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REMONTA

A ESCUTA CLÍNICA DA POPULAÇÃO LGBTTQIAP+


MARCELA CARVALHO & JOSÉ STONA (ORGS.)

Editor: Gilmaro Nogueira


Diagramação: Daniel Rebouças
Capa: Caos Oliveira

Conselho Editorial
Prof. Dr. Carlos Henrique Lucas Prof. Dr. Leandro Colling
Universidade Federal do Oeste da Bahia – UFOB Universidade Federal da Bahia – UFBA
Prof. Dr. Djalma Thürler Profa. Dra. Luma Nogueira de Andrade
Universidade Federal da Bahia – UFBA Universidade da Integração Internacional da
Profa. Dra. Fran Demétrio Lusofonia
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB Afro-Brasileira – UNILAB
Prof. Dr. Helder Thiago Maia Prof. Dr Guilherme Silva de Almeida
USP - Universidade de São Paulo Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Prof. Dr. Hilan Bensusan Prof. Dr. Marcio Caetano
Universidade de Brasília - UNB Universidade Federal do Rio Grande – FURG
Profa. Dra. Jaqueline Gomes de Jesus Profa. Dra. Maria de Fatima Lima Santos
Instituto Federal Rio de Janeiro – IFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Profa. Dra. Joana Azevedo Lima Dr. Pablo Pérez Navarro
Devry Brasil – Faculdade Ruy Barbosa Universidade de Coimbra - CES/Portugal
e Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG/Brasil
Prof. Dr. João Manuel de Oliveira
CIS-IUL, Instituto Universitário de Lisboa Prof. Dr. Sergio Luiz Baptista da Silva
Faculdade de Educação
Profa. Dra. Jussara Carneiro Costa Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, MS, Brasil)
R212 Remonta : a escuta clínica da população LGBTTQIAP+ /
1.ed. organizadores Marcela Carvalho, José Stona. – 1.ed.
– Salvador, BA : Devires, 2021.
184 p.; 14 x 21 cm.
Bibliografia.
ISBN : 978-65-86481-54-9
1. Psicologia. I. Carvalho, Marcela. II. Stona, José.

12-2021/06 CDD 150


Índice para catálogo sistemático:
1. Psicologia 150
Bibliotecária: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129

Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que


citada a fonte. Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires.

Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro – Simões Filho – BA


www.editoradevires.com.br
Para todas as pessoas LGBTTQIAP+ que são expul-
sas de casa ou que estão passando por violências:
que todes possam encontrar acolhimento, força e
rede de apoio em cada parte do nosso livro. E, em
especial, para Maurício Z. e Camila R.
Agradecemos especialmente a Leandra Sobral e
Robert Santos do Carmo. Sem a energia extra de
vocês este projeto não teria acontecido.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
11

POR UMA CLÍNICA QUE SE INCLINA PARA ESCUTAR


Jaqueline Gomes de Jesus
15

PROJETO REMONTA:
LUTA, RESISTÊNCIA E RESPONSABILIDADE SOCIAL
Marcela de Carvalho Silva
19

AUTOACEITAÇÃO E AUTOCUIDADO
Alisson Santana
41

INQUIETAÇÕES PRELIMINARES AO ACOLHIMENTO


PSICOTERÁPICO DE PESSOAS LGBTTQIAP+
Eduardo Leal Cunha
43

IMPULSIONAR OS MEUS SONHOS


Amara Carvalho
57

ONIRISMOS CLÍNICO-POLÍTICOS
Robert Santos do Carmo
59

ENCONTRO COMIGO
Cris Martins
75

CLÍNICA PSICOLÓGICA E LAICIDADE: ALGUMAS


REFLEXÕES NA ATENÇÃO À POPULAÇÃO LGBTTQIAP+
Leandra Sobral Oliveira
77

EU NASCI DUAS VEZES...SÉRIO, DUAS VEZES!


Gregório de Assis
97

ARTICULAÇÃO ENTRE O MOVIMENTO DE LUTA


ANTIMANICOMIAL E A POPULAÇÃO LGBTTQIAP+
Roberta Gusmão Arditti
Dayanne Souza Figueiredo
99
EXPONDO MINHAS [NOSSAS] CICATRIZES
Inácio Barbosa
117

RELATO DE EXPERIÊNCIA: ESTÁGIO NO PROJETO REMONTA


Madelene Rodrigues Limeira
Felipe Romero Léda Cruz
Fernanda Rodrigues Messias
Thaísa de Oliveira Cristino
119

