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Vanda Fortuna Serafim
Daniel Lula Costa
(Organizadores)

DIVERSIDADE RELIGIOSA & HISTÓRIA


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Editor Comercial: Diego Ferreira
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DOI: 10.31012/ 978-65-5861-621-4

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária: Maria Isabel Schiavon Kinasz, CRB9 / 626

Diversidade religiosa & história


D618 Organização de Vanda Fortuna Serafim, Daniel Lula Costa –
1.ed. - Curitiba: Brazil Publishing, 2021.
[recurso eletrônico]

Vários colaboradores
ISBN 978-65-5861-621-4

1. Religião – Diversidade. 2. Religião – História. I. Serafim,


Vanda Fortuna (org.). II. Costa, Daniel Lula (org.).

CDD 200.9 (22.ed)


CDU 291

[1ª edição – Ano 2021]


www.aeditora.com.br
APRESENTAÇÃO

Prezado (a) leitor (a),


Essa coletânea é resultado do esforço de nosso grupo de pesquisa
História das Crenças e das Ideias Religiosas (HCIR/CNPQ/UEM). O grupo
atua tanto na Graduação quanto na Pós-Graduação, envolvendo alunos de
Graduação, Mestrado, Doutorado e professores universitários.
Desde o início da pandemia estivemos focados em oferecer cursos
e eventos online que possibilitassem a capacitação de profissionais da área
de educação e dessem condições ao público mais amplo e interessado,
em aprender sobre a historicidade dos fenômenos religiosos. Os temas
abordados dialogaram com cristianismos, catolicismos, espiritismos, can-
domblé, umbanda, budismo, xintoísmo, satanismo, ateísmo, entre outros,
todos resultantes de pesquisas científicas. Reforçamos a importância das
instituições universitárias em, por meio da extensão, promover discussões
sobre diversidade e direitos humanos, buscando sensibilizar à alteridade e
a empatia diante de qualquer discriminação religiosa.
Frente à ampla demanda de público interessada nas temáticas da
diversidade e da intolerância religiosas, surgiu a ideia de organizar uma
coletânea de textos acadêmicos que versassem sobre o tema Diversida-
de religiosa & História. Ao primar pelo respeito e o reconhecimento das
diferentes formas de crenças religiosas, e também daqueles que não
professam religião alguma, este livro pretende se constituir como uma
referência àqueles estudiosos, mas também curiosos e apaixonados,
pelas abordagens, reflexões, movimentos, hibridações tecidas por, e em
virtude do estudo das crenças e das ideias religiosas, ao longo da história.
O intuito, com base nas pesquisas realizadas, é contribuir para divulgar
e democratizar o conhecimento produzido no âmbito das universidades
sobre diversidade religiosa e suas relações com a história.
À época da produção desta proposta, uma mãe perdeu a guarda da
filha de 12 anos, por conta da iniciação da filha em um ritual do candomblé.
A denúncia teria partido da avó, evangélica, que não aceita a religião dos
orixás. O mais interessante é que, o conselho tutelar receber a acusação e
legitimar a “raspagem de cabeça”, como ato de violência a menor. Mesmo
com as justificativas, mãe e filha foram levadas para a delegacia. Só foram
liberadas depois de a jovem passar por exame de corpo de delito no IML
(Instituto Médico Legal), que não encontrou nenhum tipo de hematoma
ou lesão. A adolescente só estava com a cabeça raspada — segundo ela,
estava se tornando filha de Iemanjá. Nestes rituais, chamados de feitura
de santo, o novo adepto fica 21 dias recluso no terreiro. Durante o retiro es-
piritual, recebe banhos de ervas e é exposto a fundamentos da religião. A
ideia é que ele se purifique, entre em contato com o axé, e de acordo com
a tradição, renasça conectado com valores ancestrais da crença. Desse
ponto de vista, a passagem pelo terreiro é uma gestação. Raspar o cabelo
é um ato sagrado e simboliza tudo isso. [...] Frequentadora do candomblé
há dez anos, a mãe diz nunca ter visto algo parecido. “O pior de tudo é
que em nenhum momento ouviram minha filha ou a mim. Simplesmente
a tiraram de mim. Eu nunca a obriguei a nada, esse sempre foi o sonho
dela. Ela está chorando a todo momento, me liga de dez em dez minutos
querendo vir para casa”, conta a mãe para a reportagem1.
A situação narrada é inconstitucional, desrespeita o Estatuto da
Criança e do adolescente (ECA)2 e reitera valores racistas tão presentes na
sociedade brasileira, uma vez que as religiões afro-brasileiras são aquelas
que mais sofrem perseguições, ainda hoje. Evidenciando a necessidade

1 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/08/07/mae-perde-guar-


da-da-filha-apos-jovem-participar-de-ritual-do-candomble.htm?cmpid=copiaecola&fbclid=IwAR1oexPe-
Q2s1Rtz8N7PujN9qiKmvkRDTqVAJumBfqYyDpTXt92DPtOlxUio. Acesso em: 8 jul. 2020.
2 BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá
outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm#art266. Acesso em: 16 dez. 2018.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal:
Centro Gráfico, 1988.
de uma discussão que fortaleça não apenas a necessidade de respeito às
crenças e à liberdade de consciência, mas à própria historicidade desses
casos de intolerância no Brasil, mas também pensadas em contextos mais
amplos. O artigo 18º da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma
que toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência
e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de
convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção,
sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino,
pela prática, pelo culto e pelos ritos.3
No Brasil, o direito à liberdade de religião ou crença é previsto
pela Constituição Federal, em seu artigo 5º, VI - é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos re-
ligiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas
liturgias. O Estatuto da Criança e do adolescente, determina que a criança
e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como
pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de
direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. O
Art. 16. estabelece que o direito à liberdade compreende dentre os seus
aspectos: III - crença e culto religioso4.
Conhecer e se familiarizar com os processos históricos da organi-
zação religiosa no Brasil, em consonância com processos mais amplos, é
fundamental para romper preceitos e preconceitos enraizados em nossas
subjetividades e visões de mundo. É preciso reconhecer que a religião,
entendida como tal, organizou-se no Brasil por meio da imposição. Ser
português no século XVI era sinônimo de ser católico e o regime do pa-
droado (que vincula Estado e Igreja) queria expandir esse catolicismo para
fora da América. Os indígenas foram forçados a conversão ao catolicismo.
Muitos portugueses que vieram para o Brasil, eram recém-conversos e o
mesmo aconteceu com os escravos. Os escravizados eram convertidos ao

3 ONU. Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nova York:
Unicef, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.
Acesso em: 29 mar. 2021.
4 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal:
Centro Gráfico, 1988.
catolicismo, batizados já no navio, durante o tráfico. Eram obrigados a ser
cristãos, participar dos ritos e comportar-se como católicos (SILVA, 2005)5.
O nosso convite é para que, durante a leitura, você possa se aventu-
rar e se permitir conhecer um pouquinho mais da complexidade do estudo
das crenças, das religiões e religiosidades que permeiam o nosso cotidiano.
No capítulo primeiro, Vanda Fortuna Serafim analisa a forma como
as práticas afro-brasileiras foram tratadas na obra As religiões no Rio, de João
do Rio. Preocupa-se com o contexto dos primeiros anos do século XX na
cidade do Rio de Janeiro. Sua proposta se preocupa com a diversidade reli-
giosa no Brasil e em como os intelectuais a interpretaram. Dessa forma, ela
constata o olhar “antifetichista” de João do Rio sobre as crenças que observa.
Ana Paula de Assis Souza, no segundo capítulo, preocupa-se com
as narrativas de Nina Rodrigues em sua obra O Animismo Fetichista dos
negros Bahianos, de 1935, e com João do Rio em As religiões no Rio, de
1906. Seu objetivo é analisar como essas fontes históricas descrevem e
interpretam os ritos iniciáticos afro-brasileiros. Para efetivar sua análise,
preocupa-se com teóricos que refletiram sobre o rito de iniciação e aplica
seus conceitos com o objetivo de compreender como os ritos afro-brasi-
leiros foram compreendidos pelas fontes investigadas.
Em Por trás dos muros: os umbandistas no tecido urbano de
Uberlândia-MG, Cairo Mohamad Ibrahim Katrib parte da ideia de que as
práticas da religiosidade afro-brasileira sofreram notáveis transformações
a partir dos anos 2000. Sua atenção está voltada para a Umbanda e suas
múltiplas representações, que nesse contexto, sentiram uma série de
políticas públicas sendo efetivadas no campo das ações compensatórias
do Estado. Seu capítulo encontra suporte na História Cultural e história das
religiosidades, que permitem entender o movimento do terreno religioso.
No próximo capítulo, intitulado Exu e os limites do binarismo concei-
tual, Laís Azevedo Fialho realiza uma análise sobre a obra literária Deuses
de dois mundos de PJ Pereira, centrando-se na abordagem de algumas
representações históricas de Exu. Seu suporte teórico-metodológico re-

5 SILVA, Vagner Gonçalves da. Candomblé e Umbanda: Caminhos da Devoção Brasileira. São Paulo: Selo
Negro, 2005.
side na perspectiva da História Cultural e Teoria Pós-Colonial. O objetivo
é problematizar os limites do binarismo conceitual denunciado pela figura
de Exu, a qual pode ser interpretada enquanto fundamento epistemológi-
co no combate à lógica colonial.
Ao entrar em uma análise das espacialidades, André Luís Nas-
cimento de Souza, em seu capítulo Espacialidades do Catimbó-Jurema,
pesquisa os espaços e a sua construção imaginária e imaginada, ou de
uma “geografia sobrenatural” que se manifesta no sistema místico-reli-
gioso do catimbó-jurema. Em sua análise somos apresentados a diversos
espaços dessa religião, como o terreiro, o corpo, as cidades espirituais, o
peji ou altar, as aldeias e reinos.
O capítulo de Adriana Gomes, A judicialização do espiritismo na
Primeira República, discute como o Código Penal de 1890, que criminalizou
o espiritismo, foi recebido no contexto do Instituto da Ordem dos Advoga-
dos e em fontes como as Notas Históricas. Esse código foi legislado por
Baptista Pereira, no qual reitera a ilegalidade do espiritismo enquanto um
“crime indígena”. Por meio do trabalho com as fontes, Gomes pontua como
a mediunidade foi interpretada pelo legislativo e associada a tradições que
não condizem com o projeto de país republicano que desejavam construir,
inserindo nesse âmbito as religiões de matriz africana e o espiritismo.
Partindo de uma temática sobre mediunidade e espiritismo, Ga-
briela Harumi Araki objetiva refletir sobre o contexto de produção da obra
Ricerche sui fenomeni ipnotici e spiritici, de Cesare Lombroso (1909), em
seu capítulo Mediunidade e Espiritismo em fin-de-siècle italiano: o olhar de
Cesare Lombroso (1909). Sua discussão teórica parte dos estudos de Vanda
Fortuna Serafim (2013), Michel de Certeau (1982) e Bruno Latour (2004).
Ainda na temática da prática mediúnica, Gabriella Bertrami Vieira
investiga e problematiza o documentário Santo Forte do cineasta Eduardo
Coutinho (1933-2014). Seu capítulo, Hibridismos e trânsitos religiosos no
Brasil: uma análise a partir do documentário Santo Forte (1999), objetiva
compreender a emergência de hibridismos e trânsitos religiosos no do-
cumento histórico Santo Forte ao demonstrar algumas dinâmicas do crer
contemporâneo no Brasil, com atenção às religiões mediúnicas.
Por meio da análise de fontes escritas e orais, Mary Campelo de
Oliveira problematiza a emergência de uma religiosidade não oficial por
meio da devoção a Carlindo Dantas, na cidade de Caicó, Rio Grande do
Norte. Seu objetivo é analisar como, após a morte trágica de Carlindo
Dantas, ele foi alçado à condição de “Milagreiro de Cemitério” na região do
Seridó Potiguar.
Ainda dentro desta temática de uma religiosidade não oficial,
Lourival Andrade Junior apresenta uma pesquisa sobre as tragédias
de Donária e Maria na cidade de Pompal, no Sertão Paraibano, em seu
capítulo As tragédias de Donária e Maria. Ao analisar as fontes do período,
o autor demonstra como a seca de 1877-79 influenciou no assassinato da
criança Maria, morta por sufocamento, decepada e com partes do seu
corpo consumidas por Donária dos Anjos. Lourival Andrade Junior destaca
que, após esse acontecimento, o local do crime foi compreendido como
um espaço sagrado.
Em um cenário complexo que parte da instituição para o meio do
catolicismo popular, a pesquisa de Allan Azevedo Andrade tem o objetivo
de compreender como o bispo D. José Afonso, do Pará, operacionalizou
a aplicação do catolicismo ultramontano em sua diocese, no recorte
temporal de 1844 a 1857. Em seu capítulo intitulado O Ultramontanismo e
os Desencontros com o Catolicismo Popular no Pará Oitocentista, Andrade
empreende uma análise de documentos que possuem discursos da Igreja,
como jornais, livros e relatórios de presidente da província.
O capítulo de Mariane Rosa Emerenciano da Silva, Vivências do
catolicismo: o peregrinar como experiência religiosa no Hallel (Maringá-PR,
1995-2019), parte de pesquisas de campo e entrevistas realizadas entre
2014 e 2019 com objetivo de observar o papel do “peregrino” no even-
to Hallel, que acontece na cidade de Maringá, no estado do Paraná. Ao
compreender o peregrino como aquele que vivencia a prática religiosa de
forma voluntária, autônoma, individual e móvel, a autora analisa sua figura
e apresenta os módulos do Hallel, evento de música católico.
Partindo para a diversidade de crenças e suas variadas interpreta-
ções, Rafaela Arienti Barbieri apresenta seu capítulo O Pânico Satânico:
considerações sobre Satã e Satanismo nos Estados Unidos nas décadas de
1970 e 1980. Seu objetivo é analisar o fenômeno do Pânico Satânico que foi
vivenciado nos Estados Unidos em 1980. A autora analisa fontes documen-
tais variadas como casos judiciais envolvendo o pânico moral que resultou
do fenômeno estudado, além de depoimentos de ex-satanistas realizados
em programas televisivos.
Seguindo uma preocupação sobre a operacionalização de casos
judiciais e sua relação com a religião, Rodolpho Alexandre de Mello Bas-
tos problematiza o âmbito jurídico e as presenças de discursos religiosos
medievais sobre o feminino que ainda ressoa no mundo contemporâneo.
Em seu capítulo, O Gênero de Deus: ressonâncias de discursos clericais me-
dievais em uma decisão judicial sobre a Lei Maria da Penha, Bastos analisa
uma decisão judicial proferida em 2007 em que o juiz ataca a lei Maria
da Penha ao argumentar acerca de seu caráter herético, contra a lógica
de Deus. Diante disso, o autor investiga a presença de discursos clericais
medievais sobre o feminino na decisão judicial.
Voltando-se para o período medieval, o capítulo Mito e Magia: o
veículo mágico da poética medieval, de Daniel Lula Costa, tem a proposta
de analisar os vestígios de um veículo mágico da poética medieval por
meio do conceito benjaminiano de “magia da linguagem”. Sua pesquisa se
concentra em problematizar alguns Cantos da obra Commedia, de Dante
Alighieri, para verificar como a linguagem presente em uma narrativa mí-
tica enuncia a espiritualidade do mundo enquanto presença, conforme o
conceito de Gumbrecht (2009).
Para finalizar a apresentação dos capítulos, somos introduzidos à
pesquisa de Leonardo Henrique Luiz e Richard Gonçalves André intitu-
lada O budismo e as Ciências Humanas: considerações sobre a produção
acadêmica no Brasil. Nesta pesquisa, a preocupação dos autores é mapear
a historiografia sobre o budismo japonês no Brasil. Para isso, foram anali-
sados trabalhos acerca do tema por meio do conceito de lugar social, de
Michel de Certeau.
Neste momento, convidamos vocês a partirem nesta jornada
pelos saberes que tangenciam as diversidades religiosas e as histórias.
As pesquisas interculturais que vocês encontram aqui demonstram a
riqueza de abordagens sobre as práticas e os fenômenos religiosos,
permitindo conhecer sob variadas perspectivas teóricas as desconti-
nuidades e as complexidades da operacionalização do crer e da sua
relação com a história. Almejamos que as discussões despertem para
mundos plurais em que o respeito e os saberes se encontrem na com-
plexidade da vivência humana.

Vanda Fortuna Serafim


Daniel Lula Costa
Outono de 2021
SUMÁRIO

O MUNDO DOS FEITIÇOS: AS CRENÇAS AFRO-BRASILEIRAS SOB A ÓTICA DE JOÃO


DO RIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Vanda Fortuna Serafim

FAZER O SANTO: OS RITOS INICIÁTICOS EM NINA RODRIGUES E JOÃO DO RIO . 34


Ana Paula de Assis Souza

POR TRÁS DOS MUROS: OS UMBANDISTAS NO TECIDO URBANO DE UBERLÂNDIA-


MG. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Cairo Mohamad Ibrahim Katrib

EXU E OS LIMITES DO BINARISMO CONCEITUAL. . . . . . . . . . . . . . .82


Laís Azevedo Fialho

ESPACIALIDADES DO CATIMBÓ-JUREMA. . . . . . . . . . . . . . . . . 102


André Luís Nascimento de Souza

A JUDICIALIZAÇÃO DO ESPIRITISMO NA PRIMEIRA REPÚBLICA. . . . . . . 121


Adriana Gomes

MEDIUNIDADE E ESPIRITISMO EM FIN-DE-SIÈCLE ITALIANO: O OLHAR DE CESARE


LOMBROSO (1909). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146
Gabriela Harumi Araki

HIBRIDISMOS E TRÂNSITOS RELIGIOSOS NO BRASIL: UMA ANÁLISE A PARTIR DO


DOCUMENTÁRIO SANTO FORTE (1999) . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166
Gabriella Bertrami Vieira

UM “MILAGREIRO DE CEMITÉRIO” NA CIDADE DE CAICÓ/RN: DEVOÇÃO NÃO


OFICIAL A CARLINDO DE SOUZA DANTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
Mary Campelo de Oliveira
AS TRAGÉDIAS DE DONÁRIA E MARIA: SECA, CRIME E MILAGRES NO SERTÃO
PARAIBANO - SÉCULOS XIX E XX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
Lourival Andrade Junio

O ULTRAMONTANISMO E OS DESENCONTROS COM O CATOLICISMO POPULAR NO


PARÁ OITOCENTISTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231
Allan Azevedo Andrade

VIVÊNCIAS DO CATOLICISMOO PEREGRINAR COMO EXPERIÊNCIA RELIGIOSA NO


HALLEL (MARINGÁ-PR, 1995-2019) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249
Mariane Rosa Emerenciano da Silva

O PÂNICO SATÂNICO: CONSIDERAÇÕES SOBRE SATÃ E SATANISMO NOS ESTADOS


UNIDOS NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980. . . . . . . . . . . . . . . . . . 271
Rafaela Arienti Barbieri

O GÊNERO DE DEUS: RESSONÂNCIAS DE DISCURSOS CLERICAIS MEDIEVAIS EM


UMA DECISÃO JUDICIAL SOBRE A LEI MARIA DA PENHA. . . . . . . . . . 293
Rodolpho Alexandre Santos Melo Bastos

MITO E MAGIA: O VEÍCULO MÁGICO DA POÉTICA MEDIEVAL . . . . . . . . . 316


Daniel Lula Costa

O BUDISMO E AS CIÊNCIAS HUMANAS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRODUÇÃO


ACADÊMICA NO BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 337
Leonardo Henrique Luiz; Richard Gonçalves André

ÍNDICE REMISSIVO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 360


SOBRE OS ORGANIZADORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 362
O MUNDO DOS FEITIÇOS:
AS CRENÇAS AFRO-BRASILEIRAS
SOB A ÓTICA DE JOÃO DO RIO

Vanda Fortuna Serafim1

Resumo
Discute-se a forma como as práticas afro-brasileiras foram tratadas na obra As
religiões no Rio. O recorte histórico consiste no Rio de Janeiro e nos primeiros
anos do século XX. A partir de teóricos como Bruno Latour constata-se o olhar
“antifetichista” que João do Rio lança sobre as crenças coletivas que observa. O
texto reflete sobre a diversidade religiosa no Brasil e o olhar dos intelectuais para
crenças africanas.
Palavras-chave: Feitiço. Religião. João do Rio. Crenças Africanas.

Abstract
The article discusses the way African-Brazilian practices were presented in the book
As religiões no Rio. The historical section takes place in Rio de Janeiro and the first
years of the 20th century. Starting from theorists such as Bruno Latour, we realize
that João do Rio narratives highlights the collective beliefs in a “anti-fetishist” way.
The paper analyzes the religious diversity in Brazil and the intellectuals’ thinking of
African beliefs.
Keywords: Spell. Religion. João do Rio. Beliefs.

1 Doutora em História pela UFSC. Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-


-Graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá. Coordenadora do Grupo de Pesquisa
em História das Crenças e das Ideias Religiosas (HCIR/CNPQ/DHI/UEM) e do Laboratório de Estudos
em Religiões e Religiosidades.

15
Diversidade Religiosa & História

No presente texto objetivo analisar a forma como as crenças


afro-brasileiras foram tratadas na obra As religiões no Rio, centrando-se no
que ele denomina Orixás e Alufás. João do Rio é o pseudônimo pelo qual
ficou conhecido Paulo Barreto. Nascido no Rio de Janeiro, a 5 de agosto
de 1881, foi, de acordo com Julia O’Donnell (2008), um dos mais proemi-
nentes jornalistas de seu tempo, deixando uma obra vasta e de difusas
fronteiras com a literatura. Autodidata, teve uma curta passagem pela
escola, portanto, sua escrita, inovadora na forma e no conteúdo dentro do
campo literário brasileiro, fazia-se a partir de sua larga erudição. Diferente
de outros escritores de sua época que viam as redações como um com-
plemento financeiro as suas atividades, João do Rio tinha no jornalismo
uma profissão. Durante vinte anos dedicou-se a publicações de artigos
que, geralmente na forma de crônicas, registravam suas atividades como
correspondente internacional, observador do cotidiano da cidade e crítico
teatral e literário.
A obra é documento importante para pensarmos a diversidade
religiosa no Brasil e o modo como a liberdade religiosa foi pensada no
início da República brasileira. O autor nos fornece um mapeamento de
várias crenças existente no Rio de Janeiro no início do século XX. Dentre as
religiosidades detectadas e apresentadas por ele estão os Feitiços (termo
usado para se referir às religiões afro-brasileiras), a Igreja Positivista, os
Maronitas, os Fisiólatras, o Movimento evangélico (subdividido entre a
Igreja Fluminense, a Igreja Presbiteriana, a Igreja Metodista, os Batistas, a
Associação Cristã dos Moços e Adventistas), o Satanismo (subdivididos en-
tre Satanistas, a Missa Negra e os Exorcismos), as Sacerdotisas do Futuro,
a Nova Jerusalém, o Culto do Mar, o Espiritismo (dividido entre os sinceros
e os exploradores) e as Sinagogas. Para o recorte deste texto nos detere-
mos em analisar as práticas religiosas afro-brasileiras e o modo como são
retratadas na narrativa de João do Rio.
Esclareço, desde já, que ao modo de Michel de Certeau, entendo
por “crença” não o objeto do crer (um dogma, um programa etc.), mas o
investimento das pessoas em uma proposição, o ato de enunciá-la consi-
derando-a verdadeira — noutros termos, uma “modalidade” da afirmação
e não seu conteúdo (CERTEAU, 2012). É a partir dessa ideia de Michel de

16
Diversidade Religiosa & História

Certeau, acerca da crença, que analiso e compreendo a forma como a


literatura de João do Rio ao mesmo tempo em que nos fornece visões,
descrições e testemunhos documentais sobre a presença das religiões
afro-brasileiras no Rio de Janeiro, no início do século XX, também fornece
elementos e reforça estigmas e visões do período em que é produzida.

Por que narrar as religiões?

“A religião? Um misterioso sentimento, misto de terror e de es-


perança, a simbolização lúgubre ou alegre de um poder que não temos
e almejamos ter, o desconhecido avassalador, o equívoco, o medo, a
perversidade” (RIO, 2008, p. 15). Foi dessa forma que o cronista, jornalista
e literato, João do Rio (1881-1921), após caminhar pelas ruas da então
capital brasileira, a cidade do Rio de Janeiro, definiu o termo religião. Seu
esforço, apresenta João do Rio, ao introduzir a coletânea das reportagens
que constituíram a obra As religiões no Rio, original de 1904, teria sido o
de “levantar um pouco o mistério das crenças nesta cidade” (RIO, 2008,
p. 17). Ciente de que cada uma das religiões que ele narra exigiriam uma
pesquisa muito mais ampla e profunda, justifica que ele apenas entreviu “a
bondade, o mal e o bizarro dos cultos” com boa fé.
João do Rio, assim como tantos outros intelectuais do século XIX, é
movido pelo que François Hartog (1999) chamou de “retórica da alteridade”.
Afinal, dizer o outro é enunciá-lo como diferente. O esforço de João do Rio
é claro, narrar, traduzir ao seu público-leitor, os fenômenos aos quais ele
teve acesso. Ele o faz a partir do universo simbólico das próprias crenças,
intelectuais, morais, científicas e religiosas. Ao comparar para classificar,
incide no que alerta Hartog (1999), a comparação tem lugar em uma retó-
rica da alteridade e intervém na qualidade do procedimento de tradução,
pois vêm seguida das comparações classificatórias que, marcando as
semelhanças, assinalam deveras os desvios.
A narrativa de João do Rio e os termos que ele escolhe para tratar,
classificar, conceituar religião, nos dizem muito mais sobre as crenças de
João do Rio, do que sobre aquelas que ele gostaria de registrar. A forma

17
Diversidade Religiosa & História

escolhida se aproxima em partes do modo como Rudolf Otto (1992) defini-


ria a religião em 1917, a partir do conceito de numinoso.

A única expressão que nos vem ao espírito para tal exprimir: é


o sentimento do mysterium tremendum, do mistério que causa
arrepios. O sentimento que provoca pode espalhar-se na alma
como uma onda apaziguadora, a que se segue então a vaga
quietude de um profundo recolhimento. Este sentimento
pode assim transformar-se num estado de alma constante-
mente fluido, semelhante a uma ressonância que se prolonga
durante muito tempo, mas que acaba por extinguir-se na
alma que retoma o seu estado profano. Também pode surgir
bruscamente na alma com choques e convulsões. Pode levar
a estranhas excitações, ao inebriamento, aos arrebatamentos,
ao êxtase. Tem formas selvagens e demoníacas. Pode de-
gradar-se e quase confundir-se com o arrepio e o pasmo de
horror experimentado diante de espectros (OTTO, 1992, p. 22).

Ao optar por narra o mistério das crenças, João do Rio aponta o


aspecto que irá privilegiar. Sobre isso, é importante a observação de Otto
(1992) de que “o conceito de mistério, designa unicamente o que está es-
condido, a saber, o que não é manifesto, aquilo que não é nem concebido,
nem compreendido, o extraordinário e o estranho, sem indicar precisão e
qualidade” (OTTO, 1992, p. 22). É interessante essa opção de João do Rio
— inserido no contexto de instauração da República brasileira, no contexto
pós-abolição, onde a cidadania começa a ser debatida, o direito ao voto, a
liberdade religiosa e a contribuição que os diversos povos tiveram, ou não,
para a formação do Brasil — em mapear as crenças na capital brasileira.
“Diante dos meus olhos de civilizado” (RIO, 2008, p. 52) é a forma como a
diversidade religiosa salta aos olhos de João do Rio:

O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência,


tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença
diversa. Ao ler os grandes diários, imagina a gente que está
num país essencialmente católico, onde alguns matemáticos
são positivistas. Entretanto, a cidade pulula de religiões. Basta
parar em qualquer esquina, interrogar. A diversidade dos
cultos espantar-vos-á. São swendeborgeanos, pagãos lite-
rários, fisiólatras, defensores de dogmas exóticos, autores de
reformas da Vida, reveladores do Futuro, amantes do Diabo,

18
Diversidade Religiosa & História

bebedores de sangue, descendentes da rainha de Sabá, ju-


deus, cismáticos, espíritas, babalaôs de Lagos, mulheres que
respeitam o oceano, todos os cultos, todas as crenças, todas
as forças do Susto. Quem através da calma do semblante lhes
adivinhará as tragédias da alma? Quem no seu andar tranqüilo
de homens sem paixões irá descobrir os reveladores de ritos
novos, os mágicos, os nevrópatas, os delirantes, os possuídos
de Satanás, os mistagogos da Morte, do Mar e do Arco-Íris?
Quem poderá perceber, ao conversar com estas criaturas, a
luta fratricida por causa da interpretação da Bíblia, a luta que
faz mil religiões à espera de Jesus, cuja reaparição está mar-
cada para qualquer destes dias, e à espera do Anti-Cristo, que
talvez ande por aí? Quem imaginará cavalheiros distintos em
intimidade com as almas desencarnadas, quem desvendará a
conversa com os anjos nas chumbergas fétidas? Eles vão por
aí, papas, profetas, crentes e reveladores, orgulhosos cada um
do seu culto, o único que é a Verdade (sic) (RIO, 2008, p. 15-16).

É interessante, pois João do Rio afirma que se engana quem pensa


que o Brasil é um país católico, o que aparentemente seria algo positivo.
Ao contrário disto, ele pretende demonstrar a presença de crenças diver-
sas. A forma como João do Rio narra as religiões pode ser pensada a partir
do conceito de “moderno” proposto por Bruno Latour, ao explicar que a
crença não é um estado mental, mas um efeito da relação entre os povos.

Por todos os lugares onde lançam ancora, estabelecem feti-


ches, isto é, os modernos vêem (sic), em todos os povos que
encontram, adoradores de objetos que não são nada. Como
têm que explicar a si próprios a bizarria desta adoração, onde
nada de objetivo pode ser percebido, eles supõem, entre as
selvagens, um estado mental que remeteria ao que é interno e
não ao que é externo. A medida em que a frente de colonização
avançava, o mundo se povoava de crentes. É moderno aquele
que acredita que os outros acreditam (LATOUR, 2002, p. 15).

Ainda que de forma hierarquizante, evolucionista e colonizadora, a


obra de João do Rio, é um importante registro histórico que nos evidencia
que a diversidade religiosa é histórica e que não deve ser encarada como
novidade, mas há de se considerar os embates e engajamentos que fi-
zeram com que determinadas práticas fossem reconhecidas e tivessem

19
Diversidade Religiosa & História

sua prática tida como legítima, enquanto outras não. Como bem observou
Paula Montero (2006) a emergência de um Estado secular no Brasil, ao
final do século XIX, não teve como decorrência a privatização da religião
na esfera doméstica, tampouco assegurou o direito inviolável à privaci-
dade e a liberdade de consciência, condições modernas que às próprias
religiões interessa preservar. Ao contrário disto, a liberdade religiosa no
Brasil, ocasionou um retraimento do catolicismo para o espaço social,
oportunizando e produzindo um certo conflito entre outras denominações
religiosas que agora poderiam almejar sua legitimidade na esfera pública,
especialmente, as manifestações culturais de matriz não cristã, o que não
necessariamente foi visto com bons olhos.
Paula Montero (2006) explica ainda que, no processo mesmo de
constituição do Estado brasileiro como esfera separada da Igreja Católica,
muitas manifestações, em especial as de matriz africanas, tidas como
“feitiçaria” só puderam ser descriminalizadas quando, passaram a se cons-
tituir institucionalmente como religiões, em nome do direito à liberdade
de culto. Esse processo de se constituir religião não foi tranquilo, como
veremos a seguir, na forma em que João do Rio entende e apresenta as
crenças africanas estabelecidas no Brasil.

Estabelecendo a diferença: feitiço

A primeira parte, e também, a mais longa do livro, intitula-se “No


mundo dos feitiços”. É onde João do Rio (2008) nos apresenta religiões
de origem africana. Entre as descrições é possível identificar as crenças
associadas ao culto iorubano (denominado na obra os Orixás), as práticas
africanas de tradição islâmica (apresentados como os Alufás) e, os cultos
aos eguns, associados a tradição Bantu (aqui chamado os Cabindas). To-
davia, o termo que ele utiliza para tal feito é “mundo dos feitiços”, como
forma de marcar a diferença em relação às crenças por ele, consideradas
religião, de fato.
Sobre esse aspecto é preciso considerar que “o racismo episte-
mológico é uma dobra do desvio existencial incutido às populações não

20
Diversidade Religiosa & História

brancas” (RUFINO, 2019, p. 30). Para a lógica colonial, não se trata apenas
de matar ou escravizar os corpos, mas exterminar as sabedorias, realizar
epistemicídios e exercer o biopoder (RUFINO, 2019). João do Rio embasa
sua autoridade para explicar as religiões dos africanos e seus descenden-
tes pelo tempo em que se dispôs a ficar entre adeptos.

Vivi três meses no meio dos feiticeiros, cuja vida se finge des-
conhecer, mas que se conhece na alucinação de uma dor ou
da ambição, e julgo que seria mais interessante como patologia
social estudar, de preferência, aos mercadores da paspalhice,
os que lá vão em busca de consolo (RIO, 1982, p. 50).

Toda a narrativa de João do Rio se dá em tom de descrença e


desqualificação da prática e em sua presunção de compreender as cren-
ças afro-brasileiras por ter visitado algumas casas e alguns feiticeiros,
ainda que por poucos instantes e em curtas conversas. Isso ocorre por-
que “A gramatica colonial opera de forma sofisticada na produção de não
existências, na hierarquização de saberes e nas classificações sociais”
(RUFINO, 2019, p. 30).
A superioridade que João do Rio acredita exercer em relação aos
povos africanos, não permite que ele questione a sua própria crença.
Como definir um antifetichista? Questiona Bruno Latour (2002, p. 26): “É
aquele que acusa um outro de ser fetichista”. A narrativa produzida por
João do Rio já parte de algumas certezas: os negros são alcoólatras e
fazem qualquer coisa por dinheiro. A partir disso ele exerce seu poder na
narrativa. O acesso que João do Rio teve às religiões afro-brasileiras, só foi
possível por conta de um informante, apresentado na obra como o negro
Antônio. É ele quem conhece os espaços que João do Rio irá visitar, tem
acesso, sabe das normas, formas de condução, o que se pode, ou não,
dizer ou fazer. É ele, de fato, quem possui intimidade com as ruas e com as
pessoas que nos sãos apresentados na narrativa de João do Rio.
A sabedoria e conhecimento de Antônio, todavia, são desde o
início desqualificadas e minimizadas por João do Rio.

Antônio conhece muito bem N. S.ª das Dores, está familiariza-


do com os orixálas da África, mas só respeita o papel-moeda

21
Diversidade Religiosa & História

e o vinho do Porto. Graças a esses dois poderosos agentes,


gozei da intimidade de Antônio, negro inteligente e vivaz; gra-
ças a Antônio, conheci as casas das ruas de São Diogo, Barão
de S. Felix, Hospício, Núncio e da América, onde se realizam
os candomblés e vivem os pais-de-santo. E rendi graças a
Deus, porque não há decerto, em toda a cidade, meio tão
interessante (RIO, 2008, p. 19-20).

É Antônio quem conhece e é familiarizado com as religiões que


João do Rio busca entender para a sua matéria, é ele quem detém o co-
nhecimento, talvez ele mesmo pudesse produzir a reportagem. Mas isso
não é possível, pois ele só tem respeito pelo dinheiro e pelo álcool. Essa
sentença inicial sobre Antônio, descrito a seguir como “negro inteligente e
vivaz” perpassa as descrições posteriores de João do Rio, no que se refere
às religiões afro-brasileiras. São alcoólatras e fazem qualquer coisa por
dinheiro. É desse lugar que João do Rio exerce o seu poder. Ele detém o
dinheiro, pode pagar pelas informações e se orgulha disso. Neste último
aspecto, há semelhança com a abordagem de Sidney Chalhoub (1986),
ao focalizar as tensões e conflitos que emergem de situações no traba-
lho entre membros da classe trabalhadora do Rio de Janeiro na primeira
década do século XX; destacando a importância das rivalidades étnicas e
nacionais enquanto expressões das tensões provenientes da concorrência
da força de trabalho — em condições bastante desfavoráveis — em um
mercado de trabalho capitalista em formação.
Na composição étnica da classe trabalhadora no Rio de Janeiro,
explica Chalhoub (1986), predominavam imigrantes — especialmente
português — e brasileiros não brancos — a cidade apresentava a maior
concentração urbana de negros e mulatos no Sudeste. O que significa que
as duas principais clivagens da sociedade colonial e depois imperial con-
tinuavam a ser parte integrante da experiência de vida popular: refiro-me
às contradições senhor-patrão branco versus escravo-empregado negro,
e o colonizador-explorador português versus colonizado-explorado bra-
sileiro. No nível das mentalidades e atitudes populares, na percepção de
Chalhoub (1986), isto significava que muitas vezes a igualdade de situação
de classe entre portugueses e brasileiros pobres ficava obscurecida pelo

22
Diversidade Religiosa & História

ressentimento mútuo: o imigrante trazia de sua terra natal — e reforçava


ainda em terras tropicais — sua concepção de ser racial e culturalmente
superior aos brasileiros pobres de cor; e estes, por outro lado, para quem a
escravidão era ainda um passado recente, ressentiam-se dos brancos em
geral e, mais ainda, dos imigrantes, que vinham chegando ao Rio de Janei-
ro em grandes levas desde os últimos anos da Monarquia, abocanhando
boa parte da fatia de empregos disponíveis na cidade.
A narrativa de João do Rio traz essas marcas hierarquizantes e
evolucionistas, daqueles intelectuais que acreditavam que era questão de
tempo para os negros desaparecerem no Brasil, restavam apenas uns mil
em suas observações.

Da grande quantidade de escravos africanos vindos para o


Rio no tempo do Brasil colônia e do Brasil monarquia, restam
uns mil negros. São todos das pequenas nações do interior da
África, pertencem ao ijesá, oió, aboum, haussá, itaqua, ou se
consideram filhos dos ibouam, ixáu dos gêge e dos cambin-
das. Alguns ricos mandam a descendência brasileira à África
para estudar a religião, outros deixam como dote aos filhos
cruzados daqui os mistérios e as feitiçarias. Todos, porém,
falam entre si um idioma comum: — o eubá (RIO, 2008, p. 20).

Nessa citação, é possível apreendermos um pouco da diversidade


étnica dos grupos africanos no Rio de Janeiro no início do século XX. Há
menção a subgrupos provenientes de locais como Nigéria, Benin e An-
gola, localidades diversas em sua cultura e costumes e que na obra são
apresentados a partir de duas possibilidades: Orixás e Alufás.

Os orixás, em maior número, são os mais complicados e os


mais animistas. Litólatras e fitólatras, têm um enorme arsenal
de santos, confundem os santos católicos com os seus santos,
e vivem a vida dupla, encontrando em cada pedra, em cada
casco de tartaruga, em cada erva, uma alma e um espírito.
Essa espécie de politeísmo bárbaro tem divindades que se
manifestam e divindades invisíveis. Os negros guardam a idéia
(sic) de um Deus absoluto como o Deus católico: Orixa-alúm.
A lista dos santos é infindável. Há o orixalá, que é o mais velho,
Axum, a mãe dágua doce, Ie-man- já, a sereia, Exu, o diabo,
que anda sempre detrás da porta, Sapanam, o Santíssimo

23
Diversidade Religiosa & História

Sacramento dos católicos, o Irocô, cuja aparição se faz na


árvore sagrada da gameleira, o Gunocô, tremendo e grande,
o Ogum, S. Jorge ou o Deus da guerra, a Dadá, a Orainha,
que são invisíveis, e muitos outros, como o santo do trovão
e o santo das ervas. A juntar a essa coleção complicada, têm
os negros ainda os espíritos maus e os heledás ou anjos da
guarda (RIO, 2008, p. 21).

João do Rio se utiliza de termos presentes na literatura médica da


época sem se preocupar em defini-los. Os conceitos de animismo, litola-
tria, fitoloatria, tão debatidos por E. B. Tylor e Raimundo Nina Rodrigues2,
aqui aparecem como termos de desqualificação, adoradores de objeto, ao
modo apresentado por Latour (2002, p. 21): “Por todos os lugares onde de-
sembarcam, os portugueses, chocados com o mesmo despudor, tiveram
que compreender o fetichismo relacionando-o, ora a ingenuidade, ora ao
cinismo”. E, prossegue, impondo sua visão de mundo as crenças africanas,
acusando-as de confundirem seus deuses com os santos católicos. Essa
leitura, bastante colonizadora, perpassou diversos intelectuais do século
XX. A estratégia e a resistência presente no sincretismo, onde os povos
escravizados encontram formas de organizarem as suas crenças no Brasil,
é explicada como incapacidade de diferenciar um deus do outro.
A forma como a religião se organiza no Brasil é por meio da impo-
sição. Ser português no século XVI era sinônimo de ser católico e o regime
do padroado (que vincula Estado e Igreja) queria expandir esse catolicismo
para fora da América. Os indígenas foram forçados a conversão ao catoli-
cismo. Muitos portugueses que vieram para cá, eram recém-conversos e
o mesmo aconteceu com os escravos. Os escravizados eram convertidos
ao catolicismo, batizados já no navio, durante o tráfico. Eram obrigados
a ser cristãos, participar dos ritos e comportar-se como católicos. Mas
essa conversão não significava aceitação. Os negros eram vistos como
católicos de segunda categoria, não eram integrados. Muitas igrejas e
capelas eram construídas com uma nave e um alpendre. Os lugares na
nave eram reservados aos brancos. Os negros permaneciam no alpendre

2 Vide: RODRIGUES, Nina. O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1935; RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 6. ed. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: Ed. Universidade de
Brasília, 1982.

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Diversidade Religiosa & História

a assistiam a missa através de portas e janelas. Mesmo nas irmandades,


muitos estatutos impediam a filiação de negros e mestiços, especialmen-
te as aristocratas. Os negros, mesmo os livres, não podiam no tempo da
escravidão entrar nas ordens religiosas ou almejar o sacerdócio. Digo isso
para mostrar que os africanos e seus descendentes, em linhas gerais, não
criaram fortes resistências ao catolicismo. Mas a Igreja era e permaneceu
para os negros, como uma propriedade particular dos brancos. Esse é o
primeiro ponto, a formação do Brasil, ligado ao regime do padroado e as
implicações na formação social e religiosa (BERKENBROCK, 1997).
No contexto republicano, as religiões africanas não são mais per-
seguidas por fetichismo, mas por serem um entrave a civilização, por conta
da ideologia do branqueamento. No pós-abolição, as tradições africanas
eram vistas como prejudiciais ao país. Investiu-se maciçamente na imigra-
ção como forma de branquear o Brasil. O caso da reforma urbana no centro
do Rio de Janeiro é exemplar. A então capital da república derruba todos
os cortiços habitados pelos ex-escravos e seus descendentes, jogando
essa população a margem da sociedade e restringindo o seu acesso ao
centro. É o início da favelização e ocupação dos morros. Jogados a própria
sorte, sem direito a terras, emprego, moradia, os negros precisam encon-
trar formas de sobreviver no Brasil (BERKENBROCK, 1997).
Sem empatia a cultura africana e sua religiosidade, e ignorando as
condições sócio-econômico-político-sociais do país, João do Rio (2006)
põe a depreciar os sujeitos que vai aos poucos encontrando e tornando
objetos de curiosidade aos olhos de seus leitores. Os descreve como pre-
guiçosos: “Alguns velhos passam a vida sentados, a dormitar” (RIO, 2008,
p. 30), “Outros, os mais malandros, passam a existência deitados no sofá”
(RIO, 2008, p. 30); loucos: “Os transeuntes honestos, que passeiam na rua
com indiferença, não imaginam sequer as cenas de Salpetrière africana
passadas por trás das rótulas sujas” (RIO, 2008, p. 35), “As iauô abundam
nesta Babel da crença, [...] fornecem ao Hospício a sua quota de loucura,
propagam a histeria entre as senhoras honestas e as cocottes, exploram e
são exploradas, vivem da crendice e alimentam o cafetismo inconsciente”
(RIO, 2008, p. 36); alcoólatras: “As iauô, são as demoníacas e as grandes
farsistas da raça preta, as obsedadas e as delirantes. A história de cada

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Diversidade Religiosa & História

uma delas, quando não é uma sinistra pantomima de álcool e mancebia, é


um tecido de fatos cruéis, anormais, inéditos, feitos de invisível, de sangue
e de morte” (RIO, 2008, p. 36), “não é possível demovê-las, umas porque a
miragem da felicidade as cega, outras porque já estão votadas à loucura
e ao alcoolismo” (RIO, 2008, p. 36), “A cachaça, circulando sem cessar,
ensangüentava (sic) os olhos amarelos dos assistentes” (RIO, 2008, p. 45); e
ávidos por dinheiro: “Os babalaôs, a troco de dinheiro, jogam o edilogum,
os búzios, e servem-se também por aproximação dos signos do zodíaco”
(RIO, 2008, p. 37).
Para além da historicidade da narrativa de João do Rio, é preciso
reconhecer que “é nossa responsabilidade assumir a emergência e a cre-
dibilização de outros saberes, diretamente comprometidos, agora, com o
reposicionamento histórico daqueles que o praticam” (RUFINO, 2019, p.
12). É por isso que a diversidade religiosa se apresenta como um tema ur-
gente a ser discutido, inclusive do ponto de vista acadêmico que continua
perpetuando o eurocentrismo, parte dos intelectuais brasileiros que, ao
modo de João do Rio, ainda tentam enxergar em seu espelho narcísico
uma intelectualidade europeia romantizada, desprezando os grupos, sa-
beres, etnias e culturas que compõem o próprio país. Seguem realizando o
epistemicídio, ou seja, o apagamento sistemático de produções e saberes
produzidos por grupos oprimidos (RIBEIRO, 2019, p. 6). Atentemos a forma
que esses discursos de (in)tolerâncias se estabelecem.

