, Junguiana, São Paulo,
n.39/2

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 7


Junguiana
v.39-2, p.7-8

Tras esta sesión testimonial, ferencia: en las sexualidades, en literarios que correlacionan silen-
presentamos los artículos que las teorías, en la comunicación, ciamiento y psicología, buscando
componen el dossier. “Por un mé- en la interfaz entre la literatura y comprender qué conduce al silen-
todo niseano en salud mental: la la psicología. “El complejo hete- ciamiento impuesto, su contex-
construcción de un estudio de arte ropatriarcal: una contribución al to y consecuencias. “El áporo de
en emergencias psiquiátricas” re- estudio de la sexualidad en Psico- Drummond: una mirada junguia-
lata la experiencia de intervención logía Analítica basada en la Teoría na” tiene como objetivo describir
artística propuesta por el Progra- Social”, presenta una articulación y analizar los aspectos simbóli-
ma de Residencia en Psicología teórica entre la Psicología Analí- cos del poema “Áporo” de Carlos
en Salud Mental del Hospital Psi- tica de C. G. Jung y los referentes Drummond de Andrade partiendo
quiátrico Ulysses Pernambucano contemporáneos en la teoría so- de un sueño, y concluyendo que
y la Universidad de Pernambuco, cial, con el objetivo de mejorar la su progresión sugiere un proceso
buscando actualizar lo método de escucha clínica de los psicólogos de individuación.
Nise da Silveira en el cuidado de la y otros profesionales que atienden Incluso en un país herido por
salud mental. El artículo “Desde el a la población, en relación a te- tantas pérdidas, desolado y di-
piso del patio a un posible encuen- mas de género y sexualidad. “Los vidido, esperamos fortalecer la
tro: la arcilla en el tratamiento de instintos en las neurociencias cultura, la democracia y los idea-
un paciente psiquiátrico” describe afectivas y en la Psicología Analíti- les de una sociedad más justa,
la atención psicológica brindada a ca” establecen relaciones entre la menos polarizada y sin tanta
un paciente residente en un hospi- psicología analítica de Carl Gustav discriminación y desigualdad.
tal especializado en salud mental, Jung y las Neurociencias Afectivas Buscamos, como nuestra home-
utilizando la arcilla como recurso de Jaak Panksepp, comparando najeada, creer y apostar por la
expresivo e inspirado en las ense- los sistemas instintivos básicos posibilidad de transformación a
ñanzas de la Dra. Nise. propuestos por ambas teorías. En través del interés genuino y afec-
A continuación, presentamos “Llamado de eco: la expresión de tivo en lo diferente, en el otro, en
los artículos que completan esta voces silenciadas” se realiza un la alteridad.
edición. Se trata de trabajos sobre relevamiento de estudios en psi- Octubre, 2021
temáticas que abordan, de una cología analítica sobre la figura
forma u otra, la diversidad, la di- mitológica de Eco y de estudios Editoras

8 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Sumário
Contents
Editorial
3 Editorial
13 Nise da Silveira: primeira e única
Alberto Pereira Lima Filho

21 Da mandala terapêutica à mandala


dramatúrgica: epístola à Dra. Nise
Luciana Lyra

29 A importante contribuição da obra


de Nise da Silveira para a Psicologia
Analítica de Jung
Vera Macedo

43 Por um método niseano na saúde


mental: a construção de um ateliê
Towards a nisean method in mental
health: the creation of an art studio in a
de arte na emergência psiquiátrica
psychiatric emergency Brena Souza Almeida,
Hamanda de Almeida Pedrosa,
Luana Maria Rotolo

57 Towards a Nisean method in mental


health: creating an art studio in a
Por um método niseano na saúde
mental: a construção de um ateliê de psychiatric emergency ward
arte na emergência psiquiátrica Brena Souza Almeida,
Hamanda de Almeida Pedrosa,
Luana Maria Rotolo

Desde el piso del patio a un posible


69 Do chão do pátio a um encontro
encuentro: la arcilla en el tratamiento possível: argila no tratamento de um
de un paciente psiquiátrico paciente psiquiátrico
Sergio Luiz Alécio Filho

Do chão do pátio a um encontro


79 From the courtyard to a possible
possível: argila no tratamento de um encounter: clay on the treatment of a
paciente psiquiátrico psychiatric patient
Sergio Luiz Alécio Filho,
Regina Helena Lima Caldana
The heteropatriarchal complex: a
89 O complexo heteropatriarcal: uma
contribution to the study of sexuality in contribuição para o estudo da
Analytical Psychology on Social Theory sexualidade na Psicologia Analítica
a partir da Teoria Social
Gustavo Pessoa

103 The heteropatriarchal complex: a


O complexo heteropatriarcal: uma contribution to the study of sexuality in
contribuição para o estudo da
sexualidade na Psicologia Analítica a
Analytical Psychology based on Social
partir da Teoira Social Theory
Gustavo Pessoa

117 Os instintos nas Neurociências


Instincts in Affective Neuroscience and
Analytical Psychology
Afetivas e na Psicologia Analítica
Guilherme Silva Gonçalves

131 Instincts in Affective Neuroscience


Os instintos nas Neurociências Afetivas and Analytical Psychology
e na Psicologia Analítica
Guilherme Silva Gonçalves

143 Chamado de Eco: a escuta de vozes


Echo’s Calling: listening to silenced silenciadas
voices Cássia Frankenthal Quinlan

157 Echo’s c alling: listening to silenced


Chamado de Eco: a escuta de vozes voices
silenciadas Cássia Frankenthal Quinlan

El Áporo de Drummond: una mirada


171 O Áporo de Drummond: um olhar
jungiana junguiano
Marco Antônio Vasconcelos Rêgo

O Áporo de Drummond: um olhar


187 El Áporo de Drummond: una mirada
junguiano jungiana
Marco Antônio Vasconcelos Rêgo

203 Normas
Junguiana
v.39-2, p.11-12

DOSSIÊ NISE DA SILVEIRA

(Maceió, 15 de fevereiro de 1905 – Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1999)1

1
https://www.scielo.br/j/pcp/a/ST6887NdYRBschFzS8sFhpP/?lang=pt

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 11


Junguiana
v.39-2, p.11-12

12 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.13-20

Nise da Silveira: primeira e única

Alberto Pereira Lima Filho*

O homem só é espírito pela memória, só


é humano pela fidelidade. Guarde-se,
homem, de se esquecer de se lembrar!
O espírito fiel é o próprio espírito (André
Comte-Sponville, em Pequeno Tratado
das Grandes Virtudes, p. 25).

* Psicólogo: CRP 12915 OPP 25232, Prof. Doutor em Psicolo-


gia Clínica (USP e PUCSP, respectivamente), Doutorando em
Direito pela Universidade Nova de Lisboa.
email: <albertopereiralimafilho@gmail.com>

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 13


Junguiana
v.39-2, p.13-20

Contavam-se as primeiras horas da noite do o pai da psique (individual e coletiva), a psique


dia 12 de novembro do ano de 1999, data em do pai (idem), o que inclui um exame crítico das
que me ocupei com a defesa de minha tese de funções que se qualificam como paternas e uma
doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia zeladoria pela preservação de um espírito evo-
Universidade Católica de São Paulo. Prezo o há- lutivo nesse âmbito, em especial no tocante ao
bito que tenho de dedicar a pessoas que sejam tema “caráter”. Em meu mapa natal, o que carac-
significativas para mim – bem como para seto- teriza minha relação com aqueles que nascem
res da coletividade à qual pertenço – qualquer sob o signo de Aquário é um profundo respeito
atividade profissional que eu realize em público (com direito a reciprocidade). Pertencem ao sig-
ou em um grupo de pessoas. Sem hesitação, es- no de Escorpião os meus mais antigos e estáveis
colhi dedicar aquele ritual à Dra. Nise da Silveira, amigos, sustentáculos das mais duradouras re-
que encerrara sua jornada entre nós, seus admi- lações de confiança e lealdade contidas em meu
radores, 13 dias mais cedo (no dia 30 de outubro acervo. Todos têm o nome começado pela letra
do mesmo ano), sob os auspícios de Escorpião M. Essa letra estava presente no sobrenome de
(signo regido por Plutão, que corresponde a Ha- Dra. Nise, Magalhães da Silveira, bem como no
des), na cidade do Rio de Janeiro. Pneumonia e nome e no sobrenome de seu parceiro de vida,
insuficiência respiratória aguda. A data de seu Mário Magalhães da Silveira (médico, especiali-
nascimento em Maceió fora o 15 de fevereiro do zado em saúde pública; nascido sob o signo de
ano de 1905. Dra. Nise era uma aquariana (sig- Touro no mesmo ano em que a esposa viera ao
no regido por Urano). Esses simples detalhes mundo). Eram primos, daí terem o mesmo sobre-
dão conta do fato de ela ter sido uma mulher nome. Pois bem: meu pai e minha mãe também
adiante de seu tempo, um ser de vanguarda, eram primos em primeiro grau. Vivi um episódio
uma alma visionária, aberta a flagrar e a decodi- de pneumonia aos 33 anos de idade, que durou
ficar o significado de qualquer fenômeno que se 40 dias. Sigo vivendo. Vejo os pulmões como ór-
apresentasse aos seus olhos atentos, seus ou- gãos relacionais, uma vez que é a região onde
vidos antenados, bem como empreender ações se dão as trocas entre o dentro e o fora (absor-
originalíssimas em consonância com a temática ção de oxigênio, emissão de gás carbônico. Os
identificada, sempre a serviço da saúde e da in- pulmões complementam o que o coração, outro
tegridade humana. Desafios, ainda que vultuo- órgão relacional, exerce. Duas das muitas faces
sos, eram por ela abraçados com impressionan- de Eros no plano biológico.
te facilidade e com a mesma naturalidade com Vinte e três anos mais tarde, revisito a vida e
que uma pessoa abre o envelope de uma carta a carreira de Dra. Nise, atividade com a qual me
que recebeu, responde ao “bom dia” que ouviu, ocupei em algumas oportunidades, desta feita,
sorri diante de uma cena enternecedora. a pretexto de redigir este texto. Em suas consi-
Coincidências certamente não meras (que derações sobre pesquisas e estudos conduzidos
talvez possam ser computadas como sincro- sob a perspectiva da Psicologia Analítica, a ex-
nicidades): Dra. Nise compartilhava com meu celente acadêmica e analista junguiana Profa.
pai o mesmo signo. O título de minha tese é “O Dra. Eloisa Marques Damasco Penna1 enfatiza
significado do pai para a psique: da interdição a importância de o pesquisador/estudioso ter
estruturante, à construção da autonomia”, e mi- uma participação ativa no processo de pesquisa
nha vida, não apenas profissional, em grande e, não menos importante, ressalta o fato de que
parte tem sido um tributo ao pai. No âmbito pro- conhecimento e autoconhecimento são insepa-
fissional, meus esforços de sistematização de ráveis. Disso resulta um interjogo entre conteú-
conhecimento, pesquisa e produção de textos
percorrem temas alusivos ao arquétipo paterno: 1
Penna (2007).

14 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.13-20

dos conscientes e inconscientes do próprio pes- apresentou-se no II Congresso Internacional de


quisador ou estudioso, bem como uma interação Psiquiatria em Zurique, com o trabalho “A Es-
entre essa dimensão interna duplo-facetada e o quizofrenia em Imagens”. Em junho do mesmo
objeto eleito como foco para uma investigação ano, foi recebida por Jung em sua residência em
ou reflexão. Sob os auspícios desses entendi- Kusnacht2. De abril a setembro, ela estudou no
mentos, eu aqui interajo no mais profundo plano instituto C. G. Jung, em Zurique.
anímico com a história, a personalidade e as sig- Em 1936, denunciada por uma enfermeira,
nificativas ações sociais exercidas por Dra. Nise. que encontrara em seu dormitório livros marxis-
O que nela me cativa é muito semelhante ao tas, foi detida no presídio Frei Caneca, onde per-
que me cativa em Jung (o uso do presente do in- maneceu por um ano e meio3. Na novela Kanan-
dicativo é proposital, pois a vivência de ser pro- ga do Japão4, da Rede Manchete, foi retratada
fundamente tocado e mesmo capturado é algo em cenas de prisão como Guida Vianna.
que se renova a cada encontro): a coragem. A co- Após 1944, recusou-se a aplicar eletrochoque
ragem de ser, a disposição para exercer seu ser e aos pacientes. Foi contrária a métodos que ela
fazê-lo valer, a lealdade a si, mesmo não faltan- via como violentos. Paulo Elejalde, diretor do
do jamais enorme respeito pelo outro, pelo co- Centro Psiquiátrico Pedro II, onde Dra. Nise tra-
letivo, pelo desconhecido e pelo incognoscível. balhava, sugeriu que ela migrasse para o Setor
No caso de Dra. Nise, somam-se aos elementos de Terapêutica Ocupacional, num gesto obvia-
comuns entre ela e Jung o fato de ser mulher e o mente desqualificador a ela. Foi nessa seara,
consequente tempero feminino característico de no entanto, que Dra. Nise vislumbrou a oportu-
suas inserções. Outras palavras que me ocorrem nidade de um trabalho revolucionário, o que a
são “atrevimento”, “ousadia”, “inventividade”. levou a aceitar a proposição. Na infância, quan-
Mas, tanto essas palavras quanto quaisquer ou- do acompanhava o pai ao trabalho, ela já havia
tras que porventura eu já tenha mencionado – ou sido despertada para o trabalho com as mãos,
ainda mencione – estão – ou estarão – alicerça- por ela observado no manejo da tipografia pelos
das numa base a que dou o nome de honestida- jornalistas. Semente plantada na infância, que
de psíquica. Não vejo presunção, nada me soa germina na vida adulta. Em 1949, Dra. Nise se re-
a arrogância. Flagro a presença de grande co- cusa a vender a Cicillo Matarazzo uma pintura de
medimento, ou, dito de outra maneira, constato Emygdio, frequentador do ateliê do Engenho de
esforços bem empreendidos (e bem-sucedidos) Dentro, alegando que a falta de uma peça na se-
com a finalidade de encontrar a justa medida, ou quência de uma produção artística inviabilizaria
tendo esse desaguadouro como desenlace para sua decifração. Em 1952, inaugurou-se o Museu
suas empreitadas (dele, Jung, e dela, Dra. Nise). de Imagens do Inconsciente. Em 1955, surge o
A partir deste momento, silencio meu olhar para Grupo de Estudos C. G. Jung. Em 1956, Jung con-
Jung e privilegio um trânsito pelo universo de vidou Dra. Nise para fazer parte do Instituto C.
Dra. Nise da Silveira. G. Jung de Zurique com vistas à preparação da
Aos 15 anos de idade (portanto, um ano mais
nova do que deveria ser para corresponder às 2
Estas e outras informações pontuais encontram-se no impecá-
exigências protocolares da Universidade), a jo- vel estudo do Prof. Arnaldo Alves da Motta sobre os pioneiros
da Psicologia Analítica no Brasil (MOTTA, 2005).
vem Nise ingressou no curso de medicina. Ao 3
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1108200013.
lado de 157 rapazes, ela era a única mulher na htm
classe. Em um depoimento, ela afirma que “de- 4
Apresentada no período de julho de 1989 a março de 1990.
Escrita por Wilson Aguiar Filho, produzida por Jayme Monjar-
ram um jeito” para que isso fosse possível e deu dim e dirigida por Wilson Solon, Carlos Magalhães e Tizuka
trabalho corrigir a situação mais tarde. Trocou Yamasaki. Informação disponível em https://pt.wikipedia.org/
wiki/Kananga_do_Jap%C3%A3o e em http://teledramaturgia.
correspondência com Jung em 1954. Em 1957, com.br/kananga-do-japao/.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 15


Junguiana
v.39-2, p.13-20

exposição de arte psicopatológica que ocorreria quiátricos. Os dormitórios pareciam chalés de


num congresso internacional de psiquiatria. Em um hotel-fazenda. Havia certa alegria e lúdico
1968, é publicado o primeiro livro da estudiosa5. movimento entre os participantes da cena. Foi-
Trata-se de um texto extremamente simples, -nos informado minutos depois que, naqueles
confiável, muito bem escrito, didático, honroso dias, o hospital estava introduzindo o uso de
a Jung e abrangente no tocante às áreas do pen- florais de Bach no tratamento aos internos. O
samento junguiano. Encontra-se na Universida- táxi prosseguiu e, após uma descida em curvas,
de do Porto, em Portugal, o Centro de Estudos chegamos ao museu. Fomos recebidos com
Imagens do Inconsciente. muita gentileza. Minha esposa e eu éramos os
De uma vasta e riquíssima biografia, decidi únicos visitantes do museu naquele dia. Em
destacar apenas esses itens acima arrolados razão disso e, tendo sido informado de que
para evidenciar com imagens alguns de seus tra- eu era um psicoterapeuta, o anfitrião foi espe-
ços marcantes: a singularidade de uma grande cialmente solícito. Acompanhou-nos durante
mulher; as mangas arregaçadas, a disposição a visita, muito respeitosamente, dando-nos
para o trabalho e o engajamento com suas ati- tempo e liberdade para apreciarmos as obras.
vidades; a séria ocupação com os fundamen- Respondia com competência e familiaridade
tos teóricos que permeiam e dão sustentação a com a matéria as perguntas que formulávamos.
suas ações; o espírito científico revolucionário; Ficou impressionado com nosso interesse pelo
a lealdade a suas crenças e valores; a incorrup- que víamos e com os comentários que fazíamos
tibilidade; a habilidade em jamais desperdiçar ou com as reflexões que articulávamos em voz
experiência vividas, que integram seu acervo de alta. Uma vez que não havia outros visitantes
aprendizagens; a integração da polaridade sim- a quem ele teria de devotar atenção, ele nos
plicidade/rigor; e a universalidade de seu imen- ofereceu a oportunidade de conhecer os basti-
so valor. dores do Museu. Levou-nos à sala onde eram
Passo a relatar experiências subjetivas com cuidadosamente conservadas as obras não
Dra. Nise. Se é verdade que não a conheci pesso- expostas. Mostrou-nos coleções de produções
almente, parece-me igualmente verdadeiro que artísticas inusitadas e desconhecidas do públi-
a conheço bem. E não são raras as oportunida- co. Levou-nos até uma sala privativa de áudio
des em que experimento evidências de recipro- e vídeo e deixou-nos à vontade para ouvir e ver
cidade nesse bem conhecer. Sinto-me ouvido e o que porventura pudesse nos interessar. Fica-
assessorado por Dra. Nise, ainda que o significa- mos ocupados com essa atividade por um bom
do dessa afirmação seja “ouvido e assessorado par de horas. Convidou-nos a retornar quando
por uma dimensão a ela assemelhada, ou por ela quiséssemos para conhecer o material que não
inspirada, no plano intrapsíquico”. tínhamos tido a chance de examinar. Durante
Nos anos 1990, estive em visita ao Museu o período dessa visita, ele conversou com as
de Imagens do Inconsciente no Rio de Janeiro. equipes multidisciplinares que conduziam Ofi-
Era o período da tarde de um dia de semana. cinas Terapêuticas com os pacientes e conquis-
O táxi adentrou o hospital e subiu em curvas tou deles a autorização para acompanharmos
uma colina, o que nos permitiu acompanhar uma sessão. Disponibilizou duas cadeiras no
o movimento dos internos e dos enfermeiros corredor, num local próximo à porta da sala de
pelas áreas livres e comuns do hospital. Algo atendimento, que foi deixada aberta. O que pu-
nos pareceu peculiar e muito distinto de qual- demos testemunhar era perfeitamente compatí-
quer experiência anterior com hospitais psi- vel com o que eu havia estudado sobre o traba-
lho coordenado por Dra. Nise. Grande emoção.
5
Silveira (1988). Muito relevante saber que o trabalho por ela

16 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.13-20

concebido era levado adiante com lealdade a Poucos anos mais tarde, testemunhei pela
ela, suas ideias e métodos. De certa maneira, segunda vez7 em minha vida uma situação de
ali estivemos com Dra. Nise, quase ao vivo e em aplauso ao término da exibição de uma obra
cores. Choro ao recordar. cinematográfica: O Coração da Loucura8. Uma
Em 2000, Berta Zemel6, após um distancia- vez mais, o público aplaudiu a competentíssima
mento dos palcos que durou 25 anos, colocou obra cinematográfica e a personagem central. O
Dra. Nise da Silveira no palco com o espetá- filme foi especialmente feliz na forma realística
culo Anjo Duro, um monólogo, peça escrita e como apresentou as dificuldades clínicas dos
dirigida por Luiz Valcazaras. Seu desempenho pacientes e as interações de Dra. Nise com eles
rendeu a ela o prêmio de melhor atriz naque- e, no início do filme, com a direção do hospital.
le ano, conferido pela Associação Paulista de Dra. Nise trabalhou com pacientes psiquiátri-
Críticos de Arte. Foi a primeira vez em toda mi- cos e com comprometimentos de saúde mental
nha vida que presenciei 10 minutos de aplau- e emocional bastante graves. Sem que se possa
so (standing ovation) a uma obra teatral. Dois acusá-la de negligência ou desdém para com a
elementos merecem destaque. Naquela noite, perspectiva científica (muito pelo contrário), ela
psicoterapeutas das mais distintas orienta- zelou pela preservação daquilo que permanecia
ções e abordagens em psicoterapia estavam intacto na psique dos pacientes, ou seja, a liga-
na plateia, o que evidencia a universalidade ção entre o que de ego neles se preservava, ou
do tema tratado e a unanimidade do apreço ao era passível de restauração, e o Self certamen-
mesmo. Ao lado disso, cabe indagar a quem te presente. Escolheu a arte como veículo para
se destinava o aplauso: se à atriz ou à perso- essa preservação. Para cuidar de assuntos da
nagem. Não hesito em dizer que os aplausos alma, compreendê-los e por eles zelar, a me-
eram destinados a ambas. A competência cê- lhor linguagem é a da alma, a melhor técnica é
nica da atriz fez com que aquela representa- a ativação (e, quiçá, a possível constelação) do
ção mais se assemelhasse a uma experiência arquétipo do curador no ferido. Bem sabemos
mediúnica. A certa altura do espetáculo, Dra. (como estudiosos do par arquetípico médico/fe-
Nise, sob a pele de Berta, desempenhava o rido), as feridas de Dra. Nise a capacitaram a ser
papel de um dos pacientes assistidos pela sensível à dor e ao sofrimento do outro, que, em
psiquiatra. Uma meta-mediunidade de im- acolhimento a suas intervenções, a ela propicia-
pressionante valor – sim, teatral, mas também ram a possível superação – não a cura – de suas
cultural, científica, anímica, espiritual. O que próprias dores e sofrimento.
dessa experiência permaneceu em meu acer- Estou neste momento em Portugal e dedico-
vo pessoal e profissional foi a constatação de -me a um segundo doutorado, desta vez em Di-
que, seja eu, seja Berta, seja o público daque- reito. Escolhi como tema para minha pesquisa o
le teatro, seja quem for, aquele que entrar em que chamei de índole psicopática. A psicopatia
contato com Dra. Nise da Silveira experimenta- foi um tema com o qual Dra. Nise se ocupou no
rá algo transcendental. Dra. Nise personifica o início de sua carreira. Em 1933, foi aprovada em
arquétipo do Psicopompo, o pontífice, aquele concurso público para sua primeira experiên-
que faz a ligação entre mundos e instâncias cia em uma instituição psiquiátrica, o Hospital
distintas, porém profundamente ligadas uma Nacional de Alienados (Praia Vermelha), tendo
à outra por um umbigo, um eixo, uma ponte a trabalhado no serviço de assistência a psicopa-
se preservar.
7
A primeira vez em que vi algo semelhante acontecer foi com o
filme Carmen, de Carlos Saura, 1983.
6
https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,berta-zemel-vol-
ta-aos-palcos-com-anjo-duro,20000810p4633 8
Direção de Roberto Berliner, 2016.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 17


Junguiana
v.39-2, p.13-20

tas e profilaxia mental9. Não encontrei detalhes Complexo paterno positivo, fortalecedor e
sobre esse trabalho. Em minha tese, alertarei os organizador? Função evolutiva de Anima, desa-
profissionais do Direito para a importância de fiadora e revolucionária, porque desestabiliza-
conhecerem as contribuições da psicologia e da dora? Que venham ambos!
psiquiatria para o manejo de situações jurisdi- Ave, Nise! ■
cionais envolvendo portadores de índole psico-
pática com o devido rigor, a serviço da justiça. Recebido em: 22/08/2021 Revisão em: 02/11/21
Em razão do conjunto de coisas que aqui expus,
tenho Dra. Nise ao meu lado no desenvolvimento
da tese. Gratificado e grato estarei, se puder im-
primir a minha empreitada acadêmica ao menos
um quinhão do espírito dessa grande mulher.
Para tanto, ser-me-ão necessárias, dentre outras
habilidades, grande dose de irreverência, inde-
pendência, disposição para romper com padrões
estabelecidos e inabalável fidelidade aos princí-
pios que prezo.

9
Magaldi (2018).

18 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.13-20

Referências
AGÊNCIA ESTADO. Berta Zemel volta aos palcos com “Anjo PENNA, E. M. D. Pesquisa em psicologia analítica: reflexões
Duro”. Estadão Cultura, 10 ago. 2000. Disponível em: sobre o inconsciente do pesquisador. Boletim de Psicolo-
<https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,berta-ze- gia, São Paulo, v. 57, n. 127, p. 127-38, dez. 2007.
mel-volta-aos-palcos-com-anjo-duro,20000810p4633>.
Acesso em: 21 ago. 2021. REDAÇÃO. Berta Zemel reestréia “Anjo Duro”, peça inspi-
rada na vida de Nise da Silveira. Folha Ilustrada, 11 ago
KANANGA DO JAPÃO. In: WIKIMEDIA FOUNDATION. 2000. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/
Wikipédia: a enciclopédia livre. San Francisco, CA, 2021. ilustrad/fq1108200013.htm>. Acesso em: 21 ago. 2021.
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Kananga_
do_Jap%C3%A3o>. Acesso em: 21 ago. 2021. SILVEIRA, N. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro, RJ: Paz e
Terra, 1988.
MAGALDI, F. S. A unidade das coisas: Nise da Silveira e
a genealogia de uma psiquiatria rebelde no Rio de Janeiro, XAVIER, N. Kananga do Japão (sinopse). Tele Dramatur-
Brasil. 2018. 442 f. Tese (Doutorado em Antropologia gia, 2015. Disponível em: <http://teledramaturgia.com.br/
Social) — Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de kananga-do-japao/>. Acesso em: 21 ago. 2021.
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2018. Disponível em: <http://
objdig.ufrj.br/72/teses/862928.pdf>. Acesso em: 21 ago.
2021.

MOTTA, A. Psicologia analítica no Brasil: contribuições


para a sua história. 2005. 440 f. Dissertação (Mestrado em
Psicologia Analítica) — Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, SP, 2005.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 19


20 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021
Junguiana
v.39-2, p.21-28

Da mandala terapêutica à mandala


dramatúrgica: epístola à Dra. Nise

Luciana Lyra*

Recife, 13 de agosto de 2021.


Querida Dra. Nise,
Tem alguns meses que recebi em minha casa
um livro seu intitulado Gatos – A emoção de li-
dar (SILVEIRA, 2016). Encomendei seus escritos,
porque recém adotei uma gata tricolor a quem
chamei Clarice, numa doce homenagem à Lis-
pector, uma mulher como você, cheia de impulso
de vida. Tem sido uma aprendizagem a existên-
cia de uma gata em minha jornada, sorver seus
passos leves pela casa, o cheiro de seus pelos
incessantemente lavados por sua língua, os mia-
dos, por vezes ininterruptos, o carinho de corpo
inteiro, enfim... O afeto é realmente revolucioná-
rio. Você nos ensinou.

* Atriz, encenadora, diretora, dramaturga e escritora. Coorde-


nadora e Docente do Programa de Pós-graduação em Artes
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), docente
efetiva do Departamento de Ensino da Arte e Cultura Popu-
lar (DEACP) do Instituto de Arte (IART), na mesma universi-
dade. PhD. em Artes Cênicas (UFRN) e Antropologia (USP).
Doutora e Mestra em Artes da Cena (PPGAC/Unicamp).
Pesquisadora-líder do grupo MOTIM – Mito, rito e cartogra-
fias feministas nas artes (CNPq).
E-mail: lucianalyra@gmail.com

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 21


Junguiana
v.39-2, p.21-28

Foi com o olhar mergulhado no conceito spi- outras pesquisadoras e outros pesquisadores,
noziano1 da afecção que a senhora percebeu e ali, no seu campo de ação, Dra. Nise, tomei
as pessoas em sofrimento psíquico, foi com contato com sua forma humanista e criativa de
sensibilidade que buscou facilitar os caminhos estimular novas oportunidades de cura frente
dessas pessoas em busca do self2, tendo a arte aos diagnósticos cerceadores da psiquiatria de
como singular mediadora a refazer pontes antes sua época. Ao adentrar o MII, voltei no tempo, e
desfeitas, numa investigação arqueológica da avistei-a rebelando-se contra os tratamentos e
psique por meio da compreensão dos elemen- medicamentos adotados então pelo Centro Psi-
tos, das imagens, das cores, dos traços, dos es- quiátrico Nacional no Engenho de Dentro, onde
paços, das reações corporais durante pinturas trabalhava desde 1944.
das chamadas mandalas, que adquiriram cará- Recobrei, in loco, seu ato de transformar
ter eminentemente terapêutico. No Museu de uma pequena enfermaria numa sala de estar
Imagens do Inconsciente (MII) por você fundado, com oficinas de trabalhos manuais, chegando a
vi outro dia tatuado na parede: “A configuração várias salas, como costura, modelagem, pintu-
de mandala harmoniosa, dentro de um molde ri- ra, marcenaria, inclusive agregando a presença
goroso, denotará intensa mobilização de forças de animais para a dinamização das emoções
autocurativas para compensar a desordem inter- ao longo dos variados tratamentos. Cheguei a
na” (SILVEIRA, 1981). te ouvir em ecos, doutora: “A inovação consiste
Foi por intermédio de Adriana Rolin3, então exatamente em abrir para eles [os pacientes] o
orientanda minha de mestrado (RIBEIRO, 2019)4 caminho da expressão, da criatividade, da emo-
em Artes na Universidade do Estado do Rio de ção de lidar com os diferentes materiais de tra-
Janeiro (UERJ), que cheguei ao MII, em 2017, balho” (SILVEIRA, 1981).
seis anos após a minha defesa de doutorado, Não me espanta que, com todas essas
onde abordo a mandala como procedimento transgressões e rupturas na criação de novos
para criação dramatúrgica em teatro, dança e territórios de atuação na psiquiatria, a senho-
performance. Foi um regozijo conhecer mais ra tenha sido presa durante a ditadura Vargas.
de perto as suas práticas ao me aproximar do Na atual conjuntura pandêmica do ano de
MII e depois do Grupo de Estudos C.G. Jung, 2021, sofrendo ameaças fascistas de um novo
coordenados por Gladys Schincariol5. Ministrei projeto ditatorial no Brasil, tememos grandes
palestra neste grupo, conheci muitos clientes6, retrocessos em todos os setores da vida so-
cial, inclusive na saúde mental, e por isso,
1
A chave ética da filosofia de Spinoza é a noção de afeto.
penso ser importante que possamos traçar ca-
Destacamos o caráter relacional que afecção e afeto ganham
nesta concepção, tornando-se o veículo privilegiado para o minhos que se reafirmem na caminhada, criar
desenvolvimento e a constituição do si.
pontes entre tempos e espaços que se rein-
2
O Self ou si mesmo na psicologia junguiana é um dos arqué-
tipos junguianos, significando a unificação do consciente e do ventam no cume dos depoimentos vivos das
inconsciente em uma pessoa e representando a psique como experiências práticas.
um todo.
Por isso, pus-me de volta ao século XX, à
3
Atriz e escritora. Doutoranda e Mestra em Arte pela Universi-
dade do Estado Rio de Janeiro (PPGArtes/UERJ). Arteterapeuta década de 1950, e recobrei seu fôlego empírico
junguiana. Pesquisadora do grupo MOTIM – Mito, rito e carto- pedindo aos doentes do ateliê que pintassem li-
grafias feministas nas artes (CNPq). Discente na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. vremente, sem modelos ou guias. Das imagens
4
Dissertação de mestrado defendida na UERJ, em 2019, sob o brotavam conflitos exclusivamente de natureza
título: Yriadobá da ira à flor: Influxos Artaudianos via Mitodo-
logia em Arte, sob minha orientação.
pessoal no conteúdo latente desses trabalhos e
5
Gladys Schincariol é psicóloga e trabalha no MII desde 1979.
no meio de imagens de total desagregação, pre-
vistas dentro da produção de pacientes esquizo-
6
Termo utilizado por Nise da Silveira para pessoas em sofrimen-
to psíquico, frequentadoras do MII. frênicos, apareciam símbolos de ordem, como o

22 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.21-28

círculo e o quadrado. Frente ao fenômeno, não Sim. Li sobre sua experiência com a esquizofre-
havia como não se indagar: “Como um símbolo nia e a psicologia de Jung no seu admirável livro
de perfeição, usado até mesmo como instrumen- Imagens do Inconsciente (1981). Quanta potên-
to de meditação pelos orientais, pode ser produ- cia, quanta inspiração!
zido por mentes tão desintegradas?” (SILVEIRA, Contudo preciso ainda te contar mais sobre
1981, p. 54). nosso campo de sincronicidades... Assim como
Foram as mandalas emergidas de criações a arte foi mediadora para seu trabalho com man-
espontâneas de esquizofrênicos em estado de dalas no campo da psiquiatria, também suas
pura desordem psíquica que te impulsionaram, mandalas terapêuticas foram fundamento para
em 1955, a trocar cartas, por dois longos anos, criação de um procedimento que vim a chamar
com o também psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, de mandalas dramatúrgicas ou cartográficas no
que prontamente foi esclarecendo a função des- topos das artes da cena.
sas imagens nas mandalas para o processo de Importante frisar que, diferente da senho-
individuação7 dos pacientes como gatilho de au- ra, em princípio, não trabalho com pessoas
todefesa da caótica psique. em sofrimento psíquico, mas as mandalas dra-
Aportada na teoria junguiana, que alargou matúrgicas têm servido como suporte plástico
o conceito de inconsciente freudiano pessoal para agregar vozes plurais de uma experiên-
para um território coletivo de imagens, uma cia cênica por meio de imagens, fomentando
espécie de esqueleto histórico da psique, ex- a elaboração de dramaturgias, encenações
presso na forma de mitos, sonhos e arte uni- e provocando um sem-número de relatos de
versais, a senhora mobilizou os clientes pela transformações por parte dos/as partícipes
linguagem do imaginário, sem buscar traduzi- das criações.
-la para o código verbal e racional. O encontro A mandala dramatúrgica vem sendo expe-
com aqueles temas e símbolos nas pinturas e rimentada em diferentes processos poéticos e
nos desenhos era um processo de metacomu- pedagógicos em teatro, dança e performance,
nicação que abria os segredos da esquizofre- desde 2009, nas diferentes regiões do território
nacional, e me auxiliando a compreender a cria-
nia, não é, doutora?
ção e a aprendizagem como adventos não linea-
Entendo que a própria pintura e o desenho
res, mas cíclicos, multivocais, multiimagéticos,
seriam sendas de cura ao dar expressão e figura-
eclodidos de experiências múltiplas devoradas e
ção ao mundo interno fragmentado e conflituoso
transvaloradas, nos quais histórias e geografias
de cada cliente. O self, que não se enleia com o
várias misturaram-se indistintamente.
ego consciente, ordenaria o processo de busca
As mandalas dramatúrgicas, como todas as
de unidade de opostos, seguindo o impulso da
mandalas, têm função integrativa, articulando
individuação e, por conseguinte, rompendo com
a experiência interior (pensamento, sentimen-
definições duras e esquemáticas dos prontuá-
to, intuição e sensação) e exterior (a natureza,
rios de psiquiatria.
o espaço e o cosmo) dos/as artistas ou estu-
Impressiona-me que a senhora tenha tido a
dantes-artistas envolvidas/os nos processos.
delicada ideia de proteger este acervo iconográ-
No entanto, diversamente das mandalas te-
fico, criando o MII e insistindo que o esquizo-
rapêuticas, geralmente experienciadas indivi-
frênico deveria formar uma ponte afetiva com o
dualmente, o empreendimento das mandalas
mundo por meio das pinturas e na relação com
dramatúrgicas é coletivo para que, de maneira
os animais, constituindo uma metalinguagem.
proposital, os territórios de cada partícipe dos
processos possam ser afetados mutuamente,
7
Pela ótica junguiana, a individuação é o processo de integra-
ção da personalidade. contaminados como a peste artaudiana, tendo

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 23


Junguiana
v.39-2, p.21-28

as artes da cena como palco do delírio, do deva- tam a/o atuante na relação consigo mesmo/a
neio bachelardiano (LYRA, 2018). e com o campo artetnografado, articulando
Seguindo um princípio cartográfico, a man- instâncias entre eus e contextos de alterida-
dala dramatúrgica desenha paisagens materiais, de, numa contínua retroalimentação, em con-
dá materialidade às experiências corporais, às tínuo atrito, numa operação que chamo de f(r)
improvisações, às narrativas, traça paisagens icção, onde o modelado, o ficcional é, a um só
subjetivas, compõe novos mundos, produzindo tempo, o real.
uma espécie de encruzilhada entre os processos A saber, a primeira mandala dramatúrgica
de laboratório de criação, dramaturgia e encena- foi engendrada em 2009, como parte de minha
ção. Em artigo que produzi para um congresso pesquisa de doutorado na Universidade Esta-
feminista, disse: dual de Campinas (Unicamp), quando aportei,
junto com mais quatro atrizes, na comunida-
A Mandala Dramatúrgica surge a partir de de Tejucupapo, na zona da mata norte de
jogos/ritos de passagem/experiências Pernambuco, onde, em 1646, aconteceu a pri-
em laboratório de ensaio e nas jorna- meira batalha com participação de mulheres
das de encontro com contextos de alte- registrada em solo nacional. Em rede com as
ridade, pesquisas artísticas de campo atuais mulheres de Tejucupapo, que desde
ou artetnográficas, como as intitulo. A 1990 restauram por meio de um espetáculo
construção da Mandala é justamente teatral a peleja de suas antepassadas, reve-
uma das ações da Mitodologia em Arte laram-se textos vários da cultura acerca de
(2011), que se traduz por um complexo deusas míticas e as experiências pessoais das
de procedimentos para criação cênica, atrizes-criadoras, estimulando uma tecedura
utilizando como aportes aspectos da de memórias e significações que fomentaram
Antropologia da Experiência, estudada a mandala e, posteriormente, a dramaturgia
pelo antropólogo Victor Turner (1988) e do espetáculo intitulado Guerreiras, sob mi-
da Antropologia do Imaginário, do fran- nha dramaturgia e direção.
cês Gilbert Durand (1990). A Mitodologia A elaboração da Mandala Dramatúrgica é
em Arte procura dar vazão a um Teatro um processo imagético, uma constelação de
das profundidades, imarginal, no ‘fundo’ imagens, um caleidoscópio construído em
e no ‘entre’, contrapondo-se a um teatro ato colaborativo e, como na composição das
de superfície e atingindo camadas mais mandalas terapêuticas, tem também uma fun-
profundas da psique pessoal e coletiva, ção curativa para o processo, na medida em
na percepção inequívoca das margens que regenera imagens produzidas durante a
sociais. A partir do trânsito entre o eu e criação no sentido da dramaturgia e da ence-
a alteridade, a Mitodologia em Arte está nação, assim como podem fazer as vezes de
intrinsecamente ligada à prática da Ar- materialização dos ritos de passagem para os
tetnografia (LYRA, 2018, p. 3). partícipes dos processos.
Na práxis mitodológica, Dra. Nise, solicito
Pois é, Dra. Nise, a mandala dramatúrgica que os artistas tragam círculos já cortados, em
faz parte de um caminho de criação poética e cartolina, para os laboratórios de criação. Tam-
pedagógica, que intitulei em tese de Mitodo- bém solicito materiais como lápis de cor, giz de
logia em Arte (2011), e que pode ser compre- cera, tesoura, cola, miçangas, fitilho, retalhos
endido como um complexo de ritos ou jogos de tecidos, botões, barbante, “bugigangas” ge-
existenciais, uma proposição que busca aces- rais e, especialmente revistas, jornais para que
sar imagens e experiências pessoais que agi- possamos recortar imagens na confecção das

24 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.21-28

mandalas. Em geral, a lida com esses materiais mente para identificar e nomear o mito
surge após várias experiências com outros jogos subjacente, mas também para revelar as
existenciais por meio de movimentos corporais, TENSÕES que no seio da obra colocam
sonoridades, com objetos, vestes e estruturas em relação estruturas de níveis diversos
cenográficas da mitologia pesquisada para cada (PITTA, 2005, p. 99).
processo criativo e onde também eclodem ima-
gens de campo. A mandala dramatúrgica proporciona o olhar
Nessa arena de experimentação, é desvela- sobre o processo de maneira tramada, destampa
do o que nomeio de mito-guia de cada processo uma escrita-resgate de ações, uma escrita-me-
dramatúrgico e de encenação. O desvelamento morial, um texto com margens. E foram tantos
do mito-guia é operação basilar na construção textos-cenas que criamos a partir das mandalas
da dramaturgia e é este que ocupa o centro da dramatúrgicas, Dra. Nise: Além de Guerreiras
Mandala Dramatúrgica. A ideia de mito-guia es- (2009), Homens e Caranguejos (2012), Salema
pelha outros termos utilizados nos métodos do (2012), Cara da Mãe, Obscena e Fogo de Monturo
imaginário, como nos fala Gilbert Durand: (2015), Quarança (2016), Therèse (2017), Louise
ou A Desejada Virtude da Resistência (2018), to-
Uma das ações mais importantes da dos forjados com um corpo de artistas, predomi-
mitocrítica é desvelar o mito diretor e nantemente, de mulheres no desejo de tecer e
para isso é fundamental a repetição e discutir suas próprias inquietações. Compartilho
redundância deste discurso mítico, pois com a senhora como construímos as mandalas
nenhum elemento é imaginariamente dramatúrgicas (Figura 1).
pertinente se ele não for repetido di- Também quando ingressei na UERJ como pro-
retamente ou indiretamente por meio fessora, em 2015, e criei o grupo de pesquisa
de outros elementos de valor simbóli- MOTIM – Mito, Rito e Cartografias Feministas nas
co equivalente. Esses elementos que artes (CNPq), avancei nos aprofundamentos da
constituem uma espécie de sincronia do Mitodologia em Arte e de seus procedimentos,
relato, devem ser interpretados, não so- como a mandala dramatúrgica, e, nesse momen-

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Figura 1. Artesania da mandala dramatúrgica por atrizes-pesquisadoras do processo criativo “Quarança” (2016).

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 25


Junguiana
v.39-2, p.21-28

to, também pude mergulhar na sua literatura fios mais íntimos com suas práticas, Dra. Nise.
estreitando laços entre a minha e a sua prática, Conhecer pessoalmente o MII, trouxe-me para
percebendo que, assim como as mandalas tera- mais perto da senhora, e sinto até que hoje teço
pêuticas trabalham na gira da cura pelas ima- uma relação mais íntima com seus escritos, re-
gens plásticas, a mandala dramatúrgica pode conhecendo na senhora minhas mesmas raízes,
operar para a cura fomentada pela plataforma um mesmo desejo nordestino de abrir picadas
da cena. na caatinga.
Como lembrei no início desta carta, foi por Distingo o calibre feminista de seu impulso
meio de Adriana Rolin, orientanda de mes- de renovação de modelos obsoletos nos trata-
trado, que montei a performance Yriadobá, e mentos no campo da saúde mental e, à senhora,
apresentei no MII, firmando minha relação com filio-me, perseguindo-a em sororidade e perfi-
museu. Atualmente, Rolin coordena uma ação lhando o ato de criação da Mitodologia em Arte
em teatro por lá, especialmente com a funda- e seus procedimentos, na contraposição do dis-
ção do grupo Os Inumeráveis8, que toma parte curso de autoria masculina e seus mandos verti-
de seu doutoramento9 sob minha orientação e cais de criação. Veja como finalizamos a manda-
remonta reflexões e práticas artaudianas em la de Quarança (Figura 2).
inter-relação com mitos iorubanos, o que me Sinto que, aos poucos, amotino-me à senho-
infla de satisfação. ra e sigo estreitando laços com MII por meio de
A ação de Adriana me relembra que foram minhas orientandas e, concomitantemente, de
o teatro e a pesquisa que me levaram a trançar minhas pesquisas. Seguimos juntas e em resso-
nância, porque o passado se refaz em atos pre-
8
“O ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos” sentes e vivos. Com a delicadeza felina, prescru-
(Antonin Artaud. In: Cahiers d’ Art, 1951). Nise (1986) acredi-
ta que, através da sua própria experiência, Artaud conseguiu, to firme os seus passos. ■
melhor do que ninguém, exprimir, por meio da palavra, as Com admiração intensa,
suas vivências internas.
Luciana Lyra.
9
Em tempo, a pesquisa de doutoramento de Adriana Rolin, no
PPGArtes-UERJ, sob minha orientação, tem sido intitulada de:
Influxos Artaudianos e Mitologia Yorubá: Processos Decolo-
niais de Criação para as Artes da Cena. Recebido em: 16/08/2021 Revisão em: 01/11/2021

Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Figura 2. Mandala dramatúrgica do processo criativo “Quarança” (2016).

26 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.21-28

Referências
DURAND, G. Mito, símbolo e mitodologia. Lisboa: RIBEIRO, A. R. L. O. Yriadobá da ira à flor: influxos
Presença,1990. artaudianos via mitodologia em arte. 2019. Dissertação
(Mestrado em Artes) — Universidade do Estado do Rio de
JUNG, C. G. O si mesmo oculto. São Paulo, SP: Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2019.
Vozes, 2020.
SILVEIRA, N. Gatos, a emoção de lidar. Rio de Janeiro,
LYRA, L. F. R. P. Engrendramentos da cena feminista fiados RJ: Léo Christiano, 2016.
pela trama da mandala dramatúrgica. In: SEMINÁRIO
INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO: TRANSFORMAÇÕES, _______. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ:
CONEXÕES, DESLOCAMENTOS, 11., 2017, Florianópolis. Alhambra, 1981.
Anais... Florianópolis, SC: Universidade Federal de Santa
Catarina, 2018.

PITTA, D. P. R. Iniciação à teoria do imaginário de


Gilbert Durand. Rio de Janeiro, RJ: Atlântica, 2005.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 27


28 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021
Junguiana
v.39-2, p.29-42

A importante contribuição da obra de Nise da


Silveira para a Psicologia Analítica de Jung

Vera Macedo*

Em outubro do ano de 1932, aos 27 anos, doentes no seu espaço cotidiano e os aprofun-
Nise da Silveira foi residir no Hospício de Alie- damentos nos estudos de psiquiatria deram a
nados, na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, Nise, em pouco tempo, um olhar diferenciado
para dar início ao seu curso de médica residen- sobre algo que não correspondia com algumas
te. Nessa mesma época, iniciou seu trabalho das premissas psiquiátricas que lia nos livros,
como médica auxiliar, no Pavilhão da Clínica de conforme ela mesmo sublinhou: “Na época eu
Neurologia, onde pretendia especializar-se. Po- me atirei ferozmente a estudar para concurso e
rém, o professor titular em neurologia, Antônio vi coisas inteiramente diferentes. Via que o louco
Austregésilo, incentivou-a e orientou-a a seguir extrapolava muito o livro”1.
o campo da psiquiatria. Nise decidiu acatar as
orientações de seu professor, mudando seus
planos de especializar-se em neurologia e pas-
sou a estudar com empenho a literatura dos
compêndios de psiquiatria.
Foi nesse mesmo espaço, no Hospício Nacio-
nal de Alienados, que ela deu início à sua resi-
dência em psiquiatria e onde também passou
a conviver com os doentes psiquiátricos que lá
estavam internados, para tratamento de seus
distúrbios psíquicos. A observação empírica dos

* Diretora Técnica da Casa das Palmeiras - Nise da Silveira. Analis-


ta didata do (IJRJ-AJB e IAAP - Zurich) - Psicóloga Clínica (UFRJ).
E-mail: veramacedo@terra.com.br)

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 29


Junguiana
v.39-2, p.29-42

Ao participar das primeiras aulas de psi- retor do hospital, seu colega de medicina, junto
quiatria, Nise logo se indignou com a forma com um grupo de policiais. Desnorteada com tal
antiética com a qual alguns dos professores de cenário de horror, Nise comentou, posteriormen-
psiquiatria, em suas aulas, usavam e exibiam te que: “Não imaginava encontrar ao lado do di-
os doentes para serem observados em suas en- retor a polícia de Getúlio Vargas que veio para
fermidades e durante as manifestações de seus prender-me e ouvir perplexa: – É esta!”2.
sintomas. Essa atitude de expor e manipular o Nise permaneceu confinada, no período de
doente, para uma plateia de estudantes, foi con- 26 de março de 1936 a 21 de junho de 1937, por
siderada por Nise como muito humilhante, pois ser considerada “perigosa comunista”. Encarce-
deixava-se de lado o sofrimento do ser humano rada na famosa sala 4, testemunhou e cuidou,
na sua totalidade, em prol de uma apresentação como médica, de várias colegas de cela que fo-
afrontosa e desumana. Dessa convivência com ram terrivelmente torturadas de diversas formas,
os ditos alienados, emergiu uma grande afetivi- por exemplo, com choques elétricos, queimadu-
dade entre Nise e esses seres sofridos e margi- ras de cigarros nas partes íntimas do corpo, e até
nalizados. Com determinação, ela decidiu não mesmo mortas.
mais participar dessas aulas, pois percebeu que No entanto, paradoxalmente, a casa de de-
aprendia muito mais com a convivência diária tenção foi também para Nise, um espaço que
junto aos internados do que com certas aulas ou lhe possibilitou profundas amizades, como as
mesmo com os volumosos compêndios psiquiá- de Graciliano Ramos, Maria Werneck, Eneida,
tricos, como ela mesma assinalou: “Sentia que Beatriz Bandeira e Elisa Berger, entre outros
o doente não podia ser aquilo que estava sendo amigos que lhe permaneceram fiéis até o final
descrito ou mesmo mostrado”1. de sua vida.
No ano de 1933, Nise foi aprovada no concur- Libertada em junho de 1937 da condição de
so público da Assistência a Psicopatas e Profila- presa política por não ter sido encontrada ne-
xia Mental com total apoio do seu professor Aus- nhuma prova de que fosse ativista da Intentona
tregésilo que, naquela época, chefiava o setor Comunista, Nise recordava:
de neurologia e que muito a motivou, tomando
a iniciativa de pagar a inscrição para que Nise Não descobriram nenhuma relação minha
participasse do concurso de psiquiatria. Logo com o movimento de 35, então não me
em seguida, ao ser aprovada, ela tomou posse deram importância. Mas davam muita im-
no serviço público como médica psiquiatra. portância à coisa ideológica, tanto que eu
No ano de 1936, Nise foi presa pelo Estado saí, mas com a cláusula: Pertence ao ci-
Novo, na ditadura do governo do presidente Ge- clo de ideias que a incompatibiliza com o
túlio Vargas, acusada de ser militante do Partido serviço público. Eu passei oito anos livre,
Comunista, o que era uma inverdade. Recebeu mas desempregada, comendo o pão que
ordem de prisão no mesmo local em que fazia o diabo amassou3.
sua residência. Tempos depois, veio a saber que
havia sido denunciada por uma enfermeira do Assim, Nise permaneceu num isolamento
hospital em que trabalhava, que comunicou ao durante oito anos, desde seu afastamento do
diretor Valdomiro Pires que ela possuía, entre serviço público, tendo sofrido a rejeição e in-
seus livros de psiquiatria, outros livros de auto- diferença de pessoas conhecidas que fingiam
res “comunistas”. Imediatamente, foi chamada não a conhecer. Com o surgimento da infor-
à sala da diretoria, onde se deparou com o di-
2
Mello, 2014, p. 13.
1
Revista Rádice, n. 3, p. 8 3
Mello, 2014, p. 14.

30 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.29-42

mação de que estaria novamente, ameaçada “Não!”, rejeitando com discernimento e perseve-
de uma nova prisão, Nise passou a viver em rança tais métodos agressivos, Nise acentuou:
clandestinidade, refugiando-se em diversas “Após minha reintegração ao serviço público, me
cidades do Brasil. engajei em uma nova luta: contra a psiquiatria
Anistiada em 17 de abril de 1944, foi reinte- convencional. Esta é a briga mais importante de
grada ao serviço público, sendo designada para minha vida!”6.
trabalhar no Centro Psiquiátrico Pedro II, no En- Sem demora, ela comunicou ao diretor do
genho de Dentro, bairro da periferia do Rio de hospital, Dr. Paulo Elejalde, a sua decisão por
Janeiro. Ao lembrar desses tempos obscuros e não fazer uso dessas técnicas invasivas. Ao ouvi-
sofridos, Nise comentava: -la, o diretor disse-lhe que, diante de tal cenário,
só lhe restava a Seção de Terapêutica Ocupacio-
Saindo da prisão, após sete anos, fui rein- nal, um pequeno espaço do hospital, conside-
tegrada ao serviço público e reassumi o rado pouco “nobre” ou “de segunda categoria”,
posto de psiquiatria... Quando eu voltei onde os médicos se recusavam a trabalhar. Com
ao hospital, nenhum dos meus colegas - determinação, ela aceitou trabalhar nessa se-
aqueles que me conheciam – comemorou ção, mas logo avisou ao diretor do hospital que
ou me parabenizou... Ninguém me disse mudaria todo o serviço que ali estava sendo rea-
nada, mal falaram comigo. Alguns nem lizado. Comentou Nise:
me cumprimentaram. Era como se nada
tivesse acontecido4. Minha ida para a terapêutica ocupacional
foi uma virada pelo avesso. Antes, os do-
Nessa época, o emprego de novos méto- entes do hospital eram usados para servir
dos de tratamentos, considerados como re- aos funcionários e a outros internos, cos-
volucionários e tecnológicos pela psiquiatria turar lençóis, faxinar enfermarias, limpar
convencional, foi bastante valorizado e ampla- vasos sanitários, varrer e encerar chão,
mente aplicado, por exemplo, as intervenções carregar roupas sujas... Ao chegar, mudei
cirurgias cerebrais de lobotomias, os comas tudo: ali onde faziam trabalhos corriquei-
insulínicos (Sakel), as convulsões terapia de ros, os internos passaram a desenvolver
cardiazol (von Meduna) e as séries de eletro- trabalhos criativos...7.
convulsoterapia (eletrochoque- ECT) proposto
por Ugo Cerletti e Bini. Mas, essas novas téc- Em setembro de 1946, Nise, com sua visão
nicas de tratamentos psiquiátricos foram total- vanguardista da psiquiatria e em conjunto com
mente descartadas e recusadas por Nise, por as suas pesquisas arrojadas, consumou a tare-
considerá-las como práticas “violentas e de tor- fa de transformar o setor de Terapêutica Ocu-
turas”. Sublinhou Nise: “O eletrochoque é uma pacional, conforme havia prometido ao diretor
espécie de tortura. Pessoas tem morrido deste do hospital. Fundou a nova Seção de Terapêu-
tratamento. Alguns aguentam, outras não. Após tica Ocupacional e Reabilitação (STOR) do Cen-
meu retorno ao hospital, não aplicá-lo foi minha tro Psiquiátrico do Pedro II, após construir uma
primeira rebeldia”5. sólida base teórica a partir de seus múltiplos
Assim, a “psiquiatra rebelde”, como foi no- estudos nas diversas áreas afins de conheci-
meada, quando lhe foi solicitado que fizesse mentos: filosofia, psicologia, história da arte,
uso desses procedimentos desumanos, disse psiquiatria, literatura, antropologia e, particu-

4
Horta, 2008, p. 87. 6
Horta, 2008, p. 80.
5
Idem, p. 87. 7
Idem, p. 92.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 31


Junguiana
v.39-2, p.29-42

larmente, a partir de suas observações empí- o descrédito dos diretores e colegas em relação
ricas dos doentes internados. Nise lembrou: ao seu trabalho:
“Depois da prisão, quando voltei a trabalhar
no hospital psiquiátrico, teve início uma outra A Seção de Terapêutica Ocupacional ain-
fase de minha vida – uma bela etapa do meu da não logrou funcionar como uma uni-
trabalho. É preciso ter tutano, para se fazerem dade estreitamente articulada às demais
certas coisas”8. unidades que fazem parte do plano geral
Nesse mesmo ano, muito antes do movi- de tratamento dos nossos doentes. Isso
mento antipsiquiatria, Nise deu início a uma decorre do fato de a maioria não consi-
verdadeira reforma psiquiátrica transformando derar as ocupações como agentes tera-
o espaço de confinamento hospitalar num am- pêuticos que necessitam ser dosados e
biente salutar com atmosfera agradável, imple- individualmente receitados, porém como
mentando melhores condições para que os do- alguma coisa acessória e secundária,
entes criassem livremente, sem interferências, uma distração, um divertimento9.
as suas produções. Para Nise, era fundamental
que o ambiente fosse acolhedor, limpo e tera- Intuitivamente, Nise passou a arquivar todo o
pêutico. Transformou também, a forma como material expressivo produzido, espontaneamen-
os doentes eram manipulados pela instituição te pelos enfermos. Logo criou um grande acervo
nas tarefas de limpezas e serviços, passando a com as obras dos doentes diagnosticados com
utilizar essas atividades como legítimo método esquizofrenia. Muito criativa, produziu grandes
de tratamento psiquiátrico na área de Terapia álbuns com as séries de composições dos do-
Ocupacional, que faz uso de diversas atividades entes, que exprimiam suas emoções, angústias,
expressivas não verbais. seus dramas pessoais e míticos que emergiram
Posteriormente, Nise denominou esse méto- das camadas mais arcaicas da psique. Partindo
do de “Emoção de Lidar”, ao criar diversos ateli- do campo empírico, ela observou e compreen-
ês, entre os quais os de pintura e desenho, mo- deu que
delagem, xilogravura, colagem e costura, entre
outros. Ao longo do tempo, cerca de 17 oficinas a principal função das atividades na Te-
foram organizadas. Outras atividades recreati- rapêutica Ocupacional seria criar oportu-
vas de grupo foram também desenvolvidas com nidade para que as imagens do incons-
objetivos de reinserção social, assim como a or- ciente e seus concomitantes motores
ganização dos primeiros cursos de Terapêutica encontrassem formas de expressão.
Ocupacional para capacitação de monitores e de Numa segunda etapa viriam as preocupa-
colaboradores. As diversas oficinas foram atrain- ções com a ressocialização10.
do, cada vez mais, os internados que permane-
ciam abandonados e apáticos nos corredores e Em 22 de dezembro de 1946, Nise organizou
pátios do hospital. Mesmo assim, Nise foi muito a primeira exposição com as imagens do incons-
estigmatizada e lidava com forte resistência da ciente, produzidas pelos internados, nos ateliês
maioria de seus colegas psiquiatras que con- de pintura, desenho e modelagem. Essa exibição
sideravam o método por ela empregado como mobilizou o interesse de diversos críticos de arte
subalterno e não científico – “uma brincadeiri- e gerou debates sobre os conceitos e/ou pre-
nha!”. A esse respeito, em 1948, fez um registro, conceitos enraizados na psiquiatria tradicional
em um relatório interno hospitalar, denunciando
9
Mello, 2014, p. 17.
8
Idem, p. 80. 10
Silveira, 1981, p. 13.

32 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.29-42

e comentários idôneos do grande público e da pintar tão bem um dos principais símbo-
impressa, que lançou questões significativas so- los da unidade psíquica? De onde inter-
bre o valor artístico dessas produções plásticas. nos empobrecidos e incultos tiraram, tal
Entretanto, os seus colegas psiquiatras pros- imagem, se nunca a estudaram? Como
seguiam recusando e não reconhecendo o valor podem estar surgindo figuras sânscritas
significativo-expressivo dessas imagens, man- orientais nos trópicos do ocidente?11.
tendo-se inflexíveis e repetindo os “velhos cha-
vões” de que eram obras que refletiam a “arte Diante de tantos questionamentos, a dama
psicótica ou psicopatológica”, identificando do inconsciente mergulhou nos estudos sobre o
nessas imagens exclusivamente os sintomas de tema, na busca de conhecimentos desse símbo-
uma mente fragmentada. lo religioso oriental. E foi nos livros de psicologia
Em 20 de maio de 1952, criou o Museu de Ima- analítica, do mestre Jung, que ela encontrou os
gens do Inconsciente, após reunir um conjunto fundamentos para seu método de investigação
de obras produzidas nos ateliês. Esse patrimô- como ela mesma assinalou:
nio público, conta hoje com aproximadamente
350 mil trabalhos. Em 23 de dezembro de 1956, Pelos anos 40, pela primeira vez tive con-
Nise realizou seu grande sonho ao fundar o es- tato com os textos de Carl Gustav Jung,
paço Casa das Palmeiras - Nise da Silveira, con- pois lia tudo o que me aparecia pela
siderado como “território livre” e humanizado, frente - não só obras relacionadas à área
com a finalidade de reabilitar os doentes com médica. Então, constatei surpresa que
distúrbios psíquicos e evitar as reinternações re- aquele psiquiatra suíço tinha escrito so-
correntes. Nesse espaço, foi também desenvol- bre mandalas... Foi assim que começou
vido o Núcleo de Pesquisa, objetivando o apro- minha identificação com o mestre 12.
fundamento dos estudos das séries de imagens
do inconsciente, produzidas livremente, pelos Muito impressionada com as imagens circu-
clientes da Casa. Esses estudos e pesquisa são lares que se revelaram, ela decidiu mostrá-las,
fundamentados na psicologia analítica de Carl com certa reserva, para alguns colegas mais pró-
Gustav Jung e seguem a metodologia do Archiv ximos, que trabalhavam com ela, mas, lamenta-
for Research in Archetypal Symbolism (ARAS), o velmente, eles também, a subestimaram como
mesmo sistema de catalogação de imagens ado- ela mesma assinalou:
tado pelo Instituto C. G. Jung de Zurique.
Certo dia, a competente psiquiatra, tendo Então decidi mostrar os mandalas para
como base as suas observações empíricas e amigos e colaboradores meus, comen-
seus estudos das séries das imagens, produzi- tando minhas conclusões e perguntando
das nos ateliês, constatou, de forma surpreen- o que achavam. As pessoas – mesmo as
dente, sequências de figuras circulares que pa- mais próximas, que estudavam comigo –
reciam ser mandalas, que emergiram, de forma não enxergavam mandalas nenhuma nos
natural, nas produções dos doentes. Inicialmen- desenhos. Pelo contrário, reagiam com
te, ela permaneceu silenciosa, analisando esse ceticismo, dizendo: O que é isso Nise?
símbolo hinduísta da integração e da harmonia e Mandalas no Engenho de Dentro?... Estou
chegou até mesmo a duvidar, “por preconceito” vendo só desenhos, rabiscos, garatujas.
da sua descoberta insólita. Considerou Nise: Como é que doentes mentais pobres, num

Como isso é possível? Como seres cindi- 11


Horta, 2008, p. 163.
dos psicologicamente podem desenhar, 12
Horta, 2008, p. 163.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 33


Junguiana
v.39-2, p.29-42

hospício da periferia do Rio de Janeiro, Eu mal poderia expressar, Mestre, o quan-


vão reproduzir figuras sânscritas?13. to o estudo de seus livros tem trazido luz
ao meu trabalho como psiquiatra, além de
Desapontada e frustrada com o descrédito e muito me ajudar pessoalmente.
com os comentários negativos de seus críticos, Creia-me sua mais humilde discípula.
a “arqueóloga do inconsciente”, não esmore- Nise da Silveira15.
ceu! Arquitetou secretamente, seu plano de
ação e pensou: Nise, num estado de grande ansiedade, com
a expectativa da resposta de sua carta, abria dia-
Não há de ser nada. Não me dou por ven- riamente a caixa de correspondências, sonhan-
cida! Vou enviar fotografias com as ima- do encontrar a carta resposta do mestre Jung.
gens dos mandalas do Engenho de Dentro Ao mesmo tempo refletia: “Será que Jung vai se
para Carl Gustav Jung. Arranjo o endereço dar o trabalho de ler? Será que terei resposta?”.
e mando pelo correio. Então, sem que nin- A resposta de Jung não demorou. Passado um
guém saiba, vou aguardar a resposta – se mês, em de 15 de dezembro de 1957, Nise rece-
houver resposta... E fiz exatamente isso14. beu a resposta tão aguardada, escrita em nome
de Jung por sua colaboradora e secretária Aniela
Assim, em 12 de novembro de 1954, Nise Jaffé. Nise relembrava com entusiasmo o mo-
concretizou um dos “atos mais ousados” de sua mento em que recebeu a correspondência:
vida, como foi considerado por ela, ao enviar
uma carta, escrita em francês, ao caríssimo mes- Quando vi o envelope com selo europeu,
tre Jung que dizia: não pude acreditar... sim era verdade. Eu
estava com uma carta enviada de Zurique
Professor C. G. Jung nas mãos. Remetente: Aniela Jaffé. Respi-
Mestre, rei fundo e abri. Já nas primeiras linhas, as
No centro psiquiátrico do Rio de janei- palavras me causaram grande euforia. No
ro existe, ao lado de outros setores de papel, li quase incrédula:16
terapia ocupacional, um ateliê onde os Senhor
doentes desenham e pintam com mais O Professor Jung pede-me para agradecer-
completa liberdade. Nenhuma sugestão -lhe pelo envio das interessantes fotogra-
lhes é dada, nenhum modelo é propos- fias de mandalas desenhadas por esqui-
to. E eis que surgem imagens primordiais zofrênicos.
em suas pinturas, apresentando uma de- O Professor Jung faz diversas perguntas,
monstração empírica e convincente da que reproduzo a seguir: o que significam
psicologia analítica. esses desenhos para os doentes, do pon-
Como minhas mais respeitosas homena- to de vista de seus sentimentos? O que
gens, eu vos envio algumas fotografias de eles quiseram exprimir por meio dessas
pinturas que me parecem mandalas (ou mandalas? Será que esses desenhos tive-
formas aproximadas). Elas foram pinta- ram alguma influência sobre eles?
das espontaneamente pelos esquizofrê- Ele ainda observou que os desenhos têm
nicos. Está descartada qualquer possibi- uma regularidade notável, rara na produ-
lidade de influência cultural. ção dos esquizofrênicos, o que demonstra

13
Idem, p.164 15
Mello, 2015,p.145
14
Idem, p.165 16
Mello, 2015,p.145

34 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.29-42

forte tendência do inconsciente para for- Tratou dos doentes com respeito, dignidade e
mar uma compensação à situação de caos afetividade, observando empiricamente todo o
do consciente. Ele também notou que o material das produções psíquicas por eles cria-
número 4 (ou 8 ou 32 etc.) prevalece. dos. Partindo de suas observações, encontrou
Eu por minha parte, acho que as cores pistas de como os doentes poderiam ser trata-
dão ainda mais força expressiva aos de- dos, ouvidos nos conteúdos de seus delírios, de
senhos. Eu agradeceria muito se nós pu- suas alucinações, de seus devaneios e fantasias.
déssemos guardar as fotos, caso não se- Percebeu-os não só do pondo de vista da comu-
jam necessárias. Talvez, o Senhor possa nicação verbal, mas também, corporalmente, em
responder às perguntas do Prof. Jung, o seus gestos típicos, nos seus movimentos cor-
que lhe será de grande interesse. porais simbólicos e, ao verificar esse conjunto
Queira receber a expressão de nossa alta de fenômenos, descobriu nas séries de imagens
consideração. produzidas pelos doentes evidências de confir-
Ass: A. Jaffé. mação das teorias que leu nos livros de Jung.
P.S: Para a compreensão psicológica, se- Nise continuou mantendo uma correspon-
ria também interessante saber alguns da- dência com Jung, enviando novas fotos de ima-
dos biográficos dos pintores17. gens de pinturas e esculturas criadas pelos do-
entes além de outras informações. Em sintonia
Nise da Silveira divertia-se muito ao comen- com a psicologia junguiana, ela foi verificando,
tar que Jung, inicialmente, havia a tratado como progressivamente, a imensa riqueza de novos
“Senhor” e extremamente emocionada, a dama temas arquetípicos que emergiam do incons-
das imagens, complementava: “Pronto! Estava ciente coletivo, como o fallus do sol, a anima-
confirmado: as imagens pintadas em Engenho -animus, a grande mãe, o arquétipo do pai e
de Dentro eram realmente mandalas... Eu me via muitas outras personificações míticas e dos
diante de uma abertura nova para a compreen- contos de fada relacionadas com as premissas
são da esquizofrenia”18. da psicologia analítica.
Um novo cenário abriu-se para Nise a partir Em 18 de janeiro de 1955, Jung entusiasma-
da concordância de Jung, ao confirmar que as do com o amplo material fotográfico dos doen-
pinturas dos esquizofrênicos brasileiros eram tes brasileiros, que Nise lhe enviava, solicitou
realmente mandalas! Nise sentiu-se muito con- autorização para doar todas as imagens, fontes
fiante e reconhecida com a corroboração do para novas pesquisas, ao acervo do Instituto C.
mais importante psiquiatra suíço: Carl G. Jung. G. Jung de Zurique, onde permanecem até os
Em estado de grande entusiasmo, ela mostrava dias atuais. Em 8 de agosto de 1956, Nise, foi
a carta aos seus familiares, amigos e aos profis- surpreendida ao receber o convite de Jung para
sionais das áreas da psiquiatria e psicologia e participar dos cursos do Instituto C. G. Jung de
aos colaboradores. Zurique e do II Congresso Internacional de Psi-
Logo a notícia difundiu-se pelo hospital e pe- quiatria que se realizaria no ano de 1957, em
los círculos médicos e intelectuais. Agora, mais Zurique. Assim, em 3 de outubro de 1956, Jung
ainda motivada, a psiquiatra rebelde, diante de enviou uma carta de apresentação de Nise, ao
novo trajeto para a compreensão do distúrbio es- Instituto junguiano de Zurique, assinada por ele,
quizofrênico, continuou com seu trabalho para que declarava:
consolidar uma psiquiatria mais humanizada.
Senhores!
17
Mello, 2008, p.145 O signatário desta convida a doutora Nise
18
Horta, 2008, p.167 da Silveira a fazer parte, no semestre do

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 35


Junguiana
v.39-2, p.29-42

verão de 1957, do Instituto C. G. Jung de blioteca... me diz que as fotografias que


Zurique. Os cursos, os seminários e o lhe mandei do Brasil lhe interessaram
contato com meus colaboradores serão muito... sento-me defronte dele... não
de grande importância para a preparação contenho as lágrimas. Choro dizendo:
da exposição de arte psicopatológica, “Que alegria!” Ele ri brandamente e diz:
que deverá ser organizada por ocasião do “Que alegria! Mas que fantasias você fez
Congresso Internacional de Psiquiatria, de mim?” – Não é uma pequena emoção
que se realizará em Zurique, em 1957.
estar aqui, diante do senhor. Pergunta-
Eu ficaria contente se o contato entre os
-me como encontrei seus livros. Respon-
psiquiatras do Brasil e da Suíça se apro-
do-lhe que seus livros são facilmente en-
fundasse. Certamente, esse encontro será
contrados nas livrarias do Rio e que, entre
importante para o futuro tanto da psicolo-
os psiquiatras brasileiros, alguns estão
gia quanto da psiquiatria.
interessados pela psicologia junguiana.
Ass: C.G.Jung 19.
Ele ficou surpreendido. Digo-lhe que me
Nise foi aprovada no Conselho Nacional aproximei de sua psicologia porque en-
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico contrei nela esclarecimento para proble-
(CNPq), recebendo uma bolsa de estudos com mas pessoais e, de outra parte, porque
validade de um ano. Viajou em 18 de abril de via na produção plástica dos meus do-
1957, para Zurique, na busca do aprofundamen- entes a confirmação daquilo que lia em
to de seus conhecimentos nos cursos de psicolo- seus livros...20.
gia analítica, além do reconhecimento científico Continuando a conversa, Nise comentou
de seu trabalho. Participou dos diversos cursos que se sentia dividida em opostos, e Jung
do Instituto de Zurique, mas não fez formação, considerou que, quando as mulheres têm
“Não gosto de títulos!”, afirmava ela. Por indica- a tarefa de dedicar-se mais aos estudos,
ção de Jung, fez análise pessoal com Marie Loui- mobilizam forças intensas de seu animus
se von Franz, com quem, até o final de sua vida, que está em oposição à natureza femini-
manteve uma correspondência cordial. Durante na. E assegurou-lhe ainda que podia ve-
sua permanência em Zurique, no dia 14 de junho
rificar o quanto “meu animus é violento
de 1957, foi recebida, por Jung, em sua bela re-
- como um galo de briga”. Muito sensi-
sidência em Küsnacht, onde conversam, afetuo-
bilizada, narrou um sonho que teve dias
samente, a respeito de suas ideias e trabalhos.
antes de sua vista. Sonhou que via Jung
Registrou este encontro significativo logo após
próximo a uma pequena mesa coberta
voltar para o Brasil:
por uma toalha cheia de estrelas que for-
Chego às 11:15h em ponto. Leio a inscri- mavam uma espécie de uma “constela-
ção no alto da porta da casa: “Invoca- ção”. A interpretação realizada por Jung,
do ou não, Deus está presente”, e entro apontou a relação estreita das estrelas
cheia de emoção. A empregada conduz- com o psiquismo, a astrologia, o horós-
-me a uma pequena sala de espera, onde copo... e afirmou que: “Cada indivíduo é
passo momentos de grande ansiedade... como uma estrela, como uma mônada...
A porta se abre eis-me na presença do como dizia Leibnitz”21.
professor Jung. Ele me conduz a sua bi-
20
Mello, 2014, p.167.
19
Mello, 2008, p.153. 21
Idem, p. 169.