A REMONTA EM MINHA VIDA


Jefferson Chaves Moreira
133

BISSEXUALIDADE – REFLEXÕES SOBRE DESEJOS


MONODISSIDENTES E A INVISIBILIDADE BI
Dayanne Souza Figueiredo
Roberta Gusmão Arditti
135

NAVEGANDO NO MAR DO TEMPO ENCONTRO MEUS PEDAÇOS


Kaê Jo Rodrigues
153

ATIVISTA ANALISTA
José Stona
155

CUIDAR DE SI MESMO É UM INCRÍVEL ATO DE CORAGEM


Lis Barreto
163

A PSICOLOGIA COMO FARSA FRENTE AO ESPELHO LGBTTQIAP+


Letícia Carolina Nascimento
167

AUTOCONHECIMENTO
Rodrigo Mendonça
171

O FLUXO É DIFERENÇA; CONTINUE A NAVEGAR


Stella Carvalho
173

SOBRE OS AUTORES
177
APRESENTAÇÃO
12
A Remonta é um projeto social de escuta clínica da população
LGBTTQIAP+ em nível nacional. O livro que o leitor tem em mãos
surgiu da necessidade de registrarmos materialmente as estratégias de
acolhimento que a Remonta elaborou desde a sua criação. A Remonta
destina-se a produzir uma reparação histórica, social e econômica
diante das décadas de patologização, violência, estigma e desigual-
dade que os discursos médicos, jurídicos e terapêuticos produziram
à população LGBTTQIAP+. Este livro, nascido de várias narrativas
que emergiram da experiência de fala e escuta de múltiplos atores do
projeto, tem como propósito situar ao leitor a importância de uma
construção política conjunta de espaços de elaboração e resistência aos
retrocessos e avanços éticos, clínicos e políticos do Brasil.
A escrita originou-se no dia a dia de encontros pautados por um
ponto central: a necessidade de repensarmos as estruturas sociais de
opressão que se mantêm dentro dos dispositivos psicológicos – e esco-
lhemos fazer isso por meio da escuta. Assim, os textos aqui presentes
tentam romper com uma lógica colonial e, em vez de falar sobre, con-
vidam os/as/es principais autorxs – os/as/es usuárixs do serviço – para
falar conjuntamente. Neste livro, convidamos a falar àqueles que fazem
ou fizeram parte do projeto para que pudessem falar livremente das
suas vivências. Este espaço foi proporcionado a partir de um convite
e culminou em um trabalho que se constrói pelo entrelaçamento da
escuta e da fala de profissionais e da escuta e da fala de pessoas assis-
tidas pelo projeto.
Este livro, portanto, é o fruto – nem verde nem maduro – de uma
aposta. Conserva o tempo de produzir um amargor, um contrassenso
às papilas afetivo-institucionais, e o de dar-se a germinar e multiplicar.
Como aposta, encarna o engajamento com uma outra política cognitiva,
relacional e institucional, na qual a população LGBTTQIAP+, não sem
os aspectos raciais e de classe, assume o exercício total da palavra. A
intersecção entre textos de psicólogos/as/es e pessoas assistidas perse-
gue a potência do encontro a partir do que nos é comum e múltiplo:
a diferença – de tal modo que este livro ensaia uma possibilidade de
remontar o amor, as ciências psis e não-psis e a pólis (remontar não
como sinônimo de um conserto que mantém as engrenagens, mas
como elevação de uma coisa outra).

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Por fim, durante todo o texto, será usada a sigla LGBTTQIAP+,
que representa a seguinte descrição: lésbicas, gays, bissexuais, trans,
travestis, queer, intersex, assexuais e pansexuais. O sinal +, por sua vez,
situa as intermináveis possibilidades de configurações das sexualidades,
dos gêneros e das práticas sexuais. Acreditamos que a sigla logo estará
em desuso, mas escolhemos utilizá-la temporalmente apenas como
um organizador textual.