Narrar o outro: reflexões sobre antifetichismo e (in)tolerância.

Diogo Pires Aurélio (2010) ao apresentar o verbete “Tolerância/


intolerância” para Enciclopedia Einaudi aponta para as dificuldades em
diferenciar os termos tolerância e intolerância. A ambivalência do conceito
tolerância está, por assim dizer, inscrita na etimologia da palavra. Tolerare
significa, antes de mais nada, sofrer, suportar, pacientemente. Mas significa
também sustentar, no sentido de alimentar alguém, ou aguentar, como
quando se diz que um navio tolera até 300 toneladas. Historicamente, o
termo ainda aparece como paciência, dissimulação, sofrimento, ora como

26
Diversidade Religiosa & História

vigor de ânimo para sofrer coisas dificultosas e duras. Distante da acepção


positiva imaginada, tolera-se aquilo que se quer destruir.
É com essa prática de tolerância, e não de respeito, que vemos João
do Rio projetar seus limites e anseios nas populações negras, disfarçando
sua dificuldade, ou incapacidade de compreender a cultura que analisa, e
ainda mais de se reconhecer nela. Na citação a seguir encontramos uma
acusação feita por João do Rio, presente na obra toda, a crença em pode-
res invisíveis, o que faria com que apenas alguns pudessem enxerga-los e
conhecer os segredos, inclusive do futuro.

As criaturas vivem em poder do invisível e só quem tem es-


tudos e preparo pode saber o que os santos querem. Há por
isso grande quantidade de autoridades religiosas. Às vezes
encontramos nas ruas negros retintos que mastigam sem
cessar. São babalaôs, matemáticos geniais, sabedores dos
segredos santos e do futuro da gente; são babás que atiram
o endilogum; são babaloxás, pais-de-santos (sic) veneráveis.
Nos lanhos da cara puseram o pó da salvação e na boca têm
sempre o obi, noz de cola, boa para o estômago e assegura-
dora das pragas (RIO, 2008, p. 22).

É interessante para compreendermos a forma de enunciado


adotada por João do Rio, a discussão realizada por Bruno Latour (2004)
em “Não congelarás a imagem”, ou: como não desentender o debate
ciência-religião. É João do Rio quem atribui invisibilidade e enganação às
práticas das quais toma conhecimento. É ele quem dirige a atenção para o
“longínquo, o superior, o sobrenatural, o infinito, o distante, o transcenden-
te, o misterioso, o nebuloso, o sublime, o eterno” (LATOUR, 2004, p. 359),
ele sequer tenta ser sensível ao que a fala religiosa tenta envolvê-lo.
Mesmo produzindo um livro intitulado As religiões no Rio, não é
dessa forma que as práticas afro-brasileiras são tratadas dentro da obra.
Ao contrário disto, são feitiços e seus adeptos, os feiticeiros. Sobre esse
termo é oportuna a leitura de Bourdieu, feita a partir de Durkheim e Max
Weber, que define que há na construção do “campo religioso” a oposição
entre manipulação legítima do sagrado (religião) e a manipulação profana
e profanadora (magia ou feitiçaria), sendo que esta pode ser uma profana-

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Diversidade Religiosa & História

ção objetiva (a magia ou feitiçaria como religião dominada) ou profanação


intencional (a magia como antirreligião ou religião invertida).
Bourdieu (2005) explica que no âmbito de uma mesma formação
social, a oposição entre religião/magia, sagrado/profano, manipulação
legítima/manipulação profana do sagrado, dissimula a oposição entre
diferenças de competência religiosa que estão ligadas à estrutura da
distribuição do capital cultural. Desse modo, tendo em vista, de um lado, a
relação que une o grau de sistematização e de moralização da religião ao
grau de desenvolvimento de aparelho religioso e, de outro, a relação que
une os progressos da divisão do trabalho religioso aos progressos da divi-
são do trabalho e da urbanização, compreende-se as razões pelas quais a
maioria dos autores tende a associar magia às características específicas
dos sistemas de práticas e representações próprias às formações sociais
menos desenvolvidas economicamente.
Dessa forma, ao modo de João do Rio, reconhece-se nas práticas
mágicas os seguintes traços: visam objetivos concretos e específicos,
parciais e imediatos (em oposição aos objetivos mais abstratos , mais
genéricos e mais distantes que seriam os da religião); estão inspiradas
pela intenção de coerção ou de manipulação dos poderes sobrenaturais
(em oposição às disposição propiciatórias e contemplativa da oração, por
exemplo); e por último encontram-se fechadas no ritualismo e funciona-
lismo do toma lá dá cá. Essa forma de caracterização seria para Bourdieu
traços fundados na urgência econômica, que impede distanciamento das
necessidades imediatas. Além disto,

Toda prática ou crença dominada está fadada a aparecer como


profanadora na medida em que, por sua própria existência e
na ausência de qualquer intenção de profanação, constitui
uma contestação objetiva do monopólio da gestão do sagrado
e, portanto, da legitimidade dos detentores deste monopólio.
Na verdade, a sobrevivência constitui sempre uma resistência,
isto é, a expressão da recusa em deixar-se desapropriar dos
instrumentos de produção religiosos. Por este motivo, a magia
inspirada por uma intenção de profanação é apenas o caso
limite, ou melhor, a verdade da magia como profanação obje-
tiva: “A magia, diz Durkheim, apresenta uma espécie de prazer
profissional em profanar as coisas santas, em seus ritos ela faz

28
Diversidade Religiosa & História

o contrário das cerimônias religiosas”. O feiticeiro leva às últimas


conseqüências (sic) a lógica da contestação do monopólio
quando reforça o sacrilégio provocado pelo relacionamento
de um agente profano com um objeto sagrado, invertendo ou
caricaturando as delicadas e complexas operações a que de-
vem se entregar os detentores do monopólio da manipulação
dos bens religiosos no intuito de legitimar tal relacionamento
(BOURDIEU, 2005, p. 45, grifo do autor).

A definição criteriosa do que seria religião e do que seria magia na


análise de Bourdieu impede uma simples inversão. É o processo operado na
obra de João do Rio. O todo da obra se refere as religiões no Rio, mas dentro
da composição discursiva, há um espaço onde se discute “o mundo dos fei-
tiços”, apresentada ora em oposição, ora hierarquicamente inferior a religião.
Desse modo, ao se deter sobre os Alufás, João do Rio (2008, p. 24)
enfatiza que esses com os quais entra em contato tem o hábito da leitura
em sua minoria, diferente de quando “havia sábios que destrinçavam o
livro sagrado e sabiam porque Exu é mau”. Conjectura-se que ele esteja
se referindo aos africanos islâmicos que realizaram a Revolta dos Malês,
em Salvador em 1835, ao se referir aos sábios, caracterizados na literatura
da época, por serem alfabetizados e dominarem o comércio e o espaço
urbano3. Ele frisa que esse não seria o caso dos que conheceu no Rio de
Janeiro. E, que apesar de se considerarem islâmicos, não praticam o mo-
noteísmo corretamente.

Os alulás têm um rito diverso. São maometanos com um


fundo de misticismo. Quase todos dão para estudar a religião,
e os próprios malandros que lhes usurpam o título sabem
mais que os orixás. Logo depois do suma ou batismo e da cir-
cuncisão ou kola, os alufás habilitam-se à leitura do Alcorão.
A sua obrigação é o kissium, a prece. Rezam ao tomar banho,
lavando a ponta dos dedos, os pés e o nariz, rezam de manhã,
rezam ao pôr-do-sol. Eu os vi, retintos, com a cara reluzente
entre as barbas brancas, fazendo o aluma gariba, quando o
crescente lunar aparecia no céu. Para essas preces, vestem o
abadá, uma túnica branca de mangas perdidas, enterram na
cabeça um filá vermelho, donde pende uma faixa branca, e, à

3 Vide: REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835.São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.

29
Diversidade Religiosa & História

noite, o kissium continua, sentados eles em pele de carneiro


ou de tigre (RIO, 2008, p. 25-26).

João do Rio (2006) frisa que os Álufas se aproximaria de uma


religião (monoteísmo islâmico) para em seguida evidenciar suas práticas
mágicas que lhes alçariam a condição de feitiçaria. A todo momento João
do Rio busca sintetizar os indivíduos com os quais entra em contato den-
tro de um grupo único: os negros, apagando a sua diversidade cultural
e religiosa. Compactua, assim, a uma política colonizadora e opressora
que insiste em homogeneizar os povos negros existentes, apagando suas
etnias, culturas e idiomas diversos (RIBEIRO, 2019). Para além das possíveis
divergências afirma que “acham-se todos relacionados pela língua, com
costumes exteriores mais ou menos idênticos e vivendo da feitiçaria” (RIO,
2008, p. 27), ainda que considere os Alufás superiores por se aproximarem
do monoteísmo. É visível na narrativa de João do Rio, o quão distante ele
se sente dos africanos e seus descendentes. Ao se referir a Xico Mina o
descreve “Este veste, como qualquer de nós, ternos claros e usa suíças
cortadas rentes. Já o conhecia de o ver nos cafés concorridos, conversando
com alguns deputados” (RIO, 2008, p. 29). A narrativa de João do Rio marca
a diferença, veste-se como qualquer uma de nós, frequenta os mesmos
espaços, mas não os outros.

As casas dos minas conservam a sua aparência de outrora,


mas estão cheias de negros baianos e de mulatos. São quase
sempre rótulas lobregas, onde vivem com o personagem prin-
cipal cinco, seis e mais pessoas. Nas salas, móveis quebrados
e sujos, esteirinhas, bancos; por cima das mesas, terrinas, pu-
carinhos de água, chapéus de palha, ervas, pastas de oleado
onde se guarda o opelé; nas paredes, atabaques, vestuários
esquisitos, vidros; e no quintal, quase sempre jabotis, galinhas
pretas, galos e cabritos. Há na atmosfera um cheiro carregado
de azeite-de-dendê, pimenta-da-costa e catinga. Os pretos
falam da falta de trabalho, fumando grossos cigarros de palha.
Não fosse a credulidade, a vida ser-lhes-ia difícil, porque em
cada um dos seus gestos revela-se uma lombeira secular
(RIO, 2008, p. 29-30).

30
Diversidade Religiosa & História

O odor, o mau cheiro, a catinga, sempre se fazem presentes nas


descrições de João do Rio. Essas descrições reforçam a inferioridade que
João do Rio busca atribuir as práticas afrorreligiosas. Apenas a credulidade
ingênua dos outros negros e a falta de discernimento poderiam legitimar
tamanha enganação. Sobre este aspecto, Bruno Latour (2002, p. 30) expli-
ca que “os modernos veem todos os outros povos como crentes ingênuos,
hábeis manipuladores ou cínicos que iludem a si próprios”, mais ainda “os
modernos acreditam na crença para compreender os outros; os adeptos
não acreditam na crença nem para compreender os outros nem para
compreender a si próprios”.

Quando entramos na casa de Oloô-Teté, o matemático


macróbio e sensual, uma velha mina, que cantava sonam-
bulicamente, parou de repente. — Pode continuar. Ela disse
qualquer coisa de incompreensível. — Está perguntando se
o senhor lhe dá dois tostões, ensina-nos Antônio. — Não há
dúvida. A preta escancara a boca, e, batendo as mãos, põe-se
a cantar (RIO, 2008, p. 31-32, grifo nosso).

João do Rio também se crê enganador dos enganadores. Conta


orgulhosamente como enganou um velho africano que dizia ler o futuro e
tentava lhe arrancar algum dinheiro.

Abracei respeitoso o matemático que resolvera o quadrado


da hipotenusa do desconhecido. — Põe dinheiro aqui — fez ele.
Dei-lhe as notas. Com as mãos trêmulas, o sábio a apalpou
longamente. — Pega agora nesta pedra e nesta concha. Pede
o que tiveres vontade à concha, dizendo sim, e à pedra dizen-
do não. Assim fiz. O opelé caiu de novo no encerado. A concha
estava na mão direita de Antônio, a pedra na esquerda, e Oloô
tremia falando ao santo, com os negros dedos trêmulos no
ar. — Abra a mão direita! ordenou. Era a concha. — Se aconte-
cer, ossumcê dá presente a Oloô? — Mas decerto. Ele correu
a consultar o opelé. Depois sorriu. — Dá, sim, santo diz que
dá. — E receitou-me os preservativos com que eu serei invul-
nerável. Também eu sorria. Pobre velho malandro e ingênuo!
Eu perguntara apenas, modestamente, à concha do futuro se
seria imperador da China... Enquanto isso, a negra da cantiga
entoava outra mais alegre, com grande gestos e risos (RIO,
2008, p. 33-34, grifo nosso).

31
Diversidade Religiosa & História

É impressionante pois, João do Rio segue acreditando que os outros


são os crentes. Que o dinheiro lhe dará acesso a todas as informações. “A
lisonja, porém, e o dinheiro, a moeda real de todas as maquinações dessa
ópera pregada aos incautos, fizeram-me sabedor dos mais complicados feiti-
ços” (RIO, 2008, p. 55-56). Na busca por estar certo, ser o detentor da verdade,
o mais sábio e o de visão correta, aquele que transita entre os feiticeiros e
lhes arranca todas as respostas com dinheiro, João do Rio sequer cogita que
esses indivíduos se utilizam das artimanhas sociais possíveis como forma de
sobreviver e que essa artimanha não é sobre enganar os crentes e os adeptos,
mas os presunçosos que acreditam saber mais do que eles:

Malandros, prostitutas, cafetões, ladrões de toda estirpe,


assassinos, excomungados, bêbados, eternos caminhantes,
fugitivos, achacadores de otários, toda a sorte de miseráveis
que, em seus corpos e práticas, forjam um inventário táticos
de modos de ser praticar a rua. Arquivos corporais que codifi-
cam e denunciam nas práticas uma contracultura do civilismo
colonial. São sujeitos comuns, praticantes munidos de saberes
que disferem golpes imprevisíveis, oportunos, produtores de
ações rebeldes que inventam os cotidianos como possibilida-
de de sobrevivência. Grita a máxima daqueles que poetizaram
a noção de sobrevivência como sambar no fio da navalha:
“vida de malandro não é fácil” (RUFINO, 2019, p. 110).

Acomodado sob a presunção de uma verdade limitadamente


acabada e obcecado pela certeza de sua superioridade, não percebe a
astúcia da aparência. Ele encontra as respostas que busca com a facilida-
de que esses indivíduos encontram nele algum retorno econômico. Não
são os segredos iorubanos que João do Rio recebe dessas pessoas como
afirma em sua obra. Mas o espelho narcísico que esperava receber pela
negociação que propõe. Não é a crença dos “feiticeiros” que é absurda,
mas a crença de João do Rio sobre a crença do outro. Ele se questiona
como os negros acreditam nessas coisas, é pena que os negros não o
tenham lançado a mesma pergunta de volta.

32
Diversidade Religiosa & História

Referências

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RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Morula Editorial, 2019.

33
FAZER O SANTO: OS RITOS INICIÁTICOS
EM NINA RODRIGUES E JOÃO DO RIO1

Ana Paula de Assis Souza2

Resumo
O nosso objetivo consiste em analisar as narrativas elaboradas por Nina Rodrigues
(O Animismo Fetichista dos negros Bahianos, 1935) e João do Rio (As Religiões no
Rio, 1906) acerca dos ritos iniciáticos afro-brasileiros. Para tanto, elegemos alguns
teóricos que nos ajudam a situar os olhares lançados sobre o rito de iniciação tais
como Arnald Van Gennep (1978), Émile Durkheim (1996), Mircea Eliade (2010), Victor
W. Turner (1974, 1999), Marc Augè (1994), e Mariza Peirano (2003).
Palavras-chave: Nina Rodrigues. João do Rio. Rito Iniciático.

Abstract
Our objective is to analyze the narratives elaborated by Nina Rodrigues (The Fetish
Animism of black Bahians, 1935) and João do Rio (The Religions of Rio, 1906) about
the Afro-Brazilian initiation rites. To this end, we have chosen some theorists who
help us situate the views cast on the initiation rite such as Arnald Van Gennep
(1978), Émile Durkheim (1996), Mircea Eliade (2010), Victor W. Turner (1974, 1999),
Marc Augè (1994), and Mariza Peirano (2003).
Keywords: Nina Rodrigues. João do Rio. Initiation Rites.

1 Este artigo faz parte da Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, Setor de
Ciência Humanas, Letras e Artes da Universidade Estadual de Maringá, como requisito obrigatório para a
conclusão do curso de Mestrado em História, Área de Concentração: História, Cultura e Política. Linha de
Pesquisa: História, Cultura e Narrativas, intitulada: Narrativa e Alteridade: Os Ritos de Iniciação Em Nina
Rodrigues e João Do Rio (Brasil- Século XIX) em 2018.
2 Graduada em Pedagogia, com Pós-Graduação em Educação Especial e Educação de Jovens e Adul-
tos, segunda licenciatura em História, modalidade Parfor (Plano Nacional de Professores da Educação
Básica) ofertada pela Universidade Estadual de Maringá, em 2012. Mestre em História pela Universidade
Estadual de Maringá.

34
Diversidade Religiosa & História

Introdução

A fim de debatermos mais sobre a temática acerca do rito inici-


ático nas religiões afro-brasileiras, partimos de dois autores pioneiros:
Nina Rodrigues (1862-1906) e João do Rio (1881-1921). Ambos marcaram
historicamente e consideravelmente o estudo das crenças afro-brasileiras
e tornaram os ritos de iniciação em objeto de interesse.
A obra O animismo fetichista dos negros bahianos (RODRIGUES,
1935) é uma publicação póstuma no Brasil. Coletânea organizada por Nina
Rodrigues, composta por ensaios científicos que circularam em revistas
médicas no final do século XIX, foi originalmente publicada em francês, no
ano de 1900. Os textos haviam sido publicados na Revista Brasileira entre
1896 e 1897 e, em 1935, os artigos seriam editados sob a forma de livro por
Arthur Ramos.
Por sua vez, As Religiões no Rio (1906) é resultado das matérias da
série As religiões no Rio, publicadas entre 22 de fevereiro e 21 de abril de
1904, no periódico Gazeta de Notícias. Editada e produzida pela Tipografia
da Gazeta de Notícias foi publicada em dezembro do mesmo ano. Coube a
João do Rio a organização dos textos, bem como a redação da introdução
e do prefácio.
Para pensarmos os ritos de iniciação afro-brasileiros partimos
de dois discursos circunscritos aos seus lugares sociais de produção: o
médico, representado por Nina Rodrigues, e o jornalístico representado
por João do Rio.

Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de


produção sócio-econômico (sic), político e cultural. Implica
um meio de elaboração que circunscrito por determinações
próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou
de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela está, pois, sub-
metida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma
particularidade. É em função deste lugar que se instauram os
métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que
os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se
organizam (CERTEAU, 1982, p. 57).

35
Diversidade Religiosa & História

Com Michel de Certeau observamos “de onde” falam e “para quem”


falam os nossos autores, pois seus discursos remetem a um momento
histórico carregado de sistemas de referências econômicos, políticos e
sociais. Para compreendermos as produções das duas obras analisadas,
devemos considerar os diferentes modos de “representação”, as apropria-
ções e ressignificações feitas por Nina Rodrigues e João do Rio.

Determinar os efeitos próprios aos diferentes modos de re-


presentação, de transmissão e de recepção dos textos é, por-
tanto, uma condição necessária para evitar todo anacronismo
na compreensão das obras. Isso cria, para o historiador, um
problema de método particularmente difícil, quando preten-
de reconstruir as modalidades específicas das apropriações
orais dos textos antigos, ao passo que estas, por definição,
são para sempre oralidades mudas. A relação contemporânea
com as obras e com os gêneros não pode, de fato, ser con-
siderada nem como invariante, nem como universal. Contra
as tentações do “etnocentrismo da leitura”, deve-se lembrar
que inúmeros são os textos antigos que não supõem abso-
lutamente, como destinatário, um leitor solitário e silencioso
em busca do sentido. Feitos para serem recitados ou lidos em
voz alta e compartilhados e uma escuta coletiva, investidos
de uma função ritual, pensados como máquinas de produzir
efeitos, eles obedecem às leis próprias da performance ou da
efetuação oral comunitária (CHARTIER, 2002, p. 260).

Diante do exposto, Michel de Certeau (1982) e Roger Chartier


(2002) tornam-se importantes referências teóricas e metodológicas no
campo da História Cultural por mostrarem que toda interpretação histórica
depende de um sistema de referência e que a “este sistema permanece
uma ‘filosofia’ implícita particular; que infiltrando-se no trabalho de análise,
organizando-o à sua revelia, remete à ‘subjetividade’ do autor” (CERTEAU,
1982, p. 58). Nesse sentido, as obras produzidas por Nina Rodrigues e João
do Rio, estão carregadas de seus valores e visões de mundo, por muitas
vezes ocultados sob a ótica dos saberes científicos, ainda em construção
ou atualização em um dado momento de suas publicações.

36
Diversidade Religiosa & História

O rito iniciático: elementos e significações

Marisa Peirano (2003) acrescenta a possibilidade dos rituais e repre-


sentações formarem um par indissociável cuja sobrevivência está associada
a uma “comunidade moral [que] se encontra relativamente unida em torno
de determinados valores” (PEIRANO, 2003, p. 14), ou seja, a posição da so-
ciedade supostamente relacionada à condição de “sagrada”, pois significam
o viver e o pensar, possibilitando desenvolver vários rituais em nome da
sobrevivência de determinados valores, segundo Peirano (2003).

O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele


é constituído de sequências ordenadas e padronizadas de
palavras e atos, em geral expressos por múltiplos meios. Estas
sequências têm conteúdo e arranjo caracterizados por graus
variados de formalidade (convencionalidade), estereotipia
(rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição). A
ação ritual nos seus traços constitutivos pode ser vista como
“performativa” em três sentidos: 1) no sentido pelo qual dizer
é também fazer alguma coisa como um ato convencional
[como quando se diz “sim” à pergunta do padre em um casa-
mento]; 2) no sentido pelo qual os participantes experimentam
intensamente uma performance que utiliza vários meios de
comunicação [um exemplo seria o nosso carnaval] e 3),
finalmente, no sentido de valores sendo inferidos e criados
pelos atores durante a performance [por exemplo, quando
identificamos como “Brasil” o time de futebol campeão do
mundo] (PEIRANO, 2003, p. 9).

Isto significa entender os eventos especiais enquanto elementos


carregados de ações sociais onde estão presentes eventos de natureza que
podem ser de certa forma, profanos, religiosos, festivos, formais, simples
ou elaborados. Segundo Peirano (2003) o rito é operacionalizado dentro de
um processo de criatividade e eficácia, isto é, em situações cotidianas que
transmitem valores e conhecimentos comuns a um determinado grupo.
Entretanto, nas crenças religiosas, os ritos não ocorrem à revelia
de uma percepção de sagrado, equivale ressaltar que os ritos apresentam
ações complexas dentro de processos de crenças mágicas e religiosa
as quais explicam fenômenos naturais e sobrenaturais de um povo, bem

37
Diversidade Religiosa & História

como, suas representações em eventos especiais do cotidiano que geram


para a sociedade uma forma de organização. A leitura de Peirano (2003)
ressalta nossa ideia de que os ritos iniciáticos demonstram as formas com
as quais os africanos e seus descendentes encontraram para reiterar seus
laços com os antepassados africanos.
Atentando ao rito de iniciação em específico, Van Gennep (1978) in-
sere o rito iniciático no processo em que teoria e prática são indissolúveis,
pois permitem compreender o sujeito em sua totalidade. O rito iniciático
estaria atrelado a uma sequência estabelecida pelos ritos de passagem,
isto é, presente em uma categoria secundária denominada rito de margem,
cuja técnica estaria associada às cerimônias, ritos e cultos, com a intenção
de transformar o indivíduo no momento de passagem, acompanhado por
ofícios de aprendizagem.

O objetivo do presente livro é completamente diferente. Não


foram os ritos em seus detalhes que nos interessaram, mas
sua significação essencial e sua situação relativa nos conjun-
tos cerimônias, sua sequência. Daí algumas descrições um
pouco longas, a fim de mostrar como os ritos de separação,
de margem e de agregação, preliminares ou definitivos,
situam-se uns com relação aos outros tendo em vista um
fim determinado. O lugar deles varia conforme se trate do
nascimento ou da morte, da iniciação ou casamento, etc.,
mas somente nos detalhes. A disposição tendencial deles é
por toda a parte a mesma, e debaixo da multiplicidade das
formas encontra-se sempre, expressa conscientemente ou
em potência, uma sequência típica, a saber, o esquema dos
ritos de passagem (VAN GENNEP, 1978, p. 159, grifo do autor).

Van Gennep (1978) aborda a iniciação como a passagem entre


ações e reações do profano para com o sagrado, bem como a passagem
de um estado ao outro em que a relação mágico-religiosa prevalece em
um processo dinâmico social.
Durkheim (1996) anuncia, por sua vez, que as principais atitudes
rituais seriam as solenidades de cunho sagrado, carregadas de segredos
em sua cerimônia, nas quais o iniciado abandona o que é profano e se
aproxima do que é sagrado. Trata-se de um momento cuja necessidade

38
Diversidade Religiosa & História

em desempenhar um papel é obrigatório, bem como a necessidade de


portar uma indumentária cerimonial.

Segundo uma justa observação que foi feita, ninguém pode


se envolver numa cerimônia religiosa de alguma importância
sem se submeter a uma espécie de iniciação prévia que o
introduza progressivamente no mundo sagrado. Para isso,
podem se empregar unções, purificações, bênçãos, todas
elas operações essencialmente positivas; mas chega-se ao
mesmo resultado por meio de jejuns, vigílias, pelo retiro e pelo
silêncio, isto é, por abstinências rituais que não são senão a
prática de interdições determinadas (DURKHEIM, 1996, p. 328).

Para Eliade (2010), o quadro do rito iniciático relaciona-se com uma


morte simbólica para a condição profana, seguida do renascimento para o
mundo sagrado observado nas religiões arcaicas. Trata-se de uma apropria-
ção de conhecimentos até então proibidas para o não iniciado, cujo poder
espiritual é alcançado apenas após o chamado, autorização ou idade, isto é,
“são concebidos como o fruto de uma iniciação, e é significativo que tanto
na Índia antiga como na Grécia se encontre o simbolismo obstétrico ligado
ao despertar da consciência suprema” (ELIADE, 2010, p. 161).
Considerando que o rito de iniciação significa ao sujeito iniciado
uma “renovação”, Eliade (2010) analisa, sobretudo, a adesão e o compro-
misso com uma nova vida, por meio de uma morte simbólica, permitindo
assim, pensar o homo religiosus como aquele movido por uma ideologia
cujo sentido está no simbolismo cósmico, ou seja, “os deuses criaram o
homem e o Mundo, os Heróis civilizadores acabaram a Criação, e a história
de todas as obras divinas e semidivinas está conservada nos mitos” (ELIA-
DE, 2010, p. 164-165).
Eliade (2010) classifica como ritos de puberdade, de entrada e
de iniciações individuais, quando correspondem a uma cerimônia de
admissão a uma sociedade secreta ou a uma faixa de idade, ou ainda, a
uma experiência paradoxal, sobrenatural, de morte e ressurreição, ou de
segundo nascimento. O iniciado é aquele que passou a conhecer os mis-
térios, conhecimentos, ensinamentos e obrigações para com o próximo.

39
Diversidade Religiosa & História

A iniciação comporta geralmente uma tripla revelação: a


do sagrado, a da morte e a da sexualidade. A criança ignora
todas essas experiências; o iniciado as conhece, assume e
integra em sua nova personalidade. Acrescentemos que se o
neófito morre para sua vida infantil, profana, não-regenerada
(sic), renascendo para uma nova existência, santificada, ele
renasce também para o modo de ser que torna possível o
conhecimento, a ciência. O iniciado não é apenas um “re-
cém-nascido” ou um “ressuscitado”: é um homem que sabe
que conhece os mistérios, que teve revelações de ordem
metafísica (ELIADE, 2010, p. 153).

Turner (1974) apresenta em duas modalidades de correlação


social, communitas e liminaridade, as fases de passagem de um estudo
ou condição, culturalmente definido, para outro. Em communitas estaria
presente o modelo de processo existencial ou espontâneo, normativo e
ideológico. A liminaridade compreenderia o processo do rito de passagem
como os rituais de elevação e de reversão de status, entendido como o
ritual de candidatos que apresentariam status mais alto no qual adquiria
maiores privilégios e direitos por reversão, cuja superioridade foi abalada e
revertida a um status mais baixo (TURNER, 1974, p. 212).

De tudo isso, concluo que, para os indivíduos ou para os gru-


pos, a vida social é um tipo de processo dialético que abrange
a experiência sucessiva do alto e do baixo, de communitas
e estrutura, homogeneidade e diferenciação, igualdade e
desigualdade. A passagem de uma situação mais baixa para
outra mais alta é feita através de um limbo de ausência de
“status”. Em tal processo, os opostos por assim dizer consti-
tuem-se uns aos outros e são mutuamente indispensáveis.
Ainda mais, como qualquer sociedade tribal é composta de
múltiplas pessoas, grupos e categorias, cada uma das quais
tem seu próprio ciclo de desenvolvimento, num determinado
momento coexistem muitos encargos correspondentes a
posições fixas, havendo muitas passagens entre as posições.
Em outras palavras, a experiência da vida de cada indivíduo o
faz estar exposto alternadamente à estrutura e à communitas,
a estados e a transições (TURNER, 1974, p. 120).

Para Turner (1974), as formas religiosas estão associadas às ativi-


dades inventivas de um grupo cuja estrutura volta-se para as categorias

40
Diversidade Religiosa & História

hierárquicas, inferiores e superiores, em um movimento secular que atribui


valores e funções adequadas às suas necessidades de organização.
Augè (1994) propõe possibilidades de analisar o rito de iniciação
seguindo opções teóricas diversas, por permitir discussões que envolvem
uma perspectiva antropologia (tendente a definir constantes do espírito
humano) e um funcionalismo sociológico (evidencia funções de poder
e ordem social), por entender que se tratar de pensar conjuntamente a
universalidade dos temas e a diversidade das funções. Dessa maneira,
para Augè (1994), o rito iniciação corresponde à prática vivida por aque-
les que a praticam como revelada pelos seres divinos ou sobrenaturais,
e compartilham experiências existenciais nos tempos míticos da origem
recapitulando, por meio do rito, a história sagrada do mundo e da tribo.

[...] é, em suma, o facto de partilhar com os iniciados este


regresso às origens, aos antepassados e ao mito, que asse-
gura a adesão e a promoção dos neófitos: a iniciação é uma
recapitulação da história sagrada do mundo e da tribo. Nesta
ocasião, a sociedade inteira mergulha nos tempos místicos da
origem e sai regenerada. Mas este renascimento não se pode
explicar senão através dos indivíduos; a iniciação implica para
todos os que a ela se submetem numa experiência existencial
e a eficácia social do rito. É, além disso, o caráter metacultural
e trans-histórico desta experiência existencial que explicará
o facto de os próprios temas iniciáticos aparecerem em
sociedades culturalmente heterogêneas (gregas, orientais,
australianas, africanas) (AUGÈ, 1994, p. 77).

Enfim, diante do exposto e das diferentes interpretações históricas


apresentadas até aqui, compreendemos a atividade humana, bem como,
as suas práticas religiosas compartilhadas e transmitidas social e cultural-
mente enquanto ação carregada de significado entre os sujeitos.

41
Diversidade Religiosa & História

“Fazer o santo” — os ritos de iniciação e as práticas religiosas


afro-brasileiras

Apresentados as leituras teóricas possíveis para pensamos os ritos


iniciáticos, a nossa escolha em analisar os escritos de Nina Rodrigues e
João do Rio, a partir dos estudos de Mircea Eliade justifica-se como forma
de situar nossa preocupação no âmbito da história das religiões. Para
Eliade o rito de iniciação consiste em uma conexão entre a vida humana
e a vida espiritual. Trata, pois, de anunciar as perspectivas em torno da
existência humana, tomando como ponto de partida as relações sociais e
o comportamento dos seres humanos frente ao que é tido como sagrado
(ELIADE, 2010).
A evocação ao sagrado se dá por meio do ritual, e quando a hiero-
fania manifesta a mudança do estado profano para sagrado, proporciona
ao homem religioso, o contato com o conhecimento deste sagrado, a
revelar uma ordem diferente, uma realidade que não pertence ao nosso
mundo, mas que simboliza um dos modos de viver no mundo.

Seja qual for o contexto histórico em que se encontra, o


homo religiosus acredita sempre que existe uma realidade
absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, que aqui
se manifesta, santificando-o e tornando-o real. Crê, além
disso, que a vida tem uma origem sagrada e que a existência
humana atualiza todas as suas potencialidades na medida
em que é religiosa, ou seja, participa da realidade. Os deu-
ses criaram o homem e o Mundo, os Heróis civilizadores
acabaram a Criação, e a história de todas as obras divinas e
semidivinas está conservada nos mitos. Reatualizando a his-
tória sagrada, imitando o comportamento divino, o homem
instala-se e mantém-se junto dos deuses, quer dizer, no real
e no significativo (ELIADE, 2010, p. 164-165).

Quando analisamos a descrição do rito de iniciação realizado pelo


médico Nina Rodrigues na Bahia do final do século XIX, identificamos uma
narrativa voltada a uma iniciação de confraria, cuja aceitação ou entrada
demandava a participação aos ensinamentos junto ao pai ou mãe do
terreiro. Conforme as considerações do médico legista, a entrada em uma

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Diversidade Religiosa & História

confraria pressupunha o encontro com um objeto qualquer, revelado por


sonho e confirmado em consulta com o pai ou a mãe de terreiro que, por
meio de búzios encontrava o orixá e o possível pai ou mãe de santo que
conduziria a iniciação do escolhido.
Rituais e simbolismos da passagem expressam uma concepção
específica da existência humana: uma vez nascido, o homem ainda não
está acabado; deve nascer uma segunda vez, espiritualmente; torna-se
homem completo passando de um estado imperfeito, embrionário, a um
estado perfeito, de adulto preparado a aprender e estar receptivo aos
novos conhecimentos (ELIADE, 2010).
Dentre as descrições do rito de iniciação realizada por Nina Ro-
drigues destacamos a saída de uma yauô chamada Olympia, iniciada que
teria encontrado uma “pedra de forma estranha”, de tamanho alongado
e que em uma das pontas, trazia dois pontos marcados como dois olhos.
Esta situação a levou a crer que poderia ser um fetiche, ou seja, um sinal
para a sua iniciação na família do candomblé.

Olympia, a iniciada, havia encontrado uma pequena pedra


de fórma estranha, um repouco alongada, e, tendo uma das
extremidades dois pontos lateraes a modo de olhos. A credi-
tando que podia ser um fetiche foi consultar Livaldina que lhe
disse ser Osun e que a mãe de terreiro Tecla seria a sua mãe
de santo. Preparada Olympia e marcado o dia da iniciação,
veio a esta cidade (porque a iniciação devia ter lugar fora), afim
de convidar para a festa um pai de terreiro que aqui reside
no Kabula e é particular amigo de seu pai, que por seu turno
também é pai de terreiro (sic) (RODRIGUES, 1935, p. 76-77).

Na citação identificamos que mesmo sem ser iniciada, Olympia já


possuía familiaridade com as crenças de “fazer o santo”. Na narrativa, Nina
Rodrigues anuncia “o outro”, uma alteridade (HARTOG, 1999), pois ao narrar
um caso específico, indica como o conhecimento e a familiaridade com as
crenças afro-brasileiras estão presentes no cotidiano baiano.
Sem dúvida, Olympia, a iniciada, tornou-se a descrição original da
entrada em uma confraria de matriz afro-brasileira do século XIX, pela nar-

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Diversidade Religiosa & História

rativa considerada pioneira e, principalmente, pela participação de Nina


Rodrigues ao corroborar com a descrição de sua iniciação.

Preparados os animaes do sacrifício, á tarde, como é de praxe,


teve lugar o sacrifício propiciatório precede todas as festas de
santo, pois a sua preterição traria como consequência infalível
a perturbação da festa. A’ noite, a inicianda tem de tomar um
banho, mystico, verdadeira purificação lustral, em que troca
por vestes novas as que trazia, as quaes são abandonadas,
em symbolo, suponho eu, de completa renuncia á vida
anterior. Olympia foi tomar este banho numa fonte sagrada
de um engenho da vizinhança. Acompanharam-na a mãi de
terreiro, Tecla, que devia pronunciar as orações adequadas
ao acto, e uma filha de santo que conduzia as vestes brancas
e engomadas de Osun, com que se devia revestir Olympia,
depois do banho. Estou informado de que este banho, em
certos ritos africanos, mesmo entre nós, se dá ás vezes com
infusões de plantas que gozam de propriedades e virtudes
fortemente estimulantes, e são tidas como plantas sagradas
(sic) (RODRIGUES, 1935, p. 77-78).

Ao nos determos na narrativa, percebemos como ela serve de mo-


delo aos autores brasileiros que se propuseram a narrar o rito de iniciação
no candomblé, citados no capítulo anterior. Nina Rodrigues ao descrever
os preparativos para a cerimônia de Olympia, destacou como fundamental
a presença do pai ou mãe do santo, além do investimento financeiro feito
por quem desejava se iniciar.

Conhecido o santo e designado o pai ou mãi do terreiro que


o tem de fazer, o iniciado prepara o seu enxoval, ou antes o
guarda-roupa do santo e reserva as suas economias para a
grande festa da iniciação. São todos acordes em afirmar que
as despesas da iniciação são sempre muito avultadas, e que
feituras de santo têm havido entre nós, principalmente aqui
na capital, em que essas despesas subiram a conto de réis.
Conheço, de facto, negros, creoulos e africanos, que ficaram
velhos e não conseguiram obter os meios para a iniciação do
seu santo, conhecido desde a mocidade delles. A descripção
exacta de uma iniciação a que assisti há pouco tempo, servirá
de exemplo destas praticas fetichistas na Bahia (sic) (RODRI-
GUES, 1935, p. 76).

44
Diversidade Religiosa & História

Os investimentos financeiros e o preparo do enxoval do santo


também são observados por João do Rio. Nina Rodrigues destacava o
sacrifício de animais como continuação do ritual, visto que, tanto a carne
servia como alimento ao orixá cultuado e aos convidados, como o sangue
era derramado sobre o fetiche e a cabeça da inicianda; “é pela cabeça que
penetra o santo no corpo do crente” (RODRIGUES, 1935, p. 79). A cabeça
deveria ser raspada por uma navalha, para assim se dar possessão ou
manifestação do santo.
Com relação ao orixá que estava sendo feito na inicianda Olympia,
podemos destacar alguns indícios que levam a reconhecer a santidade que
compõe a sua personalidade. Conforme aponta Serafim (2013a), a descri-
ção de Olympia faz referência a Oxum enquanto santidade a ser cultuada,
pois, após encontrar uma pequena pedra de “forma estranha”, um pouco
alongada, tendo em uma de suas extremidades dois pontos laterais que
lembram dois olhos, Olympia consultou mãe Thecla para confirmar o orixá,
pois o manuseio do objeto não pode ser executado por qualquer um. Após
o manuseio do objeto sagrado, a mãe Thecla confirmou Oxum, divindade
que possui o mesmo nome do rio que corre na Nigéria, responsável pela
fecundidade, podendo ser reconhecida pelo seu arquétipo humano, pelas
ações de amor, bondade, pureza e caridade (VERGER, 2002).

Olympia foi tomar este banho numa fonte sagrada de um


engenho da vizinhança. Acompanharam-na a mãi de terreiro,
Tecla, que devia pronunciar as orações adequadas ao acto, e
uma filha de santo que conduzia as vestes brancas e engo-
madas de Osun, com que se devia revestir Olympia, depois do
banho (sic) (RODRIGUES, 1935, p. 77-78).

Para completar o ritual, o banho com as infusões especiais de plantas


consideradas sagradas, como forma de purificação, gestos e palavras ca-
balísticas, traços desenhados na face da inicianda com pasta branca ou giz,
bebida especial, muita música e dança finalizava a cerimônia de iniciação.

Ao tempo em que se iam terminando as cerimonias do santu-


ário, a orchestra, composta de cinco tabaques (tambores pe-
quenos) e quatro cabaças, cobertas de uma rêde de malhas,

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Diversidade Religiosa & História

contendo grossas contas em cada nó, começava na sala onde


eu me achava, a invocação do santo. A um signal ou ordem
do regente, todos os atabaques foram colocados reunidos
no centro da sala e ao lado vieram depor um prato com obi
(noz de kola) e moedas de cobre, e uma quartinha d agua de
santo, tiradas do santuário. O regente levantou-se, fez ligeira
genuflexão sobre o joelho esquerdo e concentrou-se como
oração. Depois tomou da quartinha, lançou um pouco d’agua
de cada lado dos atabaques, e em seguida deitou na boca um
punhado de obi. Mastigou o obi, e, tomando os tabaques um
a um, e invertendo-os, foi lançando dentro de cada um o obi
mastigado (sic) (RODRIGUES, 1935, p. 81).

Em virtude dos estudos e observações realizados por Nina Rodri-


gues para narrar a existência de uma prática religiosa, sob a ótica científica,
entre as culturas dos africanos e seus descendentes, identificamos inúmeros
termos utilizados na descrição do rito de iniciação, tais como; confraria, so-
nambulismo, fetiche, feituras de santo, práticas fetichistas, feitiço simbólico,
festa, crâneo, subir a cabeça, perturbações, fonte sagrada, orações, santu-
ários, possessão demoníaca, histeria, alienada, delírios, hipnose, amnésia,
características psicológicas, predisposição, palavras cabalísticas, virtude,
força mágica, santo feito, invocação do santo, batucagé, purificação.
O transe é o momento auge da iniciação, interpretado por Nina
Rodrigues como demonstração da histeria na raça negra, correspondente
ao fraco desenvolvimento intelectual dos negros africanos. Tal histeria
associada a neurastenia causaria, por meio de um desdobramento de
personalidade, o transe ou “estado de santo”. Com ênfase nas práticas das
macumbas cariocas, João do Rio descreveu o transe a partir da mesma
perspectiva que Nina Rodrigues.
Segundo Lewis (1977), o estado de transe seria uma dissociação,
caracterizado pela falta de movimento voluntário e, frequentemente, por
automatismo de ato e pensamento, representados pelos estados hipnó-
ticos e mediúnicos, ou seja, uma dissociação mental acompanhada de
visões excitantes e alucinações que nem sempre é lembrado pelo sujeito.
Conforme as considerações de Ramos (1979), as festas religiosas
dos bantos influenciaram especificamente o Rio de Janeiro, promovendo
padrões culturais de origem que aos poucos foram sofrendo o processo

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Diversidade Religiosa & História

de aculturação3, daí o nome de umbanda. Tal movimento também acorreu


em outras regiões do Brasil, e tais festas passaram a ter outras denomina-
ções, tais como o candomblé, na Bahia, o catimbó e xangô, no Nordeste
e a macumba, no Rio de Janeiro, interpretada por João do Rio como uma
manifestação de cunho “diabólico e satânico”, associada a uma religião de
“crença misteriosa com feitiçaria pavorosa”.
Para Prandi (2001), o candomblé angola, embora tenha adotado
os orixás, divindades nagôs, e absorvido muito das concepções e ritos de
origem iorubá, foi o responsável pela constituição da umbanda, no início
do século XX, no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Diferente do descrito por Nina Rodrigues, que acompanha festas
em terreiro, em um espaço próprio para a realização dos ritos, João do
Rio parece narrar mais cultos domésticos. Podemos conjecturar que essas
práticas sempre se organizaram de tal maneira ou, se o que João do Rio
descreveu fazia parte do processo de higienização do centro do Rio de
Janeiro, que empurrou os ex-escravos e imigrantes pobres para as mar-
gens da cidade (CHALHOUB, 1996). Ainda assim, de acordo com Eliade
(2010) numerosos ritos acompanham a passagem do limiar doméstico, isto
é, reverências ou prostrações, toques devotados no que tal passagem,
baliza, limite ou fronteira apresenta seus guardiões, chamados de deuses
ou espíritos que mantém aquele espaço ou recinto como sagrado.
Para os leitores de João do Rio esta passagem apresentava o re-
trato de um grupo de feiticeiros (pretos, preguiçosos e malandros), cujos
cultos praticados exerciam extravagância e dinheiro:

Os feiticeiros, porém, pedem retratos, exigem dos clientes


coisas de uma depravação sem nome para agir depois fa-
zendo o egum, ou evocação dos espíritos, o maior mysterio
e a maior pandega dos pretos; e quase todos roubam com
descaro, dando em troco de dinheiro sardinhas com pó
de mico, cebolas com quatro pregos espetados, cabeças
de pombo em salmora para fortalecer o amor, uma infinita
serie de extravagâncias. Os trabalhos são tratados como nos
consultórios médicos: a simples cousulta de seis a dez mil

3 Segundo Ramos (1979), significa um mecanismo de relações geradas em contatos de migrações de uma
área a outra, ou seja, quando os representantes de área mais adiantada se introduzem em outra mais atrasada.

