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Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

B989v Butturi Junior, Atilio et al.

Vidas precárias, vidas inventadas /


Organizadores: Atilio Butturi Junior, José Luís Câmara Leme, Pedro de Souza

ISBN: 978-65-5637-767-4.

1. Análise do Discurso. 2. Crítica Literária. 3. Linguística. 4. LGBTQIA+.


I. Título. II. Assunto. III. Organizadores.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

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1. Análise do discurso. 401.41


2. Linguística. 410
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Impresso no Brasil - 2023


APRESENTAÇÃO ..................................................................................................... 7
Pedro de Souza

COMO SE ESCREVE A HISTÓRIA DOS OPRIMIDOS E DOS INFAMES ......... 11


Daniele Lorenzini

MICHAEL OAKESHOTT, A CULTURA DE DIREITA E OS GAFANHOTOS ... 29


José Luís Câmara Leme

NINGUÉM SABE O QUE PODE UM HOMEM: CORMAC MCCARTHYE


A ESCRITA DO DESASTRE .................................................................................... 61
Philippe Sabot

ESTEREÓTIPOS NEGATIVOS E PRECARIEDADE : ESBOÇO DE UMA


FILOSOFIA DO ESTIGMA (BELL HOOKS, SIMONE DE BEAUVOIR,
JUDITH BUTLER, TONI MORRISON .................................................................... 81
Cécile Lavergne

DO DOPING AO CUIDADO .................................................................................... 107


Denise Bernuzzi de Sant’Anna

SENTIDO, INFORMAÇÃO E PRECARIEDADE DA VIDA: COMO É O ROSTO


DO PÓS-HUMANO? ................................................................................................. 121
Marcelo El Khouri Buzato

SOBRE VIADOS, RAW SEX E HIV .......................................................................... 143


Atilio Butturi Junior

GÊNERO DISSONÂNCIA E PRECARIEDADE NA BIOTECNOVOZ ................. 169


Nathalia Müller Camozzato
PARA UMA ABORDAGEM SINDÊMICA À “EPIDEMIA DA DESINFORMAÇÃO” ... 193
Davide Scarso

BIOPOLÍTICA E (IN)SEGURANÇA EM FOUCAULT: A GESTÃO DA PANDEMIA


DE COVID-19 NO BRASIL ...................................................................................... 215
Daniel Verginelli Galantin

CRISE ECOLÓGICA E O SISTEMA DE CONSELHOS ARENDTIANO:


PARA UMA RESPOSTA POLÍTICA À EXCLUSÃO E PRECARIEDADE
EXISTENCIAL? ......................................................................................................... 229
Nuno Pereira Castanheira

FAIRE FACE À INFELICIDADE:A INFLUÊNCIADO NEO ESTOICISMO DE


ADAM SMITH EM WALTER SCOTT..................................................................... 257
Fiona McIntosh-Varjabédian

A VIDA DE UM PÁSSARO, DE MICHEL LAMBERT: VIDA, AFETIVIDADE


E NARRAÇÃO DA PRECARIEDADE FENDIDA .................................................. 281
Marie-Hélène Gauthier

UMA DOMÉSTICA FALA SENDO SILÊNCIO NA SALA DE ESTAR


O VULNERÁVEL DO SUJEITO NAS CORDAS VOCAIS .................................... 301
Pedro de Souza

AFIRMAÇÃO DA VIDA EM CONTEXTOS DE NECROPOLÍTICA .................... 317


Raquel Alvarenga Sena Venera

INTERVALO DE SUBJETIVAÇÃO ENTRE OS OFÍCIOS DA ESCRITORA E


CATADORA CAROLINA MARIA DE JESUS, EM QUARTO DE DESPEJO ...... 343
Paola Scheifer

SOBRE OS ORGANIZADORES............................................................................... 355

SOBRE OS AUTORES E AUTORAS....................................................................... 357


VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

Marcelo El Khouri Buzato

INTRODUÇÃO: A PRECARIEDADE HUMANA, O ANTROPOCENO


E O SUJEITO PÓS-HUMANO

N este capítulo, busco refletir sobre o tema “vidas precárias”, a partir


do apelo às Ciências Humanas feito por Judith Butler (2004) em
seu importante ensaio “Precarious Life”, sob um olhar pós-humanista,
atento ao momento antropocênico em que vivemos. Diz Butler ao final
do ensaio:
Se as humanidades têm algum futuro como crítica cultural,
e a crítica cultural tem uma tarefa no presente momento, é,
sem dúvida, no sentido de nos fazer retornar ao humano onde
não esperamos encontrá-lo, em sua fragilidade e nos limites
de sua capacidade de fazer sentido. Teríamos que interrogar a
emergência e o desaparecimento do humano nos limites do que
podemos saber, do que podemos ouvir, do que podemos ver, do
que podemos sentir (BUTLER, 2004, p. 51, minha tradução).

