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Editor(a) | Gilmaro Nogueira

Revisão | Patrícia Azevedo Gonçalves


Diagramação | Daniel Rebouças
Ilustração | Jenifer Prince

Conselho Editorial
Prof. Dr. Carlos Henrique Lucas Lima
Universidade Federal do Oeste da Bahia – UFOB Prof. Dr. Leandro Colling
Prof. Dr. Djalma Thürler Universidade Federal da Bahia – UFBA
Universidade Federal da Bahia – UFBA Profa. Dra. Luma Nogueira de Andrade
Profa. Dra. Fran Demétrio Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB Afro-Brasileira – UNILAB

Prof. Dr. Helder Thiago Maia Prof. Dr Guilherme Silva de Almeida


Universidade Federal Fluminense - UFF Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

Prof. Dr. Hilan Bensusan Prof. Dr. Marcio Caetano


Universidade de Brasília - UNB Universidade Federal do Rio Grande – FURG

Profa. Dra. Jaqueline Gomes de Jesus Profa. Dra. Maria de Fatima Lima Santos
Instituto Federal Rio de Janeiro – IFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

Profa. Dra. Joana Azevedo Lima Dr. Pablo Pérez Navarro (Universidade de Coimbra - CES/
Devry Brasil – Faculdade Ruy Barbosa Portugal e Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG/Brasil)

Prof. Dr. João Manuel de Oliveira Prof. Dr. Sergio Luiz Baptista da Silva
CIS-IUL, Instituto Universitário de Lisboa Faculdade de Educação
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Profa. Dra. Jussara Carneiro Costa
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB

CIP BRASIL — CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


S877r Stona. José, —
Relações de Gênero e Escutas Clínicas/José Stona.
1ª edição/Salvador - BA. Editora Devires, 2020.

260p.; 16x23 cm
ISBN 978-65-86481-26-6
1. Psicologia 2. Diversidade 3. Saúde mental I. Título
CDD 159.9 CDU 308.1-13

Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que


citada a fonte. Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires.

Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro – Simões Filho – BA


www.editoradevires.com.br
A vida é certamente mais vivível
quando nós não estamos confinados a
categorias que não funcionam para nós.

Judith Butler, Corpos Que Ainda Importam


SUMÁRIO

PREFÁCIO 9
Jaqueline Gomes de Jesus

APRESENTAÇÃO 12

GÊNERO: DA FORMAÇÃO A NÃO ESCUTA DO ANALISTA 19


José Stona
Andrea Ferrari

SOBRE MACACOS, CYBORGS E TRANSEXUAIS:


A PSICANÁLISE E OS LIMITES DO HUMANO 35
Eduardo Leal Cunha

DE ONDE ESCUTO? DE FREUD E LACAN E FOUCAULT


E DELEUZE E... 51
Patrícia Porchat

SEDIMENTAÇÕES DE UMA ODALISTA ANDROIDE:


ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE
GÊNERO E CLÍNICA TRANSDISCIPLINAR 63
Céu Silva Cavalcanti

A METAFÍSICA GENERIFICADA DA ESCUTA PSICANALÍTICA 79


Daniel Kveller
Henrique Caetano Nardi

GÊNERO E RAÇA: MARCAS PERSISTENTES DE


UM FAZER-SABER DENEGADO 93
José Damico

VOZES NEGRAS FEMININAS: ECOAM POÉTICAS


E AQUILOMBAMENTOS SUBJETIVOS 119
Liziane Guedes da Silva

INDAGAÇÕES CONTRANORMATIVAS SOBRE OS USOS


DOS CONCEITOS DE “FUNÇÃO MATERNA”, “FUNÇÃO
PATERNA” E MATERNAGEM 141
Andrea Gabriela Ferrari
Milena Silva
IDENTIDADES TRANSGÊNERAS E O CAMPO DE CUIDADO COM
A SAÚDE: UMA ANÁLISE DE EXPRESSÕES COM VIÉS
PATOLOGIZANTE 159
Beatriz Bagagli

IDENTIDADE DE GÊNERO E PARENTALIDADE 175


Gerson Smiech Pinho
Analice de Lima Palombini

TRUQUES E MAIS TRUQUES: SOB O RÓTULO DA DIVERSIDADE


ESTÃO AS PRÁTICAS NORMATIVAS PEDINDO PASSAGEM 193
Sofia Favero
Emilly Mel Fernandes