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Diversidade Religiosa & História

réis, a morte de homem segundo a sua importância social e


o recebimento da importância por partes. Quando é doença,
paga-se no acto — porque os babaloxás são médicos, e
curam com cachaça, urubus, pennas de papagaio, sangue e
hervas (sic) (RIO, 1904, p. 32-33).

A descrição do rito de iniciação em João do Rio aponta para uma


cerimônia carregada de feitiços, segredos, sacrifícios, cantorias e danças.
O autor informa que essa forma de religião era mantida por uma grande
quantidade de escravos africanos vindos para o Rio de Janeiro desde os
tempos coloniais e que realizavam suas atividades religiosas em qualquer
esquina da cidade.
Esse ponto nos interessa, pois como alerta Certeau (1982), a
efetividade da alteridade está na estranheza. É nítido o estranhamento
de João do Rio com a ausência de um “templo”. Como poderiam os ritos
de uma religião ser realizados em ruas, encruzilhadas, dentro de casas?
Percebemos aqui a concepção de religião presente no autor, demarcando
a maneira como narra, pela ausência, o “outro”. É relevante destacar ainda
que, ao propor a descrever os mistérios do Rio de Janeiro, João do Rio os
identifica com as religiões e apresenta a igreja Positivista, os Maronitas,
os Fisiólatras, o Movimento Evangélico, o Satanismo, as Sacerdotisas do
futuro, a nova Jerusalém, o Culto do mar, o Espiritismo entre os sinceros,
os Exploradores e por fim, as Sinagogas.
De acordo com João do Rio,

A cerimônia de um noviço iniciava-se com rezas sobre a ca-


beça da yauô, molhando-a com uma composição de hervas,
e em seguida com uma navalha afiadíssima faziam-se uma
raspagem em formato circular, ou seja, uma coroa no crâneo
embalada numa triste cantoria (sic) (RIO, 1904, p. 17-18).

Enquanto isso, os cabelos eram guardados em “segredo” para evitar


“futura desgraça” e os animais eram “esfaqueados” pelos ogans, cujo sangue
era derramado pela Babaloxá na cabeça da yauô. Percebemos nos termos
usados por João do Rio como a escrita é um canal carregado de significados.

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Diversidade Religiosa & História

O rito de iniciação significa o acesso a uma vida espiritual que im-


plica, sobretudo, na morte para a condição profana, seguida de um novo
nascimento para uma vida sagrada (ELIADE, 2010). Dessa maneira, o iniciado
poderá alcançar uma existência plenamente responsável e aberta aos valo-
res espirituais, pois se tornou aquele que conheceu os mistérios, aquele que
sabe e está preparado espiritualmente, pois amadureceu para tal prática.
A diferença sugerida por Hartog (1999) é evidenciada quando João
do Rio demonstra a ausência de sensibilidade para com as práticas que
descreve o desconhecimento. Mais do que isso, considerando a ampla
aceitação da literatura de João do Rio, até os dias de hoje, identificamos os
perigos de se perpetuar o olhar equivocado sobre as crenças de matriz afri-
cana. Se Nina Rodrigues, em virtude de ser médico, é abordado com certa
desconfiança; João do Rio tende a ser lido com certa naturalidade e leveza.
João do Rio prossegue explicando que o preparo de santo e as
danças realizavam-se no primeiro, terceiro, sétimo, décimo segundo e
décimo sexto dia, quando o santo se revelaria.

Antes de entrar a para camarinha, a mulher, predisposta pela


fixidez da attenção a todas as suggestões, presta juramento
de guardar o segredo do que viu, toma um banho purificador
e á meia-noite começa a cerimônia. A yauô senta-se numa
cadeira vestida de branco com o ojá apertado a cintura. Todos
em derredor entoam a primeira cantiga a Echú.

Echú tiriri, lô-nam bará ô bebê

Tiriri lo-nam Echú tiriri (sic) (RIO, 1904, p. 17).

D’ahi a momentos a iniciada apparece com outros fatos, pega


no alguidar e SAE acompanhada das outras, que a amparam e
cantam baixo o offertorio ao sancto. Em chegando ao logar in-
dicado, a hypnotizada deixa o vaso, volta e é recebida pelo pai,
que entorna em frente á porta um copo d’agua. [...] A nova yauô
vai então descançar, emquanto os outros rezam na camarinha
em frente ao estado-maior (sic) (RIO, 1904, p. 18).

Ao contrário de Nina Rodrigues, João do Rio, não traz indícios sobre


o santo que estava sendo feito nas yauôs, mas apresenta a primeira cantiga

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Diversidade Religiosa & História

destinada à “echú” a fim de abrir caminhos para a iniciação. Descreve, porém,


as duas grandes crenças cultuadas pelos negros africanos: os orixás (maior
número complicado de animistas) e os alufás (mahometanos). Deter-nos-e-
mos somente na primeira crença, por tratar-se de um rito de iniciação pe-
culiar, no qual os santos são feitos por meio de uma cerimônia de evocação.
João do Rio destaca ainda, a figura das yauôs como as responsáveis pela
sustentação do culto, denominado pelo jornalista de pandemônio, assim
como comparava a figura do negro com a de um “gorila manhoso” e das
pretas enquanto “cynicas ou hystericas”. Relata ainda, uma descrição do
possível altar com estátuas de santos na prateleira cuja característica pode
confirmar a umbanda praticada na cidade do Rio de Janeiro:

O estado-maior é a colleção de terrinas e sopeiras colocadas


numa espécie de prateleiras de bazar. Nas sopeiras estão
todos os santos pequenos e grandes. Há desde as terrinas de
granito ás de porcelanas com frisos d’ouro, rodeando arma-
ções de ferro, onde se guarda o Ogum, o São Jorge da Africa
(sic) (RIO, 1904, p. 16-17).

Na descrição do rito de iniciação, João do Rio utilizou termos pejo-


rativos que definiam a umbanda como uma crença bizarra na qual a con-
vivência e a aprendizagem eram feitas “pelo ouvido”, e os orixás animistas,
santos e espíritos se manifestavam por meio do invisível, causando assim
um interesse súbito na descrição reveladora de prática um tanto selvagem
e demoníaca de feitiçaria.

O babaloxá pergunta ao sancto para onde deve ir o cabello


que vai cortar á futura filha, e, depois de ardente meditação,
indica com apparato a ordem divina. Essas descobertas são
fatalmente as mesmas no centro de uma cidade populosa
como a nossa. Se o sancto ê a mai d’agua doce, Oxum, o
cabello vai para a Tijuca, a Fabrica das Chitas; se é Ié-man-já
fica na praia do Russell, em Sancta Luzia; se é outro sancto
qualquer, basta um trecho de praça em que as ruas se cruzem
(sic) (RIO, 1904, p. 17).

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Diversidade Religiosa & História

Também denominava as pinturas bizarras e a fadiga ao som dos


batuques nos festejos que acentuavam o ritmo, passos, pulos e gritos hor-
rendos da iniciada que dançava sem cessar, em um vigor sem precedentes,

Olhei o celebre pai de sancto, cujas filhas são sem conta.


Estava sentada á porta da camarinha, mas levantou-se logo,
e a negra iniciada entrou, de camisola branca, com um leque
de metal chocalhante. Fula, com uma extraordinária fadiga
nos membros lassos, os seus olhos brilhavam satânicos sob o
capacete de pinturas bizarras com que lhe tinham brochado o
craneo. Deante do pai estirou-se a flo comprido, bateu com as
faces no asoalho, ajoelhou e beijou-lhe a mão. Babaloxá fez um
gesto de benção, e Ella foi, rojou-se de novo deante de outras
pessoas. O som do agogô arrastou no ar os primeiros batuques
e os arranhados do xequeré. A negra ergueu-se e, estendendo
as mãos para um e para outro lado, começou a traçar passos,
sorrindo idiotamente. Só então notei que tinha na cabeça uma
exquisita espécie de cone (sic) (RIO, 1904, p. 20-21).

Creaturas rojavam-se aos pés do pai, beijando-lhes os


dedos; negras uivavam, com as mãos empoladas de
bater palmas; dous ou três pretos aos sons dos xequerês
sacudiam-se em danças com o sancto, e a yauô revirava
os olhos, idiota, como se accordasse de uma grande e
estranha moléstia (sic) (RIO, 1904, p. 23).

Nas duas citações anteriores identificamos os problemas que apare-


cem na relação que o narrador de um relato etnográfico mantém com a “outra
sociedade”, da qual fala e que pretende entender, como alertam Certeau (1982)
e Hartog (1999). A forma como João do Rio narra as práticas africanas indica
como ele pensa os povos africanos. Se em Nina Rodrigues há uma empatia
que justifica a religião do negro pelo seu desenvolvimento inferior ao branco,
em João do Rio há um horror que denuncia o negro como entrave civilizatório.
Ainda conforme a narrativa, a yauô deveria ficar reclusa sem con-
versar com ninguém, em uma espécie de meditação vigiada pela mãe pe-
quena ou Iaque-que-rê. No dia seguinte à cerimônia, após o banho, a yauô
apresentava-se ao pai para ver se tinha espíritos contrários. Caso tivesse, o
mesmo afastaria por meio de ebôs e ogunguns. Este ebó segundo Ramos
(1979) compreendia a magia fetichista dos yorubas:

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Diversidade Religiosa & História

A magia fetichista de origem Yoruba chama-se na Bahia ebó. A


sua etimologia é a mesma do embó cubano, a que já nos referi-
mos. O ebó é chamado mais comumente despacho, termo que
se generalizou no Brasil. Obedece às regras clássicas da magia
imitativa e simpática, a que já consagramos estudos especiais.
Nos casos mais comuns, o ebó ou despacho consiste numa
vasilha de barro, caixa de madeira ou simples invólucro de papel
ou pano, contento: galinha morta (ou outro animal: pombo, sapo,
etc.), retalhos de madrasto, dinheiro de cobre e mais raramente
de prata, pipocas, acaçás, acaragés, obi, orobô..., tudo embebido
em azeite de dendê (RAMOS, 1979, p. 193, grifo do autor).

Para o jornalista a cerimônia da umbanda nas esquinas da cidade


do Rio de Janeiro representava uma crença carregada de fetiches, na
qual a presença de santos, espíritos e macumbas era frequente, variando,
sobretudo nas origens e etnias dos negros africanos que praticavam e
copiavam os processos, seja em cantigas com pedaços em português ou
até mesmo nos nomes dos orixás, o que indicava resquícios do período da
escravidão. Se em Nina Rodrigues o termo fetiche se refere a um estágio
natural da evolução dos povos (SERAFIM, 2013b), em João do Rio é uma
forma de desqualificar a religião dos escravos.
João do Rio utilizou, em suas descrições, termos e ou palavras
pejorativas como desgraça, crâneo, animais esfaqueados, hipnotizada,
sonambulismo, fazer mal, olhos com brilhos satânicos, sorriso idiota,
estranha moléstia e gritos horrendos, rezas, poder, magia, alucinação, des-
graça, delírios, vertigem, uivar, loucura, farcistas, malandros, rito selvagem,
festejos, encenação, marginalização, matança, que tinham como objetivo
desqualificar a religião do negro, tornando-as inferiores, sem credibilidade,
cultuada por um grupo de pretos burros e malandros que por falta de
trabalho enganam toda uma cidade por dinheiro.

Conclusão

“Fazer o santo”, iniciar-se no candomblé de Salvador ou na ma-


cumba no Rio de Janeiro no final do século XIX e início do XX, significava
fortalecer laços sociais, culturais e religiosos. A fim de manter uma vida no

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Diversidade Religiosa & História

Brasil, sem esquecer-se de seus antepassados e suas mitologias, reme-


morando as divindades africanas que foram tão importantes para suportar
a existência e o cotidiano nada hospitaleiro. Essa pesquisa surgiu com o
intuito de compreender como algumas heranças culturais africanas se
reorganizaram no Brasil. O rito de iniciação, narrado por Nina Rodrigues
(1862-1906) e João do Rio (1881-1921), marcam a permanência das crenças
africanas em um território ainda hoje hostil às suas práticas.
Neste sentido, torna-se necessário visualizarmos e identificarmos
para que o pensamento ocidental não prevaleça na forma de olhar para
práticas afro-brasileiras, uma vez que a marginalização e a desqualifica-
ção do ritual de origem africana eram frequentes. Do ponto de vista da
história das religiões, considerarmos o rito de iniciação supõe pensar os
mitos que organizam as práticas religiosas. Como alerta Eliade (2010), o
tempo do rito é o tempo sagrado, que é por sua própria natureza rever-
sível, no sentido em que é um Tempo mítico primordial tornado presente.
Assim, na festa em que culmina a iniciação, temos um tempo litúrgico,
que representa a reatualização de um evento sagrado que teve lugar em
um passado mítico, “nos primórdios”. A experiência religiosa da iniciação
seria uma forma de reatualizar um mito primordial e viver o mais próximo
possível dos deuses. Aproximar novamente Orum e Ayiê! Restabelecer o
Tempo sagrado da origem, tornar contemporâneo dos deuses. “É preciso
sublinhar que, desde o início, o homem religioso estabelece seu próprio
modelo a atingir no plano trans-humano: aquele revelado pelos mitos. O
homem só se torna verdadeiro homem conformando se ao ensinamento
dos mitos, imitando os deuses” (ELIADE, 2010, p. 53). Os ritos de iniciação
afro-brasileiros marcam a rememoração, a recordação reatualizada pelos
ritos e desempenha um papel decisivo no Brasil, o não esquecimento de
sua ancestralidade africana no Brasil.

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al_ndembu.pdf. Acesso em: 8 jul. 2021.

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Castro. Petrópolis: Vozes, 1974.

VAN GENNEP, Arnald. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.

VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Salvador: Corrupio, 2002.

54
POR TRÁS DOS MUROS:
OS UMBANDISTAS NO TECIDO
URBANO DE UBERLÂNDIA-MG

Cairo Mohamad Ibrahim Katrib1

Resumo
O capítulo dialoga com as práticas da religiosidade afro-brasileira, em especial a
Umbanda. Parto da ideia de que essas práticas religiosas passaram por transfor-
​​
mações a partir dos anos 2000, fruto de uma série de políticas públicas. O viés
teórico-metodológico que subsidia o texto se pauta na História Cultural e a das
Religiosidades. Portanto, é visível que esses sujeitos vivem sua fé como sinônimo
de suas próprias vidas.
Palavras-chave: Umbanda. Umbandistas. Políticas Públicas.

Abstract
The chapter dialogues with the practices of Afro-Brazilian religiosity, especially
Umbanda. I start from the idea that these religious practices have undergone
changes since the 2000s, the result of a series of public policies. The theoreti-
cal-methodological bias that subsidizes the text is based on Cultural History and
that of Religiosities. Therefore, it is visible that these subjects live their faith as
synonymous with their own lives.
Keywords: Umbanda. Umbandistas. Public Policy.

1 Pós-doutor em História Pela Universidade Estadual de Maringá-UEM; Doutor em História Cultural pela
Universidade de Brasília-UNB, Mestre em História Pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente da
Universidade Federal de Uberlândia-Faculdade de Educação e dos Programas de Pós-Graduação em
Artes-ProfArtes-UFU e Tecnologias, Educação e Comunicação-PPGCE-UFU. Endereço eletrônico: cairo-
mohamad@gmail.com.

55
Diversidade Religiosa & História

Introdução

Recriação. É esta a ideia que informa nosso entendimento acerca


da Umbanda, enquanto espaço do sagrado. Os sentidos e significados
conferidos a este registro religioso são construídos pelos sujeitos que,
cotidianamente, o experimentam e vivenciam. Dessa forma, por meio dos
seus fazeres e de suas memórias, esses atores recriam insistentemente a
própria Umbanda, reinserindo-a em uma dinâmica peculiar. Neste processo,
são agregados e redimensionados diferentes elementos e ritualísticas, os
quais, dialeticamente, transformam-na em uma prática plural “reinventada”
ao longo do tempo, em um processo marcado por confrontos e resistências.
Assim, ao colocarmos a Umbanda na perspectiva da História Cul-
tural2 e inserida nos estudos da Religião e das Religiosidades, observamos
tratar-se de uma prática mesclada por diferentes saberes, oriundos das
mais diversas culturas religiosas3. Dentre vários outros, interagem saberes
africanos, ameríndios, orientais, católicos e espíritas, conferindo significa-
dos aos rituais.
Esta bricolagem de práticas e representações faz da Umbanda
uma religião multifacetada, o que permite o seu constante refazer. É justa-
mente esse movimento que impulsiona a sua aproximação com as diver-
sas camadas sociais. Nesta dinâmica, suas entidades são constantemente
reelaboradas e humanizadas. Logo, ao serem recriadas na intersecção
de diferentes culturas — localizadas no tempo e no espaço —, tornam-se
mais inteligíveis aos sujeitos, permitindo a disseminação da Umbanda pelo
Brasil e para fora dele4.
Do ponto de vista intelectual a construção cognoscível da Um-
banda percorre outros caminhos. Conforme destaca Isaia (2012b), o nas-

2 Neste trabalho assumimos o tratamento da cultura, em conformidade com o campo das História Cultural
definido por Roger Chartier (1998) como sendo composto por práticas sociais que, no seu fazer-se, produ-
zem representações.
3 Sobre a relação entre a História das Religiões e religiosidades, na perspectiva da História Cultural ver: Le
Goff e Nora (1976) e Massenzio (2005).
4 A expansão das religiões afro-brasileiras para diferentes partes do mundo tem sido estudada por vá-
rios estudiosos, sobretudo das Ciências Sociais, especialmente a partir da década de 1990. Dentre estes,
destacamos o trabalho de Alejandro Frigerio que discute a expansão da Umbanda em território argentino,
oferecendo uma excelente interlocução com a matriz brasileira. Consultar: Frigerio (1991, 2013).

56
Diversidade Religiosa & História

cimento institucional da Umbanda se assenta sobre um embate entre a


normatização e as múltiplas práticas, características do próprio campo:

Uma das características mais marcantes da constituição da


Umbanda no Brasil é a formação de um segmento intelectual,
imbuído de um projeto normatizador, querendo impor-se às
práticas multifacetadas que caracterizaram e caracterizam
a religião. A formação deste segmento é particularmente
importante para compreendermos as tensões existentes
na Umbanda entre a norma e a realidade empírica; entre o
projeto letrado e a espontaneidade cotidiana; entre o ideado
e o vivido (ISAIA, 2012b, p. 1).

De outro lado, o autor também destaca que “[...] os intelectuais da


Umbanda pensavam em uma religião tipicamente nacional e capaz de sin-
tetizar a representação miscigenada então propalada por parte da ‘intelli-
gentsia’ brasileira e pelo Estado” (ISAIA, 2012, p. 2). Entretanto, ao contrário
da normatização culta, aprofunda-se no fazer cotidiano da Umbanda a sua
predisposição à reinvenção. Humanizando suas entidades, reelaborando
seus preceitos, recriando seus rituais, a religião continuou e continua se
reinventando, na contramão do ordenamento intelectual e também da
memória histórica que oficializou a narrativa do surgimento dela no Brasil.
Buscamos trazer o diálogo acerca da Umbanda e dos umbandistas
para dentro de Uberlândia, cidade de médio porte localizada na região do
Triângulo, em Minas Gerais.

57
Diversidade Religiosa & História

Mapa 1 – Localização de Uberlândia no estado de Minas Gerais.


Fonte: Secretaria de Planejamento Urbano.5

Quando geograficamente estabelecemos os espaços de culto em


uma dada realidade espacial, é possível entendermos quem são, de fato,
seus frequentadores. Observar estas idiossincrasias nos permite observar
até onde os umbandistas de Uberlândia se inserem na polifonia de sen-
tidos que esta religião assume, caracteristicamente, em diversas regiões
do país. Da mesma forma, também nos proporciona perceber as próprias
especificidades das recriações de Umbanda em Uberlândia, perpetradas
pelos atores sociais que a praticam e que, na dinâmica constitutiva, ineren-
te à Umbanda, a reinventam como outra e mesma, cotidianamente.
Pensar a Umbanda sobre o tecido urbano uberlandense, nos per-
mite inseri-la em um palimpsesto de práticas e representações, conforme
o sentido conferido por Pesavento (2004): vestígios de uma realidade que,
impressa sobre outra, nos incita um “ver além”. As interpretações, sentidos,
elaborações, presenças, ausências, mirongas e segredos, são indícios
deixados na tessitura religiosa, não raro rastros também de um confronto
nem sempre velado entre a norma e a prática, entre os interditos e as
insistências. Desse ponto de vista, são igualmente resistências e, enquanto

5 Disponível em: https://www.uberlandia.mg.gov.br/prefeitura/secretarias/planejamento-urbano/mapas-


-e-bairros. Acesso em: 8 jul. 2021.

58
Diversidade Religiosa & História

tal, permitem ver ou dar a ler além daquilo que é exibido, seja como forma
ou escrito, onde os diferentes fios “retramam” significâncias.
Assemelhada a um palimpsesto, a prática ritual umbandista se
revela como um corpo único e, ao mesmo tempo múltiplo, que se concre-
tiza por meio de ações, interações e imagens. Superpostas e camufladas,
ocultam-se umas sobre as outras, produzindo quadros de significações
sagradas que se reelaboram de acordo com as necessidades daqueles
que trilham seus caminhos em busca de superação das agruras cotidianas.
Sob este prisma, observamos que a história oficializada da Um-
banda tentou elidir justamente essas múltiplas interações as quais, por
sua vez, rompiam com o padrão que se procurava impor à religião. Não
obstante, foi sua capacidade de recriação que permitiu a esse campo reli-
gioso a liberdade de se manifestar e se apresentar intercambiando com as
realidades culturais nas quais se inseriu.
A análise das práticas e representações da religiosidade afro-
-brasileira, especialmente da Umbanda, por meio das suas recriações,
nos permite relê-la pelos caminhos da sua longa, densa e tensa trajetória
histórica, a qual impõe a sua percepção como patrimônio cultural dinâmi-
co, integrante da construção cultural brasileira como, ainda, retroalimenta
os movimentos organizados, determinados em fazê-la vista e respeitada.
Todos estes lineamentos, entremeados como os fios que tecem as
práticas e representações que identificam a Umbanda como registro de
cultura igualmente estimulariam a de efetivação de ações afirmativas
que respaldassem sua importância no âmbito das políticas públicas, na
contemporaneidade.
Nesse sentido, a literatura que se dedica ao estudo da Umbanda,
inclusive a mais contemporânea, a compreende como a resultante de uma
série de fusões6. Nesta perspectiva a religião nasceria do entrecruzamento
de elementos do espiritismo kardecista, do catolicismo e do candomblé
mediados, ao mesmo tempo, por uma mescla de ritos e preceitos trazidos
de vários outros registros. Assim, ao longo do tempo, a Umbanda foi se re-

6 Dentre outros, consultar: Prandi (1994), Negrão (1996), Ortiz (1999), Peixoto (2008), Rohde (2009), Isaia
(2012a) e Katrib (2017).

59
Diversidade Religiosa & História

definindo por meio da bricolagem de práticas e por um intenso sincretismo


religioso, o que permitiu a devoção aos santos católicos e orixás; a junção
de rezas, terços, pontos cantados, giras, danças e gargalhadas em rituais
alimentados por velas em combustão e pela fumaça de cachimbos e cha-
rutos. Estes elementos, pertinentes a toda uma cenografia simbólica, são o
pano de fundo para a manifestação de múltiplas entidades espirituais que,
a partir do transe mediúnico, materializam-se nos terreiros para assistir aos
vivos recriando o exercício da fé e a relação com o sobrenatural.
Conforme Birman (1985), a Umbanda é, portanto, um sistema religioso
dinâmico que se concretizou em um campo de diferenças que lhe propiciam
uma unidade pautada na diversidade. Enquanto tal, nasce em solo genuina-
mente brasileiro se firmando e se difundindo pelas regiões do país desde o
início do século XX e, no fin de siècle, para outras partes do mundo.
Todavia, a trajetória histórica da religião é marcada por uma série
de confrontos, pois desde as suas origens experimentou perseguições e
interditos em função, sobretudo, de sua matriz africana. Como se sabe,
de fins do século XIX até a década de 1950 a Umbanda tanto foi vítima de
perseguições sócio políticas quanto da imposição de valores e dogmas
estranhos à sua dinaminicidade. Se por um lado as investidas do Estado
pretendiam o seu silenciamento, de outro toda uma literatura normativa
procurou impor à religião um corpo de preceitos cujo objetivo era bran-
queá-la, pedagogizando a atuação dos médiuns e das entidades incor-
poradas. Destarte, intentava-se engessar suas práticas, normatizando-as
em consonância com a tradição positivista, fortemente marcada pelas
ideias de progresso e evolução7. É o que se depreende, por exemplo, do
manifesto defendido por Aluísio Fontentenelle que, em 1953, no bojo do
movimento federativo vaticinava o futuro da Umbanda:

Será uma Umbanda codificada, uma Umbanda pura, na qual se


aproveitará de todas as religiões existentes na terra somente
aquilo que for sublime e perfeito [...]. Quanto aos praticantes dos
candomblés e aos que praticam a magia negra, estes serão
devidamente orientados e instruídos em novas práticas, aban-

7 As tentativas de normatização do campo religioso umbandista são objeto de intensa reflexão de Artur
César Isaia, de quem sugerimos as seguintes leituras: Isaia (2007, 2008, 2012b).

60
Diversidade Religiosa & História

donando por completo os rituais bárbaros que os identificam. O


Espiritismo na Lei de Umbanda em sua nova fase, surgirá com o
progresso do mundo; novos horizontes nos serão apresentados
e o mundo marchará de fronte erguida na direção do aperfei-
çoamento universal (FONTENELLE, 1953, p. 76).

Sem dúvida, o movimento federativo não conseguiu conformar a


religião no campo positivo do chamado “Espiritismo na Lei de Umbanda”.
Nem mesmo as batidas policiais, amparadas pelos interditos legais. No
fazer sagrado, assentado no chão do terreiro, a Umbanda foi se reconfigu-
rando e nesse processo, resistindo às investidas para a sua conformação.
Como resposta, irromperam — renovados, reescritos e “reinventados” —
Pretos velhos, Erês, Caboclos, Baianos, Boiadeiros, Marinheiros, Ciganos e
Mentores espirituais kardecistas. Na roupagem de médicos, exus e orixás
passaram a ser cultuados na Umbanda, humanizando a relação: entida-
des-consulentes, desconstruindo a imagem negativa que as tentativas de
interditos lhe colocaram.
Essa miscelânea de sentidos foi tomando vida no chão dos terrei-
ros, a partir da relação imediata com o sagrado travada entre os dirigentes
e seus guias, mentores ou entidades espirituais. Nesta comunicação direta,
macerada no cadinho da experiência sociocultural, são dados os direcio-
namentos da metodologia ritual a ser utilizada8. Assim, ao contrário do que
a própria intelectualidade de Umbanda previa, a religião floresceu e se
expandiu fora da normativa, reinventando-se em cada um dos espaços em
que se assentou.
A expansão da Umbanda tomaria grande impulso na década de
1970. Segundo Negrão (1996, p. 101) “[...] a Umbanda continuou a crescer,
reconhecida e estimulada pelos governos que se apropriaram do poder
em 1964”. Por seu turno, a Igreja Católica que empreendera forte campanha
contra ela, ao longo das décadas anteriores, também cessaria suas perse-
guições, “[...] varrida pelos ventos ecumênicos que sopraram do Concílio
Vaticano II” (NEGRÃO, 1996, p. 99). Em termos percentuais, o autor observa
que em São Paulo há um aumento significativo de registro de terreiros

8 Sobre as prédicas e instruções espirituais ver Concone (1987) e as obras já referenciadas de Ortiz (1999)
e Cumino (2011).

61
Diversidade Religiosa & História

umbandistas no período: 94,1% contra 4,7% de centros espíritas e 4,2% de


candomblés (NEGRÃO, 1996).
Há que se ressaltar, porém, que a construção identitária da Umban-
da se processou — e se processa — em meio aos conflitos travados também
no interior do próprio campo religioso. Historicamente, muitos dos seus
praticantes e dirigentes defenderam a sua uniformização, alinhando-se
com o branqueamento representado pelo Espiritismo kardecista. Muitos
outros saíram em defesa da mistura de crenças e de práticas entendendo
encerrar-se aí a sua especificidade e a sua identidade. E, ainda, a História
registrou outros grupos que defenderam uma maior aproximação com as
origens africanas, reivindicando a ruptura com as referências religiosas
europeias (CUMINO, 2011).
Não obstante, o crescimento, a expansão e a própria aceitação da
Umbanda por diferentes camadas sociais, em diferentes regiões e cidades
brasileiras, não apagaram o preconceito que ao longo do tempo acom-
panhou a religião e seus praticantes. No imaginário popular, a associação
da Umbanda com o feitiço, o mal e a demonização cristã ainda são extre-
mamente fortes, especialmente ao serem reeditados pelas investidas das
igrejas neopentecostais. Como lembra Silva (2007),

O neopentecostalismo, em consequência da crença de que é


preciso eliminar a presença e a ação do demônio no mundo,
tem como característica classificar as outras denominações
religiosas como pouco engajadas nessa batalha, ou até mes-
mo como espaços privilegiados da ação dos demônios, os
quais se “disfarçariam” em divindades cultuadas nesses siste-
mas. É o caso, sobretudo, das religiões afro-brasileiras, cujos
deuses, principalmente os exus e as pombagiras, são vistos
como manifestações dos demônios (SILVA, 2007, p. 207).

Neste particular, é importante ressaltar que embora a liberdade de


culto, seja garantida pela Constituição de 1988 nem a Carta Magna nem
qualquer outra legislação tem impedido as recorrentes perseguições que
as Comunidades de Terreiro sofrem. Uberlândia, infelizmente também se
insere neste quadro. Como exemplo de triste realidade, lembramos que
em outubro de 2017, um templo umbandista, localizado em uma região

62
Diversidade Religiosa & História

periférica da cidade, foi vítima de invasão e depredação, exemplificando o


que tem ocorrido nas diferentes regiões do país nos últimos anos9.
Romper com o preconceito é um processo complexo. Dá-se ao
longo do tempo, mediante a ação política dos sujeitos sociais, tanto no
campo institucional quanto nas práticas culturais cotidianas. Por este
motivo, quando refletimos acerca da Umbanda na contemporaneidade
é preciso inseri-la em um intrincado campo de luta política que envolve
disputas internas e externas, tanto de representações quanto de práticas.
Segundo nosso entendimento, a expansão e o fortalecimento da
religião no cenário nacional em muito resulta das ações de recriação, per-
mitidas pela constituição da Umbanda e levadas a termo pelos próprios
praticantes. Face às tentativas de sua normatização, engessamento e
silêncio, a capacidade de se reconfigurar constituiu-se como uma estra-
tégia fundamental de sobrevivência no árduo campo do preconceito e do
confronto religioso que ainda se apresenta.
É, pois, sobre um cenário histórico marcado pela disputa que
consideramos as reinvindicações políticas dos praticantes da Umbanda e
das demais religiões de matriz africana as quais, a partir dos anos 2000
redundariam em ações afirmativas em prol do reconhecimento da história
e da cultura africana e afro-brasileira.

Políticas Públicas de Afirmação: do nacional ao local

Inseridos ativamente neste processo, os umbandistas reivin-


dicariam mais políticas públicas de valorização de suas pertenças e do
seu patrimônio histórico-cultural na construção identitária brasileira.

9 A matéria, veiculada pela TV Vitoriosa destacou no dia 19 de outubro de 2017: “Na madrugada da última
quarta-feira, 18, um renomado centro espírita no Bairro Martins foi alvo de vandalismo, após criminosos
entrarem no local e depredarem diversas imagens consideradas sagradas. Gilberto Resende, presidente
da Associação das Religiões de Matriz Africana de Minas Gerais, explicou que os criminosos invadiram um
local, que é considerado sagrado, e promoveram a depredação. ‘Eles entraram, quebraram tudo. (Foi) Um
ato de vandalismo, de insanidade das pessoas que cometeram isso aqui. Essa é uma casa de oração, não
interessa se você é católico, evangélico, protestante ou espírita. As pessoas têm de respeitar’, disse Gilberto”.
Disponível em: http://v9vitoriosa.com.br/geral/centro-espirita-no-martins-e-invadido-e-depredado-duran-
te-a-madrugada. Acesso em: 8 jul. 2021.

63
Diversidade Religiosa & História

Para entendermos como se deram essas ações e seus impactos junto


às comunidades de terreiro, necessário se faz percebermos o papel de
alguns marcos legais nesse processo. No caso de Uberlândia, também é
fundamental demarcar o papel desempenhado pelo movimento negro do
município. Dessa forma, é possível entender que arcabouço legal constitu-
ído em âmbito nacional reverberou nas atitudes locais mediante as ações
concretas dos sujeitos.

ANO LEGISLAÇÃO

1997 Lei n° 9.459, de 13 de maio de 1997, sobre a injúria racial.

1988 Constituição federal de 1988 – artigos 3°, 4°, 5°, 215 e 216.

Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.

Lei n° 10.678, de 23 de maio de 2003, que cria a Seppir (Secretaria Especial de Políticas de
2003 Promoção da Igualdade Racial).

Decreto nº 4.886, de 20 de novembro de 2003, que institui a Política Nacional de


Promoção da Igualdade Racial.

Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, que promulga a Convenção nº 169 da


Organização Internacional do Trabalho.

2004 Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004, do Conselho Nacional de Educação, que institui


as Diretrizes Curriculares para Educação das relações étnico-raciais e para o ensino de
história e cultura afro-brasileira e africana.

Decreto n° 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de


2007
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

Decreto nº 6.177, de 1 de agosto de 2007, que promulga a Convenção sobre a Proteção


2007 e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco.

Portaria n° 992, de 13 de maio de 2009, que institui a Política Nacional de Saúde Integral
da População Negra.

2009
Decreto nº 6.872, de 4 de junho de 2009, que institui o Plano Nacional de Promoção da
Igualdade Racial.

2010 Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial.

Quadro 1 – Valorização da História e Cultura africana e afro-brasileira: marcos legais.


Fonte: Dados da Pesquisa: “Sentidos e significados da religiosidade afro-brasileira: a Umbanda
e os umbandistas em Uberlândia (2000 a 2017)”.

64
Diversidade Religiosa & História

Ao consideramos apenas os marcos legais, claramente a atual


Constituição Brasileira baliza as políticas de afirmação e respeito à história
e às culturas africana e afro-brasileira e às relações étnico-raciais. Até
porque, absorve e ultrapassa a Lei n° 9.459 de 13 de maio de 1997 que
define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Todavia,
importa ressaltar que a Constituição expressa um campo reivindicatório
bem anterior.
A partir dos anos de 1970 cresce a atuação do movimento negro
brasileiro, sobretudo em defesa de uma pauta voltada para a visibilidade
das práticas, dos fazeres e dos saberes dos afrodescendentes. Suas rei-
vindicações seriam definidas em diferentes espaços de debates ao longo
das décadas subsequentes, conforme destaca Barbosa (2011, passim): o
Seminário “O negro e a educação”, que teve lugar no ano de 1986, em São
Paulo, SP; o Seminário “Educação e discriminação de negros”, que retoma
e aprofunda o tema, em 1987 em Belo Horizonte, MG; e, finalmente, os
Encontros Estaduais e Regionais de Entidades Negras, realizados no final
da década de 1980 que culminaram no 1° Encontro Nacional das Entidades
Negras, realizado em 1991, na cidade de São Paulo.
Ao longo deste processo, destacamos também o papel do grupo
de trabalho: O negro e a Constituinte de 1988, formado para pautar ques-
tões étnicas relevantes na Assembleia Constituinte e, ainda, a subcomis-
são de Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias da
Constituição Brasileira, aprovada em 1988.
A partir desses movimentos, foram desenroladas uma série de
ações afirmativas de visibilidade da cultura e da história africana e afro-
-brasileira. Estas ações ganhariam força ao longo das próximas décadas,
culminando no início dos anos 2000 quando se registram as maiores
conquistas no âmbito das políticas públicas nacionais10.
Conforme demonstram Morais (2012) e Guimarães (2014), em 2003
foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (Seppir) a partir da Medida Provisória n° 111, de 21 de março de 2003,
convertida na Lei nº 10.678. A fundação da Seppir possibilitou a institu-

10 Para saber mais sobre esse processo histórico consultar: Santos (2017).

65
Diversidade Religiosa & História

cionalização de uma política que objetivou eliminar o preconceito racial,


levando em consideração as reinvindicações históricas do movimento
negro em suas diferentes vertentes, conjugada a um momento político
favorável, em nível nacional e internacional.
A institucionalização de um plano nacional para a promoção da
igualdade racial, em 2003, tornou-se um marco do primeiro mandato
do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, eleito com forte apoio dos movi-
mentos sociais. Como vimos, desde década de 1980, o movimento negro
reivindicava do governo federal ações que referendassem a visibilidade da
história e da cultura africana e afro-brasileira (Cf. MORAIS, 2012).
Vale salientar, entretanto, que tais propositivas já vinham sendo
discutidas no âmbito do governo federal desde a promulgação da Cons-
tituição de 1988. Porém, foi em 2001, na III Conferência Mundial contra o
Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e a Intolerância Correlata, con-
vocada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU),
em Durban, África do Sul, que o Brasil se comprometeu, de fato, em adotar
e colocar em prática um plano de ação de combate ao racismo11.
Embora os marcos legais tenham contemplado uma parte impor-
tante das reinvindicações históricas do Movimento Social Negro, quando
se trata das demandas inerentes às questões religiosas afro-brasileiras, o
processo tem sido bem mais recente12. Dentro dos marcos, cabe abordar,

11 A partir das recomendações de Durban, o governo brasileiro instituiu algumas políticas públicas que
atendiam às demandas históricas do Movimento Social Negro e das populações de terreiro de religiões
afro-brasileiras. Dentre estas, a autora destaca: a) Janeiro de 2003: promulgação da Lei nº 10.639/033 que
determina a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira, acrescida a indígena
pela Lei nº 11.645/2008; b) 21 de março de 2003: criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial (Seppir) com status de ministério e a função de assessorar diretamente o Presidente
da República, acompanhar e coordenar de diferentes órgãos e ministérios programas de cooperação com
organismos públicos, privados, nacionais e internacionais; acompanhar e promover o cumprimento de acor-
dos internacionais assinados pelo Brasil para o combate ao racismo e formas correlatas de intolerância, com
vistas à promoção da igualdade racial; c) 2007: Decreto nº 6.040\2007, que instituiu a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais; d) Portaria nº 992, de 13 de maio de
2009: instituiu a Política de Saúde da População Negra. Todas essas políticas, com exceção das cotas raciais,
foram aportadas pelo Estatuto da Igualdade Racial — Lei 12.288/2010. Sobre o tema, ver: Nascimento (2017).
12 Dentre estes marcos legais destacamos: O Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui O
Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais; o Decreto de 13
de julho de 2006, que altera a denominação, competência e a Composição Nacional da Comissão Nacional
de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais de Terreiro, dentre outras. Para saber mais

66
Diversidade Religiosa & História

primeiramente, o Decreto Presidencial 6.040\2007 que instituiu a Política


Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais. O Decreto define os princípios, objetivo geral, objetivos espe-
cíficos e os instrumentos de implementação da referida Política, sendo “[...]
o primeiro marco legal que garante direitos e reconhece a diversidade dos
povos e comunidades tradicionais para além dos povos indígenas e das
comunidades quilombolas” (BRASIL, 2013, p. 18).
No mesmo ano, em 2007, seria ratificada a Convenção sobre a
Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, a partir do
Decreto Presidencial 6.177, de 1º de agosto, dentro do qual se reafirma o
compromisso do Estado brasileiro “[...] com o respeito à diversidade cul-
tural e à liberdade de expressão das práticas tradicionais, estabelecendo
também definições conceituais que orientam a construção de políticas
públicas destinadas a esses grupos” (BRASIL, 2013, p. 18).
Três anos depois, em 2010, por meio do Estatuto da Igualdade
Racial, promulgado pela Lei 12.288, previu-se “[...] a garantia de liberdade
e das condições necessárias para o exercício das práticas tradicionais de
matriz africana, e a valorização pelos meios de comunicação dessa heran-
ça cultural” (BRASIL, 2013, p. 18).
O lineamento de ações afirmativas seria definido mais tarde, em
2013, por meio do “Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana”. Este Plano pro-
curou dialogar diretamente com a trajetória histórica dos marcos legais
que nortearam a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Cf.
BRASIL, 2013).
O documento assenta iniciativas e metas distribuídas por três
eixos estratégicos contemplando: Garantia de Direitos, Territorialidade e
Cultura, Inclusão Social e Desenvolvimento Sustentável, em um total de 10
(dez) objetivos, 19 (dezenove) iniciativas e 56 (cinquenta e seis) metas (Cf.
BRASIL, 2016).

consultar: http://www.mma.gov.br/estruturas/186/_arquivos/balano_pnpctno_governo_lula_186.pdf.
Acesso em: 8 jul. 2021.

67
Diversidade Religiosa & História

Dentro do eixo “Garantia de Direitos”, julgamos pertinente destacar


duas iniciativas com o objetivo explícito de combate ao preconceito. De
um lado a realização da Campanha Nacional de informação e valorização
da ancestralidade africana no Brasil, cuja meta física e financeira era de “‘[...]
produção de material audiovisual e gráfico para difusão em rede nacional,
na rede mundial de computadores e nas escolas públicas e privadas’, com
investimento previsto de R$ 1 milhão” (BRASIL, 2013, p. 31).
E, de outro, a proposta de Inserir nas produções de conteúdo digital
a temática dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana, dentro
da qual se previa a produção de conteúdos digitais sobre e para os povos
tradicionais de matriz africana para acesso em equipamentos digitais pú-
blicos e educação à distância (Cf. BRASIL, 2013).
Não obstante, uma avaliação geral do Plano permite observar que,
no âmbito das reinvindicações no campo da religiosidade de Matriz Africa-
na, o mote principal foi a concretização de ações políticas de segurança dos
terreiros e garantia da manutenção das práticas ancestrais voltadas para
o direito à fé e à diversidade religiosa. Todavia, estas ações contemplaram
muito mais a agenda dos praticantes do Candomblé que se fizeram efetiva-
mente presentes nos espaços de discussão, do que dos umbandistas.
Mesmo assim, é importante registrar que houve avanços. Além disso,
estes só se sustentam até o momento em decorrência das ações e diretrizes
da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Esta política foi a gran-
de responsável pela visibilidade das comunidades tradicionais de terreiro e da
sua luta pela efetivação da igualdade da promoção racial no Brasil.13

Políticas Municipais de Afirmação: a questão em Uberlândia

Inserida no contexto histórico nacional, a cidade de Uberlândia


também foi palco de reivindicação e de tentativas de implementação
de medidas compensatórias com vistas a atender aos interesses da
comunidade negra.

13 Vale lembrar que após o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, a Seppir passou por mudanças
internas concernentes à sua função e às políticas executadas, limitando o seu papel e suas ações.

68
Diversidade Religiosa & História

Destaque-se, porém, que no bojo dos movimentos sociais que


eclodiram em princípios da década de 1980 e no próprio processo de rede-
mocratização, aquelas reivindicações não se dariam pela pauta dos povos
tradicionais de terreiro, mas pela ação e atuação do Movimento Negro que
lutava pelo reconhecimento das questões étnicas e raciais perante o poder
público local, dialogando com o que se colocava em âmbito nacional.
Santos (2017) destaca que o Movimento local foi mediado por inten-
sas e calorosas discussões, com o objetivo de efetivar políticas que referen-
dassem os anseios das minorias negras. Entretanto, apesar de não interferir
diretamente nas decisões políticas locais, o Movimento Social Negro de
Uberlândia teve forte influência na escolha de representantes no governo
municipal conseguindo, com isso, sua inserção inicial na política local.
Nesse sentido, destaca-se a eleição do Prefeito Zaire Rezende
(PMDB), em 8 de novembro de 1985, com o apoio do Movimento Negro
organizado da cidade. Empossado, o Prefeito assinaria o Decreto Municipal
n° 3041, criando o Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da
Comunidade Negra — CMPDCN.
Para Santos (2017), esse Conselho teria um papel importante na
concretização de uma política de ação afirmativa no município. Todavia,
o que percebemos que apenas a sua criação não foi capaz de promover
a união de toda a comunidade negra local. Afinal, a função do Conselho
se resumia em possibilitar debates em torno de temas como cultura, re-
ligiosidade e o papel do negro na sociedade, mediante a organização de
uma série de atividades e encontros de caráter local e até nacional. Mas,
efetivamente, não agregou a população afrodescendente em torno das
ações propostas.14

14 A visibilidade do movimento negro local apesar de pequeno e fragmentado, teve um reconhecimento


social e político a partir da primeira metade dos anos de 1980 e foi se reinventando, modificando suas bases
filosóficas e suas parcerias a fim de continuar resistindo. Dentre estes importa citar o Monuva — Movimento
Negro Visão Aberta, criado em 1984; e o Grucon — Grupo de União e Consciência Negra de Uberlândia,
criado em 1986. Ambos ainda exercem atividades de formação política na cidade, mas não são reconheci-
dos e nem conhecidos como os representantes da comunidade negra local. Nesta mesma linha, podemos
considerar que as comunidades de terreiro não se sentem representadas por este movimento e nem pelas
associações ou de federações umbandistas ou candomblecistas. Mesmo existindo as federações regionais
com subseções na cidade, muitas casas religiosas de matriz africana em Uberlândia, não são filiadas. São
os casos da Federação Espírita Umbandista e Candomblé de Minas Gerais, Feumc-MG (http://feumcmg.