36 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.29-42

Além disso, Jung sublinhou que os “acon-


tecimentos entre essas mônadas operam por
Considerações quase finais
A vida de Nise da Silviera é também a his-
sincronicidade”22. Após discorrerem sobre seus
tória de um “inconsciente que se realizou”,
trabalhos e seus estudos, ele orientou-a a que
como bem assinalou, o mestre Jung, em suas
estudasse a literatura da mitologia. Finalmente,
memórias. Nise, no seu processo de individu-
Nise sentindo-se muito acolhida, pediu a Jung
ação, “tornou-se aquilo que se é” mediante a
que autografasse o exemplar do livro “Resposta
sua postura intuitiva ética e sábia. Lutou com
a Jó”, que muito a mobilizou e, como um verda-
as descrenças dos colegas psiquiatras e contra
deiro oráculo respondeu-lhe algumas perguntas
uma psiquiatria tradicional descritiva. Desen-
sobre suas questões pessoais. Ao se despedi-
volveu cientificamente um método humanista
rem, de forma espontânea, Jung prometeu-lhe
e revolucionário de tratamento terapêutico –
que tornaria a vê-la novamente, antes do seu
“Emoção de Lidar”, para reabilitar os sofridos
retorno ao Brasil.
doentes mentais. No seu trabalho de vanguarda
No dia 2 de setembro de 1957, aconteceu o
no campo da psiquiatria, denunciou os procedi-
evento que foi o ponto alto da viagem de Nise.
mentos considerados por ela como agressivos e
Nesse dia, realizou-se no edifício da Escola Poli-
frios e afirmou que: “a meta de todo tratamento
técnica Federal de Zurique (ETH), o II Congresso
Internacional de Psiquiatria de Zurique, para o psiquiátrico não pode mais continuar sendo a
qual a dama das imagens organizou, em cinco remoção de sintomas, porém a recuperação do
salas, a exposição “A Esquizofrenia em Ima- indivíduo para a sociedade” 23.
gens”, com várias obras do acervo do Museu Ao defender uma nova atitude ética na rela-
de Imagens do Inconsciente. Na mostra havia ção entre médico e doente, sofreu discrimina-
também a exibição de obras de outros países, ções e incompreensões, particularmente por
mas Jung, ao chegar à exposição e ser recepcio- parte de alguns colegas psiquiatras que rejeita-
nado por um vasto grupo de admiradores, ao ser vam a eficácia de sua prática renovadora de tra-
perguntado quais exposições de arte ele gosta- tamento terapêutico, por considerar os doentes
ria de conhecer, ele respondeu com determina- como pessoas em ruínas, embotadas, incapazes
ção: “Eu já escolhi. Vou à exposição brasileira, de restabelecer o seu equilíbrio emocional.
da Dra. Nise”, e dirigiu-se para as salas com as Mesmo assim, Nise não desistiu de seus so-
obras brasileiras. Nesse evento, foi registrado o nhos e de seus ideais. Tornou-se pioneira na luta
primeiro encontro em público entre essa gran- pela Reforma Psiquiátrica do Brasil e no trabalho
de psiquiatra brasileira e o eminente psiquiatra experimental, na década de 1950, ao utilizar os
suíço Carl Gustav Jung. Plena de alegria e feli- animais – “coterapeutas”, como excelentes ca-
cidade, Nise e o mestre Jung, lado a lado, diri- talisadores de afetos incondicionais. Tratou os
giram-se para o espaço das obras brasileiras, seus doentes mentais, que antes eram margina-
onde foram fotografados juntos, comentando, lizados e segregados, com respeito, dignidade e
analisando e interpretando as fascinantes “Ima- com “Emoção de Lidar”.
gens arquetípicas” expostas. Mais uma vez, Partindo de seus estudos e pesquisas expe-
Jung demonstrou o seu reconhecimento ao valor rimentais, embasados na psicologia analítica de
do trabalho de Nise, que lutou por décadas con- Jung, que contribuiu de forma significativa para
tra as adversidades, superando-as inteiramen- os campos da psiquiatria, das artes e da psico-
te, tornando-se vitoriosa na realização do seu logia, ao evidenciar nas produções espontâneas
grande projeto humanitário. dos esquizofrênicos brasileiros, paralelos que

22
Mello, 2008, p. 169. 23
Silveira, 1981, p. 96.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 37


Junguiana
v.39-2, p.29-42

confirmavam as premissas feitas por Jung acerca sensível e perspicaz... Ele tinha um olho
das estruturas e da dinâmica da psique. Assina- desgraçado, que atravessou o Atlântico e
lou a dama das imagens: chegou até o Brasil. Conseguiu perceber
que o esquizofrênico pintava, em primei-
Aos poucos, fui constatando que a obra ro plano, sua realidade obscura e triste –
de Jung me oferecia novos instrumentos e, ao fundo, um outro contexto, que não
de trabalho, chaves, rotas para distantes costuma ser o seu. Só mesmo Jung para
circunavegações. Delírios, alucinações, perceber, naquelas pinturas o ambiente
gestos, estranhíssimas imagens pintadas do ateliê do Museu do Engenho de Dentro
ou modeladas por esquizofrênicos, torna- e o clima de afeto e liberdade em que se
vam-se menos herméticas se estudadas faziam as pinturas25.
segundo seu método de investigação.
E também não lhe faltava o calor huma-
no de ordinário ausente nos tratados de Encontro de Almas
psiquiatria. Encontrei, na psicologia jun- Não poderia abordar a história da Mestra
guiana e nas obras deste mestre, o meu Nise sem registrar algumas das muitas passa-
melhor instrumento de trabalho24. gens marcantes que tivemos ao longo de mais
de 10 anos de uma afetuosa e respeitosa convi-
Em 1955, fundou o grupo de estudos C. G. vência (Figura 1).
Jung, com a intenção de estudar a psicologia Tudo começou no final do ano de 1989, quan-
analítica de Jung e aprofundar o conhecimento do decidi estagiar na Casa das Palmeiras como
dos processos do inconsciente coletivo, onde colaboradora. Pouco depois, passei a participar
se encontra a história da humanidade. Com a do Grupo de Estudos C. G.Jung, dirigido por Dra.
fundação deste primeiro grupo de estudos, Nise Nise, na Rua Marques de Abrantes, no Flamengo.
converteu-se na primeira pessoa no Brasil e da
25
Horta, 2008, p. 176.
América Latina a difundir as ideias e a psicologia
desenvolvida pelo mestre Jung.
Assim, o conjunto das obras de Nise, jun-
tamente com os acervos de imagens da Casa
das Palmeiras - Nise da Silveira e do Museu de
Imagens do Inconsciente, é patrimônio vivo que
registra e guarda um importante e raro material
do processo psíquico, que se constitui num ver-
dadeiro legado científico e cultural deixado por
Nise para a humanidade.
Como vimos, nenhum psiquiatra brasileiro
valorizou ou reconheceu o árduo trabalho revo-
lucionário de Nise. Entretanto, o importante psi-
quiatra suíço C. G. Jung, famoso em toda Europa
e nos Estados Unidos, deu importância, valor e
celebrou a Obra da maior psiquiatra do Brasil,
que não tinha medo de mergulhar no inconscien-
te. Para Nise, Jung era um cientista

24
Horta, 2008, p. 174. Figura 1. Encontro de almas.

38 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.29-42

Dois anos depois, no final do meu estágio, fazia, com meu marido, tudo fez sentido e decidi en-
aproximadamente, seis ou sete anos que ela frentar o desafio do projeto nisiano. E assim foi
não frequentava a instituição e raramente saia constituída a nova diretoria da Casa das Palmei-
ou dava entrevistas. Nos anos 1990, fiz parte ras: Dra. Nise da Silveira - Diretora Técnica, Pedro
do grupo de colaboradores que participaram do Pellegrino - Presidente, Dra. Alice Marques dos
projeto de reestruturação da Casa das Palmeiras Santos - Vice-presidente e Vera L.M. de Macedo
dirigido pela própria Dra. Nise que estava bas- – Diretora Administrativa. Na luta pela transfor-
tante insatisfeita com a forma de funcionamen- mação, toda equipe se empenhou bastante e
to da instituição, não reconhecendo mais ali, a trabalhou muito. Inicialmente, nem mesmo nos
aplicação de suas ideias e dos fundamentos de fins de semana, tínhamos folga! Dentre algumas
sua metodologia. Seu plano foi voltar a frequen- mudanças principais, destaco a criação de um
tar a Casa e, com a equipe escolhida, revitalizar e novo estatuto da instituição; a transformação da
restaurar todos os setores pilares: técnico, admi- arquitetura dos espaços internos da Casa, para
nistrativo e financeiro. E assim foi feito, a presen- melhor funcionamento dos ateliês; configuração
ça e a participação da Mestra foi historicamente de novos planos de aplicação das atividades ex-
fundamental na luta de resistência da manuten- pressivas e das supervisões, desenvolvimento
ção legítima de seu trabalho e isso motivou-me a de cursos de capacitação para colaboradores
continuar na instituição. Nossa primeira reunião e estagiários, publicações de livros e manuais,
ocorreu em sua residência quando ela me “con- além da reestruturação do Núcleo de Pesquisa
vocou” para fazer parte da nova diretoria. Levei da Casa das Palmeiras para estudos das séries
um susto quando meu nome foi indicado por ela. imagens dos clientes, guardadas nos acervos da
Meu primeiro impulso foi recusar, argumentando instituição, entre outros importantes implemen-
que havia passado para o mestrado e não teria tos. Esse trabalho foi um marco em minha vida
como dar conta de tantos compromissos ao mes- pessoal e profissional e me aproximou muito de
mo tempo. Marcamos um encontro a sós, em sua minha Mestra Sofia.
residência, apresentei minhas justificativas de Nesse novo cenário, a Casa das Palmeira, tal
que já estava, após dois anos, saindo da insti- como uma fênix, ganhou um ambiente altamen-
tuição, pois o meu objetivo de estagiar na Casa te saudável, acolhedor e criativo. Nos diversos
estava vinculado ao meu desejo de trabalhar no eventos comemorativos, eu levava a Mestra, no
meu consultório particular com pessoas com dis- meu carro, até a instituição. Como era bom vê-la
túrbios psicóticos, uma vez que tinha percebido feliz, emocionada, por ter conseguido realizar
que poucos profissionais da área de psicologia concretamente do seu projeto de restauração
tinham esse interesse. Reafirmei que estava feliz e, ao mesmo tempo, retornar à instituição. Nos
com o convite, me sentindo privilegiada pela in- eventos comemorativos, ela recebia manifesta-
dicação, mas nunca havia trabalhado na função ções carinhosas, espontâneas, dos clientes e
de diretora administrativa! Na verdade, estava das pessoas que ali estavam presentes! Era mui-
apavorada, pois não possuía nenhum conheci- to habitual a Mestra Nise constelar nas pessoas
mento e preparo de como administrar uma insti- o arquétipo da Grande Mãe e, assim, ela rece-
tuição. Naquela época, nada sabia sobre contas, beu diversas denominações como: “minha mãe
taxas, impostos etc. Porém, meus argumentos doutora”, “minha mãe caralâmpia” (guerreira,
de nada adiantaram, ela com muita determina- heroica...), “minha mãe Nise”, “grand mère” etc.
ção, disse que ia me orientar e supervisionar em E eu também vivenciei esse forte vínculo afetivo.
tudo que necessitasse e me convenceu da rele- Cada vez mais ela solicitava a minha presença
vância daquele novo empreendimento. Sai des- e apoio. Decidi, por um tempo, diminuir minhas
se encontro ainda hesitante, mas, ao conversar idas na Casa das Palmeiras e doar meu tempo a

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 39


Junguiana
v.39-2, p.29-42

“minha mãe arquetípica” que tanto necessitava proporcionava grande satisfação. Essa viagem
de presenças, verdadeiramente, amigas. Passei foi mais uma das muitas experiências inesquecí-
a frequentar diariamente sua residência e juntas veis que desfrutei com minha Mestra Sofia!
líamos as correspondências dela com Jung, com Em 1998, um ano antes de sua passagem
von Franz e de outras pessoas. Escutava, silen- para outras dimensões, enfrentando problemas
ciosamente suas histórias acerca da psicologia com dificuldades na sua visão, ela convidou-me
analítica no Brasil, a criação do Museu de ima- para ajudá-la num novo projeto de escrever um
gens do Inconsciente, da Casa das Palmeiras, livro. Percebi o quanto aquele projeto era sig-
de seus familiares, de suas viagens a Zurique, à nificativo. Não só concordei, como a incentivei
Alemanha e outros lugares que traziam boas re- a que logo iniciássemos a tarefa. Então, demos
cordações. Também escutei seus lamentos, má- início ao seu último livro publicado: “Gatos,
goas, muitas decepções com o “bicho homem” Emoção de Lidar”. Mestra ditava e eu digitava no
que a fizeram preferir os gatos, os animais que computador. Completamente deslumbrada com
eram fiéis e davam amor incondicional. a tecnologia do computador, ela dizia: “mas que
Em 1996, pretendendo dar novos ares no co- máquina diabólica mais interessante!”. Foram
tidiano da Mestra, perguntei-lhe em qual lugar momentos únicos, divertidos e sofridos, particu-
ela gostaria de passear e se distrair. Então, ela larmente quando os temas do livro se referiam
recordou uma viagem que havia feito à Conser- aos preconceitos contra os animais. A ideia des-
vatória e da qual guardava agradáveis recorda- se livro surgiu de um antigo projeto entre ela e
ções. Incentivei-a a voltar, disse-lhe que não co- o fotógrafo Sebastião Barbosa que elaboraram o
nhecia e que planejaria com meus familiares a formato do livro com as séries de fotografias de
nossa ida. Aprovou a ideia, alugamos uma van e animais, principalmente de gatos e com textos
nós fomos para cidade rural das serestas, a 140 criados pela Dra. Nise.
km do Rio. Viagem que foi cansativa para ela, Essa obra surpreendeu a muitos, pela escolha
mas que enfrentou sem reclamar! Na bagagem, do tema sobre os felinos. Nessa obra, ela deixou
poucas roupas, mas muitos livros: poemas de explícito o seu amor incondicional e a defesa em
Eliot, de Baudelaire, de Teilhard de Chardin, de favor dos animais, especialmente aos gatos, com
von Franz, de Artaud e outros. Nos hospedamos quem se identificou. Com eles, aprendeu muito
numa confortável e charmosa pousada. No dia sobre a natureza humana, conforme dizia: “Na
seguinte, meus familiares chegaram para seu próxima encarnação, se houver, quero vir como
grande contentamento. Fomos passear pela gata ou gato”. Posteriormente, ela descobriu
cidade, tiramos fotos para registrar esses mo- que, sincronicamente, o último livro escrito, por
mentos felizes, nas ruas dos casarios, as tradi- sua querida analista e amiga Von Franz, que fale-
cionais e famosas serenatas. Os violeiros ento- ceu em 1998, foi sobre um conto de fada romeno,
avam cantigas preferidas e recitavam poesias. cujo tema também, se relacionava com gato: “O
Nessa atmosfera romântica-musical agradável, Gato - Um Conto da Redenção Feminina”.
em conjunto com a deslumbrante paisagem das Recordo um outro acontecimento que desta-
montanhas ao fundo e o céu límpido e estrelado, co com profunda alegria que foi a vinda da Mes-
a Mestra deleitava-se! De manhã, após o café, tra Nise à minha residência, para passar duas se-
pegávamos sol, debaixo das copas das grandes manas. Nessa altura, ela já fazia parte da minha
árvores que cercavam os jardins da pousada. Eu família. Mestra tão reservada e discreta, aceitou
fazia leituras em voz alta, para ela, das poesias meu convite para tirar umas “férias” do ambien-
ou do livro escolhido; às vezes, ela dava bons te, muitas vezes “tenso”, em que vivia. Instalada
cochilos e eu ficava observando-a naquele esta- no seu quarto, numa cama de casal, algumas
do de plenitude, de serenidade e paz, e isso me noites, dormimos juntinhas! Conversávamos

40 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.29-42

sobre tudo o que nos divertia e gargalhávamos conhecidas e essa será a minha grande e última
para meu e dela espanto! aventura”. No dia 30 de outubro de 1999, minha
Deu apelido à minha família de Caralâmpios “mãe arquetípica” iniciou sua última viagem
e adorava contar estórias divertidas como, por para “outras galáxias”, como dizia.
exemplo, lembrou da primeira vez que foi ao Aprendi muito com Mestra, aprofundei ideias
cinema, em Maceió, com sua mãe, quando ain- sobre a sua obra, de Jung, de Artaud, von Franz
da era criança. O filme era policial e numa das entre outros. Acima de tudo, ela ensinou-me mui-
cenas, quando a polícia correu para prender os to sobre os estudos das séries das imagens do
ladrões, ela subiu na cadeira e gritou: “Fujam inconsciente, supervisionou minha práxis clínica
que a polícia vem ai!!”. Dona Lídia, sua mãe en- tanto com os clientes da Casa quanto os meus
vergonhada, sentou a filha na cadeira enquanto analisandos do meu consultório. Hoje, posso
os espectadores não paravam de rir. Divertida- afirmar que fui sua “filha arquetípica” privilegia-
mente, ela comentava: “Ali estava uma pequena da, cujos laços afetivos nos uniu eternamente.
subversiva...”. As duas semanas foram de dias Minha vida é marcada por uma antes e depois
maravilhosos que objetivaram trazer alegria, de minha “mãe arquetípica” que pediu a todos
descontração e muito amor àquela “pessoinha nós: “Após minha morte, quero ser lembrada
miúda”, aparentemente frágil, que nos conta- com emoção”.
giou com sua amizade e afeto. O mais importan- Finalizando, lembro-me com carinho de que,
te foi o forte vínculo que se desenvolveu entre quando perguntavam a Mestra Nise o que deu
nós, a ponto de considerá-la como um membro sentido em sua vida, ela respondia com convic-
de nossa família. ção: “O AMOR AOS LOUCOS!”. ■
Nos últimos anos de sua vida, pressentiu a Ave Nise!!!
sua partida, teve um grande sonho muito signifi- Saudades!
cativo. O tema sonho girava em torno da morte, Vera Macedo
nas imagens oníricas, ela se via dançando muito
alegre, logo compreendeu que “a morte é dan- Recebido em: 10/06/2021 Revisão 01/11/2021
çável e alegre. É uma viagem para regiões des-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 41


42 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021
Junguiana
v.39-2, p.43-56

Por um método niseano na saúde mental:


a construção de um ateliê de arte na
emergência psiquiátrica

Brena Souza Almeida*


Hamanda de Almeida Pedrosa**
Luana Maria Rotolo***

Resumo Palavras-chave
O presente artigo relata a experiência da in- metodológico, escolhemos o paradigma junguia- Nise da Silvei-
tervenção artística proposta pelo Programa de no como fundamento de nossas reflexões articu- ra, psicologia
Residência de Psicologia em Saúde Mental do ladas a partir do Relato de Experiência. Imersas analítica,
saúde men-
Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano nas obras da Dra. Nise e nas imagens produzi-
tal, atenção
(HUP) e Universidade de Pernambuco, na cidade das no ateliê de arte do HUP, defendemos que à crise, afeto
de Recife, em Pernambuco. Desde 2019, viemos existe um método niseano que precisa ser mais catalisador.
somando forças para a criação de um ateliê de bem conhecido e disseminado nos serviços de
arte dentro da emergência psiquiátrica, bus- saúde mental. O trabalho realizado por Nise da
cando atualizar o método de Nise da Silveira na Silveira segue inovador no cuidado aos “inume-
atenção à crise em saúde mental. No percurso ráveis estados do ser”, sendo importante de ser
resgatado no avanço da Reforma Psiquiátrica e
no desenvolvimento da teoria junguiana. ■
* Psicóloga especialista em saúde mental na modalidade
residência, pós-graduanda em clínica junguiana, plantonista
do Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano, atua na clínica
com base na teoria junguiana.
E-mail: brenas.psi@gmail.com 
** Psicóloga especialista em saúde mental na modalidade
residência, pós-graduanda em clínica junguiana, arteterapeu-
ta concluinte, plantonista do Hospital Psiquiátrico Ulysses Per-
nambucano, atua na clínica com base na teoria junguiana.
E-mail: hamandaap@gmail.com
*** Arteterapeuta, Psicóloga especialista em clínica junguiana, es-
pecialista em saúde da família na modalidade residência, me-
stre em saúde pública, plantonista do Hospital Psiquiátrico Ul-
ysses Pernambucano, Coordenadora Assistencial da Residência
de Psicologia em Saúde Mental do HUP/UPE, atua na clínica
com base na teoria junguiana.
E-mail: luanamrotolo@gmail.com

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 43


Junguiana
v.39-2, p.43-56

Por um método niseano na saúde mental: a construção de um ateliê de arte


na emergência psiquiátrica

Introdução
Nise da Silveira é um nome que se tornou um demia que lança esse obscurecimento sobre a
ícone. Mesmo quem não é do campo da Saúde obra de Nise da Silveira?
Mental já ouviu falar nessa psiquiatra rebelde, Nós que trabalhamos com saúde mental e
seja por meio de filmes, seja por documentários procuramos atualizar em nosso cotidiano o mé-
ou reportagens. Nise é parte de um imaginário todo de Nise da Silveira, sua forma de fazer clí-
social no Brasil. Já quem trabalha ou estuda na nica e suas contribuições teóricas, defendemos
área geralmente a considera pioneira da Refor- que ela continua viva e profundamente inspira-
ma Psiquiátrica brasileira, levando o seu nome dora. Não tivemos a honra de conhecer a Dra.
para uma série de dispositivos de saúde mental Nise, mas sentimos que ela vive e pulsa em cada
Brasil afora (MAGALDI, 2020; MELO, FERREIRA, imagem que se configura no nosso ateliê de saú-
2013; MELO, 2007). de mental.
É interessante observar, porém, que, apesar Imbuídas desse espírito renovador – tipica-
da notoriedade de “doutora Nise” – como era mente junguiano e niseano –, estamos há quase
carinhosamente chamada por seus contempo- dois anos nos propondo a desenvolver, em uma
râneos –, essa fama não parece se traduzir em emergência psiquiátrica, um método de trabalho
um desdobramento de suas vastas contribui- baseado na livre expressão no cuidado à crise
ções. Poucas pessoas de fato leram seus livros em saúde mental.
– sinal disso é que a maioria deles continuam O Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambuca-
esgotados sem serem reeditados – e poucos no (HUP), localizado em Recife, Pernambuco, foi
são os serviços que levam o seu pioneiro mé- o segundo hospital psiquiátrico do Brasil, tendo
todo adiante. Mesmo na academia, suas obras uma larga história na cidade e no estado. Desde
quase não são citadas e poucos programas de 2016, ele se configura como emergência psiqui-
residência e pós-graduação têm a produção de átrica, contando majoritariamente com interna-
Nise da Silveira como bibliografia (MAGALDI, mentos de curta duração. O processo de desins-
2020; MELO, FERREIRA, 2013). Como pode al- titucionalização foi extremamente importante,
guém se tornar um ícone e ao mesmo tempo ser trazendo uma série de mudanças no funciona-
tão esquecida? mento do hospital, tornando-o cada vez mais um
Muitos podem ser os motivos dessa contradi- dispositivo de atenção à crise e articulação dos
ção, e não nos cabe aqui aprofundá-los1. O fato serviços substitutivos para dar seguimento ao
de ser uma mulher nordestina, comunista e jun- tratamento de base territorial (ROLIM, 2019).
guiana nesse mundo patriarcal e conservador já Esse processo, porém, implicou o encerra-
aponta algumas luzes. Porém, é curioso pensar mento de praticamente todas as atividades de
essa exclusão no campo da saúde mental, já que expressão artística que eram desenvolvidas na
grande parte deste, no Brasil, se configura como instituição. O Centro de Atividades Terapêuticas
um campo progressista. Seria o lugar de sombra (CAT), criado em 1993 e em atividade até 2015,
que a teoria junguiana ocupa ainda hoje na aca- foi um importante espaço de produção de arte,
contando com uma série de oficinas e trabalhos
criativos desenvolvidos com os pacientes. Quan-
1
Para esse debate, sugerimos a leitura de Melo (2007) e Ma-
galdi (2020). do o HUP se tornou, de fato, uma emergência,

44 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.43-56

o entendimento da gestão foi de que não faria sibilidade de criação de narrativas científicas,
mais sentido desenvolver atividades expressi- especialmente no campo das ciências humanas
vas, uma vez que o espaço de cuidado dos pa- aplicadas, como é o caso da Psicologia.
cientes passa a ser os serviços substitutivos, e O Relato de Experiência enquanto méto-
não mais o hospital. do científico seria uma ferramenta que articula
Concordamos com o horizonte da desinsti- elementos da experiência singular, analisada
tucionalização e com o avanço da Reforma Psi- a partir da perspectiva da heterogeneidade.
quiátrica, defendendo cotidianamente que os Distanciando-se dos pressupostos da ciência
hospitais psiquiátricos se tornem cada vez mais moderna, que busca a neutralidade e homoge-
uma fase superada da história da saúde mental. neização do conhecimento, o Relato de Experi-
No entanto, entendemos que, enquanto houver ência torna possível um ponto de abertura para
dispositivos como esse, melhor que tenham incluir processos e produções subjetivas. Como
espaços de livre criação do que se restrinjam à colocado por Daltro e Farias (2019), a construção
medicalização e disciplinamento. Caso contrá- de sínteses reflexivas a partir da experiência tor-
rio, podemos reforçar a tese hegemônica na Psi- na-se uma fonte inesgotável de sentidos e possi-
quiatria de que os sintomas são manifestações bilidades passíveis de análise.
físico-químicas que podem ser controlados uni- Isto não quer dizer que, ao narrarmos nossa
camente por tratamentos medicamentosos. vivência, daremos conta apenas de uma expe-
É nesse contexto que gostaríamos de apre- riência individual. Como Daltro e Farias (2019)
sentar a experiência de construir um ateliê de defendem, quando a narrativa é feita a partir
arte dentro de uma emergência psiquiátrica. Por de uma experiência significativa articulada com
mais que Nise tenha trabalhado num hospital um campo teórico, aquela pode possibilitar um
psiquiátrico nos moldes clássicos, com pacien- aprofundamento da teoria.
tes crônicos e cronificados pelas longas interna- Neste trabalho, a experiência no ateliê de
ções, vemos a potência de seu método não só arte do HUP se torna objeto de análise. Assim
para acompanhamentos de longo prazo, mas produzimos sentidos tanto na posição de au-
também na atenção à crise, quando esse cuida- toras quanto na posição de sujeitos da experi-
do precisa se restringir a poucos dias de contato. ência, articulando a simultaneidade do pensar/
A fala de diversos pacientes – ou clientes, sentir (DALTRO, FARIAS, 2019).
como Nise respeitosamente gostava de chamar Daltro e Farias (2019) ressaltam também a
– parece reforçar nossa defesa: “Quando vamos importância de o Relato de Experiência ter um
pintar de novo?”, “Já é hoje que teremos ateliê?”, enquadramento teórico que sustente as refle-
“Posso continuar vindo aqui desenhar mesmo xões a partir da vivência. No nosso caso, assu-
depois de receber alta?”. mimos o paradigma junguiano enquanto suporte
Esperamos com esse breve relato continuar de nossas reflexões.
inspirando o reconhecimento de Nise da Silvei- Concordamos com Penna (2005) quando pro-
ra, não só como uma figura mítica, mas como um pôs o desafio de articular a psicologia analítica
método vivo e necessário para avançarmos ain- no campo científico, visto que esta nos possi-
da mais em nossa Reforma Psiquiátrica. bilita observar os fenômenos, tanto individuais
quanto coletivos, indo para além de um fazer clí-
Caminho metodológico: um relato de nico. O paradigma junguiano busca a integrali-
experiência a partir do olhar junguiano dade do indivíduo, articulando o mundo externo
O artigo teve como recurso metodológico à sua própria individualidade.
o Relato de Experiência. Daltro e Farias (2019) De acordo com Wahba (2019), o conhecimen-
defendem este método como mais uma pos- to está sujeito ao “mito pessoal” do pesquisa-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 45


Junguiana
v.39-2, p.43-56

dor, fazendo-se importante para alcançar uma ção dessa sociedade excludente, sendo capaz
verdadeira expressão da experiência vivida, de se colocar no lugar dos sujeitos objetifica-
ou seja, uma apresentação detalhada de tudo dos pela prática psiquiátrica (MELLO, DAMIÃO,
aquilo observado. Ainda de acordo com o mes- 2014; OLIVEIRA, 2009).
mo autor (2019), pesquisar não é apenas uma Foi nas experimentações realizadas no Setor
articulação teórica/prática, mas uma indagação de Terapia Ocupacional e Reabilitação (STOR)
complexa sobre os afetos e o fazer. do Hospital Pedro II, a partir de 1946, que Nise
Iniciaremos então apresentando nosso ar- desenvolveu o seu método de cuidado revolucio-
cabouço teórico para depois discorrer sobre a nário. Principalmente no ateliê de pintura e mo-
experiência vivida no ateliê de arte do HUP. Es- delagem, desenvolvido em parceria com o artista
peramos desta forma contribuir para o delinea- plástico Almir Mavignier, ela passou a se deparar
mento do que acreditamos ser o método niseano com algo que já intuía desde seu primeiro conta-
na atenção à crise em saúde mental. to com os pacientes psiquiátricos do Hospital da
Praia Vermelha, onde foi residente: os livros de
Por um método niseano de cuidado em psiquiatria não davam conta de explicar o fenô-
saúde mental meno do adoecimento psíquico (MELLO, 2014).
Os métodos de tratamento passavam longe de
Numa noite [...] nós apontamos o telescó- qualquer eficácia, só reforçando ainda mais o
pio para a doença mental, e descobrimos que seus colegas chamavam de “embotamento
que o centro do universo é o afeto. E que afetivo” e “deterioração da personalidade” na
o afeto é capaz de transformar qualquer esquizofrenia. Como demonstrar afeto e recons-
doença mental. É o afeto que é o proces- truir a personalidade em um ambiente inóspito e
so terapêutico, o afeto que faz avançar. A hostil? (SILVEIRA, 1992).
Dra. Nise da Silveira, Galileu da medicina, Nise não se contentou com as teorias e téc-
descobriu que o afeto é o centro do uni- nicas que lhe foram apresentadas. No contato
verso (fala de Vitor Pordeus2 citado em humano com cada pessoa que passou a acom-
MAGALDI, 2020, p. 272). panhar percebeu que esses sujeitos, aparen-
temente tão inacessíveis, preservavam seus
A Dra. Nise foi chamada de rebelde por não afetos, sua inteligência, sua condição de huma-
se conformar com as práticas psiquiátricas he- nidade tão brutalmente negada. Apenas era pre-
gemônicas, e foi uma verdadeira revolucionária ciso que fosse ofertado um ambiente de liberda-
quando afirmou que o afeto deveria estar no cen- de e de contatos afetivos que desse suporte para
tro do processo de cuidado em saúde mental. que o sujeito voltasse, lentamente, a comparti-
Diferente da grande maioria dos doutores lhar dessa realidade (SILVEIRA, 2016).
de sua época (e talvez ainda de boa parte da É certo afirmar que na sua prática Nise desco-
atualidade), Nise se permitiu afetar e ser afe- briu artistas incríveis, contribuindo imensamen-
tada pelo encontro com homens e mulheres te para a mudança da visão social da loucura.
desumanizados, silenciados e aprisionados Mas sua maior descoberta foi a criação de um
no ambiente sombrio dos manicômios. Talvez método terapêutico baseado na construção de
por ela própria ter passado pela experiência de laços afetivos e na livre expressão das imagens
cárcere, durante a ditadura Vargas, Nise lutou inconscientes (DAMIÃO, 2021; MAGALDI, 2020).
contra toda forma de aprisionamento e segrega- Uma vez se colocando ao lado de seus clien-
tes, garantindo o reconhecimento de seu status
2
Vitor Pordeus é médico e ator, um dos idealizadores do Hotel de humanidade, Nise passou a compreender a
da Loucura, que funciona desde 2012 no Complexo Psiquiátri-
co do Engenho de Dentro na cidade do Rio de Janeiro. linguagem a princípio tão hermética da psicose.

46 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.43-56

Partindo do nível não verbal, no qual a maioria pioneira da teoria junguiana no Brasil, não foi
dos pacientes se encontrava, ela desenvolveu uma das responsáveis pela institucionalização
um verdadeiro método terapêutico ativo, apren- e formalização desta no país (MAGALDI, 2020).
dendo a ler as narrativas das imagens do incons- Seria esse um dos fatores que colaboraram para
ciente que passaram a se tornar visíveis através o esquecimento de suas valiosas contribuições?
da produção no ateliê. Por meios simples e não A partir de nossa experiência defendemos
invasivos, num ambiente livre e seguro, Nise que Nise desenvolveu um método próprio, e é
conseguiu o que considerava ser o maior desafio imperativo que ele seja melhor conhecido não só
da prática psiquiátrica: acessar o mundo interno pela comunidade junguiana do Brasil e do mun-
dos psicóticos (SILVEIRA, 1992; 2016). do, mas principalmente por todos aqueles que
Mesmo que tenha encontrado na obra de trabalham no campo da saúde mental a partir de
Jung o suporte teórico que lhe faltava na forma- um horizonte de libertação. A seguir, apresenta-
ção psiquiátrica, entendemos que Nise foi além remos as bases teóricas do que entendemos ser
de seu mestre, dando forma a uma verdadeira o método niseano para poder discorrer sobre a
clínica das psicoses. Não foi à toa que Jung res- experiência vivida no ateliê do HUP.
pondeu prontamente a sua carta em 1954, na
qual ela lhe havia enviado algumas fotografias “Se as imagens tomam a alma da pes-
de mandalas produzidas pelos clientes da STOR. soa, pintar seria agir”
Jung provavelmente visualizou a grandiosidade
de tal experiência, convidando-a em 1957 para Mudei para o mundo das imagens. Mu-
estudar por um ano no Instituto C. G. Jung em Zu- dou a alma para outra coisa. As imagens
rique (CATTA-PRETA, 2021; MELLO, 2014). tomam a alma da pessoa (Fernando Diniz3
Em seus primeiros passos no Burghölzli, Jung em SILVEIRA, 2016, p.15).
também foi movido pela questão: “O que se pas-
sa no espírito do doente mental?” (JUNG, 2006). A visão de Nise, ancorada na teoria junguia-
Sua experiência como psiquiatra resultou, mes- na, compreendia a psicose como um estilhaça-
mo que a posteriori, no desenvolvimento dos mento do ego frente às pressões do inconscien-
principais pilares da teoria junguiana, como os te. O sujeito não é mais capaz de suportar os
arquétipos e o inconsciente coletivo. Nise, po- conflitos vividos em sua realidade, sendo inun-
rém, diferentemente de Jung, que levou a clínica dado pelo inconsciente - ou “tomado por suas
para o laboratório, percebeu no ateliê a possibi- imagens”, como bem coloca Fernando Diniz. A
lidade de realizar um laboratório clínico ali mes- partir dessa visão, Nise afirma que “pintar seria
mo, a partir da produção imagética de seus clien- agir”, defendendo a expressão plástica como
tes. O espaço de expressão livre assumiu cada um legítimo método terapêutico - um “método
vez mais um viés de método e, por que não dizer, de ação adequado para a defesa contra a inun-
de um método niseano (SILVEIRA, 1992; 2016). dação pelos conteúdos do inconsciente” (SILVEI-
A doutora nada mais fez do que o que Jung RA, 2016, p. 15).
sempre defendeu: apropriou-se de sua teoria O fundamento terapêutico da expressão plás-
para continuar desenvolvendo-a a partir de da- tica se concentra nessa possibilidade de plas-
dos empíricos. Porém, diversamente do que mar as imagens do inconsciente num suporte
ocorreu com a teoria junguiana (mesmo a con- externo, facilitando que o ego se diferencie das
tragosto de Jung), Nise nunca se preocupou em imagens “invasoras”. Esse processo é descrito
institucionalizar o seu conhecimento. Como uma
grande defensora da liberdade de pensamento e 3
Fernando Diniz foi um dos clientes do Museu de Imagens do
Inconsciente. Sua vasta obra foi um dos principais materiais de
criação, a psiquiatra rebelde, apesar de ser uma pesquisa de Nise da Silveira.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 47


Junguiana
v.39-2, p.43-56

por Nise como uma desidentificação do ego, pos- reorganização psíquica, por meio das imagens,
sibilitada pela ação de despotencializar a força tinha efeitos terapêuticos significativos (SILVEI-
das imagens arquetípicas que foram ativadas na RA, 2016).
situação de crise (SILVEIRA, 2016). Para que as transformações pudessem ocor-
Na visão de Nise e Jung, o psiquismo é um sis- rer era preciso, antes de mais nada, que fosse
tema vivo, dinâmico, em constante movimento ofertado um espaço de liberdade e respeito pela
no sentido de sua autorregulação. Esse processo expressão singular de cada um. Encarar as ima-
autorregulatório se desenvolve centralmente por gens ameaçadoras não é um processo fácil, ain-
meio do encontro de polos opostos, que agem da mais para quem viveu a traumática e dolorosa
de forma compensatória. A união desses polos, experiência de estilhaçamento do ego. Uma das
por meio de um diálogo consciente-inconscien- mais valiosas contribuições de Nise se encontra
te, é o que Jung denominou Função Transcenden- no desvelamento da centralidade do afeto no
te. Segundo o criador da psicologia analítica, é cuidado em saúde mental. Sem o suporte afetivo
por meio desse processo de diálogo – muitas ve- se torna muito mais difícil que as imagens amea-
zes conflituoso – que se produz a transformação çadoras venham à tona e ganhem contorno.
da energia psíquica. Os símbolos seriam o fruto Não por acaso, a presença de monitores nos
desse longo embate – o terceiro que é constela- ateliês é essencial. No entendimento de Nise da
do a partir do encontro dialético entre consciente Silveira (2016), a presença afetiva dos monitores
e inconsciente (JUNG, 2012). deveria funcionar como um catalisador do pro-
Para Nise (2016), “pintar seria agir” não só cesso de autocura, estimulando que as imagens
porque a expressão plástica é uma forma de de- continuem se desdobrando. O apoio do monitor
sidentificar o ego das imagens arquetípicas, mas oferece um ambiente não ameaçador, servindo
também porque é por meio da produção simbóli- como uma primeira continência às imagens inva-
ca que transformamos a energia psíquica: soras e, por consequência, auxiliando no proces-
so de reestruturação do ego.
O processo psíquico desenvolve seu dina- Mello e Damião (2014), embasados em Nise,
mismo por intermédio da criação de ima- apontam para essa característica do afeto en-
gens simbólicas. ‘O símbolo é o mecanis- quanto um elo sujeito-mundo:
mo psicológico que transforma energia’.
Assim, a objetivação de imagens simbó- A importância do afeto está em ele ser
licas no desenho ou na pintura poderá uma disposição pela qual o indivíduo
promover transferências de energia de um se enraíza e se abre qualitativamente ao
nível para outro nível psíquico. A imagem mundo; o afeto é uma forma de compre-
não é algo estático. Ela é viva, atuante e ensão de mundo. O afeto resgataria, as-
possui mesmo eficácia curativa (p. 135). sim, a dimensão qualitativa, a cadeia de
vínculos, que enraízam homem e mundo.
Nos livros e documentários nos quais Nise Esta relação de enraizamento se dá atra-
analisou a produção de alguns de seus clientes, vés do afeto, e o que era anteriormente
é possível acompanhar esse processo de trans- não relacionado converte-se em uma
formação da energia psíquica, à medida que as ideia mais ou menos clara e articulada,
imagens começam a ganhar forma. Ao lado do graças ao apoio da consciência (p. 193).
desenvolvimento dos temas, símbolos e formas
de expressão, era possível também observar mu- Para sujeitos que perderam parte do con-
danças nas relações dos clientes com o seu meio tato com a realidade compartilhada, refugian-
– ficando evidente o quanto esse processo de do-se em seu mundo interno, o afeto é a ponte

48 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.43-56

que possibilita o retorno. Por isso, para Nise, mente difícil com psicóticos. Nestes, as
o afeto é imperativo: é ele que torna possível imagens vêm de estratos muito profundos
“a cura”, pois sem relação não há processo do inconsciente, extremamente distantes
terapêutico. Deixar ser levado pelas tramas da do consciente, revestem formas dema-
relação é o que torna possível a colagem cria- siado estranhas e trazem consigo uma
tiva dos estilhaços do ego. O afeto é a cola, as grande carga energética. Antes de serem
imagens os fragmentos a serem reorganizados despotencializadas pelo menos em parte,
psiquicamente. Nessa bricolage, é possível de suas cargas energéticas não haverá
produzir novos arranjos para o ego – quem condição para apreendê-las por meio de
sabe mais amplos e significativos (MAGALDI, interpretações. Isso só se tornará possí-
2020; SILVEIRA, 2016). vel depois que passem por um proces-
Jung (2012), quando trata da função trans- so de transformações emocionais e que
cendente no livro A Natureza da Psique, defen- se aproximem do consciente (SILVEIRA,
de que o “princípio da elaboração criativa”, que 2016, p. 146).
seria o acesso ao inconsciente por meio de re-
cursos expressivos, exige o “princípio da com- Por esse motivo Nise (1992) propõe, no livro
preensão”, ou seja, a capacidade de elaboração O Mundo das Imagens, que o cuidado em saúde
por meio da consciência dessas imagens e sím- mental, principalmente nos casos mais graves,
bolos. Se a função transcendente é o diálogo da parta do nível não verbal:
consciência com o inconsciente, parece evidente
que a expressão criativa não poderia prescindir A comunicação com o esquizofrênico, nos
do papel da consciência. Todo diálogo demanda casos graves, terá um mínimo de proba-
o fluxo de troca entre as partes, fazendo-as se bilidades de êxito se for iniciada no nível
alargarem ao incorporar aspectos até então des- verbal de nossas ordinárias relações inter-
conhecidos (JUNG, 2012). pessoais. Isso só ocorrerá quando o pro-
Nise, porém, observou que a possibilidade cesso de cura se achar bastante adianta-
de expressão produz efeitos terapêuticos, mes- do. Será preciso partir do nível não-verbal.
mo quando não é possível uma compreensão É aí que se insere com maior oportunida-
por meio da consciência, como no caso dos pa- de a terapêutica ocupacional, oferecendo
cientes psicóticos: “as imagens do inconsciente atividades que permitam a expressão de
objetivadas na pintura tornam-se passíveis de vivências não verbalizáveis por aquele
uma certa forma de trato, mesmo sem que haja que se acha mergulhado na profundeza
nítida tomada de consciência de suas significa- do inconsciente, isto é, no mundo arcai-
ções profundas” (SILVEIRA, 2016, p. 146). co de pensamentos, emoções e impulsos
Com base em sua ampla experiência, ela de- fora do alcance das elaborações da razão
fende que num primeiro momento é preciso so- e da palavra (p. 16).
bretudo despotencializar a carga energética das
imagens arquetípicas por meio da expressão, Com base nesses pressupostos, ela defende
para só num momento posterior, quando o su- que a expressão criativa, ativa, livre, e afetiva –
jeito estiver mais próximo da consciência, essa inicialmente chamada de Terapia Ocupacional
elaboração se tornar viável: e depois “Emoção de lidar” – seja reconhecida
como um autêntico método terapêutico, defen-
Um trabalho sintético que reúna interpre- dendo inclusive que esse método seria o mais
tação intelectual e emocional, de regra na indicado para ser aplicado nas instituições pú-
prática com neuróticos, torna-se enorme- blicas de saúde mental (SILVEIRA, 2016).

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 49


Junguiana
v.39-2, p.43-56

Imagem-continente: a experiência do rece que a gente vê a pessoa e não só a doença”.


ateliê de arte na atenção à crise em Nesses momentos, era possível contemplar o
saúde mental movimento que a flor ia fazendo ao desabrochar,
Abrir um espaço de livre criação dentro de um infiltrando-se em meio ao concreto.
hospital psiquiátrico, em meio a tantas grades, Realizamos intervenções semanais por 4 me-
muros e contenções, pode parecer pouco, mas ses, primeiro na enfermaria feminina e depois na
vem sendo muito. Dar espaço para as cores num enfermaria masculina. Ao longo do segundo se-
ambiente cinza gera muitos contrastes. Lembran- mestre de 2020 desenvolvemos o projeto intitu-
do as poéticas palavras de Drummond4, o ateliê lado “As paredes falam: mural processual”. Este
de arte dentro do HUP vem sendo como aquela consistia em criar murais de lambe-lambe com os
flor, singela, mas capaz de romper o asfalto. desenhos que surgiam a cada encontro de cria-
O projeto teve início em 2019, quando o Pro- ção. Depois, ousamos mais e pintamos livremen-
grama de Residência de Psicologia em Saúde te os muros da instituição. Era bonito ver a satis-
Mental do HUP e Universidade de Pernambuco fação das usuárias e usuários quando davam um
passou a realizar a carga horária prática do seu passo atrás e viam a sua imagem agora estam-
Seminário de Arte e Saúde Mental dentro da pada na parede. Logo vinha outra e dizia: “quero
instituição. Para isso, contou com a parceria de deixar a minha marca aqui também, doutora!”.
extensionistas do curso de Artes Visuais da Uni- Em 2021, voltamos a contar com a parceria
versidade Federal de Pernambuco, que somaram das extensionistas de arte e ampliamos ainda
mais a equipe, também com voluntários ex-re-
a sensibilidade da arte ao olhar da Psicologia.
sidentes que quiseram se manter colaborando
No ano de 2020, com o início da pandemia
com o espaço do ateliê de arte do HUP. Ao longo
de Covid-19, a universidade suspendeu as ati-
de todo o ano de 2021, continuamos nos encon-
vidades práticas, reduzindo a equipe a apenas
trando nas sextas-feiras à tarde, integrando mo-
duas residentes de psicologia e a coordenado-
mentos de expressão mais individualizada com
ra do projeto. depois de alguns meses sem sa-
momentos de produção coletiva, pintando os
ber como dar continuidade à intervenção nesse
muros do hospital conjuntamente.
novo contexto, pensou-se em ampliar a interdis-
Cada encontro é um pequeno oásis de li-
ciplinaridade da equipe, estendendo o convite
berdade e criação. Nós nos reunimos um pou-
aos residentes de psiquiatria e enfermagem do
co antes para organizar o espaço, separarmos
HUP. O que de início não estava previsto, acabou
o simples material de arte de que dispomos, e
se tornando um verdadeiro presente. O projeto
sem nem precisar chamar, os/as usuários/as co-
só ganhou com a parceria de diferentes profis-
meçam a chegar e se acomodar. Na maioria das
sionais em formação, cada um com um olhar
vezes, estes se mostram sedentos por um espa-
próprio, mas todos atentos e sensíveis ao pro-
ço de expressão, solicitando ao longo do dia pa-
cesso profundo de expressão dos participantes
pel, canetas ou, até mesmo, usando o que tem a
do ateliê.
mão para escrever e desenhar nas paredes das
Uma das residentes da psiquiatria logo per-
enfermarias.
guntou: “vamos poder ler Nise da Silveira?”, e
Essa avidez por expressão era percebida por
isso por si só já significava muito. Foi ainda mais
alguns que já pegavam lápis e tintas e, sem nem
tocante quando outra residente disse que es-
precisar nos dirigir uma única palavra, começa-
cutar os pacientes no ateliê era completamente
vam a desenhar ou escrever – muitas vezes em
diferente de escutá-los no consultório: “aqui pa-
línguas ininteligíveis. Durante todo o tempo do
ateliê nós ficamos ali, colocando-nos à dispo-
4
Nos referimos ao poema “A flor e a náusea” do livro A Rosa
do Povo, de Carlos Drummond de Andrade. sição, emprestando nossa escuta e nosso olhar

50 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.43-56

atento. Nossa maior função é oferecer os recursos ços na parede. E ele gritava repetidamente: “onde
para que a expressão ocorra. Disponibilizamos está minha irmã?”. A força com que jogava o barro
os papéis, os lápis, as tintas, a argila, colocamos fazia-o grudar na parede de cerâmica, tendo que o
uma música instrumental de fundo e deixamos usuário ir lá arrancar novamente os pedaços para
nossa atenção e nosso afeto à disposição daque- repetir a cena quantas vezes fosse necessário.
les que sentirem o chamado para se expressar. Parecia que precisava dessa explosão física para
É incrível observar como a “pulsão configu- que pudesse lidar com a angústia crescente, e se
radora de imagens” descrita por Nise se mate- não tivesse a sua disposição esse material plás-
rializa na nossa frente. Casas, gatos, baleias, tico e o apoio afetivo da monitora, provavelmen-
corações, mares, morros e estrelas começam a te teria extravasado em um episódio de agitação
aparecer espontaneamente. Quanto mais mer- psicomotora e heteroagressividade.
gulhados no inconsciente coletivo, ou mais “de- Em muitas situações, mesmo quando não po-
sorganizados” na visão da psiquiatria, mais abs- demos observar a série de imagens se formando
tratas são as imagens. Isso não significa, porém, por conta da brevidade da internação, é possível
que não são uma forma de comunicação. Como verificar a afirmação de Jung e Nise sobre as ima-
nos ensina Nise, quando observamos atenta- gens serem autorretratos da situação psíquica.
mente o modo como a expressão ocorre, com um Uma das usuárias que, por sua condição psi-
interesse genuíno, todo traço é uma forma de ex- copatológica, tinha muita dificuldade de se ex-
pressão e comunicação. pressar verbalmente, começou a desenhar uma
Uma usuária que estava com crises frequen- figura feminina. Disse que era sua mãe. Depois
tes de heteroagressividade foi um dia para o pá- colocou outras figuras em volta e falou que eram
tio, onde estávamos realizando o ateliê. Pegou ela, seus irmãos e seu pai. Passado algum tem-
um lápis vermelho. Começou a rabiscar com po a figura da mãe havia se expandido a tal pon-
muita força, preenchendo todo o papel. Sem ne- to que todas as outras figuras ao redor tinham
nhum tipo de borda ou limite, os traços iam para sumido. A imagem final parecia um grande polvo
a mesa, chegando a ameaçar transbordar para a abstrato, maciço e cheio de tentáculos. Não pre-
roupa da monitora. Quando esta indaga o que a cisávamos tentar extrair muitos pontos de sua
paciente estava fazendo, ela responde: “um co- história pessoal para compreender que a crise se
ração. Estou me vingando do meu marido”. Com relacionava a um complexo materno engolfador.
a força do lápis ela rasga o papel e, depois de Foi ainda mais interessante observar que, na
algum tempo nesse movimento catártico, a usu- semana seguinte, a mesma usuária chegou no
ária pergunta se teríamos uma fita adesiva: que- ateliê aparentando estar mais calma. Pediu no-
ria remendar o coração. O processo de autocura vamente o hidrocor e começou a desenhar pela
começou a ser constelado. segunda vez a sua família. A mãe continuava
Outro usuário, um jovem recém-chegado para maior que os demais membros mas, dessa vez,
sua primeira internação, se mostrou muito angus- todos tinham um contorno bem definido. Poucos
tiado. Sem compreender onde estava ou o que dias depois a paciente recebeu alta. Mesmo sem
estava acontecendo, perguntava insistentemente conseguir falar sobre a sua vivência, a possibili-
“onde está minha irmã?”. Nesse momento qual- dade de plasmar esse conflito em imagens pare-
quer intervenção verbal se mostrava insuficiente. ce ter sido suficiente para a sua reorganização
A angústia foi crescendo ao ponto de tomá-lo qua- psíquica naquele momento.
se que inteiramente, quando uma das monitoras Fomos observando que nossa disponibili-
o convidou para vir até o ateliê. Chegando lá ele dade para desfrutar daquele espaço como um
pegou a argila e começou a amassá-la com força. momento de livre expressão e espontaneidade,
A monitora, então, convidou-o para jogar os peda- ao fotografar ou desenhar, parecia também uma

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 51


Junguiana
v.39-2, p.43-56

função importante. A nossa disposição em es- senhor pescador. A pequena brecha aberta pela
tar-com e o genuíno interesse pelas produções liberdade do ateliê produziu o desejo de continu-
parecia de alguma maneira ser um convite para ar se expressando também em outros momentos
desfrutar daquele “Momento céu”, como era e superfícies, o que nos pareceu extremamente
chamado por um dos usuários que passou pelo significativo. Será que essa brecha criativa pode-
ateliê. Ver-nos ali plasmando imagens, compar- ria continuar sendo ampliada após a alta?
tilhando daquele espaço sem hierarquias ou Essa tem sido a nossa aposta. Que essa pe-
distanciamentos, tornava possível o baixar das quena flor, nascida em ambiente tão desfavorá-
barreiras, trazendo para o centro a alma de todos vel, possa encontrar solo fértil ou, quem sabe
participantes ali presentes. aos poucos, ir fertilizando os solos áridos dessa
O ateliê é um espaço em que é prezada a sa- sociedade ainda tão hostil às diferenças.
cralidade do encontro. E esse olhar sutil para a
importância das relações de afeto, trazido por
Nise, possibilita uma função catalisadora para Considerações finais
que os sintomas e as narrativas encontrem um Diante dos atuais desafios da Reforma Psiqui-
espaço de elaboração. Os usuários pareciam en- átrica, um ateliê de arte dentro de um hospital psi-
contrar naquele ambiente uma potencialidade quiátrico pode ser inicialmente visto como insufi-
para plasmar, mesmo de uma forma despreten- ciente. No contexto de retrocessos que vivemos,
siosa, seus aspectos mais profundos. E, como sabemos das dificuldades de manter a Rede de
nos ensinou Nise, era a disponibilidade afetiva Atenção Psicossocial no rumo de uma sociedade
dos monitores que tornava isso possível. sem manicômios. Entretanto, o que temos obser-
Aquele usuário que se utilizou do barro para vado é que o estímulo aos processos expressivos,
expressar sua angústia ao se perceber sozinho até num momento de ápice do sofrimento psíqui-
num hospital psiquiátrico passou a frequentar co como na crise, é fundamental para o processo
assiduamente o ateliê. Teve a possibilidade, de reorganização psíquica. Mesmo em circuns-
então, de se utilizar do barro de outra forma, tâncias desfavoráveis, como no contexto hospita-
ao manuseá-lo, amassando, puxando, fazendo lar, a possibilidade de livre criação tem produzido
um jarro, depois pernas. Acabou por moldar um efeitos terapêuticos e mais: tem sensibilizado a
rosto com olhos, bocas e sem nariz. Em seguida, equipe a outras formas de cuidar para além da
pintou-o com as cores do seu time de futebol. medicalização e disciplinamento.
Pediu um espelho para a monitora que o acom- Entendemos que a sacralidade em torno da
panhava e pintou o seu rosto com as mesmas figura de Nise parece congelá-la no passado,
cores que havia pintado sua produção – talvez como se a revolução que começou há mais de
como forma simbólica de reconstruir a visão que 70 anos não fizesse mais nenhum sentido numa
fazia de si mesmo. Foi a partir desse momento época em que já levantamos a bandeira antima-
que se pôde iniciar um diálogo com a monitora, nicomial. É certo que muitas práticas foram atu-
narrando a sua história, suas relações familiares alizadas, mas o trabalho realizado por Nise da
e até mesmo a relação com a sua autoimagem. Silveira, enquanto trabalhadora da saúde men-
Um dos usuários desenhava recorrentemente tal, segue inovador no cuidado aos “inumeráveis
um barco e contava sua história de pescador para estados do ser” ainda nos dias atuais.
os monitores. Certo dia, ao entrar na enfermaria, A partir da nossa experiência, defendemos
nos chamou atenção um barco desenhado no que há um método em Nise que prioriza o afeto e a
ponto mais alto da parede. Logo reconhecemos possibilidade de reorganização psíquica por meio
a imagem: aquele barco era nosso conhecido, da livre expressão das imagens do inconsciente.
víamos ele semanalmente nos papéis daquele Cabe a nós o resgate desse método tão inovador

52 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.43-56

e revolucionário, atualizando-o e semeando-o em sobre como poderíamos aprender a teoria jun-


todo o espaço de cuidado em saúde mental. guiana, ela respondeu certeira: “A melhor forma
Nise nos deixou um legado com a sua obra e para se aprender Jung é no Museu de Imagens
o amplo acervo do Museu de Imagens do Incons- do Inconsciente” (SILVEIRA apud BLOISE, 2021,
ciente. Entendemos que é tarefa nossa dar conti- p. 29). Suas contribuições continuam atuais e ne-
nuidade à sua pesquisa, não só aplicando de for- cessárias, sendo importantes tanto para o avan-
ma criativa o seu método, mas também estudando ço da nossa Reforma Psiquiátrica quanto para o
esse acervo de imagens preciosas e profundas. desenvolvimento contínuo da teoria junguiana. ■
Quando Nise foi questionada por Roberto Fer-
nandes, na entrevista ao Psicopombo de 1998, Recebido em: 22/08/2021 Revisão em: 02/11/2021

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 53


Junguiana
v.39-2, p.43-56

Abstract
Towards a nisean method in mental health: the creation of an art studio in a
psychiatric emergency
This article presents the experience of an ar- chose the Jungian paradigm to support our re-
tistic intervention proposed by the Psychology flections in this experience report. Immersed in
Residency Program in Mental Health at the Ulyss- the work of Dr. Nise and in the images produced
es Pernambucano Psychiatric Hospital (HUP) and at the HUP art studio, we affirm that a Nisean
the University of Pernambuco (UPE) in the city of method should be better known and dissemi-
Recife, Pernambuco, Brazil. Since 2019, we have nated among mental health services. Nise da
joined forces to create an art studio in the hospi- Silveira’s work remains innovative in the care of
tal’s psychiatric emergency ward, in an effort to the “countless states of being” and should be
update Nise da Silveira’s method of responding revised for the advancement of the Psychiatric
to mental health crises. For our methodology, we Reform and the development of Jungian theory. ■

Keywords: Nise da Silveira, analytical psychology, mental health, attention to the crisis, catalyst affection

Resumen
Por un método niseano en salud mental: la construcción de un estudio de arte
en emergencias psiquiátricas
Este artículo relata la experiencia de la inter- las imágenes producidas en el estudio de arte del
vención artística propuesta por el Programa de HUP, defendemos que existe un método niseano
Residencia en Psicología en Salud Mental del Hos- que necesita ser más conocido y difundido en los
pital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano (HUP) y servicios de salud mental. El trabajo realizado por
la Universidad de Pernambuco, en la ciudad de Nise da Silveira sigue innovador en el cuidado a
Recife, PE. Desde 2019, hemos unido fuerzas para los “innumerables estados del ser”, siendo impor-
crear un estudio de arte dentro de la emergencia tante de ser rescatado en el avance de la Reforma
psiquiátrica, buscando actualizar el método de Psiquiátrica y en el desarrollo de la teoría junguia-
Nise da Silveira para abordar la crisis de salud na. El trabajo realizado por Nise da Silveira sigue
mental. En el camino metodológico, elegimos el siendo innovador en el cuidado de los “innumera-
paradigma junguiano como fundamento de nues- bles estados del ser”, siendo importante rescatar-
tras reflexiones articuladas desde el Informe de lo en el avance de la Reforma Psiquiátrica y en el
Experiencia. Inmersas en la obra del Dr. Nise y en desarrollo de la teoría junguiana. ■

Palabras clave: Nise da Silveira, psicología analítica, salud mental, atención a la crisis, afecto catalizador

54 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.43-56

Referências
BLOISE, P. V. A atrevida e o abismo. Junguiana, São Paulo, MELLO, E. C. C.; DAMIÃO, M. Jr. Função transcendente e a
v. 39, n. 1, p. 25-30, jan./set. 2021. imaginação criadora: a criação dos símbolos como criação
de si. In: VIANNA, D. (Org.). Terapia expressiva: a arte
CATTA-PRETA, M. V. Diálogos entre Nise e Jung: a obra do afeto colorindo um hospital. Niterói, RJ: Universidade
expressiva de Nise da Silveira e suas contribuições para a Federal Fluminense, 2014. p. 175-209.
psicologia analítica. Junguiana, São Paulo, v. 39, n. 1,
p. 111-26, jan./jun. 2021. MELLO, L. C. Nise da Silveira: caminhos de uma psiqui-
atra rebelde. Rio de Janeiro, RJ: Automática, 2014.
DALTRO, M. R.; FARIA, A. A. Relato de experiência: uma
narrativa científica na pós-modernidade. Estudos e OLIVEIRA, E. Ouvindo vozes: histórias do hospício e len-
Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, das do encantado. Rio de Janeiro, RJ: Vieira e Lent, 2009.
p. 223-37, jan./abr. 2019.
PENNA, E. O paradigma junguiano no contexto da
DAMIÃO, M. Jr. Fundamentos do método de Nise da Silvei- metodologia qualitativa de pesquisa. Psicologia
ra: clínica, sociedade e criatividade. Junguiana, São Paulo, USP, São Paulo, v. 16, n. 3, p. 71-94, set. 2005.
v. 39, n. 1, p. 91-100, jan./jun. 2021. https://doi.org/10.1590/S0103-65642005000200005

JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de ROLIM, C. V. Entre o ideal e o estigma: a realidade do Hos-
Janeiro: Nova Fronteira, 2006. pital Ulysses Pernambucano. 2019. Monografia (Residência
Médica em Psiquiatria) — Hospital Ulysses Pernambucano,
______. A natureza da psique: a dinâmica do incon- Recife, 2019.
sciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. (Obras Completas de C.
G. Jung vol. 8/2) SILVEIRA, N. Mundo das imagens. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1992.
MAGALDI, F. Mania de liberdade: Nise da Silveira e a
humanização da saúde mental no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: ______. Imagens do inconsciente. Petrópolis, RJ:
Fundação Oswaldo Cruz, 2020. Vozes, 2016.

MELO, W. Maceió é uma cidade mítica: o mito WAHBA, L. L. A criação de sensibilidades: epistemo-
de origem em Nise da Silveira. Psicologia USP, logia e método na psicologia analítica. Psicologia:
São Paulo, v. 18, n. 1, p. 101-124, mar. 2007. Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 35, p. 1-7, 2019.
https://doi.org/10.1590/S0103-65642007000100006 https://doi.org/10.1590/0102.3772e3548

MELO, W.; FERREIRA, A. P. Clínica, pesquisa e ensino:


Nise da Silveira e as mutações na psiquiatria brasileira.
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fun-
damental, São Paulo, v. 16, n. 4, p. 555-69, dez. 2013.
https://doi.org/10.1590/S1415-47142013000400005

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 55


56 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021
Junguiana
v.39-2, p.57-68

Towards a Nisean method in mental health:


creating an art studio in a psychiatric emer-
gency ward

Brena Souza Almeida*


Hamanda de Almeida Pedrosa**
Luana Maria Rotolo***

Abstract Keywords
This article presents the experience of an ar- to mental health crises. For our methodology, we Nise da Silvei-
tistic intervention proposed by the Psychology chose the Jungian paradigm to support our re- ra, analytical
Residency Program in Mental Health at the Ulyss- flections in this experience report. Immersed in psychology,
mental health,
es Pernambucano Psychiatric Hospital (HUP) and the work of Dr. Nise and in the images produced
attention to
the University of Pernambuco (UPE) in the city of at the HUP art studio, we affirm that a Nisean the crisis, cat-
Recife, Pernambuco, Brazil. Since 2019, we have method should be better known and dissemi- alyst affection
joined forces to create an art studio in the hospi- nated among mental health services. Nise da
tal’s psychiatric emergency ward, in an effort to Silveira’s work remains innovative in the care of
update Nise da Silveira’s method of responding the “countless states of being” and should be
revised for the advancement of the Psychiatric
Reform and the development of Jungian theory. ■
* Psychologist, specialist in mental health residency. She is a grad-
uate student finishing her degree in Jungian clinical practice and
is working as an on-duty psychologist at the Ulysses Pernambu-
cano Psychiatric Hospital. Works in a Jungian-based clinic.
E-mail: brenas.psi@gmail.com
** Psychologist, specialist in mental health residency. She is a
graduate student finishing her degree in Jungian clinical prac-
tice and art therapy. She is an on-duty psychologist at the
Ulysses Pernambucano Psychiatric Hospital. Works in a Jungi-
an-based clinic.
E-mail: hamandaap@gmail.com
*** Art therapist and psychologist specialized in Jungian clinical
practice. She conducted a residency in family health, and has
a master’s in public health. She is an on-duty psychologist at
the Ulysses Pernambucano Psychiatric Hospital, and is the Res-
idency Coordinator of Psychology in Mental Health at HUP/
UPE. Works in a Jungian-based clinic.
E-mail: luanamrotolo@gmail.com

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 57


Junguiana
v.39-2, p.57-68

Towards a Nisean method in mental health: creating an art studio in a psychi-


atric emergency ward

Introduction
The name Nise da Silveira has become iconic and we affirm that Nise is still alive and pro-
in Brazil. Even people who are not in the men- foundly inspirational. We did not have the honor
tal health field have heard about this rebellious to meet her, but we feel that she lives and puls-
psychiatrist through movies, documentaries and es in every image that is created in our mental
the press in general. Nise is part of the social im- health art studio.
aginary of Brazil. People working in the mental Driven by this renewing Jungian and Nisean
health area tend to consider her as a pioneer of spirit, in our work in a psychiatric emergency
Brazilian psychiatric reform, and many mental ward for nearly two years, we have been develop-
health services across the country are named af- ing a method of mental health crisis care based
ter her (MAGALDI, 2020; MELO, FERREIRA, 2013; on freedom of expression.
MELO, 2007). The Ulysses Pernambucano Psychiatric Hos-
Despite the fame of “Doctor Nise” – as she pital (HUP) in Recife, Pernambuco, was the sec-
was affectionately known – her vast contribu- ond psychiatric hospital founded in Brazil and,
tions have not been fully revealed. Few people therefore, has a long history in the city and state.
have read her books (much of her work is out of Since 2016 it has been used as a psychiatric
print) and there are few services that continue to emergency unit, working mainly with short-term
apply her pioneering method. Even in academ- hospitalizations. The deinstitutionalization pro-
ia, she is rarely mentioned and there are few cess brought significant changes, transforming
residency and graduate programs that use her the hospital into a crisis response unit that artic-
body of work as part of the curriculum (MAGALDI, ulates substitutive services with territorial-based
2020; MELO, FERREIRA, 2013). How can someone care (ROLIM, 2019).
become an icon and be forgotten? Nevertheless, this process resulted in the clo-
The reasons for this contradiction can be sure of practically all artistic expression activities
multiple, and it is not our aim to analyze them1. that were conducted at the institution. The Ther-
The fact that she was a Jungian and a Commu- apeutic Activities Center (CAT in Portuguese),
nist, as well as a Northeastern woman in this which operated from 1993 to 2015, was an im-
conservative and patriarchal country, may shed portant space for the art production that featured
some light. But the exclusion of her body of work several workshops and creative work carried out
from the mental health field is strange, since it by patients. When the HUP became dedicated ex-
is considered a progressive field in Brazil. Could clusively to emergency care, the administration
the shadowy place that Jungian theory occupies understood that there would no longer be space
in the country’s academia also cast a shadow on for artistic and expressive activities, since the
Nise da Silveira’s work? space for patient care would be the substitutive
We are mental health professionals dedicat- services, and no longer the hospital.
ed to reviving her method, clinical practice, and We agree with the vision of deinstitutionali-
theoretical contributions to our daily practices, zation and the advancement of the Psychiatric
Reform, and defend that psychiatric hospitals
remain in the past. However, we understand that
1
For this debate we suggest to read Melo (2007) and Magaldi
(2020). as long as such facilities continue to exist, it is

58 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.57-68

better for them to have spaces for free creation through experience becomes an infinite source of
than to be limited to medication and discipline. meanings and possibilities that can be analyzed.
Failure does so would reinforce the hegemonic This does not mean that when we describe
thesis in psychiatry that symptoms are merely our practice, we are only addressing individual
physical and chemical manifestations that can experience. Daltro and Farias (2019) affirm that
only be controlled by medical treatment. creating a narrative through a significant expe-
In this context, we would like to present the ex- rience articulated with a theoretical field allows
perience of creating an art studio inside an emer- greater theoretical deepening.
gency psychiatric hospital. Although Nise had In this article, our object of analysis is the
worked in a traditional psychiatric hospital with experience lived in the HUP art studio. We thus
chronically ill patients (and those who became produce meanings as both authors and subjects
chronic through long institutionalization) we see of the experience, articulating the simultaneity of
the potential of her method, not only for long-term thinking and feeling.
care, but also for crisis response, when this care Daltro and Farias (2019) also emphasize that
must be restricted to a few days of contact. an experience report must have a theoretical
The statements of several patients – or cli- framework that supports their reflections, and
ents, as Nise respectfully called them – seem we have used a Jungian paradigm.
to reinforce our defense: “When are we going to We agree with Penna (2005) who proposes the
paint again?”, “Will we go to the art studio to- challenge of articulating analytical psychology in
day?”, “Can I keep coming here to draw after I am the field of science, as it allows us to observe in-
discharged?”. dividual and collective phenomena beyond the
With this brief account, we hope to continue pragmatics of clinical practice. The Jungian para-
to inspire Nise da Silveira’s recognition, not only digm considers the totality of the individual, artic-
as a mythical figure, but as a proponent of a liv- ulating the external world to individuality.
ing method necessary for the advancement of According to Wahba (2019), knowledge is
Brazilian psychiatric reform. subjected to the researcher’s “personal myth”,
and it is important to arrive at a true expression
Methodological path: an experience of the lived experience, that is, a detailed pres-
report seen through a Jungian entation of everything that was observed. Also,
perspective according to Wahba (2019), research is not just a
This article uses an experience report as theoretical/practical articulation, but a complex
a methodological resource. Daltro and Farias questioning about affections and practice.
(2019) defend the experience report as an op- We start by presenting the theoretical frame-
tion for the creation of scientific narratives, es- work and then our experience in the HUP art stu-
pecially in the field of applied human sciences, dio. We hope to contribute to outlining what we
such as psychology. believe to be the Nisean method in dealing with
As a scientific method, the experience report mental health crises.
is a tool that articulates elements of a unique
experience analyzed from the perspective of het- For a Nisean method of mental
erogeneity. Taking a distance from the premises health care
of modern science – which seeks the neutrality
and homogeneity of knowledge – an experience One night [...] we pointed a telescope at
report allows an opening to subjective processes mental illness and found that the center
and productions. As stated by Daltro and Farias of the universe is affection, and that af-
(2019), the construction of a reflective synthesis fection can transform any mental disease.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 59


Junguiana
v.39-2, p.57-68

It is affection that is the therapeutic pro- possible to demonstrate emotion and rebuild
cess; it is what makes it possible to move personality in such an inhospitable and hostile
forward. Doctor Nise da Silveira, the Gali- environment? (SILVEIRA, 1992).
leo of medicine, discovered that affection Nise was not content with the theories and
is the center of the universe (testimony by techniques that were presented to her. Through
Vitor Pordeus2’, cited in MAGALDI, 2020, human contact with every patient she realized
p. 272 [free translation]). that these individuals, apparently so inacces-
sible, did preserve their affections, their intel-
Doctor Nise was called a rebel for not con- ligence and their human condition, which had
forming to hegemonic psychiatric practices been so brutally denied. It was enough to offer
and was truly revolutionary when she affirmed a free environment and affectionate contact to
that affection should be at the center of mental provide the necessary support for the individual
health care. to return little by little and share this reality (SIL-
Quite differently than most doctors of the VEIRA, 2016).
time (and perhaps from most today), Nise al- It is correct to say that, in her practice, Nise
lowed herself to affect and be affected through discovered incredible artists, and contributed
encounters with men and women who were de- immensely to a change in the social view of mad-
humanized, silenced, and imprisoned in the dark ness. But her greatest discovery was the creation
environment of asylums. Nise fought against all of a therapeutic method based on the develop-
forms of incarceration and segregation in this ex- ment of affective bonds and the free expression
clusionary society (perhaps because she was a of images of the unconscious (DAMIÃO, 2021;
prisoner during the Getúlio Vargas dictatorship), MAGALDI, 2020).
and was able to put herself in the place of peo- After standing by her clients, ensuring rec-
ple objectified by psychiatric practice (MELLO, ognition of their humanity, Nise began to un-
DAMIÃO, 2014; OLIVEIRA, 2009). derstand the hermetic language of psychosis.
It was in one of her experiments in the Occu- Starting at a non-verbal level, where most of her
pational Therapy and Rehabilitation Ward (STOR patients found themselves, Nise developed a tru-
in Portuguese) of the Hospital Pedro II, which ly active therapeutic method, learning to read the
began in 1946, that Nise developed her revolu- narratives of the images of the unconscious that
tionary care method. Mainly in the painting and became visible through the productions in the art
sculpting studio developed in partnership with studio. With simple and non-invasive means in a
the artist Almir Mavignier, Nise began to see free and safe environment, Nise achieved what
something that she had intuited about since her she considered to be the biggest challenge in
first contact with patients at the Praia Vermelha psychiatric practice: to gain access to the inner
Hospital, where she was a resident: psychiat- world of the psychotic (SILVEIRA, 1992; 2016).
ric books could not explain the phenomenon of While Nise found in Jung’s work the theo-
psychic disorders (MELLO, 2014). The treatment retical support that was lacking in psychiatric
methods were far from being effective, reinforc- training, we understand that she went beyond
ing her colleague’s perception of what was then her master, giving form to a true clinical treat-
called “affective apathy” and “personality de- ment of psychosis. It was not by chance that
terioration” in schizophrenia. How would it be Jung himself promptly answered a letter that
Doctor Nise had sent to him in 1954, with pho-
2
Vitor Pordeus is a doctor and actor, one of the creators of Ho- tographs of mandalas made by clients at STOR.
tel da Loucura [Hotel of Madness], which since 2012 has been Jung probably saw the grandiosity of this expe-
operating at the Engenho de Dentro Psychiatric Complex, in
Rio de Janeiro. rience and in 1957 invited her to study for a year

60 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.57-68

at the C. G. Jung Institute in Zurich (CATTA-PRE- the person’s soul (Fernando Diniz3 in SIL-
TA, 2021; MELLO, 2014). VEIRA, 2016, p.15 [free translation]).
In his first years at Burghölzli, Jung was also
moved by the question: “What goes on in the Nise, anchored in Jungian theory, understood
spirit of the mentally ill?” (JUNG, 2006). His ex- psychosis as a shattering of ego before the un-
perience as a psychiatrist, although a posteri- conscious pressure. The individual becomes
ori, resulted in the development of some main incapable of bearing the conflicts lived in his
pillars of Jungian theory, such as archetypes reality, and is flooded by the unconscious – or
and collective unconscious. However, while “taken by its images”, as Fernando Diniz used
Jung took the clinic to the laboratory, Nise saw to say. In this view, Nise states that “to paint is
the opportunity to use the art studio as a clini- to act”, defending artistic expression as a legiti-
cal lab for the production of images by her cli- mate therapeutic method – “a method of action
ents. The space of free expression increasingly able to defend itself from the flooding by the
took on the guise of a method: a Nisean method contents of the unconscious” (SILVEIRA, 2016,
(SILVEIRA, 1992; 2016). p.15 [free translation])
She had done nothing more than what Jung The therapeutic basis of plastic expression is
had always defended: she used his theory and centered on the opportunity to shape the images
continued to develop it from empirical data. How- of the unconscious on an external screen, thus
ever, unlike what took place with Jungian theory providing the ego’s differentiation from “invad-
(despite his protests), Nise was not interested in ing” images. This process is described by Nise as
institutionalizing her knowledge. As a defender a “disidentification” of the ego made possible by
of free thought and free creation, this rebel psy- the action of “depotentionalizing” the strength
of archetypal images activated by a crisis (SIL-
chiatrist who was one of the pioneers of Jungian
VEIRA, 2016).
theory in Brazil was not one of those responsible
For Nise and Jung, the psyche is a living dy-
for its institutionalization and formalization in
namic system in constant movement towards its
the country (MAGALDI, 2020). Could this be one
own regulation. This self-regulatory process is
of the factors that has contributed to her ideas
developed mainly through the encounter of polar
being forgotten?
opposites, which compensate each other. The
From our experience, we understand that
union of these poles, through a conscious-un-
Nise had developed her own method, and it is
conscious dialogue, is what Jung called the
imperative that it become better known not only
Transcendent Function. According to the creator
by the Jungian community in Brazil and through-
of analytic psychology, it is through this dialog-
out the world, but by all of those who work in
ical process – which is often conflictive – that
the mental health field from the viewpoint of
psychic energy is transformed. Symbols are the
liberation. We will now present the theoretical
fruit of this long struggle – the third one, which
framework for what we understand to be the
is shaped through the dialectical encounter be-
Nisean method, to allow discussing the experi-
tween conscious and unconscious (JUNG, 2012).
ence at the HUP art studio.
For Nise, “to paint is to act” not only because
artistic expression is a form of deidentification
“If images take a person’s soul, to paint of the ego from archetypal images, but also be-
is to act”
3
Fernando Diniz was one of the clients of the Museu das Ima-
I moved into the world of images. The soul gens do Inconsciente [Museum of the Images of the Uncons-
cious]. His vast work was one of Nise da Silveira’s main resear-
changed to something else. Images take ch materials.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 61


Junguiana
v.39-2, p.57-68

cause it is a means of symbolic production with Based on the ideas of Nise, Mello and Damião
which we transform psychic energy: (2014) point to this characteristic of affection as
a link between the subject and the world:
The psychic process develops its dyna-
mics through the creation of symbolic The importance of affection is that it is a
images. ‘A symbol is a psychological me- disposition by which the individual takes
chanism that transforms energy’. Thus, root and opens himself qualitatively to the
the objectification of symbolic images world; affection is a way of understanding
in drawing or painting can promote the the world. Affection would then recover
transfer of energy from one psychic level the qualitative dimension, the chain of
to another. An image is not something sta- relationships that roots man and world.
tic. It is alive, active and truly possesses This rooted relationship happens through
a curative power (SILVEIRA, 2016, p. 135 affection, and what was not previously re-
[free translation]). ported becomes a more or less clear and
articulated idea, thanks to the support of
In the books and documentaries in which Nise consciousness (p.193 [free translation]).
analyzed the production of some of her clients it
is possible to follow this process of psychic en-
For individuals who have lost part of contact
ergy transformation, as soon as the images be-
with shared reality and have taken refuge in the
gin to take shape. Along with the development
inner world, affection is the bridge that allows
of themes, symbols and forms of expression, it
a return. For this reason, affection is imperative
was also possible to observe changes in the re-
for Nise: it enables “healing” because without
lationships of clients with their own environment
a relationship, there is no therapeutic process.
– revealing how much this process of psychic
Being let through the web of a relationship is
reorganization, through images, had significant
what makes possible the creative collage of the
therapeutic effects (SILVEIRA, 2016).
shattered ego. Affection is the glue and the im-
For the transformation to occur, it was neces-
ages are the fragments to be psychically reorgan-
sary to offer a space of freedom and respect for
ized. This bricolage produces new arrangements
each person’s unique expression. It is difficult to
for the ego, perhaps larger and more significant
face threatening images directly, especially for
those who have lived the traumatic and painful (MAGALDI, 2020, SILVEIRA, 2016).
experience of ego shattering. One of Nise’s most Jung (2012), when discussing the Transcend-
valuable contributions was to identify the cen- ent Function in the book On the Nature of the
trality of affection in mental health care. Without Psyche, states that the “principle of creative
affectionate support, it is much more difficult for elaboration”, which would be the access to the
threatening images to emerge and take shape. unconscious through expressive resources, re-
It is not by chance that the presence of mon- quires the “principle of understanding”, that is,
itors in art studios is essential. Nise da Silveira the capacity of the conscience to elaborate these
(2016) understood that the affectionate presence images and symbols. If the transcendent func-
of the monitors should serve as a catalyst for the tion is a dialogue between the conscious and
self-healing process, stimulating the unraveling of the unconscious, it seems evident that creative
the images. The support of the monitoring team expression could not renounce the role of the
provides a non-threatening environment, serving conscious. Every dialogue requires the flow of
as a first recognition of invasive images and, thus, exchange between the parts, widening them by
helping in the process of ego restructuring. incorporating even then unknown aspects.