Como estudante de Pós-Humanismo, vejo-me diretamente interpe-


lado pela referência à “emergência e ao desaparecimento do humano” no
rosto. Isso porque o Pós-Humanismo, tal como o entendo, trata justamente

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

de investigar, dos pontos de vista cultural e filosófico, esse humano que


não é mais aquele do Humanismo, radicado numa excepcionalidade que
tinha como pivô, justamente, a linguagem. O Pós-Humanismo, sobretudo
o que designamos Pós-Humanismo Crítico (HERBRECHTER, 2018),
chama atenção não apenas para a precariedade da concepção humanista
do humano, em face do tipo de vida a que se obriga aquele humano do
planeta Terra que não é um homem branco, heterossexual, europeu,
pautado na racionalidade utilitária ocidental e no direito à propriedade
privada e à liberdade de expressão, mas também para a precariedade
das divisas impostas pelo Humanismo entre os seres humanos e os não
humanos. Rosi Braidotti (2013) coloca bem a necessidade de encontrar-
mos esse outro sujeito (pós)humano compreendendo a linguagem como
algo que partilhamos, com diferenças de grau, com outros tipos de seres
(PENNYCOOK, 2018), assim como imaginando que agimos e sentimos
como um coletivo e transversal que troca o “Eu” liberal moderno por
um “Nós-todos-no-mesmo-barco-mas-não-sendo-o-mesmo-um” (BRAI-
DOTTI, 2019, p. 57, minha tradução).
Esse sujeito transversal cruza não só as diferentes maneiras de ser
humano e de merecer dignidade humana em contraste ao etnocentrismo,
à misoginia, à homofobia e ao racismo plasmados no colonialismo e na
eugenia, mas também o triângulo cibernético humano-máquina-animal.
Da mesma forma, a noção do que seja vida, nessa visão, extrapola aquela
que atribuímos a humanos, animais e plantas, chamada pelos gregos de
Bios, e se estende ao que essa cultura chamava de Zoe (BRAIDOTTI,
2013, 2019): a vida como entidade transversal que cruza as espécies
biológicas e as demais “coisas vibrantes” que há no mundo. Essa po-
tência ou agência vibrante e/ou vitalista, reclamam autores dos novos
materialismos, como Karen Barad (2003) e Jane Bennet (2004)1, não
1 Como é sabido, o construtivismo sociodiscursivo que subjaz as visões de Judith Butler sobre
performatividade e materialização dos corpos é, em parte, rejeitado pelos novos materialismos.
No entanto, o que autoras como Karen Barad e Jane Bennet reivindicam é que seja dado à
materialidade o devido reconhecimento, subvertendo-se o caráter representacionalista de tal
construtivismo, em que à linguagem caberiam mediações sobre uma materialidade que, em
si, é, antes desse investimento da linguagem, inerte.

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

é atributo apenas dos entes biológicos e/ou animados, nem mesmo de


colônias deles, tais como florestas tropicais ou recifes de coral, mas de
entes não biológicos constituídos por fluxos de informação e energia, que
abrangem os processos geofísicos e químicos da natureza e os artefatos.
Esse conjunto de sistemas heterogêneos constituem uma grande mente
cibernética (BATESON, 1979), povoada, inclusive, pelos corpos híbridos,
ciborgues, dos sujeitos contemporâneos, mergulhados em novas (bio)
políticas, em que vida e morte – e, logo, a precariedade daquilo que fica
entre um e outro desses polos ontológicos – são constantemente redefini-
das por novas incursões biotecnológicas e informático-computacionais do
capitalismo cognitivo (HAYLES, 1999, 2011; MOULIER BOUTANG;
EMERY, 2011). Refiro-me, aqui, aos novos tipos de seres vivos criados
em laboratórios de bioinformática e postos a realizar tarefas programadas
geneticamente dentro de outros corpos biológicos, no solo, na atmosfera
ou no oceano; seres conceitualmente vivos, mas, funcionalmente, ma-
quínicos. Ou, então, a drones guiados por inteligências artificiais, que
podem matar, no outro lado do mundo, pessoas que nunca existiram na
experiência vivida de quem os enviou, senão como padrões informacio-
nais (comportamentos estatisticamente compatíveis) que decretam sua
sentença de morte (HAYLES, 2017).
A interpelação de Butler (2004) às Ciências Humanas resulta de
sua reflexão sobre a relação entre discurso, mídia e rosto, no sentido da
palavra “rosto” introduzido por Emmanuel Lévinas (1979)2, isto é, o rosto
como a precariedade do outro que se revela nos encontros humanos e
nos faz uma reivindicação moral a qual não somos livres para recusar; o
rosto como algo que não se pode colocar em palavras/representar, mas
que nos faz despertar para o que é precário em outra vida ou, antes, para
aquilo que é precário à vida em si mesma (BUTLER, 2004, p .132-133)3.
2 Em vista da centralidade desse conceito, utilizarei a palavra “face” sempre que me referir ao
rosto material/biológico de um ser humano ou de outra criatura não humana em que isso se
faça aceitável.
3 De certa forma, Bennet (2004) reivindica para os materiais e entes não humanos uma capaci-
dade de também nos (co)mover com a fragilidade da vibrância/vitalidade (não necessariamente
expressa como vida biológica) dos corpos não humanos, biológicos ou outros, como, por