69
Diversidade Religiosa & História

Apenas no início dos anos de 1990 o município referendaria ofi-


cialmente ações afirmativas com vistas ao enfrentamento do racismo. O
referendo se daria por meio da Lei Orgânica Municipal de 5 de junho 1990
que se preocuparia com as questões pedagógicas e a efetivação de ações
educativas, conforme destacado no artigo 65 de seu Capítulo IV que trata,
justamente, da Educação no município:

Os Poderes Públicos Municipais adotarão todas as medidas


necessárias para coibir prática do racismo, crime imprescri-
tível e inafiançável, sujeito a pena de reclusão, nos termos
da Constituição da República, onde o combate às formas
de discriminação racial pelos Poderes Públicos Municipais
compreenderá: I - a proposta de revisão dos livros didáticos
dos textos adotados e das práticas pedagógicas utilizadas
na rede municipal, visando eliminação de estereótipos racis-
tas; II - o estudo da cultura afro-brasileira será contemplado
no conteúdo programático das escolas municipais; III - a for-
mação e reciclagem dos professores de modo a habilitá-los
para a remoção das ideias e práticas racistas nas escolas
municipais e para a criação de uma nova imagem das crian-
ças e dos adolescentes negros, bem como da mulher; IV - os
cursos de aperfeiçoamento do servidor público incluirão,
nos seus programas, disciplinas que valorizem a participação
dos negros na formação histórica e cultural da sociedade
brasileira; V - a liberdade de expressão e manifestação
das religiões afro-brasileiras; VI - a criação e divulgação
de programas educativos nos meios de comunicação de
propriedade do Município ou em espaços por ele utilizados
na iniciativa privada, visando o fim de todas as formas de
discriminação racial (UBERLÂNDIA, 1990, grifo nosso).

Cabe lembrar que a normatização do estudo da cultura afro-bra-


sileira, determinada pela Lei Orgânica do município de Uberlândia, teve
lugar bem antes das políticas afirmativas nacionais que levaram à criação
da Lei Federal 10.639/03 que regulamentou o ensino da História e Cultura
Africana e Afro-brasileira nas escolas brasileiras.

blogspot.com/); e da Federação de Umbanda e Candomblé do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba,


Fuctmap, cujas ações são invisíveis no cenário local, restringindo-se à organização de eventos esporádicos
durante o ano.

70
Diversidade Religiosa & História

Outro ponto interessante a destacar, no campo das conquistas


políticas do Movimento Social Negro da localidade, diz respeito à criação
da Pasta Afro, dentro da Secretaria Municipal de Cultura, em 1993, coman-
dada por representante escolhido pelo próprio Movimento. Funcionaria
nestes moldes até o ano de 2001, sem, no entanto, nenhuma ação mais
relevante de transformação da realidade negra local (Cf. SANTOS, 2017).
Sobre a questão, Barbosa (2014) considera que, de certa forma, a comuni-
dade negra se frustrou frente a “Pasta”, uma vez que ela se resumiu a uma
mesa, colocada em uma sala da Secretaria de Cultura, sem muito poder
de ação e com sua atuação restrita a organização do carnaval. A leitura de
Pedro Barbosa (2014) também é corroborada por Santos, ao observar que:

[...] a Pasta Afro manteve-se como Seção atrelada à Secretaria


de Cultura, desde a sua criação no ano de 1991. Seção indica
repartição, uma divisão dentro da esfera política, onde as
ações não se concentram como um todo, mas em pedaços.
Tais características indicam uma desarticulação entre os
anseios do movimento negro local e as decisões tomadas
pela Pasta Afro, sendo vista aqui como um órgão do Estado. A
criação de uma Coordenadoria aponta uma regulamentação
das atividades voltadas para a questão racial no município,
estando submetida ao próprio prefeito, representado pela
Secretaria Municipal de Governo. Seria um ponto positivo a
extinção da Pasta Afro em favor da Coordenadoria, pois a ela
teria mais funções e atividades (SANTOS, 2017, p. 119).

Dez anos depois, em 2001, assumindo propostas de campanha


de uma gestão “democrática e participativa”, o governo local criou a Lei
Complementar n° 251 de 16 de janeiro de 2001 institucionalizando políticas
municipais de interesse da população negra. Dentro destas destacou a va-
lorização das manifestações culturais de matriz africana e criou a Coafro, a
Coordenadoria Afro-Racial.
Dentre as ações da Coafro importa registrar o apoio à realização da
Semana de Tradições Afro, a realização da Festa do Congado e a Semana
da Consciência Negra; o esforço para a garantia legal de que ao menos 45%
dos personagens de publicidade oficial da Prefeitura fossem constituídos
por negros e afrodescendentes; o apoio à realização das Conferências Con-

71
Diversidade Religiosa & História

tra o Racismo em nível regional, estadual e nacional e, ainda, à participação


de membros da comunidade negra local na Conferência Mundial Contra o
Racismo, a Intolerância, a Discriminação e a Xenofobia, realizada pela ONU,
na África do Sul (Cf. SANTOS, 2017). Todavia, a despeito da forte atuação
da Coafro, esta Coordenadoria não impetrou nenhuma ação mais direta
para combater o preconceito e a discriminação em relação as populações
tradicionais de terreiro da cidade.
Da mesma forma, dentro do contexto político local, as ações
exemplificadas tiveram caráter muito mais paliativo que assertivo, pois não
promoveram transformações efetivas na visibilidade e positivação da po-
pulação afrodescendente. Permaneceram ausentes ações educativas, no
campo da saúde, dos direitos humanos e das questões religiosas, dentre
várias outras, como já vinha sendo discutido em nível nacional.
A Coafro vigorou até meados dos anos de 2010. No final desse ano,
ela foi transformada na Diretoria de Assuntos Afro-Raciais a partir do Decreto
Municipal n° 12.572, de 10 de dezembro de 2010, com as seguintes atribuições:

[...] implementar ações que visem à promoção da igualdade


racial nas áreas do trabalho, emprego e renda, cultura e co-
municação, educação e saúde, terras de quilombos, mulheres
negras, juventude e segurança; participar de ações que visem
à adoção de medidas contra o racismo, a discriminação, a
intolerância e a xenofobia; fortalecer o protagonismo social
de segmentos específicos, garantindo o acesso da população
negra e da sociedade em geral a informações e ideias que
contribuam para alterar a mentalidade coletiva relativa ao
padrão das relações raciais; fornecer aos agentes sociais e
instituições, conhecimento necessário à mudança de men-
talidade para eliminação do preconceito e da discriminação
raciais para que seja incorporada a perspectiva da igualdade
racial; promover o acompanhamento da implementação de
legislação de ação afirmativa e definição de ações públicas
que visem ao cumprimento dos acordos, convenções e outros
instrumentos congêneres assinados pelo Brasil, nos aspectos
relativos à promoção da igualdade e de combate à discrimi-
nação racial ou étnica (SANTOS, 2017, p. 125).

De acordo com a interpretação de Santos (2017), a transformação da


Coafro em Diretoria não foi positiva. Para a historiadora, com a mudança da

72
Diversidade Religiosa & História

gestão municipal a ação da Diretoria voltou a ser dependente da Secretaria


Municipal de Cultura e não mais ligada à Secretaria de Governo do Municí-
pio. As expectativas de mudança desse quadro só se renovariam em 2013,
com a eleição do Prefeito Gilmar Machado, do Partido dos Trabalhadores.
Afrodescendente, o novo prefeito projetou a esperança de que as
questões raciais ganhariam um status maior dentro da sua gestão. De fato,
Machado criou a Superintendência da Igualdade Racial, a Supir, por meio
da Lei Municipal nº 11.354 de 2013, cuja proposta foi fazer desse órgão um
elo entre o poder público e o Movimento Negro local. Todavia, as ações
dessa Superintendência reverberaram pouco, uma vez que não houve
a participação efetiva da população afrodescendente e, muito menos,
o apoio dos Movimentos Negros uberlandense. Além disso, também se
contabiliza no fracasso da Supir o fraco interesse político de fazer com que
a comunidade negra fosse por ela representada, do mesmo modo que os
movimentos culturais, religiosos e sociais igualmente não tiveram apoio
para o desenvolvimento de ações locais nem espaço na cidade para se
fazer vista e respeitada. Não por acaso, a sobrevida da Supir foi pequena,
pois com a troca de prefeitos em 2016, ocorreu a sua extinção, voltando
aos parâmetros anteriores, ao nível de diretoria.
É interessante destacar neste processo histórico que muito pouco
foi feito para agregar as populações de terreiro nas ações desenvolvidas
na gestão do prefeito Gilmar Machado. Não é possível afirmar que não
houve essa preocupação por parte dos responsáveis pela pasta racial.
Por outro lado, não é exagero afirmar que houve falta de vontade política
em consolidar a diversidade cultural e religiosa como bandeira da gestão
do prefeito. Sendo ele evangélico e assessorado por inúmeros outros, a
efetivação de medidas compensatórias locais voltadas para a diversidade
religiosa foram deixadas de lado.
Se o poder público não teve uma atuação efetiva no reconhe-
cimento da diversidade religiosa do município, as próprias federações
também não desenvolveram ações de aproximação com relação a ele.
Por hipótese, é possível creditar este distanciamento à falta de aval por
parte das casas religiosas de matriz africana da cidade. Muitas delas são
filiadas a federações de outros estados, como São Paulo e Rio de Janeiro,

73
Diversidade Religiosa & História

em detrimento da federação local ou regional. Além desse aspecto, vale


salientar a distância entre Candomblé e Umbanda no município e, ao mes-
mo tempo, a dificuldade de diálogo entre os dirigentes e os praticantes
destas religiões. Exemplo flagrante desse distanciamento é a realização
do Encontro de Tendas de Umbanda e, alguns meses depois, do Encontro
de Religiões de Matriz Africana, no qual participam as casas de Candomblé.

Os umbandistas no tecido urbano de Uberlândia

A Umbanda uberlandense é exemplo claro da pulverização dos


terreiros e da independência que a religião assumiu no Brasil. Cada casa tem
uma postura religiosa específica e diferenciada, direcionando seus rituais de
acordo com a relação estabelecida com o astral e a intuição do dirigente.
Em virtude disso, muitas ainda se encontram nos limites dos quintais de
seus zeladores, com seus trabalhos conhecidos apenas pela vizinhança.
Também, é claro, existem aquelas que se firmaram na história
umbandista local, impondo sua visibilidade, estando presente e movimen-
tando o culto na cidade. Independentemente das políticas públicas do
município, do papel dos Movimentos Negros e das federações, demarca-
ram seus espaços de fé e o seu reconhecimento como templo religioso
umbandista. A despeito daquelas diferenças, a prática de Umbanda se
espraia por todo o município uberlandense, estando seus locais de culto
presentes em praticamente todo o tecido urbano. Mesmo assim, apesar
da quantidade significativa de casas, elas possuem pouca visibilidade,
inclusive espacial. “Camufladas” por trás de muros e de segredos, também
não são contempladas pelas ações afirmativas do poder público, ou mes-
mo dos movimentos sociais negros, para integrá-las ao viver da cidade,
garantindo o respeito às suas práticas culturais e religiosas.
Ora, a cidade de Uberlândia é uma das maiores do Estado de
Minas Gerais. Conta atualmente com uma população de 683.247 habitan-
tes, conforme estimativa realizada para 2018 pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, IBGE. Sobre este cenário, viceja uma população
afrodescendente significativa, conforme demonstra o quadro 2, a seguir:

74
Diversidade Religiosa & História

Quadro 2 – População de Uberlândia. Autodeclaração por raça (2000 e 2010).


Fonte: Correio de Uberlândia (2011).

Os números demonstram que, a partir do Censo de 2010, há um


crescimento importante das autodeclarações de raça, por parte dos afro-
descendentes. Este movimento acompanharia uma tendência que se dava
em nível estadual e nacional, certamente reflexo das políticas afirmativas
que se desenhavam no país.
No que diz respeito à autodeclararão religiosa, os dados oficiais de
Uberlândia registram que em 2010, 330.564 pessoas se autodeclararam
pertencentes a religião Católica Apostólica Romana, o que representa a
porcentagem de 54,7% da população uberlandense. A religião Evangélica
somou na época, 154.411 fiéis, ou seja, 25,2% da população de Uberlândia.
Foram registradas 50.640 pessoas sem religião (8,4%), 44.817 espíritas (7,4%)
e 7.136 testemunhas de Jeová (1,2%). As demais religiões praticadas na cida-
de, juntas, somaram 18.443 pessoas, o que representa 3,1% da população.
Se compararmos os dados de autodeclaração de raça com os de
autodeclaração religiosa no campo da matriz africana, o Censo de 2010
revela que contando com 51.154 autodeclarados pretos, Uberlândia ocupa
no estado de Minas Gerais a quarta posição dentre as cidades com maior
população de afrodescendentes, e a 29ª posição no cenário nacional. Já
no quesito opção religiosa os autodeclarados umbandistas somam em

75
Diversidade Religiosa & História

Uberlândia apenas 1.391 pessoas, o que também coloca cidade em 4ª


posição no cenário estadual, mas em 45ª no país (Cf. IBGE, 2010).
Ao confrontarmos os números referentes à população afrodes-
cendente e às escolhas religiosas, a primeira impressão que se tem é a
da predominância de católicos e de uma população constituída majorita-
riamente de brancos. Entretanto, a observação causa estranhamento sob
diversas formas.
Ora, por mais que a quantidade de católicos e até de evangélicos
encontre respaldo na observação empírica dos templos, fato é que este
mesmo quantitativo não expressa, de fato, a prática religiosa dos seus
frequentadores. Os mesmos sujeitos que se autodenominam católicos
e não raro evangélicos, também circulam por outras religiões. O mesmo
ocorre, e de forma ainda mais contundente com a o Kardecismo. Campo
religioso genuinamente herdeiro do positivismo evolucionista do século
XIX, o espiritismo kardecista é amplamente declarado pela elite uberlan-
dense, orgulhosa de suas obras. No entanto, este nem mesmo representa
a prática religiosa mais importante na cidade, pois seus frequentadores
igualmente transitam pela religião católica e pelas de matriz africana se
identificando como simpatizantes sem se autodenominarem praticantes.
No quesito “cor/raça”, a soma da população local de pretos e
pardos ultrapassa 50 por cento do total. Isto significa que a população
uberlandense se reconhece, em sua larga maioria, afrodescendente. No
entanto, quando se percorre os espaços religiosos de Umbanda e Can-
domblé da cidade, a observação empírica revela uma predominância de
brancos em relação aos negros, invertendo a lógica que se faria supor
mediante os dados numéricos. Dito de outra forma, mesmo Uberlândia
possuindo uma população majoritária de pretos e pardos, estes não se
fazem presentes, como população predominante, nas práticas religiosas
afro-brasileiras!
Por outro lado, os dados levantados por Lima (2018), como cons-
tam no gráfico a seguir, tornam este cenário ainda mais interessante. Ao
mapear as Comunidades de Terreiro do município de Uberlândia, o pes-
quisador demonstrou que a quantidade de espaços destinados aos cultos
afro brasileiros é expressivamente maior do que aqueles destinados ao

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Diversidade Religiosa & História

catolicismo ou ao Kardecismo. Em levantamento ainda em aberto, o autor


localizou até o presente cerca de 200 (duzentos) espaços destinados à
prática religiosa das “Comunidades Tradicionais de Terreiros”, “contra” 92
(noventa e dois) locais de culto espírita kardecista e 121 (cento e vinte e um)
locais de culto católico. Além disso, enfatiza que alguns centros kardecis-
tas da cidade também trabalham com a Umbanda, somando, portanto,
pelo menos mais 7 (sete) espaços de espiritismo kardecista à listagem de
casas de Matriz Africana: 162 casas de Umbanda, 32 de Omolocô e 56 de
culto de Nação15.

Gráfico 1 – Gráfico de distribuição dos espaços religiosos em Uberlândia por (%).


Fonte: Silva (2018), com base em Lima (2018).

Face ao número eloquente de casas identificadas por Lima (2018)16,


concordamos com Silva (2018) ao afirmar que os espaços destinados aos
cultos afro-brasileiros de Uberlândia, são sensivelmente maiores do que

15 Vale lembrar que esse quantitativo não é preciso, pois muitas casas não se encontram registradas
nos órgãos municipais e nem são conhecidas ao ponto de serem citadas na pesquisa, pois o mapa ela-
borado por Lima (2018) é alimentado virtualmente por indicações de moradores e praticantes da cidade
por meio virtual. O acesso à cartografia depende de autorização do administrador, mas está disponível
em: https://www.google.com/maps/d/u/0/edit?mid=1taomzY0pe3yBZWRYwg17NZGGMgLu_dd_&ll=-
-18.902922188448414%2C-48.302453285986076&z=13. Acesso em: 23 jan. 2021.
16 Veja o anexo 2. Com relação ao quadro apresentado, vale lembrar que o levantamento realizado por
Lima (2018), observou, incondicionalmente, os seguintes princípios: o respeito à autorrepresentação por
parte das comunidades tradicionais de terreiro (as grafias das nomenclaturas dos locais de culto obedecem
à forma como estão apresentadas nas listagens ou foram solicitadas pelas lideranças religiosas. O mesmo
aplica-se aos nomes e títulos das lideranças dos terreiros); e a ausência de qualquer princípio hierarquizador
ou tipo de filtro (seja tamanho da área ocupada, número de adeptos, tempo de atuação da casa etc.).

77
Diversidade Religiosa & História

o apresentado no Censo do IBGE (2010), dificultando precisar um número


exato de fieis das religiões de Matriz Africana na cidade.
No entanto, considerando-se as dimensões, distâncias, disponibi-
lidades e deslocamentos, nossa observação empírica permite considerar
que o número de praticantes de cada espaço religioso oscila entre 50 (cin-
quenta) e 100 (cem) médiuns e cerca de 50 (cinquenta) frequentadores por
sessão ou rito. Sendo assim, é possível supor um universo total de 15 mil
pessoas por semana, deslocando-se até os locais de culto afro-brasileiro,
em Uberlândia. Dentro desse quadro, as casas de Umbanda totalizam até
o momento cerca de 130 (cento e trinta), recebem semanalmente aproxi-
madamente 10 mil pessoas/frequentadores.

Considerações finais

Muitos dos frequentadores preferem não se autodenominar pra-


ticantes ou assíduos nas religiões de Matriz Africana. Quando instados a
falar se declaram “visitantes esporádicos”, assemelhando-se, em certo
sentido, aos “católicos não praticantes” dando mostras de uma prática
religiosa que não se circunscreve em um ou noutro registro. Ao contrário,
estas práticas entremeiam-se, intersecionam-se e interagem produzindo
significâncias múltiplas no fazer-se cultural cotidiano dos sujeitos. Da
mesma forma, o público frequentador das religiões de matriz afro está
longe de ser constituído apenas por afrodescendentes. Ao contrário, estes
espaços recebem os mais diferentes sujeitos, agregando uma diversidade
de pessoas e cores.
Historicamente, é possível localizar nas décadas de 1930 e 1940
a instituição dos primeiros espaços dedicados à Umbanda na cidade de
Uberlândia. Estes espaços de culto foram instalados primeiramente nas
salas, quartos ou em outros cômodos das casas de “benzedores e ben-
zedeiras”. E, conforme demonstrou Lopes (2011), desde o seu nascimento
foram frequentados por diversas pessoas, de diferentes camadas e lugares
sociais, não se restringindo exclusivamente a negros e pobres.

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Diversidade Religiosa & História

Como de resto em outras localidades do país, a Umbanda uber-


landense permaneceu durante várias décadas exilada nos quintais das
residências de seus praticantes. No caso de Uberlândia, a larga maioria
desses quintais limitava-se com áreas de matas, em um período em que
ia muito longe a especulação imobiliária e o intenso processo de urbani-
zação da cidade.
Assim, na medida em que o urbano foi se espraiando para os
bairros periféricos, abocanhando inclusive antigas áreas rurais, os espaços
de culto umbandista foram integrados à cidade. Dentro desse processo é
pertinente afirmar que a cidade chegou até a Umbanda e não o contrário.
Na Uberlândia contemporânea, cada bairro possui mais de uma casa re-
ligiosa em funcionamento, a despeito do preconceito e da discriminação
da vizinhança latentes, muitas delas se escondem por trás dos murros das
residências de seus zeladores, mas apesar de invisíveis para poder público
e grande parte dos moradores da cidade, o batuque das caixas sempre
ecoa avisando é hora de saravar!

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81
EXU E OS LIMITES DO BINARISMO
CONCEITUAL

Laís Azevedo Fialho1

Resumo
Abordarei algumas representações históricas de Exu, a partir da obra literária
“Deuses de dois mundos”, de PJ Pereira (2013, 2014, 2015), em diálogo com a
História Cultural e a Teoria Pós-Colonial. O objetivo é demonstrar que a figura de
Exu denuncia os limites do binarismo conceitual e pode ser posicionada como
fundamento epistemológico no combate à lógica colonial.
Palavras-chave: Exu. História. Literatura.

Abstract
Eshu and the limits of conceptual binarism.
I will address some historical representations of Eshu from the literary work “God of
Both Worlds” written by PJ Pereira (2013, 2014, 2015) through a dialogue between
Cultural History and Post-Colonial theory. The aim is to demonstrate that the
Eshu’s figure denounces the limits of conceptual binarism and can be placed as
epistemological foundation against the colonial logic.
Keywords: Eshu. History. Literature.

1 Mestre em História Cultura e Narrativas pela Universidade Estadual de Maringá. Membro do Grupo de
Pesquisa História das crenças e ideias religiosas (HCIR/UEM/CNPQ) e filha do Yle Axé Oxum Deym. Douto-
randa em História pela Universidade Estadual de Maringá.

82
Diversidade Religiosa & História

Por que pensar a partir de Exu?

“A malandragem é conseguir sonhar na língua colonial


e ao acordar conseguir lembrar da forma, textura, temperatura
e cores que antecedem e extrapolam qualquer palavra”
(Castiel Vitorino Brasileiro).

Agô, Lonan2! Meus respeitos àquele que é e promove o começo


de tudo. Neste capítulo apresentarei resultados da pesquisa de Mestrado,
intitulada “De garoto de recados a detentor dos segredos do mundo: A
representação de Exu em Deuses de dois mundos, a trilogia épica dos
orixás (Brasil — Século XXI)”, orientada pela professora Vanda Fortuna
Serafim e concluída em 2019. Sugiro no presente capítulo que é possível
partir dos questionamentos feitos sobre a divindade Exu por meio de suas
representações, para questionar a ótica ocidental de crença.
Na pesquisa realizada, enfatizei as apropriações e adaptações dos
mitos de Exu, na criação literária, destacando que a obra se pauta nos
mitos de construção representativa dos orixás, incorporados à religiosi-
dade africana e afro-brasileira. A trilogia analisada foi organizada em três
volumes: “O livro do silêncio”, publicado em 2013; “O livro da traição”, em
2014; e “O livro da morte”, em 2015. Em virtude do contexto de produção da
fonte de pesquisa e da problemática delimitada, situo o recorte histórico
ao Brasil do século XXI.
O autor da trilogia, Paulo Jorge, conhecido como PJ Pereira, nasceu
em 1973, na cidade do Rio de Janeiro, formou-se em administração com
especialização em marketing, trabalhou como publicitário na cidade de
São Paulo anos antes de iniciar uma carreira em São Francisco, Estados
Unidos, onde montou uma agência de publicidade — Pereira e O’Dell —,
que já recebeu diversos prêmios internacionais (PACHECO, 2013). Ainda
em São Paulo, entrou em contato com pessoas do candomblé, pesqui-
sou sobre a mitologia iorubá e escreveu, em 2003, a ficção, em um único
volume de 900 páginas. Nenhuma editora se interessou pela obra no
período. Somente dez anos depois, quando teve seu nome reconhecido

2 Pedido de licença à Exu.

83
Diversidade Religiosa & História

como publicitário de sucesso, que PJ Pereira tentou novamente publicar a


história (KUSUMOTO, 2015).
Ao observar as suas referências, apresentadas no terceiro volu-
me da obra, noto que o autor se apropriou da literatura científica sobre
as religiões afro-brasileiras, mitos africanos e liturgia no culto ao orixá,
para a criação da narrativa ficcional. Isso não quer dizer que o autor tenha
reproduzido essa literatura de modo imparcial. “Deuses de dois mundos”
demonstra como as representações dessa divindade foram incorporadas
ao “museu imaginário” de PJ Pereira e tramadas em uma nova narrativa. O
modo como Exu é construído na obra remete ao modo como seu narrador
imprimiu nela a sua experiência e seu contexto (PESAVENTO, 2008).
O autor intercala a narrativa que conta a história do protagonista
Newton Fernandes, na contemporaneidade, com capítulos mitológicos,
que contam a história do adivinho Orunmilá e sua procura para recuperar
os poderes de prever o futuro. Os personagens são construídos com base
nos mitos difundidos nas religiões afro-brasileiras. Todos esses mitos foram
adaptados para o enredo de PJ Pereira, de modo a construir a saga dos
orixás em busca dos príncipes do destino raptados pelas Ia mi Oxorongá3.
Em “O livro do Silêncio”, Exu é apresentado como um comunicador
de Orunmilá, um garoto de recados, rapazote brincalhão, menino levado e
trickster, que nos lembra o Saci Pererê, lenda de nosso folclore. O modo
como a divindade é representada no primeiro volume da trilogia privilegia
principalmente os seguintes aspectos: “ele é o mensageiro entre os dois
mundos”, “só ajuda quem lhe dá algo em troca”, “é guloso”, “é sagaz”, “é o fiel
escudeiro de Orunmilá”. Desempenha principalmente o papel de “menino
de recados de Orunmilá”, a exemplo deste excerto: “Orunmilá se perguntava
se havia feito a coisa certa. Ainda não tinha notícia alguma de Oxum nem
sabia se poderia confiar uma mensagem importante como aquela a Exu.
Afinal, ele era apenas um mensageiro” (PJ PEREIRA, 2013, p. 134).

3 Para a cultura ioruba, as Ia Mi Oxorongá são mães primeiras, raízes primordiais da estirpe humana,
são feiticeiras. Elas são consideradas “mulheres velhas, proprietárias de uma cabaça que contém um
pássaro. Elas mesmas podem se transformar em pássaros, organizando entre si reuniões noturnas na
mata” (VERGER, 1994, p. 16).

84
Diversidade Religiosa & História

No segundo volume, Exu ganha maior autonomia, deixa de ser


“apenas um garoto de recados” e passa a ser um “importante mensageiro”.
Também se destacam representações em que ele é o “guardião dos cami-
nhos e das entradas”, além de ser “o rei dos mercados”: “Exu estava, enfim,
pronto para cumprir seu papel [...] — Viva o príncipe dos caminhos! — Viva o
senhor dos caminhos! — saudavam todos, divertindo-se tanto quanto Exu
com aquela situação” (PJ PEREIRA, 2014, p. 138).
Em “O livro da traição” encontro representações menos empo-
brecidas sobre o caráter de Exu, mesmo que ainda sejam suavizadas ou
selecionadas de modo a provar que ele não representa o mal. Ele é apre-
sentado como um mensageiro, importante função na cosmovisão africana
e afro-brasileira, e menos como uma divindade que necessariamente
tinha que exercer uma função totalmente boa, ou um demônio que tinha
que exercer um papel totalmente ruim.
Já no último volume, Exu é o responsável pelas reviravoltas e gran-
des mistérios, assume a personalidade de alguém que arquiteta planos para
conseguir o que quer, e muda o destino dos seres humanos, no aiê, e dos
orixás, no orum. É neutro, não luta por um objetivo coletivo. Faz os arranjos
que pode para dar o desfecho que lhe convém, independentemente da
disputa que permeia a história. Faz jogos com os outros personagens, omite
informações para contornar situações, mas as narrativas são suavizadas
para atrair a empatia do leitor, de modo que ele não apareça diretamente
como quem mente e ludibria para conquistar seus próprios objetivos.
Em “O livro da morte”, aspectos ligados a fecundidade ou sexu-
alidade, por exemplo, não são explorados ou valorizados. O falo de Exu
é citado uma única vez, em tom jocoso, em um contexto em que Nanã
diz que ele estaria do lado homens, na luta pelo destino, já que teria uma
“grande tromba” entre as pernas. Conjecturo que PJ Pereira (2015) optou por
não dar destaque à essa representação imagética, por ser uma qualidade
controversa dessa divindade. Na literatura antropológica, o caráter falo-
cêntrico de Exu é associado ao aspecto de fecundação e invenção da vida,
mas o falo de Exu nunca foi aceito ou respeitado pela ótica do catolicismo.
Roger Bastide sugeriu que o falismo estava condenado a desaparecer,
“pois ele seria incompatível com o puritanismo brasileiro” (BASTIDE, 1970

85
Diversidade Religiosa & História

apud ORTIZ, 1999, p. 128). Não seria sem razão que PJ Pereira (2015) tenha
optado por silenciar ou minimizar o falo de Exu.
Tendo exposto isso, assinalo que os mitos de Exu apropriados e
ressignificados nesta trilogia foram representados de maneira bastante
ocidentalizada. Muitas vezes, perderam suas principais características e
questionamentos filosóficos. Em diversas composições, a história de Exu
foi higienizada, embranquecida. É possível que esse tenha sido o modo
que PJ Pereira (2015) encontrou de tornar a narrativa inteligível para todos
os seus leitores, e não somente para os adeptos do candomblé ou conhe-
cedores de seus mitos. Para tornar Exu o protagonista de um best-seller,
foi preciso suavizar e silenciar alguns de seus aspectos controversos.
Quem tem autoridade para isso é um sujeito branco de classe média, não
religioso. Ou seja, em busca de um pretenso universalismo eurocêntrico,
de um modo único e racional de pensar, as complexidades que incidem
nas representações mais controversas de Exu são escamoteadas para
serem socialmente aceitas (SPIVAK, 2010; FANON, 2008).
Pensando no contexto histórico de formação do Brasil, sabemos
que o catolicismo tratou as divindades africanas como espíritos maléficos
e, por isso, abomináveis, mas nenhuma divindade foi tão demonizada
quanto Exu. A divindade instaura resistência e gera perseguição, porque
coloca em risco a moralidade presente em valores ocidentais, cristãos e
maniqueístas (PRANDI, 2001a). Sendo assim, busco indicar que a figura
Exu oferece uma perspectiva epistemológica de que o mundo não seja
interpretado de maneira dicotômica e acabada.
Nesse sentido, abordarei, na segunda sessão, um dos seus princi-
pais mitos, relacionado aos dois amigos que brigam até a morte, e como
ele é representado nas narrativas literárias de PJ Pereira (2013), Zacharias
(1998) e Prandi (2001b). O intuito é discutir o seu caráter contraditório, como
ele desafia a ótica ocidental binária, e propõe a compreensão da multipli-
cidade de olhares como resolução de um conflito. Já na terceira sessão,
apresento uma reflexão teórica que aborda outros aspectos do dinamismo
da figura de Exu — não evidenciados em “Deuses de dois mundos”.

86
Diversidade Religiosa & História

Observar a ação de Exu evita a morte/esquecimento.

Embora PJ Pereira manifeste a intenção em narrar Exu — a divinda-


de iorubana, vinculada, no Brasil, aos candomblés que seguem essa matriz
—, seria ingenuidade desconsiderar que os sujeitos sociais se apropriam
e ressignificam o mundo de múltiplas formas, pelo viés de sua própria
subjetividade4. Partindo dessa premissa, concebo os sujeitos como intér-
pretes e produtores do mundo, ou seja, tudo o que criam é motivado pela
compreensão que têm da sua própria realidade (CHARTIER, 2002). Nesse
sentido, trago à discussão alguns autores contemporâneos ao escritor da
narrativa e que auxiliam na compreensão da característica plural que Exu
assume na sociedade brasileira contemporânea.
José Zacharias (1998), apresenta Exu à vista da psicologia junguia-
na e destaca alguns aspectos principais, tais como: dinamicidade, movi-
mento, impulsividade, comunicação e transformação das normas sociais.
O pesquisador, associa o arquétipo de Exu ao de Hermes, deus grego, e
aponta diversas semelhanças entre as duas divindades: Exu preside os
caminhos, especialmente as encruzilhadas, sendo um de seus símbolos
o tridente, em que se percebe uma encruzilhada, as possibilidades dos
caminhos e a hesitação característica dos viajantes (ZACHARIAS, 1998).
O autor menciona cinco mitos que ressaltam a astúcia de Exu. O
primeiro deles conta que ele mata um pássaro hoje com a pedra que atirou
ontem. No segundo, Exu traz o azeite do mercado em uma peneira, sem
derramar uma gota sequer. No terceiro, a divindade faz o erro virar acerto.
No quarto, leva a alma dos mortos a Euá5. E, no quinto, faz dois amigos que
prometeram nunca se desentender, matarem-se.
Neste quinto mito, o autor narra que os dois amigos, personagens
da história, sempre saudavam Exu no começo do dia de trabalho no
campo, mas, certo dia, eles se esqueceram da oferenda e a divindade
ficou irada. Exu então pôs na cabeça um gorro de duas cores, metade

4 Na construção das relações sociais, a apropriação está associada ao processo de subjetivação do sujeito.
Nessa interação, o sujeito desenvolve uma percepção de si que o permite estruturar o meio social em que
vive e ser estruturado por ele (CHARTIER, 2002).
5 Orixá feminino, que tem atribuição sobre as fontes, tem como elemento natural as nascentes e riachos e,
como patronagem, a harmonia. É conhecida por habitar os nevoeiros e por se camuflar na natureza.

87
Diversidade Religiosa & História

vermelho e metade branco e passou pelo caminho que dividia a terra


dos dois vizinhos, cumprimentando-os. Quando um dos amigos comenta
sobre o homem desconhecido que havia passado de gorro vermelho,
o outro retruca dizendo que o gorro era branco. “A discórdia foi aumen-
tando a ponto de ambos se engalfinharem em uma luta corpo a corpo,
resultando na morte dos dois, enquanto Exu se divertia a valer com sua
vingança” (ZACHARIAS, 1998, p. 139).
A esperteza e a irreverência de Exu são características comuns nas
representações de Zacharias (1998) e de PJ Pereira (2013), mas neste último
não encontro Exu como o responsável por revelar imagens psíquicas que
o homem ocidental, com sua moral cristã, busca ocultar. Em “Deuses de
dois mundos”, o quinto mito que Zacharias (1998) destaca, também ganha
nova roupagem:

Um chapéu pontudo, de um lado branco, do outro preto. Exu


vestiu o estranho chapéu e deu a volta na praça de forma
que pudesse caminhar no sentido contrário às suas vítimas.
Quando cruzou com os dois amigos, fez questão de passar
bem no meio deles e cumprimentá-los: — Bom dia, senhores
guerreiros. — Bom dia, senhor forasteiro — responderam
ambos com muita educação [...] Exu ficou à espreita atrás
de uma barraca do mercado e conseguiu ouvir o desfecho
de mais uma de suas traquinagens. — Aquele forasteiro de
chapéu branco... ele conhece a gente? — Achei que sim. Mas
o chapéu era preto. — Claro que era branco, está querendo
me confundir? Ou está me chamando de mentiroso? Exu
tinha conseguido. Assim que os viu, teve a sensação de que
aqueles bravos guerreiros não eram tão amigos assim. Gran-
des lutadores normalmente têm respeito, não amizade, por
seus iguais. Mas nem tudo correu como o mensageiro havia
planejado. Como ambos eram de boa fé, sustentaram seus
pontos de vista até o fim [...]. Foi então que, embalados pelo
fogo do vinho de palma e pelo calor da discussão, um deles
sacou a espada. O outro, é claro, o seguiu [...]. Os dois, ali
caídos no chão, envoltos em sangue, provavam a perspicaz
teoria de Exu (PJ PEREIRA, 2013, p. 119-122).

Esse mito é muito difundido entre os terreiros e estudiosos de


mitologia iorubá, um dos mais conhecidos e citados em referência a

88
Diversidade Religiosa & História

Exu. Na obra de Prandi, esse mito é intitulado “Exu leva dois amigos a
uma luta de morte”:

Dois camponeses amigos puseram-se bem cedo a trabalhar


em suas roças, mas um e outro deixaram de louvar Exu. Exu,
que sempre lhes havia dado chuva e boas colheitas! Exu ficou
furioso. Usando um boné pontudo, de um lado branco e do
outro vermelho, Exu caminhou na divisa das roças, tendo um
à sua direita e o outro à sua esquerda. Passou entre os dois
amigos e os cumprimentou enfaticamente. Os camponeses
entreolharam-se. “Quem era o desconhecido? Quem é o es-
trangeiro de barrete branco?”, perguntou um. “Quem é o desco-
nhecido de barrete vermelho?”, questionou o outro. “O barrete
era branco, branco”, frisou um. “Não, o barrete era vermelho”,
garantiu o outro. Branco. Vermelho. Branco. Vermelho. Para um,
o desconhecido usava um boné branco, para o outro, um boné
vermelho. Começaram a discutir sobre a cor do barrete. Branco.
Vermelho. Branco. Vermelho. Terminaram brigando a golpes de
enxada, mataram-se mutuamente. Exu cantava e dançava. Exu
estava vingado (PRANDI, 2001b, p. 48-49).

Considero que ainda é pouco discutido um aspecto que, ao meu


ver, é bastante importante neste mito. O que significa não louvar Exu? Pode
parecer que os camponeses apenas se esqueceram de jogar miúdo com
farofa e pimenta no chão, mas, no que concerne ao princípio ontológico
do mito iorubá, não se trata apenas disso. O que me chama atenção é
que os personagens não observaram Exu, não consideraram o seu mo-
vimento no modo como viam e liam a realidade social. Não se atentaram
para a possibilidade da contradição, por isso se mataram. Observar a ação
de Exu na narrativa mitológica é relevante para produção de referenciais
epistemológicos que considerem os princípios basilares constituintes dos
aspectos civilizatórios invisibilizados na produção do conhecimento, evita
a morte/esquecimento.
A narrativa de “O livro do Silêncio” tem muitas coisas em comum
com o mito, mas percebo o quanto é adaptada para fazer sentido no
enredo, e também — conforme conjecturo — para se tornar palatável ao
público. A palavra “vingança” não aparece na narrativa de PJ Pereira (2013).
A motivação do ato de Exu, diferente do que consta em Prandi (2001b),

89
Diversidade Religiosa & História

não é a displicência em relação ao seu culto, mas o desejo de pregar


uma peça nos dois amigos para confirmar se eram tão amigos assim. É
silenciado, segundo a nossa compreensão, que o mito diz respeito a um
princípio filosófico, carregado nas representações de Exu: a divindade que
questiona verdades absolutas e universalismos; que provoca a reflexão
sobre a noção de perspectiva, quando cada um dos amigos vê uma cor
no chapéu e a toma como o todo (universal). Diz respeito, inclusive, às
possibilidades de subversões diante dos cânones ocidentais, que primam
por um binarismo conceitual.
Corroboro a visão de Simas e Rufino quando compreendem as
representações de Exu como de irreverências e transgressões de normas
ocidentais. Em nossa leitura, essa perspectiva não aparece na narrativa
de PJ Pereira (2013). O autor inclusive busca demonstrar que Exu não
esperava que os dois amigos guerreassem até a morte. Quase como se
tivesse obtido esse resultado sem querer. Como se a representação de
Exu como aquele que pode jogar as pessoas umas contra as outras6, não
pudesse ser evidenciada. O remorso que PJ Pereira (2013) tenta atribuir a
Exu pelo que causou não aparece no mito registrado por Prandi (2001b).
Ali, Exu só ri e gargalha com o desfecho da história, provando que os
dois amigos não conseguiam lidar com a perspectiva um do outro. Nesse
sentido, é importante destacar que a sociedade ocidental e cristã tende a
admitir o cosmo como uma engrenagem perfeita. É inclinada a perceber
toda falha nesse mecanismo como um risco à ordem. Já a cosmovisão
iorubá embasa suas percepções nas “relações entre fenômenos, como
um constante processo dialético de equilíbrio e desequilíbrio [...] um
complexo de forças que defrontam, se opondo ou se neutralizando”
(TRINDADE; COELHO, 2006, p. 24).
Exu é visto como perigoso em uma sociedade que teme a mudança
e o conflito, mas para os iorubás, e muitos grupos religiosos que o cultuam
no Brasil, não é assim. Em nossa visão, houve uma suavização da narrativa,
por PJ Pereira, justamente em sintonia com essa perspectiva eurocêntrica
de que o conflito representa o mal. Se provocações são negativas e Exu

6 Em Prandi (2001b, p. 530): “Uma das artimanhas de Exu consiste em jogar as pessoas umas contra as outras”.

90
Diversidade Religiosa & História

deve ser aceito, então Exu precisa provocar quase sem querer, mostrando
inclusive arrependimento pelo que causou.
Relacionando Exu a aspectos homeostáticos da psique humana,
Zacharias (1998) diz que a divindade se encarrega de transformar o cer-
to em errado, inverte fluxos de energias polarizada, dando válvulas de
escape a pensamentos reprimidos no inconsciente. Em uma sociedade
cristã e maniqueísta, em que certos pensamentos e comportamentos são
inadmissíveis, Exu seria o responsável por reivindicar o que foi reprimido na
psique humana. Mãe Beata de Iemanjá diz que “uma das coisas que Exu
mais adora é brincar com as pessoas, experimentar o limite das pessoas.
Ele pode fazer você agora ter uma decepção muito grande e daqui há
vinte minutos depois você ter uma alegria. É uma artimanha dele”7. Como é
possível perceber, não é só a literatura que evidencia o caráter brincalhão
de Exu, os adeptos do candomblé e da umbanda também partilham, em
alguma medida, essas noções.
Conforme Prandi (2001a), Exu é transformador, dinamiza as regras,
as tradições e as normas. É considerado temível por ser a própria fonte das
mudanças. Contudo, considera o autor, não existe na cosmologia ioruba
uma chave única que classifica todos os comportamentos e valores em
bem e mal. Tomado da religião dos orixás e incorporado ao padrão religioso
judaico-cristão, em sua estrutura de paridades — que implica reflexamente
a lógica bem e mal, pecado versus virtude —, o sincretismo buscou esta-
belecer correspondências entre orixás e divindades cristãs. Desse modo,
Olorum, deus supremo dos iorubas, foi associado ao Deus Pai; Oxalá, o
deus da criação, foi associado ao Deus filho, Jesus Cristo; e os demais foram
associados aos santos católicos, exceto Exu. Foi a cristianização do panteão
africano que compeliu Exu à condição de demônio, no Brasil.
Alguns aspectos das representações de Exu em PJ Pereira se
assemelham aos de Prandi, por exemplo, a premissa de que a oferenda
para Exu seja para agradá-lo, e não feita por medo. Em “Deuses de dois

7 Transcrição do depoimento da yalorixá (mãe se santo) Beata de Iemanjá, do Ile Axé OmiOjuArôOmi
(Salvador, Bahia), no documentário: A boca do mundo — Exu no candomblé, 2009.