62 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.57-68

Nise, however, observed that the opportuni- greater opportunity, offering activities that
ty for expression produces therapeutic effects, allow the expression of non-verbalized ex-
even when the comprehension of consciousness periences by someone who is immersed
is not possible, such as the case of psychotic into the deep unconscious, that is, in the
patients: “the images of the unconscious ob- archaic world of thoughts, emotions and
jectified in painting can receive a certain type impulses beyond the reach of the elabora-
of treatment, even if there is no clear perception tions of reason and word (SILVEIRA, 1992,
of their profound meanings” (SILVEIRA, 2016, p. p.16 [free translation]).
146 [free translation]).
Based on her vast experience, Nise defends Based on these premises, Nise argues that
that, in the first moment, it is necessary to “de- creative, active, free and affectionate expression
potentionalize” the energetic charge of archetyp- – initially called Occupational Therapy and later
al images through expression, so that in a later “Emotion-focused coping” – is recognized as an
moment, when the individual is closer to con- authentic therapeutic method, and affirms that
sciousness, this elaboration becomes viable: it is the best indicated for application in public
mental health institutions (SILVEIRA, 2016).
In practice with neurotics, as a rule, a syn-
thetic work that unites intellectual and Image-continent: the experience of an
emotional interpretation becomes enor- art studio in dealing in mental health
mously difficult with psychotics. In them, crises
images come from very deep strata of the To open a space of free creation inside a
unconscious, extremely distant from the psychiatric hospital amid so many fences, walls
conscious, layered in very strange forms and barriers, may seem small, but it has been
and carrying a strong energetic charge. a lot. To give space to colors in a gray environ-
Before being “depotentionalized” of their
ment generates many contrasts. To recall Drum-
charges, at least partially, it would not be
mond’s4 poetic words, the art studio at HUP is
possible to grasp them by interpretations.
like a simple flower that is capable of sprouting
This will only become possible after they
from the asphalt.
go through a process of emotional trans-
The project began in 2019, when the Psychol-
formation and get closer to the conscious
ogy Residency in Mental Health program at HUP
(SILVEIRA, 2016, p.146 [free translation]).
and the University of Pernambuco (UPE) started to
conduct the Art and Mental Health Seminar at the
For this reason, Nise proposes in her book O
institution as part of the required clinical training.
Mundo das Imagens [The World of Images] (1992)
Students from the Visual Arts course at the Feder-
that mental health care, especially in the most
al University of Pernambuco (UFPE) carried out ex-
difficult cases, should start at a non-verbal level:
tension work in the seminar, adding their artistic
sensibilities to the vision of psychology.
Communication with a schizophrenic, in
In 2020, the University suspended all in-per-
severe cases, is unlikely to succeed if it
son activities because of the Covid-19 pandemic,
is initiated at the verbal level of our com-
reducing the team to two psychology residents
mon interpersonal relationships. This will
and the project coordinator. After a few months
only happen when the curative process
without knowing how to maintain the interven-
is more advanced. It will be necessary to
start from a non-verbal level. It is then that 4
We are referring to the poem “A Flor e Nausea” from the book
occupational therapy can be inserted with A Rosa do Povo, by Carlos Drummond de Andrade.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 63


Junguiana
v.39-2, p.57-68

tion in this new context, we decided to expand hunger for space of expression, asking for paper,
the team’s interdisciplinarity, and invited resi- pens or using whatever it takes to write and draw
dents of psychiatry and nursing from the HUP to on the walls of the ward.
participate. Something that was not intended at We noticed this desire to express themselves
the beginning has become a real gift. The project when, without us needing to say a word, some
profited considerably from the partnership with took the pencils and painted and began to draw
different professionals in training, each with and write – sometimes in incomprehensible lan-
their own perspective but all attentive and sen- guages. During studio time we would be around,
sitive to the deep process of expression of the ready to help, listen and watch carefully. Our main
participants in the art studio. function is to provide resources for expression to
One of the psychiatry residents immediately occur. We provide paper, pencils, paint, clay; we
asked: “will we be able to read Nise da Silvei- play instrumental music in the background and
ra?” and that in itself was significant. It was even make our attention and affection available to
more touching when another resident said that those who feel the call for expression.
listening to patients in the art studio was entire- It is wonderful to observe how the “configured
ly different from listening to them in the doctor’s unit of images” described by Nise materializes
office: “Here it seems that we see the person and before us. Houses, cats, whales, hearts, seas,
not only the disease”. At these moments, it was hills, and stars spontaneously appear. The more
possible to contemplate the movement that a deeply immersed in the collective unconscious
flower makes when it sprouts from the concrete. – or the more “disorganized” from a psychiatric
For 4 months, we performed weekly interven- perspective – the more abstract the images are.
tions, first in the female ward and later in the This does not mean, however, that they are not
male ward. During the second semester of 2020, a form of communication. As Nise teaches us,
we carried out the project entitled “The Walls when we attentively observe with genuine inter-
Speak: a procedural mural”. It consisted in creat- est how expression takes place, each stroke is a
ing mural posters with the drawings produced in form of expression and communication.
the “creative encounters”. Afterwards, we would One day, a patient who was having frequent
become more daring and began to freely paint crises of heteroaggressiveness came to the
the walls of the institution. It was beautiful to see courtyard where the art studio was located. She
the patients’ satisfaction when they were able to picked up a red pencil and began to draw with
step back and see their creations on the wall. tremendous energy, filling up the entire page.
One came and said: “I want to leave my mark Disregarding any kind of edge or boundary, her
here too, doctor!” strokes crossed over the paper to the table, al-
Art students continued to participate in 2021 most reaching the monitor’s clothes. When the
and the team grew even more with former resi- monitor asked what the patient was doing, she
dent volunteers who wanted to continue to col- responded: “A heart. I am taking revenge on my
laborate with the HUP art studio. In 2021, we husband”. She tore at the paper with the strokes
meet every Friday afternoon, combining moments of her pencil, and after some time in this cathar-
of more individualized expression with collective tic movement she asked if we had adhesive tape:
production, painting the hospital walls together. she wanted to mend her heart. The process of
Each meeting is a little oasis of freedom and self-healing had begun.
creation. We meet a little earlier to set up the Another patient, a young man who had recent-
space and organize all the art materials we have. ly been admitted for the first time, was very dis-
Without having to call them, patients come and tressed. Without realizing where he was or what
begin to prepare. Most of the time, they reveal a was going on, he insistently asked: “Where is

64 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.57-68

my sister?” At that time, any verbal intervention We realized that our willingness to also enjoy
would have been insufficient. The anguish grew that space as a moment of freedom of expres-
to the point of almost defeating him, until one of sion and spontaneity, when drawing with them
the workshop monitors invited him to go to the or photographing, also seemed to have an im-
art studio. There he took some clay and began to portant function. Our genuine interest in the pa-
press hard on it. Then the monitor asked him if he tients’ artwork seemed to be an invitation to en-
would like to throw the pieces on the wall. He did joy that “heavenly moment”, as it was called by
that while repeatedly shouting: “Where is my sis- one of the patients who came to the art studio. To
ter?” The force he used to throw the clay against see us there shaping images, sharing that space
the tiled wall made it stick, and he had to go to without hierarchy or distance, allowed us to low-
several times to remove the pieces, replaying the er defenses, bringing the soul of all participants
scene as many times as necessary. It seemed to the center of the experience.
that he needed that physical release to deal with The art studio is a space where the sacred-
the growing anguish, and if he did not have this ness of the encounter is respected. Nise’s subtle
plastic material and the monitor’s affectionate perspective on the importance of affectionate
support, he probably would have had an episode relationships provides a catalyzing function for
of psychomotor agitation and heteroaggressivity. symptoms and narratives to find space for elabo-
Even when we cannot observe the creation ration. The patients seem to find in that environ-
of a series of images due to the short hospital- ment a potential to unpretentiously shape their
ization periods, it is possible to validate the af- deepest aspects. And, as Nise taught us, it was
firmations of Jung and Nise about images being the affectionate availability of the monitor that
self-portraits of a psychic situation. made this possible.
One of the patients who had difficulty ex- The patient who used the clay to express his
pressing herself verbally due to her psychopatho- anguish at finding himself alone in the psychi-
logical condition began to draw a female figure. atric hospital began to attend the studio every
She said it was her mother. She then placed oth- week. He had the chance to use clay again in
er figures around and said that they were her, her different ways: handling, pressing, pulling and
brothers and her father. After a while, the mother making a jar and then the legs. He ended up also
figure had expanded to the point where all other molding a face with eyes and mouth, but without
figures disappeared. The final image looked like a nose. He then painted it with the colors of his
a massive abstract octopus, with many tenta- soccer team. He asked the monitor for a mirror
cles. It was not necessary to know much about and painted his own face with the same colors
her personal history to understand that the crisis that he had used for his sculpture – perhaps as a
was related to an engulfing maternal complex. symbolic way of reconstructing his vision of him-
The following week, it was even more inter- self. From this moment on, he began a dialogue
esting to observe the same patient, who seemed with the monitor, narrating his personal history,
much calmer. She asked for a pencil again and family relations and even the relationship with
began to draw her family for the second time. his self-image.
The mother was still bigger than the other family One of the patients repeatedly drew a boat
members, but this time all the figures had a clear and told to the workshop monitors his story as a
outline. A few days later, the patient was dis- fisherman. One day, we noticed a boat drawn on
charged. Even without being able to talk about the highest part of the wall of his ward. Soon we
her experience, the possibility of shaping this recognized the image: that boat was known to us
conflict in images seemed to be enough for her because we would see it every week at that old
psychic reorganization at that time. fisherman’s work. The small gap opened by the

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 65


Junguiana
v.39-2, p.57-68

studio’s freedom generated the desire to con- make sense at a time when we already have an
tinue expressing himself in other moments and anti-asylum movement. Many practices have cer-
on other surfaces, which we consider extremely tainly been updated, but Nise da Silveira’s work
significant. Would this creative gap continue to as a mental health professional taking care of
widen after the patient is discharged? the “countless states of being” continues to be
This is our hypothesis. That a small flower, innovative today.
sprouted in an unfavorable environment, can Our experience allows us to state that Nise
find fertile soil. Or, perhaps, little by little, can provided a method that prioritizes affection
begin to fertilize the barren soil of this society so and the possibility for psychic reorganization
hostile to the different. through the free expression of images of the un-
conscious. It is up to us to rescue this innovative
and revolutionary method, and review and share
Final considerations it in mental health spaces.
Given the current challenges of the Psy-
Nise’s work and the extensive collection of
chiatric Reform in Brazil, an art studio within a
the Museum of the Images of the Unconscious
psychiatric hospital may initially be seen as in-
provide us with a legacy. We understand that it
sufficient. In the context of the setbacks that
is our task to continue her research, not only ap-
we have been experiencing, we understand the
plying her method creatively, but studying these
difficulties faced in maintaining the Psychosocial
precious and profound images files.
Attention Network on the path to a society with-
When, in an interview for Psicopombo (1998),
out asylums. However, what we have observed
Nise was asked by Roberto Fernandes about
is that the stimulation of expressive processes
how we could learn Jungian theory, she deftly
– even during a peak of psychological distress
answered: “The best way to learn Jung is at the
experienced in a mental health crisis – is essen-
Museum of the Images of the Unconscious” (SIL-
tial for the process of psychic reorganization.
VEIRA apud BLOISE, 2021, p. 29). Her contribu-
Even in unfavorable circumstances, such as in a
tions remain contemporary and necessary, and
hospital context, an opportunity for free creation
are important not only for the advancement of
produced therapeutic effects. Furthermore, it has
Psychiatric Reform, but also for the continuous
pointed towards other ways of providing care be-
development of Jungian theory. ■
yond medicalization and discipline.
We understand that Nise’s sacred treatment
Received: 08/22/2021 Revised: 11/02/2021
seems to freeze her in the past, as if the revo-
lution started more than 70 years ago no longer

66 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.57-68

Resumo
Por um método niseano na saúde mental: a construção de um ateliê de arte na
emergência psiquiátrica
O presente artigo relata a experiência da in- como fundamento de nossas reflexões articula-
tervenção artística proposta pelo Programa de das a partir do Relato de Experiência. Imersas
Residência de Psicologia em Saúde Mental do nas obras da Dra. Nise e nas imagens produzi-
Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano das no ateliê de arte do HUP, defendemos que
(HUP) e Universidade de Pernambuco, na cidade existe um método niseano que precisa ser mais
de Recife, em Pernambuco. Desde 2019, viemos bem conhecido e disseminado nos serviços de
somando forças para a criação de um ateliê de saúde mental. O trabalho realizado por Nise da
arte dentro da emergência psiquiátrica, buscan- Silveira segue inovador no cuidado aos “inume-
do atualizar o método de Nise da Silveira na aten- ráveis estados do ser”, sendo importante de ser
ção à crise em saúde mental. No percurso meto- resgatado no avanço da Reforma Psiquiátrica e
dológico, escolhemos o paradigma junguiano no desenvolvimento da teoria junguiana. ■

Palavras-chave: Nise da Silveira, psicologia analítica, saúde mental, atenção à crise, afeto catalisador

Resumen
Por un método niseano en salud mental: la construcción de un estudio de arte
en emergencias psiquiátricas
Este artículo relata la experiencia de la inter- las imágenes producidas en el estudio de arte del
vención artística propuesta por el Programa de HUP, defendemos que existe un método niseano
Residencia en Psicología en Salud Mental del Hos- que necesita ser más conocido y difundido en los
pital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano (HUP) y servicios de salud mental. El trabajo realizado por
la Universidad de Pernambuco, en la ciudad de Nise da Silveira sigue innovador en el cuidado a
Recife, PE. Desde 2019, hemos unido fuerzas para los “innumerables estados del ser”, siendo impor-
crear un estudio de arte dentro de la emergencia tante de ser rescatado en el avance de la Reforma
psiquiátrica, buscando actualizar el método de Psiquiátrica y en el desarrollo de la teoría junguia-
Nise da Silveira para abordar la crisis de salud na. El trabajo realizado por Nise da Silveira sigue
mental. En el camino metodológico, elegimos el siendo innovador en el cuidado de los “innumera-
paradigma junguiano como fundamento de nues- bles estados del ser”, siendo importante rescatar-
tras reflexiones articuladas desde el Informe de lo en el avance de la Reforma Psiquiátrica y en el
Experiencia. Inmersas en la obra del Dr. Nise y en desarrollo de la teoría junguiana. ■

Palabras clave: Nise da Silveira, psicología analítica, salud mental, atención a la crisis, afecto catalizador

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 67


Junguiana
v.39-2, p.57-68

References
BLOISE, P. V. A atrevida e o abismo. Junguiana, São Paulo, MELLO, E. C. C.; DAMIÃO, M. Jr. Função transcendente e a
v. 39, n. 1, p. 25-30, jan./set. 2021. imaginação criadora: a criação dos símbolos como criação
de si. In: VIANNA, D. (Org.). Terapia expressiva: a arte
CATTA-PRETA, M. V. Diálogos entre Nise e Jung: a obra do afeto colorindo um hospital. Niterói, RJ: Universidade
expressiva de Nise da Silveira e suas contribuições para a Federal Fluminense, 2014. p. 175-209.
psicologia analítica. Junguiana, São Paulo, v. 39, n. 1, p.
111-26, jan./jun. 2021. MELLO, L. C. Nise da Silveira: caminhos de uma psiqui-
atra rebelde. Rio de Janeiro, RJ: Automática, 2014.
DALTRO, M. R.; FARIA, A. A. Relato de experiência: uma
narrativa científica na pós-modernidade. Estudos e OLIVEIRA, E. Ouvindo vozes: histórias do hospício e len-
Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. das do encantado. Rio de Janeiro, RJ: Vieira e Lent, 2009.
223-37, jan./abr. 2019.
PENNA, E. O paradigma junguiano no contexto da
DAMIÃO, M. Jr. Fundamentos do método de Nise da Silvei- metodologia qualitativa de pesquisa. Psicologia
ra: clínica, sociedade e criatividade. Junguiana, São Paulo, USP, São Paulo, v. 16, n. 3, p. 71-94, set. 2005.
v. 39, n. 1, p. 91-100, jan./jun. 2021. https://doi.org/10.1590/S0103-65642005000200005

JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de ROLIM, C. V. Entre o ideal e o estigma: a realidade do Hos-
Janeiro: Nova Fronteira, 2006. pital Ulysses Pernambucano. 2019. Monografia (Residência
Médica em Psiquiatria) — Hospital Ulysses Pernambucano,
______. A natureza da psique: a dinâmica do incon- Recife, 2019.
sciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. (Obras Completas de C.
G. Jung vol. 8/2) SILVEIRA, N. Mundo das imagens. Petrópolis, RJ: Vozes,
1992.
MAGALDI, F. Mania de liberdade: Nise da Silveira e a
humanização da saúde mental no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: ______. Imagens do inconsciente. Petrópolis, RJ:
Fundação Oswaldo Cruz, 2020. Vozes, 2016.

MELO, W. Maceió é uma cidade mítica: o mito WAHBA, L. L. A criação de sensibilidades: epistemo-
de origem em Nise da Silveira. Psicologia USP, logia e método na psicologia analítica. Psicologia:
São Paulo, v. 18, n. 1, p. 101-124, mar. 2007. Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 35, p. 1-7, 2019.
https://doi.org/10.1590/S0103-65642007000100006 https://doi.org/10.1590/0102.3772e3548

MELO, W.; FERREIRA, A. P. Clínica, pesquisa e ensino:


Nise da Silveira e as mutações na psiquiatria brasileira.
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fun-
damental, São Paulo, v. 16, n. 4, p. 555-69, dez. 2013.
https://doi.org/10.1590/S1415-47142013000400005

68 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.69-78

Do chão do pátio a um encontro


possível: argila no tratamento de um
paciente psiquiátrico

Sergio Luiz Alécio Filho*

Resumo Palavras-chave
O presente texto tem como objetivo fazer um saúde mental,
relato da experiência do atendimento psicológico argila, recurso
realizado com um paciente residente em um hospi- expressivo,
despotencial-
tal especializado em saúde mental. Ele apresenta-
ização.
va sintomas de auto e heteroagressões, além de
realizar um ritual de passar as próprias fezes nas
paredes do hospital. Foi proposta uma intervenção
com o uso da argila como recurso expressivo. Esse
material foi apresentado ao paciente durante as ses-
sões que ocorriam três vezes por semana durante o
período de um ano. Ao longo do trabalho foi pos-
sível perceber a melhora dos sintomas agressivos
e a remissão dos rituais com as fezes. A argila pro-
porcionou uma despotencialização dos conteúdos
agressivos da psiquê do cliente e serviu como obje-
to intermediário entre paciente e psicoterapeuta. ■

* Psicólogo pela Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP).


Candidato a analista pelo Instituto de Psicologia Analítica de
Campinas (IPAC), ligado à Associação Junguiana do Brasil
(AJB) e ao Instituto C.G. Jung International Association for
Analytical Psychology (IAAP). Foi estagiário do Museu de Im-
agens do Inconsciente do Rio de Janeiro.
E-mail: sergio_aleciofilho@yahoo.com.br

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 69


Junguiana
v.39-2, p.69-78

Do chão do pátio a um encontro possível: argila no tratamento de um


paciente psiquiátrico

Desumanizado1 receber mais uma sessão de eletrochoque. Seu


Me botaram neste hospital colega médico solicitou a ela: “Aperta o botão”,
Amarrado no meu corpo, mente e espaço em referência ao aparelho de eletroconvulsote-
Sufocado nesta ala rapia e “Nise recusou-se firmemente a acionar
Multiplicada por mil alas iguais o aparelho; sua saudável rebeldia já se mani-
Me fizeram tudo isso para meu bem festava” (MELLO, 2014). Segundo ela, nesse
Na Saúde que querem pra mim momento, nasceu a psiquiatra rebelde, como
Tomando apenas remédio em cima de ficou conhecida pelo seu modo de trabalhar.
remédio Com esse espírito transgressor e contrário à Psi-
Me sinto, triste e dilacerado, quiatria Clássica, ela fundou o Museu Imagens
Desumanizado. do Inconsciente, que hoje tem o maior acervo
mundial de obras de pacientes psiquiátricos, e
Atualmente, um dos desafios na área de Saú- a Casa das Palmeiras, considerada um dos pri-
de Mental e da Reforma Psiquiátrica consiste em meiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
como tratar o paciente de forma mais humaniza- do Brasil, onde o atendimento é realizado fora
da, de modo que o tratamento não fique apenas do contexto hospitalar. Além disso, Nise criou
focado no tradicional modelo biomédico. Além o serviço de terapêutica ocupacional, em que
disso, segundo o psiquiatra Paulo Amarante os clientes participavam de oficinas artísticas
(1999), o desafio é “o de construir um novo lugar para desenvolverem a livre expressão de seus
social para a loucura, para a diferença, a diversi- conteúdos internos.
dade, a divergência” (p. 49). A expressão livre, por meio do desenho, da
A Psiquiatria Clássica está centrada na do- pintura e da modelagem, na área da Psiquia-
ença dos indivíduos e no uso de medicamentos. tria e Psicologia, tornou-se de interesse cien-
Os pacientes muitas vezes são rotulados e re- tífico, entre outros, pelo seu potencial como
duzidos a um número dos manuais de Psiquia- meio de acesso menos difícil ao mundo interno
tria. Esquece-se de observá-los integralmente e do paciente psiquiátrico (SILVEIRA, 1992). Nem
compreender seus sintomas como uma trama de sempre a linguagem verbal consegue abarcar a
significados internos, simbólicos e relacionais. totalidade da psiquê e pode ocorrer uma cristali-
Segundo Hillman (1993), há “problemas que não zação de aspectos verbais. Nesse sentido, a uti-
são meramente atos comportamentais classifi- lização de técnicas não verbais pode auxiliar no
cáveis ou categorias médicas, são acima de tudo surgimento de conteúdos simbólicos que apare-
experiências e sofrimentos”. cem nas produções plásticas e pode “recolocar
No Brasil, a psiquiatra Nise da Silveira foi os verbos em movimento” (GOUVÊA, 1990).
pioneira nas ideias de Jung e na busca por um Segundo Nise da Silveira, a arte pode dimi-
tratamento humanizado para os pacientes dos nuir a força dos conteúdos internos ameaçado-
manicômios. Certa vez, Nise relatou que estava res que formam um redemoinho perturbador na
no hospital acompanhando um paciente que iria psiquê do paciente. Assim, nos diversos modos
de expressão, o paciente pode dar forma aos
1
Parodia feita por mim do poema “Desfavelado” de Carlos fragmentos do seu drama interno e às emoções,
Drummond de Andrade (1985).

70 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.69-78

além de despotencializar figuras internas pertur- Violet Oaklander (1974) acrescenta que esse
badoras (SILVEIRA, 1982). material tem propriedades flexíveis e maleáveis
Nise priorizava também o afeto catalizador, que se adaptam a diversas necessidades. A argi-
que ressalta a importância do vínculo afetivo la tem como qualidade a capacidade de promo-
como propiciador de desenvolvimento e surge ver a manifestação ativa de processos internos
com o contato humano de qualidade. Em seu primários, proporcionando fluidez entre o mate-
trabalho inovador no Museu Imagens do Incons- rial e o manipulador.
ciente, na cidade do Rio de Janeiro, ela desen- A partir dos referenciais acima citados, pre-
volvia oficinas terapêuticas com seus clientes tendo relatar uma experiência de intervenção
e destacava a importância da presença de um psicológica com o uso da argila junto a um pa-
monitor acompanhando cada paciente. A função ciente psiquiátrico, acometido por transtorno
do monitor era de incentivar o paciente e aceitar mental grave de longa evolução, classificado
incondicionalmente sua produção plástica sem conforme categoria proposta por Furtado (2001).
um julgamento estético. Essa função foi deno- O intuito foi de minimizar o sofrimento psíquico
minada de afeto catalizador. Por exemplo, um do indivíduo, oferecendo um espaço de escuta,
cliente das oficinas expressivas, chamado Fer- acolhimento e ajuda.
nando Diniz, vinha pintando motivos relaciona-
dos à sua história de vida e sendo acompanhado O encontro
por uma monitora do ateliê. Quando esta moni-
tora saiu de férias, Fernando começou a pintar Pessoas são pessoas através de outras
uma série de garatujas e rabiscos representando pessoas3
o caos de seu mundo interno. Houve provavel- (Ditado Xhosa).
mente uma regressão de sua energia psíquica2.
A temática do abandono, já conhecida por Fer-
O atendimento deste caso foi realizado em
nando, era atualizada com as férias da funcioná-
um hospital especializado em saúde mental,
ria do hospital.
localizado no interior paulista. Eu fazia parte
Dentre as diversas formas de expressão livre
do programa de aprimoramento clínico-institu-
está a modelagem e, nela, o uso da argila pode
cional administrado pela Fundação do Desen-
funcionar como um objeto intermediário (PAIN,
volvimento Administrativo (Fundap), órgão do
JARREAU, 1996). Esse material pode propiciar
governo do estado de São Paulo, que objetiva
“uma forma mais sutil de abordagem, ajuda na
formar profissionais para trabalhar no Sistema
liberação de emoções através da expressão das
Único de Saúde (SUS). Eu tinha um contrato de
sensações táteis, facilitando o estabelecimento
um ano de vigência e recebia uma bolsa para de-
do vínculo terapêutico” (CARRANO, 2002).
senvolver atividades que consistiam em atender
Segundo Dias (1996), o ato de manusear e de
pacientes em sessões individuais e em grupo
tocar a argila pode auxiliar no emergir de um novo
nas diversas alas do hospital, tais como a ala de
enfoque, em que o sujeito revive ao recriar ima-
pacientes agudos (com pessoas que ficam inter-
gens com esse material considerado primordial.
nadas temporariamente em períodos de crise)
Para Gouvêa (1990), estabelece-se uma rela-
e a ala de pacientes crônicos (com portadores
ção dialética entre o objeto e o sujeito, no caso,
de doenças de longa evolução e que moram no
argila e paciente, e com essa fusão, há a possi-
hospital). Nesse setor, muitos dos pacientes não
bilidade do surgimento de um processo criativo.
têm histórias conhecidas ou familiares localiza-
2
Entende-se a regressão como um movimento retrógrado ou re-
troativo da libido para uma atitude anterior de adaptação e que 3
Língua materna de Nelson Mandela (apud ROSSETTI-FERREI-
pode ser acompanhada de fantasias infantis (JUNG, 2007). RA, 2000).

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 71


Junguiana
v.39-2, p.69-78

dos. Moram há muitos anos no hospital e muitos funcionários da ala diziam: “Parece bicho” (sic).
foram batizados pelos próprios funcionários. O Ele batia em outros pacientes, quebrava vidros e
objetivo dos profissionais que trabalham com janelas do hospital e arrancava galhos das árvo-
esses pacientes é promover sua reabilitação res. Quando saía para a atividade de caminhada
psicossocial e uma posterior mudança para as pelo hospital, arrancava retrovisores de carros
residências terapêuticas, que são casas manti- estacionados. Na cozinha, arremessava copos,
das fora do hospital. Apesar disso, é comum ou- pratos e xícaras. No quarto e na sala, rasgava
vir frases de pacientes como: “Vou morrer aqui, estofados. Foi relatado também que José ficava
né?” (sic). Um paciente sempre dizia: “Cheguei de espreita no pátio tentando capturar pombos
hoje, cheguei hoje”, entretanto já residia no e quando conseguia, arrancava suas cabeças.
hospital havia muito tempo. Foi nesse setor que Além disso, ele era autoagressivo e arrancava
conheci o paciente cujo caso será descrito a se- suas próprias unhas. No momento do banho
guir. Os encontros aconteceram em torno de três apresentava um ritual: defecava e passava as
vezes por semana no próprio pátio do hospital e próprias fezes no vaso sanitário, nas paredes
eventualmente na sala de atividades do setor de do banheiro e, às vezes, arremessava-as nos
reabilitação, ao longo de um ano. funcionários. José tinha dificuldade de usar o
banheiro, era comum fazer suas necessidades
A história de José pelo pátio. Observa-se que ficava a maior parte
do tempo isolado no pátio e não tinha contatos
Ninguém é doido. Ou, então, todos4 sociais com a equipe ou com outros pacientes.
(Guimarães Rosa, 1969). Por vezes, rasgava sua roupa e permanecia nu
por muito tempo deitado no solo.
José (nome fictício), 44 anos, foi diagnostica- Diante de tantos fatos, ele era um paciente
do com retardo mental grave, transtorno mental que mobilizava impotência na equipe e que dei-
não especificado devido a uma lesão e sintomas xava todos apreensivos a respeito de uma possí-
psicóticos, tais como alucinações. De acordo vel intervenção. Assim, o desafio era pensar um
com seu prontuário, que continha informações modo de se aproximar do paciente.
incompletas, ele apresentava um histórico de vá- Diante dos relatos da equipe, propus traba-
lhar com José com o uso da argila, um material
rias transferências entre hospitais psiquiátricos.
que pudesse auxiliar a despotencializar sua
Ele havia sido transferido de um hospital psi-
agressividade e que também permitisse uma
quiátrico que fora fechado após o movimento da
equivalência simbólica com as fezes por meio
luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica.
do manuseio desse objeto sensorial, uma vez
No prontuário, seu nome estava escrito: José de
que o paciente tinha um ritual com seus próprios
Tal (literalmente), sendo que, após um tempo,
dejetos. A princípio, a equipe mostrou-se rece-
ele recebeu um sobrenome criado pela equipe
osa e preocupada com uma possível piora na
hospitalar. Outras informações eram de que ele
regressão com o uso da argila. Entretanto, após
não tinha história nem família conhecida. Além
algumas conversas, os funcionários decidiram
disso, a equipe do hospital de origem havia rela-
aceitar a intervenção proposta.
tado no momento da transferência que José era
A intervenção se iniciou em conjunto com
um paciente violento.
a introdução da medicação clozapina pela psi-
José era conhecido na ala da reabilitação
quiatra da ala. Esse medicamento é chamado
por ser um paciente agressivo e arredio. Alguns
pelo apelido de “Nossa Senhora da Clozapina”
ou “Santa Clô” por alguns médicos devido à
4
Frase retirada do conto “A terceira margem do rio” do livro
“Primeiras Estórias”. sua eficácia. Entretanto, esse medicamento

72 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.69-78

é um dos últimos recursos usados por psi- Outros encontros


quiatras, pois necessita de um acompanha- Já no segundo encontro, José aceitou amas-
mento mais rigoroso, com exames de sangue sar a argila no gramado do pátio do hospital, não
regulares para que o nível da substância não querendo ir à sala de atividades. Em seguida, jo-
se torne tóxico. gou o barro ao chão. Eu, como um ego auxiliar,
continuei modelando um pedaço de argila. José
O primeiro encontro observava e falou: “É um pardal”. Minha atitude,
Cheguei ao pátio para conversar com José, então, era de tentar representar plasticamente um
encontrando-o deitado no chão (como perma- pássaro depois que o paciente o nomeou assim.
necia a maior parte do tempo). Eu havia leva- Em seguida, José afirmou: “É um pássaro na gaio-
do um pacote de argila nas mãos e apresen- la” e depois: “pássaros cagam na gente” (sic).
tei o material a ele, que, a princípio, relatou Percebe-se que se iniciou um contato com o
desconhecê-lo, perguntando se era para comer. mundo interno do paciente e ele começou a pro-
Em seguida, comecei a amassar a argila ao lado jetar suas imagens internas. Na tríade paciente-a-
de José, mostrando como utilizá-la. Ficamos sen- companhante-argila começou a surgir uma intera-
tados no chão e em vários momentos José se ção. Ao final do encontro, perguntei a José sobre o
levantou e foi para o lado oposto do pátio. Nos que deveria fazer com aquele objeto e, mais uma
momentos de afastamento, procurei entrar em vez, José preferiu se livrar do material produzido e
contato novamente com ele, sempre perguntan- jogá-lo em cima do telhado do hospital.
do se podia me aproximar. A ideia inicial foi de Na semana seguinte, José começou a con-
apresentar a argila para o paciente e perceber as tar-me sobre sua origem, onde havia nascido,
possíveis repercussões. cidades e bairros em que já havia morado. Em
Em um determinado momento, José pediu alguns momentos afastava-se para o outro lado
para que eu jogasse fora a argila e então per- do pátio e em outros momentos retornava para
guntei se ele mesmo gostaria de fazê-lo. José, continuar a conversa. Nesse dia, não quis mexer
então, pegou o barro e arremessou em cima com a argila, o que não o impediu de interagir
do telhado da ala. Depois de alguns instantes, comigo, que estava com argila na mão tentando
comecei a manusear outro pedaço de argila e reproduzir o que surgia da conversa. Emergiram
convidei José para ir até a sala de atividades, imagens de cobra, pato e pássaro. Ao final, José
dizendo que lá poderia colocar água no barro pediu para guardar esses objetos e, então, aju-
para amassá-lo com as mãos. O paciente acei- dou a levá-los para a sala de atividades. Esta foi
tou e, já na sala, sentou-se à mesa de ativida- a primeira vez em que não se desfez dos objetos
des, onde havia uma vasilha com água e tam- modelados, e uma caixa com seu nome foi co-
bém argila. Ele começou a manusear a argila locada à disposição na sala de atividades para
usando água. Em seguida afirmou: “Isso aqui é seus trabalhos serem guardados.
bosta” (sic), e levantou-se angustiado para sair Aos poucos, outras sessões aconteciam e
da sala. Tentei conversar com ele, mas ele deci- mais dados de sua história eram relembrados,
diu sair da sala após aceitar continuar a sessão como o nome de sua mãe, de seu pai, lugares
em outro dia. Diante desse fato, pôde-se perce- onde trabalhara, o dia em que havia chegado ao
ber que houve uma dificuldade de metaforiza- hospital e relatos de sua infância. José trouxe
ção do paciente, em que a argila concretamente uma memória de quando era criança: havia caí-
era igual a fezes, como uma equação simbóli- do em um rio, quase morrendo afogado, mas foi
ca. Optou-se em respeitar o limite de José, sem resgatado por um homem que o salvou.
forçá-lo a continuar a sessão, uma vez que ele Eu continuava modelando junto com José
quis sair imediatamente da sala. conteúdos que surgiam de nossos encontros.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 73


Surgiam “bichos que atacam a gente”, “bicho pátio e não olhava em meus olhos. Em um gesto
bravo”, “puma”, “presa de jacaré”, “jacaré”, espontâneo, pedi desculpas a José, que estava
“vaca”, “boi”, “urubu”, “pilão de socar milho” deitado no chão com seus braços tampando o
etc. Um dia, o paciente disse que tinha feito rosto. Imediatamente, estendeu a mão e disse
um pardal que me deu dizendo: “É um pardal, “eu te desculpo”. Retribuí o gesto e, após um
guarda, leva pra sua casa”. Em outro momento aperto de mãos, José não mais evitou o contato.
interessante surgiu a primeira figura humana: Na medida em que o trabalho se desenvolvia,
enquanto eu manipulava a argila, José me disse: foi interessante perceber que a argila começou
“é um menino que trabalha na roça”. a mobilizar mais angústias em José que facilitar
Muitas vezes, o “não” era presente nas ses- o encontro comigo. O paciente mostrava-se re-
sões. José relatava não saber fazer nada com a sistente, relatava não querer mexer com o barro.
argila, dizia que não queria ir para a sala de ati- Assim, optou-se por não utilizar mais a argila,
vidades e se afastava do contato. Entretanto, ao que, anteriormente, já havia auxiliado o trabalho,
final das sessões, sempre dizia “até amanhã”, funcionando inicialmente como uma “ponte” que
concordando com um próximo encontro. ligava paciente-acompanhante. A presença des-
Houve encontros em que José também acei- se material como objeto intermediário já não era
tou ir até a sala de atividades e utilizou outros mais necessária, pois José continuou interagindo
recursos expressivos, como tintas em cartolina. e mantendo contato verbal espontaneamente.
Um fato relevante foi quando saí de férias. Por fim, após um ano de trabalho como apri-
Essa informação foi notificada para José com morando, meu contrato profissional iria terminar
antecedência, cerca de um mês antes. Após o e eu deveria encerrar as atividades, incluindo o
comunicado, o paciente mostrou-se mais ar- atendimento com José, que novamente foi avi-
redio ao contato e relatou que “a casa vai ficar sado com antecedência, mas, dessa vez, não se
sozinha”, um reflexo sobre seus sentimentos de mostrou arredio pela interrupção das sessões.
se sentir abandonado. Com essa “separação”, Segue abaixo um trecho da última sessão com
o cliente apresentou uma reincidência de seus José que aconteceu no chão do pátio debaixo de
sintomas de heteroagressão, que até então es- uma mangueira:
tavam em menor intensidade. Nesse momento,
parece que o paciente vivenciou aspectos de um José, faz quase um ano que nos encontra-
complexo de abandono/rejeição que pode ter mos aqui.
sido ativado em sua psiquê. Infelizmente, não Não! Faz um par de anos que a gente tá
temos dados precisos de sua história, porém o nesse hospital!... Já acabou até as man-
fato de ter vivido grande parte da vida em uma gas do pé... (José).
instituição psiquiátrica e sem família localiza-
da faz pensar o quanto esse tema do abandono É verdade. Mas o que acontece depois disso?
pode ser uma ferida psíquica para ele. Vai florescer de novo, né? (José).
Esse episódio trouxe o reconhecimento so-
bre a importância do vínculo terapêutico para
o tratamento, contrariando alguns profissionais Reflexões
representantes da medicina tradicional que as-
sociavam a melhora de José apenas ao uso do O essencial é o que existe entre as pessoas5
medicamento clozapina. (Ronald Laing).
Com a retomada das sessões após as minhas
férias, José mostrava-se bravo, quase não conver-
5
Frase retirada do livro Saúde mental e atenção psicossocial de
sava, evitava contato, fugia para o lado oposto do Paulo Amarante (2007).

74 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Após o início do trabalho, José começou a Pensando na energia psíquica, termo usado por
apresentar algumas melhoras no seu quadro Jung, que se refere aos movimentos de todos os
geral, principalmente nos episódios de agressi- fenômenos da psiquê (JUNG, 2007), pode-se afir-
vidade. Entretanto, em um primeiro momento, mar que o paciente, antes da intervenção, estava
tal fato ficou associado apenas à medicação passando por um período de regressão da libido,
clozapina. Somente houve reconhecimento do quando a energia psíquica se volta para o incons-
trabalho psicoterapêutico quando saí de férias ciente. Observa-se que com a melhora de sua sinto-
e houve uma piora significativa dos sintomas matologia, há uma diminuição do seu isolamento,
do paciente. Nesse momento, a psiquiatra me sugerindo uma possível progressão de sua energia
perguntou quando eu iria retornar de férias e psíquica, que se volta para o mundo externo.
continuar o trabalho com o paciente. Percebeu- Percebeu-se um novo olhar da equipe para
-se assim uma descentralização da intervenção o paciente (não apenas como aquele que agri-
em saúde mental, até então focada no médico, e de outros pacientes); e para o trabalho do psi-
um início de integração da equipe multidiscipli- cólogo na ala (não apenas como aquele profis-
nar. Ainda sobre esse episódio, analiticamente, sional que atende e conversa com o paciente em
pode-se pensar no vínculo estabelecido entre uma sala fechada com um setting demarcado).
paciente e psicólogo e na questão da transfe- A equipe pôde perceber que há possibilidades
rência-contratransferência no processo analíti- de intervenções com os pacientes não medica-
co. No retorno das sessões, o paciente estava mentosas, mas embasadas em contato humano
triste, sentindo-se abandonado e em outro mo- e no vínculo entre as pessoas. Como exemplo,
mento demonstrou raiva e até mesmo chegou a cito uma fala do gerente do setor de reabilitação
jogar fezes em mim. Diante dessas projeções do dirigindo-se a mim: “você agacha, senta perto
paciente, contratransferencialmente, um senti- dele e olha no olho do José”.
mento de culpa foi despertado em mim durante O uso da argila nesse caso me remete a um
esse período. mito grego sobre a criação do mundo, em que Pro-
Além da redução da hetero e da autoagres- meteu, responsável pela criação do homem, es-
são, com um espaçamento maior entre um epi- culpiu e modelou o homem a partir do barro tendo
sódio e outro, José passou a ficar mais tempo os deuses como espelho e, assim, povoou a terra.
vestido e calçado. Ele também passava mais Com o trabalho de amassar o barro, aos poucos,
tempo sentado nos sofás da ala do que deitado
o paciente, foi se “humanizando” e houve a des-
no chão do pátio. Nesse sentido, seu comporta-
construção do rótulo “parece bicho” que o estig-
mento ficou menos instintivo e impulsivo e mais
matizava. Nos primeiros atendimentos, José fazia
“humanizado” (lembrando que alguns funcioná-
uma equação simbólica de que a argila era fezes
rios se referiam a ele como “um bicho”). Uma re-
e a descartava, metaforicamente, assim como
flexão possível seria que, por meio do surgimen-
ele, um ser humano descartável em um hospital.
to de símbolos de animais (puma, onça etc.) na
Com o tempo, começou criativamente a perceber
modelagem em argila, ele pôde despotencializar
que outros objetos poderiam aparecer da argila e
essa energia ameaçadora dentro de si. Segun-
assim surgiu um pardal, por exemplo. O pássaro
do Jung et al. (1964), “a profusão de símbolos
pode ser um símbolo de liberdade, palavra esta
animais [...] mostra o quanto é vital para o ho-
que era a favorita de Nise da Silveira. Ela dizia: “A
mem integrar em sua vida o conteúdo psíquico
palavra que mais gosto é liberdade. Gosto do som
do símbolo, isto é, o instinto. Mas no homem, o
dessa palavra. O que cura é a liberdade”6.
ser animal [que é a sua psiquê instintual] pode
tornar-se perigoso se não for reconhecido e inte- 6
Disponível em: http://www.ccms.saude.gov.br/nisedasilveira/
grado na vida do indivíduo”. frases.php. Acesso em: 21 de jul. de 2021.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 75


Ressalta-se também a importância da argila “preocupadas com o futuro e com a cura” (LEWIS,
como uma “ponte” fundamental, que facilitou o 1999, in ROSSETTI-FERREIRA, COSTA, 2012).
acesso e a aproximação com o paciente, tanto Há também o convite para se pensar nas
no mundo externo, quanto o interno. Este ma- intervenções em Saúde Mental, por uma bus-
terial possibilitou o estabelecimento do vínculo ca de romper com padrões cristalizados e seus
terapêutico, a despotencialização da agressi- estereótipos. Segundo a ideia de Lewis (1999),
vidade do paciente e o resgate de sua história deve-se superar a tendência de se ficar preso
e vivência interna. Oaklander (1974) acrescenta no passado, “sem acreditar na força transfor-
que “a qualidade sensual da argila muitas vezes madora dos eventos significativos do presente”
oferece a essas pessoas uma ponte entre seus (ROSSETTI-FERREIRA, COSTA, 2012).
sentidos e seus sentimentos”. Por fim, o tema da árvore surgiu no trecho
Sugere-se pensar que, na intervenção em acima transcrito da última sessão. Por vezes, a
saúde mental, o enfoque principal seja o indi- mangueira era uma companhia nos atendimen-
víduo em desenvolvimento e procurar entender tos, pois José permanecia bastante tempo dei-
seus sintomas como aspectos de sua singulari- tado em suas raízes. A árvore pode ser símbolo
dade e reveladores de seus complexos autôno- do desenvolvimento humano e do indivíduo que
mos e inerentes ao psiquismo. Assim, se bus- cresce em direção à consciência. Pode-se pensar
ca uma tentativa de “romper com a crônica de na fertilidade do encontro analítico que foi vista
psicopatologias anunciadas, mas valorizando o no caso relatado. As mangueiras irão florescer,
aqui-e-agora das interações, o momento presen- como disse José; e foi por meio do afeto entre
te, como o momento de transformações possí- nós que ocorreu a polinização desse encontro
veis” (ROSSETTI-FERREIRA, COSTA, 2012). analítico. Assim, como diz Bachelard (2019):
Além disso, nota-se o questionamento sobre a “A esse sonhador imobilizado no chão, a árvore
mudança de posição da ideia do curar, dando lu- devolve a mobilidade dos pássaros e do céu”. ■
gar à ideia do cuidar, numa tentativa de escapar do
enfoque exclusivo das teorias organicistas sempre Recebido em: 18/08/2021 Revisão em: 02/11/2021

76 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Resumen
Desde el piso del patio a un posible encuentro: la arcilla en el tratamiento de
un paciente psiquiátrico
Este texto tiene como objetivo relatar la ex- durante las sesiones que se realizaron tres vec-
periencia de la atención psicológica brindada es por semana durante el período de un año.
a un paciente que reside en un hospital espe- A lo largo del trabajo se pudo notar la mejoría
cializado en salud mental. Mostró síntomas de de los síntomas agresivos y la remisión de los
autoagresión y hetero agresión, además de rituales con las heces. La arcilla proporcionó
realizar un ritual de pasar sus propias heces un desempoderamiento de los contenidos
por las paredes del hospital. Se propuso una agresivos de la psique del cliente y sirvió como
intervención con arcilla como recurso expre- un objeto intermediario entre el paciente y
sivo. Este material fue presentado al paciente el psicoterapeuta. ■

Palabras clave: salud mental, arcilla, recurso expresivo, desempoderamiento.

Abstract
From the courtyard to a possible encounter: clay on the treatment of a
psychiatric patient
This article aims to report the experience of to the patient during the sessions that occurred
psychological treatment offered to a patient who three times a week over one year. During the pro-
lived in a hospital specialized in mental health. cess, it was possible to see the improvement on
He presented symptoms of self and hetero-ag- the aggressive symptoms and the remission of
gressive outbursts, in addition to a ritual of the rituals with the feces. The clay provided the
spreading his own feces on the hospital walls. An de-potentialization of the aggressive contents of
intervention with the use of clay was proposed as the client’s psyche and acted as an intermediary
an expressive resource. This material was shown object between patient and therapist. ■

Keywords: mental health, clay, expressive resource, de-potentialization.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 77


Referências
AMARANTE, P. Manicômio e loucura no final do século e JUNG, C. G. et al. (Orgs.). O homem e seus símbolos. Rio de
do milênio. In: FERNANDES, M. I. A. (Org.). Fim de século: Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1964.
ainda manicômios? São Paulo, SP: Universidade de São
Paulo, 1999. p. 47-53. MELLO, L. C. Nise da Silveira: caminhos de uma psiquiatra
rebelde. Rio de Janeiro, RJ: Automática, 2014.
________. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de
Janeiro, RJ: Fundação Oswaldo Cruz, 2007. OAKLANDER, V. Descobrindo crianças: a abordagem
gestáltica com crianças e adolescentes. São Paulo, SP:
ANDRADE, C. D. Corpo. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1985. Summos, 1974.

BACHELARD, G. A terra e os devaneios da vontade: ensaio PAIN, S.; JARREAU, G. Teoria e técnica da arte terapia. Porto
sobre a imaginação das forças. São Paulo, SP: Martins Alegre, RS: Arte Médica, 1996.
Fontes, 2019.
ROSA, J. G. Primeiras estórias. 5. ed. Rio de Janeiro, RJ: José
CARRANO, E. A argila como instrumento terapêutico e Olympio, 1969.
expressão do imaginário. Rio de Janeiro, RJ: Pomar, 2002.
(Coleção Imagens da Transformação). ROSSETTI-FERREIRA, M. C.; COSTA, N. R. A. Construcción
de vínculos afectivos en contextos adversos de desarrollo:
DIAS, A. C. Oficina criativa e psicopedagogia. São Paulo, SP: importancia y polémicas. Scripta Nova, Barcelona, v. 16,
Casa do Psicólogo, 1996. n. 395, 2012.

FURTADO, J. P. Responsabilização e vínculo no tratamento ROSSETTI-FERREIRA, M. C; AMORIN, K. S.; SILVA, A. P.


de pacientes cronificados: da unidade de reabilitação de S. Uma perspectiva teórico-metodológica para análise do
moradores ao CAPS Estação. São Paulo, SP: Hucitec, 2001. desenvolvimento humano e do processo de investigação. Psi-
cologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 1-20,
GOUVÊA, A. P. Sol da terra: o uso do barro em psicoterapia. 2000. https://doi.org/10.1590/S0102-79722000000200008
São Paulo, SP: Summus, 1990.
SILVEIRA, N. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ:
HILLMAN, J. Suicídio e alma. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993. Alhambra, 1982.

JUNG, C. G. A energia psíquica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. ________. Mundo das imagens. São Paulo, SP: Ática, 1992.

78 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.38-2, p.79-88

From the courtyard to a possible encounter:


clay on the treatment of a psychiatric patient

Sergio Luiz Alécio Filho*

Abstract Keywords
This article aims to report the experience of mental
psychological treatment offered to a patient living health, clay,
in a hospital specialized in mental health. He pre- expressive
resource,
sented symptoms of self and hetero-aggressive
de-potentiali-
outbursts, as well as a ritual of spreading his own zation.
feces on the hospital walls. An intervention with
the use of clay was proposed as an expressive
resource. This material was shown to the patient
during sessions that occurred three times a week
over the course of one year. During the process,
it was possible to observe the improvement on
the aggressive symptoms and the remission of
the rituals with the feces. The clay provided the
de-potentialization of the aggressive contents of
the client’s psyche and acted as an intermediary
object between patient and therapist. ■

* Psychologist graduated from the University of São Paulo (FF-


CLRP/USP), candidate to analyst at the Institute of Analytical
Psychology of Campinas (IPAC), connected to the Jungian As-
sociation of Brazil (AJB) and to the C. G. Jung International
Association for Analytical Psychology (IAAP). Former trainee at
the Museum of Images of the Unconscious, in Rio de Janeiro.
E-mail: sergio_aleciofilho@yahoo.com.br

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 79


Junguiana
v.38-2, p.79-88

From the courtyard to a possible encounter: clay on the treatment of a


psychiatric patient

Dehumanized1 the hospital with a patient that was about to


They put me in this hospital undergo a session of electroconvulsive therapy.
Tied to my body, mind and space Her colleague, a medical doctor, asked her to
Suffocated in this ward push the button of the electroconvulsive device
Multiplied by a thousand equal wards and “Nise firmly refused to turn on the device;
They did it all for my own good her healthy rebellion was already manifesting”
In the Health that they want for me (MELLO, 2014). According to her, at that moment,
Taking only pills after pills the rebel psychiatry was born, as her known
I feel, sad and dilacerated, way of working. With that transgressive spirit
Dehumanized. and contrary to Classical Psychiatry, Nise found-
ed the Museum of Images of the Unconscious,
Currently, one of the challenges of Mental which has the world’s largest collection of art
Health and the Psychiatric Reform movement is pieces created by psychiatric patients, and the
based on how to treat patients in a more human- Casa das Palmeiras, which is considered one of
ized way, so the treatment is not only focused the first Psychosocial Care Centers (CAPS) in Bra-
on the traditional biomedical model. More- zil, and where the treatment is offered outside
over, according to psychiatrist Paulo Amarante the hospital environment. In addition, Nise creat-
(1999), the challenge is “to build a new social ed the service of occupational therapy, in which
place for madness, for difference, diversity and the clients participate in artistic workshops in
divergence” (p. 49)2. order to develop the free expression of their
Classical Psychiatry is centered on the illness internal contents.
of individuals and the use of medications. Pa- Free expression, through drawing, paint-
tients are often labeled and reduced to a num- ing and pottery, in the field of Psychiatry and
ber from the Psychiatry textbooks. Professionals Psychology, has become of scientific interest,
often forget to fully observe patients and un- among others, for its potential as a means of
derstand their symptoms as a fabric of internal, easy access to the inner world of the psychiatric
symbolic, and relational meanings. According patient (SILVEIRA, 1992). Rarely can the verbal
to Hillman (1993), there are “problems that are language encompass the totality of the psyche
not merely classified as behavioral acts or med- and there may be a verbal crystallization of ver-
ical categories, they are above all experiences bal aspects. In this sense, the use of non-verbal
and sufferings”. techniques may aid the appearance of symbol-
In Brazil, the psychiatrist Nise da Silveira was ic contents that arise in the plastic productions
a pioneer on Jung’s ideas and on the search for and that can “put the verbs in motion again”
a humanized treatment of patients in psychiat- (GOUVÊA, 1990).
ric hospitals. Once, Nise told how she was in According to Nise da Silveira, art may di-
minish the power of threatening internal con-
tents that create a disturbing turmoil in the
1
Parody produced by me on the poem “Desfavelado” by Carlos patient’s psyche. Therefore, in the different
Drummond de Andrade (1985).
means of expression, the patient may shape
2
All the citations were translated by me from the texts pub-
lished in Portuguese. the fragments of their internal drama and emo-

80 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.38-2, p.79-88

tions, in addition to de-potencialize disturbing ity to provide the active manifestation of primary
internal figures (SILVEIRA, 1982). internal processes, enabling fluidity between the
Nise also prioritized the catalyzing affect, material and the handler.
which focus on the importance of an affective From the references aforementioned, I intend
bond as an enabler of development, and it is to report my experience in a psychological inter-
born from a high-quality human contact. In her vention with the use of clay during the treatment
innovative work at the Museum of Images of of a psychiatric patient, suffering from a severe
the Unconscious, in Rio de Janeiro, she devel- mental disorder of long evolution, classified
oped therapeutic workshops with her clients according to the category proposed by Furtado
and highlighted the importance of a monitor (2001). The intention was to mitigate the individ-
who accompanied each patient. The role of the ual’s psychic suffering, offering a space for lis-
monitor was to encourage the patient and accept tening, welcoming and helping.
unconditionally their plastic production, without
aesthetic judgment. That role was called cata- The encounter
lyzing affect. For instance, a client in one of the
expressive workshops, who was called Fernando People are people through other people3
Diniz, had painting motifs related to his life his- (Xhosa saying).
tory while being accompanied by a monitor of the
studio. When this monitor went on vacation, Fer- The intervention in this case was carried out in
nando started to paint a series of scribbles and a hospital specialized in mental health, located
doodles representing his internal chaos. There in the interior of the state of São Paulo. I was un-
was probably a regression of his psychic energy. der the clinical-institutional improvement train-
The theme of abandonment, already experienced ing program offered by the Administrative Devel-
by Fernando, was updated with the vacation of opment Foundation (Fundap), an organization
the hospital staff. managed by the government of São Paulo, which
Among the different forms of free expres- aims to train professionals to work in the Brazil-
sion, there is pottery, and in it, the use of clay ian Unified Health System (SUS). I was under a
may work as an intermediary object (PAIN, one-year contract and I received a scholarship to
1996). This material may provide a “more sub- perform the activities, which consisted in caring
tle approach, it helps in the release of emotions for patients in group and individual sessions,
through the expression of tactile sensations,
over the different wards of the hospital, such as
enabling the establishment of the therapeutic
the ward for acute patients (where people were
bond” (CARRANO, 2002).
temporarily admitted in times of crisis), and as
According to Dias (1996), the act of handle
the ward for chronic patients (where people with
and touch the clay may help in the process
long-term disorders lived in the hospital). In this
of a new focus, in which the subject relives
sector, many of the patients do not have known
when recreating images produced with this
histories or located family members. They have
primordial material.
lived in the hospital for many years and many
In the opinion of Gouvêa (1990), a dialectical
were baptized by the staff. The objective of the
relation between object and subject, in this case,
professionals working with these patients is to
clay and person, is established, and a creative
promote psychosocial rehabilitation and a sub-
process can emerge.
sequent move to therapeutic residences, which
Violet Oaklander (1974) adds that this materi-
al has flexible and malleable features that adapt 3
First language of Nelson Mandela (apud ROSSETTI-FERREIRA et al.,
to different needs. Clay has the quality and abil- 2000).

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 81


Junguiana
v.38-2, p.79-88

are houses maintained outside the hospital. De- cars. In the kitchen, he used to throw glasses,
spite this, it is common to hear phrases from pa- plates and cups. In the bedroom and in the liv-
tients, such as: “I am going to die here, right?”. ing room, he used to tear pillows off. It was also
One patient used to say: “I have arrived today, reported that José used to hunt pigeons in the
I have arrived today”; however, he had already courtyard and rip their heads off. In addition,
been living in the hospital for a long time. It was he was self-aggressive and pulled out his own
in this sector that I met the patient whose case fingernails. During shower time he presented a
will be described below. The sessions took place type of ritual: he would defecate and spread his
three times a week in the courtyard of the hos- own feces in the toilet, on the bathroom walls,
pital and sometimes in the activity room of the and sometimes, he would throw them at the
rehabilitation sector, for one year. staff. José had difficulty using the bathroom and
usually evacuated in the courtyard. He used to
The history of José spend most of his time isolated in the courtyard
and had no social contacts with the staff or oth-
Nobody is crazy. Or everybody is4 er patients. He often used to tear his clothes
(Guimarães Rosa). apart and remain naked for a long time lying on
the ground. Because of all these facts, he was a
José, a fictional name, 44 years old, was di- patient who mobilized the powerlessness of the
agnosed with severe mental retardation, an un- staff and made everyone apprehensive about a
specified mental disorder due to injuries, and possible intervention. Thus, the challenge was to
psychotic symptoms such as hallucinations. Ac- think of a way to approach the patient.
cording to his medical records, which contained Based on the staff’s reports, I proposed work-
incomplete information, he had been transferred ing with José using clay, a material that could
from different psychiatric hospitals. help to de-potentiate his aggressiveness and
He had been transferred from a psychiatric that would also allow a symbolic equivalence
hospital that had been closed after the anti-asy- with the feces through the handling of this sen-
lum movement and the psychiatric reform. In his sory object, as the patient had a ritual with his
own waste. At first, the team was afraid and con-
medical record, his name was registered as José
cerned about a possible worsening in the regres-
de Tal (which could be translated to John Doe),
sion with the use of clay. However, after some
but after some time, he received a surname cre-
conversations, the staff decided to accept the
ated by the hospital staff. The medical record
proposed intervention.
also reported that he had no acknowledged his-
The intervention started with the introduction
tory or family. Moreover, the staff of the original
of the medication Clozapine by the ward’s psy-
hospital reported at the moment of the transfer
chiatrist. This medicine is called by the nickname
that José was a violent patient.
“Our Lady of Clozapine” or “Saint Clo” by some
José was known in the rehabilitation ward as
doctors because of its effectiveness. However,
an aggressive and aloof patient. Some workers
this medication is one of the last resources used
would say: “He seems like an animal”. He used
by psychiatrists, as it needs more rigorous mon-
to punch other patients, break glasses and win-
itoring, with regular blood tests so that the level
dows of the hospital and pull tree branches.
of the substance does not become toxic.
During the walking activity around the hospi-
tal, he used to break rearview mirrors of parked
The first encounter
I arrived at the courtyard to talk to José, find-
4
Excerpt from the short story “A Terceira margem do rio”
(1969) from the book “Primeiras Estórias” (ROSA, 1969). ing him lying on the ground (as he was most of

82 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.38-2, p.79-88

the time). I had taken a package of clay in my I noticed that a contact with the patient’s
hands and presented the material to him, who internal world was initiated, and he began to
at first reported not knowing it, asking if it was project his internal images. An interaction began
something to eat. Then, I started to knead the to emerge in the triad patient-companion-clay.
clay next to José, showing him how to use it. At the end of the meeting, I asked José what I
We sat on the floor, and sometimes José got up should do with that object and, once again, José
and went to the opposite side of the courtyard. preferred to get rid of the produced material and
At those moments when he withdrew himself, I throw it on the roof of the hospital.
tried to get in touch with him again, always ask- The following week, José began to tell me
ing if I could come closer. The initial idea was to about his origins, where he was born, cities and
introduce the clay to the patient and understand neighborhoods where he had lived. Sometimes
the possible repercussions. he walked away to the other side of the court-
At a certain point, José asked me to throw the yard, and at other times he returned to contin-
clay away, and then I asked if he would like to ue the conversation. That day, he preferred not
do it himself. José, then, took the clay and threw to handle the clay, which did not stop him from
it on the roof of the ward. After a few moments, interacting with me, while I was modeling the
I started handling another piece of clay and in- material, trying to reproduce what emerged from
vited José to go to the activity room, saying that the conversation. Images of snake, duck and bird
he would be able to put water on the clay so that emerged. In the end, José asked to store these
he could knead it with his hands. The patient ac- objects, and then helped me take them to the
cepted and, in the activity room, he sat down at activity room. This was the first time he did not
the activity table, where there was a bowl of wa- get rid of the modeled objects and a box with his
ter and clay. He started to handle the clay using name was made available in the activity room for
water. Then he said: “This is shit” (sic) and got his work to be stored.
up in anguish to leave the room. I tried to talk Gradually, other sessions took place and
to him, but he decided to leave the room after more information about his history was remem-
agreeing to continue the session another day. bered, such as the name of his mother, his fa-
Because of this, it could be seen that he had dif- ther, the places where he had worked, the day
ficulty in metaphor, in which clay was concretely he arrived at the hospital and accounts of his
equal to feces, like a symbolic equation. I decid- childhood. José brought back a memory from
ed to respect José’s limit, without forcing him to when he was a child: he had fallen into a river,
continue the session because he wanted to leave almost drowned, but was rescued by a man who
the room immediately. saved him.
I continued to model with contents of José that
Other encounters emerged from our meetings. “Beasts that attack
At the second encounter, José agreed to us”, “wild animals”, “cougar”, “alligator prey”,
knead the clay on the hospital courtyard lawn, “alligator”, “cow”, “ox”, “vulture”, “corn pestle”,
not wanting to go to the activity room. Then, he appeared. One day, the patient said that he had
threw the clay to the ground. I, as an auxilia- made a sparrow, which he gave to me, saying:
ry ego, continued to mold a piece of clay. José “It is a sparrow, keep it, and take it home”. In an-
watched and said: “It is a sparrow.” My attitude, other interesting moment, the first human figure
then, was to try to plastically represent a bird af- appeared: while I was manipulating the clay, José
ter the patient had named it that way. Then, José told me: “it is a boy who works in the fields”.
said: “It is a bird in a cage” and then: “birds shit Many times, the “no” was present in the
on us” (sic). sessions. José reported not knowing how to do

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 83


anything with the clay, saying he did not want anguish in José than facilitate the session. The
to go to the activity room and moving away from patient was resistant, reporting not wanting to
contact. However, at the end of the session, he handle the clay. Thus, I decided to no longer
always said “see you tomorrow”, agreeing to a use clay, which had previously helped the work,
next meeting. functioning as a “bridge” connecting patient and
There were meetings in which José also agreed companion. The presence of this material as an
to go to the activity room and used other expres- intermediary object was no longer necessary, as
sive resources, such as paint on cardboard. José continued to interact and maintain verbal
A relevant fact was when I went on vacation. contact spontaneously.
This information was notified to José a month Finally, after a year of work, my professional
in advance. After the announcement, the pa- contract would end and I would have to termi-
tient was more distant from contact than usual nate activities, including the sessions with José,
and informed that “the house will be alone”, who was once again notified in advance; but, at
a reflection on his feelings of feeling aban- this point, he was not averse to the interruption
doned. With this “separation”, the client pre- of the sessions. Below is an excerpt from the last
sented a recurrence of his hetero aggression session with José that occurred in the courtyard
symptoms, which had been less intense since under a mango tree:
the beginning of the intervention. At this point,
it seems that the patient experienced aspects José, has been almost a year since we met
of an abandonment/rejection complex, which here.
may have been activated in his psyche. Unfor- No! We have been in this hospital for a
tunately, we do not have precise data on his couple of years! There are no more man-
history, but the fact that he had lived most of goes on the tree... (José).
his life in a psychiatric institution and without
a localized family makes me wonder how much That is true. But what happens after that?
this theme of abandonment could be a psychic It will bloom again, right? (José).
wound for him.
This episode brought the recognition to the
importance of the therapeutic bond for the treat- Reflections
ment, contrary to what some medical profession-
als representing traditional medicine said, asso-
What is essential is what exists between
ciating José’s improvement only with the use of
people5 (Ronald Laing).
the drug Clozapine.
When the sessions resumed after my vaca-
After the beginning of the intervention, José
tion, José was angry, barely speaking, avoiding
started to show some improvements in his gen-
approaching, running to the opposite side of
eral condition, especially in his episodes of
the courtyard, and not making eye contact. In
aggression. However, at first, this fact was only
a spontaneous gesture, I apologized to José,
associated with the medication Clozapine. The
who was lying on the floor with his arms cov-
psychotherapeutic work was only recognized
ering his face. Immediately, he reached out his
when I went on vacation and there was a sig-
hand and said, “I forgive you.” I reciprocated
nificant worsening of the patient’s symptoms.
the gesture and, after shaking hands, José no
At this point, the psychiatrist asked me when
longer avoided contact.
As the work progressed, it was interesting 5
Excerpt from the book “Saúde mental e atenção psicossocial”
to notice that the clay started to mobilize more by Paulo Amarante (2007).