RELAÇÕES ENTRE GÊNERO E SEXUALIDADE INFANTIL 205


Fernanda Isabel Dornelles Hoff

ATITUDES CORRETIVAS (OU TERAPIAS CONVERSIVAS)


DA ORIENTAÇÃO SEXUAL NA CLÍNICA PSICOLÓGICA:
UMA ANÁLISE DE CASO 219
Mozer de Miranda Ramos

A VIDA PSÍQUICA DO ARMÁRIO 235


Lucas Demingos
José Stona

SOBRE OS AUTORES 253


PREFÁCIO
Jaqueline Gomes de Jesus

Quem escuta quem na sociedade do espetáculo?

“...a política constrói o gênero e o gênero constrói a política”


(Scott, 1989, p. 89)1.

“O subalterno não pode falar”


(Spivak, 2010, p. 126)2.

O isolamento que me impus, para minha segurança e a dos meus próxi-


mos, durante a pandemia da COVID-19, trouxe consigo as demais dificuldades
esperadas, especialmente no campo da produção acadêmica. São tantos pen-
samentos circulando que o simples ato de sentar-se frente ao computador e
escrever estas linhas torna-se quase doloroso. Sei que muitos colegas, muitos
mesmo, estão passando pelo mesmo martírio.
Apesar de tanta dificuldade em me externar por meio da escrita, de ordem
menos cognitiva do que afetivo e até psicomotora, a escuta prossegue, explode,
exponencialmente, por meio de centenas de lives e atendimentos psicológicos
on-line. Escutas, escutas, escutas. Elaborações e reelaborações. De novo. O
desgaste estressa e me aponta para o horizonte de um burnout, como sói a
tantos que tenho aconselhado ou falado sobre ao longo destes meses. ALTO LÁ!
Dou-me um tempo, permito-me, aplico-me, permito-me ser ouvida. Abro
mão de algumas dezenas de compromissos aceitos na dinâmica produtivista
on-line que nos está sendo naturalizada, desnaturalizo-a, refaço-me, durmo
antes das quatro da manhã, das três, das duas, quando progresso sentir sono
antes da uma da madrugada! Ainda estou viva, apesar das urgências que pu-
lulam.

1
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, n. 2, jul./dez. 1995,
pp. 71-99.
2
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.

9
Curiosamente, identifico neste livro — que se propõe, corajosamente,
a falar de relações de gênero e escutas clínicas fora de alguns vieses tradi-
cionais de nosso vasto campo psi, sem cometer o erro de ignorá-los — uma
ressonância dos nossos tempos, uma vibração anterior à disseminação do
novo coronavírus que já decorria do nosso estado de coisas na globalização,
nesta Sociedade do Conhecimento na qual o que mais temos, em overdose,
são informações, ao passo que não sabemos de onde extrair, nesse monturo
de dados, algo útil para nossas vidas chamado, sim, de conhecimento. Seja
de nós, seja do mundo que nos cerca.
Eu encontro neste livro muitas vozes jovens, periféricas até, subalternas
portanto, aquelas que trazem a potência de, quiçá, mudarem futuramente o
nosso paradigma científico, obviamente que determinadas pelo que Thomas
Kuhn já estabeleceu como parâmetros para tamanha empreitada. Mas elas
estão aqui, nas linhas que me seguem.
Propõem-se a refletir, sempre criticamente, sobre temas que povoam o
inconsciente coletivo ou o mainstream dos trending topics, que no entanto
não encontraram profundidade de teorização antes de pousarem nestas pá-
ginas, como a articulação entre o tema da diversidade e a saúde mental; os
corpos androides cujos componentes são hieróglifos (corpo e subjetividade/
subjetificação, pulsando Donna Harraway); a linguagem e seus usos e abusos
para a (des)patologização das identidades trans; maternidade, paternidade,
maternagem no contexto da figura hegemônica da família, tão confusamente
amalgamada com a imagem de propriedade (privada); sexualidade e infân-
cias; filiação e identidades parentais em conflito com a cisnormatividade que
não se nomeia como tal; uma necessária análise das chamadas — e famige-
radas — Terapias Conversivas (escrevo aqui em um duplo sentido, que inclui
o religioso) da orientação sexual (homossexual); debates metafísicos sobre
gênero e sexualidade, de fato raros de irromperem no campo psi, tão afeito à
funcionalidade no trato dos conceitos; uma reflexão sobre o tão dito “armário”;
entre outras desafiadoras interpretações acerca da escuta.
Compreendo esta obra como um manancial de relevantes saberes e re-
latos de experiências potentes para a transformação de você, profissional da
escuta – qualificada, ativa, qualquer que seja, entretanto, principalmente, da
clínica, seja ela feita na clínica ou em qualquer outro lugar, curiosamente, por
não se restringir ao lugar onde ocorre, mas se constituir nele.
Como uma mais velha que aponta a trilha mais proveitosa para o que você
busca, indico-lhe esta leitura. Que ela lhe fortaleça, empodere, em vários sen-
tidos, certamente não em todos, mas em mais de um. Este é o seu propósito,