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

O rosto, explica a autora, nos fornece uma maneira de pensar a


respeito da relação entre representação e humanização. E, embora a re-
presentação seja uma necessidade para quem luta para deixar de ser visto
como menos que humano, ela pode “evacuar o rosto” (BUTLER, 2004,
p. 141, minha tradução). A autora exemplifica a evacuação da face pela
representação com os modos pelos quais a mídia produz desumanização
ao selecionar e fazer circular certos rostos para personificar o mal (Osama
bin Laden, por exemplo) ou o triunfo do que unilateralmente se afirma ser
o bem (o soldado americano que alimenta uma criança afegã), de tal modo
que a precariedade do Outro e da vida a que tal rosto remete fica apagada.
Essas operações, continua Butler (2004), podem se tornar meios culturais
pelos quais o paradigmaticamente humano é estabelecido via discurso.
Entretanto, o rosto levinasiano não é totalmente exaurível porque não é
passível de representação direta: ele é uma performance, um clamor. O
humano, explica Butler (2004, p. 144), “[...] é, ao contrário, aquilo que
limita o sucesso de qualquer prática representacional”.
Se o deslocamento ou a ocultação do rosto como precariedade
humana pela sua representação/personalização viola o real sentido de
humanidade como precariedade e clamor de sofrimento do humano, a
“situação do discurso” (BUTLER, 2004) é algo de que o rosto não se
pode separar, ainda que a linguagem não o alcance. Para Butler (2004, p.
139, minha tradução), a linguagem chega “[...] como um endereçamento
indesejado e pelo qual somos, num sentido original, capturados, se não,
como diz Lévinas, transformados em reféns”. Isso leva a um dilema: se
o rosto fala de outra forma que não a linguagem em si, “[...] qual mídia
nos permitirá saber e sentir essa fragilidade, saber e nos sentir nos limites
da representação tal como ela é, correntemente, cultivada e mantida?”
(BUTLER, 2004, p. 151, minha tradução).

exemplo, o apelo de uma assemblagem de materiais heterogêneos descartados no chão que


os “resgata” da categoria existencial “lixo”. A autora chama a capacidade que as coisas têm
de nos mover nesse sentido, quando lhes damos suficiente abertura, suspendendo o vínculo
imediato e automático entre palavra/conceito e coisa, de thing-power (poder de coisa, numa
tradução livre).

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

Com essa pergunta em mente, volto ao Pós-Humanismo, dessa


vez pela visão de Nancy Katherine Hayles (1999), para quem o que
caracteriza o sujeito pós-humano é sua submissão a uma dialética entre
matéria (reprodução) e informação (replicação), o que inclui a dialética
entre os signos em sua materialidade e os significantes tremulantes das
telas de computador. Não se trata apenas de pensar sobre o sujeito cibor-
gue, parte organismo, parte máquina, que é um dos possíveis avatares
do sujeito transversal do Pós-Humanismo – talvez o menos apreciado
pelo Pós-Humanismo Filosófico (FERRANDO, 2013) –, mas sobre a
tecnogênese do humano (HAYLES, 2011; SILVA; DIAS; MATHIAS,
2014) que atravessa, diacrônica e sincronicamente, o sujeito transver-
sal pós-humanista. Esse sujeito tem que ser pensado não apenas como
assemblagem entre os humanos e seus outros não humanos, mas como
escalas nessa assemblagem, desde aquela escala de historicidade e siste-
matização biológica da espécie humana e do planeta como um todo, até a
escala dos enunciados e ações cotidianas, esses dois níveis de realidade,
por assim dizer (LEMKE, 2000), em que se estabelece a espiral coevo-
lutiva entre seres que vivem e seres que vibram. Esses últimos incluem
os processos físico-químicos que geram o que chamamos de matéria (ou
coisa), assim como todo tipo de materialidade (vibrante, vitalista) em
suas distintas configurações (BENNETT, 2004). Isso inclui, sobretudo,
artefatos tecnológicos, que não passam de coletivos não humanos cujas
agências foram enredadas por artimanhas materiais-semióticas humanas
(LATOUR, 2000), mas que nos modificam física e cognitivamente em
nossa trajetória evolucionária.
O Antropoceno não apenas marca o reconhecimento de que a ma-
croatividade físico-químico-geológica da Terra é de tal forma afetada
pela ação antrópica que a fisionomia, a fisiologia e o clima do planeta
agora demandam um redesenho dos modos humanos de viver e produzir
(SILVA; DIAS; MATHIAS, 2014), mas clama, por outros meios que
não a linguagem, para que esse sujeito coletivo e transversal adote uma
nova ética não antropocêntrica. Em outras palavras, o planeta precisa de

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

um rosto levinasiano, ou melhor, precisamos aceitar que esse rosto está


lá, na verdade, aqui.
A princípio, um ente que rompe a dicotomia humano/não humano
(seja ele um robô ou um planeta) não pode ter um rosto levinasiano, já
que a visão teológica de Lévinas amarra o conceito a um encontro entre
dois humanos (na concepção humanista do termo), como explica Butler,
no prefácio do volume que abriga o ensaio de mesmo nome (BUTLER,
2004, p. XVIII). Contudo, o Pós-Humanismo, como sabemos, não nega o
humano, nem advoga o anti-humano, tampouco admite o inumano; apenas
reivindica uma desconstrução da concepção humanista de humano (as
ideias de essência humana, natureza humana, excepcionalismo humano
e antropocentrismo) como condição para reverter “externalidades” do
humanismo (liberal), tais como o colonialismo e a exploração irracio-
nal da materialidade e da vida no planeta. Além disso, também explica
Butler (2004, p. 132), quando um humano é exposto à vulnerabilidade
existencial do outro, pelo rosto, ele coloca seu próprio direito ontológico
em questão. Assim, ainda que esse outro seja não humano, a abertura
para seu rosto tem uma implicação ética.
De outro ângulo, Bruno Latour (2015) explica que os humanos não
conseguem ser tocados pelo clamor do planeta acerca da precariedade de
seu equilíbrio vibrante mediante a atividade antrópica que agrava, por
exemplo, as mudanças climáticas. Essa incapacidade, explica o filósofo,
é de fundo humanista e antropocêntrico; trata-se de uma incapacidade
de reconhecer o planeta como sujeito (não como contexto), ou ao menos
como algo fora da dicotomia sujeito/objeto, algo/alguém a quem deve-
mos reciprocidade moral. Uma das formas propostas pelo autor para
que esse rosto levinasiano de Gaia – que é como Latour (2015) se refere
ao planeta sujeito – nos possa interpelar é tornar visível sua vibrância/
vitalismo na forma de dados científicos exibidos em tempo real (de modo
figurativizado/antropomorfizado ou não). Mas se, como disse Butler
(2004), a representação pode desumanizar ao apagar o rosto por trás
de uma face demonizada (ou endeusada, como sugere Gaia), não será a

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

representação da informação a solução. A proposta que faço, a seguir, é


pensar o potencial da informação para a incumbência de revelar o rosto
pós-humano, em outro sentido; isto é, a informação pensada como padrões
probabilísticos que constituem seres a partir de seus comportamentos,
não de sua aparência, e para a qual, portanto, pouco importa quem é
humano e quem não é.