91
Diversidade Religiosa & História

mundos”, Exu diz para Newton Fernandes: “Você cozinha para mim. Em
breve. Porque você quer me agradar, e só isso” (PJ PEREIRA, 2015, p. 83).
Compreendendo que a figura de Exu orixá não se desassocia, nem
se desconecta totalmente dos Exus cultuados na Umbanda8, tanto no uni-
verso religioso como fora dele, considero pertinente dialogar com teóricos
que analisam essas representações pelo viés dessa religião. Alguns deles,
como Ortiz (1999), defendem que o contexto histórico de elaboração da
umbanda provocou a reelaboração e adequação cultural do mito de Exu.
As construções de Exu nesse panorama sócio-histórico o associaram à
personificação do homem que engana, que prega peças e que é brinca-
lhão, entre outras noções, como o homem criminoso, ladrão e marginal.
Já o historiador Cairo Katrib (2017), indica que a umbanda buscou
transformar Exu em um espírito mais humano para se desvincular da visão
social negativa sobre ele. Diferente do que ditavam os discursos oficiais,
a simbologia e os modos de se admitir o sagrado nessa religião foram
paulatinamente sendo reinventados para responder às determinações de
seus adeptos. Conforme o autor, essas entidades são consideradas tão im-
portantes que habitam os quartos em frente aos terreiros, ali, são firmadas
as energias que fortificam a sua força espiritual. Katrib (2017) defende que
essas práticas atestam a persistência dos saberes originários das religiões
africanas e revelam que a umbanda não perdeu por completo suas refe-
rências de matriz africana, mas que se recria a cada dia.
Observa Katrib que os Exus entidades são os que mais obtêm re-
conhecimento positivo, no sentido de serem considerados os espíritos que
mais conhecem as dores e alegrias humanas, e, por isso, melhor auxiliam
na resolução de conflitos. Essa noção de Katrib de que Exu é bastante
próximo do homem e amplamente solicitado para resolver conflitos do
cotidiano também está presente na narrativa de “Deuses de dois mun-
dos”. Na trama, o protagonista, Newton Fernandes, havia sido separado
pelos deuses de sua amada, Maria Eduarda. Para resolver esse conflito,

8 Nesse caso, exus são os espíritos de seres humanos que, quando vivos, constituíram alguma identidade
socialmente marginalizada. As entidades são consideradas mais próximas da humanidade, em relação
às divindades, pelo fato de terem vivido e desenvolvido identidades humanas localizadas no tempo e no
espaço (PRANDI, 2001a; BIRMAN, 1985).

92
Diversidade Religiosa & História

ele recorre a Laroiê9, nome dado a Exu no início da narrativa, como pode
ser observado a seguir: “O que me traz de volta a você [Exu], é a minha
trégua imaginária. Quero propor um trato. Deixe-me encontrar novamente
com a Duda depois que eu morrer. Prometa-me isso e faço tudo que você
mandar” (PJ PEREIRA, 2015, p. 310).
Já em Vagner Gonçalves da Silva (2013), antropólogo e pesquisador
das religiões afro-brasileiras, encontro algumas reflexões sobre Exu que
transitam entre o candomblé e a umbanda. Para o autor, essa divindade
é considera como um “mediador cultural” que representaria o “não lugar”,
encarnando importantes identidades nacionais, como o sincretismo e a
miscigenação brasileiros. Conforme o autor, Exu tomou várias formas no
Brasil, principalmente pelo contexto da escravidão e da criminalização de
todas as religiões que não fossem a católica. Em alguns tempos, sobres-
saiu-se o caráter mensageiro e conciliador de Exu, quando foi associado,
entre outros, a Santo Antônio (o mártir que carrega um cajado) e São Ga-
briel (anjo anunciador). Quando se evidenciou-se sua natureza trickster, de
promotor do caos social, ele foi associado ao demônio e aos espíritos dos
mortos que perturbam as pessoas.
Os Exus que se manifestam na umbanda, por meio da incorporação,
têm nomes de demônios, como Exu Belzebu e Exu Lúcifer, mesmo assim,
o autor compreende que esses Exus são mais africanos do que parecem,
principalmente porque continuam sendo regentes da mediação, fazem
referência aos lugares de passagem (encruzilhadas, porteiras), intercedem
o mundo dos vivos e dos mortos (cemitérios, catacumbas), representam
os estados intermediários dos elementos (lodo, sombra) ou a dualidade do
que existe (leva uma capa, preta de um lado e vermelha de outro, como
o chapéu de duas cores). A predileção de Exu pela encruzilhada também
é um aspecto ressaltado pelo autor. A encruzilhada seria a convergência
de todos os caminhos e, por isso, seria o lugar preferido para realizar suas
oferendas (GONÇALVES DA SILVA, 2013).

9 Laroiê é a saudação realizada no candomblé e em outros ritos afro-brasileiros quando Exu se manifesta
no corpo de um adepto.

93
Diversidade Religiosa & História

Sobre a Pombagira, o pesquisador assinala que ela é a desafiadora


da ordem patriarcal, é subversiva, não aceita a subordinação da mulher
aos papéis submissos, historicamente atribuídos ao feminino. Ela prefere
os espaços públicos aos privados, protege as prostituas, questiona a con-
figuração tradicional de família e elenca outras possibilidades de ação e
expressão do feminino. Para Gonçalves da Silva (2013), é uma “trikster de
saia”, já que se utiliza das diferenças anatômicas e dos papéis de gênero
para questionar de maneira jocosa. Em minha visão, a postura desafiadora
destacada pelo autor não tem fundamentalmente esse caráter. Contudo,
onde o cristianismo via expressões diabólicas, as religiões africanas viam
a expressão de uma divindade específica: Exu. A violência e a prostituição
como uma das pouquíssimas formas de ganhar a vida que uma mulher
pobre e independente tinha, são questões sociais. O que os princípios afro
religiosos apontavam estava para além disso, residia no que fazia a Pom-
bagira e Exu se tornarem divindades/entidades. Seu papel de liderança,
não submissão, coragem, sua capacidade de comunicação, negociação e
invenção diante da efemeridade etc.
As imagens que compõem a representação de Exu no discurso
intelectual de Gonçalves da Silva (2013) também dialogam com a narrativa
de PJ Pereira (2013), principalmente o caráter de mensageiro que o retira
do lugar “demonizado”. Em Deuses de dois mundos, Exu é o mensageiro
que leva os recados de Orunmilá para Oxalá, e leva os recados dos ori-
xás para Newton Fernandes. A adaptação histórica que destaco é que a
divindade se comunica com Newton por meio de plataformas digitais,
como e-mail e blog. O modo contemporâneo de abarcar a representação
imagética de Exu foi incluir como foto de perfil de Exu, no blog, a figura de
um garfo. Conforme Prandi (2001a), Exu foi impelido pelo sincretismo reli-
gioso a desempenhar o papel de demônio e, por isso, suas representações
imagéticas teriam se aproximado do diabo medieval, identificado, entre
outras coisas, pelo tridente. Sugerimos que, em “Deuses de dois mundos”,
o autor associa a imagem à gula de Exu e à prática gastronômica que Exu
e Newton compartilham.
Certamente, PJ Pereira (2013, 2014, 2015) não apresenta em sua
obra toda a complexidade que envolve pensar a figura de Exu. Da mesma

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Diversidade Religiosa & História

maneira, em um único texto, não é viável explorar a heterogeneidade das


manifestações religiosas afro-brasileiras e como essas se utilizam dessa di-
vindade em suas mais diversas possibilidades e representações. O potencial
de pesquisa em torno dessa divindade é evidentemente amplo, mas, para
finalidade deste trabalho, optei por evidenciar as seleções e recortes opera-
dos na construção de Exu, em uma obra literária brasileira e contemporânea.
Encerro essa sessão tendo abordado as características de Exu mais
evidenciadas em minha fonte; apresentado diferentes representações do
mito destacado, que aponta para o seu caráter não maniqueísta; e proble-
matizado as construções, na obra, que buscam inseri-lo em uma lógica
ocidental binária. Tendo concluída a incursão sobre minha fonte, apresento
na próxima sessão, um debate teórico com base em outras concepções
históricas da figura de Exu, que me permitem algumas reflexões epistêmi-
cas que pouco são exploradas no domínio da Teoria da História.

Outros caminhos possíveis

Por acessar um lugar de privilégio, o da produção acadêmica,


busco assumir a responsabilidade ética e política de questionar a histórica
distorção semântica da figura de Exu, o orixá mais incompreendido10 do
panteão africano. Penso nesse lugar de produção do conhecimento como
a encruzilhada, onde Exu promove o cruzamento das coisas e a multi-
plicidade de escolhas. É lá que ele sopra a fumaça às avessas e cospe
de outro jeito a cachaça que tomou. Digo isso pensando nas estripulias
da divindade que transforma o conhecimento e contradiz qualquer pre-
tensão de universalismo. Me posiciono não somente como historiadora,
mas também como mulher negra, oriunda das camadas populares, can-
domblecista e Omo Òrisá (filha de orixá), assumindo, na medida que me

10 Em Segredos guardados, Reginaldo Prandi (2005), afirma que Exu tem livre transitoriedade entre todos
as extremidades do mundo e não tem limites. Contudo, essas representações que conversam com sexuali-
dade, prazer, gozo e erotismo são hediondas ao universo cristão. Essa teria sido uma das razões pelas quais
ele foi empurrado para o inferno cristão e enquadrado em uma perspectiva maniqueísta (PRANDI, 2005).

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Diversidade Religiosa & História

cabe, a responsabilidade de buscar capturar de que modo a religiosidade


Afro-brasileira vem sendo representada.
Sublinho que o epistemicídio11, operado tanto nas produções
culturais, como científicas, conecta-se a um projeto mais profundo de
erradicação do outro. Compreendo que os movimentos de embranqueci-
mento praticados desde uma lógica colonial, enquanto negam as culturas
africanas e afro-diaspóricas, também as assimilam. Assimilação, distorção,
e não contradição, nem ambiguidade, são práticas colocadas em oposi-
ção ao que é branco, em um conjunto binário. Por isso, torna-se relevante
pensar de que modo a divindade dos caminhos, encruzilhadas, aberturas
e dinamismos — Exu — pode fornecer elementos para uma dialogia epis-
têmica que fuja da perspectiva ocidental de aniquilamento do outro.
É uma prática comum, na historiografia, tomar relatos míticos como
emblemas ou modelos para pensar a História, a exemplo de Walter Benja-
mim (2013) quando fala sobre o Anjo da História. Contudo, é preciso reforçar
a validade desse exercício quando se trata de uma figura como Exu, já que,
via de regra, os conceitos cristãos é que são introjectados como referenciais
epistemológicos, elementos culturais ou linguísticos. Exposto isso, tomo a
“pedagogia das encruzilhadas” para pensar Exu como mediação filosófica
que nega dualidades reducionistas e aponta outros caminhos teóricos, em
alternativa ao binarismo colonial do ocidente. Nesse sentido, destacamos
que as narrativas ocidentais historicamente foram permeadas por uma
racionalidade dogmática e hermética que buscou enquadrar o comporta-
mento humano em categorias objetivas, gerando a exclusão de tudo aquilo
que, em certa época e lugar, considerou-se fora da norma. Já Exu, por re-
sistir ao máximo à colonização do universal — que pretende abstrair toda
singularidade — nos inspira à produção e reinvindicação das encruzilhadas.
Além de provocar desigualdades e injustiças sociais, o colonialis-
mo produziu um legado epistemológico eurocêntrico que nos atrapalha a

11 Pode ser compreendido como a morte/aniquilamento de saberes. Para Souza Santos (1999, p. 328), “o
genocídio que pontuou tantas vezes a expansão europeia foi também um epistemicídio: eliminaram-se po-
vos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento
estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos. Mas o epistemicídio foi muito
mais vasto que o genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginali-
zar, ou ilegalizar práticas e grupos sociais que podiam ameaçar a expansão capitalista”.

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Diversidade Religiosa & História

compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das


epistemes que lhes são próprias. Assim, a ciência moderna estabeleceu-
-se enquanto produtora de um saber supostamente neutro, sem conexão
com uma cultura específica, pautada em princípios abstratos e universais.
Contudo, as experiências sociais que constituem tais parâmetros são par-
ticulares, seu alcance se deve à pressuposição de uma universalidade da
experiência humana de construção e perda de sentido (QUIJANO, 2005).
Destaco também o argumento da historiadora Ana Carolina Pereira
Barbosa (2018, p. 95) de que expansão colonial iniciada em 1492 é “a origem
de uma episteme racista/sexista que opera até os dias de hoje nas univer-
sidades ocidentalizadas, por meio dos textos canônicos fundacionais das
disciplinas de ciências sociais e humanidades”. Conforme a pesquisadora,
questionar porque o cânone do pensamento das humanidades se baseia
no conhecimento produzido por uns poucos homens de cinco países da
Europa Ocidental, com forte teor epistemicida:

[...] deve impedir a perpetuação da dicotomia sujeito-objeto


que reproduz as assimetrias e hierarquias entre formas de
conhecimento, como a problemática distinção entre “saberes”
e “epistemologias”, ou “cultura” e “pensamento científico”. Ela
deve, enfim, interromper o circuito de perpetuação desta es-
trutura geopolítica que opõe o Centro como proeminente lugar
de elaboração das teorias e a Periferia como lugar de coleta de
dados e aplicação de resultados (BARBOSA, 2018, p. 108-109).

Nesse sentido, considero importante o exercício de embasar as


reflexões históricas em um conhecimento não eurocentrado, para evitar o
que a intelectual nigeriana, Chimamanda Adichie (2009), denominou como o
“perigo de uma história única”, em uma célebre conferência na qual narra sua
trajetória como escritora. É necessário produzir outros caminhos que permi-
tam resistir às forças do colonialismo que são, ao mesmo tempo, forças de
violência, de fechamento e de exclusão. Nesse contexto, Exu é a abertura,
amplia as possibilidades de diálogo com o diferente. Pode ser tomado como
um norteador para produção de movimentos e rupturas teóricas, ao mesmo
tempo que inspira um lugar que pode ser, tanto do deslocamento, como
também, do encontro. A potencialidade em adotá-lo como referencial con-

97
Diversidade Religiosa & História

ceitual, consiste em deslocá-lo de seu lugar comum no imaginário social,


para quadros interpretativos e inventivos de formas diversas de linguagem,
manifestação e argumentação. Problematizar a falsa objetividade e univer-
salismo da ciência europeia utilizando a própria figura de Exu como lócus
de negação e denúncia dos seus pretextos castradores é uma proposta de
mobilizar críticas e possibilitar um aprofundamento teórico sobre a matriz
iorubá e a questão do imaginário colonial, já que

[...] um discurso teórico é sempre, ao mesmo tempo, uma


forma estética, uma reconfiguração sensível dos dados sobre
os quais ele argumenta. Reivindicar o caráter poético de todo
enunciado teórico é também quebrar as fronteiras e as hie-
rarquias entre os níveis de discurso (RANCIÈRE, 1994, p. 164).

Não há história ou conhecimento sem uma abertura de caminhos


que faça saltar um evento significante para nós, encruzilhando uma ima-
gem como relevante para o presente. Assim, o que proponho é que os
movimentos de Exu, bem como sua rebeldia, contradição e relação com
a encruzilhada, possam ser tomados como fundamentos relevantes para
a produção de conhecimentos antirracistas e contra coloniais. Considero
que Exu produz uma confluência de caminhos e diversas possibilidades
para o caminhar. Algumas delas são harmônicas, outras não, “deixando
a decisão sobre a circulação do axé nesses gestos do caminhar sob a
responsabilidade dos caminhantes, que podem potencializar ou despo-
tencializar o axé” (FLOR DO NASCIMENTO, 2016, p. 37).
Exu pode-vir-a-ser-sendo uma força do pensamento anticolonial,
matriz que auxilia, por inspiração, a produzir resistências à lógica de do-
minação que historicamente assujeitou a população preta, pobre, e de
terreiro. Concordo com Elungu, pesquisador congolês que se dedica ao
estudo do pensamento filosófico africano, quando indica que “o pensa-
mento não é independente, nem tão-pouco (sic) autônomo, da vida: é
a própria vida que permanentemente se amplia para se unir a tudo o
que vive no universo e nisso participar” (ELUNGU, 2014, p. 28). Cabe citar,
também, os estudos de Strathern (2013) que elencam o antidualismo e
reivindicam as ficções persuasivas como possibilidades de interpretação,

98
Diversidade Religiosa & História

modo de sobrepor as análises, e admitir o desejo de convencimento


inerente à produção de todo texto.

Preparar uma descrição requer estratégias literárias específi-


cas, a construção de uma ficção persuasiva: uma monografia
precisa estar arranjada de tal maneira que possa expressar
novas composições de ideias. Essa se torna uma questão
sobre sua própria composição interna, a organização da aná-
lise, a sequência pela qual o leitor é introduzido a conceitos,
o modo como as categorias são justapostas ou os dualismos
são invertidos. Dessa forma, quando o escritor escolhe (diga-
mos) estilo “científico” ou “literário”, ele assinala o tipo de ficção
que faz; não se pode fazer a escolha de evitar completamente
a ficção (STRATHERN, 2013, p. 45).

Nesse sentido, argumento que é possível e muito proveitoso en-


tender Exu como esse canal de mediação, pedagogia e base filosófica,
para compreender a História Cultural, a História do Cotidiano, a História
das Religiões, entre outras. Analisar e escrever a história considerando Exu,
significa potencializar as contradições entre as múltiplas perspectivas, en-
tre as mudanças e as tradições. Possibilita que o/a historiador/a parta de
outras compreensões do mundo, na delimitação de perguntas e hipóteses,
topografias de interesses, fabricação de fontes etc. Exu pode sabotar as
estruturas em suas repetições e lógicas. Indica a historicidade do mundo e
possibilita a agência dos sujeitos que determinam a resistência. Demonstra
que o conhecimento deve ser delineado a partir das mudanças históricas.
Sendo aquele que devora tudo o que vê e depois devolve de
maneira transformada, Exu traz para as disputas anticoloniais, a disrupção
e a transformação do pensamento de um modo dialógico, amplo, sagaz.
Trazemos uma provocação de Rufino (2019, p. 32), que ilustra o quanto
a dinâmica de Exu não é percebida pelo discurso colonizador: “[Hegel]
firmaste um verso sobre as populações negras como sendo contrações
imóveis, rastejo e espasmo. Eu, cismado que sou, refaço a pergunta: Ora
tu não viste um moleque de pau duro que passou do teu lado? Não viu?
Acabou de tirar um sarro de ti!”.
Assim, verso sobre Exu como referencial conceitual que se coloca
contra o que Mbembe (2014) denomina como “autoficção”, “autocontem-

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Diversidade Religiosa & História

plação” e “autoenclausuramento”. O autor postula que a colonialidade do


saber e a globalização de fábulas inventa o outro como uma exterioridade,
excedente, um solo negado e inconfessado. Silencia um mundo perverso,
e busca de todas as formas impedir outros horizontes de sentido. Em res-
posta a esse fechamento, Exu se apresenta como a recusa da imobilidade
do pensamento. Nos demonstra que os saberes marginalizados no pro-
cesso de colonização cultural, podem ser dinamizados na configuração de
outros caminhos possíveis que, ao se distanciar dos binarismos conceitu-
ais, encontram-se na encruzilhada da liberdade.

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101
ESPACIALIDADES DO CATIMBÓ-JUREMA

André Luís Nascimento de Souza1

Resumo
O catimbó-jurema é uma manifestação religiosa, cujas origens estariam relacio-
nadas inicialmente a antigos grupos indígenas que um dia habitaram Nordeste
brasileiro. Esta pesquisa trata de uma análise sobre a construção imaginária e
imaginada dos espaços, ou da “geografia sobrenatural” presentes no sistema mís-
tico-religioso do catimbó-jurema. Tratando-se da análise, são abordados múltiplos
aspectos espaciais utilizados nesta religião: terreiro, o peji ou altar, o corpo, as
cidades espirituais, os reinos e aldeias presentes na cosmogonia juremeira.
Palavras-chave: Catimbó-jurema. Espacialidades. Sistema Mágico-Religioso.
Imaginário.

Abstract
Catimbó-Jurema is a religious manifestation, whose origins initially relate to indige-
nous groups, which once inhabited the Brazilian northeastern region. This study can
be defined as an analysis on the imaginary and imagined construction of spaces,
or construction of the “supernatural geography” present in the Catimbó-Jurema
mystic-religious system. As far as the analysis is concerned, we address multiple
spatial aspects used in this religion: terreiros, the peji or altar, the body, the spiritual
cities, the kingdoms and villages present in Jurema’s cosmogony.
Keywords: Catimbó-Jurema. Spatiality. Magical-Religious System. Imaginary.

1 André Luís Nascimento de Souza. Mestre em História. Universidade Federal do Rio Grande do Norte —
UFRN/Ceres.

102
Diversidade Religiosa & História

Breves considerações sobre o Catimbó-jurema

O catimbó pode ser definido como uma manifestação religiosa


mediúnica (ou de possessão) baseada na crença nos mestres, caboclos,
reis e encantados — espíritos possuidores de uma sabedoria ancestral
voltada para a cura física e espiritual. Os “toques”, como são chamadas as
cerimônias abertas ao público, são geralmente muito animadas e possuem
uma dinâmica semelhante à de outras religiões afro-brasileiras, com músi-
cas acompanhadas por instrumentos percussivos, geralmente atabaques
e maracás. Os médiuns evocam os mestres e estes, rapidamente se fazem
presentes entre os homens. Conversam, bebem, fumam, contam suas his-
tórias, advertem e prestam conselhos àqueles que os procuram. De acordo
com Luiz da Câmara Cascudo, historiador potiguar, “no catimbó se reúnem
para trabalhos, bons e maus, mas deliberados, com sua corte de mestres
conhecidos pelas predileções maléficas ou caritativas” (CASCUDO, 1978,
p. 66). Os mestres espirituais da jurema representam os mais diferentes
tipos sociais: são médicos, boêmios, fazendeiros, caboclos, padres, cafe-
tinas, reis de antigas dinastias, pretos-velhos, fidalgos, feiticeiras, além de
outras entidades que se propõem a auxiliar os seus pares encarnados. O
pesquisador cearense, Pordeus Júnior, afirma que os mestres e mestras,

[...] emergem na Jurema como protetores espirituais [...] são


muito mais terrenais, carregando ainda de forma notória,
muitas das paixões humanas, sendo por isso, muito mais
acessíveis quando na exposição de determinados assuntos,
já que o consulente encontra mais proximidade de enten-
dimento, por parte destas entidades, por seus problemas,
pontos de vista, preocupações, frustrações etc., fazendo com
que a exposição do diálogo seja muito mais fácil, bem como
a resposta, o entendimento e, sobretudo, o linguajar é mais
facilmente reconhecido (PORDEUS JR., 2012, p. 44).

Durante os rituais é comum a ingestão da jurema — licor produzido


a partir das cascas e raiz da árvore de mesmo nome, sendo adicionados
ainda uma série de outros ingredientes conhecidos apenas pelo sacerdote.
O mito juremeiro diz que a árvore teria se tornado sagrada, após ter servido

103
Diversidade Religiosa & História

de abrigo ao Menino Jesus, quando a Virgem Maria e o seu esposo José,


fugiam do recenciamento imposto pelo rei Herodes, de acordo com o re-
lato bíblico. A partir de então, o arbusto teria adquirido suas propriedades
curativas, sendo capaz de revelar a “ciência” do mundo espiritual àqueles
que comungam da jurema.
Os mestres espirituais habitam as cidades encantadas. Diz-se
que estes lugares imaginários possuem paisagens iguais as nossas,
com árvores, animais, montanhas, vales, rios além de outros aspectos
topográficos. Foi Mário de Andrade, durante a sua Missão de Pesquisas
Folclóricas, no final da década de 1930, que catalogou algumas destas
cidades, dentre elas estão: “Vajucá, Cidade do Sol, Florestas Virgens,
Fundo do Mar, Juremal, Cidade do Vento, Rio Verde, Ondina, Urubá, Cida-
de Santa” (ANDRADE, 1983a, p. 75). Há ainda centenas de outros lugares
encantados, seus nomes estão relacionados à fauna: Aldeia do Mestre
Camaleão; Cidade das Andorinhas; Aldeia do Besouro Mangangá; à flora:
Cidade do Alecrim, Arruda Branca, Aldeia dos Canaviais; e outras espa-
cialidades que remetem à lugares místicos, como a Cidade das Altas
Torres, Estrela D’Alva e Cova de Salomão.
O acesso às cidades espirituais é permitido apenas aos médiuns,
com a devida autorização dos mestres encantados e somente depois
de um complexo ritual (particular de cada casa) que envolve oferendas
alimentares, sacrifícios de sangue, além da ingestão do licor da jurema,
culminando no transe de possessão — momento em que o médium é
simbolicamente levado por seu guia espiritual para conhecer os “encan-
tos”. Os juremeiros chamam este rito de “o tombo da jurema”. O etnólogo
alemão, Curt Nimuendaju, que conviveu por mais de quarenta anos entre
diferentes grupos indígenas brasileiros, deixou registrada uma das mais
impressionantes descrições sobre as paisagens do mundo encantado:

[...] a jurema mostra o mundo inteiro a quem bebe: vê-se o céu


aberto, cujo fundo é inteiramente vermelho; vê-se a morada
luminosa de Deus; vê-se o campo de flores onde habitam as
almas dos índios mortos [...]. Ao fundo vê-se uma serra azul;
veem-se as aves do campo de flores, beija-flores, sofrês e
sabiás. À sua entrada estão os rochedos que se entrechocam

104
Diversidade Religiosa & História

esmagando as almas dos maus quando estas querem passar


por eles. Vê-se o sol passando por debaixo da terra (NIMUEN-
DAJU, 1983, p. 53).

Alguns antropólogos e historiadores consideram a Paraíba, um dos


mais importantes polos difusores da prática juremeira. Pesquisas como
as de Vandezande (1975), Assunção (2006) e Salles (2010), apontam para
Alhandra, o pequeno município paraibano teria abrigado a mais conhecida
linhagem de mestres catimbozeiros, a família Gonçalves de Barros. Maria
do Acais — fundadora da Vila do Acais, foi talvez, a mais prestigiada mestra
juremeira no século XIX.
Entre 2014 e 2016, durante a realização da pesquisa de Mestrado,
conseguimos observar aquilo que o antropólogo Luiz Assunção (2004,
2006), chamou de “nova modalidade religiosa” (ASSUNÇÃO, 2004). Em
campo, visitamos os vinte e três municípios que compõem a região do
Seridó Potiguar, interior do Estado do Rio Grande do Norte e conseguimos
catalogar mais de vinte e sete casas identificadas como terreiros de catim-
bó, umbanda e candomblé.
O avançar da pesquisa nos levou a outros lugares. Percorremos
centros de jurema em Natal, capital do Estado e em 2016, participamos
do XI Kipupa Malunguinho — Coco na Mata do Catucá, o maior encontro
de juremeiros e juremeiras do país, realizado em Abreu e Lima, no Estado
do Pernambuco. A experiência enriqueceu nosso acervo documental com
centenas de imagens, horas de gravações de vídeos e entrevistas. Em
2018, fomos à Alhandra, visitamos o Acais, conversamos com os juremeiros
locais e visitamos lugares considerados sagrados, como a cidade do Mes-
tre Flósculo — uma estrutura de concreto que imita um tronco de árvore
localizada por trás da capela de São João Batista, este é o lugar onde está
enterrado o mestre Flósculo, filho de Maria do Acais.
O diálogo com a História Oral forneceu o referencial teórico-meto-
dológico da pesquisa. Partimos também da análise de obras consideradas
clássicas sobre o tema, produzidas nas décadas de 1920/30, escritas por
Mário de Andrade (1983a), Roger Bastide (1945) e Câmara Cascudo (1951,
1978), literaturas pioneiras nos registros sobre a prática do catimbó. As

105
Diversidade Religiosa & História

produções mais recentes também foram consideradas, com objetivo de


perceber os processos históricos e culturais que moldaram o catimbó-ju-
rema na contemporaneidade. A visitação in loco e a apreciação das mais de
400 imagens dispostas no nosso acervo fotográfico, nos permitiu construir
ponderações sobre vários aspectos da prática juremeira no Seridó.
Obedecendo as delimitações deste artigo, apresentaremos nas
páginas seguintes, uma possibilidade de leitura sobre catimbó partindo
da análise de algumas de suas espacialidades. Em um primeiro momen-
to, a discussão gira em torno dos “espaços da natureza” e da relação
que os adeptos mantêm com as matas e rios, além de outros ambientes
considerados fundamentais para a conexão com o mundo sobrenatural
dos orixás e mestres encantados. O terreiro é a nossa segunda categoria
espacial, um lugar pensado para sediar as experiências hierofânicas
(ELIADE, 1992). Por fim, discutiremos sobre o espaço-corpo e os inves-
timentos agenciados para tornar este, um templo temporariamente
habitado pelas entidades espirituais.

Os espaços da natureza

Quando optamos por analisar os significados que os espaços da


natureza têm para o catimbó, vimos na Geografia Humanista uma inte-
ressante possibilidade de diálogo. Teóricos como Tuan (1983), Andreotti
(2008) e Rosendahl (2001), por exemplo, afirmam que os aspectos afetivos,
subjetivos e mnemônicos são àquilo que conferem sentido e significado
a um espaço. Esta parece ser uma concepção muito comum entre os
juremeiros e juremeiras. A mata, a pedreira, os rios e as estradas, a partir
do momento em que servem como espaços de conexão com os mestres
desencarnados, passam a ter um outro significado. Quanto mais próximos
da natureza, simbolicamente os fiéis estão mais pertos de seus guias.
Thágila Maria, filha da Casa Sol Nascente em Parnamirim-RN, explica que

no meio natural, as forças energéticas são mais fortes, é mais


fácil de se reconectar com o poder dos orixás dentro da na-
tureza, inclusive eles [os sacerdotes] aconselham muito que a

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Diversidade Religiosa & História

gente ore, eu pelo menos, fui muito aconselhada a orar perto


da praia, perto da floresta, porque a força dos deuses é bem
maior quando a gente entra em contato com esses ambientes
e particularmente eu sinto uma paz interior muito maior quan-
do eu estou nesses ambientes.2

A maneira como os adeptos vivenciam as suas experiências com o


sagrado, pode ser aguçada quando existe uma relação de caráter afetivo
com o espaço. Para alguns adeptos, a “mata” seria um lugar idílico, um es-
paço no qual o contato com os espíritos de índios, caboclos e encantados,
acontece mais facilmente. Na comunidade indígena Catu, localizada no
município de Goianinha-RN, a prática do toré3 acontece junto a natureza.
De acordo com Luís Catu, líder da tribo, “na mata nós temos um encontro
com os encantados. Tem gente que entra em transe [...] e recebe instru-
ções dos encantados, dos nossos antepassados, dos espíritos da mata”4.
Acredita-se que a realização dos rituais em meio a natureza reestabelece
a harmonização do corpo ao propiciar o contato com os ancestrais, forças
elementais e espíritos encantados.
Em março de 2013, presenciamos um ritual de iniciação de Rodrigo
Soares, filho de santo da Tenda Espírita Oxalá Ololufam — Reino de Oxum,
no município de Extremoz-RN. Depois de alguns dias recluso no “quarto
do santo”, o noviço foi levado a outros locais para realizar a consagração
aos seus mestres e orixás. Sendo filho de Iemanjá, o primeiro banho foi
dado no mar. Depois foi ao rio Potengi5, mergulhou três vezes e saudou a
Oxum. Na mata se consagrou a Odé. Na Tenda Espírita Oxalá Ololufam, são
os mestres espirituais, muitas vezes “incorporados” em seus “cavalos” que
coordenam os rituais feitos na natureza.
Até a primeira metade do século XX, o catimbó foi um culto
majoritariamente rural. Mas, entre as décadas de 1940 e 1970, o número
de terreiros nos espaços urbanos multiplicou. Era um momento em que
se proliferavam as afiliações dos juremeiros nas federações espíritas de

2 MARIA, Thágila. Entrevista realizada em 14 de abril de 2016, na Casa Sol Nascente, em Parnamirim-RN.
3 Trata-se, a princípio, de uma dança ritual de origem indígena, mas também pode ser interpretado como
um conjunto de práticas mágico-religiosas presentes em diferentes grupos étnicos nativos do Brasil.
4 CATU, Luís. Entrevista realizada em 30 de dezembro de 2013, no município de Vila Flor-RN.
5 Principal rio do Estado do Rio Grande do Norte. Seu nome, de origem Tupi, significa “água de camarão”.

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Diversidade Religiosa & História

umbanda e candomblé, religiões que em meio a todos os percalços, con-


solidavam-se. Gradativamente, os rituais antes realizados essencialmente
nas “roças”, passaram por adaptações, tornando-se cada vez mais urba-
nizados. Das mais de vinte e sete casas de jurema visitadas, apenas uma,
estava localizada na zona rural — o Terreiro de Umbanda São Jerônimo, em
Timbaúba dos Batistas-RN. Segundo Antônio de “Noca”6 à época, dirigente
do terreiro, os toques na mata aconteciam esporadicamente, limitando-se
a encontros mensais ou mesmo anuais. No calendário festivo do Ilê Axé
Oxum Oxé, em Currais Novos-RN, os dias 2 de fevereiro (dia dedicado a
Iemanjá) e 8 de dezembro (dia dedicado a Oxum), são os únicos momentos
do ano em que o babalorixá José Wilton realiza sessões fora do seu terrei-
ro. Nestes dias, os filhos da casa viajam à Alhandra-PB, para a realização de
um toque na antiga propriedade dos Gonçalves de Barros, o Acais.
Muitos outros juremeiros peregrinam até o “Acaio” em busca de
uma experiência mais profunda com os mestres espirituais. A localidade
se tornou sagrada por ter abrigado um dia, a mais famosa família de jure-
meiros do Nordeste. Ademais, ainda é possível visualizar uma vasta área de
mata preservada na região, fato que acaba atraindo também umbandistas,
candomblecistas, praticantes de omolocô e de outras religiões afro-brasi-
leiras que valorizam o contato com a natureza.
Não muito de distante de Alhandra, encontra-se a praia de Tamba-
ba , considerada por muitos, um portal ao universo dos mestres catimbo-
7

zeiros desencarnados. René Vandezande explica que “a tradição juremeira


diz, unanimemente, que no alto da praia de Tambaba houve uma Cidade
de Jurema de igual nome. Anos passados, esta cidade foi devorada pelo
mar, e de lá teria origem o culto que ainda hoje os juremeiros prestam
ocasionalmente nesta praia” (VANDEZANDE, 1975, p. 131).
A natureza está cheia de “passagens” para os encantos. As ca-
choeiras, as árvores centenárias, o leito dos rios, são alguns dos espaços

6 AZEVEDO, Antônio Pereira de (in memoriam). Entrevista realizada em 10 de outubro de 2012, em Tim-
baúba dos Batistas-RN.
7 A praia de Tambaba fica localizada no município de Conde-PB, há 35 km da capital João Pessoa. É co-
nhecida por ser frequentada pelos adeptos do naturismo. No entanto, os rituais juremeiros ocorrem na área
conhecida como Praia da Arapuca, lugar escolhido pelos mestres de catimbó para a realização das oferendas.

108
Diversidade Religiosa & História

escolhidos para se depositar as oferendas e realizar homenagens aos


espíritos ancestrais e seres encantados. É da natureza que se extrai
grande parte dos vegetais e das plantas de poder utilizadas na liturgia
juremeira e no tratamento de doenças físicas e outras perturbações
de ordem energético-espiritual. Rômulo Angélico, mestre juremeiro da
Casa Sol Nascente, em Parnamirim-RN, reflete sobre a necessidade de
se proteger e preservar a natureza, pois dessa forma “estamos ajudando
a manter o culto sempre vivo, afinal se não tiver as matas, a conexão com
os mestres ancestrais fica mais difícil”.8

Os espaços do Terreiro

Os termos “terreiro” e “roça” aparecem entre as documentações


dos séculos XVII e XVIII, para se referir aos lugares onde se cultuavam
os orixás e outros espíritos durante os calundus. Cronistas e escritores
como Gregório de Matos, afirmam que nas “roças” aconteciam “práticas
divinatórias [...] realizadas pelos mestres do cachimbo” (PERES, 1967, p. 51).
As cerimônias eram “rurais”, distantes dos centros urbanos, sobretudo, por
causa da repressão policial que perseguia e apreendia fieis e os objetos
litúrgicos, depois, pelos julgamentos da sociedade cristã católica que não
estava acostumada ao “primitivismo” das crenças negras (RAMOS, 1942).
Benzedores, curandeiros, mestres de jurema e pais e mães de santo, vi-
viam sob constante ameaça, fosse por parte da polícia ou pelos discursos
desqualificantes promovidos por outras instituições religiosas.
Com a formatação do Código Penal Republicano de 1890, surgiu
também a possibilidade da instauração de inquéritos, denúncias, julga-
mentos e condenações aos praticantes da feitiçaria negra (NEGRÃO, 1996).
Com o advento da República e sua proposta de ser um Estado laico, a
repressão as religiões afro-brasileiras diminuiu relativamente, mas não
acabou. Neste processo, muitos sacerdotes optaram pela realização dos
rituais no interior de suas casas, o que acabou conferindo ao catimbó um

8 ANGÉLICO, Rômulo. Entrevista realizada em 9 de fevereiro de 2015, em Parnamirim-RN.

109
Diversidade Religiosa & História

caráter doméstico — pelo menos essa, foi a característica mais evidente


que pudemos observamos no exercício da pesquisa de campo.
A maioria dos templos localizados no Seridó funcionam no mesmo
espaço em que os sacerdotes moram — “a residência do chefe religioso
é transformada em casa religiosa” (ASSUNÇÃO, 2006, p. 153). De todos
os terreiros visitados, apenas três situavam-se fora das dependências
domésticas. O aspecto domiciliar dos terreiros de catimbó foi notificado
pelo antropólogo Luiz Assunção ainda na década de 1990. Ele destaca a
ausência de placas ou quaisquer outras formas de identificação nominal
que indicassem que ali, funcionava um templo religioso afro-brasileiro.
Ainda de acordo com o autor,

esses espaços que são, ao mesmo tempo, unidades de resi-


dência e locais de culto, em determinadas situações concretas
se dividem, como nas ocasiões de realização religiosas, onde
o espaço utilizado se torna sagrado. Terminada a cerimônia
religiosa, o salão volta a ser o local do cotidiano, dos encontros,
conversas e até dormitório (ASSUNÇÃO, 2006, p. 154).

Mesmo se tratando de um espaço doméstico onde atividades


cotidianas próprias desse ambiente se desenrolam, é preciso, porém,
torná-lo “apto” para as manifestações do sagrado. Essa preparação no ca-
timbó, começa com a “implantação da mina”, ritual que concede à casa a
força mágico-religiosa de que precisa para receber os espíritos ancestrais.
No centro do salão, lugar onde ocorrem os toques, é feita uma abertura
com aproximadamente um metro e meio de profundidade. Nesta, são
depositados diferentes elementos e símbolos previamente designados
pelo mestre desencarnado. São sementes de jurema e de outros vegetais,
fios de conta, crucifixos, punhais, fumo, cachaça, gotas sangue e outros
fundamentos que representam a “ciência” do chefe espiritual do terreiro.
Todos estes objetos devem ser antes, devidamente consagrados ao mes-
tre-protetor do barracão, que na maioria dos casos, é também a entidade
que atua “incorporada” no sacerdote — denominado de “mestre de frente”.
A cerimônia é em parte, secreta. Na Tenda Espírita Oxalá Ololu-
fam — Reino de Oxum, em Extremoz-RN, acompanhamos apenas alguns

110
Diversidade Religiosa & História

trechos do ritual, visualizamos o buraco, mas não o que foi posto lá dentro.
Neste momento fomos convidados a nos retirar. Cada terreiro tem sua
própria ritualidade e as orientações sobre o que deve ser depositado na
“mina” são sempre reveladas em particular ao sacerdote. As informações
supradescritas sobre o que estaria no interior da mina do terreiro supra-
citado, foram relatadas por Gedeilson Gomes, babá gibonã da casa e o
responsável pela vedação da “mina” (figura 1).

Figura 1 – Vedação da Mina.


Fonte: Tenda Espírita Oxalá Ololufam – Reino de Oxum. Extremoz-RN. Acervo do autor.

Há ainda outras representações espaciais importantes na compo-


sição dos terreiros de jurema. Os assentamentos — comuns também nas
umbandas e candomblés, simbolizam um “ponto fixo” no qual repousa o
poder mágico das entidades espirituais. Queiroz explica que,

o assentamento de cada entidade traz peculiaridades, iden-


tificando-as e fazendo-as reconhecidas como pertencentes
a uma categoria espiritual específica: os mestres possuem
um tronco de Jurema em seu assento; o arco e flecha estão
presentes num assento de Caboclo. Os assentamentos dos
exus possuem elementos que lhes são associados, como:
tridentes, objetos geralmente coloridos de vermelho e preto,
imagens onde se pode reconhecer uma semelhança visual

111
Diversidade Religiosa & História

com as representações pictográficas atribuídas ao diabo


cristão (QUEIROZ, 2013, p. 123)

No catimbó os assentamentos são chamados de “otá”. Trata-se


de um objeto usado para “fixar” a energia da entidade ou do orixá. Sua
representação mais comum, é um tronco, que pode ser de angico, aroeira,
jurema ou outra árvore determinada pelo mestre espiritual. Na base deste,
existe quase sempre um alguidar de barro cheio de mel, cachaça ou outra
bebida que o mestre encantado aprecie (ver figura 2).

Figura 2 – Assentamentos dos mestres, Zé da Virada (tronco maior) e Zé Bebinho


(tronco menor).
Fonte: Tenda Espírita Oxalá Ololufam – Reino de Oxum. Extremoz-RN. Acervo do autor.

Também é possível ver seixos, montículos de sal e estruturas de


concreto. Os médiuns podem ornamentar os assentos de suas entidades,
desde que sigam as orientações expressas do sacerdote e também do es-
pírito que estará ali representado. Onde se assenta um mestre ou mestra
espiritual, deposita-se também os adereços que compõem seu figurino.
Junto aos troncos ficam dependuradas as guias e outros símbolos próprios
da entidade. Não raro, vê-se também alguns presentes, como perfumes

112
Diversidade Religiosa & História

e bebidas que os mestres espirituais recebem dos devotos como forma


de agradecimento. Vários tipos de trabalhos podem ser feitos nos (e por
meio dos) assentamentos: amarrações de amor ou separações, limpezas
energéticas, mandingas em prol de dinheiro etc.
Todas as entidades possuem um assentamento. Os exus, pom-
bagiras e alguns mestres “esquerdeiros”9 estão firmados na “tronqueira”,
espaço ornamentado com tridentes, velas pretas e vermelhas, taças e
cigarros, chapéus e os colares de conta. Geralmente as tronqueiras estão
localizadas fora do terreiro, mais próximas da entrada da casa, pois uma
das funções desses espíritos é o despacho de energias consideradas
negativas. Os assentamentos são elos que conectam o mundo material
ao sobrenatural. Por meio destes, os mestres desencarnados podem se
manifestar e até mesmo interferir na vida dos homens. O complexo mundo
encantado dos mestres e mestras espirituais é representado diante dos
nossos olhos por intermédio de estruturas relativamente simples.

Pejis e congás

São denominações diferentes para os altares na jurema. Nestes,


estão dispostas as representações imagéticas dos orixás, caboclos e mes-
tres. Próximos as imagens veem-se outros objetos litúrgicos, como as “prin-
cesas” — taças com água que simbolizam a cidade encantada do mestre
ou mestra; as velas, sempre acesas, são uma referência à luz e à sabedoria
dos espíritos desencarnados. O peji ocupa lugar de destaque nos terreiros,
mas podem estar também arranjados em outros compartimentos da casa.
Qualquer um que deseje se aproximar e interagir de alguma forma com as
energias assentadas ali, deve seguir certas coreografias que são próprias
de cada casa.

Quando o adepto chega ao terreiro, primeiro faz uma sauda-


ção aos exus, em frente ao seu quarto. Depois segue para o
peji, ajoelha-se, estende a mão até o solo, faz um leve toque

9 São mestres(as) que podem se manifestar como exus ou pombagiras. Alguns dos representantes dessa
linha são: Mestre Zinho e Mestre Zé do Atrapalho e as Mestras Leonor, Aninha do Ajiló e Joana Pé de Chita.

113
Diversidade Religiosa & História

com os dedos no chão, na porta do quarto onde está locali-


zado o peji ou diretamente sobre este quando encontra-se no
salão, e em seguida, leva os dedos para a testa e vários pontos
da cabeça. Esta saudação é feita primeiro no quarto dos orixás
e repetida no quarto da “jurema”. Terminada a saudação, o
adepto vai tomar a bênção ao seu pai ou mãe e cumprimenta
o chefe da casa e demais pessoas (ASSUNÇÃO, 2006, p. 155).

Todo esse repertório de gestos que é reproduzido desde a entrada


do terreiro, expressa o respeito ao poder mágico-religioso que cada uma
das entidades espirituais possui. Assim como os assentamentos citados
anteriormente, os pejis também são um espaço de conexão com os mes-
tres, caboclos e orixás.
A hierarquia que os adeptos acreditam existir no plano espiritual é tra-
duzida por meio da disposição que cada imagem ocupa no altar (ver figura 3).

Figura 3 – Peji.
Fonte: Terreiro de Umbanda Preto-Velho. Ouro Branco-RN. Acervo do autor.