84 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


I would return from vacation and continue to The staff started to look at the patient in an-
work with the patient. I noticed at this moment other way, not only as the ‘one who hurts the
the beginning of a multidisciplinary integration other patients’; and at the psychologist’s work,
and decentralization in mental health interven- not only as ‘the professional who talks to the
tion, which had been, until then, focused on the patient in a closed room within a limited envi-
physician. Still on this episode, analytically, ronment’. The staff could see possibilities for in-
one can think about the bond established be- tervention with patients that were not based on
tween patient and psychologist and the issue medications, but focused on human contact and
of transference-counter-transference in the an- bonding between people. For instance, I quote
alytical process. When resuming the sessions, something that the manager of the rehabilitation
the patient was sad, feeling abandoned and at sector said to me: “you squat down, sit next to
another time he showed anger and even threw him and look José in the eye”.
feces at me. Facing those projections of the pa- The use of clay in this case reminds me of a
tient, counter-transference, I felt invaded by the Greek myth about the creation of the world, in
feeling of guilt during this period. which Prometheus, responsible for the creation
In addition to reducing hetero and self-aggres- of man, sculpted and shaped man out of clay,
sion, with more spacing between one episode having the gods as a mirror, and, thus, populat-
and another, José spent more time dressed and ed the earth. With the work of kneading the clay,
wearing shoes. He also spent more time sitting little by little, the patient became “humanized”
on the ward’s sofas than lying on the courtyard and there was the deconstruction of the label “he
floor. In this sense, his behavior became less in- looks like an animal” that stigmatized him. In the
stinctive and impulsive and more “humanized” first visits, José made a symbolic equation that
(remembering that some employees referred to the clay was ‘shit’ and metaphorically discarded
him as “an animal”). A possible reflection would it, just like him, a human being discarded in a
be that, through the appearance of animal sym- hospital. Over time, he began to creatively real-
bols (cougar, jaguar etc.) in the modeling of the izing that other objects could appear from the
clay, he could de-potentiate this threatening en- clay, and so a sparrow, for example, emerged.
ergy within himself. According to Jung (1964) “the The bird could be a symbol of freedom, a word
profusion of animal symbols [...] shows how vital that was Nise da Silveira’s favorite. She said:
it is for man to integrate into his life, the psychic
“The word I like most is freedom. I like the sound
content of the symbol, that is, the instinct. But
of that word. What heals is freedom”6.
in man, the animal being (which is his instinctu-
The importance of clay is also highlighted
al psyche) may become dangerous if not recog-
as a fundamental “bridge”, which facilitated
nized and integrated into the individual’s life”.
access and approximation to the patient, both
Thinking about the psychic energy, a term
in the external and internal world. This materi-
used by Jung (2007), which refers to the move-
al enabled the establishment of the therapeu-
ments of all the phenomena of the psyche, it can
tic bond, the disempowerment of the patient’s
be said that the patient, before the intervention,
aggressiveness, and the rescue of his history
was going through a period of libido regression,
and internal experience. Oaklander (1974)
when the psychic energy turns to the uncon-
adds that “the sensual quality of clay often of-
scious. We can observe that, with the improve-
fers these people a bridge between their sens-
ment of his symptoms, there was a reduction in
es and their feelings.”
his isolation, suggesting a possible progression
of his psychic energy, which turns toward the ex- 6
Available on http://www.ccms.saude.gov.br/nisedasilveira/fra-
ternal world. ses.php. Accessed on 21st July 2021.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 85


One might suggest that during mental health get stuck in the past must be overcome, “without
intervention the primary focus must be on the de- believing in the transforming power of signifi-
veloping person and the search for understand- cant events in the present” (ROSSETTI-FERREIRA,
ing their symptoms as aspects of their singularity COSTA, 2012).
and that reveal their autonomous complexes, in- Finally, the theme of the tree appeared in the
herent in the psyche. Thus, there is an attempt excerpt transcribed above, from the last ses-
to “break with chronic of announced psychopa- sion. Sometimes, the mango tree was a com-
thologies, but valuing the here-and-now of inter- panion in our sessions, as José remained for a
actions, the present moment, as the moment of long time lying on its roots. The tree is a symbol
possible transformations” (ROSSETTI-FERREIRA, of the human development and of the individual
COSTA, 2012). growing towards consciousness. One can think
Moreover, there is the questioning about the of the fertility of the analytic encounter that was
change of position of the idea of ​​healing, giving seen in the reported case. The mango trees will
place to the idea of ​​caring, in an attempt to es- bloom, as José said; and it was through the af-
cape the exclusive focus of the organicist theories fection between us that the pollination of this
always “concerned with the future and with the analytic encounter occurred. Thus, as Bachelard
cure” (LEWIS, 1999, apud ROSSETTI-FERREIRA, (2019) says: “For this dreamer immobilized on
COSTA, 2012). the ground, the tree returns the mobility of birds
There is also an invitation to think about inter- and the sky”. ■
ventions in Mental Health, in an attempt to break
with crystallized patterns and their stereotypes. Received: 08/18/2021 Revised: 11/02/2021
According to Lewis’ ideas (1999), the tendency to

86 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Resumo
Do chão do pátio a um encontro possível: argila no tratamento de um paciente
psiquiátrico
O presente texto tem como objetivo fazer apresentado ao paciente durante as sessões
um relato da experiência do atendimento psi- que ocorriam três vezes por semana duran-
cológico realizado com um paciente residente te o período de um ano. Ao longo do trabalho
em um hospital especializado em saúde mental. foi possível perceber a melhora dos sintomas
Ele apresentava sintomas de auto e heteroag- agressivos e a remissão dos rituais com as fez-
ressões, além de realizar um ritual de passar es. A argila proporcionou uma despotencial-
as próprias fezes nas paredes do hospital. Foi ização dos conteúdos agressivos da psiquê do
proposta uma intervenção com o uso da argi- cliente e serviu como objeto intermediário entre
la como recurso expressivo. Esse material foi paciente e psicoterapeuta. ■

Palavras-chave: saúde mental, argila, recurso expressivo, despotencialização.

Resumen
Desde el piso del patio a un posible encuentro: la arcilla en el tratamiento de
un paciente psiquiátrico
Este texto tiene como objetivo relatar la ex- rante las sesiones que se realizaron tres veces
periencia de la atención psicológica brindada por semana durante el período de un año. A
a un paciente que reside en un hospital espe- lo largo del trabajo se pudo notar la mejoría
cializado en salud mental. Mostró síntomas de de los síntomas agresivos y la remisión de los
autoagresión y hetero agresión, además de re- rituales con las heces. La arcilla proporcionó
alizar un ritual de pasar sus propias heces por un desempoderamiento de los contenidos
las paredes del hospital. Se propuso una in- agresivos de la psique del cliente y sirvió como
tervención con arcilla como recurso expresivo. un objeto intermediario entre el paciente y
Este material fue presentado al paciente du- el psicoterapeuta. ■

Palabras clave: salud mental, arcilla, recurso expresivo, desempoderamiento.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 87


References
AMARANTE, P. Manicômio e loucura no final do século e JUNG, C. G. et al. (Orgs.). O homem e seus símbolos. Rio de
do milênio. In: FERNANDES, M. I. A. (Org.). Fim de século: Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1964.
ainda manicômios? São Paulo, SP: Universidade de São
Paulo, 1999. p. 47-53. MELLO, L. C. Nise da Silveira: caminhos de uma psiquiatra
rebelde. Rio de Janeiro, RJ: Automática, 2014.
________. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de
Janeiro, RJ: Fundação Oswaldo Cruz, 2007. OAKLANDER, V. Descobrindo crianças: a abordagem
gestáltica com crianças e adolescentes. São Paulo, SP:
ANDRADE, C. D. Corpo. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1985. Summos, 1974.

BACHELARD. G. A terra e os devaneios da vontade: ensaio PAIN, S.; JARREAU, G. Teoria e técnica da arte terapia. Porto
sobre a imaginação das forças. São Paulo, SP: Martins Alegre, RS: Arte Médica, 1996.
Fontes, 2019.
ROSA, J. G. Primeiras estórias. 5. ed. Rio de Janeiro, RJ: José
CARRANO, E. A argila como instrumento terapêutico e Olympio, 1969.
expressão do imaginário. Rio de Janeiro, RJ: Pomar, 2002.
(Coleção Imagens da Transformação). ROSSETTI-FERREIRA, M. C.; COSTA, N. R. A. Construcción
de vínculos afectivos en contextos adversos de desarrollo:
DIAS, A. C. Oficina criativa e psicopedagogia. São Paulo, SP: importancia y polémicas. Scripta Nova, Barcelona, v. 16,
Casa do Psicólogo, 1996. n. 395, 2012.

FURTADO, J. P. Responsabilização e vínculo no tratamento ROSSETTI-FERREIRA, M. C; AMORIN, K. S.; SILVA, A. P.


de pacientes cronificados: da unidade de reabilitação de S. Uma perspectiva teórico-metodológica para análise do
moradores ao CAPS Estação. São Paulo, SP: Hucitec, 2001. desenvolvimento humano e do processo de investigação. Psi-
cologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 1-20,
GOUVÊA, A. P. Sol da terra: o uso do barro em psicoterapia. 2000. https://doi.org/10.1590/S0102-79722000000200008
São Paulo, SP: Summus, 1990.
SILVEIRA, N. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ:
HILLMAN, J. Suicídio e alma. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993. Alhambra, 1982.

JUNG, C. G. A energia psíquica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. ________. Mundo das imagens. São Paulo, SP: Ática, 1992.

88 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.89-102

O complexo heteropatriarcal: uma con-


tribuição para o estudo da sexualidade na
psicologia analítica a partir da teoria social

Gustavo Pessoa*

Resumo Palavras-chave
Este artigo consiste em uma articulação teó- Complexo,
rica entre a psicologia analítica de C. G. Jung e heteropatriar-
as referências contemporâneas na teoria social cado, sexuali-
dade, gênero.
com o objetivo de aprimorar a escuta clínica de
psicólogos e de outros profissionais que prestem
atendimento à população em relação a questões
de gênero e sexualidade. Por meio desta apro-
ximação, pretendo tecer contribuições teóricas
que possibilitem uma escuta clínica mais efeti-
va que considere os aspectos sociopolíticos dos
conflitos individuais sem prescindir da perspec-
tiva psicológica. ■

* Psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica de São Pau-


lo (PUC/SP). Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela
Universidade de São Paulo (USP). Analista Trainee da SBPA.
Mantém consultório particular em São Paulo, SP.
E-mail: gustavompessoa@gmail.com

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 89


Junguiana
v.39-2, p.89-102

O complexo heteropatriarcal: uma contribuição para o estudo da sexualidade


na psicologia analítica a partir da teoria social

A proposta deste artigo é contribuir com o cultural, este último uma ampliação teórica pro-
estudo da sexualidade na psicologia junguiana, posta por Singer e Kimbles (2004)1. A origem dos
partindo de proposições que vem sendo elabo- complexos parece se relacionar à formação e à
radas na teoria social desde os anos 1970. Tal consolidação da experiência individual ou cultu-
articulação entre saberes tem como objetivo so- ral acerca de uma determinada função ou expe-
fisticar a escuta clínica nesta abordagem, nas riência psíquica, de modo que temos complexos
ocasiões em que o analista junguiano se depara maternos, paternos, complexo de inferioridade,
com questões relativas à sexualidade humana. entre outros que versam sobre nosso funciona-
Para avançar sobre o tema, procuro demons- mento particular em relação a experiências co-
trar que, dentro do arcabouço teórico elaborado muns que nos atravessam como humanos.
por C. G. Jung, alguns fenômenos podem ser to- No estudo da sexualidade, a diferenciação
mados por sua dimensão arquetípica e caracteri- entre um fenômeno que expresse um arquétipo
zados como enunciadores de arquétipos. A con- ou um complexo pode se tornar capital, uma vez
ceituação de arquétipo, pela própria definição que a premissa de imutabilidade e eternidade
junguiana, relaciona-se aos potenciais presen- do arquétipo pode lhe conferir um contorno de
tes no inconsciente coletivo inacessíveis à psi- verdade ou essência. Na seara dos desejos, ver-
que individual e de caráter primordial, relativos dade ou essência frequentemente são usadas
às experiências acumuladas no desenvolvimen- como termos que validam uma norma e, portan-
to da espécie humana (JUNG, 2014). Em oposi- to, ditam o que é desejável e indesejável, certo
ção à possibilidade de caracterizar um fenôme- ou errado. Em termos práticos, essa discussão
no como diretamente arquetípico, poderíamos se espalha com diferentes linguagens em nossa
nomeá-lo como enunciador de um complexo. O sociedade e noutros campos do conhecimento
complexo pode ser compreendido como um cen- quando pensamos na sexualidade. Basta que
tro de energia cujo funcionamento independe da pensemos no dilema “nasce-se gay ou se torna
vontade do eu, abastecido por uma dimensão gay?” para que entendamos a importância da
arquetípica e que atua de forma concorrente à discussão a respeito do que fala diretamente so-
consciência. Muitas vezes, o complexo traz pre- bre um arquétipo ou de fenômenos que estariam
juízos ao funcionamento consciente pela falta de mediados por complexos.
elaboração dos conflitos que ele traz ao nosso Ao contrário do funcionamento do complexo,
eu (JUNG, 2015), embora também se apresente o arquétipo é um construto que antecede a for-
como concentração de energia de potencial cria- mação da consciência individual; ele é apriorís-
tivo, o que impulsiona o desenvolvimento da tico e, portanto, não é sensível às mudanças que
personalidade. A ideia de complexo penetrou na temos na história de vida pessoal. O arquétipo
cultura desde sua primeira proposição e temos,
entre os mais frequentemente citados, o comple- 1
Para os autores, o complexo cultural se refere à área da me-
mória histórica coletiva mobilizada por um afeto, comumente
xo de édipo e o complexo de inferioridade, den- marcada por uma experiência traumática e que possui um fun-
tre outros exemplos. do arquetípico. Desta forma, complexos culturais atravessam a
todos nós em certo grau de coletividade. Podemos, no Brasil,
O complexo pode ser particular a uma psique trabalhar com os exemplos da invasão portuguesa e genocídio
individual, no caso do complexo pessoal, ou a indígena subsequente, da escravidão e da ditadura civil-militar
iniciada em 1964 como possibilidades de pensarmos comple-
uma dada coletividade, no caso de um complexo xos culturais que permeiam o inconsciente dos brasileiros.

90 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.89-102

nos fala sobre uma predisposição inata à forma- tanto da identidade2 como da sexualidade. A
ção de certas imagens na psique e ao cumpri- intenção dessa perspectiva é cessar a visão da
mento de algumas funções na vida, como a fun- heterossexualidade como um dado apriorístico.
ção materna, por exemplo (JUNG, 2014). O que Em vez disso, podemos pensar a heterossexua-
se transforma no decorrer da vida é a expressão lidade como o complexo que se forma na psique
arquetípica que ocorre por imagens, pela arte, humana a partir de nossos desafios em elaborar
pelos sonhos e pelos complexos individuais e um fenômeno muito mais amplo em sua origem,
culturais. Desta forma, argumentar que concei- a própria sexualidade. Talvez esta possa mais
tos que habitam as discussões sobre sexualida- facilmente se encaixar na categoria de arquéti-
de sejam diretamente arquetípicos pode trazer po. Também resta importante notar que, como
o verniz do essencialismo sobre temas como filho do capitalismo, o complexo heteropatriar-
a homossexualidade e a heterossexualidade, cal abarca os conflitos que emergem entre os
o que não se conforma com os debates con- impulsos sexuais e o sistema socioeconômico
temporâneos na teoria social a respeito destas que erigimos, indisposto por natureza a abarcar
questões. Além disso, dificultam a ênfase sobre múltiplas possibilidades que não sejam padroni-
os conflitos que vivenciamos, uma vez que a si- záveis e comercializáveis em larga escala.
tuação conflituosa ocorre na interação humana A escolha do termo complexo heteropatriar-
aqui e agora. O arquétipo, por psicoide e não cal toma emprestada a noção de Preciado (2017)
humano, não é em si mesmo o palco dos confli- de que a vivência das opressões e conflitos
tos. Por isso, optei por trabalhar com o conceito relacionados à sexualidade não se refere ape-
de complexo, trazendo a noção de experiência e nas à problemática do desejo entre os opostos
construção histórica como fundamentais para a homem-mulher; antes, hierarquiza o homem
elaboração da psique humana. branco heterossexual e suas associações este-
Precisamos superar certa visão monolítica reotípicas como superiores às questões da hete-
do par hetero-homossexualidade que o enxer- rossexualidade da mulher. Além disso, ressalta
ga como características identitárias aplicadas as relações de poder construídas numa lógica
aos sujeitos, possivelmente estanques ao lon- patriarcal que privilegiam a heterossexualidade
go da vida, de ordem arquetípica. Uma pers- do homem. Para estes fins, torna-se mais preciso
pectiva que me parece mais interessante é a trabalharmos com a ideia mais ampla de hetero-
visão desta problemática como pertinente a patriarcalidade. A crítica à heterossexualidade
um complexo cultural, denunciador de confli- neste texto, portanto, deve sempre ser compre-
tos que nos atravessam a todos na exploração endida como crítica à heteropatriarcalidade.
do fenômeno da sexualidade como foi viven- Proponho, quando nos debruçamos sobre a
ciado ao longo dos séculos, formando a noção categoria mais clássica a respeito da sexualida-
coletiva de como deveríamos, supostamente, de, isto é, o par hetero-homossexualidade, lar-
vivenciá-lo e compreendê-lo. gamente criticado por Foucault (2020), que es-
Uma vantagem de tratar o fenômeno da he-
terossexualidade como complexo em vez de ar- 2
A palavra identidade surge aqui para diferenciar as mo-
quétipo reside no alinhamento com as propostas dalidades de dissidência da norma heteropatriarcal. A vi-
sibilidade dada às sexualidades dissidentes, quais sejam, a
contemporâneas da teoria social e da história identificação dos corpos com o desejo orientado para outros
corpos, no caso das homossexualidades e bissexualidades,
que fundamentam essa proposta. A partir des- expandiu-se para enxergarmos as identidades dissidentes
tas contribuições, paramos de tratar a heteros- atreladas à sexualidade, como é o caso de pessoas que se
identificam como travestis. Neste caso, não se tratam apenas
sexualidade como uma predisposição essencial de sexualidades orientadas pelo desejo em direção ao outro,
do ser humano, em vez disso tomando-a como mas inclui a relação da psique consigo própria, o que nos
leva a usar o termo identidade ou identidade de gênero jun-
uma dentre muitas possibilidades de expressão tamente ao termo sexualidade.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 91


Junguiana
v.39-2, p.89-102

tejamos tratando de um complexo em vez de um permitem a construção da sociedade capitalista


arquétipo. A clareza com a qual o autor nos traz ocidental como a conhecemos, fundamentada
o processo histórico que sustenta as transforma- na família nuclear heterossexual. Este modelo
ções que levam à nossa ideia atual de sexualida- produz a exclusão de tudo o que é considerado
de como heterossexualidade instiga a reflexão desviante da norma com a finalidade de permi-
de que estejamos tratando de uma experiência tir a acumulação de poder e riqueza por meio da
localizada, portanto parcial e marcada por es- escalabilidade do padrão heterossexual. Tudo o
pecificidades, o que melhor se inscreve na ideia que desvia do objetivo outrora político e poste-
de complexo. Essa perspectiva é sustentada por riormente fabril do casamento heterossexual é
Katz (1996) quando o autor argumenta que a excluído e destituído de legitimidade, permane-
heterossexualidade é um fenômeno histórico re- cendo às margens da sociedade.
cente e de compreensão mutante a partir de sua Este funcionamento pode parecer estranha-
formulação no século XIX. Ora, se estamos dian- mente familiar aos conhecedores da teoria dos
te de um fenômeno localizado historicamente, complexos de Jung (2015). O autor também pro-
pontuado por transformações, de compreensão põe que a formação de complexos se relaciona
cambiante e marcado por conflitos ao longo de à atitude da consciência de apartar uma dimen-
seu tempo de existência, é mais provável que es- são da psique do restante do eu, produzindo a
tejamos tratando de um fenômeno mediado por exclusão de conteúdos que sejam conflituosos
um complexo, este por sua vez amparado por ou dolorosos para o sujeito e que atuam de ma-
bases arquetípicas, em vez de discutirmos dire- neira autônoma. O benefício da dissociação para
tamente o arquétipo que o fundamenta. A noção a consciência está na possibilidade de se iden-
de complexo como algo de ordem coletiva nos tificar como um eu razoavelmente consistente e
permite dar guarida às teorias construcionistas unificado. Este mesmo eu cuidadosamente de-
na psicologia analítica: muito do que vivemos senvolvido, contudo, permanece sob prejuízo de
psicologicamente se trata de uma construção so- afastar elementos da personalidade por consi-
ciocultural3. Katz (1996) afirma, ele mesmo, que derá-los estranhos ao seu senso de si mesmo.
a heterossexualidade foi uma construção social, Sei bem, na clínica, o quanto do trabalho ana-
isto é, foi mesmo inventada. lítico reside em restabelecer pontes entre um eu
Wittig (1992) traz a reflexão da heterossexu- individual e os conteúdos que foram considera-
alidade como um modo de pensamento e, de dos estrangeiros a suas identidades e são rejei-
forma mais sofisticada, um sistema político que tados pela consciência. Um movimento similar
ordena a vida pública e privada de todos nós. pode ser observado na dinâmica do preconceito
Tanto esta autora quanto Katz (1996) anunciam, como fenômeno social, vista a dificuldade em
em acordo com Foucault (2020), que a heterosse- nos relacionarmos com as sexualidades que
xualidade como a conhecemos serve ao propósi- distam da norma heterossexual. O padrão de
to de estabelecimento de normas e padrões que funcionamento do pensamento heteropatriarcal,
mais uma vez, se assemelha à dinâmica tipica-
3
A perspectiva construcionista trazida por Katz (1996) é cor- mente observada em complexos individuais, o
roborada na obra do autor por diversos outros autores e pes- que leva inevitavelmente à erupção de conteú-
quisadores. No campo feminista radical, temos desde Betty
Friedman em 1963, Kate Millett em 1970 e Gayle Rubin em dos sombrios representados por sexualidades
1975 até o feminismo lésbico de Margaret Small em 1970 e
Monique Wittig em 1975, como veremos adiante. Nos estu- dissidentes da norma.
dos feministas negros, temos de Angela Davis desde os anos É necessário notar que, na psicologia analíti-
1960 a Kimberlé Crenshaw que emerge no fim dos anos 1980
com o conceito de interseccionalidade. Na filosofia, vemos a ca, somos atravessados por ao menos dois fatos
obra de Foucault e a partir da filosofia emerge o campo de históricos relevantes no estudo da sexualidade.
estudos de gênero, cujo expoente maior é Judith Butler e sua
obra seminal Problemas de Gênero, publicada em 1990. O primeiro é a separação entre Freud e Jung ter

92 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.89-102

ocorrido por uma divergência teórica que tan- vessada pelo complexo heteropatriarcal que
ge ao fenômeno da sexualidade, quando Jung atua sobre nossa forma de pensar e enxergar o
(2013a) afirma que a libido não possui funda- mundo. Não haveria qualquer motivo para que
mento exclusivamente sexual, mas tem o caráter o complexo cultural, como conjunto de imagens
mais amplo de energia psíquica, distanciando- coletivas a respeito de experiências históricas
-se da psicanálise do início do século XX. Mes- de difícil elaboração, não afetasse Jung de ma-
mo abrindo esta discordância, o autor enaltece neira semelhante, fazendo-o ignorar ou mesmo
a função da psicanálise em algumas circunstân- consentir com estereótipos e reminiscências do
cias, não tratando mais especificamente das di- trauma sociocultural a respeito da sexualidade
nâmicas de sexo e desejo de forma aprofundada que assola o ocidente. Cabe resgatar o próprio
a partir de seu rompimento com Freud. Este fator autor, quando confessa que, sobre o amor, ele
constitui hipótese relevante do porquê a sexua- não havia mesmo entendido nada (JUNG, 2005).
lidade parece tema pouco explorado na psicolo- Devo explicar o que pretendo ao afirmar que
gia analítica, afinal, para que estudar um motivo existe um pensamento heterossexualizado.
de divergência tão fundamental que, segundo o Para isso, faço um pequeno resgate histórico
próprio Jung (2013a), parece ter sido suficiente- tributário a Katz (1996) sobre o uso das pala-
mente abarcado pela psicanálise? vras hetero e homossexualidade, rememorando
O segundo elemento relevante é autobiográ- o pano de fundo da medicina do século XIX, a
fico: do conhecimento que dispomos, Jung exer- partir da qual se viu nascer também a psica-
ceu sua vida como homem branco heterossexual nálise e posteriormente a psicologia analítica.
com muita desenvoltura, casando-se com uma Segundo o autor, o par hetero-homossexuali-
mulher branca heterossexual e relacionando-se dade é reconhecido pela primeira vez no final
com inúmeras outras (BAIR, 2004). Quando bus- do século XIX, na obra Psychopatia Sexualis, do
cou teorizar sobre o tema do gênero, Jung (2014) psiquiatra alemão Krafft-Ebing.
fez uma contribuição a partir de um pensamento Esta obra tem papel fundamental para o es-
fundamentalmente heterossexualizado. Em pri- tabelecimento da noção de uma sexualidade
meiro lugar, propôs o par anima-animus como normal e desviante dentro do novo padrão ilumi-
um componente psíquico inconsciente contras- nista europeu no qual os fenômenos são obser-
sexual. Afirmou, por dedução, que, como havia vados para que sejam avaliados e, se necessário,
encontrado uma figura feminina que emergiu curados. Neste caso, a cura significa adaptação
a partir de seu inconsciente, haveria, portanto, à sociedade heteropatriarcal e a medicina toma
uma figura masculina equivalente atuando com um papel que anteriormente pertencia à religião.
função similar no inconsciente das mulheres. A partir desta publicação, o tema foi explorado
Essa incursão teórica na psicologia do gêne- majoritariamente por médicos homens, brancos
ro não foi fundamentada por pesquisa direta, e heterossexuais, que omitiram o eixo normativo
como no caso da teoria dos complexos; dados deste par, a heterossexualidade, para concen-
bibliográficos secundários, como na teoria dos trar suas explorações no que era considerado
tipos psicológicos; experiência clínica direta, um desvio, como no caso da homossexualidade,
a partir da qual propôs inúmeros conceitos; ou com vistas à cura-adaptação.
estudo comparativo das mitologias e religiões, O questionamento do pensamento médico
como no caso da teoria arquetípica. Uma hipó- se desenvolve na filosofia e nas ciências so-
tese que paira sobre a formulação dos conceitos ciais, relacionando-se às lutas pelos direitos das
de anima e animus, a qual estranhamente fugiu mulheres a partir dos anos 1960. Rubin (2017)
aos métodos científicos e rigorosos aplicados afirma a existência de um sistema sexo-gênero
por Jung, é a de que ela mesma possa ser atra- como um fenômeno histórico que organiza nos-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 93


Junguiana
v.39-2, p.89-102

sas relações. Para Butler (2003), o gênero é uma será vista, no capitalismo industrial dos séculos
performance intimamente relacionada com a cul- XVIII e XIX, como perfeita unidade para produção
tura e, como tal, possui um caráter socialmente de pessoas que atuarão de forma escalável na
construído e mutável. Rubin (2017) não concebe produção das fábricas surgidas com a revolução
o sexo separadamente do gênero, uma vez que industrial. É interessante notar a convergência
ambos são categorias destinadas à organização entre as demandas por trabalhadores, a con-
social dos nossos desejos e possibilidades. Ber- solidação do conceito de casamento por amor
ry (2014) caminha em perspectiva semelhante romântico e da identidade sexual alinhada à
no seminal O Dogma de Gênero, dentro da psi- função reprodutiva. Esta conjunção de fatores
cologia analítica, anunciando a fixidez de gênero parece propiciar a validação de que o sexo e a
como uma estratégia (hetero)patriarcal de orde- sexualidade possam ser exercidos de forma sen-
nação e controle, tal como fazem as autoras das sual, isto é, os atos sexuais podem nesta época
teorias sociais. A identidade sexual nasce no ser concretizados e o amor toma forma material
seio das discussões de gênero e não deve ser em vez do ideal abstrato vivido em épocas ante-
confundida com os atos sexuais. É interessante riores (KATZ, 1996).
notar que o conceito de fluidez de sexo e gênero O par complementar que produzirá filhos,
é um avanço proposto por mulheres e pessoas compreendido então como homem e mulher,
LGBTs, brancas e negras, em contrapartida à te- se articula no pensamento de forma diferente
orização rígida de divisões e categorias anterior- às modalidades anteriores de interpretação. A
mente propostas por homens brancos heteros- ideia de complementaridade também não pare-
sexuais na medicina. ce se sustentar na mítica grega, fonte de estudo
Analisando a ideia de heterossexualidade cara à psicologia analítica. A maioria dos mo-
anterior aos séculos XIX e XX, Katz (1996), ar- tivos arquetípicos encarnados em personagens
gumenta existir grave anacronismo na fantasia não se relaciona a um par fixo homem-mulher,
de que existia homossexualidade como identi- embora possamos observá-lo com suas carac-
dade na Grécia Antiga. O autor demonstra que terísticas específicas no par Zeus-Hera e no par
o desejo pelo mesmo sexo ou pelo sexo oposto Eros-Psique, os quais parecem fundamentar a
era vivido como atos em vez de compreendido ideia de casamento como instituição e união
como aspecto da personalidade individual. A por amor, respectivamente. Entretanto, com
própria noção de indivíduo não existia à época. mais frequência, observamos mitemas de per-
A nomeação de uma pessoa como heterosse- sonagens individuais dotados de fenomenolo-
xual ou homossexual, segundo o autor, ocorre gia própria, como o nascimento de Dioniso, os
nos manuais de medicina e chega aos Estados trabalhos de Hércules, os julgamentos de Ate-
Unidos apenas em 1892. A própria formulação na, entre outros exemplos.
de heterossexualidade passa por mudanças O complexo heteropatriarcal como propo-
até se estabelecer como norma contra a qual se nho se aproxima, teoricamente, ao dinamismo
colocam as demais sexualidades a partir do sé- patriarcal de consciência (NEUMANN, 1990). Tal
culo XX. A ideia dos homossexuais gregos pode funcionamento atua como estruturador de uma
ser considerada mais uma fantasia trazida pelo discriminação binária dos elementos que viven-
complexo heteropatriarcal. ciamos. O sexo e o gênero, nesta compreensão,
A emergência das identidades sexuais é um se dividem em dois e permanecem nessa dua-
fenômeno do século XX no continuum histórico lidade rígida, jamais se elaborando em três ou
que vai tornando prevalente a fantasia do amor mais categorias, fixando-se numa etapa da cons-
romântico e sensual entre indivíduos comple- ciência que traz desafios à própria individuação.
mentares que formarão uma família. A família Ao se distanciar da profusão dos desejos e não

94 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.89-102

se constituir como um sistema de afetos, o com- incluindo a luta contra o que ali se compreendia
plexo heteropatriarcal assume um papel mais como chauvinismo. O entrelaçamento de temas
moral e ético, determinando o que é certo e er- revela a disposição de parte do movimento LGBT
rado em relação a nossos desejos e cumprindo norte-americano da época em reconhecer o cará-
um papel político de organização e ordenação ter político de sua identidade sexual, fundamen-
social. Dessa forma, o complexo atua em sua for- tando a luta pelo reconhecimento dos direitos
mação mais sombria, transformando em estrutu- pertinentes à sexualidade no campo da política.
ra lógica aquilo que inicialmente era uma pulsão Neste sentido, o movimento LGBT da época tem
erótica. Tudo é dois. Todo dois é homem e mu- mais sucesso em articular a dimensão erótica
lher, masculino e feminino. Essa divisão reforça privada à racionalidade da lógica pública, sem
a compreensão da heterossexualidade como fe- prejuízo entre os campos. O manifesto se torna
nômeno de validade universal não questionado, um documento histórico clássico para o mo-
o que se anuncia na sociedade contemporânea vimento LGBT norte-americano e termina com
em exemplos desde as tomadas macho e fêmea uma citação de Marcuse (1999, Prefácio Político,
das lojas de construção até as articulações entre p. xxi): “hoje, a luta por Eros, a luta pela vida, é
mulher, feminino e sensibilidade, por um lado, e a luta política”.
a identificação do homem com masculino e as- O movimento LGBT brasileiro historicamen-
sertividade, por outro. Estas associações refor- te interagiu com outras frentes de lutas políti-
çam um binarismo a serviço da manutenção de cas, participando de inúmeras manifestações
uma ordem social de exclusão do Eros em sua a favor do movimento negro e dos sindicatos
potência arquetípica. A função dessa dinâmica por melhores condições trabalhistas nos anos
opressiva se concentra em normatizar maniaca- 1980 (GREEN, 2018). Formado no final dos anos
mente em vez de possibilitar a vivência erótica. 1970, o movimento LGBT no Brasil buscou par-
Roughgarden (2005) fortalece a hipótese ticipação na cena política brasileira de forma
da existência de um complexo heteropatriar- autônoma, mas também pela via partidária,
cal ao afirmar, como bióloga, que as pesquisas nos anos 1980 se aproximando do Partido dos
no campo das ciências naturais não apontam Trabalhadores. Nota-se, naquele contexto, uma
para o binarismo de sexo-gênero. Ao contrário, enorme rejeição à incorporação das pautas do
a autora lista inúmeras espécies que apresen- movimento, esclarecendo-se desde então a
tam mais de dois sexos-gêneros e outras em LGBTfobia que marca o pensamento brasileiro
que há mudança de sexo-gênero durante a vida de todo o espectro político. Mesmo dentro do
de um animal. Concluo, baseando-me em Rou- movimento LGBT brasileiro, fica posta a dificul-
ghgarden (2005), que a leitura de um sistema dade em promover relações iguais em relação
sexo-gênero dual pode ser vista como uma in- às mulheres lésbicas e às pessoas trans (GRE-
terpretação cultural nossa. O viés exercido pelo EN, 2018), mais uma vez reproduzindo o desa-
complexo cultural da heteropatriarcalidade nos fio do complexo heteropatriarcal hierarquizante
impele a enxergar um par complementar mes- que valoriza o homem branco em detrimento de
mo onde ele não se apresenta. mulheres e pessoas identificadas com outras
Em 1970, a publicação nos Estados Unidos do possibilidades de sexo e gênero.
Gay Manifesto pelo ativista de causas LGBTs Carl A partir das lutas dos anos 1980 e 1990, a
Wittman (1970) sintetiza o movimento que emer- questão gay ganha mais espaço na mídia e na
ge naquela sociedade. O documento, quando foi política. O avanço da luta por direitos e a nova
revisado, urgiu as pessoas para considerar atu- visibilidade privilegia novamente os homens
arem de forma política, como protagonistas de brancos gays, enquanto o Brasil se mantém ano
uma mudança social que incluía outros temas, após ano como o líder mundial em assassina-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 95


Junguiana
v.39-2, p.89-102

to de pessoas trans, segundo o Grupo Gay da heteropatriarcal: a de que existem apenas dois
Bahia. A exclusão de mulheres e pessoas trans sexos-gêneros e suas possíveis combinações.
não é novidade: após os movimentos em reação A emergência do gay branco como possível pro-
ao massacre de Stonewall de 1969 nos Estados tagonista de algumas circunstâncias numa so-
Unidos, do qual participaram as travestis Mar- ciedade tingida por este complexo não causa
sha P. Johnson, uma mulher trans negra, e Sylvia fissura definitiva em seu funcionamento, já que
Rivera, mulher trans latina, esta última é expulsa a combinação homem-homem não rompe com
por homens gays brancos de um palco em uma o caráter dual necessário para a constituição
parada gay de Nova York, em explícita transfobia da heterossexualidade e do patriarcado. O que
(DUBERMAN, 2018). ocorre, contudo, ao pensarmos que não há um
Uma fantasia comum sustentada pelo com- número pré-estabelecido de sexos e gêneros? E,
plexo heteropatriarcal é esta: a heterossexua- principalmente, se pudermos pensar que este
lidade sempre existiu, ao contrário de outras número não é necessariamente o dois? Mais ain-
expressões da sexualidade. Quanto menos uma da, como podemos pensar que as sexualidades
sexualidade se conforma dentro da heterossexu- e os gêneros podem não ser apenas um ou dois
alidade patriarcal, seja por semelhança ou opo- dentro da mesma pessoa? São estas as primei-
sição a ela, como no caso da homossexualidade ras perguntas que me ocorrem no esforço de
masculina branca, tanto mais esta sexualidade questionar o pensamento heteropatriarcal.
será vista como estranha e recém-descoberta. A consequência dessa reflexão é a insusten-
Como nos mostra Katz (1996), a narrativa hete- tabilidade mesmo do par consciência masculi-
rossexual é a de que ela é e sempre foi a norma. na-figura feminina inconsciente, como propôs
Por ser a norma, portanto o normal, ela prescinde Jung (2014). Tal construto é fruto da fantasia he-
de explicações e tem a qualidade daquilo que é terossexual de dualidade essencial, o que não
eterno e essencial. Todo o resto são fenômenos se comprova quando dialogamos com pessoas
estranhos que emergem em algum momento, trans e outras sexualidades dissidentes da nor-
seja a partir da norma ou como desvio indeseja- ma. Outro precioso ensinamento de meu fazer
do da norma. As sexualidades homoeróticas ou clínico, repetido à exaustão por diversos pro-
trans seriam, portanto, fenômenos derivados (e fessores e confirmado pela própria experiência,
desviantes) da heterossexualidade e posteriores é de que jamais devemos buscar encaixar pes-
a ela, mais recentes, segundo a fantasia. soas nas teorias, conforme a própria obra de
Um exame histórico apurado, contudo, des- Jung nos traz. A função da teoria psicológica, de
mancha no ar tal fantasia sem qualquer dificul- origem empírica como posto pelo próprio Jung
dade. Mesmo em um país com dificuldade em (2015), é poder dar conta dos fenômenos que
manter registros históricos, temos a existência a vida nos apresenta, jamais tentando encaixar
de Xica Manicongo, a primeira travesti identifi- as pessoas em nossas ideias a fim de validar o
cada na terra brasilis, na cidade de Salvador nos que foi pensado.
idos de 1591 (JESUS, 2019). Xica Manicongo era Uma alternativa ao pensamento heterossexu-
uma travesti negra que andava livre pelas ruas al é a contrassexualidade, como nos apresenta
da cidade, até a primeira visita da Inquisição no Preciado (2017). Segundo o autor, este termo é
Brasil, o que a obrigou a usar trajes destinados uma proposta de enxergar o sexo e a sexualida-
aos homens para se salvar de punições contra de incorporando suas construções sociopolíti-
sua vida. cas e de ler o regime heterossexual e suas conse-
A visibilidade das identidades trans e das quências a partir de outro ponto de vista. Um dos
sexualidades subalternizadas nos ajudam a esforços nesta perspectiva é poder questionar a
repensar outra fantasia comum do complexo fácil associação entre a sexualidade e a genitá-

96 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.89-102

lia, o que inscreve fatalmente a identidade sexu- que serão mantidos a uma distância e uma abs-
al novamente no par homo-heterossexual e pri- tração apropriadas, por outro.
vilegia a genitália aparente, ou seja, a anatomia No Brasil dos anos 1980, popularizou-se o
sexual do homem. Conforme nos mostra Laqueur show de transformistas na TV e foi recorde de
(2001), na visão do século XIX os corpos eram vendas numa revista de nudez o corpo de uma
identificados em seu gênero a partir de uma no- das mulheres transexuais mais famosas do país
ção de calor físico: os corpos dos homens eram à época. A distância mediada pela TV e pela re-
mais quentes e os corpos das mulheres mais vista são apropriadas e os corpos dissidentes
frios e, por isso, mulheres possuíam vaginas, as podem ser sexualizados em segredo, mantendo
quais eram uma atrofia do órgão reprodutor de- a estrutura pública da heterossexualidade como
vida a falta de calor. Se as mulheres tivessem o o sistema a ser perseguido, jamais questionan-
nível adequado de calor (como os homens), to- do sua estabilidade.
dos teriam pênis. Muitas vezes, sequer questionamos a dis-
Ao explorar a proposta de Deleuze de homos- tância que adquirimos dos eventos das sexua-
sexualidade molecular, Preciado (2017) nos dá lidades dissidentes e também não percebemos
visão dessa lógica binária que sustenta o pensa- as associações quase inconscientes entre sexo
mento heteropatriarcal: e genitália que se expressam no preconceito co-
tidiano. Quantas vezes não ouvi “mas o que fa-
Tanto a homossexualidade como a he- zem duas lésbicas juntas?” numa ode (não)aci-
terossexualidade são produto de uma dental ao falo proferida por tantas pessoas. Por
arquitetura disciplinadora que ao mes- outro lado, muitos colegas identificados como
mo tempo separa os órgãos masculinos heterossexuais jamais consideraram estranha a
e femininos e os condena a permanecer ausência de flerte entre pessoas do mesmo sexo
unidos. Desse modo, toda relação inter- em bares e restaurantes que não fossem explici-
sexual (isto é, heterossexual), é o cenário tamente identificados como LGBT ou gay friendly
do intercâmbio de signos hermafroditas até muito pouco tempo atrás.
entre almas do mesmo sexo (p. 187). Rich (2010) discorre sobre a heterossexuali-
dade compulsória, criticando o modelo que no-
Aqui, a crítica de Preciado parece residir no meia como heterocentricidade. Neste modelo, a
furor disciplinar da heterossexualidade que as- mulher é inevitavelmente levada até o homem
socia e dissocia a genitália ao mesmo tempo, como uma espécie de força gravitacional, na
obrigando que uma coniunctio ocorra a partir do qual o desejo é naturalizado e o par complemen-
encontro de corpos anatomicamente diferentes tar homem-mulher é uma fatalidade. A autora
dentro de uma perspectiva dual. A igualdade se denuncia os modos de roubar o poder das mu-
revelaria apenas no plano imaterial, no tocante lheres, seja pelo comando do trabalho domés-
às almas, e neste sentido a homossexualidade tico numa perspectiva servil e não remunerada,
e outras dissidências podem ser toleradas. Man- pelo estupro, pelo rapto de seus filhos, por sua
tendo-se o celibato e o segredo, não é problema constituição como objeto material de valor, en-
que alguém confesse impulsos homossexuais tre outros motivos. A existência lésbica, segun-
porque permanecem no nível da ideia. Este as- do Rich (2010), é continuamente apagada com o
pecto do complexo heteropatriarcal subsiste a objetivo de reforçar a heterossexualidade e colo-
partir da hierarquização do que pode ser sexua- car as mulheres numa perspectiva sem saída em
lizado e generificado para ser vivido no cotidia- que precisam se render aos homens e ao supos-
no material, por um lado, e de outros fenômenos to desejo inegável por eles.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 97


Junguiana
v.39-2, p.89-102

A subordinação da mulher é fetichizada e relações com outras mulheres. A autora retira da


erotizada, em processo semelhante à subalter- psicologia da mulher a inevitabilidade do par ho-
nização dos corpos das pessoas trans e traves- mem-mulher, libertando o desejo feminino para
tis. A inferiorização é um atributo inerente ao outras configurações pensadas a partir da feno-
patriarcado que busca ordenar, discriminar e menologia de um ser próprio, que é construído a
categorizar sem limites, a despeito das necessi- partir de si mesmo e da interação com suas se-
dades, desejos e sentimentos daqueles que são melhantes. A tentativa aqui é superar o mito da
categorizados. Atuando sombriamente, reduz- mulher como costela do homem, uma das narra-
-se uma possibilidade a sexualidade a relações tivas embebidas no complexo heteropatriarcal.
de poder e política polarizadas, denunciando a O continuum lésbico é uma das radicalidades
ação do complexo como sabotador de parte da possíveis para dentro do fenômeno da sexuali-
consciência coletiva. Isto leva à intensificação dade, povoada por muitos seres, entre eles este
de conflitos dentro da vivência de sexos e gêne- que é a mulher do século XX.
ros. Uma das alternativas de resistência aponta- O pensamento junguiano é marcado pela
da por Rich (2010) é o estímulo a relações entre proposição da tensão de opostos. Ao explicar a
mulheres no continuum lésbico, definido como noção de arquétipo em contraposição a instinto,
Jung (2014) recorre às polaridades para explicar
um conjunto – ao longo da vida de cada o funcionamento psíquico que havia descoberto
mulher e através da história – de expe- à época. Entretanto, é no mesmo Jung (2012) em
riências de identificação da mulher, não que é explorado o Axioma de Maria, trazido pela
simplesmente o fato de que uma mulher alquimista Maria Prophetissa no século III. Ao
tivesse alguma vez tido ou consciente- analisar o axioma, o autor propõe que o caminho
mente tivesse desejado uma experiência da individuação implica o desenvolvimento do
sexual genital com outra mulher. Se nós elemento inicial, o um, para o dois e, em seguida,
ampliamos isso a fim de abarcar mui- o desdobramento para o terceiro, até a formação
to mais formas de intensidade primária dinâmica do quarto elemento que retornará ao
entre mulheres, inclusive o compartilha- um transformado. Assim, desenvolvem-se o indi-
mento de uma vida interior mais rica, um víduo e a coletividade, desdobrando-se e elabo-
vínculo contra a tirania masculina, o dar rando a tensão entre opostos até que surja o ter-
e receber de apoio prático e político, se ceiro elemento criativo em direção à totalidade,
nós podemos ouvir isso em associações representada pelo quatérnio. Este, por sua vez,
como uma resistência ao casamento e é um estado provisório que retorna ao elemento
em um comportamento, digamos, “exau- único para o reinício de um novo processo, no ci-
rido”, [...], nós começaremos a compre- clo infindável da individuação. Esse dinamismo
ender a abrangência da história e da psi- do um ao quatro demonstra o caráter mutável da
cologia feminina que permaneceu fora própria polarização no processo de elaboração
de alcance como consequência de defini- psíquica, que não se localiza somente na tensão
ções mais limitadas, na maioria clínicas, entre dois elementos e cujos elementos que se
de lesbianismo (p. 35). tensionam não se mantêm necessariamente os
mesmos ao longo do processo de elaboração.
A suspeita da autora é de que existe um ex- Em outro momento, Jung (2013b) propõe que, em
cluído do olhar sobre a sexualidade quando se resultado da tensão de opostos suportada pelo
trabalha sob a ótica da heterocentricidade. Este tempo adequado, teremos a formação de um
excluído é a própria psicologia da mulher, a qual terceiro que inaugurará um novo caminho para
pode ser observada mais precisamente nas suas o conflito. Novamente, vemos o dois evoluir para

98 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.89-102

o trio de dimensões que indicará uma alternativa de homem-mulher, é interromper a expressão da


para o caminho da individuação. sexualidade em suas múltiplas possibilidades. É
A partir dessas reflexões, que nos livremos a interdição moderna do desejo e das múltiplas
do par complementar como dois termos fixos configurações de relação. Em risco, claro, ficam
que se mantêm ao longo do tempo, como o par a monogamia, as relações de pessoas que se
homem-mulher ou o par homo-heterossexual. complementam e o encaixe perfeito, porque já
Busquemos a superação do pensamento anti- não há mais o que encaixar. Precisamos enfren-
quado: a fixação normativa no par complemen- tar estes medos.
tar e na tensão de opostos, sem considerar o Freud avançou como pôde ao nomear a ho-
dinamismo que leva ao três e ao quatro para o mossexualidade como perversão. Para sua épo-
final retorno ao um e reinício do processo. Em ca, perversão era uma alternativa menos pato-
outras palavras, precisamos, como coletivida- logizante ou passível de punição que sodomia,
de, tornar obsoleta a formulação de que o dois possessão demoníaca ou desvio de caráter,
é a norma. O dois, alternativamente, pode ser outras atribuições das sexualidades dissidentes
visto como um momento no processo de desen- anteriores à formulação freudiana. Jung explici-
volvimento humano. tou o complexo heteropatriarcal justamente ao
O propósito do complexo heteropatriarcal propor uma psicologia profundamente heteros-
é nos manter a todos na fixidez do par comple- sexualizada, estruturada a partir de anima e ani-
mentar, identificado a partir da função repro- mus, imaginada a partir de uma pretensa duali-
dutiva da genitália metaforizada como solução dade que jamais deixou emergir um terceiro na
chave-fechadura para todos os conflitos da hu- própria teoria de gênero que formulou. Em certo
manidade. O caminho para dentro do fenômeno sentido, avançou e possibilitou que entrásse-
da sexualidade implica valorizarmos a possibi- mos na fantasia do par complementar para que
lidade do par complementar como um estado pudéssemos sair dela sem que precisássemos
dinâmico que não se manterá por muito tempo, matá-la. Para escutarmos quem nos procura no
seja dentro ou fora de nós. Desta forma, o de- atendimento psicológico, é necessário que su-
sejo pelo sexo oposto pode se constituir como peremos o dois como verdade última. Lutemos
um evento ou uma ocasionalidade, formando-se pelo 3 e o 4. Lutemos pela morte e renascimento
como identidade naqueles que assim se cons- da sexualidade, pois é de Eros que mais precisa-
truírem, enfim destituído de compulsoriedade. mos, ilustrado por todas as cores que tivermos
Ninguém deveria ter como obrigação existencial para vivenciá-lo. ■
ser dois ou complementar um outro. Permanecer
muito tempo no dois, inscrito sob a psicologia Recebido em: 12/06/2021 Revisão: 01/11/2021

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 99


Junguiana
v.39-2, p.89-102

Abstract
The heteropatriarchal complex: a contribution to the study of sexuality in ana-
lytical psychology based on social theory
This article consists in the articulation of the fields of knowledge closer together, I intend to
analytical psychology of C.G. Jung and the con- propose theoretical contributions that enable a
temporary references in social theory, with the more effective clinical listening that must consid-
aim of improving clinical listening of psycholo- er sociopolitical aspects of individual conflicts,
gists and other professions working with issues not dismissing the psychological perspective. ■
of gender and sexuality. By bringing these two

Keywords: complex, heteropatriarchy, sexuality, gender.

Resumen
El complejo heteropatriarcal: una contribución al estudio de la sexualidad en
psicología analítica basada en la teoría social
Este artículo consiste en una articulación teó- lidad. A través de este enfoque, pretendo reali-
rica entre la psicología analítica de C. G. Jung y zar aportes teóricos que permitan una escucha
los referentes contemporáneos en la teoría social clínica más efectiva que considere los aspectos
con el objetivo de mejorar la escucha clínica de sociopolíticos de los conflictos individuales sin
los psicólogos y otros profesionales que atien- prescindir de la perspectiva psicológica. ■
den a la población en temas de género y sexua-

Palabras-clave: Complejo, heteropatriarcado, sexualidad, género.

100 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.89-102

Referências

BAIR, D. Jung: uma biografia. Rio de Janeiro, RJ: Biblioteca _______. Sobre o amor. São Paulo, SP: Ideias e Letras, 2005.
Azul, 2004.
KATZ, J. N. A invenção da heterossexualidade. Rio de
BERRY, P. Dogma de gênero. In: BERRY, P. (Org.). O corpo Janeiro, RJ: Ediouro, 1996.
sutil de eco: contribuições para uma psicologia arquetípica.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p. 49-68. LAQUEUR, T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos
a Freud. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará, 2001.
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2003. MARCUSE, H. Eros e civilização: uma interpretação filosófica
do pensamento de Freud. Rio de Janeiro, RJ: LTC, 2018.
DUBERMAN, M. Has the gay movement failed? Oakland,
CA: University of California, 2018. NEUMANN, E. A história das origens da consciência. São
Paulo, SP: Cultrix, 1990.
FOUCAULT, M. A história da sexualidade vols. I, II e III. São
Paulo, SP: Paz e Terra, 2020. PRECIADO, P. B. Manifesto contrassexual. São Paulo, SP:
N-1, 2017.
GREEN, J. N. Forjando alianças e reconhecendo complexi-
dades: as ideias pioneiras do grupo somos de São Paulo. In: RICH, A. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica.
GREEN, J. N. et al. (Eds.). História do movimento LGBT no Revista Bagoas, Natal, v. 4, n. 5, p. 17-44, jan./jun. 2010.
Brasil. São Paulo, SP: Alameda, 2018. p. 63 -78.
ROUGHGARDEN, J. Evolução do gênero e da sexualidade.
JESUS, J. G. Xica Manicongo: a transgeneridade toma a Londrina, PR: Planta, 2005.
palavra. ReDoC: Revista Docência e Cibercultura, Rio de
RUBIN, G. Políticas do sexo. São Paulo, SP: Ubu, 2017.
Janeiro, v. 3, n. 1, p. 250-60, jan./abr. 2019. https://doi.
org/10.12957/redoc.2019.41817 SINGER, T.; KIMBLES, S. The cultural complex: contemporary
jungian perspectives on psyche and society. London:
JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes,
Routledge, 2004.
2013a. (Obras Completas, vol. 8.).
WITTIG, M. The straight mind and other essays. Boston,
_______. O eu e o inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes,
MA: Beacon, 1992.
2015. (Obras Completas, vol. 7/2.)
WITTMAN, C. A gay manifesto. New York, NY: Red Butterfly,
_______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo.
1970. Disponível em: <http://library.gayhomeland.org/0006/
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. (Obras Completas, vol. 9/1.)
EN/A_Gay_Manifesto.htm>. Acesso em: 22 fev. 2021.
_______. Psicologia e alquimia. Petrópolis, RJ: Vozes,
2012. (Obras Completas, vol. 12.).

_______. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes,


2013b. (Obras Completas, vol. 5.).

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 101


102 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021
Junguiana
v.39-2, p.103-116

The heteropatriarchal complex: a contribu-


tion to the study of sexuality in analytical
psychology based on social theory

Gustavo Pessoa*

Abstract Keywords
This article consists in the articulation of the complex,
analytical psychology of C.G. Jung and the con- heteropatriar-
temporary references in social theory, with the chy, sexuality,
gender.
aim of improving clinical listening of psycholo-
gists and other professions working with issues
of gender and sexuality. By bringing these two
fields of knowledge closer together, I intend to
propose theoretical contributions that enable a
more effective clinical listening that must consid-
er sociopolitical aspects of individual conflicts,
not dismissing the psychological perspective. ■

* Psychologist at Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


(PUC/SP). Master in Developmental Psychology at Universi-
dade de São Paulo (USP). Trainee Analyst at SBPA. He main-
tains a private practice in São Paulo, SP.
E-mail: gustavompessoa@gmail.com

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 103


Junguiana
v.39-2, p.103-116

The heteropatriarchal complex: a contribution to the study of sexuality in an-


alytical psychology based on social theory

The purpose of this article is to contribute of a cultural complex, the latter a theoretical
to the study of sexuality in Jungian psychology, expansion proposed by Singer and Kimbles
starting from propositions that have been ela- (2004)1. The origin of the complexes seems to
borated in social theory since the 1970s. Such be related to the formation and consolidation
articulation between different knowledge fiel- of the individual or cultural experience about
ds aims to sophisticate clinical listening in the a certain function or psychic experience, so
Jungian approach, especially on occasions when that we have maternal, paternal, inferiority
the Jungian analyst is faced with issues related complexes, amongst others that deal with our
to human sexuality. particular functioning in relation to common
To advance on the theme, I want to demons- experiences that run through all of us as hu-
trate that, within the theoretical framework man beings.
elaborated by C. G. Jung, some phenomena In the study of sexuality, the differentiation
can be taken for their archetypal dimension between a phenomenon expressing an arche-
and characterized as enunciators of arche- type or a complex can become crucial, since
types. The concept of archetype, by Jungian the archetype’s premise of immutability and
definition, relates to the realm of potentiali- eternity can give it an outline of truth or essen-
ties residing in the collective unconscious, ce. In the realm of desires, truth or essence are
inaccessible to the individual psyche, and of often used as terms that validate a norm and
primordial character, related to experiences therefore dictate what desirable or undesirable,
accumulated in the development of the hu- right or wrong etc. is. In practical terms, this dis-
man species (JUNG, 2014). In opposition to the cussion spreads with different languages ​​in our
possibility of characterizing a phenomenon as society and in other fields of knowledge when
directly archetypal, we could name it as the we think about sexuality. We only need to think
enunciator of a complex. The complex can be about the dilemma “were you born gay or did
understood as an energy center whose func- you become gay?” to understand the importan-
tioning is independent of one’s will, fueled ce of the discussion about what speaks directly
by an archetypal dimension and which acts to an archetype or phenomena that would be
concurrently with consciousness. Oftentimes, mediated by complexes.
the complex will bring forth challenges for the Unlike the functioning of the complex, the
development of the ego, although it also pre- archetype is a construction that precedes the
sents itself as a concentration of energy with formation of individual consciousness; it is
creative potential, which drives the develop- aprioristic and, therefore, is not sensitive to
ment of the personality. The idea of complex the changes we have in our personal life his-
has penetrated into culture since its first pro-
position. Amongst the most frequently cited, 1
For the cited authors, the cultural complex refers to the
area of collective
​​ historical memory mobilized by affection,
I would name the Oedipus complex and the commonly marked by a traumatic experience and which
inferiority complex. has an archetypal background. In this way, cultural com-
plexes permeate all of us to a certain degree of collectivity.
The complex can be particular of an indi- In Brazil, we can work with the examples of the Portuguese
invasion and subsequent indigenous genocide, slavery and
vidual psyche, in the case of the personal the civil-military dictatorship started in 1964 as possibilities
complex, or to a given collectivity, in the case for thinking about cultural complexes that permeate the un-
conscious of Brazilians.

104 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.103-116

tory. The archetype tells us of an innate pre- sion of both identity2 and sexuality. The inten-
disposition to the formation of certain images tion of this perspective is to do away with the
in the psyche and the fulfillment of certain view of heterosexuality as an aprioristic fact.
functions in life, such as mothering, for exam- Instead, we can think of heterosexuality as
ple (JUNG, 2014). What changes in the course the complex that forms in the human psyche
of life is the archetypal expression that occurs from our challenges in elaborating a phenome-
through images, art, dreams and individual non much broader in its origin, sexuality itself.
and cultural complexes. In this way, arguing Perhaps sexuality can more easily fall into the
that the concepts that inhabit discussions of category of archetype. It is also important to
sexuality are directly archetypal can bring a note that, as a child of capitalism, the hetero-
veneer of essentialism to topics such as homo- patriarchal complex encompasses the conflicts
sexuality and heterosexuality, which is not in that arise between sexual impulses and the
line with contemporary debates in social the- socioeconomic system that we have erected,
ory regarding these issues. Furthermore, they a system unwilling by nature to embrace multi-
ple possibilities that are not standardized and
make it difficult to emphasize the conflicts we
marketable on a large scale.
experience, since the conflicting situation oc-
The choice of the term heteropatriarchal
curs in the human interaction here and now.
complex borrows from Preciado’s (2017) no-
The archetype, being psychoid and not human,
tion that the experience of oppressions and
is not in itself the stage of conflicts. Therefore,
conflicts related to sexuality does not refer
I chose to work with the concept of complex,
only to the problem of desire between the
bringing the notion of experience and histori-
male-female opposites; instead, it classifies
cal construction as fundamental to the develo-
the white heterosexual male and his stereo-
pment of the human psyche.
typical associations as superior to issues of
We need to overcome a certain monolithic
female heterosexuality. Furthermore, it highli-
vision of the hetero-homosexuality pair that
ghts the power relations built on a patriarchal
sees it as identity characteristics applied to logic that privileges male heterosexuality. For
subjects, possibly stagnant throughout their these purposes, it becomes more necessary
lives, of archetypal order. A perspective that to work on the broader idea of ​​heteropatriar-
seems more interesting to me is the view of chy. The critique of heterosexuality in this
this question as pertinent to a cultural com- text, therefore, must always be understood as
plex, denouncing conflicts that cross us all in a critique of heteropatriarchy.
the exploration of the phenomenon of sexuali- I propose, when we look at the most classi-
ty experienced over the centuries in the Wes- cal category of sexuality, that is, the hetero-ho-
tern world, forming the collective notion of how mosexuality pair, widely criticized by Foucault
we should supposedly experience and unders- (2020), which we are dealing with a complex
tand sexuality. rather than an archetype. The clarity with whi-
One advantage of treating the phenomenon
of heterosexuality as a complex and not as an 2
The word identity appears here to differentiate the modali-
ties of dissent from the heteropatriarchal norm. The visibili-
archetype is in its alignment with contemporary ty given to dissident sexualities, that is, the identification of
bodies with desire oriented toward other bodies, in the case
proposals of social theory and history that un- of homosexualities and bisexualities, has expanded to see
derlie this proposal. Based on these contribu- dissident identities linked to sexuality, as is the case of people
who identify themselves as transvestites. In this case, it is not
tions, we no longer treat heterosexuality as an only about sexualities oriented by desire for the other, but in-
essential human predisposition, instead taking cludes the relationship of the psyche with itself, which leads
us to use the term gender identity or identity along with the
it as one among many possibilities of expres- term sexuality.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 105


Junguiana
v.39-2, p.103-116

ch the author brings us the historical process dered deviant from the norm in order to allow the
that supports the transformations that lead to accumulation of power and wealth through the
our current idea of ​​sexuality as heterosexuality scalability of the heterosexual pattern. Anything
instigates the reflection that it is a localized ex- that deviates from the previously political and la-
perience, therefore partial and marked by spe- ter industrial objective of heterosexual marriage
cificities, which is better inscribed in the idea of​​ is excluded and deprived of legitimacy, remai-
complex. This perspective is supported by Katz ning on the margins of society.
(1996) when the author argues that heterosexu- This functioning may seem strangely familiar
ality is a recent historical phenomenon with a to connoisseurs of Jung’s (2015) theory of com-
changing understanding since its formulation plexes The author also proposes that the forma-
in the 19th century. Now, if we are dealing with tion of complexes is related to the attitude of
a historically located phenomenon, punctuated consciousness to separate one dimension of the
by transformations, of changing understanding psyche from the rest of the self, producing the ex-
and marked by conflicts throughout its existen- clusion of contents that are conflicting or painful
ce, it is more likely that we are dealing with a for the subject and that act autonomously. The
phenomenon mediated by a complex, which benefit of dissociation for consciousness is that
in turn is supported by archetypal bases, ra- it can identify itself as a reasonably consistent
ther than directly discussing the archetype that and unified self. This same carefully developed
behind it. The notion of the complex as some- self, however, remains one at the expense of
thing of a collective order allows us to harbor pushing aside elements of the personality that
constructionist theories in analytical psycholo- are foreign to its sense of self.
gy: much of what we experience psychologically I am well aware, in my clinical duty, how
is a sociocultural construction3. Katz (1996) much of the analytic work lies in re-esta-
himself states that heterosexuality was a social blishing bridges between an individual self
construction, that is, it was invented. and the contents that were considered foreign
Wittig (1992) brings the reflection of hetero- to their identities and are rejected by cons-
sexuality as a way of thinking and, in a more so- ciousness. A similar movement can be obser-
phisticated way, as a political system that orders ved in the dynamics of prejudice as a social
the public and private life of all of us. Both this phenomenon, given the difficulty in relating to
author and Katz (1996) announce, in line with sexualities that are far from the heterosexual
Foucault (2020), that heterosexuality as we know norm. The working pattern of heteropatriarchal
it serves the purpose of establishing norms and thinking, once again, resembles the dynamics
standards that enable the construction of Wes- typically observed in individual complexes,
tern capitalist society as we know it, based on which inevitably leads to the eruption of sha-
the heterosexual nuclear family. This model pro- dowy contents represented by sexualities dis-
duces the exclusion of everything that is consi- senting from the norm.
It should be noted that, in analytical psy-
3
The constructionist perspective brought by Katz (1996) is cor- chology, we are crossed by at least two histo-
roborated in the author’s work by several other authors and rical facts relevant to the study of sexuality.
researchers. In the radical feminist field, we have from Betty
Friedman in 1963, Kate Millett in 1970 and Gayle Rubin in The first is that the separation between Freud
1975 to the lesbian feminism of Margaret Small in 1970 and
Monique Wittig in 1975, as we will see later. In black femi- and Jung occurred due to a theoretical diver-
nist studies, we have from Angela Davis since the 1960s to gence concerning the phenomenon of sexua-
Kimberlé Crenshaw who emerged in the late 1980s with the
concept of intersectionality. In philosophy, we see the work of lity, when Jung (2013a) states that the libido
Foucault and from philosophy emerges the field of gender stu- does not have an exclusively sexual basis, but
dies, whose greatest exponent is Judith Butler and her seminal
work Problems of Gender, published in 1990. has the broader character of psychic energy,

106 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.103-116

distancing him from the psychoanalysis of the not affect Jung similarly, making him ignore or
beginning of the 20th century. Even opening even consent to stereotypes and reminiscen-
this disagreement, the author praises the role ces of the socio-cultural trauma about sexua-
of psychoanalysis in some circumstances, not lity that plagues the West. It is worth rescuing
dealing more specifically with the dynamics the author himself, when he confesses that he
of sex and desire in-depth after his break with had not really understood anything about love
Freud. This factor constitutes a relevant hypo- (JUNG, 2005).
thesis of why sexuality seems to be an under- I must explain what I mean by saying that
-explored topic in analytical psychology, after there is a generalized heterosexualized thinking.
all, why to investigate a reason for dissent that To accomplish this, I make a short historical re-
according to Jung (2013a) was sufficiently ex- view, tributary to Katz (1996) on the use of the
plored by psychoanalysis? words hetero and homosexuality, recalling the
The second relevant element is autobio- background of 19th century medicine, from which
graphical: from the knowledge we have, Jung psychoanalysis and, later, analytical psychology
exercised his life as a straight white man with were also born. According to the author, the he-
great aplomb, marrying a straight white woman tero-homosexuality pair is recognized for the first
and having intimate relationships with several time at the end of the 19th century, in the work
other women (BAIR, 2004). When he sought to Psychopatia Sexualis, by the German psychiatrist
theorize on the theme of gender, Jung (2014) Krafft-Ebing.
made a contribution based on a fundamentally This work has a fundamental role in esta-
heterosexualized thought. First, he proposed blishing the notion of a normal and deviant se-
the anima-animus pair as an unconscious xuality within the new European Enlightenment
counter-sexual psychic component. He clai- standard, in which phenomena are observed
med, by deduction, that once he had found a so that they can be evaluated and, if neces-
female figure emerging from his unconscious, sary, cured. In this case, healing means adap-
there would therefore be the equivalent male tation to heteropatriarchal society and medi-
figure acting with a similar function in the un- cine assumes a role that previously belonged
conscious of women. This theoretical foray into to religion. From this publication onwards, the
gender psychology was not supported by direct theme was explored mainly by white male he-
research, as in the case of complexes theory; terosexual physicians, who omitted the norma-
secondary bibliographic data, as is the case tive axis of this pair, heterosexuality, to focus
of the theory of psychological types; direct their explorations on what was considered a
clinical experience, from which he proposed deviation, such as homosexuality, with a view
numerous concepts; or comparative study of to healing-adaptation.
mythologies and religions, as in the case of ar- The questioning of this type of medical
chetypal theory. A hypothesis that hangs over thinking develops in philosophy and social scien-
the formulation of the concepts of anima and ces, related to the struggles for women’s rights
animus, which strangely escaped the scientific starting in the 1960s. Rubin (2017) affirms the
and rigorous methods applied by Jung, is that existence of a sex-gender system as a historical
it might have been taken hostage by the hete- phenomenon that organizes our relationships.
ropatriarchal complex that acts on our way of For Butler (2003), gender is a performance clo-
thinking and seeing the world. There would be sely related to culture and, as such, has a so-
no reason to think that the cultural complex, cially constructed and changeable character. Ru-
as a set of collective images about historical bin (2017) does not conceive sex separately from
experiences of difficult elaboration, would gender, since both are categories destined to the

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 107


Junguiana
v.39-2, p.103-116

social organization of our desires and possibili- ppen and love takes a material form rather than
ties. Berry (2014) walks in a similar path in the the abstract ideal that was considered in earlier
seminal The Dogma of Gender, within analytical times (Katz, 1996).
psychology, announcing the fixity of gender as a The complementary pair that will produce
(hetero) patriarchal strategy of ordering and con- children, understood then as man and woman,
trol, with which authors of social theories also is articulated in thought differently from previous
seem to agree. Sexual identity is born within dis- models of interpretation. The idea of comple-
cussions of gender and should not be confused mentarity also does not seem to be supported by
with sexual acts. Greek myth, a source of study dear to analytical
Analyzing the idea of heterosexuality prior psychology. Most archetypal motifs embodied
to the 19th and 20th centuries, Katz (1996) ar- in characters are not related to a fixed male and
gues that there is a serious anachronism in the female pair, although we can observe it with its
fantasy that homosexuality existed as an iden- specific characteristics in the Zeus-Hera pair and
tity in Ancient Greece. The author demonstra- the Eros-Psyche pair, which seem to underlie the
tes that desire for the same or the opposite sex idea of marriage as an institution and union for
was experienced as acts and not understood love, respectively. However, we more often ob-
as an aspect of individual personality. The very serve myths of individual characters endowed
notion of an individual did not exist at that with their own phenomenology, such as the birth
time. The naming of a person as heterosexual of Dionysus, the works of Hercules, the trials of
or homosexual, according to the author, occurs Athena, among other examples.
in medical textbooks and arrived in the Uni- The heteropatriarchal complex as I propose
ted States only in 1892. The very formulation relates theoretically to the patriarchal dyna-
of heterosexuality undergoes changes until it mism of consciousness (Neumann, 1990). This
is established as a norm against which other functioning acts as a structuring of a binary dis-
sexualities are placed in the beginning of 20th crimination of the elements that we experience.
century. The idea of Greek homosexuals can be Sex and gender, in this understanding, are di-
considered another fantasy brought about by vided into two and remain in this rigid duality,
the heteropatriarchal complex. never elaborating into three or more categories,
The emergence of sexual identities is a 20th settling into a stage of consciousness that brin-
century phenomenon in the historical continuum gs challenges to individuation itself. By distan-
that makes the fantasy of romantic and sensual cing itself from the profusion of desires and not
love prevail between complementary individuals constituting a system of affections, the hete-
who will constitute a family. The family will be ropatriarchal complex assumes a more moral
seen, in the industrial capitalism of the 18th and and ethical role, determining what is right and
19th centuries, as a perfect unit for the production wrong in relation to our desires and fulfilling a
of people who will act in a scalable way in the political role of social organization and order. In
production of the factories that emerged with the this way, the complex acts in its darkest forma-
industrial revolution. It is interesting to note the tion, transforming what was initially an erotic
convergence between demands of workers, the drive into a logical structure. Everything is two.
consolidation of the concept of marriage for ro- Every two is man and woman, male and fema-
mantic love and sexual identity aligned with the le. The division reinforces the understanding of
reproductive function. This combination of fac- heterosexuality as a phenomenon of unquestio-
tors seems to provide the validation that sex and nable universal validity, which is announced in
sexuality can be exercised in a sensual way, that contemporary society in examples ranging from
is, sexual acts in this period are allowed to ha- male and female outlets in construction shops