INFORMAÇÃO, CORPO E SENTIDO NA BUSCA DO ROSTO


PÓS-HUMANO

Ao abordar “informação” nesta reflexão, não falo de unidades de


saber ou uma forma de representação de fatos empíricos, carregados de
sentido cultural, como muitas vezes queremos dizer com a palavra, mas
de informação no sentido técnico (matemático, cibernético): informação
como padrão estatístico envolvido no processo de enviar-se ou receber-
-se uma sequência de símbolos que, eles sim, podem querer dizer algo a
alguém; ou como medida dos graus de liberdade/possibilidade disponíveis
num conjunto de elementos que não podem se combinar aleatoriamente.
Informação, nessa acepção, não é sentido; ela indica o que ou quanto
poderia ser dito em alguma mensagem, mas não é a mensagem. Assim,
uma mensagem carregada do sentido A e outra carregada no sentido
não-A podem conter exatamente a mesma informação (SHANNON;
WEAVER, 1975). A representação, portanto, é totalmente irrelevante
para a engenharia da mensagem ou do ser informacional em questão,
porém a engenharia dessa mensagem ou desse ser não é absolutamente
irrelevante para os sentidos que a mensagem ou o ser possam adquirir
na experiência de algo ou alguém.
Em cibernética, a ciência dos sistemas de controle (de qualquer
coisa, inclusive de organismos biológicos e/ou híbridos), um bit de in-
formação é definido como uma diferença que faz diferença (BATESON,
1979). Não importa se humana, máquina ou animal/vegetal, a entidade
cibernética é constituída a partir daquilo que, podendo acontecer, não

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

acontece por conta de alguma restrição versus aquilo que, acontecendo,


é redundante. Assim como a engenharia dos sistemas de informação não
leva em conta o sentido, mas o conjunto do que pode ser transmitido, a
cibernética também não leva em conta o corpo ou a ontologia do ente,
mas seus comportamentos e, eventualmente, sua complexidade. O que
é algo, é o que age como sendo algo4.
Humanos ou não, todos os sistemas cibernéticos são precários, pois
seguem a lei geral da física segundo a qual o universo tende à entropia.
O que é vivo, ou se comporta como tal, é parte de algum pequeno bolsão
de atividade do universo em que há mais informação do que entropia. A
entropia exprime a quantidade de aleatoriedade (ou imprevisibilidade, ou
desorganização estatística) em uma situação (ou sistema, ou ser). Nos
sistemas biológicos, a tendência inevitável à entropia é o que chamamos
de inevitabilidade da morte. Na morte, o corpo humano, em seus diferen-
tes sistemas e relações internas e externas, se desorganiza, é absorvido
pelo ambiente físico como insumo químico, ou, no ambiente cultural,
como signo, memória, evocação de um sentimento que se encaixa em
algum outro sistema etc. Sociedades também tendem à entropia, que
cresce perigosamente quando ocorre o que Bateson (1987) chamou de
esquismogênese, isto é, quando as ações recíprocas entre seus membros,
ou sobre participantes de qualquer processo interativo recursivo, tornam-
-se de tal modo adversárias e endurecidas, quer por oposição, quer por
complementariedade, que a informação (no sentido de circulação de
diferenças que fazem diferença entre as partes) decai (isto é, os padrões
de organização e conciliação de interesses que emergiam antes perdem
sustentação, pois os graus de liberdade foram suprimidos pelo enrijeci-
mento), ao passo que a entropia sobe até o limite máximo, o que leva ao
surgimento de dois novos sistemas separados.
Ainda que a máxima entropia do sistema seja sua morte, todo sistema
precisa de uma certa quantidade de “entropia relativa” (entre a atual e a
4 É essa concepção que permite, por exemplo, que os cientistas de computação chamem programas
que executam tarefas cognitivas se refiram a esses programas como inteligências (artificiais).

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

máxima), sem a qual perde sua “espontaneidade” (vibrância, vitalidade) e


capacidade de agir. O sistema ortográfico de uma língua como o inglês,
por exemplo, precisa ter pelo menos 50% de entropia relativa, isto é, de
“liberdade estatística” de escolha de tal letra após tal outra, dentro das
restrições impostas pelas regras da língua, para que seja possível se jogar
“palavras cruzadas”. Com mais de 80% de entropia, toda palavra poderia
cruzar qualquer outra, não haveria desafio; com menos de 20%, haveria
tantas restrições para os cruzamentos que poucas palavras poderiam ser
cruzadas, o jogo perderia totalmente a graça5.
Humanos, quando fazem palavras cruzadas, raramente atentam
ao sentido das palavras em si (exceto quando lhes são desconhecidas),
tampouco tentam, em geral, articulá-las como narrativa ou argumento.
Não há muita filosofia no fato de que “sapato” cruza com “tomate”, mas
há informação no fato de que o “t” que segue o “a” de “sapato” também
pode seguir o a “a” de “tomate”. Ainda assim, quer se jogue palavras-
-cruzadas para passar o tempo, aumentar o vocabulário ou retardar a
doença de Alzheimer, informação e experiência – e, logo, sentido – estão
vinculadas de um modo análogo ao da relação entre linguagem e rosto:
não se espelham, mas não podem se isolar mutuamente. Informação e
sentido não são, portanto, nem sinônimos, tampouco antônimos. Sim-
plesmente não se pode mapear um sobre o outro sem perda ou violência.
Tratá-los como espelho um do outro é possivelmente o reducionismo
mais perigoso dos nossos tempos, algo análogo à desumanização do
rosto pela representação da face de que fala Butler. O rosto do sujeito
pós-humano deve estar, então, nos limites, na interface6 entre as duas
coisas, no modo como se refratam quando o sujeito coletivo transverso
do pós-humanismo se interpela.