10
e ele é necessário, urgente. Nunca a escuta se demonstrou tão emergencial e
precisa quanto nestes tempos que estamos vivemos, inclusive para nós que
escutamos profissionalmente, que sejamos escutados, desde os nossos dife-
rentes e complexos lugares de fala, como se costuma falar ultimamente. Temos
tanto a dizer para além do que esperam que falemos. Então nos ouça, leia-nos.

Bairro da Glória, Cidade do Rio de Janeiro, em 09 de setembro de 2020,


há cinco meses do isolamento físico, mas não social, decorrente da pandemia da
COVID-19.

11
APRESENTAÇÃO
Já não é novidade que nós, psicólogues ou interessades nas múltiplas
áreas da psicologia, começamos a entender que o problema central não é
apenas a teoria, que ainda pode (re)produzir uma possibilidade de leitura
discriminatória, estigmatizante e violenta sobre o sujeito por meio de con-
ceitos que foram construídos colonialmente e que se tornam dispositivos
de poder-saber-ser e ajudam a fabricar condições prévias de inteligibilidade
por meio de n normatizações. Nem mesmo deveríamos ficar surpresos com
o comportamento reativo e defensivo de alguns discursos psis (psicólogues,
psiquiatres e psicanalistes) diante das nomeações de questões coloniais como
branquitude, patriarcado, machismo, elitismo, capacitismo, cisheteronorma
etc (KILOMBA, 2010)3.
Assim, recusar a interseccionalidade no fazer clínico (a sobreposição ou
intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de exploração,
dominação ou discriminação que, a partir de categorias, visam, dentre outras
coisas, a subverter hegemonias de opressão públicas e privadas para que ga-
nhem visibilidade e reconhecimento social) hoje é, justamente, tentar a todo
custo manter um certo legado normativo intacto. É, também, tentar conservar
pactos narcísicos de opressão, discriminação e estigma, perpetuando o silen-
ciamento das múltiplas corporeidades possíveis na cultura.
Diante disso, lhe pergunto: na sua formação, seja ela qual for, quantes
autores trans, não bináries, não branques, indígenas, travestis, feministas,
LGBTTQIA+ ou com deficiência você já leu ou tem lido? Quais são os efeitos de
tais ausências na nossa formação? Quais são os efeitos desses apagamentos e
dessas invisibilidades na nossa escuta e prática clínica? Cada vez mais se torna
importante situarmos o nosso lugar de escuta, que é fabricado por uma teoria
que não é neutra e isenta de uma historicidade que apaga os marcadores in-
terseccionais de diferença. Se, como nos avisa Gayatri Spivak (1988)4 e Djamila
Ribeiro (2017)5, quem tem o privilégio social tem o privilégio epistêmico, ainda
cabe uma posição defensiva ou de silenciamento? Qual o lugar das relações
de gênero na clínica? Qual o lugar da identidade na clínica?
O livro que o leitor tem em mãos parte dos questionamentos supracita-
dos e, certamente, não consegue dar conta e, nem pretende, “falar de tudo”,
deixando questões e ausências para um debate contínuo. A ideia foi organizar
um trabalho narrativo feito principalmente por profissionais da psicologia que,

3
KILOMBA, G. “The Mask” In: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Ver-
lag, 2. Edição, 2010.
4
SPIVAK, G. Can the Subaltern Speak?” In: NELSON, Cary; GROSSBERG, Larry (Ed.). Marxism and the In-
terpretation of Culture. Urbana: University of Illinois Press, 1988a. p. 271-313.
5
RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento: Justificando, 2017.