108 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.103-116

to the articulations between woman, female vor of the black movement and unions for better
and sensitivity, on the one hand, and identifica- working conditions in the 1980s (GREEN, 2018).
tion of men with masculine and assertiveness, Formed in the late 1970s, the LGBT movement
on the other. These associations reinforce bina- in Brazil sought to participate in the Brazilian
rism in the service of maintaining a social order political scene autonomously, but also through
of exclusion of Eros in its archetypal potency. the party in the 1980s, approaching the Worke-
The function of this oppressive dynamic focu- rs’ Party. In that context, there was an enormous
ses on maniacally normalizing rather than ena- rejection to the incorporation of the movement’s
bling erotic experience. agendas, clarifying since then the LGBTphobia
Roughgarden (2005) reinforces the hypo- that marks Brazilian thought across the enti-
thesis of the existence of a heteropatriarchal re political spectrum. Even within the Brazilian
complex by stating, as a biologist, that rese- LGBT movement, it is difficult to promote equal
arch in the field of natural sciences does not relations with lesbian women and transgender
point to the sex-gender binarism. On the con- people (GREEN, 2018).
trary, the author lists numerous species that After the struggles of the 80s and 90s, the
have more than two sex-genders and others gay issue has gained more space in the media
in which there is a change in sex-gender du- and politics. The advance of the fight for rights
ring an animal’s lifetime. I conclude, based on and the new visibility privileges white gay men
Roughgarden (2005), that the reading of a dual once again, while Brazil remains year after
sex-gender system can be seen as our cultural year as the world leader in the murder of trans
interpretation. The bias exercised by the cul- people, according to Grupo Gay da Bahia. The
tural complex of heteropatriarchalism urges exclusion of transgender women and people is
us to see a complementary pair even where it nothing new: after the movements in reaction
does not present itself. to the 1969 Stonewall massacre in the United
In 1970, the publication in the United States States, in which transvestites Marsha P. John-
of the Gay Manifesto by LGBT activist Carl Witt- son, a black trans woman, and Sylvia Rivera,
man epitomizes the movement emerging in that a Latina trans woman, took part. This latter is
society. The document, when it was revised, ur- expelled by white gay men from a stage in a
ged people to consider acting in a political way, New York gay parade, in explicit transphobia
as protagonists of a social change that included (DUBERMAN, 2018).
other themes, including the fight against what A common fantasy held by the heteropatriar-
was understood there as chauvinism. The inte- chal complex is this: heterosexuality has always
rweaving of themes reveals the willingness of existed, unlike other expressions of sexuality.
part of the North American LGBT movement at The less sexuality conforms to patriarchal hete-
the time to recognize the political character of rosexuality, whether by similarity or opposition
their sexual identity, supporting the struggle for to it, as in the case of white male homosexuali-
the recognition of rights related to sexuality in ty, the more this sexuality will be seen as stran-
the field of politics. In this sense, the LGBT mo- ge and newly discovered. As Katz (1996) shows
vement at the time was more successful in articu- us, the heterosexual narrative is that it is and
lating the private erotic dimension to the rationa- always has been the norm. Because it is the
lity of a public logic, without prejudice between norm, therefore the normal, it needs no expla-
the two fields. nation and has the quality of what is eternal and
The Brazilian LGBT movement has historically essential. All the rest are strange phenomena
interacted with other fronts of political struggles, that emerge at some point, either from the norm
participating in numerous demonstrations in fa- or as an unwanted deviation from the norm.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 109


Junguiana
v.39-2, p.103-116

A close historical examination, however, un- stated by Jung (2015), is to be able to account
ravels such a fantasy without any difficulty. Even for the phenomena that life presents to us, ne-
in a country with difficulties in keeping historical ver trying to fit people into our ideas in order to
records, we have the existence of Xica Manicon- validate what has been thought.
go, the first identified transvestite in terra brasi- An alternative to heterosexual thinking is
lis, in the city of Salvador in 1591 (JESUS, 2019). counter-sexuality, as presented by Preciado
Xica Manicongo was a black transvestite who (2017). According to the author, this term is a
roamed the streets of the city, until the first visit proposal to understand sex and sexuality incor-
of Inquisition in Brazil, which forced her to wear porating their sociopolitical constructions and
clothes meant for men to save herself from pu- to read the heterosexual regime and its conse-
nishment against her life. quences on another point of view. One of the
The visibility of trans identities and subor- efforts in this perspective is to be able to ques-
dinated sexualities helps us to rethink another tion the easy association between sexuality and
common fantasy of the heteropatriarchal com- genitalia, which fatally inscribes sexual identity
plex: that there are only two sex-genders and again in the homo-heterosexual pair and privi-
their possible combinations. The emergence leges the apparent genitalia, that is, the male
of white gay men as a possible protagonist of sexual anatomy. As Laqueur (2001) shows us, in
some circumstances in a society colored by this the 19th century view, bodies were identified in
complex does not cause a definitive fissure in their gender based on a notion of physical war-
its functioning, since the male-male combina- mth: men’s bodies were warmer and women’s
tion does not break with the dual character ne- bodies were colder and, therefore women had
cessary for the constitution of heterosexuality vaginas, which were an atrophy of the repro-
and patriarchy. What happens, however, when ductive organ due to lack of warmth. If women
we think that there is no pre-established num- had the right level of heat (like men), everyone
ber of sexes and genders? And, above all, if we would have a penis.
can think that this number is not necessarily By exploring Deleuze’s proposal of molecular
two? Even more, how can we think that sexuali- homosexuality, Preciado (2017) gives us insight
ties and genders may not be just one or two wi- into this binary logic that supports heteropatriar-
thin the same person? These are the first ques- chal thinking:
tions that occur to me in an effort to challenge
heteropatriarchal thinking. Both homosexuality and heterosexuality
The consequence of this reflection is the are the product of a disciplinary architec-
untenability even of the unconscious cons- ture that at the same time separates the
cious male-female figure pair as proposed by male and female organs and condemns
Jung (vol. IX/1, 2014). This construct is the them to remain united. In this way, every
result of the heterosexual fantasy of essen- intersexual (that is, heterosexual) rela-
tial duality, which is unproven when we dia- tionship is the scene of the exchange of
logue with trans people and other sexualities hermaphrodite signs between souls of the
that dissent from the norm. Another valuable same sex. (p. 187)
lesson from my clinical practice, repeated to
exhaustion by several professors and confir- Here, Preciado’s critique seems to reside in
med by their own experience, is that we should the disciplinary furor of heterosexuality that as-
never seek to fit people into theories, as Jung’s sociates and dissociates genitals at the same
own work also teaches us about. The function time, forcing a coniunctio to occur from the me-
of psychological theory, of empirical origin, as eting of anatomically different bodies within a

110 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.103-116

dual perspective. Equality would only reveal on by rape, by the abducting their children, or by
the immaterial plane, as far as souls are concer- constituting them as a material object of value,
ned, and in this sense homosexuality and other among other reasons. The lesbian existence, ac-
dissent can be tolerated. By maintaining celibacy cording to Rich (2010), is continually erased to
and secrecy, it is not a problem for someone to reinforce heterosexuality and place women from
confess homosexual impulses, as these remain a dead-end perspective in which they need to
at the level of the idea. This aspect of the hetero- surrender to men and the supposed undeniable
patriarchal complex subsists from the hierarchi- desire for them.
zation of what can be sexualized and gendered The subordination of women is fetishized
to be experienced in the material daily life, on and eroticized, in a process similar to the su-
the one hand, and of other phenomena that will bordination of the bodies of transgender peo-
be kept at a distance and at an appropriate abs- ple and transvestites. The inferiorization is an
traction, on the other. inherent attribute of patriarchy that seeks to
In Brazil in the 1980s, the transsexual show order, discriminate and categorize without li-
became popular on television and the body of mits, despite the needs, desires and feelings
one of the most famous transsexual women in
of those who are categorized. Acting darkly,
the country at the time was a record seller in
sexuality is reduced to a polarization of power
a nudity magazine. The distance mediated by
relations and politics, denouncing the action of
TV and magazine is appropriate and dissident
the complex as sabotaging part of the collective
bodies can be sexualized in secret, maintai-
consciousness. This leads to the intensification
ning the public structure of heterosexuality as
of conflicts within the experience of sexes and
the system to be pursued, never questioning
genders. One of the alternatives of resistance
its stability.
pointed out by Rich (2010) is the stimulation of
We often do not even question the distance
relationships between women on the lesbian
we have acquired from the events of dissident
continuum, defined as
sexualities, and we also do not notice the almost
unconscious associations between sex and ge-
a set—throughout each woman’s life and
nitalia that are expressed in everyday prejudice.
throughout history—of experiences of
How many times have I heard “but what are two
lesbians doing together?” in a non-accidental identifying a woman, not simply the fact
ode to the phallus uttered by so many people. that a woman has ever had or consciously
On the other hand, many colleagues identified as desired a genital sexual experience with
heterosexual have never considered the absence another woman. If we extend this to en-
of same-sex dating in bars and restaurants that compass many more forms of primary in-
were not explicitly identified as LGBT or gay frien- tensity among women, including sharing
dly until very recently. a richer inner life, a bond against male
Rich (2010) discusses the compulsory hetero- tyranny, the giving and receiving of prac-
sexuality, criticizing the model she calls hetero- tical and political support, if we can hear
centricity. In this model, the woman is inevitably that in associations such as resistance to
brought to the man as a kind of gravitational for- marriage and in a behavior, say, “exhaus-
ce, in which desire is naturalized and the com- ted”, [...] we will begin to understand the
plementary male-female pair is a fatality. The breadth of female history and psychology
author denounces the ways in which women’s that has remained out of reach as a con-
power is stolen, whether by commanding do- sequence of more limited, mostly clinical
mestic work in a servile and unpaid perspective, definitions of lesbianism. (p. 35)

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 111


Junguiana
v.39-2, p.103-116

The author’s suspicion is that there is an ex- the same throughout the elaboration process.
cluded view of sexuality when working from the In another work, Jung (2013b) proposes that as
perspective of heterocentricity. This exclusion a result of the tension of opposites supported
is the women’s own psychology, which can be by the proper timing, we will have the forma-
observed more precisely in her relationships tion of a third party that will inaugurate a new
with other women. The author removes the ine- possibility of transformation of the original
vitability of the male-female pair from women’s conflict. Again, we see the two evolve into the
psychology, freeing female desire from other trio of dimensions that will indicate an alterna-
configurations conceived from the phenome- tive to the path of individuation.
nology of a being itself, which is constructed Based on these reflections, let us get rid of
from oneself and from the interaction with their the complementary pair as two fixed terms that
peers. The attempt here is to overcome the remain over time, such as the male-female pair
myth of woman as the rib of man, one of the or the homo-heterosexual pair. Let us try to over-
narratives embedded in the heteropatriarchal come old-fashioned thinking: the normative
complex. The lesbian continuum is one of the fixation on the complementary pair and on the
possible radicalities within the phenomenon of tension of opposites, without considering the
sexuality, populated by many beings, including dynamism that leads to three and four all the
the woman of the 20th century. way back to one and restart the process. In other
Jungian thought is marked by the proposi- words, we need, as a collectivity, to make ob-
tion of the tension of opposites. When explai- solete the formulation that two is the norm. The
ning the notion of archetype as opposed to ins- two, alternatively, can be seen as a moment in
tinct, Jung (2014) draws on polarities to explain the process of human development.
the psychic functioning he had discovered at The purpose of the hetero complex patriar-
the time. However, it is in the same Jung (2012) chal is to keep us all in the fixity of the comple-
that the Axiom of Mary, brought forth by the mentary pair, identified from the reproductive
alchemist Maria Prophetissa in the 3rd cen- function of the metaphorized genitals as a key
tury, is explored. By analyzing the axiom, the blocking solution to all of humanity’s conflicts.
author proposes that the path of individuation The way forward for the phenomenon of se-
implies the development of the initial element, xuality involves valuing the possibility of the
the one, into the two, and then the unfolding complementary pair as a dynamic state that
of the third, until the dynamic formation of the will not last for long, whether inside or outsi-
fourth element that will return to a transformed de us. In this way, desire for the opposite sex
element. Thus, the individual and the collec- can be constituted as an event or occasionally,
tivity develop, unfolding and elaborating the forming as an identity in those who construct
tension between the opposites until the third themselves in this way, ultimately devoid of
creative element emerges towards wholeness, compulsion. No one should have an existential
represented by the quaternity. This, in turn, is a obligation to be two or to complement each
provisional state that returns to the single ele- other. To be too long in the dynamic of two,
ment for the beginning of a new process, in the inscribed under the male-female psychology,
endless cycle of individuation. This dynamism is to interrupt the expression of sexuality in its
from one to four demonstrates the changeable multiple possibilities. It is the modern prohi-
character of polarization itself in the process bition of desire and multiple configurations of
of psychic elaboration, which is not only loca- relationships. At risk, of course, is the mono-
ted in the tension between two elements and gamy, the relationships of people who comple-
whose polarizing elements are not necessarily ment each other, and perfect fit, because the-

112 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.103-116

re is no longer anything that firs one into the emerge in the very theory of gender that he for-
other. We have to face these fears. mulated. In a sense, it went forward and made
Freud went as far as he could in naming ho- it possible for us to enter the fantasy of the
mosexuality as a perversion. In his time, per- complementary pair so that we could get out of
version was a less pathologizing or punishable it without having to kill it. In order to listen to
alternative than sodomy, demonic possession those who come to us in psychological care, it
or character deviation, other attributions of is necessary that we overcome the two as the
dissenting sexualities prior to the Freudian for- ultimate truth. Let’s fight for the three and four.
mulation. Jung explained the heteropatriarchal Let’s fight for the death and rebirth of sexuality,
complex precisely by proposing a profoundly because it is Eros that we need most, illustrated
heterosexualized psychology, structured on by all the colors we have to experience it. ■
the basis of anima and animus, imagined from
an alleged duality that never allowed a third to Received: 06/12/2021 Revised: 11/01/2021

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 113


Junguiana
v.39-2, p.103-116

Resumo
O complexo heteropatriarcal: uma contribuição para o estudo da sexualidade
na psicologia analítica a partir da teoria social
Este artigo consiste em uma articulação teó- tões de gênero e sexualidade. Por meio desta
rica entre a psicologia analítica de C. G. Jung aproximação, pretendo tecer contribuições teó-
e referências contemporâneas na teoria social ricas que possibilitem uma escuta clínica mais
com o objetivo de aprimorar a escuta clínica de efetiva que considere os aspectos sociopolíti-
psicólogos e outros profissionais que prestem cos dos conflitos individuais sem prescindir da
atendimento à população em relação a ques- perspectiva psicológica. ■

Palavras-chave: complexo, heteropatriarcado, sexualidade, gênero.

Resumen
El complejo heteropatriarcal: una contribución al estudio de la sexualidad en
psicología analítica basada en la teoría social
Este artículo consiste en una articulación teó- lidad. A través de este enfoque, pretendo reali-
rica entre la psicología analítica de C. G. Jung y zar aportes teóricos que permitan una escucha
los referentes contemporáneos en la teoría social clínica más efectiva que considere los aspectos
con el objetivo de mejorar la escucha clínica de sociopolíticos de los conflictos individuales sin
los psicólogos y otros profesionales que atien- prescindir de la perspectiva psicológica. ■
den a la población en temas de género y sexua-

Palabras-clave: Complejo, heteropatriarcado, sexualidad, género.

114 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.103-116

References
BAIR, D. Jung: uma biografia. Rio de Janeiro, RJ: Biblioteca _______. Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes,
Azul, 2004. 2013a. (Obras Completas, vol. 5.).

BERRY, P. Dogma de gênero. In: BERRY, P. (Org.). O corpo _______. Sobre o amor. São Paulo, SP: Ideias e Letras, 2005.
sutil de eco: contribuições para uma psicologia arquetípica.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p. 49-68. KATZ, J. N. A invenção da heterossexualidade. Rio de
Janeiro, RJ: Ediouro, 1996.
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2003. LAQUEUR, T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos
a Freud. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará, 2001.
DUBERMAN, M. Has the gay movement failed? Oakland,
CA: University of California, 2018. NEUMANN, E. A história das origens da consciência. São
Paulo, SP: Cultrix, 1990.
FOUCAULT, M. A história da sexualidade vols. I, II e III. São
Paulo, SP: Paz e Terra, 2020. PRECIADO, P. B. Manifesto contrassexual. São Paulo, SP:
N-1, 2017.
GREEN, J. N. Forjando alianças e reconhecendo complexi-
dades: as ideias pioneiras do grupo somos de São Paulo. In: RICH, A. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica.
GREEN, J. N. et al. (Eds.). História do movimento LGBT no Revista Bagoas, Natal, v. 4, n. 5, p. 17-44, jan./jun. 2010.
Brasil. São Paulo, SP: Alameda, 2018. p. 63 -78.
ROUGHGARDEN, J. Evolução do gênero e da sexualidade.
JESUS, J. G. Xica Manicongo: a transgeneridade toma a Londrina, PR: Planta, 2005.
palavra. ReDoC: Revista Docência e Cibercultura, Rio de
RUBIN, G. Políticas do sexo. São Paulo, SP: Ubu, 2017.
Janeiro, v. 3, n. 1, p. 250-60, jan./abr. 2019.
https://doi.org/10.12957/redoc.2019.41817 SINGER, T.; KIMBLES, S. The cultural complex: contemporary
jungian perspectives on psyche and society. London:
JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes,
Routledge, 2004.
2013b. (Obras Completas, vol. 8.).
WITTIG, M. The straight mind and other essays. Boston,
_______. O eu e o inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes,
MA: Beacon, 1992.
2015. (Obras Completas, vol. 7/2.)
WITTMAN, C. A gay manifesto. New York, NY: Red Butterfly,
_______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo.
1970. Disponível em: <http://library.gayhomeland.org/0006/
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. (Obras Completas, vol. 9/1.)
EN/A_Gay_Manifesto.htm>. Acesso em: 22 fev. 2021.
_______. Psicologia e alquimia. Petrópolis, RJ: Vozes,
2012. (Obras Completas, vol. 12.).

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 115


116 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021
Junguiana
v.39-2, p.117-130

Os instintos nas neurociências afetivas e na


psicologia analítica

Guilherme Silva Gonçalves*

Resumo Palavras-chave
Este artigo visa estabelecer relações entre a sistemas instintivos envolvidos na formação da neurociências;
psicologia analítica de Carl Gustav Jung e as neu- personalidade humana, ponto que Jung também psicotera-
rociências afetivas de Jaak Panksepp. Para isso, defendeu contra a primazia do instinto sexual pia analíti-
ca; Jung,
foi feita uma comparação entre os sistemas ins- na teoria de Sigmund Freud. Além disso, as neu-
Carl Gustav,
tintivos básicos propostos por ambas as teorias. rociências afetivas e a psicologia analítica pro- 1875-1961;
Uma das principais características do pensa- põem intervenções psicoterapêuticas que levem comportamen-
mento de Jung, que o diferencia das outras teo- em conta os aspectos instintivos da personalida- to instintivo;
rias psicodinâmicas, é sua ênfase na base ins- de, considerando mudanças puramente cogniti- emoções
tintiva da psique, constituída de pré-disposições vas como insuficientes. Assim, apesar de seus
herdadas. Da mesma forma, as neurociências pressupostos materialistas, as pesquisas Pank-
afetivas se concentram principalmente na base sepp possuem pontos em comum com aspectos
instintiva e herdada de certos comportamentos da teoria de Jung, com sistemas instintivos se-
humanos, relacionados às emoções primárias, melhantes, demonstrando a importância da his-
enraizadas principalmente em estruturas sub- tória da espécie para a constituição psíquica do
corticais. Através do estudo dessas estruturas, ser humano, contrariando a crescente onda do
Panksepp demonstrou que existem diversos construcionismo social, que teve sua ascensão
impulsionada pelos movimentos behavoristas
dos anos 1950, e que ainda hoje permeia o ima-
* Graduado em psicologia pelas Faculdades Metropolitanas ginário popular. ■
Unidas (FMU). Terapeuta em análise aplicada do compor-
tamento. Presidente e membro fundador da Liga Acadêmi-
ca de Pesquisas e Estudos Junguianos (LAPEJ) da FMU
(2019-2021). Membro do departamento de literatura do
Instituto Junguiano de São Paulo (IJUSP).
E-mail: sg.guilherme00@gmail.com

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 117


Junguiana
v.39-2, p.117-130

Os instintos nas neurociências afetivas e na psicologia analítica

O papel da herança psíquica na teoria de Jung


Jung defendeu a importância da história evo- dos produtos psíquicos espontâneos de seus
lutiva do ser humano na formação de seu com- pacientes, como sonhos, delírios, fantasias etc.
portamento típico, que não podia ser explicado Ele percebeu que muitas vezes surgiam temas
simplesmente pela experiência de vida pessoal recorrentes nestes fenômenos:
de cada um. Ele afirmou que as formas de pensar
e agir do ser humano não seriam fruto do acaso, A frequente retomada de formas e ima-
mas seriam influenciadas por trilhas de possibi- gens arcaicas de associação observada na
lidades pré-estabelecidas, presentes na própria esquizofrenia me forneceu, pela primeira
estrutura do cérebro (JUNG, 2013g, p. 230). Mes- vez, a ideia de um inconsciente que não
mo assim, o modelo de psique de Jung nunca foi consta apenas de conteúdos originários
materialista, ou seja, ele nunca afirmou que a psi- da consciência que se perderam, mas de
que seria fruto da química cerebral. Na psicologia uma camada ainda mais profunda, dota-
analítica, o psíquico e o físico são vistos como da de caráter universal, como são os mo-
manifestações opostas de um mesmo fenômeno tivos míticos característicos da fantasia
paradoxal que não pode ser apreendido racional- humana. Esses motivos não são de modo
mente até momento (JUNG, 2013e, p. 619). Com algum inventados e sim descobertos,
isso, ele não negou a importância da integridade constituindo formas típicas que aparecem
do sistema nervoso central para o funcionamento de maneira espontânea e universal, inde-
psíquico adequado (JUNG, 2013f, p. 318). Sobre pendentes da tradição nos mitos, contos
essa interação entre psique e cérebro, ele diz: de fada, fantasias, sonhos, visões e ide-
ais delirantes. Uma investigação mais
O processo psíquico que está na raiz da cuidadosa mostra que se trata de atitudes
consciência é automático; não sabemos típicas, de modos de agir, de formas de
de onde ele se origina nem para onde se ideias e impulsos que devem constituir o
encaminha. Sabemos apenas que o sis- comportamento tipicamente instintivo da
tema nervoso e particularmente os seus humanidade. O termo arquétipo por mim
centros condicionam e exprimem a função escolhido coincide com o conceito tão co-
psíquica e que essas estruturas herdadas nhecido de ‘pattern of behaviour’. Não se
voltam infalivelmente a funcionar, em trata de maneira alguma de ideias herda-
cada novo indivíduo, exatamente do mes- das, mas de impulsos e formas instintivas
mo modo como sempre fizeram em todos herdadas, tais como observamos em todo
os outros (JUNG, 2013g, p. 227). ser vivo (JUNG, 2013a, p. 565).

Portanto, Jung reconheceu que as estruturas Uma das diferenças entre as teorias de Freud
dos centros do sistema nervoso pelo menos con- e de Jung é o fato de que o primeiro considerava
dicionam o funcionamento psíquico de acordo as atividades culturais do ser humano e suas re-
com certas formas instintivas, que constituem o lações sociais como sublimações de uma ener-
que ele chamou de inconsciente coletivo. gia sexual (JUNG, 2013i, p. 46), enquanto Jung
O conceito de inconsciente coletivo postula- acreditava que estas atividades podiam ser con-
do por Jung veio a partir das suas observações troladas por instintos diferentes, mesmo não ne-

118 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.117-130

gando a importância da sexualidade para o ser velmente similares entre todas as espé-
humano, inclusive reconhecendo que boa parte cies de mamíferos. Isso sugere que esses
dos conflitos psicológicos tem um fundo eróti- sistemas evoluíram há muito tempo e
co (JUNG, 2014, p.14). Em sua experiência como que, em um nível emocional e motivacio-
médico, Jung observou outras necessidades e nal básico, todos os mamíferos são mais
instintos humanos que exerciam igual influência semelhantes do que diferentes (PANK-
sobre o comportamento, e que poderiam ser fon- SEPP; BIVEN, 2012, p. 4) tradução autores.
tes de perturbações tão graves quanto a sexuali-
dade, quando negligenciadas. Claro que as neurociências afetivas reconhe-
Mesmo sem contar com os instrumentos ade- cem toda a complexidade que é adicionada ao
quados para comprovar suas conclusões, Jung comportamento humano devido às suas capaci-
descreveu fielmente os fatos observados em dades cognitivas ímpares. Mesmo assim, Pank-
sua extensa prática clínica, batendo de frente sepp e Biven (2012) dizem que essas funções
com muitos preconceitos da época. Se falar da cognitivas são inicialmente programadas pelos
sexualidade feriu a moral social da época, que processos afetivos primários, o que pode acon-
ainda via o ser humano ideal como alguém ple- tecer de forma adequada ou patológica. Assim,
namente racional, falar de temas relacionados à mesmo que o ser humano desenvolva uma enor-
mitologia e à religião era um crime passível de me variedade de funções cognitivas, seu funcio-
excomungação do meio acadêmico, por consti- namento psíquico nunca deixa de estar profun-
tuir uma blasfêmia contra o credo materialista. damente enraizado, e de ser influenciado, por
Assim, Jung foi relegado ao segundo plano e até esses padrões instintivos (p. 5).
hoje é considerado um assunto tabu em muitas Nesta disciplina o cérebro é estudado, na
universidades. O célebre psicólogo canadense, maior parte do tempo, em uma perspectiva de
Jordan B. Peterson, que trouxe novamente as baixo para cima, das estruturas mais antigas
ideias de Jung ao cenário mundial nos últimos para as mais recentes. O termo BrainMind (“Cé-
anos, conta que foi constantemente alertado rebroMente”) é usado quando partindo da pers-
por seus professores na sua época de estudante pectiva de baixo para cima, enquanto MindBrain
a não se aproximar da psicologia analítica, pois (“MenteCérebro”) é usado quando se fala da
isso traria descrédito ao seu trabalho (PETER- perspectiva de cima para baixo, mostrando que
SON, 1999, p. 401). Felizmente, com o avanço existe uma causalidade circular entre os níveis
das neurociências, há perspectivas de mudança
de funcionamento cerebral, mesmo que o foco
neste cenário.
das neurociências afetivas sejam os processos
emocionais primários. A falta de espaço entre
As neurociências afetivas ambas as palavras indica que se trata de um pro-
Consolidadas pelo neurocientista Jaak Pank- cesso unificado, ou seja, cérebro e mente são
sepp, as neurociências afetivas são baseadas inseparáveis. Assim, Panksepp e Biven (2012)
nas pesquisas voltadas para entender o funcio- adotam uma perspectiva monista dual do fun-
namento tanto do cérebro humano como o de cionamento psicológico do ser humano (p. 7).
outros animais. Essa visão não dualista se assemelha, de certa
maneira a de Jung, descrita na seção anterior,
De acordo com nosso conhecimento até com a diferença de que as neurociências afeti-
o presente momento, os sistemas emo- vas partem de pressupostos materialistas (p.
cionais primários são feitos de estruturas 417), enquanto Jung preferiu deixar essa ques-
neuroanatômicas e neuroquímicas nota- tão em aberto por falta de provas neste sentido,

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 119


Junguiana
v.39-2, p.117-130

preferindo se ater ao ponto de vista psicológico 2013d, p. 239). Estes grupos de instintos seriam
(JUNG, 2013e, p. 282). os de autopreservação, os de preservação da es-
O método de pesquisa das neurociências pécie, os de reflexão, os de impulso à ação e o
afetivas é triangular, levando em conta a es- de criatividade:
trutura cerebral dos mamíferos, os comporta- Os instintos de autopreservação são exemplifi-
mentos instintivos emocionais e os estados cados através da fome, que ele afirma possuir um
subjetivos da mente associado a estes instin- caráter mais preponderante na vida humana, espe-
tos. Enquanto a maioria dos neurocientistas cialmente na do primitivo, do que a sexualidade.
leva em conta somente os padrões de compor- Os instintos de preservação da espécie são
tamento instintivos e as estruturas cerebrais exemplificados através do instinto sexual, que, no
envolvidas, Panksepp e Biven (2012) incluem ser humano, não está ligado somente com a repro-
o aspecto psicológico desta dinâmica, argu- dução, mas também com sentimentos, afetos e
mentando que os sistemas emocionais instin- até mesmo com interesses espirituais e materiais.
tivos não somente se expressam em padrões O instinto de reflexão consiste nas inúmeras
de comportamento, mas também influenciam a associações que o ser humano faz automatica-
forma de experienciar o mundo. Este último as- mente quando confrontado com alguma situ-
pecto é acessível somente através da pesquisa ação, o que leva a uma maior variabilidade de
com seres humanos (pp. 23-4). suas respostas, funcionando como uma espécie
Por levar em conta os instintos básicos her- de raciocínio instintivo, que está na base das
dados e sua relação com as formas humanas de produções culturais mais complexas.
agir e, principalmente, de organizar suas experi- O impulso à ação se manifesta quando as ne-
ências no mundo, muitos pontos de contato po- cessidades dos outros impulsos foram satisfeitas,
dem ser feitos entre as teorias das neurociências levando à busca ativa no ambiente por novas pos-
afetivas e a de Jung. sibilidades e também a comportamentos lúdicos.
O instinto de criatividade é um dos que mais
variam de pessoa para pessoa. Em algumas, a
Os instintos básicos em Jung necessidade de criar se impõe com grande vio-
Como foi dito acima, Freud considerava o
lência, podendo submeter a personalidade intei-
instinto sexual, ou o princípio do prazer, como a
ra à sua satisfação, enquanto em outros este ins-
principal força motriz por trás do comportamen-
tinto é praticamente imperceptível durante toda
to, considerando muitas das atividades culturais
a vida. Devido a esta falta de universalidade e
do ser humano substituições de um desejo origi-
de conteúdo, Jung preferiu atribuir à criatividade
nalmente reprimido ou sublimado (JUNG, 2013i,
uma natureza semelhante à do instinto. Ele tam-
p. 46). Posteriormente ele acrescentou a pulsão
bém notou que a criatividade se associa com os
de morte como uma das outras forças que in-
demais instintos, como o impulso à ação, à sexu-
fluenciavam o comportamento humano (JUNG,
alidade e ao instinto de reflexão, sem se igualar
2014, p.33). Jung, por outro lado, considerava a
a nenhum deles (JUNG, 2013d).
energia psíquica como um conceito neutro, mu-
dando de aplicação de acordo com as necessi-
dades naturais da vida e da pressão interna de Os sete sistemas emocionais
diferentes instintos que muitas vezes entram em
contradição. “O fato de a energia poder sofrer es-
primários nas neurociências
sas diversificações é indício de que há ainda ou- afetivas
tros impulsos suficientemente poderosos para Panksepp e Biven (2012), por sua vez, fala
modificar o curso do instinto sexual...” (JUNG, de sete sistemas emocionais básicos, com cir-

120 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.117-130

cuitos neurológicos específicos, consistindo em ros anos de vida. Esse sistema foi chamado de
padrões de reação e estados afetivos caracterís- PANIC porque quando mamíferos jovens são
ticos. Quando fala desses sistemas emocionais, abandonados eles expressam uma forma espe-
ele usa letras capitais, indicando que está se cial de ansiedade, um estado agitado de pânico
referindo ao sistema neurológico, e não ao signi- (p. 314). Algumas estruturas envolvidas no fun-
ficado popular atribuído a estas palavras. Estes cionamento do PANIC são a PAG, o tálamo dor-
sistemas são divididos em RAGE (“raiva”), FEAR somedial e o córtex cingulado anterior (p. 315).
(“medo”), SEEKING (“procura”), PLAY (“brincar”), Estes três sistemas são considerados os
LUST (“apetite sexual”), PANIC (“pânico”) e CARE sistemas emocionais negativos, cujos organis-
(“cuidar”) (p. 34). A nomenclatura original em in- mos evitam ativar, sendo considerados puniti-
glês será mantida já que, até o presente momen- vos. Também existem quatro sistemas emocio-
to, não existem traduções oficiais das obras de nais positivos:
Panksepp para o português. Para mais detalhes SEEKING, o sistema emocional mais básico
e ilustrações das estruturas cerebrais relaciona- de todos, coloca o organismo como explorador
das com os sete sistemas, consultar a obra de ativo do ambiente para encontrar os recursos
Panksepp e Biven (2012). necessários para a sobrevivência e satisfazer
RAGE é o sistema que entra em ação nos ma- as necessidades de todos os outros sistemas
míferos em situações específicas, como quando (p. 95), sendo também responsável pela curiosi-
privados de mobilidade, sofrendo irritação na dade (p. 102). Esse sistema é ativado durante a
superfície corporal, privados de alimento, pri- antecipação, mas não durante a consumação de
vados de uma recompensa iminente e quando recompensas, e causa o comportamento eufóri-
competindo com outros por recursos (p. 149). co da aproximação de algo valorizado. As princi-
Suas respostas características consistem em pais estruturas deste sistema são a área ventral
cerrar os dentes, socar, morder, arranhar e ata- tegmental (VTA), o feixe prosencefálico medial
car, sendo a intensidade da manifestação pro- e hipotálamo lateral (MFB-LH), o núcleo accum-
porcional à intensidade da estimulação (p. 150). bens e o córtex pré-frontal medial, conectados
As principais estruturas cerebrais envolvidas no através das vias dopaminérgicas mesolímbica e
funcionamento deste sistema são a substância mesocortical (p. 104).
cinzenta periaquedutal (PAG), a zona medial do O LUST é o sistema responsável pela excita-
hipotálamo e a zona medial da amígdala (p. 151). ção sexual e pelos comportamentos sexuais es-
FEAR é o sistema responsável por preservar o pecíficos de cada sexo, tendo centros diferentes
organismo quando existe ameaça à integridade no cérebro masculino e no feminino (p. 249). O
física, como no caso de encontro com predado- epicentro da sexualidade masculina é o núcleo
res. A resposta mais característica deste sistema intersticial do hipotálamo anterior (INAH), que
consiste na paralisação e, em níveis mais altos possui uma grande quantidade de receptores de
de estimulação, na fuga (p.179). De maneira ge- testosterona (p. 250), responsável pela produ-
ral, as estruturas cerebrais do FEAR começam ção de outros neuropeptídios, como a vasopres-
nas áreas ventrais da PAG, se conectando com sina, relacionados com comportamentos sexuais
as áreas anteriores e mediais ao redor do tercei- masculinos, como excitação e aproximação se-
ro ventrículo do hipotálamo, e também com as xual, além de algumas formas de agressividade
zonas centrais da amígdala (p. 182). territorialista (p. 251). Já nas fêmeas os impulsos
PANIC é o sistema responsável pelo stress de sexuais se originam no hipotálamo ventromedial
separação e é ativado quando o indivíduo sofre (VMH), controlados principalmente pela proges-
alguma forma de perda social, como o abandono terona e pelo estrogênio (p. 255). A ação desses
ou a rejeição, sendo mais sensível nos primei- hormônios eleva a produção de oxitocina e sen-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 121


Junguiana
v.39-2, p.117-130

sibiliza os receptores desta mesma substância exemplo, no grupo dos instintos de autoconser-
no VMH, levando a fêmea a se tornar mais emo- vação, Jung dá como exemplo na maioria das
cionalmente receptiva aos avanços sexuais dos passagens apenas a fome, que não é considera-
pretendentes (p. 256). Entre os seres humanos, da por Panksepp e Biven (2012) como um afeto
a testosterona também participa da sexualidade emocional, mas como um afeto homeostático,
feminina, mesmo que em um grau menor do que que também está entre os afetos primários (p.
na sexualidade masculina. 10). Jung também relaciona os instintos de au-
PLAY é responsável pelo prazer das intera- toconservação com os instintos de preservação
ções sociais positivas, como as brincadeiras físi- do indivíduo no geral, ausente em muitos pa-
cas características dos filhotes, que acontecem cientes esquizofrênicos (JUNG, 2013k, p.276).
espontaneamente quando estes estão juntos em Portanto, pode-se incluir os instintos que vi-
um ambiente seguro e bem alimentados. Através sam a preservação do organismo neste grupo,
do brincar, se desenvolvem habilidades sociais incluindo os comportamentos associados aos
e de sobrevivência (p. 354). É um sistema extre- sistemas RAGE, FEAR e PANIC.
mamente importante para o desenvolvimento Quando Jung fala do grupo de instintos de
cerebral dos mamíferos, porém sua atividade é preservação da espécie, ele dá como exemplo
facilmente diminuída por emoções negativas. As a sexualidade. Mas, como o nome conservação
estruturas que têm relação essencial com o PLAY da espécie implica na procriação, pode-se in-
são o complexo parafascicular e o núcleo talâmi- cluir neste grupo o CARE e o LUST. Jung diz que,
co dorsomedial posterior (p. 364). ao longo da evolução, o sistema sexual se divi-
CARE é o sistema responsável pelo cuidado diu entre a procriação e o cuidado com a prole
dos mamíferos com seus filhotes e pela criação (JUNG, 2013j, p.194), hipótese similar à de Pank-
de vínculo com estes, e é mais sensível nas fê- sepp e Biven (2012), que também considerava o
meas do que nos machos (p. 286). O toque, a CARE e o LUST como evolutivamente derivados
aproximação dos corpos, a criação de vínculo e do mesmo sistema emocional, mas distintos no
a reação aos sinais de stress da prole são rea- cérebro do ser humano de hoje (p. 290).
ções provenientes da atividade deste sistema Já o impulso da ação e o de reflexão seriam
emocional. Algumas estruturas cerebrais relacio- dois aspectos distintos do SEEKING, que envol-
nadas com o CARE são o núcleo paraventricular ve tanto a exploração ativa do ambiente quanto
(PVN), a área dorsal pré-óptica (dPOA), núcleo do o uso de associações para resolver uma deter-
leito da estria terminal (BNST) com algumas pro- minada situação-problema ou para satisfazer a
jeções que vão até a VTA, que pode ativar o SE- curiosidade (p., 102). Jung diz sobre o instinto
EKING para executar comportamentos maternos de reflexão:
típicos, como construir ninhos seguros e manter
os filhotes próximos de si (p. 293). A reflexão retrata o processo de excita-
ção e conduz o impulso para uma série
de imagens que, se o estímulo for bas-
Comparação entre grupos de tante forte, é reproduzida em nível ex-

instintos e sistemas emocionais terno. Essa reprodução concerne seja a


todo processo, seja ao resultado do que
primários se passa interiormente e tem lugar sob
Ao comparar ambos os grupos, pode-se es- diferentes formas: ora diretamente como
tabelecer uma relação entre os instintos bási- expressão verbal, ora como expressão do
cos nomeados por Jung e os sistemas emocio- pensamento abstrato, como representa-
nais descritos por Panksepp e Biven (2012). Por ção dramática ou como comportamento

122 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.117-130

ético ou ainda como feito científico ou ocórtex, que pode motivar comportamentos apa-
como obra de arte... A reflexão é o instinto rentemente contra instintivos a partir de necessi-
cultural par excelence, e sua força se reve- dades instintivas.
la na maneira como a cultura se afirma em
face da natureza (JUNG, 2013d, p. 243-4)
Instinto e libido
Jung nunca tentou estabelecer circuitos neu-
De maneira similar, Panksepp diz sobre o sis-
ronais subjacentes para os diferentes instintos,
tema SEEKING:
mas sim apontar que diversos instintos partici-
pam das atividades humanas. É notável o fato de
No ser humano, o pensamento estratégi-
existirem tantas relações entre as observações
co tem grande parte na excitação do SE-
feitas em sua prática clínica e os resultados de
EKING, porque esse sistema, como todos
os nossos outros sistemas emocionais, pesquisas recentes das neurociências afetivas.
tem muitas conexões com o neocórtex A influência de diversos instintos na formação
frontal... Quando o sistema SEEKING es- da personalidade humana, que foi defendida por
timula o neocórtex, ele energiza o pensa- Jung, é um fato agora comprovado, em contraste
mento, que é um tipo de mundo virtual, com a teoria da primazia do instinto sexual pro-
produzindo comportamentos aprendidos posta por Freud.
complexos que não são instintuais e que Jung diz que muitas atividades que podem ser
podem ser até mesmo contra instintivos... derivadas da sexualidade evolutivamente, hoje
Este sistema energiza toda a criatividade se consolidaram como funções independentes:
humana, ele tem sido o motor mental para
todas as civilizações (PANKSEPP; BIVEN, Assim, muitas funções complicadas, às
2012, pp. 102-3) tradução autores. quais hoje em dia deve ser negado um
caráter sexual, provêm originalmente do
Assim como Jung descreve a criatividade instinto de propagação. Como se sabe, na
como um impulso que se relaciona com todos os série ascendente dos animais ocorreu um
outros instintos, Panksepp diz o mesmo sobre o deslocamento importante nos princípios
SEEKING, já que este é o responsável por satis- da propagação: a massa dos produtos de
fazer as necessidades de todos os outros instin- procriação com a correlata causalidade de
tos, funcionando como estado de excitação sem fecundação foi reduzida mais e mais a favor
objeto específico. Ainda dentro do grupo dos ins- de uma fecundação segura e uma proteção
tintos de atividade (impulso à ação) Jung inclui eficiente da prole (JUNG, 2013j, p.194).
as atividades lúdicas do ser humano, colocando
o brincar dentro das atividades instintivas, as- De maneira similar, Panksepp e Biven (2012) diz:
sim como Panksepp fez com o PLAY.
Resumindo, pode-se incluir no grupo dos ins- Freud hipotetizou que todo o amor não se-
tintos de atividade o SEEKING e o PLAY, dentro xual, mesmo o amor materno, era uma su-
do grupo de instintos de conservação da espécie blimação de um desejo sexual subjacente.
CARE e LUST; dentro dos instintos de autocon- Ele manteve a ideia de que a sublimação,
servação, o RAGE, FEAR e o PANIC, e também os a canalização de uma energia emocional
afetos homeostáticos. O instinto de reflexão e básica em atividades socialmente úteis,
a criatividade também podem ser relacionados ocorria quando as necessidades sexuais
com o SEEKING, especialmente na interação das eram transformadas em valores sociais
estruturas subcorticais deste sistema com o ne- capazes de servir propósitos não sexu-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 123


Junguiana
v.39-2, p.117-130

ais... Mesmo que o CARE tenha evoluído finição por demais estreita. A experiên-
do LUST, os dois sistemas são suficiente- cia mostra que processos instintivos de
mente distintos no cérebro e eles execu- qualquer tipo muitas vezes são enorme-
tam funções diferentes. O LUST gera dese- mente aumentados pelo afluxo de ener-
jos sexuais enquanto o CARE gera afetos gia que pode ser procedente de qual-
não sexuais... (p. 290) tradução autores. quer parte... Uma esfera instintiva pode
ser temporariamente despotencializada
Panksepp ainda diz que existem outros sis- em favor de uma outra. Isso se aplica a
temas emocionais muito diferentes do CARE e todas as atividades psíquicas em geral
do LUST que são importantes para o desenvolvi- (JUNG, 2013j, p. 199).
mento de relações sociais, como PANIC e o PLAY,
que não estão presentes na teoria freudiana. Da mesma forma, Panksepp e Biven (2012)
Além dos sete sistemas emocionais básicos, viam os instintos como instrumentos herdados,
Panksepp também postulou a existência de um em forma de um sistema de valores codificados,
SELF instintivo, responsável por integrar as dife- para aumentar o sucesso do organismo no jogo
rentes informações corporais, ambientais e emo- da existência e no enfrentamento de seus desa-
cionais em uma estrutura coerente (PANKSEPP; fios típicos (p. 68). Ou seja, eles são unificados
BIVEN, 2012, p. 392). Também é possível fazer por um mesmo propósito, um mesmo appetitus,
uma relação entre o conceito de SELF de Pank- mesmo que tenham estruturas físicas diferencia-
sepp e o conceito de si-mesmo na psicologia das. Nas neurociências afetivas, as atividades
analítica, que também funciona como o centro dos diferentes instintos também têm influência
organizador da psique (ALCARO et al., 2017). umas sobre as outras, mas não de forma tão am-
Também é importante ressaltar que, por mais pla na teoria Junguiana. Por exemplo, a atividade
que Jung tenha feito essa divisão dos instintos do PANIC é contrabalanceada pelo CARE, assim
em grupos, ele mesmo acreditava que, do ponto como as emoções negativas facilmente inibem o
de vista dinâmico, eles eram manifestações dife- PLAY etc.
rentes de uma mesma energia, chamada libido.

Na natureza naturalmente não existe essa


A psicopatologia em Panksepp
separação artificial. Aqui só vemos um e Jung
instinto vital contínuo, uma vontade de Ambas as teorias, de Jung e Panksepp, têm
existir, que pela conservação do indivíduo um objetivo prático além de simplesmente com-
busca alcançar a propagação de toda a preender o funcionamento psicológico-cerebral
espécie... Assim, também a interpretação do ser humano: elas pretendem ajudar, através
da libido como cupiditas ou appetitus é desta compreensão dos instintos, a encontrar
uma interpretação do processo energético maneiras mais adequadas de se lidar com as
psíquico que vivenciamos sob a forma de psicopatologias.
um appetitus (JUNG, 2013j, p. 195). Para Jung, os distúrbios patológicos consis-
tem em um posicionamento inadequado frente
Ele preferia adotar o ponto de vista energéti- aos instintos. Ele diz:
co na sua prática clínica pela enorme comunica-
ção existente entre os diferentes instintos: O instinto é uma misteriosa manifestação
da vida, de caráter em parte psíquico, em
O ponto de vista energético significa a li- parte fisiológico. Ele pertence às funções
bertação da energia psíquica, numa de- mais conservadoras da psique e é difícil

124 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.117-130

ou mesmo impossível modificá-lo. Dis- da psicoterapia e da psiquiatria bioló-


túrbios patológicos de adaptação, como gicas é facilitar a reorganização de tais
neuroses etc., por essa razão se explicam dinâmicas mentais (DAVIS; PANKSEPP,
antes por um posicionamento diante do 2018, p. 77) tradução autores.
instinto do que por uma modificação do
mesmo. Este posicionamento, no entan- Assim como Jung, Panksepp acreditava que
to, é um problema complicado, altamen- os resultados psicoterapêuticos mais duradou-
te psicológico, que certamente não seria ros acontecem quando são visados os níveis ins-
problema se dependesse do instinto. As tintivos da personalidade, sendo as mudanças
forças motoras das neuroses provém de puramente cognitivas mais frágeis.
uma série de propriedades do caráter e in-
fluências do ambiente que em conjunto, [P]ossivelmente os efeitos mais durado-
resultam na atitude que torna impossível res ocorrem se o caminho terapêutico for
um modo de vida que satisfaça os instin- pavimentado pela mudança da tonalida-
tos (JUNG, 2013j, p. 199). de afetiva dos afetos primários. Se este
for o caso, o trabalho dos clínicos pode
De maneira similar, na perspectiva das neu- ser facilitado pela assimilação mais pro-
rociências afetivas, o objetivo da psicoterapia funda e utilização das evidências dispo-
é reorganizar as interações entre os sistemas níveis sobre os sistemas emocionais do
afetivos instintivos e os outros níveis do funcio- cérebro derivadas das neurociências afe-
namento cerebral-mental, que são divididos em tivas, e por visar a utilização mais ampla
uma hierarquia (Nested BrainMind Hierarchy) de das técnicas afetivas mais diretas dispo-
três níveis: processos primários (emoções, que níveis (PANKSEPP; BIVEN, 2012, p. 457)
consistem de afetos essencialmente subcorti- tradução autores.
cais), processos secundários (aprendizagem,
baseada em estruturas majoritariamente locali- Jung e Panksepp visavam a base instintiva
zadas nas áreas límbicas superiores) e proces- e suas necessidades como foco primário. En-
sos terciários (cognições baseadas majoritaria- tretanto, na psicologia analítica, o método de
mente em áreas neocorticais). Dessa maneira, identificação das necessidades instintivas ne-
estabelece-se uma dinâmica circular entre os gligenciadas é pautado na análise de produtos
níveis de funcionamento cerebral-mental, que do inconsciente, através de técnicas como aná-
pode ser saudável ou patológica, de acordo com lise de sonhos e imaginação ativa, métodos que
as pré-disposições de personalidade do organis- não estão presentes nas neurociências afetivas,
mo e com as influências ambientais. mesmo que Panksepp considerasse que a fun-
ção dos sonhos fosse avaliar experiências afe-
Assim, o círculo causal de via dupla se tivas passadas para resolver situações futuras
torna uma característica adaptativa da (PANKSEPP; BIVEN, 2012, p. 378), ou seja, os so-
mente humana e possivelmente da men- nhos teriam uma função prospectiva assim como
te dos mamíferos em geral, com desen- na teoria de Jung:
volvimento e aprendizagem inicialmente
direcionado debaixo para cima, e com A função prospectiva é uma antecipação,
regulações e reflexões de cima para bai- surgida no inconsciente, de futuras ativi-
xo se tornando parte do aparato cere- dades conscientes, uma espécie de exer-
bral-mental maduro e saudável (ou, em cício preparatório ou um esboço prelimi-
casos extremos, patológico). O desafio nar, um plano traçado antecipadamente.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 125


Junguiana
v.39-2, p.117-130

Seu conteúdo simbólico constitui, por ve- animais, por ser acessível somente por descri-
zes, o esboço de solução de um conflito... ções feitas através da linguagem (p. 428). Ima-
(JUNG, 2013b, p. 493). gem do instinto é uma das formas pela qual Jung
descreveu os arquétipos (JUNG, 2013c, p. 398),
As técnicas terapêuticas propostas pelas que seriam relacionados a padrões de compor-
neurociências afetivas estão mais relacionadas tamento e funcionamento psíquico especifica-
com a estimulação dos sistemas emocionais mente humanos, ou seja, inacessível pela pes-
positivos no setting terapêutico para contraba- quisa com animais.
lancear os afetos negativos que surgem ao reme- Assim como Darwin propôs que a presença
morar certas experiências desagradáveis. Esse de um mesmo comportamento em indivíduos
processo foi chamado de reconsolidação da me- de uma mesma espécie em diferentes regiões é
mória (PANKSEPP; BIVEN, 2012, p. 464). indício de influência hereditária (DAVIS; PANK-
Por fim, Panksepp e Jung acreditavam que a SEPP, 2018, p. 38), a presença repetida de di-
personalidade do terapeuta era, no fim das con- versos temas na fantasia humana ao redor do
tas, um recurso terapêutico decisivo no desen- globo também deve ser considerada indício de
volvimento do tratamento: um padrão instintivo. Por mais que, diferente-
Panksepp e Biven (2012): “Nós sabemos que mente dos sistemas emocionais, as estruturas
as características de personalidade dos terapeu- cerebrais específicas que produzem os padrões
tas, especialmente suas capacidades de alinha- arquetípicos não tenham sido identificadas até
mento afetivo, são tipicamente mais importan- o presente momento, algumas pesquisas com
tes do que os procedimentos que eles usam” psilocibina mostram que certos padrões de fun-
(p. 455) tradução autores. cionamento cerebral se relacionam consistente-
Jung (2013h): mente com experiências descritas como místicas
(TIMMERMANN et al., 2018), que incluem muitos
No diálogo entre médico e paciente, a dos temas que Jung considerou como arquetípi-
questão de saber se o médico possui o cos, fato este que será mencionado aqui apenas
mesmo insight dos seus próprios proces- de passagem, mas que será abordado mais de-
sos psíquicos que ele espera do paciente talhadamente em outro trabalho do autor.
é evidentemente muito importante. E isso,
sobretudo por causa do chamado rapport,
isto é, da relação de confiança da qual de- Considerações finais
pende, em última análise, o êxito terapêu- Jung foi um dos teóricos que trouxe a pers-
tico, pois, em muitos casos, o paciente só pectiva evolutiva para o estudo do psicológico
pode obter sua própria segurança interior do ser humano, considerando este funciona-
através da segurança de sua relação com mento psíquico como condicionado pelas estru-
a pessoa humana do médico (p. 239). turas cerebrais dos centros do sistema nervoso,
enquanto a maioria dos teóricos se concentrava
Mesmo assim, as limitações das neurociên- em como os aspectos ambientais e a história
cias afetivas, que se baseiam principalmente em pessoal formavam os conflitos do homem mo-
pesquisas com animais, tornam difícil o estudo derno. Ele percebeu que, na realidade, ignorar
de alguns aspectos especificamente humanos a história do espírito humano e acreditar que
do comportamento. Panksepp e Biven (2012) todos os pontos decisivos do desenvolvimento
admitiram, por exemplo, que cada instinto deve se constroem na experiência pessoal levava a
ser acompanhado de imagens relacionadas, po- ineficiência de diversos processos terapêuticos.
rém esse aspecto é inacessível na pesquisa com Assim, quando tratando seus pacientes, Jung

126 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.117-130

sempre buscava levar em conta o lado instintivo considerados aprendidos por décadas pelos
da psique e o tipo de personalidade, ajudando behavoristas, na verdade, são instintivos. As
o paciente a encontrar uma forma melhor de se emoções são o exemplo mais proeminente, mas
posicionar diante destes, através de mudanças outras tendências instintivas, como o instinto
de atitude. materno, diferenças de personalidade e algumas
Hoje, com o advento das neurociências afe- diferenças de tendências de comportamento en-
tivas, a ideia de que as intervenções efetivas tre homens e mulheres também fazem parte da
devem levar as necessidades instintivas do ser lista. Assim, o ponto de vista evolutivo volta ao
humano e seus traços de personalidade particu- estudo do comportamento humano em meio à fe-
lares, em vez de somente trabalhar em mudan- bre do construcionismo social pós-modernista. ■
ças cognitivas e ambientais, tem uma base de
evidências cada vez mais substancial. Panksepp Recebido em: 26/06/2021 Revisão em: 01/11/2021
demonstrou que muitos dos comportamentos

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 127


Junguiana
v.39-2, p.117-130

Abstract
Instincts in affective neuroscience and analytical psychology
The objective of this article is to establish con- also defended against the primacy of the sexual
nections between the analytical psychology of instinct in Sigmund Freud’s theory. Furthermore,
Carl Gustav Jung and the affective neuroscience affective neuroscience and analytical psychology
of Jaak Panksepp. For this, the researcher made propose psychotherapeutic interventions that in-
a comparison between the basic instinctive sys- volve the instinctual aspects of personality, con-
tems proposed by both theories. One of the main sidering purely cognitive changes as insufficient.
characteristics of Jung’s thinking that sets it apart Thus, regardless of their materialist assumptions,
from other psychodynamic schools of thought is Panksepp’s researches have points in common
his emphasis on predispositions inherited from with Jung’s theory, outlining similar instinctual sys-
the psyche. Likewise, affective neuroscience focus tems that demonstrate the importance of the histo-
mainly on the instinctual and inherited basis of hu- ry of species for the psychic constitution of human
man behavior, related to primary emotions rooted beings, countering the growing wave of social con-
in subcortical structures. By studying these struc- structionism, which had its emergence driven by
tures, Panksepp showed the influence of diverse the behaviorist movements of the 50s, and which
instincts on human personality, a point that Jung still permeates the popular imagination today. ■

Keywords: affective neuroscience, analytical psychotherapy, Jung, Carl Gustav, 1875-1961, instinctive
behaviour, emotions

Resumen
Los instintos en las neurociencias afectivas y en la psicología analítica
Este artículo tiene como objetivo establecer de la personalidad humana, un punto que Jung
relaciones entre la psicología analítica de Carl también defendió contra la primacía del instinto
Gustav Jung y las neurociencias afectivas de Jaak sexual en la teoría de Sigmund Freud. Además,
Panksepp. Para ello, se realizó una comparación las neurociencias afectivas y la psicología analí-
entre los sistemas instintivos básicos propuestos tica proponen intervenciones psicoterapéuticas
por ambas teorías. Una de las principales caracte- que tengan en cuenta los aspectos instintivos de
rísticas del pensamiento de Jung, que lo diferencia la personalidad, considerando insuficientes los
de otras teorías psicodinámicas, es su énfasis en cambios puramente cognitivos. Así, a pesar de sus
la base instintiva de la psique, formada por pre- supuestos materialistas, las investigaciones de
disposiciones heredadas. Asimismo, las neuro- Panksepp tienen puntos en común con aspectos de
ciencias afectivas se centran principalmente en la la teoría de Jung, con sistemas instintivos simila-
base instintiva y heredada de determinadas con- res, demostrando la importancia de la historia de
ductas humanas, relacionadas con las emociones las especies para la constitución psíquica del ser
primarias, enraizadas principalmente en estruc- humano, contrarrestando la creciente ola de cons-
turas subcorticales. A través del estudio de estas truccionismo social, que tuvo su auge impulsado
estructuras, Panksepp demostró que hay varios por los movimientos behavioristas de los años 50,
sistemas instintivos involucrados en la formación y que aún hoy permean el imaginario popular. ■

Palabras clave: neurociências, psicoterapia analítica, Jung, Carl Gustav, 1875-1961, comportamiento instin-
tivo, emociones

128 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.117-130

Referências
ALCARO, A; CARTA, S.; PANKSEPP, J. The affective core JUNG, C. G. O significado da constituição da herança para
of the self: a neuro-archetypical perspective on the a psicologia. In: JUNG, C. G. A dinâmica do incon-
foundations of human (and animal) subjectivity. Fron- sciente: a natureza da psique. 10. ed. Petrópolis: Vozes,
tier of Psychology, Lausanne, v. 8, p. 1-6, set. 2017. 2013g. p. 52-9. (Obra Completa de C. G. Jung Vol. 8/2).
https://doi.org/10.3389/fpsyg.2017.01424
Jung, C. G. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis,
DAVIS, K.; PANKSEPP, J. The emotional foundations of RJ: Vozes, 2014. (Obra Completa de C. G. Jung Vol. 7/1).
personality. New York, NY: Norton, 2018.
JUNG, C. G. Questões básicas de psicoterapia. In: JUNG,
JUNG, C. G. A esquizofrenia. In: JUNG, C. G. Psicogênese C. G. Psicoterapia: a prática da psicoterapia. 16. ed.
das doenças mentais. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013h. p. 127-42. (Obra Completa
2013a. p. 289-306. (Obra Completa de C. G. Jung, v. 3). de C. G. Jung Vol. 16/1).

JUNG, C. G. Aspectos gerais da psicologia dos sonhos. In: JUNG, C. G. Sigmund Freud, um fenômeno histórico-cultur-
JUNG, C. G. A dinâmica do inconsciente: a natureza da al. In: JUNG, C. G. O espírito na arte e na ciência. 8.
psique. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013b. p. 186-234. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013i. p.38-45. (Obra Completa
(Obra Completa de Jung, v. 8/2). de C. G. Jung Vol. 15).

JUNG, C. G. Considerações teóricas sobre a natureza do JUNG, C. G. Símbolos da transformação. 9. ed. Petróp-
psíquico. In: JUNG, C. G. A dinâmica do inconsciente: olis, RJ: Vozes, 2013j. (Obra Completa de C. G. Jung Vol. 5).
a natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013c.
p. 104-85. (Obra Completa de Jung, Vol. 8/2). JUNG, C. G. Tentativa de apresentação da Teoria Psican-
alítica. In: JUNG, C. G. Freud e a psicanálise. 7. ed.
JUNG, C. G. Determinantes psicológicas do comportamento Petrópolis, RJ: Vozes, 2013k. p. 97-230. (Obra Completa de
humano. In: JUNG, C. G. A dinâmica do inconsciente: C. G. Jung Vol. 4).
a natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013d.
p. 60-71. (Obra Completa de Jung, Vol. 8/2). PANKSEPP, J; BIVEN, L. The archaeology of mind:
neuroevolutionary origins of human emotions. New York,
JUNG, C. G. Espírito e vida. In: JUNG, C. G. A dinâmi- NY: Norton, 2012.
ca do inconsciente: a natureza da psique. 10. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2013e. p. 274-94 (Obra Completa PETERSON, J. B. Maps of meaning: the architecture of
de Jung, Vol. 8/2). belief. New York, NY: Routledge, 1999.

JUNG, C. G. O conteúdo da psicose. In: JUNG, C. G. TIMMERMANN, C. et al. DMT models the near-death expe-
Psicogênese das doenças mentais. 6. ed. Petrópolis, rience. Frontier of Psychology, Lausanne, v. 9, p. 1-12,
RJ: Vozes, 2013f. p. 173-217 (Obra Completa de C. G. ago. 2018. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2018.01424
Jung Vol. 3).

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 129


130 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021
Junguiana
v.39-2, p.131-142

Instincts in affective neuroscience and ana-


lytical psychology

Guilherme Silva Gonçalves*

Abstract Keywords
The objective of this article is to establish ed against the primacy of the sexual instinct in affective
connections between the analytical psychology Sigmund Freud’s theory. Furthermore, affective neuroscience,
of Carl Gustav Jung and the affective neurosci- neuroscience and analytical psychology propose analytical
psychother-
ence of Jaak Panksepp. For this, the researcher psychotherapeutic interventions that involve the
apy, Jung, C.
made a comparison between the basic instinc- instinctual aspects of personality, considering G, 1875-1961;
tive systems proposed by both theories. One of purely cognitive changes as insufficient. Thus, instinctive
the main characteristics of Jung’s thinking that regardless of their materialist assumptions, behavior,
sets it apart from other psychodynamic schools Panksepp’s researches have points in common emotions
of thought is his emphasis on predispositions with Jung’s theory, outlining similar instinctual
inherited from the psyche. Likewise, affective systems that demonstrate the importance of the
neuroscience focus mainly on the instinctual history of species for the psychic constitution
and inherited basis of human behavior, related of human beings, countering the growing wave
to primary emotions rooted in subcortical struc- of social constructionism, which had its emer-
tures. By studying these structures, Panksepp gence driven by the behaviorist movements of
showed the influence of diverse instincts on hu- the 50s, and which still permeates the popular
man personality, a point that Jung also defend- imagination today. ■

* Bachelor’s degree in Psychology (Faculdades Metropolitanas


Unidas - FMU). Aplied Behavior Analysis therapist. President
and founder member of FMU’s Academic League for Jungi-
an Studies and Research (LAPEJ) (2019-2021). Member of
the literature department from the Jungian Institute of São
Paulo (IJUSP).
E-mail: sg.guilherme00@gmail.com

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 131


Junguiana
v.39-2, p.131-142

Instincts in affective neuroscience and analytical psychology

The role of psychic inheritance in Jung’s theory


Jung defended the importance of the evolu- such as dreams, delusions, fantasies etc. He
tionary history of human beings in the constitu- noticed that recurring themes often appeared in
tion of their typical behavior, which could not be these phenomena:
explained only by the personal life experiences
of each individual. He stated that the human It was this frequent reversion to archaic
being’s ways of thinking and acting are not the forms of association found in schi-
result of chance, but are influenced by pre-estab- zophrenia that first gave me the idea of
lished pathways present in the brain structure it- an unconscious not consisting only of
self (JUNG, 1975a, p. 230). Even so, Jung’s model originally conscious contents that have
of the psyche was never materialistic; he never got lost, but having a deeper layer of the
claimed that it was the result of brain chemistry. same universal character as the mytholo-
Analytical psychology represents the psychic gical motifs which typify human fantasy
and the physical as opposing manifestations of in general. These motifs are not invented
the same paradoxical phenomenon that is be- so much as discovered; they are typical
yond rational apprehension so far (JUNG, 2013a, forms that appear spontaneously all over
p. 619). By saying that, he did not deny the im- the world, independently of tradition,
portance of the central nervous system integri- in myths, fairy-tales, fantasies, dreams,
ty for proper psychic functioning (JUNG, 2013b, visions, and the delusional systems of
p. 318). On the interaction between psyche and the insane. On closer investigation they
brain, he states: prove to be typical attitudes, modes of
action—thought-processes and impulses
The psychic process underlying consciou- which must be regarded as constituting
sness is, as far as we are concerned, au- the instinctive behaviour typical of the
tomatic and its comings and goings are human species. The term I chose for this,
unknown to us. We only know that the ner- namely archetype, therefore coincides
vous system, and particularly its centers, with the biological concept of the “pat-
condition and express the psychic func- tern of behaviour.” In no sense is it a
tion, and that these inherited structures question of inherited ideas, but of inhe-
start functioning in each new individual rited, instinctive impulses and forms that
exactly as they have always done (JUNG, can be observed in all living creatures
1975a, p. 227). (JUNG, 1972, p. 565).

Therefore, Jung recognized that the centers Freud explained cultural activities and social
of the nervous system at least condition psy- relations as the sublimation of sexual energy
chic functioning according to certain instinctual (JUNG, 2013c, p. 46), while Jung saw them as re-
forms, which constitute what he called the col- sults of different instincts. However, Jung does
lective unconscious. not deny the importance of sexuality for human
The concept of collective unconscious postu- beings, recognizing that many psychological
lated by Jung came from his observations of the conflicts have an erotic basis (JUNG, 2014, p.14).
spontaneous psychic products of his patients, In his experience as a physician, Jung observed

132 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.131-142

other human needs and instincts that exerted that these cognitive functions are initially pro-
equal influence on behavior and that could, if grammed by primary affective processes, which
neglected, be sources of disturbances as serious can happen in a healthy or pathological way.
as repressed sexuality (JUNG, 1975a, p. 230-1). Thus, even if human beings develop a huge vari-
Even without the adequate instruments to ety of cognitive functions, their psychic function-
prove his conclusions, Jung faithfully described ing never cease to be deeply rooted and influ-
the facts observed in his extensive clinical prac- enced by these instinctual patterns (p. 5).
tice, facing many prejudices of his time. If talking In this discipline, the brain is studied mostly
about sexuality hurt the social morality of the time, from a bottom-up perspective, from the oldest to
which still saw the ideal human being as ration- the newest structures. The term BrainMind is used
al, touching on themes related to mythology and when speaking from a bottom-up perspective,
religion was a crime that could be punished with while MindBrain is used when speaking from a
excommunication from the academic world, as it top-down perspective. This shows that there is a
constituted a blasphemy against the materialist circular causality between levels of brain function-
creed. Thus, Jung was relegated to the background ing, although the focus of affective neuroscience
and still considered a taboo subject in many uni- is on primary emotional processes. The lack of
versities. Jordan B. Peterson, the famous Canadi- space between the two words indicates that it is a
an psychologist who brought Jung’s ideas back to unified process; that is, brain and mind are insep-
the world scenario, says that in his student years arable. Thus, Panksepp and Biven (2012) adopts a
many professors cautioned him against discuss- monistic view of human psychological functioning
ing Jung’s work (PETERSON, 1999, pp. 401). Fortu- (p. 7). This non-dualistic view resembles Jung’s,
nately, with the advance of neuroscience, there are described in the previous section, with the differ-
perspectives for change in this picture. ence that affective neuroscience are based on ma-
terialist assumptions (p. 417) while Jung (2013a)
preferred to adopt the perspective of psychologi-
Affective neuroscience cal lack of evidence in this regard (p. 282).
Consolidated by neuroscientist Jaak Pank- The affective neuroscience research method
sepp, affective neuroscience is based on re- is triangulated, considering the structure of the
search aimed at understanding the functioning mammalian brain, their instinctual emotional be-
of the human and animal brain. haviors, and the subjective mental states associ-
ated with these instincts. While most neuroscien-
As far as we know right now, primal emo- tists consider only instinctive behavior patterns
tional systems are made up og neuroa- and the brain structures involved, Panksepp
natomies and neurochemistries that are and Biven (2012) an includes the psychological
remarkably similar across all mammalian aspect of this dynamic, arguing that instinctual
species. This suggests that these sys- emotional systems not only express themselves
tems evolved a very long time ago and at in patterns of behavior, but also influence the
the basic emotional level, all mammals manner in which the individual experiences the
are more similar than they are different” world. The latter is only accessible through re-
(PANKSEPP; BIVEN, 2012, pp. 4). search with human beings (p. 23-4).
Considering the basic inherited instincts and
Of course, the affective neuroscience recog- their relationship to human ways of acting and
nizes all the complexity that is added to human organizing their experiences, many connections
behavior due to their unique cognitive abilities. are possible between the affective neuroscience
Even so, Panksepp and Biven (2012) states and Jung’s theory.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 133


Junguiana
v.39-2, p.131-142

The basic instincts in Jung’s theory a nature similar to that of instincts. He also noted
that creativity is associated with other instincts,
As stated above, Freud considered the sexu-
such as the drive to action, sexuality and the re-
al instinct, or the pleasure principle, as the main
flective instinct, without being identical with any
driving force behind human behavior, consider-
one of them.
ing many cultural activities as replacements for a
repressed or sublimated desire (JUNG, 2013c, p.
46). Later, he added the death drive as one of the The seven primary emotional sys-
forces influencing human behavior (JUNG, 2014,
p. 33). Jung (1975b), however, considered psy-
tems in affective neuroscience
Panksepp and Biven (2012) speaks of seven
chic energy a neutral force that could change its
basic emotional systems with specific neurolog-
application according to the natural needs of life
ical circuits, consisting of characteristic patterns
and the internal pressure of different instincts.
of reaction and affective states. When talking
“The fact that the energy can be deployed in var-
about these affective systems, he uses capital
ious fields indicates the existence of still other
letters, indicating a reference to neurological
drives strong enough to change the direction of
circuits and not the popular meaning attributed
the sexual instinct...” (JUNG, 1975b, p. 239). This
to these words. These systems are RAGE, FEAR,
group of instincts is self-preservation, preserva-
SEEKING, PLAY, LUST, PANIC, and CARE (p. 34).
tion of the species, reflective instinct, drive to ac-
For more details and illustrations of brain struc-
tivity, and creative instinct.
tures related to the seven systems, see the work
An example of self-preservation instincts is
of Panksepp and Biven (2012).
hunger, which he claims has a more prominent RAGE is the system that activates in mammals
character in human life, especially in primitive, in stressful situations, such as when they are de-
than sexuality. An example of the instinct to prived of mobility, suffer irritation on the body
preservation of the species is the sexual im- surface, deprived of food, deprived of an immi-
pulse, which in humans is not only related to re- nent reward, and when they compete with others
production, but also to feelings, affections, and for resources (p. 149). Its characteristic respons-
even spiritual and material interests. es consist of clenching teeth, punching, biting,
The reflective instinct consist in the countless scratching, and attacking, with the intensity of
associations that human beings automatically manifestation proportional to that of stimulation
make when faced with a situation, leading to the (p. 150). The main brain structures involved in
variability of their responses, working as a form the functioning of this system are the periaque-
of instinctive reasoning, which is at the base of ductal gray (PAG), the medial hypothalamus, and
the most complex cultural productions. the medial areas of ​​the amygdala (p. 151).
The drive to activity manifests itself when the FEAR is the system responsible for preserving
needs of other impulses are satisfied, leading to the organism when there is a threat to physical
an active search in the environment for new pos- integrity, as in the case of encounters with pred-
sibilities and also playful behaviors. ators. The most common response of this system
The creative instinct varies the most from per- is freezing and, at higher levels of stimulation,
son to person. In some, the need to create im- precipitous flight (p. 179). In general, the brain
poses itself with great violence and can subject structures of FEAR is found in the dorsal area of
the entire personality to its satisfaction, while in the periaqueductal gray (PAG), connecting with
others this instinct is practically imperceptible the anterior and medial areas around the third
throughout life. Due to this lack of universality ventricle of the hypothalamus, and also with the
and content, Jung (1975b) attributed to creativity central area of the amygdala (p. 182).