5 Este é um modo popular de explicar o conceito a estudantes da área, inspirado em Shannon


(1948).
6 Entendo por “interface” não um ponto de contato neutro, mas uma zona de tradução ou
mapeamento não linear entre bits e símbolos que passa necessariamente pela precariedade/
contingência e pela imaginação.

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

A seguir, trago alguns exemplos de momentos em que, acredito,


possamos flagrar esse processo e, de alguma forma, intuir a emergência
ou fuga de um rosto pós-humano. No primeiro exemplo, trato do reco-
nhecimento automático de faces para propósitos policiais. No segundo,
abordo a engenharia de faces digitais que traz ao mundo “pessoas que
não existem”. No terceiro exemplo, comento a construção de robôs
facialmente expressivos para o setor de serviços a humanos. O último
exemplo trata de uma espécie animal cuja face se adaptou ao humano
pela seleção genética e pela domesticação.

PROCURANDO O ROSTO PÓS-HUMANO

O reconhecimento facial digitalizado é uma tecnologia que, não


surpreendentemente, se instalou de forma rápida e definitiva nos serviços
de segurança pública e vigilância privada. Bancos de dados contendo
milhões de fotos digitalizadas são submetidas a processos de apren-
dizagem de máquina, com ou sem supervisão humana, que capturam,
estatisticamente, padrões anatômicos das faces, a partir dos quais pes-
soas podem ser identificadas por fotos e vídeos colhidos em qualquer
lugar. Conectar essa parte de um corpo humano a um sujeito civil via
informação matemática é possível porque todo cidadão é obrigado a tirar
uma foto quando faz sua carteira de identidade ou de motorista. Se não,
porque quase todo cidadão tem imagens postadas na internet, por vezes,
à revelia. Eliminando a informação redundante em todas essas faces, o
algoritmo encontra diferenças que fazem diferença no banco de dados.
Essa tecnologia policial é usada também por consumidores que
utilizam reconhecimento facial em seus celulares ou portarias digitais,
por exemplo. E são também as pessoas comuns, que, em última instância,
ajudam a desenvolver o software postando selfies em grande profusão
em redes sociais on-line, isto é, provendo o campo de treinamento que
o sistema utilizará para tornar sua capacidade de reconhecimento mais
precisa.

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

É bem sabido que, em encontros entre polícia e faces negras em


ex-colônias escravagistas como o Brasil e os EUA, o clamor do rosto le-
vinasiano é obnubilado por um racismo estrutural que a máquina também
“aprende”, pela composição demograficamente enviesada das imagens
selecionadas pelo produtor do banco de dados de treinamento. Ademais,
a pele negra, por uma questão de física óptica, apresenta uma entropia
relativa maior para propósitos de digitalização quando fotografada.
Além disso, independentemente do uso de tecnologias, existe um viés
cultural-e-biológico nos diferentes grupos étnicos pelo qual o sistema
nervoso do observador do grupo étnico A tende a perceber menos dife-
renças que fazem diferença em faces do grupo B do que em seu próprio
grupo. Em outras palavras, para quem é do grupo A e não convive com
quem é do grupo B, sobretudo quando B é considerado subalterno a A,
qualquer palavra do jogo tente a combinar com qualquer outra, “B é
tudo igual”, seja B negro, oriental ou qualquer outro que não A. Assim,
seja na construção do banco de dados, seja na construção histórica das
subjetividades e alteridades culturais, sentido e informação se refratam
de formas particulares nesses sistemas.
Em alguns sistemas desse tipo, o número de falsos reconhecimentos
é 40% maior para negros, em comparação com brancos (KLARE et al.,
2012). Um dos casos notórios em que o rosto de uma pessoa negra foi
aviltado pela refração da informação no sentido é o do norte-americano
Nijeer Parks, que, em 2019, passou dez dias na cadeia porque um policial
branco confiou cegamente num sistema que identificou sua face com a
face de um criminoso, esta estampada em uma carteira de motorista falsa,
deixada na cena do crime (GENERAL; SARLIN, 2021). A comoção em
torno do caso foi grande não apenas pela injustiça cometida, mas porque
um olhar minimamente mais atento teria notado facilmente diferenças
visuais que fazem grande diferença entre as duas faces (por exemplo, o
criminoso tinha um brinco para o qual Nijeer não tinha furo). Um outro
caso emblemático foi o de um casal negro que o sistema de etiquetamento
automático de imagens da Google identificou como gorilas em uma rede
social (AGRELA, 2015). O viés racial no banco de dados, em alguns