13
quando pensam seus fazeres clínicos, éticos e políticos, levam em consideração
– não como elemento central, mas como elemento não passível de isenção
– os atravessamentos singulares das relações de gênero (sejam eles de raça,
etnia, classe, gênero, orientação sexual, religião, deficiência, nacionalidade
etc.), mas, mais que isso, autores que, em seu campo de atuação, deixam
que a clínica seja primária em relação à teoria e fazem dos seus corpos ações
políticas, partindo do pressuposto de que a sua teoria, independentemente da
linha teórica adotada, não é imparcial frente a essas questões. A justificativa
da obra está pautada no entendimento de que a prática clínica em psicologia
esteve, durante longas décadas, colada aos saberes médicos, jurídicos e tera-
pêuticos, que, a partir de seus dispositivos de “cuidado” e tutela, produziram
uma dívida histórica por meio de patologizações e silenciamentos em face
das relações de gênero. Longe de ser algo amplamente resolvido, os campos
discursivos das psicologias ainda atuam como dispositivos de controle, vio-
lência, discriminação e patologização.
Nesse contexto, a obra parte desses (des)encontros entre os campos teó-
ricos de saber e as escutas clínicas para problematizar, enfaticamente, que
gênero é um conceito que não pode ser pensado isoladamente (Davis, 2016)6.
Esta coletânea de textos apresenta as múltiplas faces das relações de gênero
nas escutas clínicas dentro dos campos das psicologias.
Em Gênero: da formação a não escuta do analista, os autores discutem
como a formação do psicanalista, devido a sua possibilidade de manuten-
ção normativa, pode ter como consequência um impedimento da escuta do
analista sobre determinadas questões, a exemplo do gênero. A partir de uma
breve retomada histórica, os autores refletem sobre como certas posições
normativas na formação do psicanalista podem, ainda, estar presentes con-
temporaneamente.
Em De onde escuto? De Freud e Lacan e Foucault e Deleuze e..., O texto
apresenta autores franceses que vêm construindo uma psicanálise em diálogo
com a obra de Foucault e de Deleuze. O objetivo da autora é pensar um campo
psicanalítico que seja constantemente crítico de si mesmo para desconstruir
os efeitos de saber que colocam em cena os dispositivos de poder. A atenção
que a psicanálise dispensa às minorias é problematizada de modo a não correr
o risco de se fundar uma nova psicanálise normativa, universalizante e que
essencializa identidades.
Em Macacos, cyborgs e transexuais: a psicanálise e os limites do humano,
o autor propõe uma breve discussão sobre o lugar, na clínica psicanalítica, de

6
DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016, 244p.

14
uma interrogação quanto aos limites do humano e seus modos de determina-
ção. Ele propõe, ainda, pensarmos na escuta das experiências transidentitárias
e a sua articulação a uma problematização do que poderia ser descrito como
“humanismo” psicanalítico, situando que, ao invés de um lugar de afirmação
a partir de certo ideal antropológico, a clínica psicanalítica deve ser, ao con-
trário, um campo de experimentação ética, no qual novas formas de existência
possam se produzir e ser reconhecidas.
Em Sedimentações de uma odalisca androide - algumas reflexões sobre
gênero e clínica transdisciplinar, a autora toma emprestado, como guia provi-
sório, a imagem mítica da Odalisca Andróide, poema de Fausto Fawcett, texto
propõe um passeio pelos campos de reflexão sobre clínica transdisciplinar
e perspectivas de gênero pós-estruturalistas. Através de um diálogo entre
Espinosa e Butler, a autora atenta para um traçado de subjetividade no qual
os códigos morais do ordenamento transcendente corporificam, inclusive, os
marcos regulatórios do gênero. Por meio do conceito-metáfora de corpo sem
órgãos, o texto faz ser possível vislumbrarmos como os diferentes estratos se
compõem por sobre o corpo, construindo formas completamente atravessadas
pelas linhas históricas, sociais e econômicas.
Em A metafísica generificada da escuta psicanalítica, os autores refletem
sobre uma posição ambígua da psicanálise, onde existe, de um lado, uma
atitude de resistência em relação aos debates de gênero e sexualidade e, de
outro, uma pressuposição naturalizada do gênero em suas práticas através de
uma metafísica sustentada no a priori da diferença sexual. Os autores sugerem
que o gênero só se torna um problema para a psicanálise quando ele desafia
os rituais heteronormativos que atravessam seu funcionamento cotidiano,
argumentando que, se a psicanálise almeja sustentar uma ética realmente
não-identitária, deve começar examinando as expectativas e os preconceitos
relacionados ao gênero que operam na sua teoria e prática de maneira natu-
ralizada.
Em Gênero e raça: marcas persistentes de uma fazer-saber denegado, o
autor articula duas categorias que foram negligenciadas pela psicanálise du-
rante muito tempo e que vagarosamente começam a ter seu caminho estriado
pelas discussões de grupos que historicamente foram subalternizados. O autor
coloca que essa abertura/rasura não se dá sem resistências, indicando que, nos
tempos em que vivemos, ninguém que se percebe minimamente ao lado de
uma sociedade mais justa gostaria de receber os selos de racistas, machistas,
homofóbicos e transfóbicos.
Em Vozes negras femininas: ecoam poéticas e aquilombamentos subjetivos,
a autora interroga a ética da psicologia que se produz, muitas vezes, a partir