134 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.131-142

PANIC is the system responsible for separa- substance in the VMH, making the female more
tion stress and is activated when the individual emotionally receptive to the sexual advances
suffers some type of social loss, such as aban- of the suitors (p. 256). In humans, testosterone
donment or rejection, being more sensitive in also influences female sexuality, although to a
the first years of life. This system is named PAN- lesser degree than in male sexuality.
IC because, when abandoned, young mammals PLAY is responsible for the enjoyment of so-
express a special form of anxiety, a state of ag- cial interactions, such as the physical play of
itated panic. Some structures involved in the young animals, which happens when they are
functioning of PANIC are the periaqueductal gray together in a safe and well-fed environment. An-
(PAG), the dorsomedial thalamus, and the ante- imals develop social and survival skills through
rior cingulate cortex (p. 315). play (p. 354). This system is crucial to the devel-
These three systems are considered neg- opment of the mammalian brain, but negative
ative emotional systems, whose individuals emotions diminish its activities. The structures
avoid activation. There are also four positive identified by the PLAY system so far are the para-
emotional systems: fascicular complex and the posterior dorsomedi-
SEEKING is the most basic emotional system. al thalamic nucleus (p. 364).
It makes the individual an active explorer of the CARE is the system responsible for the care of
environment to find the resources necessary for mammals with their offspring, being more sen-
survival and satisfy the needs of all other systems sitive in females than in males (p. 286). Touch-
(p. 95), being also responsible for curiosity (p. ing, bringing bodies together, creating a bond,
102). This system is activated during anticipation and reacting to the offspring’s stress signals are
but not during the consummation of the rewards reactions arising from the activity of this emo-
and causes the euphoric behavior to get closer tional system. Some brain structures related to
to something valued. The main structures of this CARE are the paraventricular nucleus (PVN), the
system are the ventral tegmental area (VTA), the dorsal preoptic area (dPOA), the bed nucleus of
medial forebrain bundle and lateral hypothala- the stria terminalis (BNST) with some projections
mus (MFB-LH), the nucleus accumbens and the reaching the ventral tegmental area (VTA), which
medial prefrontal cortex, connected through the can activate the SEEKING to perform typical ma-
mesolimbic and mesocortical dopamine path- ternal behaviors such as building safe nests and
ways (p. 104). keeping offspring close (p. 293).
LUST is the system responsible for sexual
arousal and gender-specific sexual behaviors,
having different centers in the male and female
Comparing groups of instincts
brains (p. 249). The epicenter of male sexuality is with primary emotional systems
the interstitial nucleus of the anterior hypothal- By comparing the two groups, it is possi-
amus (INAH), which has numerous testosterone ble to see a relationship between the basic in-
receptors (p. 250), responsible for the production stincts listed by Jung and the affective systems
of neuropeptides, such as vasopressin, related described by Panksepp and Biven (2012). In the
to male sexual behavior, such as sexual arousal, group of self-preservation instincts, Jung uses
courtship, and territorial aggression (p. 251). In hunger as an example in most passages, which
females, sexual impulses originate in the ventro- Panksepp do not include in emotional affects,
medial hypothalamus (VMH), mainly controlled but in homeostatic affects, which are also among
by progesterone and estrogen (p. 255). The ac- the primary affects (p. 10). Jung (2013d) also links
tion of these hormones increases the production the self-preservation instincts to the individual’s
of oxytocin and sensitizes the receptors of this general self-preservation, absent in many schiz-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 135


Junguiana
v.39-2, p.131-142

ophrenic patients (p. 276). Therefore, one can in- neocortex... When the SEEKING system
clude in this group the organism’s preservation arouses the human neocortex, it energizes
instincts, including behaviors associated with thinking processes – a kind of virtual world
the RAGE, FEAR, and PANIC systems. – yielding complex learned behaviors that
When Jung (1976) speaks of the species pres- are not instinctual and may even be cou-
ervation instincts group, he uses sexuality as an nterinstinctual... This system energizes all
example. But as the name preservation of spe- human creativity – it has been a mental
cies implies, the procreation, CARE and LUST engine for all civilizations (p. 102-3).
are included in this group. Jung states that dur-
ing the evolutionary process the sexual system Just as Jung defines creativity as an impulse
was divided between procreation and care of the that relates to all other instincts, Panksepp and
offspring (p.194), a hypothesis similar to that of Biven (2012) says the same about SEEKING, as it
Panksepp and Biven (2012), who also consid- is responsible for satisfying the needs of all oth-
ered CARE and the LUST as evolutionarily derived er instincts, functioning as a state of excitement
from the same emotional system, but distinct in without a specific object. Jung also includes hu-
current’s human brain (p. 290). man play in the instinctual drive to activity, just
In contrast, the drive to activity and the reflec- as Panksepp and Biven (2012) does with the
tive instinct are two distinct aspects of SEEKING, PLAY system.
involving active exploration of the environment In short, SEEKING and PLAY are in the group of
and using associations to solve problems and drive to activity; CARE and LUST are in the group
satisfy curiosity (p. 102). Jung (1975b) says about of species conservation instincts; RAGE, FEAR,
the reflective instinct: PANIC, and also the homeostatic affects, are in
the group of self-preservation instincts. The re-
Reflection re-enacts the process of excita- flective instinct and creative instinct can also be
tion and carries the stimulus over into a related to SEEKING, especially in the interaction
series of images which, if the impetus is of the subcortical structures of this system with
strong enough, are reproduced in some the neocortex, which can motivate counter-in-
form of expression. This may take place stinctive behaviors based on instinctual needs.
directly, for instance in speech, or may
appear in the form of abstract thought,
dramatic representation, or ethical con- Instinct and libido
duct; or again, in a scientific achievement Jung never tried to establish underlying neu-
or a work of art... Reflection is the cultural ronal circuits for different instincts, but rather
instinct par excellence, and its strength is to point out that diverse instincts participate in
shown in the power of culture to maintain human activities. Remarkably, there are many
itself in the face of untamed nature (JUNG, relationships between the observations made
1975b p. 243-244). in his clinical practice and the results of recent
research in affective neuroscience. The influence
Likewise, Panksepp and Biven (2012) states of various instincts in the formation of the human
about the SEEKING system: personality, defended by Jung, is now a proven
fact, in contrast to the theory of the primacy of
In humans, strategic thinking plays a ma- the sexual instinct proposed by Freud.
jor role in SEEKING arousal because this Jung (1976) states that many activities that
system, like all our emotional systems, were evolutionarily derived from sexuality are
has abundant connections to the frontal now independent functions:

136 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.131-142

Thus, many complex functions, which to- stincts into groups, he believed that, from a dy-
day must be denied all trace of sexuality, namic perspective, they were different manifes-
were originally derived from the repro- tations of the same energy, called libido.
ductive instinct. As we know, an impor-
tant change occurred in the principles of In nature, of course, this artificial distinc-
propagation during the ascent through tion does not exist. There we see only a
the animal kingdom: the vast numbers of continuous life-urge, a will to live which
gametes which chance fertilization made seeks to ensure the continuance of the
necessary were progressively reduced in whole species through the preservation
favour of assured fertilization and effecti- of the individual... Similarly, the concept
ve protection of the young (p.194). of libido as desire or appetite is an inter-
pretation of the process of psychic energy,
Similarly, Panksepp and Biven (2012) says: which we experience precisely in the form
of an appetite (p. 195).
Freud hypothesized that all nonsexual
love, even maternal love, was a sublima- He preferred to adopt the energetic stand-
tion of na undelying sexual urge. He main-
point in his clinical practice due to the enormous
tained that sublimation – the channeling
communication among different instincts:
of a basic emotional energy into socially
useful purposes – occured when sexual
The energic standpoint has the effect of
urges were transformed into social values
freeing psychic energy from the bonds of
capable of serving nonsexual puporses...
a too narrow definition. Experience shows
Although CARE may have evolved from
that instinctual processes of whatever
LUST, the two systems are now sufficiently
kind are often intensified to an extraordi-
distinct in the brain and they perform dif-
nary degree by an afflux of energy, no mat-
ferent functions. The LUST system genera-
ter where it comes from. This is true not
tes the sexual urge while the CARE system
only of sexuality, but of hunger and thirst
generate nonsexual tenderness... (p. 290).
too. One instinct can temporarily be depo-
Panksepp and Biven (2012) also states that tentiated in favour of another instinct, and
other emotional systems different from CARE and this is true of psychic activities in general
LUST, such as PANIC and PLAY, are relevant for (JUNG, 1976, p. 199).
social development and are not present in Freud-
ian theory. Panksepp and Biven (2012) saw instincts as
In addition to the seven basic emotional sys- inherited instruments, in the form of a system of
tems, Panksepp postulated the existence of an codified values, to increase the organism’s suc-
instinctive SELF, responsible for integrating bodi- cess in the game of existence and in facing its
ly, environmental and emotional information into typical challenges (p. 67), that is, they are unified
a coherent structure (p. 392). It is also possible by the same purpose, the same appetites, even
to make a relationship between Panksepp’s SELF though they have different physical structures.
and the Jungian concept of Self, which also func- In affective neuroscience, the activities of differ-
tions as the organizing center of the psyche (AL- ent instincts also influence each other, but not
CARO et al., 2017). so broadly as in Jungian theory. For example, the
However, it is noteworthy to emphasize that, PANIC activity counterbalances the CARE activity;
although Jung (1976) made this division of in- negative emotions inhibit the PLAY etc.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 137


Junguiana
v.39-2, p.131-142

Jung and Panksepp’s views on cal, according to the predispositions of the organ-
ism’s personality and environmental influences.
psychopathology
Both theories discussed here have a practi- Thus, two-way, circular causation beco-
cal objective aim beyond simply understand- mes na adaptive feature of the human
ing the psychological functioning of the human mind and pherhaps of mammalian minds
brain: to find more adequate ways to deal with in general, with bottom-up development
psychopathologies through an understanding of and learning initially leading the way and
instincts. top-down regulations and reflections be-
Jung (1976) considered pathological disorders coming part of the healthy mature (or, in
as improper attitudes towards instinct. He says: extreme cases, pathological) BrainMind
apparatus. The challenge of biological
Instinct is a very mysterious manifesta- psychiatry and psychotherapy is to faci-
tion of life, partly psychic and partly phy- litate reorganization of suchy BrainMind
siological by nature. It is one of the most dynamics (DAVIS; PANKSEPP, 2018, p. 77).
conservative functions in the psyche and
is extremely difficult, if not impossible, Like Jung, Panksepp and Biven (2012) be-
to change. Pathological maladjustments, lieved that the longest-lasting psychotherapeu-
such as the neuroses, are therefore more tic results happen when aiming at the instinctual
easily explained by the patient’s attitude levels of the personality, whereas purely cogni-
to instinct than by a sudden change in the tive changes are more fragile.
latter. But the patient’s attitude is a com-
plicated psychological problem, which it ... [P]heraps the most lasting effects occur
would certainly not be if his attitude de- if the therapeutic path has been paved by
pended on instinct. The motive forces at changing the primary-process affective
the back of neurosis come from all sorts tone. If so, the work of clinical prationers
of congenital characteristics and environ- may be facilitated by more fully assimila-
mental influences, which together build ting and utilizing the available evidence
up an attitude that makes it impossible about brain emotional systems arising
for him to lead a life in which the instincts from affective neuroscience, and aiming
are satisfied (p. 199). more fully to utilize the most direct affecti-
ve maneuvers available (p. 457).
Likewise, from the perspective of affective
neuroscience, psychotherapy aims to reorganize Thus, both Jung and Panksepp considered the
interactions between instinctual affective sys- instinctual base and its needs as a main focus of
tems and other levels of brain-mental function- clinical work. However, in analytical psychology,
ing, divided into a Nested BrainMind Hierarchy the process of identifying neglected instinctual
of three levels: primary processes, consisting of needs is the analysis of unconscious contents
subcortically based raw affects; secondary pro- through methods such as dream analysis and
cesses, consisting of learning processes located active imagination, which are not present in the
largely in the upper limbic regions; and tertiary affective neuroscience. Even so, Panksepp and
processes, consisting of cognitive functions, lo- Biven (2012) stated that the function of dreams
cated largely in neocortical areas. In this way, the was to evaluate past affective experiences to re-
levels of brain-mental functioning work in a circu- solve future situations (p. 378); that is, they have
lar dynamic, which can be healthy or pathologi- a prospective function, as in Jung’s (1975c) theo-

138 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.131-142

ry: “The prospective function, however, is antic- age, inaccessible through animal research, as it
ipation in the unconscious of future conscious requires verbal description (p. 428). Jung (2013c)
achievements, something like a preliminary also described archetypes as images of instincts
exercise or sketch, or a plan roughed out in ad- (p. 398), which are representations of patterns of
vance. Its symbolic content sometimes outlines human behavior and psychic functioning, that is,
the solution of a conflict...” (JUNG, 1975c, p. 493). “a self-portrait of the instinct”.
The therapeutic methods proposed by the af- Just as Darwin proposed that the same pat-
fective neuroscience are stimulation of positive terns of behavior in individuals in different re-
emotional systems in the therapeutic setting to gions may indicate inherited characteristics
counterbalance the negative emotions that arise (DAVIS; PANKSEPP, 2018, p. 38), the repeated
when remembering unpleasant experiences. themes of human fantasy around the globe
This process is called memory reconsolidation must also be considered indicative of an instinc-
(PANKSEPP; BIVEN, 2012, p. 464). tual pattern. Unlike emotional brain systems,
Finally, Panksepp and Jung believed that the the specific structures that produce archetyp-
therapist’s personality was, after all, a decisive ther- al patterns remain unknown. However, some
apeutic resource in the development of treatment: psilocybin research shows that some patterns
Panksepp and Biven (2012): “We do know of brain functioning are consistently related to
that the therapists’ personality traits – no doubt, mystical-type experiences (TIMMERMANN et al.,
especially their affective attunement abilities – 2018), including themes that Jung described as
are typically more important than the specific archetypal. The author will address this subject
procedures they use (p. 455). in more detail in another work, since it goes be-
Jung (1985): yond the scope of the present discussion.

The intelligent psychotherapist has known


for years that any complicated treatment Final thoughts
is an individual, dialectical process, in Jung was one of the theorists who brought the
which the doctor, as a person, participa- evolutionary perspective to psychology, describ-
tes just as much as the patient. In any ing psychic functioning as conditioned by the
such discussion the question of whether brain structures of the nervous system centers,
the doctor has as much insight into his when most theorists focused on how environ-
own psychic processes as he expects mental aspects and personal history shaped
from his patient naturally counts for a very modern man’s conflicts. He realized that ignor-
great deal, particularly in regard to the ing the history of the human spirit and believing
“rapport,” or relationship of mutual con- that all decisive points in development derive
fidence, on which the therapeutic success from personal experience led to the inefficien-
ultimately depends. The patient, that is to cy of various therapeutic processes. Thus, Jung
say, can win his own inner security only considered the instinctual side of the psyche and
from the security of his relationship to the the personality type, helping patients to find the
doctor as a human being (p. 239). best way to position themselves according to the
changes in attitude.
However, some limitations of affective neuro- With the advent of affective neuroscience,
science, a discipline based on animal research, the idea that effective interventions must ad-
make it difficult to study specific human behav- dress the instinctual needs of human beings and
iors. Panksepp and Biven (2012) said that each their particular personality traits, rather than just
instinct must be accompanied by a certain im- working on cognitive and environmental chang-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 139


Junguiana
v.39-2, p.131-142

es, has gained an increasingly substantial evi- in behavior tendencies between males and fe-
dence base. Panksepp demonstrated that many males are also on the list. Thus, the evolutionary
of the behaviors considered as learned for dec- perspective returns to the study of human psy-
ades by behaviorists are instinctual. Emotions chology amidst the fever of postmodernist social
are the most prominent example, but other in- constructionism that has gripped universities. ■
stinctual tendencies such as maternal behavior,
personality differences, and some differences Received: 06/26/2021 Revised: 11/01/2021

140 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.131-142

Resumo
Os instintos nas neurociências afetivas e na psicologia analítica
Este artigo visa estabelecer relações entre a lidade humana, ponto que Jung também defendeu
psicologia analítica de Carl Gustav Jung e as neu- contra a primazia do instinto sexual na teoria de Sig-
rociências afetivas de Jaak Panksepp. Para isso, foi mund Freud. Além disso, as neurociências afetivas
feita uma comparação entre os sistemas instintivos e a psicologia analítica propõem intervenções psi-
básicos propostos por ambas as teorias. Uma das coterapêuticas que levem em conta os aspectos ins-
principais características do pensamento de Jung, tintivos da personalidade, considerando mudanças
que o diferencia das outras teorias psicodinâmicas, puramente cognitivas como insuficientes. Assim,
é sua ênfase na base instintiva da psique, constituí- apesar de seus pressupostos materialistas, as pes-
da de pré-disposições herdadas. Da mesma forma, quisas Panksepp possuem pontos em comum com
as neurociências afetivas se concentram principal- aspectos da teoria de Jung, com sistemas instintivos
mente na base instintiva e herdada de certos com- semelhantes, demonstrando a importância da his-
portamentos humanos, relacionados às emoções tória da espécie para a constituição psíquica do ser
primárias, enraizadas principalmente em estruturas humano, contrariando a crescente onda do constru-
subcorticais. Através do estudo dessas estruturas, cionismo social, que teve sua ascensão impulsiona-
Panksepp demonstrou que existem diversos siste- da pelos movimentos behavoristas dos anos 1950,
mas instintivos envolvidos na formação da persona- e que ainda hoje permeia o imaginário popular. ■

Palavras-chave: neurociências; psicoterapia analítica; Jung, Carl Gustav, 1875-1961; comportamento instin-
tivo; emoções

Resumen
Los instintos en las neurociencias afectivas y en la psicología analítica
Este artículo tiene como objetivo establecer de la personalidad humana, un punto que Jung
relaciones entre la psicología analítica de Carl también defendió contra la primacía del instinto
Gustav Jung y las neurociencias afectivas de Jaak sexual en la teoría de Sigmund Freud. Además,
Panksepp. Para ello, se realizó una comparación las neurociencias afectivas y la psicología analí-
entre los sistemas instintivos básicos propuestos tica proponen intervenciones psicoterapéuticas
por ambas teorías. Una de las principales caracte- que tengan en cuenta los aspectos instintivos de
rísticas del pensamiento de Jung, que lo diferencia la personalidad, considerando insuficientes los
de otras teorías psicodinámicas, es su énfasis en cambios puramente cognitivos. Así, a pesar de sus
la base instintiva de la psique, formada por pre- supuestos materialistas, las investigaciones de
disposiciones heredadas. Asimismo, las neuro- Panksepp tienen puntos en común con aspectos de
ciencias afectivas se centran principalmente en la la teoría de Jung, con sistemas instintivos simila-
base instintiva y heredada de determinadas con- res, demostrando la importancia de la historia de
ductas humanas, relacionadas con las emociones las especies para la constitución psíquica del ser
primarias, enraizadas principalmente en estruc- humano, contrarrestando la creciente ola de cons-
turas subcorticales. A través del estudio de estas truccionismo social, que tuvo su auge impulsado
estructuras, Panksepp demostró que hay varios por los movimientos behavioristas de los años 50,
sistemas instintivos involucrados en la formación y que aún hoy permean el imaginario popular. ■

Palabras clave: neurociências, psicoterapia analítica, Jung, Carl Gustav, 1875-1961, comportamiento instin-
tivo, emociones

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 141


Junguiana
v.39-2, p.131-142

References

ALCARO, A; CARTA, S.; PANKSEPP, J. The affective core _______. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópo-
of the self: a neuro-archetypical perspective on the lis, RJ: Vozes, 2014. (Obra Completa de C. G. Jung Vol. 7/1).
foundations of human (and animal) subjectivity. Fron-
tier of Psychology, Lausanne, v. 8, p. 1-6, set. 2017. _______. The pratice of psychoterapy. 2. ed. New
https://doi.org/10.3389/fpsyg.2017.01424 York, NY: Princeton University, 1985. (The Collected Works
of C. G. Jung Vol. 16).
DAVIS, K.; PANKSEPP, J. The emotional foundations of
personality. New York, NY: Norton, 2018. _______. Sigmund Freud, um fenômeno histórico-cultural.
In: JUNG, C. G. O espírito na arte e na ciência. 8. ed.
JUNG, C. G. Schizophrenia. In: JUNG, C. G. Psychogenesis Petrópolis, RJ: Vozes, 2013c. p.38-45. (Obra Completa de C.
of mental disease. New York, NY: Princeton University, G. Jung Vol. 15).
1972. p. 256-71. (The Collected Works of C. G. Jung, v. 3).
_______. Symbols of transformation. 2. ed. New
_______. General aspects of dream psychology. In: JUNG, York, NY: Princeton University, 1976. (The Collected Works
C. G. The structure and dynamics of the psyche. 2. of C. G. Jung Vol. 5).
ed. New York, NY: Princeton University, 1975c. p. 237-80
(The Collected Works of C. G. Jung Vol. 8). _______. Tentativa de apresentação da Teoria Psicanalítica.
In: JUNG, C. G. Freud e a psicanálise. 7. ed. Petrópolis,
_______. Psychological factors determining human behav- RJ: Vozes, 2013d. p. 97-230. (Obra Completa de C. G. Jung
iour. In: JUNG, C. G. The structure and dynamics of the Vol. 4).
psyche. 2. ed. New York, NY: Princeton University, 1975b. p.
114-29. (The Collected Works of C. G. Jung Vol. 8). PANKSEPP, J; BIVEN, L. The archaeology of mind:
neuroevolutionary origins of human emotions. New York,
_______. Espírito e vida. In: JUNG, C. G. A dinâmica do NY: Norton, 2012.
inconsciente: a natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2013a. p. 274-94 (Obra Completa de Jung, Vol. 8/2). PETERSON, J. B. Maps of meaning: the architecture of
belief. New York, NY: Routledge, 1999.
_______. O conteúdo da psicose. In: JUNG, C. G.
Psicogênese das doenças mentais. 6. ed. Petrópolis, TIMMERMANN, C. et al. DMT models the near-death expe-
RJ: Vozes, 2013b. p. 173-217. (Obra Completa de C. G. rience. Frontier of Psychology, Lausanne, v. 9, p. 1-12,
Jung Vol. 3). ago. 2018. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2018.01424

_______. The significance of constitution and heredity in


psychology. In: JUNG, C. G. The structure and dynamics of the
psyche. 2. ed. New York, NY: Princeton University, 1975a. p.
107-13. (The Collected Works of C. G. Jung Vol. 8).

142 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.143-156

Chamado de Eco: a escuta de


vozes silenciadas

Cássia Frankenthal Quinlan*

Resumo Palavras-chave
O presente trabalho tem por objetivo dar at- Eco, vozes
enção a vozes silenciadas. Pelo levantamento silenciadas,
de estudos em Psicologia Analítica sobre a fig- psicologia,
literatura.
ura mitológica de Eco e de Estudos Literários
que correlacionam silenciamento e psicologia,
buscou-se compreender o que leva ao silencia-
mento imposto. Foi possível compreender que
o olhar hegemônico para Eco e para o Outro
os coloca numa posição de pouco valor, algo
também encontrado em discursos de resistência
e narrativas testemunhais na área da Literatura,
especialmente quando o encontro com o Outro
parece ser ameaçador. ■

* Psicóloga clínica graduada pela Pontifícia Universidade Católi-


ca de São Paulo (PUC-SP), formada em Experiência Somática
pela Associação Brasileira de Trauma (ABT).
E-mail: cassiafq@gmail.com

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 143


Junguiana
v.39-2, p.143-156

Chamado de Eco: a escuta de vozes silenciadas

Chamado de Eco: a escuta de vozes ções presidenciais de 2018 no Brasil e diante de


silenciadas falas compreendidas como misóginas, racistas e
fascistas do candidato eleito. As discussões so-
O mito de Eco revela que a pior prisão é bre os textos selecionados e recomendados no
aquela em que o ser humano não pode grupo de estudos mobilizaram diversos incômo-
expressar o que pensa ou o que sente; dos compartilhados, orientadas pelo prisma da
é a tortura de conviver com seus pensa- questão de gênero e por vivências pessoais.
mentos e sentimentos presos pelo medo Ler sobre Judith levantou questões sobre
ou pelas convenções ameaçadoras (au- como o silenciamento imposto pelo externo atra-
tor não identificado, apud PRADO, 2015, vessa o desenvolvimento humano. A partir desse
p. 19). questionamento, buscou-se referências mitoló-
gicas de silenciamento e, dada a origem literária
Virginia Woolf (2019) cria a personagem fic- da questão, buscou-se referências em estudos
tícia Judith, irmã do dramaturgo inglês William literários que estabelecessem uma relação com
Shakespeare, como representante do que imagi- psicologia e silenciamento. Desta forma, o pre-
na que aconteceria caso uma mulher tivesse a sente trabalho procura, via figura mitológica de
mesma genialidade dele. Impedida de ir à escola Eco e estudos literários de Magnabosco (1999) e
e embargada por demandas de cuidado domés- de Saçço (2016), melhor entender o contexto de
tico, ficaria constantemente afastada da possibi- vozes silenciadas, algumas de suas consequên-
lidade da leitura e escrita. Antes de completar 17 cias, possíveis quebras do silenciamento impos-
anos seria noivada e, opondo-se ao casamento, to e transformações daí decorrentes.
o pai ora a espancaria, ora lhe imploraria que Eco é uma referência mitológica de silencia-
não manchasse o nome da família. Decidida a mento imposto ao ter sua capacidade de fala
perseguir seu sonho de trabalhar com teatro, fu- reduzida à repetição das últimas palavras que
giria de casa e tentaria adentrar um teatro sen- ouve quando enfurece a deusa Hera ao enganá-
do repelida por um homem. Sem possibilidades -la. Berry (2014) parece ser a primeira referência
para si na cidade, se veria envolvida com um específica sobre Eco de forma não secundária
empresário que a engravidaria e, desesperanço- a Narciso, mas como foco por si só. A autora
sa, tiraria a própria vida, sendo sepultada numa enfatiza um aspecto criativo da ninfa que, em-
encruzilhada que depois viraria um ponto de ôni- bora mencionado em diversos outros trabalhos
bus na cidade. (CAVALCANTI, 2003; PRADO, 2015; ALVARENGA,
A leitura de Um Teto Todo Seu (WOOLF, 2019) 2011; MONTELLANO, 1996; 2006; RUBINI, 2020),
foi uma das recomendações extras que surgiu parece perder força diante da perspectiva ecoica
no grupo de estudos sobre gênero e Psicologia como repetição vazia de significado e da ninfa
Analítica organizado por Gimenez (2018) e Tan- como estritamente focada no outro e não em si.
cetti (2018). Iniciado em 2019, o grupo foi pen- Aqui apresentamos Eco dividida em seis te-
sado a partir do entendimento da necessidade mas: sua identidade, sua relação com Pã, a pu-
de aprofundar e expandir a revisão de temáticas nição sofrida por Hera, o encontro com Narciso,
ligadas a gênero dentro da Psicologia Analítica, sua morte e sua aparição na morte de Narciso.
em especial após o tumultuado período das elei- Foram encontrados dois trabalhos em Estudos

144 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.143-156

Literários que convergem para a questão do si- da ninfa como figura com características impor-
lenciamento e abordam, de formas diferentes, tantes na relação com o outro, mas sempre em
aspectos relacionados à psicologia, o que pare- função deste, de forma a denotar uma tendên-
ce favorecer um diálogo interdisciplinar sobre o cia a percebê-la como figura com pouca identi-
tema. O trabalho de Magnabosco (1999) faz um dade e grande necessidade de reflexo positivo
levantamento sobre pressupostos que susten- (MONTELLANO, 1996; 2006; ALVARENGA, 2011;
tam o silenciamento de discursos de resistência RUBINI, 2020). Mesmo quando apontada em sua
ao falar sobre a inserção da mulher nos campos individuação (CAVALCANTI, 2003), ou quando
da Literatura e da Psicologia, e o de Saçço (2016, usada no entendimento de histórias de sofri-
p. 130) investiga como narrativas testemunhais mento (PRADO, 2015), por exemplo, o foco em
podem resgatar “vozes e histórias silenciadas” Eco ainda está preso a um entendimento que pa-
para reconstruir a verdade durante o período da rece esquecer ou ignorar sua capacidade criati-
ditadura militar no Brasil (1964 a 1985). va, intensificando a separação que Prado (2015,
Entende-se o tema como relevante pelo au- p. 14) faz em seu levantamento bibliográfico,
mento de movimentos sociais que clamam por apontando uma “figura de Eco petrificada”. A
serem ouvidos, como – sem implicar aqui a re- história de Eco também costuma ser relaciona-
dução da pluralidade destes diversos movimen- da a paixões frustradas, masoquismo e restrição
tos – os feminismos, o antirracismo, o combate ao repetir sem possibilidade criativa, apontando
à LGBTfobia1, a questão indígena brasileira e ou- para o que parece se configurar como uma forma
tros. Embora grupos divergentes do hegemônico unilateral de compreendê-la (BERRY, 2014).
sempre tenham existido, parece que nos últimos Ao buscar referências sobre Eco fora da Psi-
anos suas vozes têm sido mais altas (ou passa- cologia, Prado (2015) encontra tanto referências
condizentes com o entendimento hegemônico
ram a ser ouvidas) e, com isso, nossa atenção
de Eco na Psicologia Analítica quanto referências
tem se voltado mais para realidades diferentes
dissonantes, que enfatizam um aspecto mais
daquela dada como “padrão”. Isso parece ainda
complexo da ninfa como representante mítica
mais intenso a partir da eleição presidencial no
da figura de mulher. Destacamos aqui o trabalho
Brasil em 2018, com a ascensão de um governo
de Santos e Zocratto (apud PRADO, 2015, p. 20)
de extrema direita com uma perspectiva conser-
para quem Eco “exemplifica a trajetória feminina
vadora em aspectos morais e bastante ameaça-
que adquire voz e presença ao marcar seu espa-
dora de liberdades que, quando muito, foram
ço e ao construir sua história” e que se expressa
recém- conquistadas – se for possível realmen-
usando recursos linguísticos em sua totalidade.
te falar de “conquista de liberdade” diante da
A perspectiva na área do Direito levantada por
violência sofrida cotidianamente por mulheres,
Prado (2015) também reforça a importância do
negros, pessoas LGBTQIA+, indígenas e outros
diálogo da Psicologia com outras áreas de co-
grupos. Aliado a isso, entende-se que há a pos-
nhecimento na busca por uma perspectiva am-
sibilidade de ampliação de consciência, indivi-
pliada de temas diversos.
dual e coletiva que a escuta de vozes silenciadas
Eco é uma ninfa, filha da terra e do ar, que ser-
pode trazer.
ve em ritos e cerimônias ligadas à conjugalidade
A leitura do material encontrado sobre Eco
e à fertilidade. A etimologia da palavra ninfa, do
na Psicologia Analítica traz um entendimento
grego “nymphe”, que significa “noiva”, parece
sublinhar seu potencial de envolvimento abso-
1
A sigla LGBTQIA+ refere-se ao grupo de lésbicas, gays, bi e
panssexuais, travestis e transgêneros, queer, interessexos, luto com tudo, que, associada à capacidade de
assexuais e outros grupos de sexualidade não normativos. A participação mística que Cavalcanti (2003) lhe
LGBTfobia é o nome dado ao preconceito que indivíduos, par-
tes do grupo ou o grupo todo sofrem. incute por ser uma ninfa, a ligam à criatividade.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 145


Junguiana
v.39-2, p.143-156

Parte do séquito de Hera, Eco era quem distraía a últimas palavras que ouve, o que parece ser a
deusa enquanto Zeus se relacionava sexualmen- característica mais conhecida de Eco: repetir
te com outras ninfas e mortais. Isso traz tanto aquilo que ouve, como uma repetição vazia ou
sua busca pela conjunção criativa, a serviço do a serviço do outro. A punição de Hera parece,
que Eco se coloca, quanto sua relação com ori- portanto, ser o marco identitário de Eco para o
gem e criação, já que fomenta a contribuição de outro. Hera pune Eco ao lhe retirar aquilo que
Zeus em povoar o panteão grego (BERRY, 2014). lhe dá identidade e possibilidade de existên-
Sua ligação com criação também se relaciona cia autônoma e independente (CAVALCANTI,
com seu passado pré-helênico, no qual a ninfa 2003; MONTELLANO, 1996; ALVARENGA, 2011;
teria sido a deusa Acco, conhecida como “voz da PRADO, 2015).
criação” (CAVALCANTI, 2003, p. 139). Contudo, Cavalcanti (2003) afirma que a pu-
Enquanto identidade de Eco, o que Cavalcan- nição de Hera é ambígua: ao mesmo tempo em
ti (2003, p. 145) nos traz é uma figura com neces- que acentua a suposta falta de identidade de
sidade de ser vista e reconhecida, que demanda Eco, aponta para o caminho do desenvolvimen-
espaço para construção de autoestima positiva to, caso a ninfa consiga se desvencilhar do ser-
e que tem, na repetição, o meio de buscar reco- viço indiscriminado ao outro, encontrando outra
nhecimento. Sua carência por reflexo positivo a forma de realizar a própria criatividade. Assim,
deixaria excessivamente disponível para refletir a falta da possibilidade de autoexpressão es-
o outro e não a si mesma, o que também lhe traz pontânea de Eco a levaria à busca por outros
um aspecto de empatia. Desta forma, Eco se ve- caminhos de autoexpressão, sendo a repetição
ria “destituída de valor e de recursos” e daí de- o seu caminho para cura. Aqui, então, repetição
correria uma postura dependente e simbiótica na pode ter uma característica positiva pois permite
busca por senso de valor. Já Berry (2014, p. 140) elaboração, dá senso de continuidade e perti-
nos apresenta Eco não como uma entidade em si nência; permite o desenvolvimento identitário a
mesma ou mesmo como separada do meio que partir da repetição criativa quando Eco dá novos
a circunda, pois ela seria dependente deste para significados àquilo que ecoa, em sua “fertilida-
se comunicar e afirma que, uma vez que Eco se de encoberta”, associada ao acobertamento que
apresenta no vazio inocupado, “aquilo que falta dava a Zeus e possibilita o destaque daquilo
numa manifestação [...] é o que dá forma a Eco”. que é repetido, permitindo elaboração e resolu-
Berry (2014, p. 138) menciona a relação ção da necessidade de repetição (BERRY, 2014,
amorosa de Eco e Pã, figura mitológica também p.141; CAVALCANTI, 2003).
ligada a Tudo, que teria sido rompida por Eco. Segundo Berry (2014, p. 140), Hera é, no
A rejeição de Eco a Pã é entendida pela autora mito, a regente do aspecto da consciência,
como uma recusa ao desejo de Tudo de ter res- sendo uma “literalizadora” que se ocupa do e
sonância, de forma que Eco coloca limite àquilo serve ao estabelecido e ao estabelecer das coi-
que pode ser ecoado: “parte desse envolvimen- sas, especialmente em seu aspecto externo e
to [com tudo, o potencial dado a Eco] é também social. Dessa forma, a relação que Hera e Eco
resistência, escapar de responder a tudo e a to- estabelecem com palavras parece ser oposto:
dos”. Cavalcanti (2003) entende essa rejeição enquanto a primeira relaciona palavras a fatos,
como um indicativo de maior desenvolvimento a segunda as relaciona ao potencial criador. Ela
de escolha objetal de Eco, que recusa um seme- ressalta ainda a importância do não saber de
lhante, embora ainda busque Narciso como figu- Hera como relacionado à tensão com a chegada
ra que lhe complementa. do novo: “Talvez seja importante que o estabe-
Percebendo-se enganada pela tagarelice de lecido não compreenda o informe e o não esta-
Eco, Hera lhe restringe a falar tão somente as belecido. Dessa maneira, a tensão se mantém

146 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.143-156

– a tensão entre [ ...] a tradição de um lado, e por Hera, ligada ao estabelecido, assume como
[...] o novo de outro” (ibid, p. 141, grifo da au- forma, mas sim como algo mais sutil.
tora). A tensão, segundo ela, é importante pois Rejeitada por Narciso, Eco é alimentada pela
dá ao novo um caráter estranho e original, que dor da rejeição; seu corpo seca e sobram apenas
também precisaria negociar seu lugar no que já seus ossos, que viram pedra, e sua voz. Para Ber-
está estabelecido. Assim, o ecoar do vazio, do ry (2014), a beleza de Eco está em seu pathos,
oco, na tagarelice de Eco parece ameaçador a seu sofrimento-paixão, uma vez que parece ad-
Hera por mostrar o seu próprio oco, que acaba quirir corpo por meio da dor, apesar da perda
sendo trapaceado em sua realidade mais esta- de seu corpo concreto; é pela corporificação da
belecida e definida. dor que Cavalcanti (2003) entende que Eco teria
A partir do encontro de Eco e Narciso, Berry passado por seu processo de individuação, de
(2014, p. 145) aponta a capacidade reorgani- forma que teria atingido o reconhecimento de
zadora de sentido e significado que Eco pode si mesma e entendido onde e como pode atuar
dar às palavras, modelando “as palavras no tanto enquanto ninfa (aquela que anima, que dá
seu eco”, de forma que o “significado literal foi alma), quanto enquanto noiva (que busca a cria-
transformado por seu eco”. Ao afirmar, nesse tividade a partir da conjunção) e sendo sempre
sentido, que o eco também é uma forma de res- reconhecida quando estamos em sua presença,
posta que expressa a si mesma, a autora pare- já que o eco é facilmente reconhecido. Eco teria
ce compreender que Eco se expressa a partir da adquirido tal apropriação de si que estaria livre
fala do outro, reorganizando o sentido das pa- para escolher comportamentos intencionais, de-
lavras ouvidas para que lhe sirvam como forma senvolvendo o que Tannen (2007, p. 6, tradução
de expressão. Isso já estava presente em Ovídio nossa) chama de “autonomia corporal”.
(1983, p. 90, grifo nosso), quando nos conta o Narciso, diante de sua própria imagem, per-
seguinte sobre Eco, diante do desejo de se de- cebe que esta lhe responde sem som: “e, tanto
clarar a Narciso: “Sua natureza a impede de fa- quanto posso adivinhar pelos movimentos de
lar em primeiro lugar. Permite-lhe, porém, e ela tua linda boca, dizes-me palavras que não che-
se dispõe a isso, esperar os sons e devolver-lhe gam aos meus ouvidos” (OVÍDIO, 1983, p. 60),
as próprias palavras”. Ao ecoar as falas de Nar- parecendo ele mesmo ecoar o silêncio de Eco
ciso, Eco também parece criar a possibilidade em suas palavras ao se declarar para si mes-
de autoescuta em si e no outro. Ela ecoa o con- mo. Segundo Ovídio (1983, p. 61), Eco ecoava
vite que Narciso lhe faz, tornando-o a sua forma lamentos de dor. Narciso lamenta, pouco antes
de se expressar. Por esta perspectiva, a punição de morrer: “Ah, querido em vão”, e tem suas
de Hera parece cumprir a função de cura citada palavras ecoadas. Ao falar “Adeus!”, Eco lhe
por Cavalcanti (2003), pois ela parece encontrar responde “Adeus!”.
formas de se expressar de forma não espontâ- Chama atenção que nenhum material encon-
nea, mas criativa, usando o eco das palavras trado sobre Eco na Psicologia Analítica traga luz
que escuta para falar de si. Isso parece possibi- a esta cena final, exceto Prado (2015) que asso-
litar a identidade de Eco, uma que é “realmente cia o eco de Eco à sua empatia frente à dor de
mais específica e articulada como os cantos e Narciso. De certo, Ovídio (1983, p. 61) afirma es-
fendas de uma caverna, as ondulações de um tar ela presente e “ainda ressentida com o agra-
vale, os recortes precisos onde a pedra emerge vo, apiedou-se”. Embora na versão aqui utiliza-
e retrocede. Esses detalhes, essas precisões, da seja pontuada a piedade de Eco por Narciso,
referem-se a Eco” (BERRY, 2014, p.146), de for- na versão usada por Prado (2015, p. 93), ela es-
ma que sua identidade está estabelecida, mas taria “ainda irada e pouco disposta a perdoá-lo”,
não a partir do que a consciência representada uma diferença bastante grande no entendimento

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 147


Junguiana
v.39-2, p.143-156

quanto à postura de Eco e que pode interferir na A partir desse entendimento de supremacia
forma como a entendemos. do homem sobre a mulher com base na diferença
No levantamento bibliográfico sobre estudos corporal como identidade, Magnabosco (1999,
literários, psicologia e silenciamento, encontra- p. 53) afirma que cabe à mulher ser “eco das
mos dois trabalhos relevantes. O de Magnabos- vozes que diziam-lhe o que era o mundo, quais
co (1999, p. 51) questiona os pressupostos que seus permitidos e proibidos, quais suas obriga-
sustentam o desapreço pelo discurso de mulhe- ções e deveres, enfim, com que corpo literário
res nos âmbitos literário e psicológico. A autora e psicológico ela podia se identificar”. A autora
questiona o que torna a mulher uma figura sem insiste que “Identificada, nomeada e inscrita
discurso, identificando que a mulher teria seu através do discurso masculino e da mentalida-
discurso representado por uma figura masculina de masculina, a mulher emudeceu sua palavra,
que fala por ela. Magnabosco (1999) questiona no sentido de só saber dizer-se como um reflexo
ainda se a mulher não teria palavras ou se seria a do masculino”. Ela pontua como exemplo dessa
desautorização do discurso masculino que a te- dinâmica na Psicologia a busca por palavras e
ria feito desenvolver outra forma de se expressar. estruturas que não as ditadas pelo homem em
Por fim, a autora questiona: “Teriam (e têm) as termos como histeria e inveja do homem ou do
teorias canônicas literárias e psicológicas supor- pênis. Na Literatura, a autora afirma que toda
tes estruturais, linguísticos, lexicais, que cono- forma de expressão escrita da mulher era consi-
tassem (e conotam) outros sentidos ao discurso derada literatura marginal, pois versa sobre “to-
desenvolvido pela mulher?”. Saçço (2016, p.10), lices, desejos impuros, insatisfações incompre-
por sua vez, tem como foco de trabalho “escu- endidas, sobre ideias transgressoras da ordem
tar as histórias silenciadas” e investigar as con- imposta ao mundo feminino” (ibid, p.53).
sequências da violência sofrida por militantes A partir deste contexto, a autora denomina o
opositores à ditadura militar no Brasil. Segundo
testemunho narrativo da mulher como discurso
a autora, “Ficção e narrativas orais complemen-
de resistência, pois representa uma “ denúncia
tam-se na busca pela verdade, no resgate de
política de opressões, marginalizações e discrimi-
vozes e histórias silenciadas”, sendo a literatura
nações praticadas em relação aos subalternos da
uma representação possível de catástrofes “uma
linguagem, isto é, aqueles que não enunciam-se
vez que ela age no imaginário social”, já que seu
sob a possibilidade da língua oficial de uma cul-
papel é “exprimir o inexprimível, sem perda da
tura” (ibid, p. 54, grifos da autora).
função testemunhal dos textos” (ibid, p. 11).
Saçço (2016, p. 38) incute às forças armadas
Magnabosco (1999, p. 52) compreende a di-
brasileiras, além dos crimes de tortura e perse-
ferença na tratativa da figura de mulher a partir
guição, o crime de silenciamento dos sobrevi-
da definição de gênero pelo viés de diferenças
ventes, impedindo que fizessem parte da escrita
fisiológicas e biológicas, de forma que identi-
da história do Brasil no que se refere aos 21 anos
dade é atrelada à individualidade em oposição
violentos da ditadura militar: “As marcas da re-
às noções de diferenças e convivência com as
pressão ainda estão coladas nos seus corpos
mesmas; esta definição de indivíduo “afirma a
e mentes porque sofreram, logo após a anistia,
impossibilidade de ser-se Outro, de identificar-
o momento do silêncio imposto”. Dessa forma,
-se com outros papéis sociais, de transformar es-
a narrativa testemunhal2, ficcional ou real, é
paços, tempos e memórias e partir de diferentes
modos de organizar e conceber o mundo”. Seria 2
A autora compreende “testemunho” como ouvir a narração
esta, então, uma das razões para o desapreço da da vítima até o fim, em especial no que se refere ao relato de
participação e reconhecimento da mulher na Li- sobreviventes e familiares de pessoas mortas e “desapareci-
das” durante esse período, e não apenas como o presencia-
teratura e na Psicologia. mento de uma experiência.

148 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.143-156

apontada pela autora como uma forma de elabo- de sentido, ou seja, a resistência a novos sen-
rar o trauma vivido, individual e coletivamente, tidos da palavra”, fazendo com que os discur-
apoiando-se em Kehl (apud SAÇÇO, 2016), que sos de resistência sejam compreendidos como
afirma que a não nomeação da violência trau- “afronta e desvalorização da obra e linguagem
mática pode ser uma dor maior do que sofrê-la. culta ocidental”. Assim, explica a autora, have-
O testemunho como “narrativa [que] dá voz a ria na literalização de palavras uma expressão
essas histórias silenciadas” (ibid, p. 36) seria máxima de valor literário. Essa necessidade
fundamental para elaborar este período históri- de literalizar e de dar valor ao literalizado se
co, especialmente dado o valor que Seligmann aproxima do que Berry (2014) apresenta sobre
(apud SAÇÇO, 2016, p.15) dá ao testemunho, Hera enquanto representante da consciência
que pode “servir como caminho para a constru- do estabelecido.
ção de uma nova identidade pós-catástrofe”. A crítica aos discursos de resistência, como
Kehl (apud SAÇÇO, 2016) aproxima a tenta- forma de oposição ao novo, é outro apontamen-
tiva de silenciar o sofrimento decorrente da di- to feito por Magnabosco (1999, p.54), que en-
tadura ao silenciamento imposto aos crimes do tende que “Opor significa não submeter-se, não
regime escravocrata, e Saçço (2016) o aproxima aceitar passivamente uma definição única [...]
também do silenciamento diante da violência como ‘a’ verdade”. Para ela, opor-se traz pos-
sofrida nas diversas periferias brasileiras. O sibilidade de outros sentidos e significados e
silenciamento, aliado à falta de acolhimento dá abertura para conhecer e apreender formas
social para o testemunho, contribui para a in- diferentes de organização de pensamentos e
tensa dor sofrida. O testemunho, enquanto linguagens. A autora explica também o meca-
potencial de trabalhar com e no imaginário so- nismo de expropriação de significados no dis-
cial, quando ausente, corrobora para repetição curso de resistência para tentar adequá-lo ao
do trauma. discurso hegemônico; caso não se enquadre,
O testemunho, segundo Saçço (2016), é uma torna-se marginalizado, termo de denominação
tentativa de reunir fragmentos do passado. A au- discriminatória, como “um dos movimentos es-
tora aponta duas vertentes de teoria crítica do tes- perados por aqueles que sentem-se ameaçados
temunho: o prisma europeu e norte-americano, e desacomodados de seus hábitos mentais,
cujos exemplos são a Segunda Guerra Mundial psicológicos e literários” (ibid, p. 55). A autora
e o Holocausto causado pelo regime nazista, e o faz ainda alusão ao termo marginalizado, aque-
prisma Latino-Americano, representado por dita- le da margem, como “representação do Outro a
duras e opressões a minorias. No caso do Holo- partir de uma visão de mundo e de linguagem
causto causado pelo regime nazista, entende-se que não lhe corresponde” (ibid, p. 55), indican-
o testemunho como busca por justiça, documen- do um subjugamento da alteridade.
tação histórica e, assim, tem relevância. Porém, o Ao falar sobre o processo de redemocratiza-
testemunho na América Latina vem como denún- ção no Brasil, Saçço (2016, p. 50) aponta para
cia em que a testemunha deve provar ser vítima. a marginalização do testemunho da militância
Magnabosco (1999, p. 54, grifo da autora) contrária à ditadura, sendo substituído por um
destaca, entre os recortes críticos à Literatura, discurso hegemônico, ficando o testemunho
o que critica a hegemonia do cânone literário entregue à “política do esquecimento”. A justi-
ocidental, marcado pela noção de que lingua- ficativa para esse silenciamento, segundo a au-
gem e identidade são criadas em seus con- tora, seria reduzir a possibilidade de desejo de
textos sociopolíticos . Este modelo se opõe à vingança por sobreviventes e familiares daque-
crítica canônica baseada na objetividade e na les que não sobreviveram, como se a busca pela
universalidade, que se pauta na “literalização justiça fosse revanchismo.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 149


Junguiana
v.39-2, p.143-156

Magnabosco (1999, p. 55, grifo da autora) re- qualquer identidade que não a hegemônica3)
laciona a crítica ao discurso de resistência a um como o Outro e Saçço (2016) traz ao longo de
desequilíbrio na “economia narcísica, ou seja, o sua dissertação falas que marginalizam oposi-
investimento afetivo sobre o sujeito-objeto es- tores, costumeiramente apontados como “terro-
colhido e valorizado”; desequilíbrio esse que ristas”. Nos três casos, essa negação do outro
causa incômodo por mostrar a “fragilidade das se assemelha ao que Cavalcanti (2003, p. 208)
regras e significados da linguagem e da identida- define como “negação defensiva da autonomia
de (por não serem ontológicos, mas produções do objeto” do indivíduo narcisista. Segundo a
humanas e socioculturais )”, o que coloca em xe- autora, há percepção da independência do ou-
que seus modelos identificatórios, isto é, ques- tro, mas o narcisista nega esta percepção devido
tiona a unicidade hegemônica de identidade. a sentimentos de insegurança, que aparecem
“Em outras palavras, pela palavra denunciadora como dificuldade de lidar com percepções mais
dos testemunhos, o leitor depara-se com vivên- complexas do outro e com o medo de ser aban-
cias e percepções de intenso sofrimento e mise- donado e/ou rejeitado e de seus sentimentos
rabilidade humana, as quais é preferível negar de fragilidade, inferioridade e vulnerabilidade.
ou reprimir” (ibid, p. 56). Esta reação pode ser Desta forma, a “relação com o outro fica dificul-
justificada pela dificuldade de identificação a tada pelos sentimentos persecutórios em rela-
partir das vivências narradas como um problema ção à invalidação e à autonomia do eu” (Ibid, p.
humano e político, e não como questão identitá- 209), algo que também aparece em Magnabosco
ria. Desta forma, diminuir o valor do discurso di- (1999 ), ao falar da impossibilidade de existên-
ferente do hegemônico é isentar-se de olhar para cia do Outro frente ao que é hegemonicamente
os problemas expostos pelas vozes silenciadas dado como identidade e discurso, ponto tam-
e de “responder-lhes através da colocação de bém reforçado por Rubini (2020). Saçço (2016),
novas consciências da ressignificação do valor por sua vez, aponta o silenciamento como nega-
democrático da palavra” (ibid, p. 56). ção da perseguição e da tortura como forma de
Assim, explica a autora, pela redução da opressão e repressão daqueles que se opunham
relevância e consequente exclusão a partir do à ditadura militar no Brasil. A recusa narcísica
olhar hegemônico, impossibilita-se o novo, de do Outro não parece encontrar espaço para que
forma que “repassa e reafirma apenas aquelas exista a recusa de Eco frente a Pã, como se não
estruturas e significados da linguagem e do pudesse haver resistência.
comportamento que são consentidos e reafir- Eco usa a palavra ouvida para se expressar
mados por um discurso dominante, em face a (BERRY, 2014; OVÍDIO, 1983). Ao ignorarmos a
determinados interesses políticos e sociais” transformação de Eco pela sua dor, ainda a ve-
(MAGNABOSCO, 1999, p. 56), o que acaba por mos como mantenedora da grandiosidade e da
impossibilitar a ideia e a convivência com di- onipotência narcísica (CAVALCANTI, 2003). O
ferença e alteridade. Cabe questionar se este eco vazio de significado parece ser eco do vazio
apontamento serviria também à pouca atenção
do discurso hegemônico, literalizador, opressor,
dada a Eco, que Berry (2014), Cavalcanti (2003)
que silencia vozes que lhe são opositoras, que
e Prado (2015) apontam.
não se submetem passivamente.
Parece possível estabelecer uma relação
entre os silenciamentos de Eco, enquanto re- 3
Tiburi (2018, p. 37) traz como representação de identidade
presentante do Outro (CAVALCANTI, 2003), de hegemônica a de “homem branco”, foco de favorecimento
social, como representante do poder. Para ela, o “homem
mulheres na literatura e de vítimas e opositores branco” é “uma metáfora do poder, do sujeito do privilégio,
à ditadura militar brasileira, uma vez que Mag- da figura autoritária alicerçada no acobertamento de relações
que envolvem os aspectos de gênero e raça, sexo e classe,
nabosco (1999) aponta a figura da mulher (e de idade e corporiedade”.

150 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.143-156

Eco, a partir da relação que estabelece com aquele que é diferente. Uma aproximação dessa
Narciso, é entendida como a possibilidade de mesma dinâmica com o funcionamento da dita-
vínculo e de relação consigo e com outro; ela dura militar requer um estudo mais aprofunda-
representa o Outro no processo de desenvolvi- do, embora num primeiro olhar também pareça
mento de relações, na formação da identidade possível identificar aspectos da dinâmica narcí-
e na construção do senso de eu (CAVALCANTI, sica no discurso de seus apoiadores.
2003). Mas Narciso a recusa. Esta recusa de Nar- Eco enquanto Outro, como figura que tem
ciso está associada à recusa do narcisista em identidade, independência e autonomia corpo-
perceber a autonomia e independência do outro ral, parece impossível para o olhar narcísico, pois
(KOHUT apud CAVALCANTI, 2003), o que também então ela sairia do lugar de servidão e submis-
é coerente com o apontado por Magnabosco são no qual foi posta pela dinâmica narcísica. A
(1999) quando discorre sobre a dificuldade de identidade e o discurso de Eco, expressos a par-
representação do Outro, enquanto identidade tir da reorganização de significado em seu eco,
e discurso, que é, então, marginalizado. “Para são recusados pelo olhar narcísico pois ela pre-
a personalidade narcísica, a existência de sua cisa ser mantida submissa e passiva em função
individualidade é possível pela negação da indi- da necessidade narcísica e do desejo narcísico
vidualidade do outro. Sua força e valor só podem de eco e espelhamento positivos; porém, Caval-
se afirmar pela invalidação da força e valor do canti (2003) afirma que Eco deve ser mantida a
outro” (CAVALCANTI, 2003, p. 210). Há desvalo- certa distância pois, caso contrário, atua como
rização do objeto para afirmar sua própria supe- lembrança da vulnerabilidade e identidade frágil
rioridade, pois a existência do outro é sentida de Narciso, que demonstra a impossibilidade da
como ameaça à própria existência, conforme independência dele em relação a Eco, uma vez
explica Cavalcanti (2003, p. 210): “A desvalori- que ele mesmo precisa se sentir amado para se
zação do outro é também usada como um meio sentir valorizado, o que culmina numa postura
para ter o objeto sob o seu controle e posse e, de intolerância à crítica; algo também apontado
assim, garantir a satisfação exclusiva de suas por Rubini (2020). Uma relação real entre Narci-
necessidades”. Nesse sentido, é possível apro- so e Eco só pode existir quando “esta adquirir
ximar a postura daqueles que silenciam, seja o para ele a função de um objeto independente e
discurso hegemônico apontado por Magnabos- autônomo. O desenvolvimento da autonomia do
co (1999), seja a perseguição, e em especial a ego está vinculado ao desenvolvimento da per-
tortura, da ditadura militar apontados por Saçço cepção da autonomia do outro” (CAVALCANTI,
(2016), à postura narcísica. 2003, p. 214).
Cavalcanti (2003, p. 211) explica a posição A mesma dificuldade em lidar com a exis-
dada a Eco de servir a Narciso como forma de tência do Outro é apontada por Magnabosco
buscar autoestima por ser desvalorizada em prol (1999) ao falar sobre o discurso de resistência
da autoestima de Narciso: “Eco só é importante e parece também estabelecer correlação com o
para Narciso na medida em que funciona den- que Saçço (2016) aponta sobre a intensidade
tro de suas expectativas. Para Narciso, Eco não da violência sofrida por militantes opositores
pode ter identidade porque ameaça destruir a à ditadura militar brasileira: a força feita para
estrutura que ele construiu para manutenção da manter o silêncio imposto a vozes não ecoan-
sua autonomia”, de forma que “Narciso percebe tes com o discurso hegemônico, seja ele o dis-
em Eco a sua própria falta, que é negada”. A ex- curso patriarcal/androcêntrico (MAGNABOSCO,
plicação dada pela autora se relaciona de forma 1999), o discurso da ditadura militar (SAÇÇO)
bastante direta com as afirmações de Magna- ou o discurso narcisista (CAVALCANTI, 2003) é
bosco (1999) sobre a necessidade de silenciar medida pela necessidade de sobrepujar, opri-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 151


Junguiana
v.39-2, p.143-156

mir e marginalizar o diferente, a alteridade, reforçou, durante a ditadura militar brasileira,


o Outro. e parece buscar reforçar, atualmente, o silen-
Narciso foi condenado a se ver (CAVALCANTI, ciamento de militantes opositores. Por outro
2003), mas não parece poder ouvir, a si mesmo lado, a afetação pelo medo e pela raiva do atual
ou ao Outro. Ele percebe que sua imagem lhe governo brasileiro, muitas vezes compartilhada
fala, mas não ouve sua voz pois Eco não a ecoa. no grupo de estudos organizado por Gimenez
É interessante notar o apontamento de Ovídio (2018) e Tancetti (2018), tem possibilitado a
(1983) sobre a afetação de Eco quando volta a criação de vínculos criativos, de amizades e de
encontrar Narciso em seu fim: ela está brava, construção conjunta de revisão de mundo, bus-
ressentida. Cavalcanti (2003, p. 146) aponta que cando ampliação e expansão de perspectivas
Eco teria medo de sua raiva e que, por isso, ten- aprendidas e reforçadas socialmente. Exemplo
deria a colocá-la como impulso reparador. Eco disso é o trabalho de Tancetti e Esteves (2020)
nega a raiva que sente e “mobiliza Eros contra a sobre a importância do feminismo negro deco-
dor da frustração e da depressão”. Nesse senti- lonialista para a perspectiva da Psicologia Ana-
do, a impossibilidade de contato com a raiva pa- lítica. O artigo, escrito por duas integrantes do
rece próximo do que aponta Saçço (2016) sobre grupo, busca criar espaço para que as vozes do
a resistência em falarmos aberta e socialmente pensamento decolonial e do pensamento femi-
sobre os danos que a violência da ditadura mi- nista negro sejam ouvidas e incorporadas ao
litar nos relegou, sob justificativa de busca por pensamento junguiano tradicional.
vingança. A raiva daqueles que são silenciados O que Eco ecoa nos lamentos finais de Nar-
deve permanecer silenciada. ciso pode tanto ser a dor dele como sua própria
Porém, ao estar com raiva, parece ser possí- dor, que vê nele um ser “querido em vão”, do
vel que Eco saia da posição de submissão à voz qual também se despede, despedindo-se ain-
de Narciso, de forma que cabe questionar se da da servidão que lhe prestou e da identidade
Eros não a mobilizaria a partir de sua frustração que lhe foi incutida, cumprindo a possibilida-
e raiva, uma leitura mais próxima da de Berry de transformadora da punição que recebeu de
(2014) sobre a vivência e importância do sofri- Hera, ao desenvolver uma identidade própria
mento de Eco. que incorpora a identidade anterior, a da deusa
Aqui, parece importante fazer uma ressalva Acco, a voz da criação, e a ninfa Eco, a voz da
sobre a raiva. Rubini (2020) aponta Eros como repetição, que se torna expressiva de si mes-
o potencial de vínculo, de ligação, para que ma. Essa noção parece bastante relevante ao
uma consumação seja possível. Num primei- se considerar a importância da criação da Co-
ro olhar, parece possível aproximar a afetação missão Nacional da Verdade e da oitiva de víti-
pelo medo e pela raiva de uma “ameaça co- mas sobreviventes da ditadura. Dentre os diver-
munista” na década de 1960 – reavivada nas sos trechos que Saçço (2016) traz, destacamos
eleições presidenciais de 2018 no Brasil – ao o seguinte:
silenciamento daqueles associados a esta
ameaça, promovendo o vínculo de uma grande Me dispus a estar falando? [ ...] Eu dei
parcela da sociedade brasileira à ditadura mi- aula durante anos, eu falava sobre esse
litar e ao governo brasileiro atual, em especial período. Eu sempre fui extremamente crí-
no momento de sua eleição, para evitar que tal tica, conscientemente crítica, formei alu-
ameaça fosse consumada. Isso também parece nos críticos, eu fiz todas as críticas, ainda
ter sido – e ainda ser – a justificativa de muitos faço, mas eu era um sujeito que pairava
apoiadores, tanto da ditadura militar entre 1964 no ar, né?! Então eu acho que isso tem
e 1985 quanto do atual governo brasileiro, que que ser dito (p. 120 ).

152 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.143-156

O que se pode notar pelo levantamento bi- experiências como diferentes da forma do
bliográfico feito neste artigo é que há pouco re- que nos cerca (p.148).
flexo positivo de Eco enquanto si mesma, por si
mesma e para si mesma, como apontado por So- Para Berry (2014, p. 150), a paixão de Eco é
ares (apud PRADO, 2015, p. 25), que afirma que complexa por não ser realizável, sendo seu sofri-
“jamais haverá uma representação de Eco por mento algo a ser preservado: “Esse cultivo sen-
ela mesma”, o que parece reforçar o aprisiona- sível do sofrimento é uma arte que tem mais a
mento ao silenciamento e a repetição vazia do ver com os tons e humores que ecoam dentro da
olhar narcísico que a vê. O esvaziamento carac- psique do que com regras grandiosas ou prescri-
terístico de Eco (CAVALCANTI, 2003) parece se ções analíticas”.
dar tanto pela relação que Narciso estabelece Neste trabalho pudemos perceber que a figu-
com Eco como pela falta de reflexo positivo que ra de Eco pode ajudar a ouvir vozes silenciadas
lhe damos, parecendo que uma alimenta a ou- com uma conotação de valor diferente daquela
tra, mantendo um moto-contínuo de submissão dada pela cultura hegemônica, supostamente
e passividade no entendimento de identidade e universal e objetiva, que estabelece o que tem
escuta narrativa do Outro. Essa noção se apro- ou não tem valor. Com o auxílio de outras áre-
xima do entendimento de Magnabosco (1999) as de conhecimento parece possível irmos mais
sobre a marginalização dos discursos de resis- além do que apenas com a lente da psicologia,
tência, que não ficam restritos à mulher, mas que tem suas próprias amarras, limites e feridas
a qualquer grupo que seja identificado como narcísicas. Eco, com um valor redescoberto em si
Outro pela cultura hegemônica, de forma que mesma, mesmo sem o reconhecimento do outro,
também parece abarcar o silenciamento vivido encontra sua forma de autoexpressão e parece
desde o período da ditadura militar no Brasil e o estabelecer uma relação importante com outras
silêncio imposto pela lei de anistia, como aponta tantas vozes silenciadas. Conforme indica Oví-
Saçço (2016). dio (1983), Eco usa a palavra do outro e as faz
O que é dado a Eco como identidade limítro- suas, ela está a serviço da conjunção criativa
fe, sem autonomia, dependente da renúncia de (CAVALCANTI, 2003), mas é colocada a serviço
si em busca de si parece ter sido superada por do olhar narcísico para sustentar o narcisismo
ela, mas não ainda por nós que, em nosso pró- dos chamados “dominantes”. Porém, Eco parece
prio posicionamento narcisista, não lhe damos a se relacionar mais à reinauguração do “valor da
possibilidade de autonomia pois isso nos fere, palavra pela audição de outros discursos” (MAG-
ao mesmo tempo em que a mantemos aprisio- NABOSCO, 1999, p. 56), de forma a transformar
nada numa posição de eco sem valor para que “vozes silenciadas por um discurso hegemônico
não sejamos tocados em nossas próprias feridas em outros discursos” (ibid, p. 57).
narcísicas. Isso parece ser reforçado por Berry Berry (2014) afirma que a beleza de Eco está
(2014 ), que afirma que focar em Narciso parece em seu pathos inflamado e também em sua
mais fácil, pois a paixão de Eco é mais complexa, frustração, em seu sofrimento e tristeza, que
tal qual sua precisão é como a forma de cavernas talvez ecoe nossos próprios sentimentos afins.
e vales: Talvez também por isso tenha parecido neces-
sário silenciar Eco. Talvez por isso ainda pareça
Como todos nós, Narciso gostaria de necessário silenciar vozes que ecoam tristeza e
manter as coisas simples. E é muito mais sofrimento em suas experiências de opressão e
simples pensar em si mesmo, identidade marginalização.
e subjetividade como separados de um O fim de Judith, a irmã de Shakespeare criada
mundo de ecos - nossa forma e nossas por Woolf (2019), não é feliz, assim como tantos

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 153


Junguiana
v.39-2, p.143-156

outros fins que sua história pode representar; rências daqueles que foram silenciados, cujos
assim como o fim de Eco não é visto como fe- ecos ainda não são ouvidos (BREWSTER, 2020).
liz. Por nossa necessidade de evitar o sofrimento Na história de Eco, muitas são as lacunas não
identificado em Eco nos furtamos a ver e ecoar preenchidas de sua história, em especial seu
sua alteridade, criatividade e expressão. A ne- passado pré-helênico. O apagamento dessa re-
cessidade da concretização e da fisicalidade de ferência parece também se relacionar com o si-
nossos desejos parece se relacionar mais à for- lenciamento de pessoas, de culturas, de povos,
malidade de Hera do que à sutileza de Eco, que de diferenças.
mesmo sem seu corpo físico consegue existir, A identidade dada a Eco não lhe pertence;
ocupar espaços e criar. Berry (2014) nos lembra isso é algo que ela parece ainda guardar para si
que no mito não há qualquer tipo de consuma- enquanto brinca conosco quando a chamamos
ção que não a autoconsumação , a transforma- num espaço vazio e ela nos responde ecoan-
ção da vida em morte; mas por se tratar de mor- do nossa própria voz. Esconder-se talvez tenha
tes simbólicas, fala-se de transformação. Eco sido a sua forma de resistência e enfrentamen-
se transforma pela rejeição e pela sua afetação to, mas talvez seja um momento importante no
diante da rejeição; enquanto a rejeitarmos em nosso país para que as vozes silenciadas não
seu potencial criativo é isso que ela nos ecoa- mais se escondam, mas se apresentem para que
rá: o vazio do nosso entendimento. Ao ter espa- possamos conhecer o Outro e entrar num fun-
ço para ser ouvida, ela pode ecoar criatividade, cionamento de alteridade onde a diferença tem
transformação e alteridade. E por isso parece ser espaço e não precisa ser combatida como uma
tão necessário ouvirmos vozes silenciadas. ameaça a um senso de integridade frágil e nar-
Contudo, é de extrema importância salientar císico. Resgatar e ouvir a história, o discurso e
que Eco sozinha não parece dar conta do sofri- a identidade daqueles que foram e são silencia-
mento que a leitura de depoimentos à Comissão dos parece primordial se pretendemos ter alteri-
Nacional da Verdade (apud SAÇÇO, 2016) susci- dade e autonomia real. ■
ta. Precisamos ir muito mais além dos referen-
ciais culturais hegemônicos para compreender Recebido em: 21/8/2021 Revisão em: 02/11/2021
vozes silenciadas; é necessário ouvir as refe-

154 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.143-156

Abstract
Echo’s Calling: listening to silenced voices
The present study aims to pay attention to si- stand that looking at Echo e the Other through he-
lenced voices. By surveying studies in Analytical gemonic lenses places them in a position of little
Psychology about the mythological figure of Echo worth and value, something that also appeared in
and Literary Studies that correlate silencing and resistance speech and testimonial narratives in
psychology, we sought to understand what leads the field of Literature, especially when the encoun-
to imposed silencing.It was possible to under- ter with the Other seems to be threatening. ■

Keywords: Echo, silenced voices, psychology, literature.

Resumen
Llamada del Eco: la escuta de voces silenciadas
Este artículo tiene com objetivo prestar atención tender que la mirada hegemónica a Eco y al Otro
a las voces silenciadas. Al relevar estudios en Psi- los coloca en una posición de poco valor, algo que
cología Analítica sobre la figura mitológica de Eco también se encuentra en los discursos de resis-
y Estudios Literarios que correlacionan el silenci- tencia y las narrativas testimoniales en el campo
amiento y la psicología, buscamos comprender de la literatura, especialmente cuando el encuen-
qué lleva al silenciamiento impuesto. Se pudo en- tro con el Otro parece amenazador. ■

Palabras clave: Eco, voces silenciadas, psicología, literatura.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 155


Referências
ALVARENGA, M. Z. A vida na coniunctio Zeus-Hera: a morte OVÍDIO. As metamorfoses. Rio de Janeiro, RJ: Ediouro, 1983.
na separatio eco-narciso. Junguiana, São Paulo, v. 29, n. 2,
p. 33-8, nov. 2011. PRADO, M. S. M. Mito de eco: dança das polaridades:
uma visão junguiana. 2016. 104 f. Dissertação (Mestrado
BERRY, P. O corpo sutil de Eco: contribuições para uma em Psicologia Clínica) – Faculdade de Ciências Humanas e
psicologia arquetípica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. Saúde, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, SP, 2016.
BREWSTER, F. O complexo racial: raça, racismo e complexos
culturais. In: CONGRESSO INTERNACIONAL ONLINE DE RUBINI, R. Feridas psíquicas, Jung e o narcisismo. Junguia-
PSICOLOGIA ANALÍTICA, 1., 2020, São Paulo. Anais... na, São Paulo, v. 38, n. 1, p. 41-56, jan./jun. 2020.
São Paulo, SP: Instituto Freedom, 2020.
SAÇÇO, R. C. O. Narrativas da dor: entre o silêncio e a
CAVALCANTI, R. O mito de Narciso: o herói da consciência. representação. 2016. 140 f. Dissertação (Mestrado em em
São Paulo, SP: Rosari, 2003. Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, 2016.
GIMENEZ, L. P. A mulher contemporânea e o feminino:
um estudo com mulheres inseridas no mercado de trabalho. TANCETTI, B. Uma câmera toda delas: a mulher nos
2018. 122 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – filmes de Petra Costa: um estudo junguiano. 2018. 151 f.
Faculdade de Ciências Humanas e Saúde, Pontifícia Univer- Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Faculdade de
sidade Católica de São Paulo, São, Paulo, SP, 2018. Ciências Humanas e Saúde, Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, São Paulo, SP, 2018.
MAGNABOSCO, M. M. Testemunhos narrativos femi-
ninos na América Latina: uma articulação interdiscipli- TANCETTI, B.; ESTEVES, J. H. O racismo como complexo cul-
nar. Em Tese, Belo Horizonte, v. 3, p. 51-8, dez. 1999. tural brasileiro: uma revisão a partir do feminismo decolonial.
https://doi.org/10.17851/1982-0739.3.0.51-58 Junguiana, São Paulo, v. 38. n. 2, p. 49-62, jul./dez. 2020.

MONTELLANO, R. M. P. Narcisismo: considerações atuais. TANNEN, R. S. The female trickster: the mask that reveals.
Junguiana, São Paulo, n. 14, p. 86-91, 1996. London: Routledge, 2007.

________. Transtornos de la personalidad narcisista. TIBURI, M. Feminismo em comum para todas, todes e
In: LOUREIRO, M. E. S. (Coord.). Psicopatologia psicodamica todos. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos, 2018.
simbólico-arquetípica. Montevideo: Medica Latino America-
na, 2006. p. 187-99. WOOLF, V. Um teto todo seu. Rio de Janeiro, RJ: Nova
Fronteira, 2019.