131
VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

casos, vem associado a questões de classe, idade, origem, escolaridade,


local de moradia etc. Assim, tornou-se público, por exemplo, que a Goo-
gle enviou, anonimamente, funcionários a Atlanta – cidade de demografia
altamente afrodescendente – para obter fotos de universitários negros e
de pessoas em situação de rua, em troca de um gift card de cinco dólares,
a pretexto de um jogo envolvendo selfies, visando a melhorar o sistema
de reconhecimento de seu celular Pixel 4 (HOLLISTER, 2019).
Sistemas de reconhecimento de faces têm se mostrado, como visto,
uma mídia que bloqueia o rosto a pretexto de identificar faces humanas.
Nesse caso, o lado humano do ciborgue inscreve o racismo informa-
cionalmente na ecologia cibernética do sistema policial + algoritmo de
reconhecimento, exportando entropia para as vidas precárias de corpos
negros obrigados a padecer na cadeia para provar que sua face é sua.
No sentido oposto dessa refração entre sentido e informação, existe um
outro exemplo de manipulação da relação entre informação e sentido
por meio da entropia relativa. Trata-se de uma forma de subversão da
ontologia do humano de modo análogo a subverter a ortografia à revelia
do sentido, mas dentro dos restritores da língua. Em outras palavras, trata-
-se de trapacear no jogo por meio de (pseudo)morfemas que permitem
cruzarem-se palavras vazias de referência no mundo da experiência,
como no exemplo a seguir:
Figura 1: Exemplo de subversão da entropia relativa em um jogo
de palavras cruzadas

Fonte: elaborada pelo autor

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

É assim que funciona o software StyleGAN, criado pela empresa


Nvidia, líder de mercado em processamento visual, cujo funcionamento
pode ser experimentado no website intitulado “This person does not
exist”7. A cada acesso ao site, o programa gera o registro fotográfico (na
verdade, um bitmap gerado matematicamente) do que seria uma face
humana. Tais faces são de tal forma verossímeis que se torna legalmente
aconselhável avisar o leitor de que aquela “pessoa” não existe no mundo
físico. São, inclusive, faces etnicamente coerentes e variadas, embora, em
minha experiência de uso, o site tenha gerado consideravelmente mais
faces brancas e asiáticas do que negras. Da mesma forma, quase todas a
faces geradas a que tive acesso estavam sorrindo.
A analogia com as palavras cruzadas, nesse caso, vem de que o
software opera identificando e selecionando “imagens semânticas”, isto
é, partes da varredura estatística operada sobre fotos no banco de dados
por redes neurais adversárias. Esses dois “cérebros” de silício jogam um
jogo de adivinhar se o rosto produzido pelo outro é de verdade, com base
em dados de fotografias de faces reais estocadas no banco de dados; ganha
a rede que mais se aproxima de fazer a adversária reconhecer como real
uma face gerada por si.
No processo de construção, o sistema mapeia porções topográficas
discretas de faces humanas que tenham significado cultural ou contenham
diferenças que fazem diferença para nós (olhos, bocas, narizes, cabelo,
sobrancelha, cor de pele etc.). Esses elementos são embaralhados de
forma relativamente aleatória, mas dentro de restritores que, pode-se
supor, incluam etnicidade, idade e gênero. Dessa forma, aproveita-se a
entropia relativa das fisionomias humanas para gerar faces virtuais, as
quais os construtores do sistema chamam de “estilos”8.
Ocasionalmente, os “estilos” violam nossa experiência cultural de
faces humanas – uma criança que aparenta ter alguns fios de barba, uma
7 Disponível em: <www.thispersondoesnotexist.com> Acesso em: 7 jan. 2022.
8 É possível acompanhar uma explicação didática do processo em um vídeo dos pesquisadores
responsáveis, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=u8qPvzk0AfY>.

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pessoa negra com olhos que parecem ser orientais, um corte de cabelo
altamente improvável para uma pessoa muito idosa etc. A sensação de
estranheza que esse tipo de estilo gera de algum modo remete aos res-
tritores biológicos (genéticos e anatômicos) de corpos humanos, alguns
dos quais não chegam a marcar distinções cultuais de gênero, etnia, faixa
etária, entre outras. Assim, o sistema recupera padrões que eventualmente
nos alienam da precariedade da vida do outro, justamente para produzir
o que seriam faces humanas mais críveis.
De outro lado, os “estilos” evocam disposições, sensações,
preconceitos e empatia, ou desprezo, dos observadores humanos, e,
por isso, são usados para figurativizar robôs de atendimento virtual,
locutores ou tradutores automáticos em vídeos, personagens que apli-
cam golpes e estelionatos em mídias sociais, “atores” de campanhas
publicitárias entre outros usos. Os estilos são, portanto, uma forma de
evocar, para os negócios, a sensação de que há um rosto por trás do
que é, em verdade, um jogo de “imagens semânticas” cruzadas, uma
brincadeira de entropia relativa, ou seja, não se trata de poluir o rosto
pela representação, como explicou Butler (2004), mas de vender face
por rosto, pela entropia relativa.
O terceiro exemplo de refração entre sentido e informação num
suposto rosto pós-humano é o dos robôs humanoides facialmente ex-
pressivos, como os chamam os engenheiros e pesquisadores em inte-
ligência emocional robótica e computação afetiva9 que os constroem.
Muitos desses robôs têm se tornado celebridades, como é o caso de
Sophia, a estrela da Hanson Robotics10 na Internet. Tanto para identi-
9 “Inteligência emocional robótica” e “computação afetiva” são áreas das ciências da computação,
não metáforas criadas por mim. Trata-se de desenvolver artefatos e softwares que capturem e
evoquem sentimentos e atitudes emocionais nos seres humanos que os utilizam, para quaisquer
fins (SPEZIALETTI; PLACIDI; ROSSI, 2020).
10 A empresa disponibiliza uma “entrevista coletiva”, voltada para a atração de investimentos,
com a androide em vídeo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=S5t6K9iwcdw>.
Mais do que entender como o artefato funciona, a entrevista é interessante como acesso aos
discursos que buscam legitimar sua existência, instaladas em sua memória e de alguma forma
suportados pela atitude condescendente do entrevistador. Vale notar que a androide recebeu
o título de cidadã da Arábia Saudita, em mais uma das ações de marketing em torno dela.