15
de uma caixa eurocêntrica. A autora, recorrendo às vozes negras femininas do
Sarau Sopapo Poético, busca problematizar as ideias de escuta e de sujeito,
em uma perspectiva pluriversal e posicionada, em diálogo com a Psicologia
Preta e a Filosofia Afroperspectivista. A autora aposta no Aquilombar, como
categoria clínico-política, para a (re)construção de modos de subjetivação
negros e afroperspectivistas, na diáspora africana ao sul do Brasil, evocando
vozes africanas e ameríndias no intuito de afirmar multiplicidades subjetivas a
partir de corporeidades e vozes negras, que têm muito a ensinar à psicologia.
Em Indagações contranormativas sobre os usos dos conceitos de “função
materna”, “função paterna” e “maternagem”, as autoras partem dos qualifi-
cativos materno e paterno atrelados às funções constituintes, bem como da
noção de maternagem acoplada à figura da mãe, para questionar, a partir de
autores contemporâneos, a manutenção desses termos acoplados, ainda que
imaginariamente, aos personagens da mãe/mulher e do pai/homem.
Em Identidades transgêneras e o campo de cuidado com a saúde: uma
análise de expressões com viés patologizantes, a autora trabalha o tema pato-
logização das identidades transgêneras em discursos do campo do cuidado
com a saúde. Para tanto, ela seleciona artigos e documentos de referência,
abordando as seguintes noções utilizadas para descrever as experiências de
pessoas trans: “surgimento precoce/tardio/rápido”, “contágio social”, “sofri-
mento”, “desistência”, “persistência”, “riscos” e “benefícios”. A autora propõe
uma discussão sobre como essas expressões são inadequadas para a com-
preensão das identidades trans, entendendo que elas possuem um viés pa-
tologizantes, e busca desenvolver no artigo as perspectivas dos sujeitos trans
como um contrapeso a tais expressões.
Em Identidade de gênero e parentalidade, os autores problematizam as
mudanças ocorridas nas últimas décadas nas configurações das famílias,
pensando o estatuto dos laços de filiação e das identidades parentais que se
estabelecem no âmbito das minorias sexuais. Os autores referem que, mes-
mo com uma maior flexibilidade nos papéis desempenhados no interior das
famílias, não é raro que as relações constituídas fora da heteronormatividade
sejam consideradas socialmente inviáveis, segundo o pressuposto de que a
ligação heterossexual seria o único caminho concebível para a organização
do parentesco. Com base nas noções de função materna e função paterna, o
texto visa a refletir sobre a questão proposta, tanto na prática clínica quanto
nas formulações teóricas no campo da psicanálise.
Em Truques e mais truques: sob o rótulo da diversidade estão as práticas
normativas pedindo passagem, as autoras propõem uma reflexão sobre como
a “diversidade” tem sido uma categoria articulada na saúde mental de maneira