Boa leitura!
José Stona

14
A PSICOLOGIA COMO FARSA FRENTE AO
ESPELHO LGBTTQIAP+
Letícia Carolina Nascimento
A psicologia fez-se frente ao espelho da cishetenormatividade
branca-europeia- burguesa e por aqui, nas terras tupiniquins, nos canta
Caetano Veloso “Narciso acha feio o que não é espelho”. Assim também
a psicologia criou medo e horror em relação a tudo que era diferente
da cishetenormatividade branca-europeia-burguesa; inventou nomes
e características (um pouco irreais, mas reais para justificar violências)
e ainda tentou criar curas para esses desvios monstruosos. Todavia,
nada me parece mais grave do que terem esquecido que a psicologia,
ela também nada mais é do que uma amarga invenção.
Mas como podem criar uma ciência para excluir outreridades?
Proclamam a si mesmos como norma, naturalizam suas próprias
existências? Criam a si, os inventores; esquecem que criaram a si, são
naturais? Mas como podem criar a si e as outreridades e esquecem-se
dos processos de criação? Será que ainda são capazes de criar ou ador-
meceram frente à própria rigidez de suas identidades? O que podemos
fazer com o espelho da cishetenormatividade branca-europeia-bur-
guesa? Será a psicologia capaz de produzir vida, tanto quanto produz
constantemente morte?
Quando a comunidade LGBTTQIAP+ olha para o espelho da psi-
cologia, a sensação comum é a mesma entre nós, como canta mais uma
vez Veloso: “quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto”;
não nos vemos, não nos ouvimos. Como travesti negra, a clínica psi, o
tribunal do juiz, a sala de aula do professor e as câmaras legislativas são
todos espaços que aprendi a desconfiar, jamais confiar, nunca acreditar,
sempre esperar o tropeço, a queda, o tapa, a decepção, a negação, o
emudecimento, a perda de potência... Quando me falaram da psicologia
eu “chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto”, assim
como canta Veloso.
Acreditar na psicologia é um sonho louco para a comunidade
LGBTTQIAP+, pois como acreditar numa instituição que historica-
mente contribuiu para a criação de nós mesmos como outreridades
em relação a uma verdade opaca marcada pela centralidade da cishete-
normatividade branca-europeia-burguesa? Como não acreditar se tudo
eles tentaram nos tirar, mas não conseguem nos fazer parar de sonhar?
Sou gata desconfiada, olho atenta, estranha, me faço parecer
alheia, permaneço distante, analiso, sigo me esgueirando, imperceptível

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me aproximo, faço o contato, a gata arranha com manhã, as travestis
aprenderam a brincar com a psicologia, burlando laudos; as gatunas
da normalidade.
Eu quero uma clínica psi onde não precisamos mentir sobre o que
precisamos dizer de verdade, que possamos mentir sobre aquilo que não
tem ainda consistência para emergir como produto de alguma análise,
eu quero mentir, eu quero falar a verdade, eu quero falar abertamente
na clínica psi sem ter por objetivo um laudo para terapia hormonal,
eu quero ser de verdade, ser a verdade que eu criei de mim, quero ser
abraçada em minha verdade, como farsa permanentemente incompleta.
Mas, sim, Caetano, “alguma coisa acontece no meu coração”
quando eu conheço projetos que ousam desafiar a psicologia e rein-
ventar modos de cuidar e escutar. Pode a psicologia romper com o seu
espelho de verdade para permitir a escuta das outreridades? O Projeto
Remonta nos faz acreditar que sim, que é possível rachar desde dentro
a psicologia, virá-la do avesso, do avesso, para conhecer suas superfícies
e profundidades, romper com a farsa para assumir outra farsa; na velha
farsa as hierarquias oprimiam, na outra farsa que estamos por criar
as diferenças são um laboratório inventivo de modos de si no qual o
cuidado de si e das outreridades é o único limite possível.
O Projeto Remonta entende a clínica para além do espaço fechado
entre quatro paredes; é que comunidade LGBTTQIAP+ não precisa
ser apenas ouvida, são diversas as nossas fomes! A clínica também pre-
cisa ser espaço de ação social se deseja contribuir com a comunidade
LGBTTQIAP+. As dores que carregamos não são parte de uma indivi-
dualidade, nossas dores estão intrinsecamente conectadas a uma rede
social violenta que poda as diferenças sexuais e de gênero. Precisamos
curar-nos enquanto sociedade.
Eu trouxe Caetano para esta conversa, pois sem dúvidas desejo
“caetanear” a psicologia, quero uma clínica com brasilidade, carna-
valizada, mestiça, que brinca com as fronteiras; eu quero a nudez dos
trópicos, peles exalando seus desejos, sem roupa, sem camisa de força.
Eu quero que o Projeto Remonta siga remontando a clínica psi, que
possamos fazer mais disso, desmontar, montar-se de outro modo, num
fluxo contínuo e fragmentado até que todas as partes não formem todo
nenhum, numa psicologia sempre aberta para as diferenças. Que a

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psicologia se assuma como farsa e desfaça toda essa monocromática,
que nossa farsa seja o arco-íris, um mero espectro colorido.
Devaneios escritos ao som de Sampa, Caetano Veloso;
Parnaíba, litoral do Piauí, muito vento e calor.

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