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

ficação de emoções do interlocutor como para expressão de emoções


(formalmente) humanas em voz e face, esses artefatos utilizam a in-
formação contida na correlação informacional entre o posicionamento
de certos pontos articulatórios do rosto humano, o contexto (espacial,
linguístico ou de outro tipo) e os comportamentos musculares da face,
não totalmente conscientes, inscritos em nosso sistema nervoso pela
evolução da espécie, acionados por padrões de feedback codificados
socialmente.
O grande investimento feito nessa pesquisa tem como motivação
os ganhos esperados com o uso, por empresas e outros atores, de robôs
sociais, isto é, robôs que se orientem pelos estados afetivos presumidos
dos seus usuários e que possam induzir, neles, um vínculo afetivo-social
(FARAJ et al., 2021), portanto moral. Esse vínculo traz como benefício
não só uma “otimização” nas interações humano-robô, como a prevenção
de vandalismos contra as máquinas, já que é sabido que máquinas voltadas
para serviços a humanos que sejam antropomórficas são vandalizadas
com menos frequência do que as demais.
Especialistas nessa área enfrentam, contudo, um problema em torno
do qual muitas pesquisas vêm sendo feitas: o vale da estranheza (MORI;
MACDORMAN; KAGEKI, 2012). A expressão remete a uma desconti-
nuidade ou queda súbita na curva do gráfico que representa a relação entre
empatia humana pela máquina e semelhança entre máquina e humano.
Dito de outra forma: seres humanos demonstram/sentem emoções posi-
tivas e empatizam com máquinas antropomórficas de forma crescente,
conforme o grau de semelhança entre máquina e humano. Assim, a curva
ascende quando se pensa em um bicho de pelúcia em comparação com
um robô industrial e, novamente, quando se compara um robô humanoide
ao bicho de pelúcia, mas isso muda quando se atinge um limiar no qual
a máquina se torna “excessivamente semelhante”, o que faz emergir,
no humano, uma sensação incômoda de estranheza (uncannyness). Os
robôs muito realistas e facialmente expressivos ocupam esse lugar. A
reação de estranheza, inescrutabilidade e, eventualmente, rejeição que o

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comportamento (e aparência) da face do robô evoca é justamente o oposto


do que esperariam os entusiastas da inteligência emocional robótica, por
isso o vale da estranheza é objeto de muita investigação e debate. Trago
aqui o ponto de vista dos psicólogos Gray e Wegner (2012), que, tendo
realizado três diferentes séries de experimentos com esse tipo de robô,
concluíram que o efeito de estranheza emerge no momento em que o
humano interagente se percebe na iminência de atribuir uma mente ou
consciência à criatura, que ele sabe racionalmente não ser humana. Mais
especificamente, os interagentes humanos são cativados pela agência do
robô (em geral, isso aumenta a empatia com eles até o limiar do vale),
mas assombrados pela sensação (induzida pré-racionalmente, pela in-
formação na face) de que estejam partilhando a mesma experiência (no
sentido fenomenológico).
Assim como os “estilos”, parece estar em jogo aí a projeção de
um suposto rosto por trás do artefato. Diferentemente dos “estilos” que
emulam fotografias, porém, um robô humanoide tem um corpo material
antropomórfico e um comportamento corporal antropomórfico: fala,
escuta, anda, sorri etc. Assim, o robô diminui, consideravelmente, em
relação aos “estilos”, a entropia relativa entre humano e não humano.
Excessivamente, talvez, a ponto de obrigar o jogador a se preocupar com
o sentido das palavras que se cruzaram.
Como último exemplo, trago um contraponto aos robôs e compu-
tadores, apresentando um animal que mudou de face em razão de sua
relação com os humanos: a raposa prateada da Sibéria. Essa raposa é
uma variação melanística da raposa vermelha (Vulpes vulpes), que foi
submetida ao mais extenso experimento de seleção genética em tempo
real já realizado, iniciado pelo biólogo Dmitri Belyaev e sua pupila, a
geneticista Lyudmila Trut, em 1959, e ainda em andamento (LORD et
al., 2020). Trata-se de uma espécie cuja pele, à época, era muito requi-
sitada e extremamente cara, razão pela qual o governo soviético apoiou
e financiou o projeto, cujo objetivo científico, no entanto, era estudar
a hipótese de que o cão doméstico resultou da domesticação de lobos