156 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.157-170

Echo’s c alling: listening to silenced voices

Cássia Frankenthal Quinlan*

Abstract Keywords
The present study aims to pay attention to si- Echo,
lenced voices. By surveying studies in Analytical silenced
Psychology about the mythological figure of Echo voices,
psychology,
and in Literary Studies that correlate silencing
literature.
and psychology, we sought to understand what
leads to imposed silencing. It was possible to
understand that looking at Echo and the Other
through hegemonic lenses places them in a posi-
tion of little worth and value, something that also
appeared in discourse of resistance and in testi-
monial narratives in the field of Literature, espe-
cially when the encounter with the Other seems
to be threatening. ■

* Psychologist graduated from Pontifícia Universidade Católica


de São Paulo (PUC-SP), former in Somatic Experiencing from
Associação Brasileira de Trauma (ABT).
E-mail: cassiafq@gmail.com

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 157


Junguiana
v.39-2, p.157-170

Echo’s c alling: listening to silenced voices

Echo’s c alling: listening to silenced and fascist speeches from the elected candida-
voices te. In discussion of the selected articles, chap-
ters and books, many common discomforts were
The myth of Echo reveals that the worst mobilized in the group, guided by the prism of
prison existed is the one in which human gender and personal experiences.
beings cannot express what they think or Reading about Judith raised the question of
what they feel; it is the torture of living how enforced silencing permeates human de-
with their thoughts and feelings impris velopment. By asking this question, we looked
oned by fear or by threatening conven- for mythological references about silencing and,
tions (unidentified author, apud PRADO, since the origin of the question was a literary
2015, p. 19). one, we also looked for references about Literary
Studies that would establish relations with Psy-
Virginia Woolf (2019) created Judith, a fictio- chology and silencing. Hence, this present arti-
nal character, sister of the British author William cle aims, through the mythological figure of Echo
Shakespeare, as a representative of what would and Literary Studies of Magnabosco (1999) and
happen if a woman had the same brilliance as Saçço (2016), to better understand the context
him. Prevented from going to school and em- of silenced voices, some consequences of such
bargoed by domestic care demands, she would silencing, possible means to break imposed si-
be constantly distanced from the possibility of lencing and the transformations that can derive
learning how to read and write. Before turning from this breaking.
17 years old, she would be engaged and once Echo is a mythological reference about enfor-
opposing the marriage, her father would beat ced silence, since her ability to speak was redu-
her or beg her not to sully the family name. Deci- ced to repeating the last words she hears after
ding to pursue her dream of working in Theater, angering Hera. Berry (2014) seems to be the first
she would run away from home and try to enter specific reference to Echo that was not secon-
a theater, only to be repelled by a man. With no dary to Narcissus, with the whole focus on Echo.
possibilities in the city, she would become invol- The author emphasizes a creative aspect of the
ved with a manager who would get her pregnant. nymph that, although mentioned in several other
Then, hopelessly, she takes her own life, being studies (CAVALCANTI, 2003; PRADO, 2015; AL-
buried in a crossroads that would eventually be- VARENGA, 2011; MONTELLANO, 1996; 2006; RU-
come a bus stop in the city. BINI, 2020) seems to weaken before the echoic
A Room of One’s Own (WOOLF, 2019) was one perspective of repetition as empty of meaning
of the extra readings recommended in the study and the nymph as strictly other-centered rather
group about gender and Analytical Psychology, than herself.
created by Gimenez (2018) and Tancetti (2018). We present Echo divided in six themes: her
The group, started in 2019, was created on the identity, her relationship with Pan, the punish-
felt need to deepen and expand the review of ment suffered by Hera, her encounter with Nar-
gender in Analytical Psychology, especially after cissus, her death and her presence at Narcissus’
the turbulence of the Brazilian presidential elec- death. We found two Literary Studies that conver-
tions in 2018 with a series of misogynist, racist ge on silencing and that relate, in different ways,

158 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.157-170

to Psychology, which seems to favor an interdis- reflection (MONTELLANO, 1996; 2006; ALVAREN-
ciplinary dialogue on the subject. Magnabosco GA, 2011; RUBINI, 2020). Even when pointed out
(1999) studies justifications that maintain the si- in her individuation, (CAVALCANTI, 2003) or as a
lencing of the discourse of resistance regarding reference in stories of suffering (PRADO, 2015),
the insertion of women in Literature and Psycho- for example, the focus on Echo still seems to be
logy, and Saçço (2016, p. 130) investigates how stuck in an understanding that seems to forget
testimonial narratives can rescue “silenced voi- or ignore her creative capacity, intensifying what
ces and stories” in order to reconstruct the truth Prado (2015, p. 14) pointed out as a “petrified
of what happened during the years of the military image of Echo”. The story of Echo is also related
dictatorship in Brazil (1964-1985). to frustrated passions, masochism, and restric-
We understand the subject as relevant in the tion to repetition without creative possibilities,
face of social movements that claim to be heard, pointing to what seems to be a one-sided com-
such as – with no implications on diversity re- prehension of her (BERRY, 2014).
duction of these movements – feminisms, anti- In searching for references of Echo outside
racism, the fight against LGBT phobia1 and the Psychology, Prado (2015) found several referen-
Brazilian indigenous issues. Although groups ces that agree with the hegemonic understanding
different from the hegemonic have always exis- of Echo in Analytical Psychology, but also found
ted, it seems that only recently their voices have other references that were dissonant, which em-
been louder (or started to be heard) and thereby phasiz e a more complex aspect of the nymph as
caught our attention, which has turned to reali- a mythical representation of the female figure.
ties different from the “standard ”. This seems We chose to highlight the work of Santos and Zo-
even more intense after the Brazilian presiden- cratto (apud PRADO, 2015, p. 20) for whom Echo
tial election, in 2018, with the rise of far-right go- “exemplifies the female trajectory that acquires
vernment based on a morally conservative pers- voice and presence by marking her space and
pective that has been threatening liberties, that building her story” and express herself using lin-
were, if any, recently conquered – if it is possible guistic resources in their totality. This perspecti-
to speak of “liberties being conquered” when ve in Law, found by Prado (2015), also reinforces
facing the daily violence that women, people of the importance of a dialogue between Psycho-
color, LGBTQIA+ people, indigenous people and logy and other fields of study, in search for an
other groups suffer. In line with this, we unders- amplified perspective of any subject of interest.
tand that there is a possible amplification of indi- Echo is a nymph, daughter of the earth and
vidual and collective consciousness in listening the air, who serves in rites and ceremonies con-
to silenced voices. cerning conjugality and fertility. The etymology of
Reading the content about Echo, in Analytical the word nymph, from the Greek “nymphe” me-
Psychology, brings forth an understanding of the aning “bride”, seems to highlight her potential
nymph as an important aspect in the formation absolute involvement with everything, which, as-
of the relationship with the O ther, but always at sociated with the capacity for mystical participa-
service of the O ther, denoting a tendency to un- tion that Cavalcanti (2003) inculcates in her for
derstand her as a figure with a somewhat disre- being a nymph, connects her to creativity. Part
garded identity and an intense need for positive of Hera’s retinue, Echo was the one who distrac-
ted the goddess while Zeus had sexual relations
with other nymphs and mortals. This relates her
1
LGBTQIA+ refers to the group of lesbians, gays, bi and pan-
sexual, transvestites and transgender, queer, intersexual and
to both creative conjunction, to what she serves,
other groups of nonconformative sexuality. LGBT phobia is the as to her relationship to origin and creativity, sin-
term used to refer to the prejudice that individuals, parts of
the group, or the whole group, suffer from. ce she helps Zeus in his populating settlement of

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 159


Junguiana
v.39-2, p.157-170

the Greek pantheon (BERRY, 2014). Her connec- seems to be Echo’s identity reference, on which
tion to creation is also related to her pre-Hellenic the authors support themselves when talking
past, in which she would have been the goddess about her identity. Hera punishes Echo by re-
Acco, known as “voice of creation” (CAVALCANTI, moving what gives her identity and the possi-
2003, p. 139). bility to exist autonomously and independently
As for Echo’s identity, Cavalcanti (2003, (CAVALCANTI, 2003; MONTELLANO, 1996; ALVA-
p. 145) presents her as a figure who needs to RENGA, 2011; PRADO, 2015).
be seen and recognized, who demands space However, Cavalcanti (2003) states that Hera’s
to build her positive self- esteem and who has, punishment is ambiguous: while it accentuates
in repetition, the means to seek recognition. Echo’s alleged lack of identity, it points out a
Her lack of positive reflection would leave her path of development: s hould the nymph unra-
excessively available to reflect the other rather vel herself from the indiscriminate service of the
than herself, which relates her to empathy. Hen- other, finding other ways to accomplish her own
ce, Echo would see herself as “destitute of wor- creativity. Thus, the lack of possibility of sponta-
th and resources” and from this would derive a neous self- expression would lead Echo to seek
dependent and symbiotic stance in search for a other forms of self- expression, using repetition
sense of self- worth. Berry (2014, p. 140), in con- as a way to heal . Here, repetition can be positi-
trast, understands Echo not as an entity on her ve since it can lead to elaboration; it also gives
own or even separated from her environment, a sense of continuity and pertinence and allows
since she needs it to communicate herself . The the development of identity through creative re-
author also states that, once Echo presents her- petition when Echo gives new meanings to what
self in unoccupied spaces, “ what is missing in a she echoes, in her “covered fertility”, associated
manifestation [ ...] is what shapes Echo ”. with her covering for Zeus; and, repetition also
Berry (2014, p. 138) mentions the romantic allows for highlighting what is repeated, for ela-
relationship of Echo and Pan, another mytholo- boration and resolution of the need to repeat
gical figure who also relates to Everything, which (BERRY, 2014, p. 141; CAVALCANTI, 2003).
would have been broken by Echo. The rejection According to Berry (2014, p. 140) Hera re-
of Pan by Echo is understood by the author as presents, in myth, the regent aspect of cons-
a refusal of Everything’s desire to resonate, by ciousness, being a “literalizer” who takes care
which she means that Echo draws a line for what of and serves the establishment, especially in
can be echoed: “part of this involvement [with its external and social aspects. In t his way, the
E verything, Echo’s potential] is also resistan- relationship that Hera and Echo establish with
ce, an escape from answering to everything and words seems to be the opposite, that is, whi-
everyone”. Cavalcanti (2003) understands this le the former relates words to facts, the latter
rejection as an indicator of a better development relates them to their creative potential. The au-
of object choice in Echo, who refuses an equal, thor also highlights the importance of Hera’s
even though she still seeks in Narcissus a com- ignorance about the tension with the arrival of
plement of herself. something new: “Maybe it is important that the
R ealizing that she was fooled by Echo’s established does not understand the informed
talkativeness, Hera punishes her by refraining and the no n-established. In t his way, the ten-
her ability to speak, restraining Echo only to re- sion remains – the tension between [ ...] tradi-
peat the last words she hears, which seems to tion on the one hand [ ...] and the new on the
be Echo’s best- known characteristic: repeating other” (ibid, p. 141. her highlight). This tension,
what she hears, as an empty repetition or be- according to her, is important because it gives
ing at the service of others. Hera’s punishment to the new a strange and original characteris-

160 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.157-170

tic, and would also need to negotiate its place and only her bones, which turned into stone,
in what is already established. Thus, the echo and her voice, remained. Berry (2014) asserts
from the void, the empty, in the talkativeness that Echo’s beauty is in her pathos, her suffe-
of Echo, seems threatening to Hera because it ring-passion, once she seems to acquire a body
shows Hera’s own emptiness, who is tricked in through the pain, despite losing her concrete
her own established and defined reality. body. It is through the embodiment of pain that
From Echo and Narcissus’ encounter, Berry Cavalcanti (2003) understands that Echo went
(2014, p. 145) points to Echo’s ability to reor- through her individuation process, obtaining
ganize the meaning of words, shaping “words recognition of herself and understanding where
into her echo” in a way that “the literal meaning and how she can act both as nymph (the one
was transformed by her echo”. By stating that who animates, who gives soul) and as a bri-
the echo is also a form of responding and that de ( who seeks creativity through conjugality),
makes it possible for Echo to express herself, the always being recognized when we are in her
author seems to understand that Echo expresses presence, since the echo is easily recognized.
herself through the other’s speech, reorganizing Echo would have such an appropriation of her-
the meaning of the words so the other can ser- self that she would be free to choose intentional
ve her as a way of expression. That was already behaviors, developing what Tannen (2007, p. 6)
affirmed by Ovid (1983, p. 90, our highlight), calls “bodily autonomy”.
when the author states the following about Echo, Narcissus, before his own image, notices
on her desire to declare her love for Narcissus: that it responds soundlessly: “and, as much as
“Echo’s nature prevents her from speaking first. I can guess by the movements of your beautiful
It allows her, however, and she is willing to do mouth, you tell me words that do not reach my
so, to wait for the sounds and return her own ears’’ (OVID, 1983, p. 60), appearing to be him-
words”. By echoing Narcissus’ speech, Echo self echoing Echo’s silence in his own words. Ac-
also seems to create the possibility of self- liste- cording to Ovid (1983, p. 61), Echo echoed wails
ning, in her and in the other (CAVALCANTI, 2003). of regret. Narcissus laments, briefly before he
She echoes Narcissus’ invitation to her, making dies: “Oh, cherished in vain”, and has his words
it her own way to express herself. Thus, Hera’s echoed. He says “Goodbye!” and Echo replies to
punishment seems to fulfill her healing function him “Goodbye!”
mentioned by Cavalcanti (2003), as s he seems It is impressive that no re searched material
to find ways to express herself in a way that is no on Echo, in Analytical Psychology, has mentio-
t spontaneous, but creative, through the echo of ned this last scene, except for Prado (2015) who
the words that she hears to talk about herself. associates the echo of Echo with her empathy
This seems to allow another identity of Echo, one to Narcissus’s suffering. However, Ovid (1983,
that is “really more specific and articulate, like p. 61) states that she is there and “still resentful
the corners and cracks of a cave, the ripples of a of the grievance, she felt pity”. Although in the
valley, the precise cuts where the rock emerges version we used she shows him pity, in the ver-
and recedes. These details, these precisions, re- sion used by Prado (2015, p. 93), she would be
fer to Echo” (BERRY, 2014, p. 146), in a way that “still angry and unwilling to forgive him”, quite a
establishes her identity, but not by what the big difference in terms of how we can understand
consciousness represented by Hera, related to Echo’s position towards Narcissus, at this point.
the establishment, assumes as form, but as so- In the bibliographic research on Literary Stu-
mething more subtle. dies, Psychology and silencing, we were able to
Rejected by Narcissus, Echo was fueled by find two relevant studies. Magnabosco (1999)
the pain of the rejection; her body dries up questions what sustains the unworthiness of wo-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 161


Junguiana
v.39-2, p.157-170

men’s speech in literary and psychological sco- they were allowed and forbidden, what were their
pes. The author questions what makes women duties and rights and, in the end, with what lite-
a speechless figure, identifying that they would rary and psychological bodies they could iden-
have their speech represented by a male figure tify with”. She insists that “i dentified, named
who speaks for them. She questions whether and put down through the male speech, women
women have no words, or whether it is the di- were dumbfounded, only being able to know
sallowance of male speech that has made them themselves as a reflection of men”. She states
develop other ways to express themselves. Fina- as an example of these dynamics, in Psychology,
lly, she poses the question: “Would literary and the search for words and structures that are not
psychological canonical theories have had (or do those dictated by men in terms such as hysteria
they have) the structural, linguistic and lexical and male or penis envy. In Literature, the author
support that could connote (or that do connote) states that every written expression of women
other meanings to the speech developed by wo- was considered “foolishness, of impure desires,
men?” Saçço (2016. p. 10 ) in contrast, has as a a misunderstood dissatisfaction or were about
scope of study “listening to silenced stories” and transgressive ideas to the imposed order of the
investigating the consequences of the violence feminine” (ibid, p. 53).
suffered by militants who opposed the military By this context, the author denominates the
dictatorship in Brazil. According to her, “Fiction female testimonial narrative as a form of discour-
and oral narratives complement each other in the se of resistance because it represents a “political
search for truth, in the rescue of silenced voices denouncement of oppression, marginalization,
and stories”, with Literature being a possible and discrimination practiced on those who are
representation of catastrophes “once it acts on considered language subalterns, that is, those
the social imagina ry”, since its function is “to ex- who do not enunciate themselves under the pos-
press what cannot be expressed, without losing
sibilities of the official language of a given cultu-
the testimonial function of writings” (ibid, p.11).
re” (p.54, her highlight).
Magnabosco (1999, p.52) understands the
Saçço (2016, p.38) instills the Brazilian Ar-
difference in the portrayal of women as a con-
med Forces, besides the crimes of torture and
sequence of the definition of gender through
persecution, the crime of silencing the survivors,
the bias of physiological and biological diffe-
not allowing them to participate in writing Brazi-
rences, in a way that makes identity associated
lian history when it comes to the 21 violent years
with individuality, as opposed to the notions of
of military dictatorship: “The scars of repression
difference and coexistence. S uch definition of
are still glued to their bodies and minds because
the individual “affirms the impossibility of being
they suffered, right after the amnesty, the mo-
the Other, of identifying with other social roles,
ment of imposed silence”. As such, the testimo-
of transforming space, time, and memory and of
nial2 narrative, fictitious or real, is pointed out
using different perspectives to organize and con-
as a way to elaborate the trauma experienced,
ceive the world”. This would be one of the rea-
both individually and collectively, relying on Kehl
sons for the unworthiness given to the participa-
(apud SAÇÇO, 2016), who states that not naming
tion and recognition of women in both Literature
the traumatic violence can be a greater pain than
and Psychology.
living it . The testimony as a “narrative [that]
In understanding male supremacy over wo-
men through the differentiation of bodily diffe- 2
The author understands “testimony” not only as witnessing an
rence as identity, Magnabosco (1999, p. 53) sta- experience, especially when it comes to the account of survi-
tes that it is given to women to be “echo of the vors and relatives of people who were killed or “ missing” du-
ring this period, but also as listening to the victim’s narrative
voices that told them what the world was, what about the end.

162 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.157-170

gives voice to the silenced voices” (ibid, p. 36) a representative of the consciousness of and by
would be fundamental for the elaboration of this the established .
historical period, especially given the value that The criticism of the discourse of resistance,
Seligmann (apud SAÇÇO, 2016, p.15) attributes as opposition to the new, is another notation
to it, which can “serve as a way to construct a made by Magnabosco (1999, p. 54), who unders-
new post- disaster identity”. tands that “to oppose means not to submit, not
Kehl (apud SAÇÇO, 2016) brings the silencing to passively accept a definition [ ...] as ‘the’ tru-
of the suffering resulting from the Brazilian military th”. For her, opposing brings forth the possibility
dictatorship close to the silencing imposed by the of other meanings and opens up to knowledge
slave regime, and Saçço (2016) brings it closer to and apprehension of different ways of organizing
silencing in the face of the violence that happens thoughts and languages. The author also exp-
in many Brazilian suburbs. The silence, combined lains the mechanism of expropriation of meaning
with the lack of social refuge to witness, enhan- in the discourse of resistance which attempts to
ces the pain. The testimony, as a potential to work place this discourse inside boxes known by the
with and in the social imaginary, when absent, co- hegemonic discourse; if it does not fit, it beco-
rroborates the repetition of the trauma. mes marginalized, a prejudice term, as “one
Testimony, according to Saçço (2016), is a of the movements expected by those who feel
way of gathering fragments of the past. The au- threatened and uncomfortable in their mental,
thor points out two critical theories of testimony: psychological and literary habits” (p. 55). The
the European and North-American, which have author also cites the term marginalized, the one
as example the II World War and the N azi Ho- from the margins, as the “representation of the
locaust, and the Latin-American, represented by Other from a point of view of world and language
dictatorships and the oppression of minorities. that does not correspond to itself” (ibid, p. 55),
Regarding the Nazi Holocaust, it is understood as indicating a subjugation of otherness.
search for justice and historical documentation When talking about the redemocratization
and, therefore, it has relevance. However, in La- process, occurred in Brazil, Saçço (2016, p.50)
tin America, testimony is understood as a denun- points out the marginalization of the testimony
ciation in which the whistleblower must prove to of militancy against the military dictatorship, be-
be a victim. ing replaced by a hegemonic discourse, leaving
Magnabosco (1999, p. 54, her emphasis) hi- the testimony to the “politics of forgetting ”. The
ghlights, among critical literary theories, the one justification given to this silencing, according to
that criticizes the hegemony of Western literary her, is to reduce the possible desire for revenge
canon, marked by the notion that language and of the survivors and relatives of those who did
identity are made in their social-political context. not survive, as if the search for justice were a
This model is opposed to canonical criticism mere retaliation.
based on objectivity and universality, which is Magnabosco (1999, p. 55, her emphasis) con-
guided by the “literalization of meaning, that is, nects the criticism of the discourse of resistance
the resistance to the new meanings of the word”, to an imbalance in the “ narcissistic economy,
comprehending the discourse of resistance as that is, the affective investment upon the cho-
an “outrage and devaluation of the Western-cul- sen and valued subject-object”; this imbalance
tured work and language ”. Thus, the author would cause discomfort as it would show “the
claims, there would be in the literalization of frailty of the rules and meanings of language and
words the maximum literary value . This need to identity (once they are not ontological, but hu-
literalize and to appreciate what is literalized is man and social-cultural productions)”, and this
close to what Berry (2014) presents of Hera, as calls into question their identifying models, that

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 163


Junguiana
v.39-2, p.157-170

is, it questions the hegemonic unity of identity. p.208) defines as “defensive denial of the
“In other words, through the denunciation word object’s autonomy” in narcissist individuals.
of the witness, the reader is confronted with ex- According to her, there is a perception of the
periences and perceptions of intense human su- other’s independence, but narcissists deny
ffering and misery, which are preferably denied this perception due to feelings of insecurity,
or repressed” (ibid, p. 56). This reaction could which have been shown as difficulty in dealing
be justified by the difficulty in identifying oneself with more complex perceptions of the other
with experiences narrated as a human and poli- and with the fear of being abandoned and/or
tical problem, not as a matter of identity . Th us, rejected and their feelings of fragility, inferio-
by diminishing the value of a discourse that is rity, and vulnerability. Thus, the “relationship
different from the hegemonic, one is exempting with the other is hampered by persecutory fee-
oneself from looking at problems exposed by si- lings regarding the invalidation and autonomy
lenced voices and “answering them by building of the self” (Ibid, p. 209), something that also
new consciousness of re-signifying the democra- appears in Magnabosco (1999) when she men-
tic value of the word” (ibid, p. 56). tions the impossibility of the Other existing in
Thus, explains the author, by reducing the re- face of what is hegemonically given as identity
levance and the consequent exclusion from the and discourse. Saçço (2016) points to the act
hegemonic point of view, the new becomes im- of silencing as a denial of persecution and tor-
possible, in order to “maintain and reaffirm only ture as a means of oppression and repression
th e structures and meanings of language and of those who opposed the military dictatorship
behavior consented and reaffirmed by the domi- in Brazil. The narcissistic negation of the Other
nant discourse, in the face of certain political and does not seem to find space for Echo’s rejec-
social interests’’ (MAGNABOSCO, 1999, p. 56), tion of Pan, as if there could be no resistance.
which ends up making the idea and coexistence Echo uses words she hears to express herself
with difference and otherness unfeasible . It may (BERRY, 2014; OVÍDIO, 1983). When we ignore
be due to ponder if the notation also serves for Echo’s transformation through her pain we still
the little attention given to Echo, pointed out by see her as a maintainer of narcissistic grandeur
Berry (2014), Cavalcanti (2003) and Prado (2015). and omnipotence (CAVALCANTI, 2003). The emp-
It seems possible to establish a connection ty and meaningless echo seems to be echo of the
between the silences of Echo as representati- emptiness of the hegemonic, literalizing, oppres-
ve of the Other (CAVALCANTI, 2003), of women sive discourse, silencing voices that oppose it,
in Literature and of opponents and victims of that do not passively submit .
Brazilian military dictatorship, since Magna- Echo, because of her relationship with
bosco (1999) points to women (and any other Narcissus, is understood as a possibility of con-
form of identity that is not considered hegemo- nection and relationship with herself and the
nic3) as the Other, and Saçço (2016) points out other; she represents the Other in the develop-
throughout her essay a series of speeches that ment of relationships, in the process of identity
marginalize opponents, who are usually ca- formation and in the development of sense of
lled “terrorists”. In all three cases, the denial self (CAVALCANTI, 2003). But Narcissus rejects
of the other resembles what Cavalcanti (2003, her. This rejection is associated with the narcis-
sistic refusal to perceive the autonomy of the
3
Tiburi (2018, p. 37) presents as hegemonic identity the image Other (KOHUT apud CAVALCANTI, 2003), which
of the “white man ”, a focus of social favoring, as a represen-
tative of power. For her, the “white man” is “a metaphor of is consistent with what Magnabosco (1999)
power, of the subject of privilege, of the authoritarian figure pointed out as the difficulty of representing the
grounded in the coverage of relationships that involve aspects
of gender and race, sex and social class, age, and corporeality”. Other as a different identity and discourse that

164 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.157-170

ends up being marginalized. “For the narcissistic are rejected by the narcissistic view because she
personality, the existence of its individuality is must be kept submissive and passive, respon-
only possible by denying the other’s individuali- ding to the narcissistic need and desire for mi-
ty. Their strength and value only can be asserted rroring and positive echo ; however, Cavalcanti
through the invalidation of Other’s strength and (2003, p. 214) states that Echo must be kept at a
value ” (p. 210). There is a devaluation of the ob- certain distance because, otherwise, she repre-
ject to determine one’s own superiority because sents a reminder of Narcissus’ vulnerability and
the other’s existence is felt as a threat to one’s fragile identity, which demonstrates the impos-
own existence, as Cavalcanti (2003, p.210) exp- sibility of his independence from Echo, since he
lains: “T he devaluation of the other is also used needs to feel loved in order to feel worthy, and
as a means of having the object under one’s own this leads to an intolerance to be criticized. A real
control and possession and, therefore, guaran- relationship between Narcissus and Echo can
tee exclusive satisfaction of one’s needs”. In only exist when “she acquires for him the func-
this sense, it is possible to connect the attitude tion of an independent and autonomous object.
of those who silence, whether they are the he- The development of the ego’s autonomy is linked
gemonic discourse, as pointed out by Magna- to the perception of the other’s autonomy”.
bosco (1999), whether they are the persecution The same difficulty in dealing with the exis-
and especially tortures by the Brazilian military tence of the Other is pointed out by Magnabos-
dictatorship pointed out by Saçço (2016), to a co (1999) when she talks about the discourse of
narcissistic attitude. resistance and also seems to establish a con-
Cavalcanti (2003, p. 211) explains the posi- nection with what Saçço (2016) points out about
tion given to Echo of serving Narcissus as a way the intensity of violence exerted by the Brazi-
to seek self- esteem once devalued in favor of lian military dictatorship: the strength needed
Narcissus’ self- esteem: “Echo is only important to maintain the silence imposed on voices that
to Narcissus insofar as she functions within his do not echo voices of the hegemonic discourse,
expectations. For Narcissus, Echo cannot have whether the patriarchal/androcentric discourse
an identity because she threatens to destroy the (MAGNABOSCO, 1999), the discourse of the Bra-
structure that he built to maintain his own auto- zilian military dictatorship (SAÇÇO, 2016) or the
nomy”, in such a way that “Narcissus perceives narcissistic discourse (CAVALCANTI, 2003), is
in Echo his own lack, which is denied”. The ex- measured by the need to overcome, oppress and
planation given by the author correlates directly marginalize difference, otherness, the Other.
to what Magnabosco (1999) explained about the Narcissus was condemned to see himself
necessity to silence those who are different. A (CAVALCANTI, 2003), but does not seem to be
correlation between this same dynamic with the able to listen to himself or to the Other. He can
Brazilian military dictatorship requires further perceive his own image talking to him, but he
studies, although at first sight it also seems pos- does not listen to his voice because Echo does
sible to identify narcissistic aspects in the dis- not echo it. It is interesting to notice what Ovid
course of its supporters. (1983) says about Echo’s affectation of her
Echo as the Other, as a figure with identity, appearance in Narcissus’ death: she is angry,
independence and bodily autonomy, seems im- resentful. Cavalcanti (2003, p.146) points out
possible to the narcissistic view, as this would that Echo would be afraid of her own anger and,
make her leave the servitude and submissive po- fearing her own anger, she would use it as a
sition in which she was placed by the narcissistic restorative impulse. Echo denies her anger and
dynamic. Echo’s identity and speech, expressed “mobilizes Eros against the pain on frustration
by her reorganization of meanings in her echo, and depression”. In this sense, the impossibi-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 165


Junguiana
v.39-2, p.157-170

lity to access anger seems close to what Saçço ce for voices from decolonial and black feminis t
(2016) says about the resistance to speak open- thoughts to be heard and incorporated into tradi-
ly and socially about the damage left by the Bra- tional Junguian thought.
zilian military dictatorship, under the justifica- What Echo echoes in Narcissus’ final laments
tion of a desire for retaliation. The anger felt by may be his pain or her own pain, when she sees
those who are silenced must be kept silent. in him someone who was “ cherished in vain”,
However, by getting angry, it seemed possi- the one to whom she bids farewell, also bidding
ble for Echo to give up her submission to Narcis- farewell to the servitude provided by her and to
sus’ voice in such a way that we might wonder the identity given to her, fulfilling the potential
if Eros did not mobilize her out of frustration, a transformation of the punishment given by Hera,
perspective closer to Berry’s (2014) perspective when she develops an identity that incorporates
about the importance of Echo’s experience of her her previous one, as the goddess Acco, the voi-
own suffering. ce of creation, and the nymph Echo, the voice of
At this point, it seems important to say so- repetition, who becomes expressive of herself.
mething about anger. Rubini (2020) points to This notion seems very relevant when we consi-
Eros as the potential for connection, a bond, der the importance of creating the National Truth
whereby consummation becomes possible. At Commission and the process of listening to vic-
first glance, it seems possible to approximate tims who survived the Brazilian military dicta-
the affectation by fear and anger of a “commu- torship. Among the various excerpts that Saçço
nist threat” in the 1960’s - revived in 2018 Bra- (2016) uses, we highlight the following:
zilian presidential elections - to the silencing of
those associated with this threat, promoting a If I was inclined to speak? [ ...] I taught for
connection of a large part of Brazilian society to many years, I spoke about this period. I
the military dictatorship and to the current Brazi- have always been extremely critical, cons-
lian government, especially during the elections, ciously critical, I formed critical students
as a way of trying to prevent such a threat from and I made all the critiques, I still do, but
being consummated. This also seems to have I was a person that hovered in the air, ri-
been - and continues to be - the justification of ght?! So, I think this must be said (p.120).
many supporters, both of the military dictator-
ship from 1964 to 1985 and of the current Bra- What can be noted in the bibliographic re-
zilian government, which reinforced, during the search carried out in this essay is that there is li-
military dictatorship, and seems to be trying to ttle positive reflection on Echo as herself, by and
reinforce the silencing of opposers. On the other for herself, as pointed by Soares (apud PRADO,
hand, the affectation of fear and anger towards 2015, p. 25), who states that “there will never be
the current Brazilian government, shared seve- a representation of Echo made by herself”, which
ral times in the study group created by Gimenez seems to reinforce the imprisonment to silencing
(2018) and Tancetti (2018), allowed members to and empty repetition from the narcissistic gaze
connect, make new friendships and build a joint that contemplates her. Echo's characteristic
review of the world, aiming the amplification emptiness (CAVALCANTI, 2003) seems to be due
and expansion of perspectives that were lear- both to the relationship that Narcissus establi-
ned and socially reinforced. This is exemplified shes with her, and to the lack of positive reflec-
by the article of Tancetti and Esteves (2020) on tion that we give to her, in a way that they seem
the importance of decolonial black feminism to to give a reciprocal feedback, on a perpetual mo-
Analytical Psychology. The article, written by two tion of submission and passivity in the unders-
of the group’s participants, aims to provide spa- tanding identity and listening to the narrative of

166 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.157-170

the Other . This idea is close to Magnabosco’s possible to go even further than with just the
(1999) understanding of the marginalization of psychological lens, which has its own strains,
the discourse of resistance, which is not restric- limits and narcissistic wounds. Echo, with a re-
ted to women, but to any group that is identified discovered self- worth, even if not recognized
as Other by the hegemonic culture, so that can by the other, finds ways to express herself and
also encompass the silence experienced since seems to establish an important relationship
the Brazilian military dictatorship and the silence with so many other silenced voices. As Ovid
imposed by the amnesty law, as pointed out by (1983) indicated, Echo uses what the other says
Saçço (2016). to speak for herself, she serves the creative con-
What is given to Echo as a limitrophe identity, jugation (CAVALCANTI, 2003), but is placed at
no t autonomous, dependent on the renunciation the service of the narcissistic view in order to
of herself in order to search for herself seems to sustain the narcissism of the so-called “domi-
have been surpassed by her, but not by us, who, nant”. Echo seems to relate much more to the
in our own narcissism, do not give her the oppor- re-inauguration of “value of the word by liste-
tunity for autonomy because that would hurt us, ning to the discourse of other people ” (MAGNA-
while keeping her imprisoned in a useless postu- BOSCO, 1999, p.56), so it can transform “voices
re of worthless echo so that we are not touched silenced by a hegemonic discourse into other
in our own narcissistic wounds. This seems to discourses” (ibid, p.57).
be reinforced by Berry (2014) who states that by Berry (2014) argues that Echo’s beauty is in
focusing on Narcissus, we chose the easy way her inflamed pathos and also in her frustration,
out because Echo’s passion is much more com- suffering and sadness, which can echo our own
plex, as her precision is like the shape of caves feelings alike. Perhaps this is why it seemed ne-
and valleys: cessary to silence Echo. Perhaps this is why it
still seems necessary to silence so many voices
Like all of us, Narcissus would like to keep that echo sadness and suffering in their expe-
things simple. And it is much simpler to riences of oppression and marginalization.
think of your self, identity and subjectivity The ending of Judith, Shakespeare’s sister
as separated from a world of echoes – our created by Woolf (2019), is not a happy one, like
shape and our experiences as different so many other endings that her story can repre-
from what surrounds us (p. 148). sent; just as the ending of Echo is not understood
to be happy. Because of our need to avoid the su-
As Berry (2014, p. 150) explains, Echo’s pas- ffering identified in Echo, we avoid echoing her
sion is more complex because it cannot happen, otherness, creativity, and expression. The need
and her suffering is something that must be pre- to materialize and for the physicality of our desi-
served: “This sensible cultivation of suffering is an res seems to relate more to Hera’s formality than
art form that has more to do with tones and moods to Echo’s subtlety, who, even without her physi-
that echo inside the psyche rather than with rules cal body, can exist, occupy spaces and create.
of magnitude or analytical prescriptions”. Berry (2014) reminds us that, in the myth, there
In this essay, we could realize that Echo is an is no consummation but self- consum ption, the
image that can help us to hear silenced voices transformation of life into death; but because
with a worthy connotation different from that gi- they are symbolic deaths, they talk about trans-
ven by the hegemonic culture, supposedly uni- formation. Echo transforms herself through rejec-
versal and objective, the one that establishes tion; while we reject her creative potential, that is
what is valid and what is not valuable . With the all she will echo back to us: the emptiness of our
support of studies from different fields, it seems understanding. Once given space to be heard,

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 167


Junguiana
v.39-2, p.157-170

she can echo creativity, transformation, and while she plays around with us, when we call to
otherness. And that is why it seems so important her in an empty space and she answers us with
that we must listen to silenced voices. our own voice. Hiding may have been her way to
However, it is essential to highlight that Echo resist and face adversities, but we are living a
alone did not support the suffering felt when very critical moment in our country when those
reading the excerpts of testimonies given to the silenced voices should not continue to hide, but
National Truth Commission (apud SAÇÇO, 2016). emerge and present themselves so that we can
We need to go far beyond hegemonic cultural re- find the Other and start functioning with other-
ferences to better understand silenced voices; it ness, where differences can exist, and they do
is necessary to listen to references of those who not need to be fought against because they are
were silenced, whose echoes we still refuse to seen as a threat to a fragile and narcissistic sen-
listen to (BREWSTER, 2020). In the myth of Echo, se of integrity. Rescuing and listening to the his-
there are many gaps, especially regarding her tory, discourse, and identity of those who were
pre-Hellenic past. This erasure also seems to be and still are silenced is crucial if we intend to
related to the silencing of people, cultures, na- have real otherness and autonomy. ■
tions, differences.
The identity given to Echo does not belong to Received: 08/21/2021 Revised: 11/02/2021
her; it is something she seems to keep to herself

168 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.157-170

Resumo
Chamado de Eco: a escuta de vozes silenciadas
O presente trabalho tem por objetivo dar Foi possível compreender que o olhar hegemônico
atenção a vozes silenciadas. Pelo levantamento para Eco e para o Outro os coloca numa posição
de estudos em Psicologia Analítica sobre a figura de pouco valor, algo também encontrado em dis-
mitológica de Eco e de Estudos Literários que cor- cursos de resistência e narrativas testemunhais na
relacionam silenciamento e psicologia, buscou-se área da Literatura, especialmente quando o encon-
compreender o que leva ao silenciamento imposto. tro com o Outro parece ser ameaçador. ■

Palavras-chave: Eco, vozes silenciadas, psicologia, literatura.

Abstract
Llamada del Eco: la escuta de voces silenciadas
Este artículo tiene com objetivo prestar atención tender que la mirada hegemónica a Eco y al Otro
a las voces silenciadas. Al relevar estudios en Psi- los coloca en una posición de poco valor, algo que
cología Analítica sobre la figura mitológica de Eco también se encuentra en los discursos de resis-
y Estudios Literarios que correlacionan el silenci- tencia y las narrativas testimoniales en el campo
amiento y la psicología, buscamos comprender de la literatura, especialmente cuando el encuen-
qué lleva al silenciamiento impuesto. Se pudo en- tro con el Otro parece amenazador. ■

Palabras clave: Eco, voces silenciadas, psicología, literatura.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 169


Junguiana
v.39-2, p.157-170

References
ALVARENGA, M. Z. A vida na coniunctio Zeus-Hera: a morte OVÍDIO. As metamorfoses. Rio de Janeiro, RJ: Ediouro, 1983.
na separatio eco-narciso. Junguiana, São Paulo, v. 29, n. 2,
p. 33-8, nov. 2011. PRADO, M. S. M. Mito de eco: dança das polaridades:
uma visão junguiana. 2016. 104 f. Dissertação (Mestrado
BERRY, P. O corpo sutil de Eco: contribuições para uma em Psicologia Clínica) – Faculdade de Ciências Humanas e
psicologia arquetípica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. Saúde, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, SP, 2016.
BREWSTER, F. O complexo racial: raça, racismo e complexos
culturais. In: CONGRESSO INTERNACIONAL ONLINE DE RUBINI, R. Feridas psíquicas, Jung e o narcisismo. Junguia-
PSICOLOGIA ANALÍTICA, 1., 2020, São Paulo. Anais... na, São Paulo, v. 38, n. 1, p. 41-56, jan./jun. 2020.
São Paulo, SP: Instituto Freedom, 2020.
SAÇÇO, R. C. O. Narrativas da dor: entre o silêncio e a
CAVALCANTI, R. O mito de Narciso: o herói da consciência. representação. 2016. 140 f. Dissertação (Mestrado em em
São Paulo, SP: Rosari, 2003. Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, 2016.
GIMENEZ, L. P. A mulher contemporânea e o feminino:
um estudo com mulheres inseridas no mercado de trabalho. TANCETTI, B. Uma câmera toda delas: a mulher nos
2018. 122 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – filmes de Petra Costa: um estudo junguiano. 2018. 151 f.
Faculdade de Ciências Humanas e Saúde, Pontifícia Univer- Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Faculdade de
sidade Católica de São Paulo, São, Paulo, SP, 2018. Ciências Humanas e Saúde, Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, São Paulo, SP, 2018.
MAGNABOSCO, M. M. Testemunhos narrativos femi-
ninos na América Latina: uma articulação interdiscipli- TANCETTI, B.; ESTEVES, J. H. O racismo como complexo cul-
nar. Em Tese, Belo Horizonte, v. 3, p. 51-8, dez. 1999. tural brasileiro: uma revisão a partir do feminismo decolonial.
https://doi.org/10.17851/1982-0739.3.0.51-58 Junguiana, São Paulo, v. 38. n. 2, p. 49-62, jul./dez. 2020.

MONTELLANO, R. M. P. Narcisismo: considerações atuais. TANNEN, R. S. The female trickster: the mask that reveals.
Junguiana, São Paulo, n. 14, p. 86-91, 1996. London: Routledge, 2007.

________. Transtornos de la personalidad narcisista. In: TIBURI, M. Feminismo em comum para todas, todes e
LOUREIRO, M. E. S. (Coord.). Psicopatologia psicodamica todos. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos, 2018.
simbólico-arquetípica. Montevideo: Medica Latino America-
na, 2006. p. 187-99. WOOLF, V. Um teto todo seu. Rio de Janeiro, RJ: Nova
Fronteira, 2019.

170 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.171-186

O Áporo de Drummond: um olhar junguiano

Marco Antônio Vasconcelos Rêgo*

Resumo Palavras-chave
Jung deu muita atenção à produção artística, poesia, áporo,
incluindo a literária, enfatizando o seu potencial literatura,
para revelar conteúdos do inconsciente. A moti- individuação,
Carlos
vação para este trabalho surgiu a partir do sonho
Drummond de
de um homem de meia idade, no qual a palavra Andrade.
áporo, desconhecida para ele, apareceu clara-
mente. A busca pelo significado dessa palavra o
levou ao poema Áporo de Carlos Drummond de
Andrade, um dos mais analisados por críticos da
literatura brasileira. O poema contém elementos
simbólicos que remetem a um paralelismo com
os arquétipos descritos por Jung no âmbito da
psicologia analítica, como ego/persona, sombra,
anima/animus e o si-mesmo. Portanto, o objetivo
deste trabalho foi descrever e analisar os aspectos
simbólicos do poema, e concluiu-se que sua pro-
gressão sugere um processo de individuação. ■

* Médico, epidemiologista, psicoterapeuta junguiano, doutor


em saúde pública, professor titular aposentado do Departa-
mento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Me-
dicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia.
E-mail: mrego@ufba.br

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 171


Junguiana
v.39-2, p.171-186

O Áporo de Drummond: um olhar junguiano

Introdução da representação de alguns dos conceitos que


Na obra de Jung há diversas referências à norteiam a psicologia analítica (PA). Não há pre-
criação artística como fenômeno psicológico, tensão, nem se justificaria, de aprofundamento
nela incluída a produção literária. O poema sobre esses conceitos tão vastamente aborda-
“Áporo” de Carlos Drummond de Andrade é pa- dos na literatura especializada, mas unicamente
radoxalmente simples e complexo e, em função discuti-los com brevidade, fazendo um paralelis-
de sua profundidade, existem muitas análises mo com os elementos do poema.
sobre o seu conteúdo, mas nenhuma delas en-
foca aspectos de caráter psicológico. Entretanto, O sonho
um olhar atento ao poema pode revelar alguns O sonhador, durante o seu processo psicote-
dos conceitos postulados por Jung, em especial rapêutico, trabalhou diversos sonhos, mas um
os de sombra, anima, animus, função transcen- em especial chamou a sua atenção pela clareza
dente e individuação. e simplicidade. Eis o sonho:
O ponto de partida da análise de “Áporo”
foi um sonho de um homem de meia-idade, Estava em uma rua tranquila, quando vi
com vida familiar, profissional e social conso- uma faixa amarrada de um poste a outro
lidadas. Na visão de Jung, os sonhos são uma atravessando a rua, como se fosse uma
manifestação natural que simbolizam a psique propaganda, um aviso ou um chama-
e falam por si, sem pretender significar outra do para algo. A faixa era branca, tinha
coisa. Não podem ser tomados ao pé da letra mais ou menos 80 cm de altura e nela
e devem ser interpretados de modo simbólico, podia-se ler com clareza sua única pala-
sendo necessário procurar neles um sentido vra, “ÁPORO”, escrita em letras maiúscu-
oculto. São criações psíquicas espontâneas e las de cor preta.
arbitrárias provindas do inconsciente, aparen-
temente casuais, independentes da vontade do Ao acordar, o sonhador ficou intrigado com
indivíduo e que contrastam com os conteúdos a tal palavra, desconhecida para ele até então,
habituais da consciência, apesar de não total- mas que parecia ser real, dada a clareza com que
mente desvinculadas desta. Existe nos sonhos estava grafada. Na internet, encontrou diversas
uma função compensatória, e eles contribuem páginas que faziam referência ao seu significa-
para o equilíbrio psíquico total. Admitindo que do. Em especial, chamou-lhe a atenção a men-
nos sonhos haja indícios de causalidade, Jung ção ao poema Áporo. Sua leitura o remeteu ao
estabelece que neles há tendências objetivas, seu trabalho psicoterapêutico, o que lhe trouxe
ou seja, há uma função prospectiva (JUNG, um misto de alegria e emoção. O sonhador per-
2002a; 2002b; 2007b). “Os sonhos são poesia cebeu a presença de elementos que poderiam
emergente. São criações que, partindo das pro- simbolizar alguns dos conceitos da PA, com os
fundidades da psique, vão condensar e expres- quais tinha alguma familiaridade. Ou seja, o
sar em metáforas a vida inconsciente do sonha- sonho, sincronisticamente, fazia pleno senti-
dor” (HIMIOB, 2005, p. 137). do para o seu processo particular, em especial
Portanto, o objetivo deste trabalho é analisar por estar, no momento, em seu árduo caminho
o poema “Áporo”, observando a possibilidade de autotransformação.

172 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.171-186

Drummond, Áporo e seus significados de A Rosa do Povo e, segundo Secchin (2018),


Eis o poema (ANDRADE, 2000): esse é o livro máximo da fase mais politizada do
autor e é celebrado com uma de suas obras-pri-
Um inseto cava cava sem alarme mas mais importantes. Esse autor refere ainda
perfurando a terra sem achar escape. que vê o poema como anômalo, no sentido de
Que fazer, exausto, em país bloqueado, que pode não apresentar uma sintonia imedia-
enlace de noite raiz e minério? ta com o leitor. “Existe no poema uma barreira
Eis que o labirinto (oh razão, mistério) lançada ao leitor que, diante da estranheza e
presto se desata: da complexidade dos signos no poema, desco-
em verde, sozinha, antieuclidiana, bre-se de certo modo impossibilitado de inter-
uma orquídea forma-se (p. 56) pretá-lo diretamente” (SAID, 2005 apud SOUZA,
2014, p. 7). Esse pequeno poema “é um perfeito
Reverberou no sonhador algo que já havia enigma cuja complexidade desafia a leitura críti-
sido dito sobre esse poema: “A primeira im- ca” (ARRIGUCCI JR., 2002, p. 76). Como será visto
pressão vem de fato do fascínio do desconhe- mais adiante, trata-se de uma obra visionária,
cido que emana dessa palavra rara e estranha, como classificaria Jung.
despertando a curiosidade para o que desde A análise desse poema levou a muitas in-
logo se oculta” (ARRIGUCCI JR., 2002, p. 78). terpretações que o relacionam com o momento
Portanto, a questão que se colocava era: o que histórico e político em que foi escrito nos anos
significa áporo? 1940 (Estado Novo, censura, espionagem, cer-
Surpreendentemente, há três significados co às liberdades, incluindo as literárias) (ARRI-
que dispostos aleatoriamente não se conectam: GUCCI JR., 2002; SOUZA, 2014), especialmente
gênero de insetos himenópteros da família dos quando se observa a segunda estrofe: “em país
cavadores; problema difícil ou impossível de re- bloqueado”, sendo a orquídea verde uma ima-
solver, sem saída, labirinto; e gênero de planta gem de esperança pelas transformações que já
da família das orquídeas (AULETE, 1958). Além se anunciavam. Áporo surge no “ano da agonia
dessas definições, existem os conceitos de apo- do nazifascismo e do Estado Novo (‘em país blo-
ria e de aporismo. Aporia em Filosofia significa queado’), ano da soltura de Luís Carlos Prestes
a dificuldade de escolher entre duas opiniões (presto se desata...), ano de todas as auroras”
igualmente racionais, mas contrárias. Aporismo (PIGNATARI, 2004, p. 143).
significa problema de resolução difícil ou impos- Segundo Arrigucci Jr. (2002, p. 81), a trans-
sível na área da Matemática (AULETE, 1958). Em formação do inseto em flor, impossível de se
campos diversos, esses termos evocam a ima- observar na natureza, é certamente “o resultado
gem de uma situação sem saída, de um labirinto. de um esforço humano de mudança”, e refere-se
ao trabalho do poeta em encadear as palavras
O que diz a análise literária? encontradas no dicionário. Drummond foi capaz
Essa é uma das “peças de poesia mais per- de dar sentido lógico à sequência de significa-
feitas e mais criativas, em âmbito internacional dos díspares da palavra áporo; “[...] se estabe-
e dentro da tradição do verso pós-Mallarmé”1 lece uma continuidade coesa entre termos que
(PIGNATARI, 2004, p. 144). Trata-se do 13o poema em princípio eram não apenas completamente
heterogêneos e divergentes, mas também des-
contínuos” (ARRIGUCCI JR., 2002, p. 83). Segun-
do Talarico (2006, p. 97), em Áporo “existem
1
Referência a Stéphane Mallarmé, nome literário de Étienne diversos planos de significação a concorrer para
Mallarmé, poeta francês integrante do movimento simbolista,
e autor de Crise de Versos. a construção de significados. O recorte descon-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 173


Junguiana
v.39-2, p.171-186

textualizado de um desses planos compromete a bólicas que estão presentes na obra de arte,
percepção da dinâmica processual entre signifi- oferecendo significações não facilmente com-
cantes e significados”. preendidas (SILVEIRA, 1994).
Gonçalves (2002, p. 84), ao se voltar para Jung considerava controvertida a relação en-
a poesia de Drummond, olha para dentro, bus- tre a obra de arte e a PA, mas “[...] apesar de sua
cando a imagem, renunciando ao que seria con- incomensurabilidade, existe uma estreita cone-
vencional na crítica literária. Refere-se ao poeta xão entre esses dois campos que pede uma aná-
como um “alquimista do espírito” e como “ar- lise direta” (JUNG, 2007a, par. 97). Especifica-
quiteto do silêncio”, que consegue “congregar mente sobre a obra de arte literária, Jung falava
os elementos das sensações e do pensamento “[...] sobre a força imagística da poesia, embora
de modo a encontrar a harmonia necessária para ela pertença ao domínio da literatura e da estéti-
realização do pensamento por imagem”. Falta ca [...] a força imagística é também um fenômeno
extrair do poema o que não é poesia. Nesse ca- psíquico” (prefácio, p. 74).
minho, o poema Áporo “parece realizar, no seu Dawson (2002) chama a atenção para o fato
próprio corpo, um exercício de profundo ‘descar- de que a análise da obra de arte, assim como o
namento’ da linguagem em busca do essencial” processo psicoterapêutico, é guiada pela teo-
(GONÇALVES, 2002, p. 88). ria, mas que há uma tendência dos críticos de
Essa metamorfose de inseto em flor, com projetarem suas próprias visões sobre o texto,
passagem pelo labirinto sombrio, será retoma- perdendo a possibilidade do surgimento de algo
da adiante quando da reflexão sobre a evolução inesperado. “Um texto é um produto autôno-
de um indivíduo quanto aos aspectos psicológi- mo e deve ser respeitado como tal” (DAWSON,
cos, considerando a dimensão metapoética, e 2002, p. 240).
áporo como a representação do próprio homem, Avaliando a relação entre sentido e significa-
como considerou Sousa (2017, p. 60) ao se re- ção, pode parecer paradoxal a pergunta de Jung:
ferir ao poeta como o próprio áporo, “uma vez “Será que a arte realmente ‘significa’”? E prosse-
que Drummond insiste em escrever poesia em gue oferecendo sua visão:
um país em que não se acredita mais na poesia:
é um ‘país bloqueado’”. Santos (2006) diagnos- Talvez a arte nada ‘signifique’ e não tenha
tica que Drummond é deslocado de seus pares nenhum ‘sentido’ [...] Talvez ela seja como
contemporâneos, e por conta disso usa disfar- a natureza que simplesmente é e não ‘sig-
ces, máscaras heterônimas, em seus poemas, nifica’. Será que ‘significação’ é necessa-
sendo Áporo uma de suas personas. riamente mais do que simples interpreta-
ção que ‘imagina mais do que nela existe’
Jung e a obra de arte por causa da necessidade de um intelecto
Considerando que a obra de arte em si e o faminto de sentido? Poder-se-ia dizer que
seu valor pertencem aos críticos de arte, como arte é beleza e nisso ela se realiza e se
visto acima em breve, e antes de iniciar a análi- basta a si mesma. Ela não precisa ter sen-
se do poema à luz dos conceitos junguianos, é tido (JUNG, 2007a, par. 121).
importante comentar a respeito da observação
ou avaliação de obras de arte sob o ponto de Jung lembra que “a pergunta sobre o senti-
vista da PA, lembrando que “a crítica literária do nada tem a ver com a arte. Quando se fala da
junguiana procura explorar as possíveis im- relação da psicologia com a obra de arte, já es-
plicações psicológicas de um texto literário” tamos fora da arte e nada mais nos resta senão
(DAWSON, 2002, p. 240). No contexto da PA, a especular e interpretar para que as coisas adqui-
crítica contribui na decifração das imagens sim- ram sentido” (JUNG, 2007a, par. 121). Admitindo-

174 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.171-186

-se esse conceito, a abordagem do poema Áporo dividuação. Barcellos (2004) refere que o artista
é, antes de tudo, uma especulação. se abre ao novo, ao anticonvencional e enfatiza
Jung define os processos psicológico e visio- a importância do esforço para a apreciação sim-
nário quando da criação de obras literárias. Os bólica e imagética.
primeiros são facilmente compreendidos, sen-
tidos pelo leitor, visto que abordam temas que O poema e os conteúdos da psicologia
foram captados pela alma do autor e que cati- analítica
vam o leitor, em função de suas experiências A obra de arte no seu vasto leque, o que
de vida relacionadas às comoções e vivências inclui as obras literárias e sua linguagem poé-
passionais. Esse modo psicológico de criar se tica, é uma das formas de comunicação do in-
coaduna com temas mais afeitos à consciência e consciente com a consciência. Segundo Coelho
geram obras que soam familiares, e comportam (2020, p. 164), “A literatura certamente é um es-
os romances policiais, familiares, sociais, os po- paço privilegiado de imaginação, de reflexão, de
emas líricos, as tragédias e as comédias (JUNG, revelação da complexidade humana [...]”. O po-
2007a). “É enfim, um destino humano que a ema Áporo reúne no seu desenvolvimento uma
consciência genérica conhece ou pelo menos sequência de eventos e situações que remetem
pode pressentir” (par. 139). Entretanto, apesar a um processo de transformação, de metamor-
de o leitor poder aprofundar-se nos aspectos da fose, como se observa no percurso do inseto à
alma, “[...] os estudos psicológicos dessas obras orquídea. No início do percurso, o inseto cava a
nunca trazem contribuições importantes, pois o terra; na sua ação instintiva, trabalha silencio-
artista já esgotou seu tema e decerto melhor do samente, constrói. Como bons representantes
que faria o psicólogo” (SILVEIRA, 1994, p. 168). dos insetos himenópteros, formigas e abelhas
Nas obras visionárias há uma inversão; tema e simbolizam o trabalho profícuo e laboram dili-
vivências não são conhecidos ou não facilmente gentemente na construção de seus respectivos
apreendidos. “Sua essência, estranha, de natu- habitats e na manutenção da vida de quem delas
reza profunda, parece provir de abismos de uma depende; são insetos provedores (CHEVALIER,
época arcaica, ou de mundos de sombra e de luz GHEERBRANT, 1986).
sobre-humanos” (JUNG, 2007a, par. 141). Nesse Aqui cabe uma analogia com o que se espera
sentido, não parece ser precipitado aceitar o pe- que ocorra na primeira metade da vida, quando
queno poema Áporo como uma obra visionária, o indivíduo dá vazão às exigências do ego no
em função de sua profundidade. sentido de prover a vida. Seguindo um caminho
Colonnese (2018) faz uma avaliação detalha- necessário à sua independência em todos os
da sobre a relação de Jung com a obra de arte seus aspectos, o indivíduo estuda, alcança uma
e aborda com profundidade a presença da arte profissão, atinge sua estabilidade profissional,
na elaboração da teoria junguiana. Essa autora material, financeira, constitui família etc. Em
refere que a articulação entre a obra de arte e a suma, é guiado por um ego capaz de promover
PA abre a possibilidade de contato com o misté- essa etapa da vida. Naturalmente é um olhar
rio, com o que não é óbvio nem conhecido. No para fora, o objeto está no exterior, o que define
mesmo caminho, Rodrigues e Moreira (2017) res- genericamente uma etapa extrovertida da vida.
saltam o papel da literatura na elaboração das Nessa etapa, “período que vai do nascimen-
vivências psíquicas, tanto para o escritor quanto to ao meio da vida, o indivíduo estaria às voltas
para o leitor, mesmo que este não tenha preten- com o que Jung denominou objetivo natural”
sões analíticas ou interpretativas. As autoras (GRINBERG, 1997, p. 175). O êxito do seu em-
observam como a arte se mistura com o mundo preendimento lhe confere reconhecimento; ao
interior, e pode contribuir para o processo de in- mundo exterior, sua persona encontra-se bem

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 175


Junguiana
v.39-2, p.171-186

adaptada, ajustada ao coletivo, uma condição enlace de noite raiz e minério? Eis que o labi-
necessária ao crescimento psicológico. Entre- rinto (oh razão, mistério) [...]”. Em sua profunda
tanto, ele continua cavando, ao que parece, na análise literária, Arrigucci Jr. (2002) faz breve
busca do que poderá vir a ser o mais importante incursão no campo da psicologia e sugere um
numa segunda etapa da vida, ou seja, os aspec- labirinto simbólico, alcançado pelo inseto com
tos voltados para a interioridade, para o “objeti- o seu cavar diminuto. Pinto (2015) comenta que
vo cultural que diz respeito mais às questões in- o homem se sente atraído inconscientemente
conscientes que conscientes”. (GRINBERG, 1997, pelo desafio imposto pelo labirinto, e nele se
p. 175). Considerando que o processo de indivi- perder expõe a oportunidade de se encontrar
duação ocorre durante toda a vida do indivíduo, de novo, uma espécie de renascimento pesso-
mesmo que dele não se dê conta, nessa etapa al. Dessa forma, encontrar-se-ia posteriormente
da vida, por vezes, há uma tendência a atitude numa forma mais plena e duradoura. Para esse
mais introvertida, o que em algum grau deve co- autor, não há nada mais eficaz para esse fim do
laborar com o processo de busca do significado que o labirinto.
da vida. Necessário pois, olhar para dentro, para “A descida a uma caverna, gruta ou labirinto
as raízes! simboliza a morte ritual, do tipo iniciático [...],
“Para crescer, a planta necessita primeira- que pode levar o indivíduo às suas origens e,
mente enraizar-se no solo” (GRINBERG, 1987, portanto, a uma transformação [...]. O iniciado
p. 175). Hillman (1987) usou a metáfora das ra- torna-se outro” (BRANDÃO, 1986, p. 56). O la-
ízes: “E era, como ainda é, chegar às raízes do birinto abriga o monstro minotauro, que pode
sofrimento, do sofrimento inconsciente, do so- representar, sob o ponto de vista psicológico,
frimento do inconsciente, das raízes” (p. 4-5), e os aspectos sombrios da psique, os aspectos
definiu Jung como um “radical, no real sentido inconscientes, os complexos. Santos e Ribeiro
da palavra [...] porque vai de volta aos radices, (2019) analisaram conceitos junguianos no po-
as raízes, os archai [...]” (HILLMAN, 1987, p. 4). ema Noche Oscura, escrito pelo espanhol São
Nesse labirinto subterrâneo, na escuridão do es- João da Cruz, e destacaram a presença do labi-
cavado, encontram-se as raízes. rinto e que em seu centro “mítico/simbólico há
sempre algo secreto, poderoso, precioso e sa-
Esses archai revertem adaptações híbri- grado [...]”. Chevalier e Gheerbrant (1986, p. 621,
das e convenções coletivas a algo mais tradução nossa) assinala que “O labirinto con-
velho, profundo e mais essencial. Essas duz também ao interior de si mesmo, a uma es-
raízes não se conformam; protestam con- pécie de santuário interior e oculto, onde reside
tra acomodações. As raízes atravessam o mais misterioso da pessoa humana”.
qualquer camada de enxerto, qualquer Assim, é possível especular um pouco mais
expectativa, insistindo em torcer o seu jei- sobre esse labirinto sombrio. “O que é essa es-
to pelos caminhos abertos para elas. Para curidão lá embaixo, essa metáfora tenebrosa
estarem certas têm que desviar (p. 4). [...] que pode engolir o ego?” (HOLLIS, 2005, p.
85). Nesse subterrâneo é necessário despender
Seguir cavando significa descer às profunde- grande monta de energia para garimpar conte-
zas, tomar contato com a situação asfixiante do údos do inconsciente tão intocadamente guar-
subterrâneo, com as raízes, com a dureza dos dados. Jung (2000) refere-se à sombra como
minérios, com a escuridão, com a nigredo alquí- um problema de ordem moral, o lado obscuro
mica, com o Arcanum, ou seja, com o mistério, da personalidade desafiada “[...] é um desfi-
que é escuro (JUNG, 2016). “[...] sem achar es- ladeiro, um portal estreito, cuja dolorosa exi-
cape. Que fazer, exausto, em país bloqueado, guidade não poupa quem quer que desça ao

176 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.171-186

poço profundo” (JUNG, 2008, par. 45). É como rantes e não só os aspectos negativos e destrui-
se fosse a segunda personalidade no dizer de dores” (GRINBERG, 1997, p. 141).
Sanford (2004), composta por qualidades rejei- Com o diálogo direto e honesto com esses
tadas, complexos, que contradizem os ideais aspectos, “[...] o labirinto presto se desata [...]”
do ego, muitas vezes só vista pelos outros. To- e a vida pode tomar outro significado, emergin-
mar consciência da sombra, isto é, reconhecer do para o mundo exterior, agora lastreada nos
esses aspectos obscuros da personalidade é processos internos, em alicerçada sobre outros
fundamental para a tarefa do autoconhecimen- valores, que não mais a construção, a produ-
to, apesar das resistências, em geral, ligadas ção, a acumulação, necessários e presentes na
às projeções, “[...] não reconhecidas como tais primeira etapa da vida, como fazem os insetos
e cujo conhecimento implica um esforço moral cavadores! O desenrolar e a conclusão do poe-
que ultrapassa os limites habituais do indiví- ma remetem a uma abordagem que reconhece
duo” (JUNG, 2000, par. 16). Apesar disso, “[...] a possibilidade de integração de conteúdos do
não é difícil, com um certo grau de autocrítica, inconsciente à consciência. Esse é, na verdade,
perceber a própria sombra, pois ela é de natu- um processo contínuo, interminável, de progres-
reza pessoal” (par. 19), e que gravita próximo à são e regressão da energia psíquica, no qual se
consciência. Segundo Withmont (2010), quan- espera que o saldo seja positivo.
do a vida se torna estéril e nela há um impasse, Do encontro necessário entre consciência e
a solução está no lado escuro, onde vive a fonte inconsciente, entre inseto e labirinto, “[...] em
de renovação. verde, sozinha, anti-euclidiana, uma orquídea
Entretanto, o cenário da falta de saída é ine- forma-se [...]”, e aí reside grande possibilidade
vitável; não há “poros”. O labirinto é intrincado, de significados. Inicialmente vale destacar a cor
com muitos percalços, que parecem estabele- verde que mesmo que de forma inconsciente
cer o final de linha, a estagnação motivada pelo está presente simbolicamente como a cor da es-
medo dessa escuridão e pela dúvida quanto ao perança (JUNG, 2000), o “verde como cor da vida
percurso a seguir. Porém, é preciso lutar firme- [...] a cor do Creator Spiritus” (JUNG, 1986, par.
mente contra essa estagnação e superar os as- 678). “Antieuclidiana” diz respeito a Euclides,
pectos assustadores da sombra, da escuridão matemático sírio-grego considerado o pai da
interior, não revelados, invisíveis à consciência. geometria, e essa expressão remete às formas
O invisível carrega a possibilidade do vir a ser não exatas, não rígidas e, por conseguinte, mais
do indivíduo, o que equivale também a dizer que flexíveis, mais maleáveis, algo necessário para o
ela, a sombra, não é exclusivamente a encarna- caminho da autotransformação.
ção do mal; não é nem má nem boa e pode guar- Se, por um lado, cultural e tradicionalmente,
dar tesouros, habilidades ou quaisquer aspectos as flores são mais vinculadas ao feminino, por
positivos que foram de alguma forma reprimidos, outro lado, a orquídea aqui simboliza uma flor
nunca expressados, e não teve oportunidade de masculina. Orquídea deriva do grego όρχις
brilhar (ROBERTSON, 1997). O potencial positivo (órkhis) que significa testículo, e ειδος (eidos),
foi desvalorizado em excesso ou reprimido e o aspecto, forma, em referência ao formato dos
indivíduo se identifica com o lado negativo; seu dois pequenos tubérculos que as espécies do
potencial positivo torna-se sombra e precisa ser gênero Orchis possuem (ORQUÍDEA, 2021). A fa-
integrado (WITHMONT, 2010). Além dos “muitos mília das orquídeas é a maior das angiospermas,
monstros, às vezes há tesouros, e sempre algo do grego angeos – bolsa e sperma – semente, ou
útil” (HOLLIS, 2005, p. 85). Assim como outros seja, são plantas espermatófitas, cujas semen-
arquétipos, a sombra é uma estrutura bipolar tes são protegidas por uma estrutura denomina-
que apresenta “[...] aspectos criativos e estrutu- da fruto (ANGIOSPERMA, 2020). Essa orquídea

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 177


Junguiana
v.39-2, p.171-186

verde de Drummond pode ser a Aporostylis Bifo- dos da anima poderem se tornar conscientes,
lia (2019), “uma espécie de orquídea recoberta podem dela escapar e esta se tornar autônoma.
de pilosidades glandulares, com pequenos tu- Importante “[...] prestar continuamente uma cer-
bérculos ovóides, que originam caules curtos, ta atenção à sintomatologia dos conteúdos e
eretos [...] com marcas avermelhadas e inflores- processos inconscientes, uma vez que a consci-
cência terminal”, parecendo realmente uma flor ência está sempre exposta ao risco da unilate-
masculina! ralidade [...], e parar num beco sem saída” (par.
Necessária se faz a integração das qualida- 40), ou seja, permanecer ou retornar ao labirinto.
des femininas do homem (presentes no arqué- Os aspectos da anima são de fundamental
tipo da anima) por essa flor-homem e das quali- importância para o processo de individuação,
dades masculinas da mulher-flor (presentes no para o autoconhecimento, e, em geral, essas
arquétipo do animus), feminina por natureza. transformações na vida do indivíduo ocorrem
Masculino e feminino que se unem; um mascu- de forma mais produtiva na segunda metade da
lino que permite a presença do feminino, e vice- vida. A anima ocasiona “uma suavização e um
-versa; um masculino flexível anti-euclidiano e enfraquecimento fisiológico e social em direção
um feminino firme, apesar de flexível. A orquí- ao feminino” (HILLMAN, 1985, p. 25). Entretanto,
dea simboliza ainda a fecundação, a perfeição
a anima pode se apresentar de forma distinta, ou
e a pureza espiritual (CHEVALIER, GHEERBRANT,
mesmo reduzir gradativamente sua participação,
1986). Apesar do apontado acima, seguir-se-ão
e isso pode levar o indivíduo ao desânimo, com
alguns comentários relativos exclusivamente à
perda de sua vitalidade e flexibilidade. O resul-
anima, já que esse trabalho foi motivado pelo
tado é o aparecimento de formas rígidas, unilate-
sonho e pelo processo de autoconhecimento de
ralidade e até mesmo o pedantismo, ou ainda o
um homem, além do fato de que o poema foi es-
desleixo consigo próprio (JUNG, 2008). Portanto,
crito também por um homem.
nessa etapa da vida, é imperioso que se redobre
A anima, assim como outros arquétipos, é
a atenção aos aspectos do inconsciente e que o
uma estrutura bipolar, que se opõe à perso-
indivíduo tente se reconectar “[...] com a esfera
na (JUNG, 2008). Não é tarefa fácil ao homem
da vivência arquetípica” (par. 147).
a integração dos aspectos do seu inconsciente
Antes de prosseguir com a tradicional visão
feminino à consciência, dada inclusive a maior
profundidade no inconsciente, quando compa- sobre a anima, vale destacar algumas conside-
rados com os aspectos sombrios. Suas realida- rações que revisam seu conceito e função, para
des psíquicas presentes apenas nas projeções, além do mero aspecto contrassexual. Existe uma
até dado momento nunca foram acessadas; por “dificuldade com os conceitos indiferenciados
essa razão, a tarefa do encontro com a anima é da anima maior que a sua própria natureza”
tão desafiadora que Jung diz que “Se o confronto (HILLMAN, 1985, p. 15), e que “dificilmente pode-
com a sombra é obra do aprendiz, o confronto mos atribuir anima apenas ao sexo masculino.
com a anima é a obra-prima. A relação com a ani- O feminino é tão importante para as mulheres
ma é outro teste de coragem, uma prova de fogo quanto para os homens, posto que a anima é
para as forças espirituais e morais do homem” vivida como uma interioridade pessoal, voltada
(par. 61). Como a anima também pertenceria à para dentro, e carrega nosso vir-a-ser individua-
função inferior, muitas vezes se manifesta de lizado” (p. 29). A anima, como imagem da alma,
forma sombria, e “possui não raro, um caráter seria melhor vista como projetor e não como
moral duvidoso” (JUNG, 1991, par. 192). projeção, tornando-se, portanto, “o condutor
Desse modo, vale um alerta inicial de Jung primordial da psique, ou o arquétipo da própria
(2000) de que, apesar de os conteúdos integra- psique” (p. 83), do chamado psicológico.