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controversa. Ao passo que os debates sobre gênero e sexualidade se encon-
tram fortalecidos na esfera pública, nem tudo aquilo que responde ao termo
“diversidade” indica ser exatamente uma prática voltada à desconstrução de
estereótipos sexistas e LGBTfóbicos. Através de reflexões baseadas nos estu-
dos de gênero, o texto pretende expor como tal “lugar comum” se direciona à
produção de dependências clínicas, fazendo com que a figura do/a terapeuta
adquira maior autoridade e que nós, pessoas interessadas em outros projetos
à psicologia, distanciemo-nos de horizontes éticos com a diferença.
Em Relações entre gênero e sexualidade infantil, a autora pensa sobre como
o modo de o sujeito se reconhecer e buscar um lugar junto aos seus amores
está relacionado a complexos movimentos pulsionais, identificatórios e trau-
máticos, que permeiam posicionamentos constitutivos da identidade sexual e
da identidade de gênero. O texto evidencia como esses movimentos singulares
ocorrem a partir da relação com quem assume a parentalidade e suas funções,
atravessados pela cultura. A partir dessa sustentação, a pulsão, o narcisismo
e o complexo de Édipo podem ser instaurados numa organização singular do
sujeito. A autora ilustra esses percursos constitutivos numa intersecção entre
a teoria e alguns recortes da escuta psicanalítica de crianças e adolescentes.
Em Atitudes corretivas (ou terapias conversivas) da orientação sexual na
clínica psicológica: uma análise de caso, o autor reflete sobre o relato de aten-
dimento clínico de um psicólogo que praticou atitudes corretivas da orienta-
ção sexual com um cliente. O texto problematiza as consequências clínicas e
políticas de tal ação a partir de diretrizes e referências contemporâneas so-
bre o assunto.
Em A vida psíquica do armário, os autores refletem sobre os efeitos psíqui-
cos exercidos pelo dispositivo do armário sobre o sujeito. Para isso, recorrem
tanto a elaborações de Judith Butler, a partir do conceito de melancolia de
gênero, quanto às maneiras pelas quais esses efeitos psíquicos se manifestam
materialmente nos sujeitos, a partir de breves menções de documentários e
recortes da escuta clínica. Em um segundo momento, a investigação reelabora
e complexifica a estrutura do armário ao vinculá-la aos relatos de formação
do sujeito e suas possibilidades de resistência.

Boa leitura!
José Stona

17
Eu ouvi que eu era “bicha”, que eu era “viado”, quando eu tinha, sei lá, 6 anos de idade.
Eu tava numa padaria, eu acho, e um cara falou isso pra mim. Eu não sabia o que era
aquilo, mas o jeito que ele falou era tão pesado que eu entendi que aquilo era uma
coisa muito ruim [...]. E quando eu tinha uns 8 anos, aí eu entrei numa terapia, por
conta do meu comportamento [...]. E aí eu comecei a ser treinado pra agir diferente.
Na verdade, comecei a ser ensinado que tudo que eu fazia tava errado. As coisas que
eu brincava, as pessoas que eu brincava, o jeito que eu falava, o jeito que eu andava.
Então, tipo, na terapia, ela gravava tudo que eu dizia pra eu ouvir depois. Ela fazia
eu repetir as mesmas coisas com outra voz, pra treinar uma voz mais masculina. Eu
caminhei várias vezes pela sala para, tipo, treinar um caminhar “de homem”. Eu fiz um
tipo de caligrafia também para escrever igual um menino. E ela falava, por exemplo, o
meu “A” e o meu “O”, eles eram quase iguais. E ela falava que isso era uma coisa muito
errada, porque eu tinha que diferenciar o que era feminino e o que era masculino. E eu
lembro muito disso que parece uma besteira quando você fala assim, fora do contexto,
mas era uma coisa que, tipo, que me marcou muito. E eu não conseguia e não me sentia
bem fazendo as coisas que ela queria que eu fizesse. O meu modelo estabelecido foi
o meu irmão. E eu tinha que me comportar igual a ele. E eu comecei a entender que,
quanto mais eu demorasse pra fazer do jeito que ela queria, mais tempo eu ia ficar lá.
Durou mais ou menos 1 ano essa terapia... E aí eu comecei a me comportar do jeito
que ela queria. E isso não acabava quando eu saía da sala de terapia porque ela tinha
criado uns sinais com a minha mãe e com o meu irmão. Então, se eu me comportasse
de maneira errada em público, a minha mãe e o meu irmão tinham que me corrigir.
E aí quando eu via aquilo eu tinha que parar, tipo, se eu tivesse correndo, sei lá, de
alguma forma, eu tinha que parar e correr feito homem. Se eu tivesse falando com voz
de menina eu tinha que falar com voz de homem. E aí começou aquela perseguição,
né, na minha cabeça e.. sobre todo o meu comportamento, sobre a minha persona-
lidade, sobre tudo...

Bruno, em Bichas, o documentário.

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