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

selvagens. Ao governo soviético, interessava manejar geneticamente a


espécie visando a obter raposas mais dóceis ao trato em um sistema de
criação em fazendas, para fins comerciais.
A seleção genética tinha como regra permitir que apenas os animais
naturalmente mais dóceis se reproduzissem. Ao longo do experimento,
a população de raposas foi adquirindo traços típicos de espécies domés-
ticas há muito tempo (sobretudo cães), tais como orelhas caídas, caudas
curtas e enroladas, pelagem malhada e expressão facial juvenil (mesmo
em idade adulta), além de traços genéticos e fisiológicos específicos,
como redução das glândulas adrenais e níveis de hormônios do stress e
aumento do nível de serotonina (que promove bem-estar e felicidade).
Descobriu-se que essas mudanças estavam relacionadas à expressão
diferenciada de um dos genes da espécie, em associação com fatores
ambientais. Em poucos anos, as raposas passaram a lamber as mãos e
seguir o olhar dos tratadores, comportamentos jamais vistos em raposas
selvagens. Todas essas características fazem parte do que os biólogos
chamam de “síndrome da domesticação”, mas o experimento foi o
primeiro capaz de demonstrar que o traço fundamental que condiciona
processo da síndrome é a “mansidão”.
Comparar a face da raposa original do experimento com a da atual11
é um contraponto notável ao vale da estranheza, ainda que as faces da
nova raposa e do androide tenham sido igualmente produzidas por ma-
nipuladores de informação biológica; no caso das raposas, em lugar do
feedback emocional dos humanos, manipulou-se informação genética,
visando a diminuir a entropia relativa dos temperamentos entre os indi-
víduos da espécie, até que sua agência se tornasse compatível com nossa
experiência. Trata-se de um contraponto ao vale da estranheza, porque a
face da raposa, semelhante à de um filhote canino e, por extensão, indu-
zindo uma sensação parecida com a de estar com uma criança humana,
convida, em lugar de repelir, o acesso ao rosto dos humanos no que,
11 Dugatikin (2018) traz imagens que mostram essa diferença, havendo muitas outras facilmente
localizáveis na Internet.

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

agora, podemos chamar de uma espécie de companheira (HARAWAY,


2003). Pergunto-me, no entanto, se não foi a face “humanizada” da raposa
que, com seu corpo e seu comportamento programado biologicamente,
domesticou os humanos que agora as alimentam e protegem em lugar de
lhes arrancar a pele, como já teriam feito outras espécies não humanas
(HARARI, 2017). Teriam as raposas usado seu corpo como mídia que
acessa nosso rosto? Ou estaremos nós poluindo a face do pós-humano
com as representações que fazemos sobre nossos não humanos mais
próximos como mídia?
Quando chamamos cães de filhos, fazemos-lhes bolos de aniversá-
rio ou os fazemos participar de casamentos como “daminhas de honra”
que carregam as alianças, não estamos, no fundo, representando nossa
humanidade neles, em lugar de nos abrirmos para a precariedade de suas
vidas? Fazer dos animais nossos parentes, como pede Haraway (2015), é
certamente necessário e justo neste Antropoceno (ou Chthuluceno, como
prefere a autora). Mas teremos a humildade de não transformar a busca
desse rosto em mais colonização antropogênica?

À GUISA DE CONCLUSÃO

O rosto levinasiano não é, ou não deve ser, confundido com essência


humana, sobretudo no Antropoceno, sob risco de nos sentirmos justifi-
cados não apenas em nosso, bem conhecido, antropocentrismo, como no
estrago antropogênico que já fizemos e continuamos teimando em fazer,
inclusive no que toca as novas formas de exploração da grande mente
cibernética (humana + não humana) que inclui nossos próprios corpos
e mentes atados a máquinas do capitalismo cognitivo. Nas Ciências Hu-
manas, assim como nas Humanidades Pós-Humanistas, como as propõe
Braidotti (2019), é preciso pesquisar o rosto de um sujeito pós-humano,
coletivo e transversal, humano e não humano, quer atentando ao vitalis-
mo que constitui a materialidade dentro e fora de nós, ou aos jogos de
informação e entropia que nos seduzem ou espantam.

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

Talvez o rosto seja só o espanto de nos flagrarmos, por caminhos


tanto simbólicos como informacionais, menos os supostos sabedores que
sabem que sabem (o Homo Sapiens Sapiens) e mais como existentes que
percebem que existem não como átomos, mas como efeito de vínculos
(morais, informacionais, materiais, emocionais etc.) com nosso Outro
não humano.
Os exemplos que explorei aqui parecem indicar que o rosto pós-
-humano não é só um vínculo (moral) e uma profunda experiência
existencial, gerados pela percepção e sensação de mútua precariedade
entre seres humanos, a despeito da racialização, da misoginia, do pre-
conceito de classe e de outros restritores de entropia social e biológica
que se apoiam em alguma versão do Humanismo. Ele é algo que estamos
tentando representar mais do que acessar no Outro humano mesmo, que
chega como imigrante indesejado, que sofre com a fome, o racismo e
a homofobia. O que dizer de nosso Outro não humano, que clama para
que desçamos de nosso pedestal ontológico, horizontalizando verdadei-
ramente esses vínculos, em lugar de hominizar o não humano em jogos
narcísicos de informação e sentido, aparentemente mais voltados para
dominar, domesticar e comoditizar tanto Bios como Zoe?
Em suas conclusões, Butler (2004, p. 151) diz que é preciso “[...]
criar um senso do público em que as vozes que se opõem não sejam
temidas, degradadas ou dispensadas, mas valorizadas por instigarem a
democracia sensata que ocasionalmente desempenham”. Os pós-huma-
nismos, ao menos alguns deles, performam vozes desse tipo quando nos
interpelam acerca de uma suposta “natureza humana” ou de uma essência
que, suponho, seja bastante plausível, para o humanista, identificar como
o rosto levinasiano. É possível que o exercício de romper essa identifi-
cação sem, no entanto, destruir o conceito ou desprezar o fenômeno a
que remete, instigue um pouco de sensatez no cidadão antropocênico.

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VIDAS PRECÁRIAS, VIDAS INVENTADAS

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