178 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.171-186

Em sua digressão sobre o devaneio, Bache- Isso significa antes de tudo que o animus
lard (1996) também se mostra reticente quanto funciona também nos homens (HILLMAN, 1985,
à divisão da psique, “ante o emprego da dialéti- p. 189), e que essa sizígia animus-anima con-
ca animus-anima na psicologia corrente [e que] forma a imagem arquetípica do divino par uni-
o devaneio é, tanto no homem como na mulher, do (p. 183). Para além da relação interpessoal,
uma manifestação da anima” (BACHELARD, “essa sizígia anima-animus interna de qualquer
1996, p. 60), a necessária presença da femini- mulher ou qualquer homem significa uma rela-
lidade na psique humana. Esse autor, entretan- ção intrapsíquica” (p. 189). Retomando Bache-
to, reconhece a eficácia da visão contrassexual lard (1996), a conjunção animus-anima reside
de Jung quando dos seus estudos alquímicos, e “no fundo de toda alma” (p. 79), o que concreti-
também conforme Jung, “em si mesmos, anima e za o ser andrógino, psicologicamente, com suas
animus podem não representar nenhum gênero potencialidades de realização do superfemini-
sexual específico” (HILLMAN, 1985, p. 189). no e do supermasculino (BACHELARD, 1996).
Para Bachelard (1996), o repouso e o refú- Especula-se e explora-se aqui a conjunção
gio da vida simples e serena encontram-se na que essa orquídea-símbolo pode representar.
profundidade da anima de todo o ser humano, Talvez sem se dar conta, inconscientemente,
homem ou mulher. “Os melhores dos nossos de- Drummond tenha trazido explicitamente em
vaneios procedem, em cada um de nós, homens sua flor, esse mistério da conjunção (oh razão,
ou mulheres, de nosso ser feminino. Se não abri- mistério), o mysterium coniunctionis que Jung
gássemos em nós um ser feminino, como have- compreensivamente buscou dos postulados da
ríamos de repousar?” (BACHELARD, 1996, p. 88). alquimia para a sua psicologia. Essa união de
Feitas essas considerações, e observando-se, substâncias desiguais (inseto e labirinto) é fun-
como dito acima, esse processo nos homens, damental para a formação do ser uno (orquídea),
pode-se afirmar que a presença de aspectos fe- e dar-se-ia em três etapas. Inicialmente a união
mininos no homem é uma necessidade psicoló- mental (unio mentalis) intrapsíquica do espírito
gica para o processo de individuação. Entretan- com a alma, da razão [oh razão!] com Eros, re-
to, uma questão de fundamental importância é presentante do sentimento (JUNG, 2016). Vale
que “[...] seria enganador fazer referência ao atentar para a correspondência dessa etapa com
‘lado feminino’ de um homem, pois a anima é na a “[...] confrontação da consciência (isto é, da
verdade uma parte necessária do que significa personalidade do eu) com o que se acha no fun-
ser homem” (HOLLIS, 2008, p. 137), e sendo fe- do da cena, a chamada sombra [...]” (par. 366),
minina, produz a compensação da consciência para a partir daí, se iniciar a individuação cons-
masculina. “O homem em que o princípio femi- ciente. Na segunda etapa, essa união se vincula
nino estivesse completamente ausente seria um ao corpo, fusão necessária ao caminho da indivi-
ser abstrato [...]” (SANFORD, 2004, p. 12). duação, para a real vivência da união do espírito
Como complexo autônomo, inconsciente, com a alma.
a anima precisa ser visitada e transformada Essa etapa “[...] consiste na realização do ho-
numa função de relação com a consciência mem, que esteja aproximadamente informado
e perder seu poder demoníaco, seu poder de sobre a sua totalidade paradoxal” (par. 341). Na
possessão (JUNG, 2007b). “Não há homem al- sequência, para consumar o mistério da conjun-
gum tão exclusivamente masculino que não ção, esse triunvirato deve se vincular ao mundo
possua em si algo de feminino” (par. 297). uno (unus mundus), tarefa de maior iluminação,
Essa sizígia é o casamento sagrado (hieros ga- de difícil consecução para o homem comum.
mos) que cria o andrógino em nível psicológico Edinger (2008, p. 22) considera “[...] que a co-
(ANTHONY, 1998). niunctio, e o processo que a cria, representa a

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 179


Junguiana
v.39-2, p.171-186

criação da consciência, que é uma substância afastados um do outro – evidentemente


psíquica duradoura”. para se evitar conflitos – eles não funcio-
Aqui alguns aspectos são fundamentais. A nam e continuam inertes. Neste estágio,
orquídea forma-se sozinha, e este fato remete a condução do processo já não está mais
à questão da responsabilidade que cada indiví- com o inconsciente, mas com o ego (JUNG,
duo deve ter quanto às suas escolhas, à percep- 2002a, par. 189).
ção do chamado e dos caminhos a seguir; é uma
responsabilidade do próprio indivíduo e não do Portanto, saída da terra para a luz, essa or-
outro. Não cabem o papel de vítima nem os pro- chis faz (re)nascer o himenóptero, metamorfo-
cessos de culpa, de si próprio ou de outrem. O seado, não mais cavando, mas apontando para
processo de autotransformação se constitui num o alto. A partir dessa confrontação, o processo
caminho individual, no qual o inconsciente vai passa a ser conduzido pelo ego estruturado,
dando lugar à consciência, e a partir disso esse capaz de manter o equilíbrio energético com o
processo se transforma numa meta. inconsciente, sem tentar driblá-lo ou subjugá-lo.
A orquídea, apesar do inóspito, ou talvez por Entretanto, alerta-se que a obediência cega ao
conta dele, está integrada com ela própria, unin- eu faz o indivíduo se esquivar da tarefa da au-
do conteúdos conscientes e inconscientes, nela totransformação. Segundo Jung (2016) sempre
própria, a sizígia animus-anima. Esse novo “[...] ocorrerão justificativas de ordem moral e racio-
produto corporifica o anseio de luz, por parte do nal, mas como o si mesmo se estende para to-
inconsciente, e de substância, por parte da cons- dos os lados, o indivíduo pode se tornar vítima
ciência” (JUNG, 2002a, par. 168), necessário ao de uma decisão independente de sua razão ou
diálogo interior. Nessa circunstância, a orquídea de seu sentimento. Isso significa que a vivência
abriga a fusão necessária, sugerindo o papel do si-mesmo prevaleceu sobre o eu, o derrotou.
da função psicológica transcendente, como um Na conformação do si-mesmo, “[...] o eu não
processo formador de símbolos. “É chamada se opõe nem se submete, mas simplesmente se
transcendente porque torna possível organica- liga, girando por assim dizer em torno dele como
mente a passagem de uma atitude para outra, a terra em torno do sol – chegamos à meta da
sem perda do inconsciente” (JUNG, 2002a, par. individuação” (JUNG, 2007b, par. 405). Trata-se
145). Pode-se evocar aqui a figura do uróboro da do processo consciente de transformação da
alquimia grega, “[...] o símbolo por excelência da personalidade, cuja “meta não é outra senão a
união dos opostos e a representação alquímica de despojar o si-mesmo dos invólucros falsos da
palpável da expressão proverbial: os extremos persona” (par. 269). A individuação, portanto,
se tocam” (JUNG, 2016, par. 375). significa “[...] tornar-se um ser único, na medida
em que por ‘individualidade’ entendermos a sin-
A confrontação entre posições contrárias gularidade mais íntima, última e incomparável,
gera uma tensão carregada de energia significando também que nos tornamos o nosso
que produz algo de vivo, um terceiro ele- próprio si-mesmo [...] ou o realizar-se do si-mes-
mento que não é um aborto lógico [...] não mo” (par. 266). Notar que os conteúdos incons-
há um terceiro integrante, mas um deslo- cientes integrados são uma parte do si-mesmo,
camento a partir da suspensão entre os e sua “[...] assimilação alarga não somente as
opostos, e que leva a um novo nível de fronteiras do campo da consciência como tam-
ser, a uma nova situação. A função trans- bém o significado do eu [...]” (JUNG, 2000, par.
cendente aparece como uma das proprie- 43). “É por este motivo que a individuação é um
dades características dos opostos apro- ‘mysterium coniunctionis’ [mistério de unifica-
ximados. Enquanto estes são mantidos ção], dado que o si-mesmo é percebido como

180 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.171-186

uma união nupcial de duas metades antagôni- No confronto com a realidade haverá recuos;
cas [...]” (par. 117). necessário pois, sempre verificar as falhas, que
Por vezes, se confunde individuação com são “os pontos cegos no seu campo visual psí-
individualismo, no sentido de egoísmo. Vale quico” (par. 413) e recomeçar. Jung alerta que a
ressaltar que uma vez que o indivíduo não é um vida segue seu fluxo continuamente, e “[...] re-
ser único, mas pressupõe também um relaciona- quer sempre e cada vez mais nova adaptação,
mento coletivo para a sua existência, seu objeti- pois nenhuma adaptação é definitiva” (JUNG,
vo não é se isolar, mas ao contrário, reconhecen- 2002a, par. 143). A tarefa não é fácil e jamais o
do e respeitando sua individualidade, espera-se homem conseguirá a totalidade psíquica empí-
que interaja e contribua com o coletivo (JUNG, rica, pois “[...] a consciência é muito acanhada
2007b). “A individuação não exclui o mundo; e unilateral para abranger o inventário completo
pelo contrário, o engloba” (JUNG, 2002a, par. da psique” (JUNG, 2016, par. 413). Jung clama
432). Para compreender o outro, é necessário que o homem moderno deve aprender com a ex-
conhecer-se, ter um relacionamento consigo pró- periência, com a maior simplicidade possível. O
problema, segundo ele, é que o simples é o mais
prio, o que é fundamental para se distinguir do
difícil, mas que o mundo uno é simples (JUNG,
outro, do coletivo, mesmo que tenha uma ima-
2016).
gem deformada de si mesmo (JUNG, 2016).
Para finalizar, vale assinalar a interessante
Jung (2000) alerta para a importância de não
observação de Rodrigues e Moreira (2017) sobre
se recusar esse chamado, por conta do perigo
o processo de autotransformação de Drummond
que representa uma individuação reprimida. O
ao analisarem as duas fases de sua produção:
processo é doloroso, mas é melhor que aconte-
ça conscientemente, e entregar-se à descida ao
[...] Drummond passa gradativamente a
poço fundo, “[...] adotando todas as medidas de
se abrir para o mundo e a perceber o so-
precaução necessárias, do que arriscar-se a cair
frimento deste. Passa a se perceber me-
de costas pelo buraco abaixo” (par. 125). Nesse
nor que o mundo, talvez por vislumbrar a
caminho haverá erros e acertos, e “[...] é preci-
conexão com a totalidade, talvez desfa-
so também aceitar o erro, sem o qual a vida não zendo uma superidentificação com o ego.
será completa”. Não há caminho seguro, “[...] Ao desfazer a inflação de ego, o poeta sai
esse seria o caminho dos mortos. Quem segue da posição de impotência gerada pela
o caminho seguro está como que morto” (JUNG, idealização do que deveria ser. Na sua
2006, p. 345). fase social, marcada pela vontade do
O processo é contínuo, e é necessário sempre poeta de participar e tentar transformar
olhar para a escuridão, para a pedra bruta rejei- o mundo, Drummond mostra maior per-
tada que lá se esconde, observá-la dia após dia: cepção de potência: ‘Ó vida futura! nós te
criaremos’ (p. 68).
[...] até que seus olhos se abram ou, como
dizem os alquimistas, lhe apareçam os
oculi piscium (olhos de peixe) ou as scin- Considerações finais
tillae, as faíscas luminosas, na solução Esse trabalho apresenta de forma resumida
escura. Os olhos de peixe estão sempre alguns dos conceitos da PA simbolizados nos
abertos, e por isso devem enxergar sem- elementos presentes no poema Áporo de Drum-
pre, razão pela qual os alquimistas os mond. Um inseto se metamorfoseia em orquí-
empregam como símbolo para a atenção dea após uma passagem pelo labirinto. Assim,
permanente (par. 406). tem-se um áporo (inseto) que está em um áporo

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 181


Junguiana
v.39-2, p.171-186

(labirinto), mas que finalmente se transforma ceitos de função transcendente, do si-mesmo e


em um(a) áporo (orquídea). Esse percurso, evi- da individuação. Além desses, pode-se inferir
dentemente impossível na vida biológica, tem pelo contexto, o fenômeno da sincronicidade,
paralelismo com a vida psicológica de um indi- em função da ocorrência não causal e simultâ-
víduo que caminha conscientemente no sentido nea do sonho e do momento do sonhador, que
da autotransformação, da individuação, espe- se revelou emocionalmente afetado.
cialmente quando se observa a solução final do Por fim, vale também relembrar a importân-
poema, qual seja, a formação da orquídea, que cia dos sonhos no processo de transformação de
nessa análise representou as possibilidades de um indivíduo, evidentemente se atenção é dada
unificação de opostos. Essa orchis antieuclidia- aos fatos da vida diária, sejam eles os próprios
na expressa um não às formas rígidas, autoritá- sonhos, as imagens, a expressão artística e tan-
rias, e um sim à flexibilidade, à maleabilidade, tos outros. Se é muito importante saber o que
ao caminho do meio. se quer da vida, é talvez mais importante, como
O poema Áporo, uma obra literária visionária, diz Jung, questionar sempre o que a vida quer de
na sua totalidade, para além de suas partes, é cada um. É responder o “para quê” e não o “por
ele próprio um símbolo, e cada um desses três quê”, quando se observam os acontecimentos
áporos é um símbolo único que permitiu a vincu- cotidianos. Ao Áporo corresponde um “Póros”.
lação com elementos fundamentais da PA, a sa- Dessa forma, a visão prospectiva, consciente,
ber, o ego/persona (inseto), a sombra (labirinto), e não a redutiva, assume a direção. ■
a anima e as integrações de opostos possíveis
(orquídea). Isto permitiu contextualizar, os con- Recebido: 17/08/2021 Revisão: 01/11/2021

182 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.171-186

Resumen
El Áporo de Drummond: una mirada jungiana
Jung prestó mucha atención a la producción cos de la literatura brasileña. El poema contiene
artística, incluida la literaria, enfatizando su po- elementos simbólicos que hacen referencia a un
tencial para revelar contenidos del inconsciente. paralelo con los arquetipos descritos por Jung en
La motivación de este trabajo surgió del sueño de el ámbito de la psicología analítica, como ego/
un hombre de mediana edad, en el que aparecía persona, sombra, ánima/animus y el sí-mismo.
claramente la palabra áporo, desconocida para Por tanto, el objetivo de este trabajo fue describir
él. La búsqueda del significado de esta palabra y analizar los aspectos simbólicos del poema y ​​​​se
lo llevó al poema Áporo de Carlos Drummond de concluyó que su progresión sugiere un proceso
Andrade, uno de los más analizados por los críti- de individuación. ■

Palabras clave: poesia, áporo, literatura, individuación, Carlos Drummond de Andrade.

Abstract
Drummond’s Áporo: a jungian look
Jung paid a lot of attention to artistic pro- erature. The poem contains symbolic elements
duction, including the literary, emphasizing its which refer to a parallel with the archetypes de-
potential to reveal contents of the unconscious. scribed by Jung in the scope of analytical psy-
The motivation for this work arose from a mid- chology, such as ego/persona, shadow, anima/
dle-aged man’s dream, in which the word áporo, animus and Self. Therefore, the objective of this
unknown to him, clearly appeared. The search work was to describe and to analyze the sym-
for the meaning of this word led him to the poem bolic aspects of the poem, and it was concluded
Áporo by Carlos Drummond de Andrade, one that its progression suggests an individuation
of the most analyzed by critics of Brazilian lit- process. ■

Keywords: poetry, áporo, literature, individuation, Carlos Drummond de Andrade.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 183


Junguiana
v.39-2, p.171-186

Referências
ANDRADE, C. D. Áporo. In: ANDRADE, C. D. A rosa e o GONÇALVES, A. J. Arquitetura do silêncio. Revista USP,
povo. 21. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2000. p. 56. São Paulo, n. 53, p. 83-8, mar./maio 2002.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i53p83-88
ANGIOSPERMA. In: WIKIMEDIA FOUNDATION. Wikipédia:
a enciclopédia livre. San Francisco, CA, 2020. Disponível GRINBERG, L. P. Jung: o homem criativo. São Paulo, SP:
em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Angio- FTD, 1997.
sperma&oldid=59435722>. Acesso em: 16 jun. 2021.
HILLMAN, J. A herança daimonica de Jung.
ANTHONY, M. As mulheres na vida de Jung. Rio de Janeiro, Florianópolis, SC: Núcleo Jungiano, 2021. Disponível em:
RJ: Rosa do Tempos, 1998. <https://www.jungflorianopolis.com/livros>. Acesso em:
24 jun. 2021.
APOROSTYLIS BIFOLIA. In: WIKIMEDIA FOUNDATION. Wikipédia:
a enciclopédia livre. San Francisco, CA, 2019. Disponível em: _______. Anima: anatomia de uma noção personificada.
<https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Aporostylis_bifo- São Paulo, SP: Cultrix, 1985.
lia&oldid=56231885>. Acesso em: 16 jun. 2021.
HIMIOB, G. La poética del sueño y las metáforas del sufrim-
ARRIGUCCI JR, J. R. Coração partido: uma análise da poesia iento. Junguiana, São Paulo, n. 23, p. 137-41, 2005.
reflexiva de Drummond. São Paulo, SP: Cosac & Naify, 2002.
HOLLIS, J. Mitologemas: encarnações do mundo invisível.
AULETE, C. Dicionário contemporâneo da língua portugue- São Paulo, SP: Paulus, 2005.
sa. Vol. 1. Rio de Janeiro, RJ: Delta, 1958.
_______. Sob a sombra de saturno: a ferida e a cura dos
BACHELARD, G. A poética do devaneio. 5. ed. São Paulo, homens. 3. ed. São Paulo, SP: Paulus, 2008.
SP: Martins Fontes, 1996.
JUNG, C. G. A natureza da psique. 6. ed. Petrópolis, RJ:
BARCELLOS, G. Jung, junguianos e arte: uma breve apre- Vozes, 2002a. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 8/2).
ciação. Pro-Posições, Campinas, v. 15, n. 1, p. 27-36,
jan./abr. 2004. _______. Aion: estudo sobre o simbolismo do si-mesmo.
6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. (Obras Completas de C.
BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. Vol. 1. Petrópolis, RJ: G. Jung, v. 9/2).
Vozes, 1986.
_______. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro, RJ:
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Diccionario de los símbo- Nova Fronteira, 2006.
los. Barcelona: Herder,1986.
_______. Mysterium coniunctionis. 3. ed. Petrópolis, RJ:
COELHO, M. M. Identidade, duplo e imaginação ativa: Vozes, 2016. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 14/2).
leitura do conto distante de Cortázar. Junguiana, São Paulo,
v. 38, n. 1, p. 153-66, jan./jun. 2020. _______. O espírito na arte e na ciência. 4. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2007a. (Obras Completas de C. G.
COLONNESE, L. R. Jung e arte: a obra em contínuo devir. 2018. Jung, v. 15).
158 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) — Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2018. _______. O eu e o inconsciente. 20. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2007b. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 7/2).
DAWSON, T. Jung, literatura e crítica literária.
In: YOUNG-EISENDRATH, P.; DAWSON, T. (Orgs.). Manual _______. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro, RJ:
Cambridge para estudos junguianos. Porto Alegre, RS: Nova Fronteira, 2002b.
Artmed, 2002. p. 239-59
_______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed.
EDINGER, E. F. O mistério da coniunctio: imagem alquímica Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. (Obras Completas de C. G.
da individuação. São Paulo, SP: Paulus, 2008. Jung, v. 9/1).

184 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.171-186

_______. Psicologia e alquimia. 4. ed. Petrópolis, RJ: SECCHIN, A. C. Drummond: poesia e aporia.
Vozes, 1991. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 12). In: MACHADO, A. M. (Coord.). Ciclo de conferências
cadeira 41. Rio de Janeiro, RJ: Academia Brasileira de
_______. Símbolos da transformação. 4. ed. Petrópolis, RJ: Letras, 2018. disponível em: <https://www.academia.org.
Vozes, 1986. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 5). br/videos/ciclo-de-conferencias/drummond-poesia-e-apo-
ria>. Acesso em: 10 jun. 2021.
ORQUÍDEA. In: WIKIMEDIA FOUNDATION. Wikipédia: a
enciclopédia livre. San Francisco, CA, 2021. Disponível em: SILVEIRA, N. Jung vida e obra. 14. ed. Rio de Janeiro, RJ:
<https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Orqu%C3%AD- Paz e Terra, 1994.
dea&oldid=6131879>. Acesso em: 16 jun. 2021.
SOUSA, G. O. O discurso social na metapoesia
PIGNATARI, D. Contracomunicação. 3. ed. Cotia, SP: Drummondiana: um estudo comparativo dos
Ateliê, 2004. metapoemas nas obras Alguma Poesia, A Rosa do Povo
e Claro Enigma. 2017. 81 f. Dissertação (Mestrado em
PINTO, L. F. M. A simbologia e os enigmas do labirinto. Revis-
Teoria da Literatura) — Universidade Federal de
ta Arquitetura Lusíada, Lisboa, n. 8, p. 29-48, jul./dez. 2015.
Pernambuco, Recife, PE, 2017.
ROBERTSON, R. Sua sombra. São Paulo, SP: Pensamento, 1997.
SOUZA, D. S. As vozes metapoéticas que se reinventam
RODRIGUES, I. P.; MOREIRA, F. G. Elaboração das vivências em a rosa do povo. In: ENSINO DE LITERATURA E
psíquicas: o papel da literatura. Junguiana, São Paulo, POLÍTICA DE FORMAÇÃO DE LEITORES, 5., 2014,
v. 35, n. 1, p. 61-70, jun. 2017. Campina Grande. Anais... Campina Grande: Realize,
2014. Disponível em: <http://www.editorarealize.com.br/
SANFORD, J. A. Os parceiros invisíveis: o masculino e o index.php/artigo/visualizar/5876>. Acesso em:
feminino dentro de cada um de nós. 8. ed. São Paulo, SP: 10 jun. 2021 
Paulus, 2004.
TALARICO, F. B. F. História e poesia: texto e contexto em
SANTOS, A.; RIBEIRO, M. G. A “noite escura da alma” no labir- a rosa do povo (1943-1945), de Carlos Drummond de
into do ser poético. Téssera, Uberlândia, v. 2, n. 1, p. 66-87, Andrade. 2006. 300 f. Dissertação (Mestrado em História
dez. 2019. https://doi.org/10.14393/TES-v2n1-2019-50869 Social) — Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2006.
SANTOS, G. S. O jogo da escrita poético-filosófica de Drum-
mond em sua produção em verso e prosa. 2006. 140 f. WITHMONT, E. C. A busca do símbolo: conceitos básicos de
Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) — Universidade psicologia analítica. 4. ed. São Paulo, SP: Cultrix, 2010.
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2006.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 185


186 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021
Junguiana
v.39-2, p.187-202

El Áporo de Drummond: una mirada jungiana

Marco Antônio Vasconcelos Rêgo*

Resumo Palavras-chave
Jung prestó mucha atención a la producción poesía; áporo;
artística, incluida la literaria, enfatizando su poten- literatura;
cial para revelar los contenidos del inconsciente. La individuación;
Carlos
motivación de este trabajo surgió del sueño de un
Drummond de
hombre de mediana edad, en el que aparecía clar- Andrade.
amente la palabra áporo, desconocida para él. La
búsqueda del significado de esta palabra lo llevó
al poema Áporo de Carlos Drummond de Andrade,
uno de los más analizados por los críticos de la
literatura brasileña. El poema contiene elementos
simbólicos que hacen referencia a un paralelo con
los arquetipos descritos por Jung en el ámbito de la
psicología analítica, como ego/persona, sombra,
ánima/animus y el sí mismo. Por tanto, el objetivo
de este trabajo fue describir y analizar los aspectos
simbólicos del poema y ​​se concluyó que su pro-
gresión sugiere un proceso de individuación. ■

* Médico, epidemiólogo, psicoterapeuta jungiano, doctor en


salud pública, profesor titular jubilado del Departamento de
Medicina Preventiva y Social, Facultad de Medicina de Bahía,
Universidad Federal de Bahía.
E-mail: mrego@ufba.br

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 187


Junguiana
v.39-2, p.187-202

El Áporo de Drummond: una mirada jungiana

Introducción representar algunos de los conceptos que orien-


En la obra de Jung hay varias referencias a la tan la psicología analítica (PA). No se pretende, ni
creación artística como fenómeno psicológico, estaría justificado, profundizar en estos concep-
incluida la producción literaria. El poema “Ápo- tos tan ampliamente cubiertos en la literatura es-
ro” de Carlos Drummond de Andrade (2000) es pecializada, sino solo discutirlos brevemente, ha-
paradójicamente simple y complejo y, por su ciendo un paralelo con los elementos del poema.
profundidad, existe una gran cantidad de análi-
sis sobre su contenido, pero ninguno se centra El sueño
en aspectos de carácter psicológico. Sin embar- El soñador, durante su proceso psicoterapéu-
go, una mirada atenta al poema puede revelar tico, trabajó varios sueños, pero uno en particu-
algunos de los conceptos postulados por Jung, lar le llamó la atención por su claridad y senci-
especialmente los de sombra, anima, animus, llez. Aquí está el sueño:
función trascendente e individuación.
El punto de partida del análisis de “Áporo” Estaba en una calle tranquila cuando
fue el sueño de un hombre de mediana edad, vi una tira atada de un poste a otro cru-
con una vida familiar, profesional y social conso- zando la calle, como si fuera un anuncio,
lidada. En la opinión de Jung, los sueños son una un aviso o un llamado para algo. La tira
manifestación natural que simboliza la psique era blanca, tenía unos 80 cm de alto y se
y hablan por sí mismos, sin pretender significar podía leer claramente su única palabra,
nada más. No pueden tomarse literalmente, y de- “ÁPORO”, escrita en mayúsculas negras.
ben interpretarse simbólicamente, siendo nece-
sario buscar un significado oculto en ellos. Son Al despertar, el soñador quedó intrigado por
creaciones psíquicas espontáneas y arbitrarias la palabra, desconocida para él hasta entonces,
provenientes del inconsciente, aparentemente pero que parecía real, dada la claridad con la
aleatorias, independientes de la voluntad del que estaba escrita. En Internet, encontró varias
individuo y que contrastan con los contenidos páginas que hacían referencia a su significado.
habituales de la conciencia, aunque no total- En particular, le llamó la atención la mención del
mente desconectados de ella. Existe una función poema Áporo. Su lectura lo devolvió a su labor
compensatoria en los sueños, y que contribuyen de psicoterapeuta, que le aportó una mezcla de
al equilibrio psíquico total. Admitiendo que en alegría y emoción. El soñador notó la presencia
los sueños hay signos de causalidad, Jung es- de elementos que podrían simbolizar algunos
tablece que en ellos hay tendencias objetivas, de los conceptos de la PA, con los que estaba
es decir, hay una función prospectiva (JUNG, algo familiarizado. En otras palabras, el sueño,
2002a; 2002b; 2007b). “Los sueños son poesía sincrónicamente, tenía perfecto sentido para su
emergente. Son creaciones que, partiendo de las proceso particular, especialmente porque esta-
profundidades de la psique, condensarán y ex- ba, en ese momento, intentando su arduo cami-
presarán en metáforas la vida inconsciente del no de autotransformación.
soñador” (HIMIOB, 2005, p. 137).
Por lo tanto, el objetivo de este trabajo es ana- Drummond, Áporo y sus significados
lizar el poema Áporo, señalando la posibilidad de Aquí está el poema (ANDRADE, 2000):

188 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.187-202

Um inseto cava cava sem alarme lo ve como anómalo, en el sentido de que pue-
perfurando a terra sem achar escape. de no estar inmediatamente en sintonía con el
Que fazer, exausto, em país bloqueado lector. “Hay en el poema una barrera lanzada al
enlace de noite raiz e minério? lector que, dada la extrañeza y complejidad de
Eis que o labirinto (oh razão, mistério) los signos en el poema, se encuentra de alguna
presto se desata: manera incapaz de interpretarlo directamente”
em verde, sozinha, antieuclidiana, (SAID, 2005 apud SOUZA, 2014, p. 7). Este breve
uma orquídea forma-se (p. 56). poema “es un enigma perfecto cuya complejidad
desafía la lectura crítica” (ARRIGUCCI JR., 2002,
Algo que ya se había dicho de este poema p. 76). Como veremos más adelante, es una obra
reverberaba en el soñador: “La primera impre- visionaria, como clasificaría Jung.
sión en realidad proviene de la fascinación por El análisis de este poema provocó muchas in-
lo desconocido que emana de esta rara y extra- terpretaciones que lo relacionan con el momento
ña palabra, despertando la curiosidad por lo histórico y político en que fue escrito en los cua-
que se esconde desde el principio” (ARRIGUCCI renta (Estado Novo, censura, espionaje, cerco de
JR., 2002, p. 78). Entonces la pregunta era: ¿qué libertades, incluidas las literarias) (ARRIGUCCI
significa áporo? JR., 2002; SOUZA, 2014), sobre todo al observar
Sorprendentemente, hay tres significados la segunda estrofa: “en un país bloqueado”, con
que ordenados aleatoriamente no conectan: gé- la orquídea verde como imagen de esperanza
nero de insectos himenópteros de la familia de por las transformaciones que ya se anuncia-
los excavadores; problema difícil o imposible de ban. Áporo aparece en el “año de la agonía del
resolver, sin salida, laberinto; y género de plan- nazi-fascismo y el Estado Novo (‘en un país blo-
tas de la familia de las orquídeas (AULETE, 1958). queado’), el año de la liberación de Luís Carlos
Además de estas definiciones, están los concep- Prestes (presto se desata), el año de todos los
tos de aporía y aporismo. La aporía en filosofía amaneceres” (PIGNATARI, 2004, p. 143).
significa dificultad para elegir entre dos opi- Según Arrigucci Jr. (2002, p. 81), la transfor-
niones igualmente racionales pero contrarias. mación del insecto en flor es imposible de obser-
Aporismo significa un problema que es difícil o var en la naturaleza; sin duda es “el resultado de
imposible de resolver en el campo de las Mate- un esfuerzo humano por cambiar”, refiriéndose
máticas (AULETE, 1958). En diferentes campos, al trabajo del poeta al encadenar las palabras
estos términos prácticamente evocan la imagen encontradas en el diccionario. Drummond fue
de una situación sin salida, de laberinto. capaz de dar sentido lógico a la secuencia de
significados dispares de la palabra áporo; “[...]
¿Qué dice el análisis literario? se establece una continuidad cohesiva entre tér-
Es uno de los “poemas más perfectos y creati- minos que en principio no solo eran completa-
vos, a nivel internacional y dentro de la tradición mente heterogéneos y divergentes, sino también
del verso post-Mallarmé1” (PIGNATARI, 2004, p. discontinuos” (ARRIGUCCI JR., 2002, p. 83). Se-
144). Es el 13o poema de A Rosa do Povo, y se- gún Talarico (2006, p. 97), en Áporo “hay varios
gún Secchin (2019), este es el libro más grande planos de significado que concurren en la cons-
de la fase más politizada del autor y celebrado trucción de significados. El corte descontextua-
con una de sus obras maestras más importan- lizado de uno de estos planos compromete la
tes. Este autor también menciona que al poema percepción de la dinámica procedimental entre
significantes y significados”.
1
Referencia a Stéphane Mallarmé, nombre literario de Étienne Gonçalves (2002, p. 84), al volverse hacia la
Mallarmé, poeta francés que forma parte del movimiento sim-
bolista y autor de Crisis de Verses. poesía de Drummond, mira hacia adentro, busca

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 189


Junguiana
v.39-2, p.187-202

la imagen, renunciando a lo convencional en la inconmensurabilidad, existe una estrecha co-


crítica literaria. Se refiere al poeta como un “al- nexión entre estos dos campos que requiere un
quimista del espíritu” y como un “arquitecto del análisis directo” (JUNG, 2007a, pár. 97). Especí-
silencio”, que logra “congregar los elementos ficamente sobre la obra de arte literaria, Jung ha-
de sensación y pensamiento para encontrar la bló “[...] sobre la fuerza imaginaria de la poesía,
armonía necesaria para la realización del pensa- aunque pertenece al dominio de la literatura y la
miento mediante la imagen”. Falta en el poema estética [...] pero la fuerza imaginaria es también
lo que no es poesía”. De esta manera, el poema un fenómeno psíquico” (pár. 74).
Áporo “parece realizar, en su propio cuerpo, un Dawson (2002) llama la atención sobre el
ejercicio de profunda ‘desencarnación’ del len- hecho de que el análisis de la obra de arte,
guaje en busca de lo esencial” (GONÇALVES, como el proceso psicoterapéutico, está guiado
2002, p. 88). por la teoría, pero que existe una tendencia de
Esta metamorfosis de insecto a flor, pasan- los críticos a proyectar sus propias visiones en
do por el laberinto de sombras, se reanudará el texto, perdiendo la posibilidad de que surja
más adelante al reflexionar sobre la evolución algo inesperado. “Un texto es un producto au-
de un individuo en los aspectos psicológicos, tónomo y debe ser respetado como tal” (DAW-
considerando la dimensión meta poética, y el SON, 2002, p. 240).
áporo como la representación del hombre mis- Al evaluar la relación entre sentido y signifi-
mo, como lo considera Sousa (2017, p. 60) al cación, la pregunta de Jung (2007a) puede pare-
referirse al poeta como el propio áporo, “ya ​​que cer paradójica: “¿El arte realmente ‘significa”? Y
Drummond insiste en escribir poesía en un país sigue ofreciendo su visión:
donde ya no se cree en la poesía: es un ‘país
bloqueado’”. Santos (2006) diagnostica que Quizás el arte ‘no signifique’ nada y no
Drummond se desplaza de sus pares contem- tenga ‘sentido’ [...] Quizás sea como la
poráneos, por lo que utiliza disfraces, máscaras naturaleza que simplemente es y no ‘sig-
heterónimas, en sus poemas, siendo Áporo una nifica’. ¿Es el ‘significado’ necesariamen-
de sus personas. te más que una simple interpretación
que ‘imagina más de lo que hay’ debido
Jung y la obra de arte a la necesidad de un intelecto ávido de
Teniendo en cuenta que la obra de arte y su sentidos? Se podría decir que el arte es
valor pertenecen a los críticos de arte, como bre- belleza y en esto se realiza y es autosu-
vemente más arriba se vio, y antes de iniciar el ficiente. No tiene por qué tener sentido
análisis del poema a la luz de los conceptos jun- (pár. 121).
gianos, es importante comentar la observación
o evaluación de obras de arte desde el punto de Jung recuerda que “la cuestión del significa-
vista de la PA, recordando que “la crítica literaria do no tiene nada que ver con el arte. Cuando se
jungiana busca explorar las posibles implicacio- habla de la relación entre la psicología y la obra
nes psicológicas de un texto literario” (DAWSON, de arte, ya estamos fuera del arte y no nos que-
2002, p. 240). En el contexto de la PA, la crítica da más que especular e interpretar para que las
contribuye a descifrar las imágenes simbólicas cosas adquieran sentido” (pár. 121). Admitiendo
que están presentes en la obra de arte ofrecien- este concepto, la aproximación al poema Áporo
do significados que no se comprenden fácilmen- es, ante todo, una especulación.
te (SILVEIRA, 1994). Jung define los procesos psicológicos y vi-
Jung consideró controvertida la relación entre sionarios al crear obras literarias. Las primeras
la obra de arte y la PA, pero “[...] a pesar de su son de fácil comprensión, sentidas por el lec-

190 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.187-202

tor, ya que abordan temas que fueron captados El poema y los contenidos de la psi-
por el alma del autor y que cautivan al lector, cología analítica
por sus vivencias relacionadas con las emo- La obra de arte en su amplia gama, que inclu-
ciones. Esta forma psicológica de crear está ye las obras literarias y su lenguaje poético, es
en consonancia con temas más apegados a la una de las formas en que el inconsciente se co-
conciencia y genera obras que suenan familia- munica con la conciencia. Según Coelho (2020,
res, e incluyen novelas policiales, familiares, p. 164), “la literatura es ciertamente un espacio
sociales, poemas líricos, tragedias y comedias privilegiado para la imaginación, la reflexión,
(JUNG, 2007a). “Es, finalmente, un destino hu- para revelar la complejidad humana […]”. El poe-
mano que la conciencia genérica conoce o al ma Áporo reúne en su desarrollo una secuencia
menos puede sentir” (pár. 139). Sin embargo, de hechos y situaciones que remiten a un proce-
aunque el lector puede ahondar en aspectos so de transformación, de metamorfosis, como se
del alma, “[...] los estudios psicológicos de observa en el camino del insecto a la orquídea.
estas obras nunca traen aportes importantes, Al comienzo de la ruta, el insecto cava la tierra;
pues el artista ya ha agotado su tema y segu- en su acción instintiva, trabaja silenciosamente,
ramente mejor que lo haría el psicólogo” (SIL- construye. Como buenos representantes de los
VEIRA, 1994, p. 168). En las obras visionarias insectos himenópteros, las hormigas y las abe-
hay una inversión; el tema y las experiencias jas simbolizan un trabajo fructífero y trabajan
no se conocen o no son fáciles de compren- con diligencia en la construcción de sus respec-
der. “Su esencia, extraña, de naturaleza pro- tivos hábitats y en el mantenimiento de la vida
funda, parece provenir de los abismos de una de quienes dependen de ellos; son insectos pro-
época arcaica, o de mundos sobrehumanos de veedores (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1986).
sombra y luz” (JUNG, 2007a, pár. 141). En este Aquí hay una analogía con lo que se espera
sentido, no parece precipitado aceptar el poe- que suceda en la primera mitad de la vida, cuan-
ma corto Áporo como una obra visionaria, por do el individuo satisface las demandas del ego
su profundidad. para proveer la vida. Siguiendo un camino nece-
Colonnese (2018) hace una valoración deta- sario para la independencia en todos sus aspec-
llada de la relación de Jung con la obra de arte tos, el individuo estudia, alcanza una profesión,
y explora en profundidad la presencia del arte logra estabilidad profesional, material, económi-
en la elaboración de la teoría jungiana. Este ca, constituye una familia, etc. En definitiva, está
autor afirma que la articulación entre obra de guiado por un ego capaz de promover esta etapa
arte y PA abre la posibilidad de contacto con el de la vida. Naturalmente, es una mirada al exte-
misterio, con lo que no es ni obvio ni conocido. rior, el objeto está fuera, lo que define genérica-
De la misma forma, Rodrigues y Moreira (2017) mente una etapa de vida extrovertida.
enfatizan la importancia de la literatura en la En esta etapa, “el período que va desde el
elaboración de experiencias psíquicas, tanto nacimiento hasta la mediana edad, el individuo
para el escritor como para el lector, aunque estaría en contacto con lo que Jung llamó meta
este último no tenga pretensiones analíticas natural” (GRINBERG, 1997, p. 175). El éxito de
o interpretativas. Los autores observan cómo su trabajo le otorga reconocimiento; al mundo
el arte se mezcla con el mundo interior y pue- exterior, su persona está bien adaptada, ajus-
de contribuir al proceso de individualización. tada al colectivo, condición necesaria para el
Barcellos (2004) refiere que el artista se abre crecimiento psicológico. Sin embargo, sigue
a lo nuevo, a lo poco convencional y enfatiza cavando, aparentemente, en la búsqueda de lo
la importancia del esfuerzo por la apreciación que puede llegar a ser lo más importante en una
simbólica e imaginaria. segunda etapa de la vida, es decir, aspectos

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 191


Junguiana
v.39-2, p.187-202

orientados a la interioridad, para la “meta cultu- una breve incursión en el campo de la psicolo-
ral que concierne más a cuestiones inconscien- gía y sugiere un laberinto simbólico, alcanzado
tes que conscientes” (GRINBERG, 1997, p. 175). por el insecto con su pequeña excavación. Pinto
Considerando que el proceso de individuación (2015) comenta que el hombre se siente atraído
se da a lo largo de la vida del individuo, aunque inconscientemente por el desafío que impone
este no sea consciente de ello, en esta etapa de el laberinto, y perderse en él expone la oportu-
la vida, existe una tendencia a una actitud más nidad de reencontrarse a sí mismo, una especie
introvertida, que en cierta medida debe colabo- de renacimiento personal. De esta manera, más
rar con el proceso de búsqueda del sentido de tarde se encontraría en una forma más completa
la vida. Por lo tanto, es necesario mirar hacia y duradera. Para este autor, no hay nada más efi-
adentro, ¡a las raíces! caz para este propósito que el laberinto.
“Para crecer, la planta primero necesita echar “El descenso a una cueva, gruta o laberinto
raíces en el suelo” (GRINBERG, 1987, p. 175). Hi- simboliza la muerte ritual, de tipo iniciático [...],
llman utilizó la metáfora de las raíces: “Y fue, que puede llevar al individuo a sus orígenes y,
como sigue siendo, para llegar a las raíces del por tanto, a una transformación [...]. El iniciado
sufrimiento, el sufrimiento inconsciente, el sufri- se convierte en otro” (BRANDÃO, 1986, p. 56).
miento del inconsciente, desde las raíces” (HI- El laberinto alberga al monstruo minotauro que
LLMAN, 1987, p. 4-5), y definió a Jung como un puede representar, desde un punto de vista psi-
“radical, en el verdadero sentido de la palabra cológico, los aspectos oscuros de la psique, los
[...] porque se remonta a los radices, las raíces, aspectos inconscientes, los complejos. Santos y
los archai [...]” (HILLMAN, 1987, p. 4). En este la- Ribeiro (2019) analizaron conceptos jungianos
berinto subterráneo, en la oscuridad de la exca- en el poema Noche Oscura, escrito por el es-
vación, están las raíces. pañol San Juan de la Cruz, y destacaron la pre-
sencia del laberinto, y que en su “centro mítico/
Estos archai revierten las adaptaciones simbólico siempre hay algo secreto, poderoso,
híbridas y las convenciones colectivas a precioso y sagrado [...].” Chevalier e Gheerbrant
algo más antiguo, más profundo y más (1986, p. 621) señala que “El laberinto conduce
esencial. Estas raíces no se ajustan; pro- también al interior de sí mismo, a una especie de
testan contra las adaptaciones. Las raí- santuario interior y escondido, donde reside lo
ces atraviesan cualquier capa de injerto, más misterioso de la persona humana”.
cualquier expectativa, insistiendo en tor- Así, es posible especular un poco más sobre
cer a su manera por los caminos abiertos este laberinto oscuro. “¿Qué es esta oscuridad
para ellas. Para tener razón, deben des- abajo, esta oscura metáfora [...] que puede tra-
viarse (p. 4). garse el ego?” (HOLLIS, 2005, p. 85). En este
subterráneo es necesario gastar una gran can-
Seguir cavando significa bajar a las profundi- tidad de energía para buscar el contenido del
dades, entrar en contacto con la situación asfi- inconsciente tan intacto, Jung (2000) se refiere
xiante del subsuelo, con las raíces, con la dureza a la sombra como un problema de orden moral,
de los minerales, con la oscuridad, con el nigre- el lado oscuro de la personalidad confrontada,
do alquímico, con el Arcanum, es decir, con el “[...] es un cañón, un portal estrecho, cuya pe-
misterio, que es oscuro (JUNG, 2016). “[...] sem nosa exigüidad no perdona a quien desciende
achar escape. Que fazer, exausto, em país blo- al pozo profundo” (JUNG, 2008, pár. 45). Es
queado, enlace de noite raiz e minério? Eis que como la segunda personalidad en palabras de
o labirinto (oh razão, mistério) [...]”. En su pro- Sanford (2004), compuesta por atributos recha-
fundo análisis literario, Arrigucci Jr. (2002) hace zados y complejos que contradicen los ideales

192 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.187-202

del ego, muchas veces solo vistos por otros. To- y la vida puede tomar otro sentido, emergiendo
mar conciencia de la sombra, es decir, recono- al mundo exterior, ahora basada en procesos in-
cer estos aspectos oscuros de la personalidad, ternos, sobre cimientos basados en valores dis-
es fundamental para la tarea del autoconoci- tintos a su construcción, la producción, la acu-
miento, a pesar de las resistencias, en general mulación, necesarios y presentes en la primera
asociadas a proyecciones, “[...] no reconocidas etapa de la vida, ¡como lo hacen los insectos ca-
como tales y cuyo conocimiento implica un es- vadores! El desarrollo y la conclusión del poema
fuerzo moral que supera los límites habituales hacen referencia a un enfoque que reconoce la
del individuo” (JUNG, 2000, pár. 16). A pesar de posibilidad de integrar contenidos del incons-
eso, “[...] no es difícil, con cierto grado de auto- ciente a la conciencia. En realidad, se trata de un
crítica, percibir la propia sombra, ya que es de proceso continuo e interminable de progresión
carácter personal” (pár. 19), y que gravita cerca y regresión de la energía psíquica, en el que se
de la conciencia. Según Withmont (2010), cuan- espera que el equilibrio sea positivo.
do la vida se vuelve estéril y hay un impasse en Del necesario encuentro entre conciencia e
ella, la solución está en el lado oscuro, donde inconsciente, entre insecto y laberinto, “[...] em
vive la fuente de renovación. verde, sozinha, anti-euclidiana, uma orquídea
Sin embargo, el escenario sin salida es inevi- forma-se [...]”, y ahí reside una gran posibilidad
table; no hay “poros”. El laberinto es intrincado, de significados. Inicialmente, cabe destacar el
con muchos percances, que parecen marcar el fi- color verde, que aunque inconscientemente está
nal de la línea, el estancamiento motivado por el presente simbólicamente como el color de la es-
miedo a esta oscuridad y la duda sobre el camino peranza (JUNG, 2000), “el verde como el color de
a seguir. De esta forma, es necesario luchar con la vida [...] el color del Creator Spiritus” (JUNG,
firmeza contra este estancamiento y superar los 1986, pár. 678). Anti-Euclidiana se refiere a Eucli-
aspectos aterradores de la sombra, la oscuridad des, un matemático sirio-griego considerado el
interior, no revelada, invisible a la conciencia. padre de la geometría, y esta expresión remete a
Lo invisible lleva la posibilidad del devenir formas no exactas, no rígidas, y por lo tanto más
del individuo, lo que también equivale a decir flexibles, más maleables, algo necesario para el
que ella, la sombra, no es exclusivamente la camino de la autotransformación.
encarnación del mal; no es ni mala ni buena y Si, por un lado, cultural y tradicionalmente,
puede contener tesoros, habilidades o cualquier las flores están más ligadas a lo femenino, por
aspecto positivo que de alguna manera fue re- otro lado, la orquídea aquí simboliza una flor
primido, nunca expresado y no tuvo oportunidad masculina. Orquídea deriva del griego όρχις (ór-
de brillar (ROBERTSON, 1997). El potencial posi- khis) que significa testículo, y ειδος (eidos), as-
tivo ha sido devaluado en exceso o reprimido y pecto, forma, en referencia a la forma de los dos
el individuo se identifica con el lado negativo; su pequeños tubérculos que tienen las especies del
potencial positivo se convierte en una sombra y género Orchis (ORQUÍDEA, 2021). La familia de
debe integrarse (WITHMONT, 2010). Además de las orquídeas es la mayor de las angiospermas,
los “muchos monstruos, a veces hay tesoros, y del griego angeos – bolsa y sperma – semilla, es
siempre algo útil” (HOLLIS, 2005, p. 85). Como decir, son plantas espermatofitas cuyas semillas
otros arquetipos, la sombra es una estructura están protegidas por una estructura llamada fru-
bipolar que presenta “[...] aspectos creativos y to (ANGIOSPERMA, 2020). Esa orquídea verde de
estructuradores y no solo los aspectos negativos Drummond pode ser un Aporostylis Bifolia, “una
y destructivos” (GRINBERG, 1997, p. 141). especie de orquídea cubierta de pelos glandula-
Con un diálogo directo y honesto con estos res, con pequeños tubérculos ovoides, que dan
aspectos, “[...] o labirinto presto se desata [...]”, lugar a tallos cortos, erectos [...] con marcas roji-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 193


Junguiana
v.39-2, p.187-202

zas e inflorescencia terminal” (APOROSTYLIS BI- contenidos y procesos inconscientes, ya que la


FOLIA, 2019), ¡realmente una flor masculina! conciencia siempre está expuesta al riesgo de la
Necesario se hace la integración de las cua- unilateralidad […], y detenerse en un callejón sin
lidades femeninas del hombre (presentes en el salida” (pár. 40), es decir, permanecer o volver
arquetipo del anima) en este hombre-flor y de al laberinto.
las cualidades masculinas de la mujer flor (pre- Los aspectos del anima son de fundamental
sente en el arquetipo del animus), femenina por importancia para el proceso de individuación,
naturaleza. Masculino y femenino que se unen; para el autoconocimiento, y en general estas
un masculino que permite la presencia de lo transformaciones en la vida del individuo ocu-
femenino y viceversa; un masculino flexible an- rren de manera más productiva en la segunda
ti-euclidiano y un femenino firme pero flexible. mitad de la vida. El anima produce “un ablan-
La orquídea también simboliza la fertilización, damiento y un debilitamiento fisiológico y social
la perfección y la pureza espiritual (CHEVALIER, hacia lo femenino” (HILLMAN, 1985, p. 25). Sin
GHEERBRANT, 1986). A pesar de lo anterior, ha- embargo, el anima puede presentarse de mane-
brá algunos comentarios referidos exclusiva- ra diferente, o reducir gradualmente su partici-
mente al anima, ya que esta obra fue motivada pación, y esto puede llevar al individuo al des-
por el sueño y proceso de autoconocimiento de ánimo, con pérdida de vitalidad y flexibilidad. El
un hombre, además de que el poema también resultado es la aparición de formas rígidas, de
fue producido por un hombre. unilateralidad e incluso pedantería, o descuido
El anima, como otros arquetipos, es una con uno mismo (JUNG, 2008). Por tanto, en esta
estructura bipolar, que se opone a la persona etapa de la vida, es imperativo prestar atención
(JUNG, 2008). No es una tarea fácil para un a aspectos del inconsciente y que el individuo
hombre integrar los aspectos de su inconscien- trate de reconectarse “[...] con la esfera de la ex-
te femenino en la conciencia, incluso dada la periencia arquetípica” (pár. 147).
mayor profundidad en el inconsciente, en com- Antes de continuar con la visión tradicional
paración con los aspectos oscuros. Sus realida- del anima, conviene destacar algunas consi-
des psíquicas, presentes sólo en las proyeccio- deraciones que revisan su concepto y función,
nes, nunca han sido accedidas hasta ahora; por más allá del mero aspecto contrasexual. Existe
esta razón, la tarea de encontrar el anima es tan una “dificultad con los conceptos indiferencia-
desafiante que Jung dice: “Si la confrontación dos del anima mayor que su propia naturaleza”
con la sombra es obra del aprendiz, la confron- (HILLMAN, 1985, p. 15), y que “difícilmente po-
tación con el anima es la obra maestra. La rela- demos atribuir anima sólo al sexo masculino.
ción con el anima es otra prueba de coraje, una Lo femenino es tan importante para las mujeres
prueba de fuego para las fortalezas espirituales como para los hombres, ya que el anima se ex-
y morales del hombre” (pár. 61). Como el anima perimenta como una interioridad personal, se
también pertenecería a la función inferior, mu- vuelve hacia adentro y lleva “nuestro devenir
chas veces se manifiesta de forma oscura y “a individualizado” (p. 29). El anima como imagen
menudo tiene un carácter moral dudoso” (JUNG, del alma se vería mejor como un proyector que
1991, pár. 192). como una proyección, convirtiéndose así en “el
Por lo tanto, vale la pena mencionar una ad- conductor primordial de la psique, o el arqueti-
vertencia inicial de Jung (2000), que a pesar de po de la psique misma” (p. 83), de la llamada
los contenidos integrados del anima pueden psicológica.
volverse conscientes, pueden escapar de él y En su digresión sobre el ensueño, Bachelard
volverse autónomos. Importante “[...] prestar (1996) también se mostró reticente sobre la di-
atención continua a la sintomatología de los visión de la psique, “ante el uso de la dialéctica

194 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.187-202

animus-anima en la psicología actual [y que] el la imagen arquetípica de la divina pareja unida


ensueño es, tanto en hombres como en muje- (p. 183). Además de la relación interpersonal,
res, una manifestación del anima” (BACHELARD, “esta sicigia interna anima-animus de cualquier
1996, p. 60), la presencia necesaria de la femi- mujer o cualquier hombre significa una relación
nidad en la psique humana. Este autor, sin em- intrapsíquica” (p. 189). Volviendo a Bachelard
bargo, reconoce la efectividad de la visión con- (1996), la conjunción animus-anima reside “en
trasexual de Jung en sus estudios alquímicos, y lo más profundo de cada alma” (p. 79), que ma-
también según Jung, “en ellos mismos, anima terializa psicológicamente al ser andrógino con
y animus pueden no representar ningún género su potencial para realizar lo superfeminino y lo
específico” (HILLMAN, 1985, p. 189). supermasculino (BACHELARD, 1996).
Para Bachelard (1996), el reposo y el refugio Aquí, se especula y se explora la conjunción
de una vida sencilla y serena se encuentra en el que puede representar esta orquídea-símbo-
fondo del anima de todo ser humano, hombre o lo. Quizás sin darse cuenta, inconscientemen-
mujer. “Lo mejor de nuestras ensoñaciones pro- te, Drummond introdujo explícitamente en su
viene, en cada uno de nosotros, hombre o mujer, flor, este misterio de conjunción (oh razão,
de nuestro ser femenino. Si no albergamos a un mistério), el mysterium coniunctionis que Jung
ser femenino en nosotros mismos, ¿cómo des- buscó exhaustivamente en los postulados de
cansaríamos?” (BACHELARD, 1996, p. 88). la alquimia para su psicología. Esta unión de
Habiendo hecho estas consideraciones, y ob- sustancias desiguales (insecto y laberinto) es
servando, como se dijo anteriormente, este pro- fundamental para la formación del ser uno (or-
ceso en los hombres, se puede decir que la pre- quídea), y se daría en tres etapas. Inicialmente,
sencia de aspectos femeninos en los hombres la unión mental intrapsíquica (unio mentalis)
es una necesidad psicológica para el proceso de del espíritu con el alma, de la razón [¡oh razão!]
individuación. Sin embargo, un asunto de funda- con Eros, representante del sentimiento (JUNG,
mental importancia es que “[...] sería engañoso 2016). Vale la pena prestar atención a la corres-
referirse al ‘lado femenino’ de un hombre, ya que pondencia de esta etapa con el “[...] enfrenta-
el anima es en realidad una parte necesaria de miento de la conciencia (es decir, de la perso-
lo que significa ser un hombre” (HOLLIS, 2008, nalidad del yo) con lo que está en el fondo de
p. 137), y siendo femenina, produce la compen- la escena, la llamada sombra [...]” (pár. 366), y
sación de la conciencia masculina. “El hombre a partir de ahí comienza la individuación cons-
en el que el principio femenino estuviera com- ciente. En la segunda etapa, esta unión se vin-
pletamente ausente sería un ser abstracto [...]” cula al cuerpo, fusión necesaria para el camino
(SANFORD, 2004, p. 12). de la individuación, para la experiencia real de
Como complejo autónomo e inconsciente, la unión del espíritu y el alma.
el anima necesita ser visitada y transformada Esta etapa “[...] consiste en la realización
en una función de relación con la conciencia y del hombre, que está aproximadamente infor-
perder su poder demoníaco, e poder de pose- mado sobre su totalidad paradójica” (pár. 341).
sión (JUNG, 2007b). “No hay hombre tan exclu- Posteriormente, para consumar el misterio de la
sivamente masculino que no tenga en sí algo conjunción, este triunvirato debe vincularse al
femenino” (p. 297). Esta sicigia es el matrimonio mundo único (unus mundus), tarea de mayor ilu-
sagrado (hieros gamos) que crea lo andrógino a minación, difícil de lograr para el hombre común.
nivel psicológico (ANTHONY, 1998). Edinger (2008, p. 22) considera “[...] que la co-
Esto significa sobre todo que el animus tam- niunctio, y el proceso que la crea, representa la
bién actúa en los hombres (HILLMAN, 1985, p. creación de la conciencia, que es una sustancia
189), y que esta sicigia animus-anima conforma psíquica perdurable”.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 195


Junguiana
v.39-2, p.187-202

Aquí algunos aspectos son fundamentales; la cen inertes. En esta etapa, la conducción
orquídea se forma en sí misma, y ​​este hecho se del proceso ya no es con el inconsciente,
refiere al tema de la responsabilidad que debe sino con el ego (JUNG, 2002a, pár. 189).
tener cada individuo con respecto a sus opcio-
nes, la percepción de la llamada y los caminos Por tanto, dejando la tierra por la luz, esta or-
a seguir; es responsabilidad del individuo y no chis hace (re)nacer el himenóptero, metamorfo-
del otro; ni el papel de víctima ni los procesos seado, ya no excavando, sino apuntando hacia
de culpa, de uno mismo o de los demás, son arriba. A partir de este enfrentamiento, el proceso
aceptables. El proceso de autotransformación comienza a ser conducido por el yo estructurado,
constituye un camino individual, en el que el in- capaz de mantener el equilibrio energético con el
consciente da paso a la conciencia, y de ahí este inconsciente, sin intentar driblarlo o abrumarlo.
proceso se convierte en meta. Sin embargo, se advierte que la obediencia ciega
La orquídea, a pesar de la inhospitalidad, o al yo hace que el individuo evite la tarea de la
quizás por ella, se integra consigo misma, unien- autotransformación. Según Jung (2016) siempre
do contenidos conscientes e inconscientes en sí habrá justificaciones de orden moral y racional,
misma, la sicigia animus-anima. Este nuevo “[...] pero como el si-mismo se extiende a todos la-
producto encarna el anhelo de luz, por parte dos, el individuo puede convertirse en víctima de
del inconsciente, y de sustancia, por parte de la una decisión independientemente de su razón o
conciencia” (JUNG, 2002a, pár. 168), necesarios sentimiento. Esto significa que la experiencia del
para el diálogo interior. En esta circunstancia, la si-mesmo prevaleció sobre el yo, lo derrotó.
orquídea alberga la fusión necesaria, sugiriendo En la conformación del sí mismo “[...] el yo
el papel de la función psicológica trascendente no se opone ni se somete, sino que simplemen-
como proceso de formación de símbolos. “Se le te se une, girando, por así decirlo, alrededor de
llama trascendente porque posibilita orgánica- él como la tierra alrededor del sol: alcanzamos
mente el paso de una actitud a otra, sin perder la meta de la individuación” (JUNG, 2007b, pár.
el inconsciente” (JUNG, 2002a, pár. 145). Aquí 405). Es el proceso consciente de transformación
se puede evocar la figura del uroboro en la al- de la personalidad, cuyo “objetivo no es otro que
quimia griega, “[...] el símbolo por excelencia de despojar al sí mismo de las falsas envolturas de
la unión de los contrarios y la representación al- la persona” (pár. 269). Individuación, por tan-
química palpable de la expresión proverbial: los to, significa “[...] llegar a ser un ser único, en la
extremos se encuentran” (JUNG, 2016, pár. 375). medida en que por ‘individualidad’ entendemos
la singularidad más íntima, última e incompara-
El enfrentamiento entre posiciones con- ble, significando también que nos convertimos
trapuestas genera una tensión cargada en nosotros mismos [...] o la realización de uno
de energía que produce algo vivo, un ter- mismo” (pár. 266). Nótese que los contenidos
cer elemento que no es un aborto lógico inconscientes integrados son parte del sí mismo,
[...] no hay un tercer miembro, sino un y su “[...] asimilación no solo amplía los límites
desplazamiento de la suspensión entre del campo de la conciencia sino también el signi-
opuestos, que conduce a un nuevo nivel, ficado del yo [...]” (JUNG, 2000, pár. 43). “Es por
siendo una nueva situación. La función ello que la individuación es un ‘mysterium co-
trascendente aparece como una de las niunctionis’ [misterio de unificación], dado que
propiedades características de los opues- el sí mismo se percibe como una unión nupcial
tos aproximados. Mientras se mantengan de dos mitades antagónicas [...]” (pár. 117).
separados entre sí, evidentemente para A veces, uno confunde la individuación con el
evitar conflictos, no funcionan y permane- individualismo, en el sentido de egoísmo. Es de

196 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.187-202

destacar que, dado que el individuo no es un ser requiere siempre más y más nuevas adaptacio-
único, sino que también presupone una relación nes, porque ninguna adaptación es definitiva”
colectiva para su existencia, su objetivo no es (JUNG, 2002a, pár. 143). La tarea no es fácil y
aislarse, sino que, por el contrario, reconocien- el hombre nunca logrará la totalidad psíquica
do y respetando su individualidad, se espera empírica, ya que “[...] la conciencia es demasia-
que interactúe y contribuya al colectivo (JUNG, do estrecha y unilateral para abarcar el inven-
2007b). “La individuación no excluye al mundo; tario completo de la psique” (JUNG, 2016, pár.
al contrario, lo engloba” (JUNG, 2002a, pár. 432). 413). Jung afirma que el hombre moderno debe
Para comprender al otro, es necesario conocerse aprender de la experiencia, de la manera más
a uno mismo, tener una relación con uno mismo, sencilla posible. El problema, según él, es que
lo cual es fundamental para distinguirse del otro, lo simple es lo más difícil, pero que el mundo
del colectivo, aunque tengan una imagen distor- único es simple (JUNG, 2016).
sionada de sí mismos (JUNG, 2016). Finalmente, cabe destacar la interesante ob-
Jung (2000) advierte sobre la importancia servación de Rodrigues y Moreira (2017) sobre el
de no negarse este llamado, debido al peligro proceso de autotransformación de Drummond al
que representa una individuación reprimida. analizar las dos fases de su producción:
El proceso es doloroso, pero es mejor pasar
conscientemente, y entregarse al descenso al [...] Drummond poco a poco empieza a
pozo profundo, “[...] adoptando todas las pre- abrirse al mundo y darse cuenta del su-
cauciones necesarias, que arriesgarse a caer frimiento de esto. Empieza a percibirse
de espaldas por el agujero” (pár. 125). En este a sí mismo más pequeño que el mundo,
camino habrá errores y aciertos, y “[...] tam- quizás porque ve la conexión con la to-
bién es necesario aceptar el error, sin el cual talidad, quizás deshaciendo una sobre-
la vida no será completa”. No hay camino se- identificación con el ego. Al deshacer la
guro; “[...] este sería el camino de los muertos. inflación del ego, el poeta abandona la
Quien sigue el camino seguro está como muer- posición de impotencia generada por la
to” (JUNG, 2006, pár. 345). idealización de lo que debería ser. En su
El proceso es continuo, y siempre hay que mi- fase social, marcada por la voluntad del
rar en la oscuridad, a la piedra tosca desechada poeta de participar y tratar de transformar
que allí se esconde, para observarla día tras día: el mundo, Drummond muestra una mayor
percepción de potencia: “¡Oh vida futura!
[...] hasta que tus ojos se abran o, como te crearemos” (p. 68).
dicen los alquimistas, que aparezcan los
oculi piscium (ojos de pez) o las scintillae,
las chispas luminosas, en la solución os- Consideraciones finales
cura. Los ojos de pez están siempre abier- Este trabajo presenta brevemente algunos
tos, por lo que siempre deben ver, por eso de los conceptos de la PA simbolizados en los
los alquimistas los utilizan como símbolo elementos presentes en el poema Áporo de
de atención permanente (pár. 406). Drummond. Un insecto se metamorfosea en una
orquídea después de pasar por el laberinto. Por
Frente a la realidad habrá retrocesos; es ne- lo tanto, tienes un áporo (insecto) que está en
cesario siempre revisar las fallas, que son “los un áporo (laberinto), pero que finalmente se
puntos ciegos en tu campo visual psíquico” convierte en un áporo (orquídea). Este camino,
(pár. 413) y comenzar de nuevo. Jung advierte obviamente imposible en la vida biológica, es
que la vida sigue continuamente su flujo, y “[...] paralelo a la vida psicológica de un individuo

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 197


Junguiana
v.39-2, p.187-202

que camina conscientemente hacia la autotrans- cidad, en función de la ocurrencia no causal y


formación, la individuación, especialmente al simultánea del sueño y el momento del soñante,
observar la solución final del poema, es decir, la quien se reveló afectado emocionalmente.
formación de la orquídea, que en este análisis Finalmente, también vale la pena recordar
representó las posibilidades de unificación de la importancia de los sueños en el proceso de
contrarios. Esta orchis anti-euclidiana expresa transformación de un individuo, evidentemente
un no a las formas rígidas y autoritarias, y un sí si se presta atención a los hechos de la vida co-
a la flexibilidad, maleabilidad, la vía intermedia. tidiana, sean los propios sueños, las imágenes,
El poema Áporo, una obra literaria visionaria, la expresión artística y muchos otros. Si es muy
en su totalidad, además de sus partes, es en sí importante saber lo que quieres de la vida, qui-
mismo un símbolo, y cada uno de estos tres ápo- zás sea más importante, como dice Jung, cues-
ros es un símbolo único que permitió el vínculo tionar siempre lo que la vida quiere de todos.
con elementos fundamentales de la PA, a saber, Es responder al “para qué” y no al “por qué”, al
el ego/persona (insecto), la sombra (laberinto), observar lo cotidiano. Al Áporo corresponde a un
el anima y las integraciones de posibles opues- Póros. De esta manera, la visión prospectiva y
tos (orquídea). Esto permitió contextualizar los consciente, no la reductiva, toma la dirección. ■
conceptos de función trascendente, el sí mismo
y la individuación. Además de estos, se puede Recibido: 17/08/2021 Revisado: 01/11/2021
inferir del contexto, el fenómeno de la sincroni-

198 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.187-202

Resumo
O Áporo de Drummond: um olhar junguiano
Jung deu muita atenção à produção artística, dos por críticos da literatura brasileira. O poe-
incluindo a literária, enfatizando o seu poten- ma contém elementos simbólicos que remetem
cial para revelar conteúdos do inconsciente. A a um paralelismo com os arquétipos descritos
motivação para este trabalho surgiu a partir do por Jung no âmbito da psicologia analítica,
sonho de um homem de meia idade, no qual a como ego/persona, sombra, anima/animus e o
palavra áporo, desconhecida para ele, apare- si-mesmo. Portanto, o objetivo deste trabalho
ceu claramente. A busca pelo significado des- foi descrever e analisar os aspectos simbólicos
sa palavra o levou ao poema Áporo de Carlos do poema, e concluiu-se que sua progressão
Drummond de Andrade, um dos mais analisa- sugere um processo de individuação. ■

Palavras-chave: poesia, áporo, literatura, individuação, Carlos Drummond de Andrade.

Abstract
Drummond’s Áporo: a jungian look
Jung paid a lot of attention to artistic pro- Brazilian literature. The poem contains sym-
duction, including the literary, emphasizing bolic elements which refer to a parallel with
its potential to reveal contents of the uncon- the archetypes described by Jung in the scope
scious. The motivation for this work arose from of analytical psychology, such as ego/persona,
a middle-aged man’s dream, in which the word shadow, anima/animus and Self. Therefore, the
áporo, unknown to him, clearly appeared. The objective of this work was to describe and to an-
search for the meaning of this word led him to alyze the symbolic aspects of the poem, and it
the poem Áporo by Carlos Drummond de An- was concluded that its progression suggests an
drade, one of the most analyzed by critics of individuation process. ■

Keywords: poetry, áporo, literature, individuation, Carlos Drummond de Andrade.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 199


Junguiana
v.39-2, p.187-202

Referencias
ANDRADE, C. D. Áporo. In: ANDRADE, C. D. A rosa e o GONÇALVES, A. J. Arquitetura do silêncio. Revista USP,
povo. 21. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2000. p. 56. São Paulo, n. 53, p. 83-8, mar./maio 2002.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i53p83-88
ANGIOSPERMA. In: WIKIMEDIA FOUNDATION. Wikipédia:
a enciclopédia livre. San Francisco, CA, 2020. Disponível GRINBERG, L. P. Jung: o homem criativo. São Paulo, SP:
em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Angio- FTD, 1997.
sperma&oldid=59435722>. Acesso em: 16 jun. 2021.
HILLMAN, J. A herança daimonica de Jung.
ANTHONY, M. As mulheres na vida de Jung. Rio de Janeiro, Florianópolis, SC: Núcleo Jungiano, 1987. Disponível em:
RJ: Rosa do Tempos, 1998. <https://www.jungflorianopolis.com/livros>. Acesso em:
24 jun. 2021.
APOROSTYLIS BIFOLIA. In: WIKIMEDIA FOUNDATION. Wikipédia:
a enciclopédia livre. San Francisco, CA, 2019. Disponível em: _______. Anima: anatomia de uma noção personificada.
<https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Aporostylis_bifo- São Paulo, SP: Cultrix, 1985.
lia&oldid=56231885>. Acesso em: 16 jun. 2021.
HIMIOB, G. La poética del sueño y las metáforas del sufrim-
ARRIGUCCI JR., J. R. Coração partido: uma análise da poesia iento. Junguiana, São Paulo, n. 23, p. 137-41, 2005.
reflexiva de Drummond. São Paulo, SP: Cosac & Naify, 2002.
HOLLIS, J. Mitologemas: encarnações do mundo invisível.
AULETE, C. Dicionário contemporâneo da língua portugue- São Paulo, SP: Paulus, 2005.
sa. Vol. 1. Rio de Janeiro, RJ: Delta, 1958.
_______. Sob a sombra de saturno: a ferida e a cura dos
BACHELARD, G. A poética do devaneio. 5. ed. São Paulo, homens. 3. ed. São Paulo, SP: Paulus, 2008.
SP: Martins Fontes, 1996.
JUNG, C. G. A natureza da psique. 6. ed. Petrópolis, RJ:
BARCELLOS, G. Jung, junguianos e arte: uma breve apreciação. Vozes, 2002a. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 8/2).
Pro-Posições, Campinas, v. 15, n. 1, p. 27-36, jan./abr. 2004.
_______. Aion: estudo sobre o simbolismo do si-mesmo.
BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. Vol. 1. Petrópolis, RJ: 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. (Obras Completas de C.
Vozes, 1986. G. Jung, v. 9/2).

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Diccionario de los símbo- _______. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro, RJ:
los. Barcelona: Herder,1986. Nova Fronteira, 2006.

COELHO, M. M. Identidade, duplo e imaginação ativa: _______. Mysterium coniunctionis. 3. ed. Petrópolis, RJ:
leitura do conto distante de Cortázar. Junguiana, São Paulo, Vozes, 2016. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 14/2).
v. 38, n. 1, p. 153-66, jan./jun. 2020.
_______. O espírito na arte e na ciência. 4. ed.
COLONNESE, L. R. Jung e arte: a obra em contínuo devir. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007a. (Obras Completas de C. G.
2018. 158 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) — Insti- Jung, v. 15).
tuto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo,
SP, 2018. _______. O eu e o inconsciente. 20. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2007b. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 7/2).
DAWSON, T. Jung, literatura e crítica literária.
In: YOUNG-EISENDRATH, P.; DAWSON, T. (Orgs.). Manual _______. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro, RJ:
Cambridge para estudos junguianos. Porto Alegre, RS: Nova Fronteira, 2002b.
Artmed, 2002. p. 239-59
_______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed.
EDINGER, E. F. O mistério da coniunctio: imagem alquímica Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. (Obras Completas de C. G.
da individuação. São Paulo, SP: Paulus, 2008. Jung, v. 9/1).

200 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021


Junguiana
v.39-2, p.187-202

_______. Psicologia e alquimia. 4. ed. Petrópolis, RJ: SECCHIN, A. C. Drummond: poesia e aporia.
Vozes, 1991. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 12). In: MACHADO, A. M. (Coord.). Ciclo de conferências
cadeira 41. Rio de Janeiro, RJ: Academia Brasileira de
_______. Símbolos da transformação. 4. ed. Petrópolis, RJ: Letras, 2018. disponível em: <https://www.academia.org.
Vozes, 1986. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 5). br/videos/ciclo-de-conferencias/drummond-poesia-e-apo-
ria>. Acesso em: 10 jun. 2021
ORQUÍDEA. In: WIKIMEDIA FOUNDATION. Wikipédia: a
enciclopédia livre. San Francisco, CA, 2021. Disponível em: SILVEIRA, N. Jung vida e obra. 14. ed. Rio de Janeiro, RJ:
<https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Orqu%C3%AD- Paz e Terra, 1994.
dea&oldid=6131879>. Acesso em: 16 jun. 2021.
SOUSA, G. O. O discurso social na metapoesia
PIGNATARI, D. Contracomunicação. 3. ed. Cotia, SP: Drummondiana: um estudo comparativo dos
Ateliê, 2004. metapoemas nas obras Alguma Poesia, A Rosa do
Povo e Claro Enigma. 2017. 81 f. Dissertação (Mestrado
PINTO, L. F. M. A simbologia e os enigmas do labirinto. Revis-
em Teoria da Literatura) — Universidade Federal de
ta Arquitetura Lusíada, Lisboa, n. 8, p. 29-48, jul./dez. 2015.
Pernambuco, Recife, PE, 2017.
ROBERTSON, R. Sua sombra. São Paulo, SP: Pensamento, 1997.
SOUZA, D. S. As vozes metapoéticas que se reinventam
RODRIGUES, I. P.; MOREIRA, F. G. Elaboração das vivências em a rosa do povo. In: ENSINO DE LITERATURA E
psíquicas: o papel da literatura. Junguiana, São Paulo, v. POLÍTICA DE FORMAÇÃO DE LEITORES, 5., 2014,
35, n. 1, p. 61-70, jun. 2017. Campina Grande. Anais... Campina Grande: Realize,
2014. Disponível em: <http://www.editorarealize.com.br/
SANFORD, J. A. Os parceiros invisíveis: o masculino e o index.php/artigo/visualizar/5876>. Acesso em:
feminino dentro de cada um de nós. 8. ed. São Paulo, SP: 10 jun. 2021 
Paulus, 2004.
TALARICO, F. B. F. História e poesia: texto e contexto
SANTOS, A.; RIBEIRO, M. G. A “noite escura da alma” no labir- em a rosa do povo (1943-1945), de Carlos Drummond
into do ser poético. Téssera, Uberlândia, v. 2, n. 1, p. 66-87, de Andrade. 2006. 300 f. Dissertação (Mestrado em
dez. 2019. https://doi.org/10.14393/TES-v2n1-2019-50869 História Social) — Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
SANTOS, G. S. O jogo da escrita poético-filosófica de Drum- SP, 2006.
mond em sua produção em verso e prosa. 2006. 140 f.
Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) — Universidade WITHMONT, E. C. A busca do símbolo: conceitos básicos de
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2006. psicologia analítica. 4. ed. São Paulo, SP: Cultrix, 2010.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 201


202 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021
Junguiana
v.39-2, p.203-204

Normas para publicação de artigos


A revista Junguiana, periódico cientifico da Sociedade Brasileira de Psicologia
Analítica, editada pela primeira vez no ano de 1983, destina-se à divulgação de
trabalhos inéditos, que contribuam para o conhecimento e o desenvolvimento da
psicologia analítica e ciências afins, em um espírito aberto ao debate científico,
cultural, social e político contemporâneo. Com periodicidade semestral, a revista
aceita artigos originais, de revisão, casos clínicos, comunicação breve, entrevista
e resenha.

Para mais informações sobre as normas de publicação acesse o site da SBPA:


http://sbpa.org.br/portal/acervo/normas-para-publicacoes/.

Guidelines for publishing articles


Junguiana is the scientific Journal of the Brazilian Society for Analytical Psy-
chology, published for the first time in 1983 and directed towards the dissemina-
tion of unpublished works that contribute to the knowledge and development of
analytical psychology and related sciences, with an openness towards scientific,
cultural, social and contemporary political debate. Twice a year, the journal ac-
cepts original and review articles, clinical cases, brief announcements, reviews
and interviews.

For further information about publication rules visit SBPA site:


http://sbpa.org.br/portal/acervo/normas-para-publicacoes/.

Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica


Rua Dr. Flaquer, 63 – Paraíso – CEP 04006-010 – São Paulo (SP)
Telefax (11) 2501-4859
www.sbpa.org.br

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021 ■ 203


Junguiana
v.39-2, p.203-204

204 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 2º sem. 2021

Você também pode gostar