Na imagem, vê-se o peji do Terreiro de Umbanda Preto-Velho, em


Ouro Branco-RN. Os santos católicos e os orixás, estão separados das re-
presentações dos mestres da jurema. Se os orixás simbolizam a pureza e a
força da natureza, os mestres e mestras, por sua vez, estão mais próximos
de nós, expressam ainda muitas das sentimentalidades humanas, logo se

114
Diversidade Religiosa & História

encaixam em uma “categoria intermediária” (NEGRÃO, 1996, p. 339). Na


parte superior do altar encontra-se uma escultura de Jesus Cristo, figura
comparada a Oxalá durante o processo de hibridação religiosa afro-brasi-
leira. Logo abaixo, São Jorge representando Ogum, orixá “dono da coroa”,
isto é, o orixá que rege a cabeça do médium Thadeu. No mesmo patamar,
encontram-se Santana/Nanã, Cosme e Damião/Ibeji, São Lázaro/Omulu.
Do outro lado vê-se uma estátua da Santa Aparecida, uma telha decorada
com a Senhora de Fátima, dividindo espaço com uma Iemanjá. Na parte
mais abaixo está a mestria da jurema, da esquerda para a direita: o boia-
deiro Zé do Laço; Mestre Cibamba; Mestre Zé Pelintra (as três entidades
“atuam” em Thadeu), e dois Padres Cíceros que de acordo com o juremeiro
Thadeu Moreira, “vem como Mestre na jurema”.10 Discretamente sentado
à base do peji, está o erê Joãozinho, entidade criança que também se
manifesta no médium.
No segundo bloco observa-se mais imagens de santos: São Gerô-
nimo; São Tadeu; uma representação da Virgem Maria com o menino Je-
sus; duas Santas Bárbaras; e uma imagem budista, representando a “linha
do Oriente”. No terceiro bloco estão os espíritos dos caboclos, falangeiros
do orixá Oxóssi, representado ali por São Sebastião. No quarto bloco, está
“a linha dos pretos-velhos”, iniciando com São Benedito, seguido de quatro
pretos e pretas-velhas: Mãe Benedita, Pai João da Caridade, Mãe Maria e
Pai Cambinda de Angola, principal entidade “recebida” pelo médium.
Não existe um modelo predeterminado de como compor um peji.
Os pais e mães de santo possuem autonomia para configurar seus templos.
Neste processo, a condição econômica dos adeptos pode influenciar na
caracterização dos pejis, dos assentamentos, como também na estrutura
física do templo — o que de certa forma produz inúmeras possibilidades
de composições cênicas.

10 MOREIRA, Thadeu. Entrevista realizada em 31 de março de 2016, em Ouro Branco-RN.

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Diversidade Religiosa & História

O espaço-corpo

Dentro desse universo religioso tão plural constituído por diferen-


tes espacialidades elaboradas para sediar as experiências com o sagrado,
o corpo humano é uma das categorias espaciais mais importantes. Assim
como o terreiro (barracão, tenda ou ilê), “o corpo é um templo em menor
escala”, como afirmou Richard Sennett (2003). Um espaço construído a
partir de investimentos simbólicos e materiais que tem como principal
função mediar o contato entre o mundo dos homens e o mundo místico no
qual vivem os mestres, mestras, reis, encantados, caboclos, pretos-velhos
e outros espíritos desencarnados.
Nas religiões onde o transe de possessão acontece, o corpo atua
como um “sacrário” sendo ocupado temporariamente pelos ancestrais.
Mas primeiro, precisa ser cuidadosamente preparado para tal finalidade. No
catimbó este processo está organizado em algumas etapas. A primeira é
a reclusão no quarto do orixá ou do mestre. Deitado sob uma esteira de
palha bem simples, forrada com ervas sagradas indicadas pelo mestre
espiritual, permanecerá ali entre sete ou vinte e um dias, a depender da
tradição seguida pelo terreiro. Enquanto durar o “preceito”, o iniciado precisa
se abster de sexo, de certos alimentos e da companhia dos outros membros
da casa. O segundo momento consiste em uma série de banhos feitos com
ervas e raízes, chamados de o Mieró ou Amaci. O objetivo é purificar o corpo
deixando-o limpo para receber as energias das entidades. Outra etapa
fundamental é o bori, ritual que pode ser traduzido como “dar de comer à
cabeça”. O iniciado tem sua cabeça (ou coroa) raspada e o ejé — primeiro
jato de sangue do animal sacrificado é derramado sobre sua fronte.
Os mestres espirituais elegem discípulos entre os encarnados e
os marcam com o seu sinal: a semente de jurema (ou o pó da mesma, o
atim) é implantada no corpo do médium por meio de um ritual conhecido
como “abrir cura”. São pequenas incisões feitas geralmente nas costas,
peitoral, panturrilhas, pescoço, braços e calcanhares. A semente é símbolo
do compromisso para com os espíritos. Mais tarde, quando o receptor da
semente “cufar”, isto é, desencarnar, a semente poderá germinar reinician-
do todo o ciclo e perpetuando a sabedoria daquele mestre.

116
Diversidade Religiosa & História

A mestria juremeira fala: aconselha, adverte, critica, previne. Aceitar


a mediunidade significa ceder o corpo inteiro para ser tomado por poderes
místico-espirituais. Representando o mestre, o médium tem seu corpo pa-
ramentado com vestes e insígnias que remetem a identidade do seu mestre
espiritual. Na cabeça: chapéus ou lenços; no pescoço, colares de conta
— as guias. Nas mãos: cigarros, punhais, taças, champanhe, cachaça ou
cerveja; elementos simples que manipulados por estas entidades, tornam-
-se instrumentos poderosíssimos e imprescindíveis para a concretização
dos trabalhos mágico-religiosos.
O momento da possessão é performático: o indivíduo, tomado pelo
espírito, agita-se como se estivesse preparando o espaço corpóreo para
que a entidade venha habitá-lo por alguns momentos. Este processo pode
ser demorado e interrompido várias vezes até se efetivar. “Incorporado”,
postura e voz são alteradas e o médium assume uma “nova identidade”.
Giram e dançam com a firmeza dos caboclos; pulam e correm com a ener-
gia dos espíritos infantis; caminham de forma lenta e compassada quando
“incorporam” os pretos e pretas-velhas, ou aparentam estar ébrios, como
alguns exus. Percorrendo o salão, os mestres e mestras riem, conversam,
bebem, orientam, fazem amigos, estabelecem laços de compadrio e ami-
zade e oferecem seus serviços “mágicos” aos presentes.
O desenvolvimento mediúnico pressupõe uma relação de ambi-
valência, pois o espírito necessita dos recursos da corporeidade para que
ele possa desempenhar mais eficazmente sua função no terreiro: distribuir
passes, quebrar mandingas, ou fazer amarrações; e o médium, por sua vez,
também se beneficia dos serviços mágicos que o seu guia pode lhe ofere-
cer, como a proteção espiritual e a restauração da saúde, por exemplo. Se
existe um trabalho de preparação do corpo durante toda a vida mediúnica,
é interessante pensar que existe uma doutrinação da entidade espiritual,
pois esta, precisa conhecer e respeitar as limitações físicas do seu “cavalo”.
O catimbó-jurema, é um sistema onde o corpo é estimulado pela
sonoridade. Acredita-se que o som dos atabaques e os pontos cantados
são capazes trazer os mestres e mestras ao terreiro. A música ritual é subs-
tancial à performance corporal e indispensável na promoção do estado de
transe. Gilbert Rouget, em sua obra La musique et le Transe, afirma que a

117
Diversidade Religiosa & História

possessão “está sempre ligada a uma superestimulação sensorial mais ou


menos marcada por barulhos, músicas e agitação” (ROUGET, 1980, p. 35).
Essas coreografias se inscrevem de maneira subjetivada em cada indiví-
duo, pois a experiência do transe é pessoal. No entanto, todo o repertório
gestual esculpido no corpo do médium, é resultado de investimentos
mnemônicos internalizados e vivenciados individual e coletivamente.
O corpo-hierofânico na jurema externa uma atividade psicológica
e materializa aquilo que se concebe primeiramente no imaginário. Alguns
dos espíritos encantados da jurema cultuados como energias elementais às
vezes, sem formas físicas bem definidas, ganham contornos notadamente
inspirados no corpo dos médiuns. Estas imagens cumprem uma função
pedagógica figurando nos altares sagrados dos terreiros. A corporalidade
no catimbó, constitui-se como uma das mais eficientes “linguagens” capa-
zes de reencenar aspectos míticos do complexo cosmo juremeiro.

Considerações finais

As intenções desta pesquisa tiveram um caráter colaborativo no


sentido de ampliar as possibilidades de leitura sobre o catimbó e suas
sensibilidades. Reiteramos a importância do estudo das manifestações
religiosas afro-brasileiras como objeto de interesse da história e como
uma ferramenta útil na compreensão do homem e das relações que este
constrói com o sagrado.

Referências

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120
A JUDICIALIZAÇÃO DO ESPIRITISMO
NA PRIMEIRA REPÚBLICA

Adriana Gomes1

Resumo
Discutiremos a receptividade do Código Penal de 1890, legislado por Baptista Pe-
reira, com destaque para o Artigo 157, que criminalizou o espiritismo. Pelas fontes
compreendemos a criação das leis penais e o limitado reconhecimento dos pares.
O legislador defendeu seu trabalho sob a chancela do Instituto da Ordem dos
Advogados e nas Notas Históricas. Reiterou a necessidade de o espiritismo estar
na ilegalidade por se tratar de um “crime indígena”.
Palavras-Chave: João Baptista Pereira. História do Direito. Crime Indígena. Artigo
157. Judicialização do Espiritismo.

Abstract:
We will discuss the receptivity of the Penal Code of 1890, legislated by Baptista
Pereira, with emphasis on Article 157, which criminalized spiritism. From the sources
we understand the creation of criminal laws and the limited recognition of peers.
The legislator defended his work under the seal of the Institute of the Bar Associa-
tion and in the Historical Notes. He reiterated the need for spiritualism to be illegal
because it is an “indigenous crime”.
Keywords: João Baptista Pereira. History of Law. Indian Crime. Article 157. Judiciali-
zation of Spiritism.

1 Pós-doutora em História Social (UFRJ), Doutora em História (UERJ), Professora do PPGH da Universo e
da Seeduc/RJ.

121
Diversidade Religiosa & História

Introdução

Em 1890 foi legislado por João Baptista Pereira um novo código


penal para o Brasil a fim de substituir o Código Criminal de 1830, que
perdurou ao longo de todo Império. Entre as novas leis penais criadas, o
Artigo 1572 foi considerado um dos mais polêmicos da recente república
brasileira, isso porque cerceou a liberdade religiosa e de pensamento de
cidadãos espíritas. O dispositivo penal foi inserido no Livro III referente aos
crimes contra a Tranquilidade Pública em seu Capítulo III sobre os Crimes
contra a Saúde Pública.
Por meio da análise de fontes históricas, discutiremos como foi
a substituição do Código Criminal de 1830 pelo Código Penal de 1890
legislado por João Baptista Pereira. A nulidade de diálogo na ocasião da
promulgação das leis penais com o Poder Legislativo e no meio Jurídico
do país, e a consequente ausência de reconhecimento entre os pares. As
tentativas de substituição do Código Penal de 1890, cuja leitura em rela-
ção à prática do espiritismo pelos magistrados brasileiros foi diferenciada
do legislador e as suas intervenções contrárias à substituição das penas
elaboradas com a reafirmação da necessidade de as práticas espíritas
permanecerem como transgressão às leis punitivas.

2 Art. 157 – Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias, para desper-
tar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e
subjugar a credulidade pública:
Penas – de prisão celular de um a seis meses, e multa de 100$000 a 500$000.
Parágrafo 1º Se, por influência, ou por consequência de qualquer destes meios, resultar ao paciente priva-
ção ou alteração, temporária ou permanente, das faculdades psíquicas.
Penas – de prisão celular por um ano a seis anos, e multa de 200$000 a 500$000.
Parágrafo 2º Em igual pena, e mais na privação de exercício da profissão por tempo igual ao da condenação,
incorrerá o médico que diretamente praticar qualquer dos atos referidos, ou assumir a responsabilidades
deles (COLEÇÃO DE LEIS DO BRASIL, 1890).

122
Diversidade Religiosa & História

A substituição do Código Criminal de 1830 pelo Código


Penal de 1890

A substituição do Código Criminal de 1830 começou a ser debatida


no cenário político brasileiro após a abolição da escravatura em discussões
legislativas incrementadas pelo Deputado Joaquim Nabuco (1849-1910),
que em 4 de outubro de 1888 propôs a substituição das leis penais sob a ar-
gumentação de que havia a necessidade de serem suprimidas as menções
aos escravos e as penalidades relacionadas à insubordinação e à ordem
social estabelecida. Afinal, não haveria mais razão para a existência de refe-
rências à escravidão, quando a relação de trabalho no país havia se tornado
livre desde a promulgação da lei 3353 de 13 de maio de 1888. Além disso,
o deputado pernambucano evidenciou outra motivação para a criação de
uma nova norma penal, “a necessidade de incluir-se no código disposições
avulsas contidas em várias leis” (ARAÚJO, 1910, p. 121-122), que necessitariam
de regulamentação mais incisivas por meio de medidas repressivas que
estivessem integradas em código com o propósito de assegurar a ordem
pública, além do aprimoramento de prescrições já existentes.
Os deputados aprovaram as justificativas de Nabuco e um novo
código penal começou a ser elaborado pelo professor e deputado pernam-
bucano João Vieira de Araújo (1844-1823), que apresentou um anteprojeto
em 12 de julho de 1889 com a intenção de substituir o Código Criminal de
1830 (CANTON FILHO, 2012; SONTAG, 2014; ARAÚJO, 1910).
Em suas considerações, a fim de adquirir reconhecimento e acei-
tabilidade de seu anteprojeto, Vieira de Araújo empenhou-se em constatar
que o “regime excepcional imposto [...] [pelo] Direito Criminal fere mais pro-
fundamente os sentimentos comuns de justiça e de humanidade”. Além
disso, o jurista ressaltou que uma “lei viva não deve permanecer partes
mortas, que representam como triste lembrança os resíduos de uma ins-
tituição condenada que já desapareceu” (ARAÚJO, 1910, p. 2), em menção
direta ao regime de escravidão.
Para Vieira de Araújo, por seu texto ter as “modificações [...] ne-
cessárias” para o país, o anteprojeto atenderia às urgências do “governo
do rei”, visto que deferia as demandas da sociedade por contemplar as

123
Diversidade Religiosa & História

“modificações que entender necessárias” (ARAÚJO, 1910, p. 3) para o or-


denamento penal de forma a responder às exigências da nova estrutura
social do Brasil.
Mas, para ser implementado pelo governo imperial, o anteprojeto
teria que ser apresentado a uma comissão de pareceristas que apresen-
tariam as suas considerações sobre a legislação criada. A comissão de
pareceristas foi formada por Cândido José Maria de Oliveira (1845-1919),
Antônio José Rodrigues Torres Neto (1840-1904), Visconde de Assis Mar-
tins (1839-1903) — presidente da comissão — e pelo Conselheiro João
Baptista Pereira (1835-1899) — futuro legislador do primeiro Código Penal
Republicano (ARAÚJO, 1910).
No preâmbulo do anteprojeto entregue para análise dos parece-
ristas em julho de 1889, o professor da Faculdade de Direito do Recife evi-
denciou a inclusão de numerosos regulamentos administrativos instituídos
como lei após a vigência do Código Criminal de 1830. Esses regulamentos
haviam sido criados a partir das demandas e necessidades da sociedade
para a sua organização e ordenação (ARAÚJO, 1910).
Entretanto, mesmo com a exigência da incorporação de todos os
regulamentos, Vieira de Araújo refutou uma série deles por colocar em
xeque a legalidade e pelas polêmicas que provocariam nos tribunais de
justiça. A proposta do professor de Direito foi criar leis que imperassem, por
isso furtou-se em criar dispositivos penais que poderiam se “questionar na
execução, com prejuízo da autoridade e eficácia” da legislação. A intenção
seria prover um código penal que não tornasse a “jurisprudência caótica”
(ARAÚJO, 1910, p. 4-5).
A rejeição por determinados regulamentos foi motivada pela cau-
tela em evitar imbróglios na elaboração das sentenças em que juízes se
deparariam com questões polêmicas a serem interpretadas e julgadas pela
insustentabilidade que regulamentos que, ao serem confrontados com o
ordenamento jurídico do país, acabariam em deferimento (ARAÚJO, 1910).
Nessa linha, mesmo não fazendo qualquer referência aos re-
gulamentos considerados ineficazes nos tribunais de justiça, podemos

124
Diversidade Religiosa & História

presumir que o Decreto nº 9554 de 3 de fevereiro de 18863, que em seu


capítulo IV dedicou-se em estipular normas para o exercício da medicina,
da farmácia, da obstetrícia e da arte dentária, foi interpretado como um
problema, pois Vieira de Araújo o desconsiderou em seu anteprojeto de
Código Penal.
Acreditamos que o Decreto de 1886 não foi incorporado ao texto
penal por sua ineficácia em impedir o exercício ilegal da medicina pelos
não habilitados academicamente, assim como não inibiu a prescrição e o
aviamento de remédios de qualquer natureza4 por curandeiros e espíritas
curadores. Punir os que exerciam a medicina ilegalmente não era uma
tarefa fácil de ser cumprida, mesmo o regulamento tendo a sua escrita
clara sobre quem poderia exercer a arte de curar no país — os médicos
habilitados academicamente. O Decreto foi um daqueles imbróglios
que recaíam nas mãos dos juízes que pouco podiam fazer nos tribunais
(GOMES, 2017).
A nossa hipótese é que João Vieira de Araújo considerou o Decreto
nº 9554 inoperante quando ia a juízo. E realmente era. Não se tratava de não
querer regulamentar o monopólio do exercício da medicina e tampouco
considerar os problemas relacionados à saúde pública sem importância,
era a dificuldade de ter uma separação respeitável entre o exercício da
medicina e a liberdade religiosa e de consciência dos cidadãos brasileiros.
A refutação de Vieira de Araújo à legislação relacionada à saúde
pública, ao exercício ilegal da medicina e, por conseguinte, a imposição
de limites aos espíritas e aos curandeiros de todas as ordens não passou
despercebida pela comissão de pareceristas. Ela considerou a justificativa
do professor de Direito sem propósito, pois excluir no “corpo do Direito”
determinados crimes por não terem repreensões nos tribunais deixaria a
sociedade brasileira “ameaçada da vagabundagem que cresce todos os
dias nas cidades e no campo”, e todos os brasileiros se tornariam reféns

3 O Decreto nº 9.554, de 3 de fevereiro de 1886 reorganizou o serviço sanitário Império. Ele foi assinado
pelo Barão de Mamoré (1825-1870), Senador do Império e Ministro de Estado dos Negócios do Império.
4 As curas realizadas por curandeiros iam da “curandagem” à feitiçaria e pelos espíritas iam da homeopatia
e passes realizados por meio de intervenção mediúnica (WEBER, 1999; GOMES, 2017).

125
Diversidade Religiosa & História

das “ciladas de boa fé” pela legislação penal do país permitir a exploração
da “confiança alheia e credulidade pública” (ARAÚJO, 1910, 129-130).
A comissão compreendeu que o país necessitava de um código
penal que atendesse aos “reclames sociais” em favor “da família” e ignorar
uma série de regulamentos, inclusive o decreto que regulou o serviço
sanitário do Império, não podia acontecer. A sociedade brasileira precisava
ser considerada uma “civilização adiantada”, e para que isso acontecesse
deveria ser mais repressiva, mais previdente e mais aperfeiçoada” (ARAÚ-
JO, 1910, 129-130).
Com a ideia de que, para o país ser considerado “civilizado”, deveria
ter uma legislação mais repressiva e austera, o anteprojeto de Vieira de
Araújo foi rejeitado e a elaboração do novo código penal do Brasil coube a
um dos membros da comissão de pareceristas, já mencionado, João Bap-
tista Pereira. O trabalho do jurisconsulto não foi contínuo. Em meio a sua
escrita o país mudou de regime político e as atividades foram interrompi-
das. Mas o Ministro da Justiça do Governo Provisório, Manoel de Campos
Sales (1845-1913), renovou o compromisso para que o trabalho de reforma
das leis penais do país continuasse (CANTON FILHO, 2012; BATISTA, 2011).
A comissão verificadora do projeto de Baptista Pereira foi nomeada
e presidida pelo próprio Ministro da Justiça Campos Sales, que contou com
a colaboração de José Júlio de Albuquerque Barros — Barão de Sobral
(1841-1893) —, Francisco de Paula Belfort Duarte (1841-1913), Antônio Luiz
dos Santos Werneck (1858-1914) e o próprio autor, João Baptista Pereira,
que ao realizar esclarecimentos sobre o seu projeto mencionou que o
mesmo foi aprovado “na sua quase totalidade, pois muito poucas foram as
alterações que sofreu, sem falar nas emendas de mera redação” (PEREIRA,
1898, p. 266).
O projeto foi apresentado ao governo no dia 20 de setembro de
1890, e os trabalhos da comissão iniciaram no dia 29 de setembro. Em 11 de
outubro de 1890 foi instituído o Decreto nº 847, que regulamentou a nova
legislação penal do Brasil. A Comissão Verificadora fez todo o trabalho de
análise, verificação e revisão em apenas 12 dias, a contar da data da primei-
ra reunião. Certamente, não houve tempo hábil para ocorrerem discussões
profícuas entre os membros e, tampouco, o estabelecimento de diálogo

126
Diversidade Religiosa & História

com outros espaços do Direito e no parlamento brasileiro. Na realidade,


não houve qualquer interesse para que isso acontecesse (CANTON FILHO,
2012; SONTAG, 2014; BATISTA, 2011).
Tanto que, como ressaltou Hédio da Silva Júnior (1999), a situação
instaurada no país nesse recorte temporal foi singular. Houve empenho
do governo em decidir rapidamente as novas leis penais do país sem
que fosse estabelecida uma Constituição para a recente república. Os
representantes do novo regime instaurado voltaram as suas atenções na
obediência da ordem para que, depois, o legislativo se ocupasse com que
ordem estaria estabelecida na Carta Magna brasileira.
E o governo tinha clareza que o ordenamento jurídico do país po-
deria ficar comprometido com a normatização das leis penais antes das leis
constitucionais. No texto que apresentou o Código Penal de 1890, Campos
Sales justificou a especificidade da atitude pela necessidade de se reco-
nhecer as autoridades políticas emergentes no Brasil em decorrência da
mudança de regime. Em seu entendimento, era indispensável o estabeleci-
mento de novas intervenções penais para assegurar a legalidade do próprio
governo, mesmo que pudesse causar estranheza e gerar dissonâncias de
legitimidades preceituais (COLEÇÃO DE LEIS DO BRASIL, 1891).
A permanência de João Baptista Pereira na escrita do novo código
penal, a possibilidade de comprometimento no ordenamento jurídico
brasileiro sob a justificativa da necessidade de se assegurar a ordem e, de
alguma maneira, proteger o novo regime, seria peça de uma engrenagem
para a inalterabilidade da organização social.
Revela-nos, seletividade do que deveria ou não ser mudado na ins-
tauração da República. A preocupação em preparar um sistema punitivo a fim
de preservar e regular ainda mais a disciplina para manter sob controle uma
sociedade tensionada pela desigualdade e diversidade cultural que poderia,
em algum momento, postular tentativas de “ajustes”, cujas consequências
seriam imprevisíveis, nos reporta as considerações do historiador José Murilo
de Carvalho (2009, p. 83). Ele considerou a cidadania nesse recorte temporal
como “cidadania negativa”, pois não houve qualquer espaço para o povo no
sistema político brasileiro, tanto no Império quanto na República.

127
Diversidade Religiosa & História

Nesse sentido, compreendemos como chave de leitura para o


entendimento desse momento histórico, a emergência das culturas políti-
cas autoritárias presentes ao longo da História do Brasil. Os autoritarismos
podem ser identificados ao longo de nossa trajetória por intermédio de
atitudes, de construções e de usos de determinados conceitos que, mes-
mo em diferentes intertextualidades, as suas inferências reaparecem ou
acentuam-se com adequação à prática política do momento.
A apreensão que fazemos de culturas políticas vai ao encontro
às percepções de Serge Berstein (1998). As suas considerações nos
possibilitaram compreender a análise de um processo histórico dispondo
das “culturas políticas” como arcabouço teórico. As suas percepções nos
possibilitaram analisar a identidade dos indivíduos de uma sociedade por
intermédio de elementos que os mantém em estreita relação uns com
os outros, que pode ser identificado em discursos codificados, argumen-
tações, palavras-chave, fórmulas repetitivas, ritos e símbolos, gestos,
representação visual e comportamentos que revelam significância na
organização política do Estado.
Mesmo o fenômeno sendo individualizado, as culturas políticas
tornam-se um fenômeno coletivo produzido por grupos inteiros de uma
mesma geração que vivenciaram e partilharam experiências análogas. No
que lhe concerne, as gerações subsequentes também compartilharão os
mesmos comportamentos associativos diante de novos acontecimentos.
Assim, podemos pensar em culturas políticas como uma visão comum
que, por meio de uma leitura partilhada do passado e de uma perspectiva
similar de futuro, nos impressiona em comportamentos e ações na esfera
política (BERSTEIN, 1998).
Sendo assim, podemos sustentar que as pressuposições sobre
os desdobramentos da política brasileira que resultaram na instituição
do Código Penal de 1890 foi uma das contingências para a emersão das
culturas políticas autoritárias do Brasil. Essa afirmação se conferiu pelas
ações, pelas representações e pelos comportamentos das autoridades
administrativas do país. As dinâmicas autoritárias se irrompem em nossa
História desde o período colonial e decorrem pelos anos com maior ou
menor significância de acordo com o processo histórico, como o ocorrido

128
Diversidade Religiosa & História

no Brasil na ocasião da mudança de regime e ao longo dos anos na Pri-


meira República.

“O peior de todos os códigos conhecidos”: a receptividade do


Código Penal de 1890

A ausência de discussões na implantação das novas leis penais do


país promoveu a falta de receptividade entre os juízes. Os motivos para as
discordâncias foram inúmeros e diferenciados, mas o que ficou evidencia-
do nos debates foi que o Código Penal de 1890 estava aquém do Código
Criminal de 1830.
Segundo Sontag (2014), o arcabouço teórico instrumentalizado
para se interpretar e analisar as leis penais não fizeram qualquer diferença
na rejeição à nova legislação. Tanto juristas que seguiam a Classicismo
Jurídico quanto aqueles que se apropriavam das proposições da Nova
Escola Penal/Escola Positiva do Direito, consideraram o Código Criminal
de 1830, mesmo ultrapassado pelo tempo, mais prestigioso que o código
republicano de 1890.
Entre as inúmeras ponderações contrárias à legislação de Baptista
Pereira, destacamos as considerações dos bacharéis em Direito João da
Costa Lima Drummond (1865-1914) e João Pereira de Monteiro (1845-1904).
Lima Drummond expôs em inúmeros discursos a necessidade de serem rea-
lizadas reformas no Código Penal de 1890 para que houvesse receptividade
junto à sociedade e nos próprios meios jurídicos. A convicção do magistrado
ficou registrada em um de seus impressos no qual destacou “tamanha mag-
nitude” ao jurista que se debruçasse em elaborar outra legislação penal e sua
ação seria entendida como um “ato de patriotismo” ao Brasil. A depreciação
ao trabalho do legislador penal não era piedosa (DRUMMOND, 1898).
Já o jurista João Pereira de Monteiro mostrou o seu descontenta-
mento com a legislação penal quando expressou as suas apreensões ao
meio jurídico mediante a significativa frase — “o peior de todos os códigos
conhecidos” —, em sua avaliação sem rodeios. João Monteiro impactou

129
Diversidade Religiosa & História

com a proposição em meio a um discurso que nos mostrou, mais uma vez, a
desconsideração ao código penal do país (NORONHA, 2009).
Entre as principais insatisfações uníssonas pelos magistrados do
oitocentos foi a rapidez da escrita do Código Penal. Mas essa análise foi
relativizada pelo professor de Direito Nilo Batista (2011). Em seu entendi-
mento, tempo da escrita não foi problema, porque ela foi revisionista tendo
como escopo o Código Criminal de 1830 com o acréscimo dos regulamen-
tos independentes. Outro ponto que também precisa ser considerado é a
produção da legislação ter dado início ainda no regime monárquico.
O revés foi a ausência de diálogo na construção do texto pela ra-
pidez de sua implementação, cuja responsabilidade não pode ser lançada
totalmente em Baptista Pereira. Havia uma Comissão Verificadora que
aprovou um projeto importantíssimo para o ordenamento jurídico do país
no brevíssimo intervalo de tempo (BATISTA, 2011; PEREIRA, 1898).
E essa rapidez teve um preço: a falta de reciprocidade.
Ao longo da Primeira República, foram inúmeras as modificações
no texto original com a criação de leis extravagantes que buscaram cerce-
ar para mais as liberdades individuais daqueles considerados indesejáveis
ao regime por transgredirem a tranquilidade pública. Assim, se a situação
já estava complicada para os espíritas, conseguiu ficar pior na virada do
século, pois tanto eles quanto os anarquistas, as prostitutas, os capoeiras,
os cáftens, os imigrantes inoportunos, entre outros considerados transtor-
nos para a sociedade, tiveram as suas liberdades ainda mais cerceadas
(BATISTA, 2011, p. 442).
A situação dos espíritas, especificamente, ficou mais delicada com
a criação do Regulamento Sanitário de 1904 — Decreto n 5.156 de 8 de
março de 1904. O Artigo 2515 deliberou uma norma específica aos serviços
sanitários a cargo da união para a fiscalização do exercício dos serviços

5 Art. 251. Os médicos, farmacêuticos, dentistas e parteiras que cometerem repetidos erros de ofício serão
privados do exercício da profissão, por um a seis meses, além das penalidades em que puderem incidirem
no art. 297 do código penal.
Parágrafo único: Os que praticarem o espiritismo, a magia, ou anunciarem a cura de moléstias incuráveis,
incorrerão nas penas do art. 157 do código penal, além da privação do exercício da profissão por tempo igual
ao da condenação, se forem médicos, farmacêuticos, dentistas ou parteiras (COLEÇÂO DE LEIS DO BRASIL).

130
Diversidade Religiosa & História

médicos e de farmácia. O dispositivo reafirmou a punibilidade àqueles que


exercessem a arte de curar por meio de práticas do espiritismo.
Apesar das críticas à ineficácia da legislação criminal republicana
em comparação ao Código Criminal de 1830, precisamos evidenciar que
muitos expedientes considerados eficazes no código do império foram os
mesmos deliberados no código da república, mas a crítica só verificava
ausência de eficiência ao código de Baptista Pereira. Nilo Batista (2011) atri-
buiu à aversão e o desprestígio das leis penais ao insucesso no combate
aos problemas relacionados à ordem social e à tranquilidade pública.
A contrariedade ao Código Penal de 1890 não foi somente por
razões técnicas, foi muito mais pela necessidade do aumento da repres-
são que, asseguradamente, oportunizaram a criação de inúmeras leis
extravagantes que pretendiam a todo custo impor a exclusão de cidadãos
para a obtenção da suposta tranquilidade pública. Eram as nossas culturas
políticas autoritárias em processo de ebulição, pois se compreendia que
as leis criadas na legislação penal foram aquém da necessidade para
disciplinar a sociedade brasileira.

As investidas para a substituição da legislação penal e as


interpretações sobre a prática do espiritismo

Tivemos duas investidas concretas para a substituição do Códi-


go Penal de 1890. A primeira tentativa foi com a elaboração de um novo
projeto de João Vieira de Araújo nos anos finais do oitocentos. Já a outra
tentativa foi com o trabalho de Galdino Siqueira (1872-1961) no início do
século XX.
Em 1893, somente três anos após a implementação das novas leis
penais, João Vieira de Araújo apresentou um novo projeto para substituir
o Código Penal de 1890, que ficou totalmente revisto em 1897 (ARAÚJO,
2004a; BATISTA, 2011; SIQUEIRA, 1913).
O projeto passou por inúmeras apreciações críticas, inclusive de
professores das Faculdades de Direito de Recife e São Paulo. Ao longo
das intervenções os profissionais da área do Direito realizaram uma série

131
Diversidade Religiosa & História

de considerações que foram incorporadas ao texto final. Após anos de


discussões e releituras, o projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados
em 1897 (ARAÚJO, 2004a; BATISTA, 2011; SIQUEIRA, 1913).
Após a aprovação na Câmara dos Deputados, o projeto foi para o
Senado onde também passaria por processos de discussões e seguiria
para votação. Mas as discussões não ocorreram e muito menos a votação.
A proposta de substituição do Código Penal de 1890 não teve continuidade
no Senado (ARAÚJO, 2004a; BATISTA, 2011; SIQUEIRA, 1913).
João Vieira de Araújo foi um dos muitos juristas que, ao construir
críticas ao código de Baptista Pereira, enalteceu o Código Criminal de
1830, que ele próprio havia criado um anteprojeto de substituição que fora
desconsiderado, como constatamos. O professor pernambucano afirmava
que “todos sabem que o código de 1830 é em seu contexto o projeto do
deputado Bernardo Pereira de Vasconcellos, que como temos dito e repe-
tido, com intuição genial, consagrou nele ideias hoje reputadas oportunas
pela escola moderna na ciência criminal” ou ainda na afirmação o código
de 1830 seria excelente pelas “preciosas originalidades” que continha
(ARAÚJO, 2004b; ARAÚJO, 2004a).
As justificativas de Vieira de Araújo pela falta de reconhecimento
ao Código Penal de 1890 e a apresentação de um anteprojeto iam ao
encontro de seus pares juristas: melhorá-lo a fim de preencher as lacunas
deixadas por Baptista Pereira. Para isso, ele considerou essencial aprovei-
tar o que os códigos anteriores poderiam oferecer de forma a contribuir
para a construção de um novo código penal (ARAÚJO, 1896, p. 8).
Segundo Vieira de Araújo (1895, p. 43), o seu projeto obteve reco-
nhecimento no campo jurídico brasileiro, assim como no meio internacio-
nal. Uma série de revistas estrangeiras como Revista Penale e Archivos di
Psichiatria, Scienge Penali ed Antropologia Criminale divulgaram as suas
proposições de substituição do código republicano. Mas em autocrítica, o
jurista tinha percepção que o seu projeto estaria longe da “reforma radical”
que as leis penais deveriam sofrer, apesar de já existirem significativos
avanços em relação ao Código Criminal de 1830, ao código de Baptista
Pereira e de seu próprio anteprojeto de 1889.

132
Diversidade Religiosa & História

Nas discussões do projeto, ocorreram debates em relação à


criminalização do espiritismo e João Vieira de Araújo nos evidenciou inter-
pretações diferenciadas as de Baptista Pereira. A primeira crítica sub-rep-
ticiamente pontuada referiu-se à organização do Código Penal de 1890,
sobretudo na inclusão de um capítulo voltado exclusivamente à saúde
pública que, em seu entendimento, pareceu-se mais com uma compilação
de regulamentos do que a normatização de leis penais (ARAÚJO, 2004a).
E indo ao encontro de suas considerações na ocasião da apresen-
tação do anteprojeto de 1889, ele continuou a defender a ideia de que
a proposta de legislação penal deveria ter um texto que estabelecesse
meios para que “todas as dúvidas que possam embaraçar o juiz diante das
invenções da rabulice” pudessem ser refreadas. Por isso, o seu projeto se
debruçaria em dedicar-se às “figuras essenciais” e deixaria de lado temáti-
cas que acreditasse dispensáveis de estarem em um código de leis penais
como o Artigo 157 (ARAÚJO, 2004a).
Especificamente em consideração ao Artigo 157, o jurista compre-
endeu ser inadmissível que uma legislação penal, no apagar das luzes do
século XIX, pudesse fazer qualquer referência à feitiçaria e afins e, mais
agravante, apresentar dispositivos penais diretamente relacionados aos
feiticeiros. No entendimento de Vieira de Araújo, a atitude de João Baptista
Pereira teria provocado uma série de considerações imprecisas ao promo-
ver uma ordem de penalidades que não conseguiriam ter receptividade
nos tribunais de justiça. Por isso, em “homenagem a nossa cultura jurídica”,
ele iria eliminar as leis penais que não se sustentassem juridicamente
(ARAÚJO, 2004a).
Mas Vieira de Araújo pontuou que as suas divergências ao pensa-
mento de Baptista Pereira foram os relacionados à feitiçaria e outras situ-
ações afins. Quanto ao exercício da medicina, as suas ideias coadunariam
com as dele. Tanto que mesmo se apropriando da lei constitucional que
garantiria a liberdade profissional6 e que isso poderia trazer discussões na

6 A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, a lei maior do país, consentia que as profissões pudessem
ser exercidas por qualquer pessoa. Por meio de seu Artigo 72 parágrafo 24, era concedida a garantia de livre
exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial sem a exigência de capacitação por meio de
Graduação. Porém, o Código Penal de 1890 em seus Artigos 156 e 158 tornou crime o exercício da medicina

133
Diversidade Religiosa & História

justiça e impossibilitar a receptividade de seu entendimento nos meios


jurídicos, o exercício da medicina deveria caber somente aos médicos
habilitados na academia (ARAÚJO, 2004a).
Já em relação ao Artigo 157, as considerações de Vieira de Araújo
foram fundamentadas por meio das apreciações de quatro juízes que
se defrontaram com processos criminais de pessoas enquadradas no
dispositivo penal e apresentaram experiência em lidar com os imbróglios
judiciários, a saber: Gabriel Ferreira (1848-1905), Subprocurador no Distrito
Federal; Miranda Ribeiro (1854-1907); Lima Drummond (1865-1914); e Fran-
cisco José Viveiros de Castro (1862-1906) (ARAÚJO, 2004a).
Gabriel Ferreira compreendia que “a simples prática do espiritismo
não constitui crime” por se tratar de uma manifestação da liberdade de
consciência garantida pela Constituição do país, portanto o Artigo 157 seria
improcedente. Já os juízes Miranda Ribeiro e Lima Drummond entendiam
que a ambição e a ganância de algumas pessoas poderiam levá-las a
enganar outras pela boa-fé. Nessas situações, como em qualquer outra
natureza, as ações deveriam ser consideradas falsificações. Em suas in-
terpretações, seriam como a ocorrência de usurpação de um nome ou de
uma firma social com o propósito de iludir o comprador. Pelo Código Penal
de 1890, o criminoso nessa situação deveria ser enquadrado nos Artigos
353 e 355, que eram relacionados à falsificação e ao estelionato, e não
por intermédio de um artigo na qual a referência seria de uma confissão
religiosa (ARAÚJO, 2004a).
De Viveiros de Castro, o jurista apropriou-se de suas considera-
ções quanto ao entendimento que a prática do espiritismo poderia ser
interpretada como um crime contra a personalidade e a propriedade em
situações específicas. As transgressões contra a personalidade ocorreriam
em situações nas quais o “chefe da seita espírita” promovesse algum tipo
de dano à saúde ou que pudesse induzir as pessoas à morte mediante
práticas de ritos provenientes de cultos sob o pretexto de serem religiosos
(ARAÚJO, 2004a, p. 198-199).

e a prescrição de medicamentos de qualquer ordem por não habilitados em medicina (COLEÇÃO DE LEIS
DO BRASIL, 1891).

134
Diversidade Religiosa & História

Quanto ao crime contra a propriedade, foi sustentada a ideia de


que o delito aconteceria quando ocorressem fraudes e encenações que
pudessem promover a esperança ou temor nas pessoas por meio do
recurso de algum suposto “acontecimento quimérico”. Dessa maneira, a
prática do espiritismo seria somente um pretexto para os delituosos prati-
carem o crime com evidências de estelionato (ARAÚJO, 2004a).
Sobre a questão de o exercício da feitiçaria ser crime, Viveiros de
Castro também inspirou Vieira de Araújo em suas percepções. O juiz compre-
endia que ser “feiticeiro” não poderia ser considerado uma ocupação profis-
sional. Nessa interpretação, não poderia subsistir qualquer argumentação que
tentasse assegurar o exercício da função de “feiticeiro” como um ofício. E, sem
essa argumentação, não poderia existir qualquer tipo de acautelamento sob
a legitimação na Constituição dos Estados Unidos do Brasil, que assegurava
o livre exercício profissional, uma vez que “feiticeiro” não se encontraria em
qualquer relação de profissões praticáveis (ARAÚJO, 2004a).
Com essas considerações, Vieira de Araújo sedimentou a sua
interpretação de que o Artigo 157 não poderia continuar a existir porque
a prática do espiritismo por si mesma não poderia ser considerada crime.
Mas não negligenciou a hipótese que alguns indivíduos mal-intenciona-
dos poderiam se sustentar em práticas ditas espíritas para promoverem
dissimulações que poderiam enganar e ludibriar outros indivíduos. Nesses
casos específicos, os praticantes desse simulado espiritismo poderiam e
deveriam ser julgados para terem as punições meritórias pelos delitos co-
metidos contra a personalidade e/ou contra a propriedade, enquadrados
nos artigos penais coerentes aos crimes cometidos (ARAÚJO, 2004a).
Da mesma maneira que Vieira de Araújo propôs um projeto de
substituição ao Código Penal de 1890, o paulista Galdino Siqueira (1872-
1961) também submeteu um anteprojeto7 de revisão à norma penal re-
publicana em 1911 com a consubstanciação ocorrida em 1913 por meio
da autorização do Ministro da Justiça Esmeraldino Bandeira (1865-1928).
O procedimento nos mostrou o inquestionável incômodo gerado pela
legislação penal por sua insuficiente receptividade (BATISTA, 2011).

7 O anteprojeto de Galdino Siqueira sequer foi analisado pelo Poder Legislativo (BATISTA, 2011).

135
Diversidade Religiosa & História

Sobre o controvertido Artigo 157, Galdino Siqueira também se de-


bruçou em evidenciar as suas percepções a respeito. O legislador paulista
compreendeu em seu projeto que fraudes e embustes ocorridos por meio
de subterfúgios de práxis espíritas deveriam ser enquadrados nos crimes
de estelionato, de tal maneira que seus comentários a respeito dos Artigos
156, 157 e 158 do Código Penal de 1890 foram analisados no capítulo dos
crimes de falsificação (SIQUEIRA, 1913).
Para Galdino Siqueira, aquele que se autointitulasse curandeiro e
cometesse dissimulação e iludisse a boa-fé de outrem, responderia pelos
atos delituosos que praticasse, como qualquer outro profissional que co-
metesse irregularidades e ludibriasse as pessoas (SIQUEIRA, 1913).
Quanto especificamente ao Artigo 157, o legislador do anteprojeto
considerou-o uma “figura delituosa” nas leis penais do país, uma vez que
seria incapaz de “subsistir em face da Constituição Republicana”. Para ele
o espiritismo seria uma religião com práticas específicas que estariam no
“ramo das ciências ocultas cultivadas em todos os países” e, por isso, de-
veria ter liberdade para ser praticado, pois o próprio direito estaria assegu-
rado constitucionalmente no Artigo 728 e em seus respectivos parágrafos
(SIQUEIRA, 1913, p. 125).
Quanto aos “feiticeiros”, Galdino Siqueira foi ao encontro às consi-
derações de Vieira de Araújo e considerou inaceitável que o Código Penal
Brasileiro se dispusesse de um dispositivo dedicado a punir a “feitiçaria e
seus processos” (SIQUEIRA, 1913, p. 125).
Nas análises que realizamos entre os magistrados, ficou evidente
que não havia reciprocidade em relação ao Artigo 157 e ao Código Penal de
1890 como um todo. Mas precisamos levar em consideração que mesmo
sem ter reconhecimento de seus pares, a legislação penal de Baptista Pe-
reira, com a inclusão do Artigo 157, vigorou por toda a Primeira República.
Os debates, os questionamentos, os posicionamentos e as apresentações
de projetos não foram suficientes para que ele fosse substituído.

8 O Artigo 72 da Constituição de 1891 em seu parágrafo 28 estabeleceu que nenhum cidadão do país
poderia ter os seus direitos civis e políticos privados por motivo de crença ou por funções religiosas que
viessem exercer (COLEÇÃO DE LEIS DO PAÍS).

136
Diversidade Religiosa & História

E João Baptista Pereira se pronunciou aos seus pares

Apenas em 1898 que João Baptista Pereira se pronunciou sobre


as suas apropriações e suas motivações para a criação do Código Penal
Republicano. Podemos considerar tardio o tempo de réplica, tendo em
vista que as críticas de seus pares eram sucessivas e austeras. Além disso,
tornam-se mais extemporâneas quando comparamos a réplica proferida
pelo jurisconsulto às manifestações adversas promovidas pela Federação
Espírita Brasileira diante da promulgação do Artigo 157, que mereceram as
suas apreciações em menos de dois meses da instituição da norma penal,
por intermédio de publicações realizadas no Jornal do Commercio.9
Baptista Pereira, sob a chancela do Instituto da Ordem dos Advoga-
dos Brasileiros, atuou como relator do Parecer sobre o Projecto de Reforma
do Código Penal, em que uma comissão formada por ele, João da Costa
Lima Drummond, José Cândido de Albuquerque Mello Mattos (1865-1924)
e João Martins de Carvalho Mourão (1872-1951) deram as suas apreciações
ao projeto de substituição do código penal proposto por João Vieira de
Araújo (INSTITUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS BRASILEIROS, 1897).
A comissão do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros
questionou a legitimidade de reforma da legislação penal de 1890, cujo
escopo não atenderia às necessidades sociais de maneira tão diferenciada
quanto ao código vigente. Foi afirmado que o projeto de reforma de Vieira
de Araújo não resistiria a um confrontamento direto com o Código de
Baptista Pereira que, por certo, “não teria de que vexar-se no confronto”
(INSTITUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS BRASILEIROS, 1897, p. 25).
No parecer, foi afirmado que não bastava criticar as leis penais por
conter equívocos de doutrina e imperfeições na redação, era necessário
conseguir escrever uma norma mais assertiva. Ademais, para a comissão,
ninguém poderia se “considerar autorizado a condenar em absoluto um
código penal [...] mesmo entre os que fazem a glória no nosso tempo, se

9 Sobre as discussões do legislador João Baptista Pereira e a Federação Espírita Brasileira ler: GOMES,
Adriana. O enfrentamento pelas penas dos tinteiros: a dissensão nos impressos cariocas sobre a liberdade
religiosa dos espíritas. Revista do Arquivo Geral do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 14, p. 263-296, 2018.

137
Diversidade Religiosa & História

conhece que tenha escapado a essa lei da contingência humana” (INSTI-


TUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS BRASILEIROS, 1897, p. 25).
A comissão teceu a opinião de que se o “código penal vigente não
é perfeito, os projetos apresentados em substituição dele são imperfeitís-
simos”. Por isso, o projeto de Vieira de Araújo não poderia ser convertido
em lei pelas inabilidades em atender a diversas demandas que foram
pontuadas. Entre elas, aquelas que não deferiam quanto às necessidades
sociais como a imprevidência nas demandas da saúde pública do Brasil
por condescender às práticas do espiritismo no país (INSTITUTO DA OR-
DEM DOS ADVOGADOS BRASILEIROS, 1897).
Quanto especificamente ao Artigo 157, a comissão do Instituto da
Ordem dos Advogados Brasileiros compreendeu como afronta Vieira de
Araújo dar mais importância à repreensão ao exercício do “ofício de ca-
poeira” do que ao exercício do ofício de “curandeiro”, uma vez que os dois
casos seriam “crimes indígenas”, isto é, transgressões inatas do território
brasileiro que decorreriam da incivilidade, “atraso” e da indisciplina social,
que tanto eram refutadas pelo regime republicano (INSTITUTO DA ORDEM
DOS ADVOGADOS BRASILEIROS, 1897).
Assim sendo, por serem “dois casos de endemia” na sociedade,
as transgressões precisariam dispor de atenção em equidade, como fora
realizado no código de 1890. Eram crimes que revelariam a “idiossincrasia
moral do nosso meio”, portanto deveriam ser coibidos vigorosamente, sem
a possibilidade de subterfúgios para a não punibilidade (INSTITUTO DA
ORDEM DOS ADVOGADOS BRASILEIROS, 1897).
Para a comissão, o espiritismo deveria continuar a ser crime sem
qualquer circunstância para precedentes. Além disso, não seria somente
continuar a ser uma transgressão penal, ainda o concedeu uma nova clas-
sificação: crime indígena junto à capoeira. No entendimento da comissão,
o espiritismo era associado ao “atraso”, à incivilidade, ao retrocesso, à in-
disciplina, às nossas contradições como sociedade, além de uma doença
de difícil erradicação. Por isso, o considerou uma endemia de nosso meio
social que para ser erradicado somente a repressão com a prisão carcerá-
ria poderia produzir algum resultado.

138
Diversidade Religiosa & História

No relatório da Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros (1897,


p. 8-9), foi evidenciada a necessidade de se neutralizar com impetuosidade
a atuação dos curandeiros que, por meio de “máscaras”, especulariam a
credulidade das pessoas e fomentariam superstições sob o pretexto de pro-
mover a cura mediante prescrições terapêuticas “vindos de além-túmulo”.
Além disso, a relação do mundo visível com o invisível por meio da
mediunidade ainda favoreceria uma série de dinâmicas para impressionar
os indivíduos que acreditariam em supostas comunicações oriundas do
mundo invisível, sejam elas por meio de adivinhações, pela cartomancia,
pelo uso de talismãs, em que os “feiticeiros” se empenhariam em fascinar e
em subjugar a credulidade pública, proporcionando à sociedade a pertur-
bação de seu “sossego e a paz das famílias e ameaçando a saúde e a vida
da população” (INSTITUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS BRAZILEIROS,
1897, p. 8-9).
Com essas argumentações, a comissão do Instituto da Ordem dos
Advogados Brasileiros refutou a ideia de suprimir o Artigo 157 e considerou
inconcebível que o projeto de Vieira de Araújo não tenha considerado as
necessidades de proteção à sociedade ao tentar descriminalizar o espi-
ritismo. A atitude do magistrado abriria precedentes para que o “crime
indígena” pudesse ocorrer sem a punibilidade que lhe era necessária para
a imposição de autoridade pelo poder público (INSTITUTO DA ORDEM
DOS ADVOGADOS BRAZILEIROS, 1897).
Entretanto, analisamos que a interpretação de Vieira de Araújo não
era permissiva à prática do espiritismo fraudulento, assim como a qual-
quer outra forma de estelionato. A condescendência era pela liberdade
religiosa e de consciência, da mesma forma como compreendeu Galdino
Siqueira anos depois. O professor de Direito não reconhecia a necessidade
de se ocupar com a punibilidade de “feiticeiros” em um código penal no
limiar do século XX. As análises da comissão do Instituto da Ordem dos
Advogados Brasileiros foram muito mais defensivas ao Código Penal de
1890, do que realmente a efetuação de um parecer imparcial, e o Artigo
157 ficou no meio das disputas interpretativas e ainda ganhou o destaque
ao ser caracterizado como um “crime indígena”.

139
Diversidade Religiosa & História

Certamente, a presença do próprio legislador na comissão não


poderia tornar a apreciação totalmente isenta de intervenções para a
causa própria. Outra situação que nos pode assegurar a ausência de
imparcialidade foi o assentimento de Lima Drummond às pressuposições
sobre o “crime indígena” e a total intolerância a prática do espiritismo. O
próprio jurista havia sido mencionado por Vieira de Araújo como uma de
suas referências a fim de elaborar considerações sobre o Artigo 157 do
código penal.
Como constatamos, Lima Drummond compreendia que era
procedente a existência de embustes por meio de práxis espíritas. Mas
estes deveriam ser analisados judicialmente como uma configuração de
estelionato como qualquer outra ação que iludisse, dissimulasse e afron-
tasse a boa-fé da pessoa. A atuação do juiz nos tribunais foi diferenciada
do parecer do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros.
Nessa ordem, como os membros da comissão eram conhecedo-
res das inúmeras críticas ao Código Penal de 1890, diga-se de passagem,
algumas elaboradas pelo próprio Drummond, ficou definido que as
lacunas da legislação penal aconteceram pelas circunstâncias históricas
do Governo Provisório em 1890 que concentrou poderes em suas mãos,
e a aprovação das leis penais de forma sumária foi constatação disso. A
comissão interpretou que o governo simplificou o processo para que seus
propósitos de austeridade pudessem “chegar mais depressa ao seu fim”
(INSTITUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS BRAZILEIROS, 1897, p. 3-4).
Por essas razões, não foram sistematizadas discussões parlamen-
tares sobre as leis penais e, muito menos, ocorreu um diálogo entre os
profissionais do campo jurídico que atuariam em Faculdades, Institutos
e até cientistas de direito criminal que tivessem influência nas áreas de
conhecimento da antropologia, medicina legal e psiquiatria (INSTITUTO
DA ORDEM DOS ADVOGADOS BRAZILEIROS, 1897, p. 3-4).
Como as críticas ao Código Penal de 1890 foram numerosas, e
Baptista Pereira ainda não havia se pronunciado diretamente aos seus
pares sobre os seus propósitos e métodos empregados na construção
da legislação penal, o jurisconsulto decidiu esclarecer as indagações e
revelar as suas motivações, os seus pressupostos e finalidades ao redigir

140
Diversidade Religiosa & História

o código penal da república por meio de um artigo publicado em revista


da área do Direito.
O impresso escolhido por Baptista Pereira para publicar suas Notas
Históricas sobre a codificação penal do país foi a Revista Jurisprudência e a
publicação ocorreu em 1898.
Como Baptista Pereira demorou certo tempo para se pronunciar
sobre o código penal, considerou oportuno justificar a sua postergada
atitude sob a alegação de que não existia tempo algum estipulado para
ocorrência de explicações aos juristas e à sociedade. Por isso, somente o
fez quando compreendeu necessidade e por considerar a circunstância
oportuna e conveniente, tendo em vista que na ocasião estava em dis-
cussão no meio jurídico a reforma do Código Penal por meio do projeto
impetrado por Vieira de Araújo (PEREIRA, 1898).
O codificador se manifestou com a intenção de “confrontar o que
temos com as novidades com que se nos quer felicitar” (PEREIRA, 1898, p.
376) as revisões propostas no projeto que estava em discussão em dife-
rentes espaços jurídicos do país, porque a principal motivação para ele se
pronunciar seria tentar salvaguardar o seu Código Penal que estava sob a
ameaça de substituição por meio do projeto impetrado por Vieira de Araújo.
Baptista Pereira iniciou as suas considerações investindo críticas
implacáveis ao Código Criminal de 1830, que era apreciado por muitos
de seus pares como uma legislação penal mais razoável do que o código
republicano. Entretanto, ele considerou o apreço ao código do Império
“porque o que tínhamos antes era péssimo, era simplesmente detestável”
(PEREIRA, 1898, p. 3). Não havia como comparar o Código Criminal com as
leis oriundas de Portugal, isto é, qualquer legislação criada em terras bra-
sileiras para que os brasileiros se submetessem seria muito mais aprazível
do que normas estipuladas pela metrópole portuguesa.
Em relação à rapidez com que o seu projeto foi aprovado, Baptista
Pereira comentou que a proposta inicial para a autoria do código penal,
ainda no Império, era que na finalização de seus trabalhos haveria a apre-
sentação do código ao Conselho de Estado que realizaria as “observações,
alterações e emendas, que fossem indicadas e sugeridas pelos censores”.
Porém, com a mudança de regime político, as análises realizadas pelos

141
Diversidade Religiosa & História

especialistas foram suprimidas em decorrência de questões inerentes ao


contexto histórico.
Nesse decurso, as alterações realizadas foram mínimas e o código
foi “adotado na sua quase totalidade [...] com emendas de mera redação”
(PEREIRA, 1898, p. 177) sem que houvesse desdobramento de discussões
entre os juristas.
Entre os supostos avanços de seu Código Penal, Baptista Pereira
destacou as relacionadas a proteção à saúde pública, na qual o Artigo
157 estava inserido. Mesmo decorrido oito anos da promulgação das leis
penais e com sucessivas ponderações contrárias à criação do dispositivo
penal, ele considerava-o um avanço na legislação do país (PEREIRA, 1898).
Baptista Pereira no pronunciamento aos seus pares, seja sob a
chancela do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros ou na publica-
ção de artigo em revista jurídica, em momento algum fez autocrítica sobre
o seu trabalho no Código Penal. Pelo contrário, só procurou se justificar
quanto a possíveis equívocos provenientes de problemas políticos da
centralização do Governo Provisório, que acarretaram a falta de diálogo
com diferentes esferas.
O legislador também desconsiderou qualquer interpretação dife-
rente da sua em relação ao Artigo 157, tampouco se preocupou em verifi-
car como ele estava sendo operacionalizado nos tribunais de justiça após
quase uma década de implementação das leis punitivas. Pelo contrário,
Baptista Pereira reafirmou a necessidade da existência do dispositivo que
punia com prisão aqueles que praticassem o espiritismo.
Com o acréscimo em uma nova observância do crime ao conferir a
ele uma perspectiva que compreendeu como depreciativa, ao afirmar que
praticar o espiritismo seria cometer um “crime indígena” com o agravante
de ter um caráter disfuncional. Isto porque ao associar as práxis espíritas a
“uma endemia”, o considerou uma enfermidade com significativa incidên-
cia e de difícil erradicação.
Esta leitura permitiu que Baptista Pereira concebesse que permitir
a liberdade de praticar espiritismo seria o mesmo que permitir que as “inci-
vilidades”, as contradições, as indisciplinas e as mazelas sociais caracterís-
ticas do território brasileiro se projetassem ainda mais e se intensificassem.

142
Diversidade Religiosa & História

Considerações Finais

A emersão das culturas políticas autoritárias brasileiras fizera-se


presente em diversos momentos da Primeira República e não foi diferente
na construção do Código Penal de 1890. Desde a sua elaboração até as
descontinuidades nas tentativas de substituições tivemos a oportunidade
de constatar as atitudes autoritárias, sejam em ações austeras, na ausência
de diálogo ou mesmo nos silêncios ensurdecedores para que a ordem
social estabelecida fosse preservada.
A necessidade de se estabelecer regras e punições aos brasileiros
que de alguma maneira não se enquadrariam às diretrizes do engendra-
mento da ordem pública que se pretendia para o país possibilitou uma
série de descontentamentos. As insatisfações iam desde aos atingidos
pelos cerceamentos de liberdades, como foi o caso dos espíritas, até os
profissionais do Direito. Os últimos foram excluídos do processo de organi-
zação das leis penais e tiveram que passar pelas experiências de trabalhar
em meio a implicações e ausências de reciprocidades por problemas na
disposição hierárquica das leis que levaram a uma série de discussões
sobre o ordenamento jurídico brasileiro.
Destacamos que em relação ao espiritismo havia discussões em
refutação à sua criminalização por renomados homens do Direito do pe-
ríodo, cujas interpretações tivemos a oportunidade de pontuar ao longo
do trabalho e algumas jurisprudências foram criadas. Mas a existência
do Artigo 157 persistiu no Código Penal. Isso não foi nada agradável aos
seguidores do espiritismo, principalmente porque os cerceamentos se
intensificaram com o Regulamento Sanitário de 1904.
Entendemos que o dispositivo penal 157 foi refutado por muitos ju-
ristas, mas não podemos deixar de ressaltar que uma parcela considerável
dos magistrados não era contra o Código Penal de 1890 por suas investidas
em reduzir liberdades. Pelo contrário, diversos magistrados consideraram
a legislação de João Baptista Pereira vulnerável, débil e fraca por não aten-
der as demandas repressivas, que entendiam como necessárias, para que
o país saísse da situação considerada de desordem pública. Havia uma
aspiração por leis penais mais repressoras.

143
Diversidade Religiosa & História

Assim, um país que construía a sua República com o olhar míope


para frente, dando as costas para a sua própria composição cultural, social
e racial, poderia se pressupor que não caberia à legitimação de práticas
religiosas que reportassem aquilo que se tentava contrapor.
Embora o espiritismo tivesse a sua origem na França, e muitos de
seus adeptos fossem intelectuais, profissionais liberais e indivíduos influentes
na política e na sociedade brasileira, a “relação entre os mundos” por meio da
mediunidade, reportava os seus procedimentos às religiões de matriz africa-
na com todos os costumes, as religiosidades e as tradições culturais que não
faziam parte de um projeto de país republicano que se tencionava construir.
Por essas razões, Baptista Pereira considerou a prática do espiri-
tismo um “crime indígena” junto à capoeira. Um crime moldado, em sua
apreciação, nas imperfeições das terras brasileiras com todos as suas es-
pecificidades, problemas e “atrasos” que seriam fundamentados por nossa
composição social e histórica. A disciplinarização pela religião começaria
pela punição com a exclusão física do espaço social.

Referências

ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, Criminologistas e Juristas: saber jurídico e Nova Escola
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145
MEDIUNIDADE E ESPIRITISMO
EM FIN-DE-SIÈCLE ITALIANO:
O OLHAR DE CESARE LOMBROSO (1909)

Gabriela Harumi Araki10

Resumo
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre as condições históricas que pos-
sibilitaram a produção da obra Ricerche sui fenomeni ipnotici e spiritici, de Cesare
Lombroso, publicada em 1909. Como aporte teórico-metodológico do estudo da
história das religiões, a discussão realizada por Serafim (2013) viabilizou a proposta
deste trabalho com base em Michel de Certeau (1982) e Bruno Latour (2004) para
pensar a figura intelectual de Lombroso.
Palavras-chave: Espiritismo. Mediunidade. Cesare Lombroso. Itália. Século XIX.

Abstract
This paper has the objective to reflect upon the historical conditions that surround-
ed the work Ricerche sui fenomeni ipnotici e spiritici, by Cesare Lombroso, published
in 1909. As methodological ground in the history of the religions, the work of Serafim
(2013) alongside Certeau (1982) and Bruno Latour (2004) provides tools to think the
intellectual persona of Lombroso.
Keywords: Spiritism. Mediumship. Cesare Lombroso. Italy. 19th Century.

10 Gabriela Harumi Araki é mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Es-


tadual de Maringá (UEM), membro do Grupo de Pesquisa em História das Crenças e das Ideias Religiosas
(HCIR/UEM/DHI/CNPq). Sob orientação da Profa. Dra. Vanda Fortuna Serafim (PPH/DHI/HCIR/UEM)
desenvolve a pesquisa intitulada “O discurso médico-científico de Cesare Lombroso na Itália do século XIX”.

146
Diversidade Religiosa & História

Introdução

Com o intuito de colaborar com o campo de estudos em História


das Religiões, este trabalho visa refletir sobre as condições históricas que
possibilitaram a produção intelectual sobre o Espiritismo e os fenômenos
de mediunidade reunidos por Cesare Lombroso, na obra Ricerche sui
fenomeni ipnotici e spiritici11, publicada pela Unione Tipografico — Editrice
Torinese, em 1909 na cidade de Turim, Itália. A obra consta com vinte e
cinco capítulos divididos em duas partes, a primeira, voltou-se para a
aplicação da hipnose em pacientes histéricos, transposição dos sentidos,
transmissão de pensamento e premonições nos sonhos. E, na segunda
parte da obra, Lombroso atentou-se para a descrição fisiológica e ana-
tômica da médium italiana Eusapia Palladino, agrupou aspectos e carac-
terísticas de diferentes culturas, em diferentes momentos e localidades,
que compartilhavam da crença na sobrevivência da alma, aparições de
fantasmas e casas assombradas, duplos, fotografias e estudos do campo
das pesquisas psíquicas.
Cesare Lombroso foi um médico italiano, nasceu em 6 de novem-
bro de 1835, em Nápoles, na Itália, e faleceu em 19 de outubro de 1909,
cerca de onze dias antes da publicação de Ricerche sui fenomeni ipnotici
e spiritici, o que torna esta fonte histórica uma obra póstuma. Frequentou
a faculdade de medicina da Universidade de Pavia (1852-1854), da Uni-
versidade de Pádua (1854-1855) e, posteriormente, na Universidade de
Viena (1855-1857), Áustria, em que concluiu a especialização psiquiátrica
(FERRERO, 2009; LOMBROSO, 1943; WOLFGANG, 1961).

Lombroso propôs que havia criminosos nascidos e apresenta-


vam sinais físicos e mentais hereditários particulares de dege-
neração e atavismo, alguns dos quais incluíam uma estrutura
óssea facial comum, bem como sensibilidade tátil e pressão
arterial anormais. Além disso, apresentavam anormalidades
nos ossos, especialmente no crânio, e canhotos, que ele con-
siderava marcas claras de atavismo e degeneração. Lombroso

11 A obra foi traduzida para a língua portuguesa em 1943, pela iniciativa da Federação Espírita Brasileira
(FEB), sob o título Hipnotismo e Mediunidade. A tradução foi realizada por Almerindo Martins de Castro e,
neste momento, a FEB estava sob a direção de Antônio Wantuil de Freitas.

147
Diversidade Religiosa & História

começou a discutir isso em L’Uomo Delinquente (1876) — que


passou por várias edições revisadas durante o resto do século
— bem como em outras publicações (por exemplo, Lombroso,
1887a, 1891a). Seu trabalho foi considerado um representante
da teoria da degeneração do final do século XIX (Pick, 1989).
Mulheres e gênios não escaparam do esquema de Lombroso
(ALVARADO; BIONDI, 2017, p. 228).12

Neste sentido, com base nas categorias explicativas do atavismo e


da degeneração Lombroso elaborou uma teoria sobre o “criminoso nato”
que atendia à leitura do determinismo darwinista e foi reunida na obra
L’uomo Delinquente, de 1876. No início de novembro de 1876, Cesare Lom-
broso iniciou suas aulas como professor da cátedra de Medicina Legal da
Universidade de Turin, Itália. Este espaço foi fundamental para a formação
da Escola Positiva de Direito Penal e Antropologia Criminal Italiana. Em 1880,
Lombroso organizou a revista Archivo di Psichiatria, Scienze Penali ed Antro-
pologia Criminale, com o auxílio de Enrico Ferri (1856-1929) e Rafael Garoffalo
(1851-1934), ambos intelectuais em formação e alunos de Lombroso.
As perspectivas dos estudos acadêmicos sobre a produção inte-
lectual de Cesare Lombroso enfatizou a construção da teoria do “criminoso
nato” e da antropologia criminal lombrosiana. Por um lado, estes trabalhos
conseguiram demonstrar e problematizar os apontamentos do médico
italiano sobre a etiologia do crime, as relações estabelecidas entre a psi-
quiatria e as ciências jurídicas no oitocentos, e o discurso bioantropológico
do corpo e do indivíduo elaborado por Lombroso. Por outro, esta tendência
se deu ao deixar de lado as publicações e o interesse do referido autor
sobre Espiritismo, fenômenos mediúnicos e pesquisas psíquicas. Nos úl-
timos anos, é possível perceber o aumento de trabalhos envolvendo as

12 No original: Lombroso proposed that there were born criminals and that they presented particular
inherited physical and mental signs of degeneration and atavism, some of which included common facial
bone structure, as well as abnormal tactile sensibility and arterial pressure. Furthermore, they showed
abnormalities in their bones, especially the skull, and left-handedness, all of which he considered to be
clear marks of atavism and degeneration. Lombroso started discussing this in L’Uomo Delinquente (1876) —
which went through several revised editions during the rest of the century — as well as in other publications
(e.g. Lombroso, 1887a, 1891a). His work was considered to be a representative of late nineteenth-century
degeneration theory (Pick, 1989). Women and geniuses did not escape Lombroso’s schema (ALVARADO;
BIONDI, 2017, p. 228).

148
Diversidade Religiosa & História

temáticas Espiritismo, pesquisas psíquicas e mediunidade no século XIX a


partir de discursos e perspectivas intelectuais13.
Este trabalho esforça-se, portanto, em situar historicamente a
obra póstuma de Cesare Lombroso (1909) e refletir sobre as principais
categorias explicativas que embasaram o autor a construir e sistematizar
um saber sobre a mediunidade e Espiritismo. A história das religiões e re-
ligiosidades é um campo consolidado no Brasil, embora não homogêneo,
“[…] os vieses interpretativos do fenômeno religioso, assim como os demais
objetos históricos, são variados e estão longe de oferecerem respostas ou
soluções definitivas” (SERAFIM, 2013, p. 11).

Um breve histórico do Espiritismo no século XIX

Durante a primeira metade do século XIX, “as ideias de comunica-


ção com os mortos, reencarnação e influência do espírito sobre a matéria
eram amplamente aceitas, ainda que não majoritárias, embalando núcle-
os platônicos, esotéricos, ecléticos e mesmeristas ou magnetizadores”
(COELHO, 2019, p. 9-10). Em contrapartida, as especializações no campo
médico e científico assumiram cada vez mais as marcas do racionalismo
iluminista. Segundo Humberto Coelho, o Espiritismo foi uma das profícuas
transformações ocorridas no século XIX. Este movimento envolveu inte-
lectuais e pesquisadores de diferentes campos do saber e nacionalidade.
Com um amplo grupo de interessados não somente na possibili-
dade de comunicação com os mortos e nos fenômenos físicos produzidos
nas sessões mediúnicas, o Espiritismo tornou-se um campo de investiga-
ção principalmente nos Estados Unidos da América, França e Inglaterra.
Nos Estados Unidos, em 1848, o vilarejo de Hydesville, Nova Iorque, atraiu
a atenção dos vizinhos e de curiosos que impressionaram-se com as ba-
tidas, ouvidos na casa da família Fox. Este evento é considerado o marco
cronológico inicial do movimento Espiritualista moderno liderado pelas

13 Vide os trabalhos de Andrea Graus (2016), Annette Mulberger (2016), Alessandra Violi (2012), Christian
Giudice (2018), Maria Teresa Brancaccio (2017) e P. J. Ystehede (2014) que convergem sobre a temática da
mediunidade, espiritualismo europeu, hipnose e pesquisas psíquicas.

149
Diversidade Religiosa & História

irmãs Leah (1814-1890), Margaret (1833-1893) e Catherine Fox (1837-1892),


que construíram suas carreiras como médiuns (WEISBERG, 2011; WAN-
TUIL, 2019). Em 8 de maio de 1852, foi criado o primeiro periódico espírita
na cidade de Nova York, o Spiritual Telegraph, a partir da iniciativa de um
comerciante, o Sr. Partridge, e do Reverendo S. B. Britain.

Foi o vanguardeiro dos novos ideiais em toda a América do


Norte, em cujas colunas os adeptos mais eminentes res-
pondiam as invectivas de artigos publicados pela imprensa
profana. Esta, na sua generalidade, ridicularizava as mesas
girantes e os Espíritos batedores, e — conforme as expressões
de Gabriel Delanne — não havia escrevinhador de jornais ou
sorumbático amanuense que não se desse por autorizado a
criticar esses alucinados que acreditavam sinceramente que
a alma do seu próximo pudesse erguer o pé de um móvel
(WANTUIL, 2019, p. 22).

Ainda em 1852, alguns professores da Universidade de Harvard


publicaram um manifesto em apoio à autenticidade das mesas girantes.
Estas, que passaram a ser utilizadas majoritariamente a partir do início
da década de 50, ao passo que eram abandonados as batidas, as mesas
girantes popularizaram-se com força maior ainda na Europa, poucos me-
ses depois. Esta transição não foi aleatória. Por meio das comunicações
obtidas pelas sessões mediúnicas que utilizavam as mesas girantes, os
Espíritos passaram a instruir os médiuns que:

[...] bastava simplesmente que se colocassem ao redor de uma


mesa, em cima da qual se poriam as mãos. Levantando um
dos seus pés, a mesa daria (enquanto se recitava o alfabeto)
uma pancada toda vez que fosse proferida a letra que servisse
ao Espírito para formular as palavras (WANTUIL, 2019, p. 20).

Os adeptos ao movimento espiritualista moderno, ou Neoespi-


ritualismmo, como pontuou Wantuill (2019), eram, portanto, indivíduos
interessados no progresso, geralmente letrados, instruídos pela ciência
e modernização da sociedade. Em Nova York, no ano de 1853, “existiam
pelo menos 40.000 espiritualistas e cerca de trezentos círculos, segundo
os dados que o poeta e jornalista norte-americno Nathaniel Parker Willis

150
Diversidade Religiosa & História

(mais tarde, convertido ao espiritualismo) registrou no Home Journal da


época” (WANTUIL, 2019, p. 237).
Na França, as sessões espíritas e mediúnicas eram também realiza-
das com a presença de um médium e as mesas girantes, as comunicações
com espíritos por meio de batidas consecutivas que correspondiam ao nú-
mero da letra do alfabeto , ao passo que atraiu seguidores e interessados,
também foram acusados de fraudes e charlatanismo. Em alguns países,
estas práticas foram advertidas pela Igreja Católica, como na Espanha em
1863 em que houve a queima de livros da autoria de Allan Kardec, e proi-
bidas em algumas regiões da Itália durante os anos anteriores ao processo
de Unificação Italiana em 1861.
Em 1857, sob o codinome de Allan Kardec, o pedagogo francês
Hippolyte León Denizard Rivail (1804-1869) publicou a primeira obra que
inaugurou a codificação espírita francesa organizada sob o título de Le Livre
des Esprits, cuja tradução para a língua portuguesa é O Livro dos Espíritos.
Publicada em Paris, na França, a obra:

[...] tem a estrutura de um catecismo composto essencialmen-


te por perguntas formuladas pelo autor aos espíritos e pelas
respostas obtidas através dos médiuns (Edelman, 2006). [...]
se tratava de uma religião laica e racional, um cristianismo e
monoteísmo adaptado aos tempos modernos (MULBERGER,
2016, p. 42, tradução nossa).14

Posteriormente foram publicados, ainda sob autoria de Kardec, O


Livro dos Médiuns (1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), O Céu
e o Inferno, (1865) e A Gênese (1868) (DOYLE, 1995). Em 1868, ocorreu a
fundação da Revue Spirite, divulgada como um journal d’études psycholo-
giques, em Paris, dirigida por Allan Kardec. Segundo Giumbelli (1997, p. 59),
“coube a Pierre Leymarie (1817-1901) assumir a direção da Revue Spirite,
sendo também ele um dos responsáveis por uma sociedade anônima
criada em 1869 para dar continuidade à divulgação do espiritismo”.

14 No original: […] tiene estructura de un catecismo compuesto esencialmente por perguntas formuladas
por el autor a los espíritus y por las respuestas obtenidas através de los médiums (Edelman, 2006). […] se
trataba de una religión laica y racional, un cristianismo y monoteísmo adaptado a los tiempos modernos
(MULBERGER, 2016, p. 42).

151
Diversidade Religiosa & História

Por sua vez, em Londres, Inglaterra, no ano de 1882, foi fundada


a Society for Psychical Research (SPR), uma das principais instituições
de estudos psicológicos e mediúnicos da Europa e que posteriormente
Cesare Lombroso integrou o grupo de pesquisadores. A sociedade reunia
nomes como Charles Richet (1850-1935), químicos e fisiologista que rece-
beu, em 1913, o Prêmio Nobel de Fisiologia; Gabriel Delanne (1857-1926),
cujo trabalho sobre mediunidade é citado por Lombroso (1909), foi um
engenheiro francês de família espírita e, em conjunto com Nicolas Camile
Flammarion (1842-1925), astrônomo francês e pesquisador do espiritismo,
representavam a continuidade das ideias de Allan Kardec na França.
Apesar dos esforços de Kardec ao diferenciar mediunidade e
sonambulismo em O Livro dos Médiuns, como destacou Giumbelli (1997),
nomes como Charles Lafontaine (1803-1892) e Jean-Martin Charcot (1825-
1893) também realizaram comparações entre tais fenômenos. Assim,

[...] diferenciar entre médiums e sonámbulos passou a ser


um imperativo dada vez maior para os espíritas. No Segundo
Congresso Espirita e Espiritualista Internacional (Paris, 1900),
o líder espírita Gabriel Delanne ressaltou a necessidade de
compreender o estudo da mediunidade levando em conta os
fatores do sonambulismo, autosugestão e desdobramento da
personalidade (MULBERGER, 2016, p. 149).

Neste sentido, a partir do Congresso de Paris, passou-se a distin-


guir os fenômenos de mediunidade e do hipnotismo. Embora a segunda
metade do século XIX tenha sido marcada pelo desenvolvimento das téc-
nicas de hipnose e pelo desenvolvimento do Espiritismo no ocidente, não
podemos deixar de mencionar que neste período também há, em grande
parte pelo discurso médico e intelectual, a criação de um estigma que
confere à médium e à experiência religiosa mediúnica, a associação com
a loucura e suas diferentes nuances de acordo com o saber psiquiátrico.
Além disso, desde a gênese do movimento espiritualista moderno inaugu-
rado pelas Irmãs Fox, já existiam questionamentos acerca da legitimidade
desses fenômenos. A acusação de charlatanismo, fraude e de que os
fenômenos reproduzidos por médiuns eram apenas truques destinados

152
Diversidade Religiosa & História

ao entretenimento daqueles que frequentavam os grandes salões onde


se realizavam as sessões espíritas (MULBERGER, 2016; GIUMBELLI, 2011).

O espiritismo e mediunidade como objetos de interesse de


Cesare Lombroso (1909)

Ao passo que os espíritas franceses e ingleses discutiam sobre


a sobrevivência da alma, o fenômeno das mesas girantes também atraia
a atenção das classes mais altas da sociedade burguesa vitoriana, assim
como dos intelectuais. Na Itália, entre os anos de 1906 e 1909, o médico
psiquiatra Cesare Lombroso, fundador da Escola Positiva de Criminologia
Italiana e considerado o fundador da disciplina de Antropologia Criminal
(GIBSON, 2014; YESTEHEDE, 2013), produziu uma obra dedicada ao estudo
da mediunidade de Eusapia Palladino (1864-1918) e à sistematização de
uma ampla pesquisa acerca das características de culturas antigas que
compartilhavam da crença nos espíritos e no mundo dos mortos, intitulada
Ricerche sui fenomeni ipnotici e spiritici. Lombroso, por sua vez, passou a
frequentar as sessões mediúnicas de Palladino (entre 1891 e 1906), e de-
dicou três capítulos de sua pesquisa à fisiologia e anatomia da médium e
aos fenômenos ocorridos durante o transe mediúnico.

Se existiu no mundo um homem, por educação científica e


quase por instinto, contrário ao Espiritismo, esse fui eu, que,
da tese: Ser toda força uma propriedade da Matéria e a Alma
emanação do cérebro —, havia feito a preocupação mais tenaz
da vida, eu, que havia zombado por muito tempo dos Espíritos
das mesinhas… e das cadeiras! (LOMBROSO, 1943, p. 69).15

Este excerto, que pelo seu significado já esclarece o posiciona-


mento tomado por Cesare Lombroso ao dedicar-se aos estudos espíri-

15 No original: Se vi fu al mondo un uomo per educacione scientífica, e per istinto quasi, contrario allo
spiritismo, quello fui io, che della tesi: essere ogni forza una proprietà della materia e l’anima una emanazione
del cervello, mi ero fatto l’occupazione più tenace della vita, io, che avevo deriso per tanti anni gli spiriti dei
tavolini… e delle sedie! (LOMBROSO, 1909, p. 3). As citações traduzidas encontram-se na obra Hipnotismo
e Mediunidade, traduzida da língua italiana por Almerindo Martins de Castro, publicada pela FEB em 1943.

153
Diversidade Religiosa & História

tas, evocou também as referências das sessões mediúnicas realizadas


durante o século XIX. Foi com estas palavras que o médico psiquiatra,
ao admitir que havia debochado dos espíritos que moviam as mesas e
cadeiras dos salões europeus, iniciou o primeiro capítulo de Ricerche sui
fenomeni ipnotici e spiritici.
Ao reconhecer que estes fenômenos e crenças marcavam a história
da cultura e de sociedades que compartilhavam da crença de comunicação
e aparição dos mortos, o médico psiquiatra organizou-os e classificou-o a
partir do método experimental da antropologia e da medicina. Vale lembrar
que o autor dedicou um capítulo para discutir brevemente sobre os estudos
acerca da lucidez e premonições nos sonhos, de Frederic Myers (1843-1901),
um dos fundadores da Society for Psychical Research. Este, em contato
com as obras de Pierre Janet e Sigmund Freud, sustentava a ideia de que as
premonições dos acessos epilépticos ou hipno-histéricos se originam nos
sonhos, ou mais especificamente, em um protótipo de inconsciente onde
algumas informações e vivencias estariam localizadas.
A obra Ricerche sui fenomeni ipnotici e spiritici, como brevemente
apontado, foi dividida em duas seções, sobre hipnose e sobre mediuni-
dade, respectivamente. Acerca da hipnose, Lombroso (1909, 1943) des-
tacou os casos de transposição de sentidos com histéricos hipnotizados,
transmissão dos sentidos, premonições de pacientes histerico-epiléticos e
durante os sonhos, os fenômenos psíquicos e físicos identificados em pa-
cientes hipnotizados, bem como a polarização e despolarização psíquica.
Utilizando-se da hipnose como via de tratamento da histeria e epilepsia, o
médico italiano apontou que

A verdade é que uma explicação absolutamente científica não


se pode dar destes fatos, os quais entram no vestíbulo daque-
le mundo que, com justiça, se deve assim a lucidez só em par-
te se pode explicar por uma espécie de sugestão, por maior
agudeza daquela instintiva consciência do próprio estado,
que faz ao moribundo recapitula a sua ida na derradeira hora
da existência. Mais ainda: melhor se nota o desenvolvimento
sucessivo dos fenômenos da própria nevrose porque, na
excitação extraordinária do êxtase sonambúlico, adquirimos
maior consciência do nosso organismo, em cujas condições, à

154
Diversidade Religiosa & História

semelhança de engrenagem dos relógios, estão inscritas em


potência, em germe, as várias sucessões mórbidas (LOMBRO-
SO, 1943, p. 74-75).16

Sobre a medicina moderna, Ana Paula Vosne Martins indica que


“nomear e classificar têm sido tarefas fundamentais da ciência moderna,
uma forma de conhecimento da Natureza e dos seres humanos cuja
história é narrada como resultado de uma revolução na forma de ver e ex-
plicar o mundo” (MARTINS, 2004, p. 21) . Assim como os corpos mortos, de
importância primordial para a medicina legal, ou medicina forense, eram
dissecados, separados, medidos, pesados, conservados, por vezes eram
armazenados em museus, arquivos, nos laboratórios médicos das grandes
universidades. Por sua vez, os corpos vivos, expressavam indícios sintomá-
ticos das patologias humanas, físicas ou mentais. Ou seja, os sintomas dos
desvios, as anormalidades psicológicas e físicas, podiam ser visualizadas
nos corpos dotados de estigmas e significados cuja origem se deu a partir
do discurso médico. A hipnose fornecia, neste sentido, uma vivissecação
do inconsciente, ao possibilitar a compreensão dos processos mentais
que originavam os transtornos nervosos (VIOLI, 2012) e explica-se, a partir
da perspectiva lombrosiana com base no fluxo sanguíneo do cérebro que
é maior em estado sonambúlico do que em vigília (LOMBROSO, 1909).
A segunda seção da obra, dedicada ao Espiritismo, consta com
dezoito capítulos voltados ao estudo e informações anatômicas da
médium Eusapia Palladino, influência dos médiuns durante o transe,
experiências fisiológicas com médiuns realizadas durante as sessões
mediúnicas, fotografias e identificação de fantasmas, casos de algumas
casas assombradas e duplos, bem como os médiuns, magos e a crença
de culturas antigas nos Espíritos e na sobrevivência da alma. Vale ressaltar

16 No original: “La verità è che una spiegazione scientifica assolutamente non può darsi di questi fatti, i quali
entrano nem vestibolo di quel mondo che giustamente debe chiamarsi ancora occulto, perchè inesplicato.
E così la lucidità solo in parte può spiegarsi con una specie di auto-suggestione, con una maggiore acutezza
di quella instintiva coscienza del próprio stato che fa fissare al moribondo l’ultima ora dela sua vita; ma vi
è qualche cosa di più; si avverte meglio lo svolgersi successivo dei fenomeni della propria nevrosi, perchè
nella eccitazione straordinaria dell’estasi sonnambolica noi acquistiamo una coscienza maggiore del nostro
organismo, nelle cui condizione, come nell’ingranaggio di un orologio, stanno inscritte, in potenza, in germe,
le varie successioni morbose” (LOMBROSO, 1909, p. 7).

155
Diversidade Religiosa & História

que Lombroso (1909) reuniu em sua narrativa diferentes culturas das quais
o autor enquadra como “primitivas”, “selvagens” ou “bárbaras” e remetem
à períodos históricos anteriores como o Baixo Império e a Idade Média.
Isto denota a leitura evolucionista da cultura realizada pelo médico italiano
e do antagonismo entre civilização e barbárie, ideias estas presentes na
cultura intelectual do século XIX.
Neste sentido, as culturas citadas pelo autor são os habitantes da
Sicília, da província de Benevento; as mulheres “Abision” na Grã-Bretanha-
os; em Portugal, na cidade de Lisboa, encontravam-se no bairro chamado
Mouraria mulheres que possuiam dons extraordinários de ler o futuro na
água; bruxos habitantes da região francesa dos Voges; Cheiks árabes que
operavam milagres; os Batas e os Nias, da região que hoje compreende
a Indonésia; peruanos habitantes da Patagônia; os adivinhos entre os
Cafres, na África; os faquires e brâmanes de segundo grau, que segundo
Lombroso (1909, 1943), a partir de uma leitura europeia, constituem os
“médiuns da Índia”; e os mongóis, chineses e japoneses, no leste asiático.
Entre os povos antigos citados, o médico italiano elencou os Hebreus, os
Gregos, os Apóstolos de Jesus Cristo, taumaturgos cristãos e a prática dos
Ordálios, também conhecidos como juízo de Deus, que segundo o autor
encontra-se “em quase todos os povos selvagens, ainda mesmo naqueles
de outra religião, a menos que não tenham fé na sobrevivência da alma
dos mortos” (LOMBROSO, 1943, p. 200)17.
Dentre as referências que embasaram o trabalho de Lombroso
(1909), a obra Storia dello Spiritismo, publicada em três volumes, em 1896,
de autoria de Cesare Baudi di Vesme (1862-1938) e L’Homme Primitif, de
Louis Figuier (1819-1894), publicada em 1870, respectivamente, são citadas
afim de corroborar com a conclusão do autor de que:

O fato de que em todos os tempos e em todos os povos


esteve sempre viva a crença em algo invisível, que sobrevive
à morte do corpo, e que, sob o influxo de condições especiais,
pode manifestar-se aos nossos sentidos, torna-nos propensos
a aceitar a hipótese espiritista.

17 No original: “La pratica dele ordalie si riscontra in quasi tutti i popoli selvaggi, e in quelli stessi che altra
religione non hanno fuorchè la fede nella sovraesistenza dele anime dei defunti” (LOMBROSO, 1909, p. 117).

156
Diversidade Religiosa & História

Que nossos mais antigos progenitores acreditavam, se não na


imortalidade da Alma, ao menos em sua existência temporária
depois da morte, — é opinião comum dos antropólogos, os
quais observam, com Figuier, que os víveres, as lâmpadas, as
armas, as moedas, os objetos de ornamento depositados, até
nas épocas pré-históricas, nas tumbas, ao lado de cadáveres,
mostram claramente a crença em uma vida futura.

E essa mesma crença nós a encontramos ainda junto de


todos os povos selvagens, mesmo entre aqueles que têm de
Deus uma ideia extremamente vaga, ou não têm de maneira
alguma (LOMBROSO, 1943, p. 379).18

Uma vez pontuado sobre as diferentes práticas religiosas e crenças


de diferentes culturas que Lombroso (1909, 1943) associou com o Espiri-
tismo, em sequência, o médico psiquiatra esboçou acerca da constituição
das entidades desencarnadas. Em “Esboço de uma biologia dos Espíri-
tos”19, o décimo quarto capítulo da segunda seção da obra aqui analisada
como fonte histórica, é possível compreender como se organiza o olhar de
Cesare Lombroso sobre os Espíritos que se manifestaram perante o médi-
co italiano e seus pares intelectuais engajados nos estudos das atividades
psíquicas dos médiuns e nas manifestações espíritas na segunda metade
do século XIX.

Os Espíritos se manifestam geralmente em forma de luzes,


quando não de mãos e ainda de imagens de pessoas, porém
rara vez completas, que parece se formam de globos lumino-
sos que se condensam sempre mais nas materializações. [...]

Crookes e Richet ressaltaram, de fato, nos fantasmas obser-


vados, a temperatura humana, os batidos do coração e das

18 No original: “Il fato che in tutti i tempi e in tutti i popoli è sempre stata viva la credenza in un qualche cosa
d’invisibile, che sopravvive alla morte del corpo, e che sotto l’influsso di speciali condizioni può manifestarsi ai
nostri sensi, ci rende proclivi ad accettare l’ipotesi spiritica. Che i nostri più antichi progenitori credessero, se
non alla immortalità dell’anima, almeno ad una sua esistenza temporânea dopo la morte, è opinione comune
degli antropologi, i quali osservano col Figuier che le vivande, le lampade, le armi, le monete, gli oggetti d’or-
namento deposti, fino dalle età preistoriche, nelle tompe, a fianco del cadavere, accennano chiaramente alla
credenza in una vita futura. E la stessa credenza noi troviamo ora presso tutti i popoli selvaggi, anche tra quelli
che hanno di Dio un’idea extremamente vaga o non ne hanno punto” (LOMBROSO, 1909, p. 273).
19 No original: “Prime linee di una biologia degli spiriti” (LOMBROSO, 1909, p. 291).

157
Diversidade Religiosa & História

artérias, os movimentos de respiração Normal e constante


ainda (Richet) a expiração de ácido carbônico. [...]

A formação do fantasma é precedida de uma névoa luminosa


sobre o solo, ou sobre a cabeça, ou sobre o ventre do mé-
dium, névoa que se vai condensando aos poucos, até tomar
forma corpórea, e, então, da proximidade do médium, ou do
gabinete mediúnico, pode passar a alguma distância deste,
a deambular no recinto, gesticular, e mais raramente falar,
enquanto o médium está no máximo letargo (LOMBROSO,
1943, p. 402-403).20

O emprego das técnicas e tecnologias médicas e laboratoriais


auxiliaram nas verificações realizadas pelos intelectuais oitocentistas. As
chapas fotográficas, o uso de materiais radioativos que no processo de
contato entre luzes e sombras imprimiram nas chapas fotográficas mãos
e faces dos Espíritos presentes durante os experimentos, a utilização de
dinamômetros para medir a força do médium antes, durante e após o tran-
se, e também da primeira versão de eletrocardiograma criado em 1887,
possibilitaram a sistematização das experiências Espíritas conforme o rigor
científico do oitocentos.

Muitas vezes, como vimos, os fantasmas impressionaram


chapas fotográficas, e até deixou ainda a impressão de
quatro dedos numa chapa envolvida em três folhas de
papel preto. E é por isso, e outros fenômenos já men-
cionados, tais a descarga de electroscópios (sic), rostos
radiantes e globos luminosos aparecidos nas sessões e
impressos depois nas chapas, e por se cobrirem sob alguns
tecidos especiais, como corpos gasosos, — é por isso
que propusemos à frente a hipótese de que a sua cons-
tituição molecular se aproxima da dos corpos radiantes.

20 No original: “Gli spiriti ci si revelano per lo più sotto forma di luci oppure di mani ed anche di immagini
di persone, raramente però complete, che sembrano formarsi da globi luminosi che si condensano sempre
più nelle materializzazioni. [...]
Crookes e Richet rilevarono, infatti, nelle fantasime esaminate la temperatura umana, i battiti del cuore e
delle arterie, i movimenti del respiro normali e constatarono anche (Richet) l’espirazione di acido carbonico. […]
La formazione delle fantasime è preceduta da una nebbia luminosa sul suolo o sul capo e sul ventre del
medio, nebbia che si va sempre più condensando, fino a prendere forma corpórea, e allora dalla vicinanza del
medio o del gabinetto medianico può passare a qualche distanza da questo ed anche a girare per la camera,
gesticolare e più raramente parlare mente il medio è nel massimo letargo” (LOMBROSO, 1909, p. 292).

158
Diversidade Religiosa & História

Geralmente se expressam com pouca boa vontade,


e em forma laconíssima e truncada; com frequên-
cia, vêem-se (sic) obrigados a se interromperem,
prometendo voltar ao assunto em outro dia. Mais
comumente, exprimem-se por sinais e gestos.
Não é raro que, nas comunicações, adotem forma simbóli-
ca, recordando nisto os oráculos dos antigos (LOMBROSO,
1943, p. 407).21

Embora a linguagem médica predomine o discurso lombrosiano


sobre o Espiritismo e os fenômenos mediúnicos, nota-se ainda o viés antro-
pológico dessa narrativa. Ao recorrer à literatura sociológica que se voltou
aos estudos das religiões e crenças de diferentes culturas, a antropologia
e os estudos etnográficos tiveram importante papel na construção dos
outros — isto é, aqueles que não eram europeus — narrados por Cesare
Lombroso (1909).
Dessa forma, a psiquiatria, cujo discurso durante o século XIX ex-
cedeu as instituições asilares e passou a atuar no formato de dispositivos
disciplinares a partir de um sistema normalizador, que trouxe para dentro
de suas fronteiras os corpos que demonstravam os sintomas de transgres-
são, foi também responsável pela montagem dos quadros semiológicos
que permitiam narrar aquilo que não era passível de ser narrado, a não ser
a partir da linguagem e conhecimento médico, ou seja, um dispositivo do
discurso. A utilização das imagens (litografias e fotografias no seu estágio
embrionário de desenvolvimento) auxiliaram na compreensão da monta-
gem desses quadros descritivos em que escapa a autoridade do poder
psiquiátrico sobre os corpos e sobre a corporeidade, principalmente os
corpos não produtivos durante este período de desenvolvimento capita-

21 No original: “Molte volte, come vedemmo, le fantasime influenzarono le lastre fotografiche, ed una anche
lasciò l’impronta di quattro dita sopra una lastra coperta da tre fogli di carta nera. Ed è per questo, e per altri
fenomeni ricordati più su, come la scarica dell’elettroscopio, le fascíe radiante, i globi luminosi apparsi nelle
sedute ed impressi poi sulle lastre, e per il comportrsi sotto alcuni speciali tessuti come corpo gassosi, che
noi abbiamo messo innanzi l’ipotesi che la loro costituzione molecolare si avvicini a quella dei corpi radianti.
Per lo più si esprimono poco volentieri a parole, e in forma laconicissima, saltuaria; spesso sono costretti
ad interrompersi, prometendo di ritornare sul discorso un altro giorno. Più spesso si esprimono con cenni e
gesti. Non è raro che nelle comunicazioni adoperino una forma simbolica ricordando in questo gli oracoli
degli antichi” (LOMBROSO, 1909, p. 295-196).

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Diversidade Religiosa & História

lista em que o tempo de vida é o tempo de produção humana (CAPONI,


2012; MARTINS, 2004).

A respeito dessas sessões de final de século, há uma primeira


informação que ilustra muito bem o paradigma da reversibili-
dade operante nas ciências positivas, isto é, que apesar do rito
esotérico ou mundano transmitido por fotografias como a de
Flammarion, o sessão espírita tornou-se realmente análoga a
um laboratório experimental, equipado com dispositivos ra-
diométricos, eletroscópios, dinamômetros e placas fotográfi-
cas. Por outro lado, o próprio Lombroso insiste no aspecto po-
sitivo e sistemático do experimento mediúnico, acumulando
figuras, medidas, vestígios mecânicos sobre a fisiopatologia
de Eusapia Palladino durante o transe. Em outras palavras, o
método científico experimental é continuamente reivindicado,
e é precisamente nessa retórica do traço visual como um
sinal revelador que grande parte do modelo indicativo do
positivismo repousa. Esses vestígios, como nos ensinam os
corpos fisionômicos de Lombroso — fotografados, medidos,
decompostos nos mínimos detalhes — são o instrumento de
acesso ao invisível da matéria, são a sua interioridade escura
que se manifesta para fora, escrita na pele (VIOLI, 2012, p. 246-
247, tradução nossa).22

A interação que possibilita a relação estabelecida por Lombroso


(1909) entre a mediunidade e as patologias mentais, reconheceu a hipnose
enquanto procedimento e prática médica em casos de pacientes histéricos e
legitimou a relação entre atavismo e degeneração com as doenças mentais.
No entanto, o médico italiano não ignorou os fenômenos espíritas e atribuiu à
estes a devida importância de serem identificados não somente nas crenças

22 No original: “A propósito de estas sesiones de finales de siglo, hay un primer dato que ilustra muy bien
el paradigma de reversibilidad operante en las ciencias positivas, es decir, que a pesar del rito esotérico
o mundano transmitido por fotografías como la de Flammarion, el espacio de la sesión espiritista se ha
convertido realmente en análogo a un laboratorio experimental, provisto de aparatos radiométricos, elec-
troscopios, dinamómetros y placas fotográficas. Por otra parte, el mismo Lombroso insiste en la vertiente
positiva y sistemática del experimento mediúmnico, acumulando cifras, medidas, trazados mecánicos sobre
la fisiopatología de Eusapia Palladino durante el trance. En otras palabras, el método científico experimental
es continuamente reivindicado, y es precisamente en esa retórica de la traza visual como signo revelador
en la que se apoya gran parte del modelo indiciario del positivismo. Estas trazas, como nos enseñan los
cuerpos fisionómicos de Lombroso — fotografiados, medidos, descompuestos hasta el más mínimo detalle
— son el instrumento para acceder a lo invisible de la materia, son su interioridad oscura que se manifiesta
hacia el exterior, escribiéndose sobre la piel” (VIOLI, 2012, p. 246-247).

160
Diversidade Religiosa & História

e religiões de sociedades antigas, reunidas na obra pelo autor, que comparti-


lhavam da crença nos espíritos, mas de identificar naquele momento histórico
as manifestações espíritas que ocorriam no contexto europeu do século XIX,
e compreendê-las por meio do prisma científico e da metodologia experi-
mental positiva. Neste sentido, Lombroso defendeu que:

Todos estes fatos, que, examinados insuladamente, parecem


fragmentários e incertos, adquirem sólido encadeamento ao
se somarem numa resultante única vimos fenômenos hipnóti-
cos (transmissão de pensamento, premonições, transposição
dos sentidos) só poderem ocorrer pela desagregação e
inibição das funções dos centros corticais primários, espe-
cialmente direitos (de onde o automatismo, o maquinismo),
que dá lugar à prevalência dos outros centros. E outro tanto
entreveremos, com maior constância, pelos fenômenos me-
diúnicos (LOMBROSO, 1943, p. 401).23

A coexistência da patologia e dos fenômenos espíritas tornaram


viável a interpretação médico-científica do italiano. Desta forma, o con-
ceito de “lugar social” de Michel de Ceteau (1982), no tocante às narrativas
históricas, permitiu relacionar os conhecimentos produzidos pelos intelec-
tuais pares de Lombroso, também interessados nos fenômenos espíritas,
com o posicionamento do médico elaborado em seu discurso. Assim, “a
instituição não dá apenas uma estabilidade social a uma ‘doutrina’. Ela a
torna possível e, sub-repticiamente, a determina” (CERTEAU, 1982, p. 70).
Pensar a narrativa histórica produzida por Lombroso (1909) a partir
das provocações de Bruno Latour (2004) sobre os “regimes de enunciação”
também possibilitou compreender que as explicações religiosas e científi-
cas diferenciam-se pela nuance discursiva que busca sustentar enquanto
verdadeira.

23 No original: “Tutti questi fatti, che esaminati isolatamente sembrano frammentari ed incerti, assumono
una più salda compagine dal loro assomarsi in un’unica resultante. Abbiam visto fenomeni ipnotici (trans-
missione del pensiero, preminizione, transposizione dei sensi) non poter aver luogo che nella disgregazione
o nell’arresto dele funzioni dei primari centri corticlai, specie destri (donde l’automatismo, il manecinismo),
che dà luogo al prevalere degli altri centri. Ed altrettanto intravvedemmo, anzi con maggior costanza, per i
fenomeni medianici” (LOMBROSO, 1909, p. 291).

161
Diversidade Religiosa & História

[...] uma referida a modos comuns, complexos sutis de


enunciar a fala amorosa para que esta seja eficaz — e é com
efeito um mistério de aptidão, de um jeito especial [...], e
outra totalmente artificial provocada pelo indevido curto-
-circuito entre dois regimes de enunciação heterogêneos
(LATOUR, 2004, p. 357).

Estas ideias foram identificadas à medida que o discurso religio-


so buscou aproximar as práticas e a linguagem ao homem por meio de
mensagens vivenciadas e transmitidas pelos regimes enunciativos desse
discurso. A ciência, em sua configuração discursiva, estabeleceu “[...] ca-
minhos extraordinariamente longos, complicados, mediados, indiretos e
sofisticados, através de camadas concatenadas de instrumentos, cálculos
e modelos, para ter acesso ao mundo [...] que são invisíveis por serem
demasiadamente pequenos, distantes” (LATOUR, 2004, p. 360), adquirem
lentamente a condição que sustenta a elaboração de um pensamento,
ou uma ideia, enquanto uma verdade. Em contrapartida, o “indevido cur-
to-circuito” entre ciência e religião, estratificou as narrativas científicas e
religiosas segmentadas como antagônicas. Nesta perspectiva,

[...] a Ciência assume, erroneamente, um processo inverso ao


da religião. Enquanto a religião reatualizaria constantemente
as interpretações de seus mitos, buscando atender às ne-
cessidades históricas, a prática científica estaria, por vezes,
presa a dogmas inconstestáveis, negando assim a sua própria
historicidade (SERAFIM, 2013, p. 11).

Em diálogo com Certeau (1982) e Latour (2004), a historiadora


Vanda Serafim (2013, p. 16) indica que “muito mais relevante, e histórico,
seria perceber a continuidade do processo iniciado por uma imagem,
num prolongamento do fluxo de imagens”. Ou seja, a análise histórica na
perspectiva desses autores, para além relacionar as ideias no contexto em
que são vivenciadas, elaboradas e produzidas, é igualmente importante
localizar “[...] o material que cada método instaurou inicialmente segundo
seus métodos de pertinência” (CERTEAU, 1982, p. 65).
Neste sentido, o esforço deste trabalho consistiu em, a partir dos
referidos autores, refletir sobre a figura de Cesare Lombroso e as condi-

162
Diversidade Religiosa & História

ções que sustentam a elaboração de sua pesquisa sobre mediunidade e


espiritismo em 1909. Uma vez pontuado sobre a categoria explicativa de
“lugar social”, foi possível perceber as intersecções presentes no discurso
lombrosiano sobre os fenômenos espíritas com relação à outras ciências,
que não a medicina. A antropologia, por sua vez, constituiu parte importan-
te da trajetória e do ponto de vista sistematizado pelo autor em Ricerche
sui fenomeni ipnotici e spiritici.
A hesitação de Lombroso frente às manifestações e visões de
mundo que o Espiritismo forneceu durante o século XIX o incitou a
questionar o motivo pelo qual estes fenômenos, na visão do autor, não
estavam sendo documentados no campo da ciência médica experimental
durante o século XVIII e XIX (LOMBROSO, 1909). Nesta perspectiva, a nar-
rativa produzida pelo médico italiano demonstrou a historicidade do olhar
que é lançado por diferentes grupos e diferentes indivíduos à crença na
existência das entidades espíritas e na possibilidade de comunicação com
os mortos. Além de provocar a reflexão sobre os modos de fazer ciência
durante o oitocentos, é possível identificar nesta fonte histórica os ecos do
pensamento iluminista, das ideias de evolução e degeneração da espécie
humana, do ideal de progresso, da visão médica que submeteu o corpo da
médium à um paradigma anatomopatológico, de modernidade e ordem
social marcado no século XIX.
Por fim, é válido reiterar que como as produções socioculturais
de seu tempo, Cesare Lombroso operou como um intelectual produto e
produtor do contexto em que estava inserido. Ao levar em consideração
a relação dialógica entre cultura e sociedade, a fonte histórica que se
buscou analisar neste trabalho dispõe de um esquema de operações e
significados que se apresentam como a elaboração de um conhecimento
sobre a mediunidade e o espiritismo a partir da visão médica, antropológi-
ca e cultural organizada por Lombroso.

163
Diversidade Religiosa & História

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165
HIBRIDISMOS E TRÂNSITOS RELIGIOSOS
NO BRASIL: UMA ANÁLISE A PARTIR DO
DOCUMENTÁRIO SANTO FORTE (1999)

Gabriella Bertrami Vieira1

Resumo
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre os processos de hibridismos e trân-
sitos religiosos presentes no documentário Santo Forte do cineasta e intelectual
Eduardo Coutinho (1933-2014). Para tanto, utilizamos os apontamentos teóricos de
Danièle Hervieu-Léger (2008) e Peter Burke (2003). A partir da análise de um dos
relatos da fonte, intencionamos expor algumas dinâmicas das maneiras do crer
contemporâneo no Brasil, especialmente em relação às religiões mediúnicas.
Palavras-chave: Documentário. Religiões Mediúnicas. Eduardo Coutinho. Alterida-
de. História.

Abstract
This work aims to reflect about the processes of hybridism and religious transit
present in the documentary Santo Forte by the filmmaker and intellectual Eduardo
Coutinho (1933-2014). For that, we used the theoretical notes of Danièle Hervieu-
-Léger (2008) e Peter Burke (2003). From the analysis of one of the source’s reports,
we intend to expose some dynamics of the ways of contemporary belief in Brazil,
especially in relation to medium religions.
Keywords: Documentary. Mediumistic Religions. Eduardo Coutinho. Otherness;
History;

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (PPH-


-UEM). Bolsista Capes.

166
Diversidade Religiosa & História

A fonte

A proposta deste trabalho consiste em trazer reflexões sobre os


olhares lançados pelo cineasta Eduardo Coutinho (1933-2014) a respeito
das religiões no Rio de Janeiro de finais do século XX, especialmente so-
bre as religiões mediúnicas e a comunicação com os espíritos2. Para isso,
escolhemos como fonte o documentário Santo Forte, gravado em 1997, na
comunidade Vila Parque da Cidade, situada no bairro da Gávea, Zona Sul
do Rio de Janeiro. Na obra, a equipe de filmagem de Coutinho sobe o morro
em busca de relatos sobre as experiências religiosas de seus moradores.
Entendemos que as narrativas sobre as comunicações com o sagrado é a
tônica do documentário. Essas comunicações e relações particulares com
o sagrado, é realizada a partir da combinação e escolhas de elementos de
diferentes denominações religiosas. Transitando, escolhendo e se apro-
priando, vemos que os entrevistados de Santo Forte realizam tais combina-
ções diversas e contextuais quando o assunto é religião e proteção. Com
isso, as relações, inclusive históricas, de hibridismos e trânsitos religiosos
presentes no campo religioso brasileiro, que se reconfiguram a cada mo-
mento, são entendidos aqui enquanto pontos chaves para a leitura da obra
e das formas de crer contemporâneas.
No âmbito dos objetivos do documentário, a intenção do diretor
é de verificar entre os moradores da Vila Parque a repercussão da Missa
Campal em celebração ao Segundo Encontro Mundial do Papa com as
Famílias, evento católico, realizado pelo Papa João Paulo II, no Aterro do
Flamengo, também no Rio de Janeiro. Para isso, o primeiro dia de gravação
do documentário se dá na data de 5 de outubro de 1997, simultaneamente
à realização de tal evento. O documentário se inicia no dia da Missa Cam-
pal e se encerra na data de 24 de dezembro de 1997, noite de Natal, ou
seja, em datas que marcam celebrações religiosas. Assim, a partir desses
aspectos gerais, iremos expor mais detalhadamente os processos que
levaram à gravação do filme, a narrativa documentária, propriamente dita,
bem como primeiras análises e impressões sobre a mesma.

2 Vale dizer que este texto é um desdobramento das discussões em andamento no trabalho de Mestrado
da autora, orientado pela Prof.ª Dra. Vanda Fortuna Serafim.

167
Diversidade Religiosa & História

A ideia para a gravação de Santo Forte, surge de um projeto de


série para a então TV Educativa (TVE), intitulado Identidades brasileiras,
que apresentaria temáticas culturais presentes em nosso país, sendo uma
delas a religiosidade. Coutinho, estava à frente da coordenação do projeto,
porém, este não se concretizou por questões administrativas da emissora.
Nas pesquisas para a série, Coutinho, entra em contato com a comunidade
Vila Parque da Cidade, local de gravação de Santo Forte, a partir de vasta
pesquisa sobre religião, fruto do trabalho acadêmico das antropólogas
Patrícia Birman e Patrícia Guimarães3, vinculadas ao Iser, e também com
projeto desta última, que resultou no curta-metragem Pombagira (1998),
de 13 minutos, que tratava de sexo, amor e religiosidade na umbanda,
filmado também na Vila Parque (FORMAGGINI, 2017).
Depois da definição de uma temática e de uma locação, iniciam-
-se as pesquisas prévias de personagens4 na comunidade Vila Parque
da Cidade, por parte de uma equipe5 que não contava com a presença
do diretor, uma vez que este só encontrava seus personagens no dia da
gravação, como escolha metodológica. Esse momento anterior às filma-
gens, para Coutinho, funcionava como um “teste de elenco” (FORMAGGINI,
2017, p. 67). Os pesquisadores conversavam com os moradores, coletavam
informações e imagens que serviriam como possibilidades para os dias de
filmagem. Foram elencadas cerca de quarenta pessoas, em uma média de
três semanas de trabalho. Feito isso, o material, era analisado por Coutinho,
que procurava nas pessoas bons contadores de histórias, ou melhor, que
“contassem ricamente” suas memórias.

3 O trabalho das antropólogas resultou na Dissertação de Mestrado em Antropologia Social intitulada


Ritual e estratégias de diferenciação simbólica no campo religioso: a Igreja Universal do Reino de Deus.
4 De acordo com o comunicólogo Cláudio Bezerra (2013), a noção de “personagem”, no cinema docu-
mentário, está relacionada ao movimento de pessoas “reais” tornarem-se “personagens”, pela conjunção
dos aparatos expressivos do audiovisual (imagens, movimento, planos, luz, som, montagem), com suas
experiências de vida, seu modo de estar, viver, ver e narrar o mundo. Não há, porém, exatamente um antes e
um depois. Na narrativa do personagem, o que se tem é a reunião dessa passagem de um estado ao outro.
É reposto, assim, a partir dos personagens de um documentário, o diálogo entre ficção e não ficção. Para o
autor, uma das motivações para chamar-se de “personagem” é por não ser “propriamente a pessoa que está
ali, mas um recorte dela, fruto das negociações estabelecidas com o realizador e mediadas pelo aparato
técnico” (BEZERRA, 2013, s.p.).
5 Composta por Patrícia Guimarães (Antropóloga), Cristina Grumbach (Produtora), Daniel Coutinho (filho do
diretor) e Vera Dutra dos Santos (que também é personagem do documentário).

168
Diversidade Religiosa & História

Nas narrativas do documentário, podemos observar as fronteiras


fluidas entre as tradições religiosas presentes no Brasil. A temática da di-
versidade, principalmente por meio dos hibridismos e trânsitos religiosos é
ressaltada na maioria dos relatos. Declarar-se pertencente a mais de uma
ou a nenhuma religião, diante da pergunta “Qual a sua religião?” é algo
comum na obra. A maioria6 dos entrevistados responde que é “católico
apostólico romano” e logo depois adiciona “e também espirita”, “católico
espírita”, ou ainda, “e também frequento a umbanda”. Assim, em Santo
Forte, temos a presença de várias tradições religiosas, em especial7, a um-
banda, o catolicismo, o pentecostalismo e o espiritismo. A comunicação,
devoção e proximidade com deuses, espíritos, orixás e entidades é traço
marcante. Em uma mesma família, vemos variados posicionamentos, em
sua maioria não enrijecidos, no sentido de perceber que os sujeitos fazem
combinações e apropriações de códigos religiosos de várias tradições,
frente às distintas situações da vida.
A fonte nos mostra de que maneira essas religiões são apreendidas
e vivenciadas por seus entrevistados, incorporando (às vezes literalmente),
seus santos fortes nas lutas e mazelas cotidianas. A comunicação com
deuses, espíritos, entidades e santos é narrada durante todo o filme. Vale
ressaltar também que não temos a presença de especialistas (pesquisa-
dores) da religião ou autoridades sobre o tema, nem mesmo a presença de
rituais enquanto ilustrações de uma religiosidade; o que temos são as ex-
periências e memórias narradas, por sujeitos, historicamente localizados.
A partir de leituras, exibições, mapeamentos e transcrições da obra,
optamos por dividi-la em quatro sequências pelas quais pode ser lida. São
elas: 1) As filmagens realizadas no dia 5 de outubro de 1997, que trazem
uma espécie de prólogo do que encontraremos no documentário; 2) As
filmagens realizadas na mesma data citada, porém com enfoque especial
para os entrevistados que estão assistindo a Missa Campal realizada pelo

6 Também temos entrevistados que são “evangélicos”, geralmente com alguma relação, anterior ou atual,
com a Igreja Universal do Reino de Deus e também com a umbanda e o espiritismo como é o caso de Lídia
e Vera, por exemplo.
7 Falamos isso pois são citados ainda outras religiões de matriz africanas, como o Candomblé, e também
outras denominações protestantes que não neopentecostais, como a Assembleia de Deus.

169
Diversidade Religiosa & História

Papa João Paulo II; 3) As filmagens realizadas em dezembro de 1997, que


se constituem na parte “principal”, ou o “condensado” das entrevistas do
documentário; e, por último, 4) As filmagens realizadas na noite do dia 24
de dezembro, véspera de Natal, que são uma espécie de reencontro da
equipe e de Coutinho com os entrevistados e de “despedida”.
A primeira sequência começa com o relato de André, que conta
sobre as experiências mediúnicas de sua esposa Marilene com a Pomba-
-gira Maria Navalha e com uma Preta-velha, que chama de Vovó, ambas
entidades da umbanda. À medida que André conta a incorporação de Ma-
rilene e a comunicação dele com as entidades, temos imagens do quarto
do casal, lugar que acontecem os fatos, e de estátuas que representam as
entidades citadas. Nesta primeira narrativa, a fonte parece nos introduzir “o
que é”: um documentário, que tem por essência a narrativa da experiência
religiosa, a partir de um enfoque mais particular, mas que, como tudo na
história, está inserido em um contexto mais geral; e seus elementos cons-
tituintes: sua base é a entrevista com o sujeito que crê e narra, as imagens
dos espaços onde aconteceram o que é dito e as estátuas das divindades
citadas, que se relacionam com estes respetivos personagens.
Nesse momento introdutório, temos também um trecho rápido
do início da Missa Campal, realizada pelo Papa João Paulo II no aterro
do Flamengo. As imagens são do arquivo da Rede Globo, cedidas para
o documentário, e adicionadas no processo de montagem, uma vez que
nessa mesma, o diretor e sua equipe estão na Vila Parque da Cidade,
entrevistando e averiguando a repercussão desse evento entre os mo-
radores. A missa celebra o II Encontro Mundial do Papa com as Famílias,
que tinha como tema “A família: dom e compromisso, esperança da hu-
manidade”, e reuniu em média dois milhões de fiéis. Nesse momento, a
da multidão que assiste a missa, em coro, começa a proferir a oração do
Ato Penitencial8 . É com as milhares de vozes dizendo “por minha culpa,

8 Oração católica que faz parte do momento da missa católica em que se admite e se pede perdão
pelos pecados. Geralmente, proferem-se as palavras “Confesso a Deus todo-poderoso e a vós, irmãos e
irmãs, que pequei muitas vezes por pensamentos e palavras, atos e omissões, por minha culpa, por minha
tão grande culpa. E peço à Virgem Maria, aos anjos e santos e a vós, irmãos e irmãs, que rogueis por mim
a Deus, nosso Senhor”. Disponível em: http://www.arquisp.org.br/regiaobelem/vigario-episcopal/artigos/
ritos-iniciais-ato-penitencial. Acesso em: 9 jul. 2021.

170
Diversidade Religiosa & História

por minha tão grande culpa”, em um clima de expiação da culpa, que


somos redirecionados da Missa Campal, no Aterro do Flamengo, para
a comunidade Vila Parque da Cidade, a partir de uma sequência em
travelling, mostrando a localidade vista de cima, em um movimento de
aproximação progressiva, que finaliza esse trecho.
Já a segunda sequência da obra, apesar de curta duração, com-
preende as gravações realizadas no dia 5 de outubro de 1997, data em que
se realiza a Missa Campal citada. É neste momento que o diretor, Eduardo
Coutinho, executa a ideia de perceber as repercussões e impressões do
evento no âmbito da comunidade Vila Parque da Cidade, principalmente
entre os entrevistados que estão assistindo a missa pela televisão.
Nesse momento, na fonte, percebemos as relações com esse ca-
tolicismo que, por um lado, possui uma tradição tão forte no Brasil e muita
adesão, principalmente no sentido da devoção aos santos, e nas relações
híbridas com outras denominações religiosas, mas que, por outro, parece
ainda não chegar/dialogar tão intimamente e efetivamente às populações
que estão em lugares não privilegiados nos segmentos sociais. As rela-
ções com a tradição cristã e católica, vão perpassar toda a fonte, porém,
de maneiras variadas.
Na terceira sequência, parte central da obra, que compreende o
condensado das narrativas e boa parte de sua duração, perceberemos
as relações complexas entre crenças e devoções, que se configuram no
Brasil em fins do século XX. Complexas pois as fronteiras entre os códigos
culturais das denominações que aparecem na obra são fluidas e híbridas.
Os trânsitos e hibridismos religiosos acontecem não de maneira unilateral,
mas multi. Assim como as devoções e comunicações diretas, — sem o in-
termédio necessário das instituições religiosas — com os santos, espíritos,
guias e outras divindades também são marcas no documentário.
Esses processos de individualização e diversificação, no sentido de
maior desprendimento por parte daquele que crê, em relação às institui-
ções que regulamentam a crença, das combinações distintas e mobilidade
religiosa, são ressaltados por Danièle Hervieu-Léger (2008) e Peter Burke
(2003) enquanto aspectos que constituem e marcam as formas de crer na
contemporaneidade, autores que utilizaremos no decorrer desse trabalho.

171
Diversidade Religiosa & História

Por fim, na quarta e última sequência da obra, que se passa na


noite do dia 24 de dezembro de 1997, véspera da celebração do Natal, te-
mos a despedida/epílogo, na qual a equipe de filmagem do documentário
retorna à Vila Parque para perceber a experiência da celebração ou não,
do Natal e despedir-se dos moradores. A entrega de fotografias registradas
ao longo da obra também é um marco. Apesar de muito curta, dividimos
como uma sequência separada pois, além de acontecer em outra data, as
entrevistas tem outro tom e a devoção aparece de maneira mais indireta,
como na última cena, do altar privado da entrevistada dona Thereza.
O documentário, abre-nos espaço para pensar os entrecruza-
mentos e produções narrativas, derivadas de processos históricos, entre
catolicismo, neopentecostalismo, umbanda e espiritismo no Brasil. A fonte
dialoga entre público e privado, indivíduo/grupo, porém não a partir de
polarizações entre essas esferas, mas sim, mostrando como as fronteiras
são fluidas e o que parece “contraditório” ou até mesmo “inferior” para o
pensamento ocidental cristão, se coerente em determinada vivência, tão
válida quanto. Ao evidenciar polifonias e, com isso, o pluralismo, trânsitos e
hibridismos religiosos e culturais, nem sempre pacíficos, existente em nos-
so país, Santo Forte é uma abertura para compreendermos as dinâmicas
do crer contemporâneo em nosso país. Dessa forma, como recorte para
pensar a obra e os aspectos ressaltados apresentamos a narrativa de uma
das entrevistadas: Carla.

Mediunidade, hibridismos e trânsitos religiosos: a narrativa de


Carla

A narrativa de Carla (figuras 1, 2 e 3 a seguir) começa com um relato


sobre a infância. A jovem conta que quando criança, frequentava a Igreja
Universal do Reino de Deus (Iurd) e, em suas palavras, sentia-se pertur-
bada emocionalmente e fanática, indo até a igreja todos os dias. Algum
tempo depois, com a proibição de frequentar tal espaço por parte de sua
mãe, a personagem relata que volta aos terreiros de umbanda, nos dando
a informação indireta de que a mesma possuía alguma experiência com

172
Diversidade Religiosa & História

tal religião, antes de conhecer a Iurd. Quando volta a ter contato com o
terreiro, Carla diz que se envolveu muito mal. Em seus termos, isso se dá
por considerar o pai de santo do local em questão um “charlatão” (SANTO
FORTE, 1999), que se envolvia sexualmente com as filhas de santo, o que
inclusive teria ocorrido com a personagem e que teria levado sua vida e
relação com a umbanda a degringolar.

Fragmento 1 – Carla.
Fonte: Santo Forte (1999).

Apesar de citar a Iurd, como veremos, a narrativa de Carla, de


modo geral, gira em torno das relações entre catolicismo e umbanda,
que nos abre espaço para pensar os hibridismos históricos entre essas
denominações no Brasil. Ainda assim, a primeira questão que já se coloca
quando a narradora cita “charlatão”, é a da utilização de termos e cate-
gorias, historicamente construídas para designar de forma pejorativa as
religiões afro-brasileiras.
Apesar de no caso a entrevistada querer ressaltar uma ausência
de ética e postura por parte do pai de santo do terreiro que frequentava,
vale ressaltar que os usos desses termos, historicamente construídos a

173
Diversidade Religiosa & História

partir de práticas repressivas, por parte de indivíduos e instituições, ainda


são muito comuns para desrespeitar as religiões de matriz africana (SILVA,
2015). A antropóloga Paulo Montero em “Religião, pluralismo e esfera pú-
blica no Brasil” (2006), afirma que podemos perceber uma coexistência de
práticas que partilham, de diversas formas, de códigos semelhantes entre
si no Brasil, também vemos, que, apesar disso, e da laicização do Estado,
as religiões ainda ocupam posições estruturais distintas, quando as pen-
samos em diálogo tanto com a sociedade, quanto com o estado brasileiro.
As múltiplas combinações dos códigos afro-brasileiros, espíritas, cristãos
e indígenas, tem também diversas combinações e resultados diante do
espaço público, do imaginário e do cotidiano. Destacamos também, já no
início da narrativa, a presença do trânsito religioso realizado pela entrevis-
tada entre a Iurd e a umbanda.
Uma outra temática que parece interessar muito Coutinho, inserida
na questão do transe mediúnico, são as chamadas “surras de santo”, que
Carla relata à equipe de pesquisa, previamente. Estimulada a explicar o
fenômeno, quando o diretor traz o assunto à tona, a entrevistada conta
que nas surras, geralmente, a pessoa possivelmente está devendo algo
ou desrespeitando de alguma maneira o orixá ou entidade. Sendo assim,
ela vira cavalo do santo que “montava” nela e a fazia jogar-se no chão: “é
como se ele tivesse só tomado uma parte do seu corpo. Ele não toma seu
corpo inteiro, ele toma uma parte do seu corpo” (SANTO FORTE, 1999)9.
As surras, para ela, podem acontecer em qualquer lugar, tanto que muitas
vezes acontecem ali, na sala de sua casa (figura 4), onde estão conver-
sando. Depois que a incorporação acaba, segundo Carla, as dores no
corpo e cabeça são fortes e não se tem feridas aparentes. Com tom bem
humorado e leveza durante toda a conversa, Carla responde a Coutinho
que era, em geral, sua Pomba-gira que lhe dava as surras. A imagem da
estátua da Pomba-gira Maria Padilha (figura 5) e, seguido disso, a narrativa
sobre a justificativa para as surras, sob o ponto de vista da entrevistada,
complementam-se:

9 Transcrição da autora.

174
Diversidade Religiosa & História

O meu problema é esse: eles não foram doutrinados. Enten-


deu? Por isso também eu levava as surras. Eles aprontavam
comigo. Por que? Porque eles não tiveram doutrina. Eu não
deitei, eu não dei uma obrigação. Eles não foram doutrinados.
Entende? Porque tem uma doutrina pro orixá. O pai de santo
bota uma doutrina, entendeu?! Eles têm limites. Por isso que
eu parei. Hoje em dia eu não vou NEM pra olhar. Pra que?
Vou lá para apanhar, passar vergonha? Porque você passar
vergonha. Você vai num terreiro, todo mundo que chega, vira
direitinho. Aí vai, vira, o orixá da pessoa dá consulta. Aí você
chega toda bonitinha — porque eu só gosto de andar bem
arrumada. Saltinho, não sei o que. Chego toda bonitinha. Daqui
a pouco, saio de lá toda horrível. O cabelo pro alto, um sapato
eu sei onde é que tá, o outro eu já não sei mais. Toda machu-
cada, toda quebrada, toda engraçada (SANTO FORTE, 1999).10

Além de dívidas e possíveis desrespeitos com os orixás ou enti-


dades, Carla adiciona a questão do que ela chama de “doutrina”. Na um-
banda, entidades como Exus e Pombagiras, são entidades consideradas
abaixo dos espíritos intermediários (Preto-velho, Erê e Caboclos), que
segundo Silva (2005), “incorporam nos médiuns para serem doutrinadas e
trabalharem a fim de evoluírem espiritualmente” (SILVA, 2005, p. 123), o que
a entrevistada diz não ter conseguido realizar por conta dos problemas de
direcionamento com o pai de santo.
As Pombagiras, consideradas versões femininas dos Exus, estão
associadas ao estereótipo das prostitutas, e estão ligadas à sensualidade,
à sexualidade, ao corpo, à morte e à fertilidade e por isso, auxiliam aque-
les que possuem problemas amorosos, sexuais e de desejo. As giras de
Exus e Pombagiras são realizadas, em geral, após a meia noite. A relação
de Carla com Maria Padilha, aponta para vários desses aspectos. Apesar
dessa situação um tanto quanto conflituosa e temerosa, a personagem
conta que Maria Padilha lhe ajudou e protegeu: “Afastou muitas pessoas
que eu não queria perto de mim. Ela me ajudou. E deu coisas materiais”
(SANTO FORTE, 1999).
Além das informações sobre a questão da doutrina e das relações
entre entidade e devoto, na umbanda, a fala de Carla, a partir da interven-

10 Transcrição da autora.

175
Diversidade Religiosa & História

ção de Eduardo Coutinho, também nos contempla com menções sobre o


chamado “povo de luz” na umbanda e sobre os Exus.

Coutinho: O que chamam de povo de luz na Umbanda?

Carla: Erê, Preto-velho, Caboclo...

Coutinho: Esses só fazem o bem?

Carla: Esses fazem o bem, não fazem o mal. Mas quem quer
o mal vai até os Exus. Os Exus fazem o mal. Como fazem o
bem também. Eles não são ruins. Eles não são ruins. As pes-
soas saem de dentro das suas casas pra chegar lá e dizer: “eu
quero ver o mal de fulano, de ciclano de beltrano”. Então a
gente não pode dizer que o Exu é ruim. A pessoa é ruim. Se eu
pedir o marido de uma menina, eu quero ele pra mim, e essa
mesma menina vai na mesma entidade e pede pra barrar o
marido dela. Aí ela [a entidade] me pede alguma coisa: tipo
assim, ela me pede: “ah moça eu faço o que você quer, só que
eu quero da senhora um cordão de ouro”. E a outra for e ela
der um cordão, um anel e um brinco, ela vai levar. Quem der
mais leva. Porque Exu, ele é comprado, e ele não nega isso. Cê
tem que saber trabalhar com Exu.

Coutinho: E cê acha que o mundo é assim um pouco?

Carla: é. O mundo é assim. A lei do retorno. Que eu acho que


existe até na vida comum: se você pede o mal, você pode crer
que daquele mal ali, 50% vai ser seu. Um dia vem (sic) (SANTO
FORTE, 1999).11

Como ressaltamos anteriormente, na umbanda há uma hierarquia


entre os orixás e entidades. Preto-velho, Erês e Caboclos, fazem parte do
que se chama “povo de luz”, por serem entidades “mais evoluídas” do que
Exus e Pombagiras. São colocados pela narradora como os “que fazem
o bem”, pelos ideais de caridade, sabedoria, humildade e inocência, que
carregam. Já sobre os Exus, não reafirma exatamente o estereótipo criado
sobre a entidade, de “diabo cristão”, mas sim, acredita que Exu faz tanto o

11 Transcrição da autora.

176
Diversidade Religiosa & História

bem quanto o mal, e que fica a cargo dos que pretendem trabalhar com
a entidade, aprender a fazê-lo. O mal aqui, não está nas entidades da um-
banda, mas sim nas pessoas que vão pedir o mal para outra pessoa. Sobre
a questão de “quem dar mais leva”, ou seja, a cobrança pela entidade dos
serviços prestados, Carla considera algo natural, uma vez que os exus não
negam que seus trabalhos funcionam dessa forma, desconstruindo um
pouco, a visão cristã de “enganação” sobre o ato de cobrar algo em troca.
Outro atravessamento marcante na fala da personagem em ques-
tão, muito comum no imaginário e nas práticas brasileiras, é o estabeleci-
mento de relações de correspondência entre os santos da Igreja Católica e
divindades do panteão umbandista, que ressalta os hibridismos religiosos
e culturais que exploramos na fonte. Ela diz:

Eu vejo, os orixás da Igreja Católica... [erra a palavra e corrige]


os santos da Igreja Católica: Nossa senhora. Na umbanda ela
é Oxum. São Jorge. na Umbanda ele é Ogum. Então quer dizer,
acho que é tudo um pouco né. É uma bola de neve. Umbanda,
candomblé, catolicismo, tudo é uma bola de neve. Quanto
mais você sabe, mais você não sabe (SANTO FORTE, 1999).12

Assim, vemos a partir fonte ressaltadas as dinâmicas sobre as reli-


giões no Brasil no final do século XX e as formas de crer contemporâneas,
que gostaríamos de refletir neste trabalho. Para amparar essa discussão
elencamos, primeiramente, a obra O peregrino e o convertido: a religião em
movimento (2008), de autoria da socióloga francesa Danièle Hervieu-Lé-
ger. Nesse livro, a autora mencionada traça reflexões acerca da configu-
ração do cenário religioso compreendido como “Moderno”, uma vez que,
para a autora a Modernidade religiosa remete ao período compreendido
pelo século XX e início do XXI. Segundo a mesma “o que caracteriza a
religiosidade das sociedades modernas é a dinâmica do movimento,
mobilidade e dispersão de crenças” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 10). Essa
modernidade se constitui, principalmente pelo processo de “autonomia
do indivíduo-sujeito” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 32), no qual cada um se
coloca como produtor de seu próprio universo de sentido. Como também,

12 Transcrição da autora.

177
Diversidade Religiosa & História

pela diferenciação das instituições, que está ligada à separação entre a


Igreja e o Estado.
Perante esse quadro, temos como uma das consequências mais
marcantes, a perda de regulamentação, por parte das instituições tradi-
cionais produtoras de sentido, principalmente no âmbito religioso. Visto
que, é o indivíduo, dotado de liberdade, quem, agora, traça, de acordo
com seus interesses e recursos disponíveis, sua própria trajetória religiosa,
sendo ela ligada à uma doutrina específica ou não (HERVIEU-LÉGER,
2008). Outra consequência é a pluralidade e a mobilidade das identidades
religiosas, pois na mesma proporção em que as sociedades modernas são
cada vez mais sociedades regidas pelo “paradigma da imediatez”, em que
a inovação e as modificações constantes são tidas como regra geral, estas
são também, cada vez mais “sociedades amnésicas”, já que infringiram o
“elo da memória obrigatória da tradição” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 62-63).
Posto isso, não podemos mais considerar que as identidades religiosas são
exclusivamente, herdadas, mas sim que

Os indivíduos constroem sua própria identidade sociorreligio-


sa a partir dos diversos recursos simbólicos colocados à sua
disposição e/ou aos quais eles podem ter acesso em função
das diferentes experiências em que estão implicados. A iden-
tidade é analisada como resultado, sempre precário e susce-
tível de ser questionado, de uma trajetória de identificação que
se realiza ao longo do tempo (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 64)

Diante disso, o que temos, segundo a autora, é uma tendência à


“bricolagem de crenças” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 41), bem como a uma
individualização e liberdade na dinâmica de construção dos sistemas de
fé. Os indivíduos fazem valer de sua liberdade de escolha incorporando
as práticas e crenças que lhe convém. Sendo que os significados destas,
para cada um, tende a ser diferente de sua “definição doutrinal”. As crenças
são “triadas, remanejadas e, geralmente livremente combinadas a temas
emprestados de outras religiões” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 43).
Nesse mesmo sentido, o historiador Peter Burke, em Hibridismo
cultural (2003), respalda sua reflexão na afirmativa de que “todas as tradi-
ções culturais hoje estão em contato mais ou menos direto com tradições

178
Diversidade Religiosa & História

alternativas”. Sendo que essas tradições se apresentam como “áreas de


construção” que estão em constante processo de elaboração e reelabo-
ração, tanto de forma consciente, como também inconsciente para os
sujeitos (BURKE, 2003, p. 102).
O referido autor, ao tratar das práticas híbridas, considera que estas
podem ser encontradas em vários âmbitos da cultura, e, particularmente
na religião. Para o autor, os processos de hibridização nas religiões relati-
vamente novas são notoriamente identificados, uma vez que por mais que
as reações a esses processos sejam variadas, eles estão cada vez mais
presentes na sociedade atual, e, essa tendência, torna-se, de certa forma,
inevitável. Tais processos, são tidos para ele, como produtos de encontros
múltiplos entre culturas, e não de um único. Sendo que estes, podem tanto
adicionar novos elementos à mistura quanto reforçar antigos (BURKE, 2003)
Porém, de que maneira, como historiadores, podemos identificar
esses processos de hibridização e suas consequências no contexto de uma
religiosidade moderna, em que a mudança, a diversidade e a mobilidade
são cada vez mais frequentes? Ou ainda, como fica a situação do campo
religioso e das identidades religiosas, em um cenário tão híbrido, móvel e
distinto? Burke (2003) propõe uma abordagem amparada pela variedade
de conceitos, por vezes metafóricos, uma vez que essa se faz necessária
para tentar abarcar tanto “o agente humano quanto às modificações das
quais os agentes não têm consciência” (BURKE, 2003, p. 41). Porém, essa
variedade de terminologias para fazer referência aos diversos tipos de
hibridização acaba criando problemas conceituais próprios, que estão
sendo considerados nesse trabalho, e expostos à medida de sua utilidade
para as reflexões. Evidenciamos então, três conceitos definidos por Burke
(2003) que parecem ser interessantes para nossa proposta: apropriação,
negociação e hibridismo.
Ao abordar o conceito de apropriação, o supracitado autor, exem-
plifica Basil de Cesarea. Este último, ao tratar dos “usos da cultura pagã
que eram permitidos aos cristãos”, metaforiza a apropriação, pelo com-
portamento das abelhas: “nem abordam igualmente todas as flores, nem
tentam carregar por inteiro aquelas que escolhem, mas pegam apenas
aquilo que é adequado a seu trabalho e deixam o resto intocado” (BURKE,

179
Diversidade Religiosa & História

2003, p. 42) A partir dessa metáfora, mais uma vez é possível observar
os processos nos quais os sujeitos, diante do que lhes é culturalmente
oferecido, no decorrer de seus itinerários, fazem uso dos elementos que
lhes são compatíveis.
Já o termo negociação, que se coloca como alternativo à acomo-
dação, “[...] expressa consciência da multiplicidade e da fluidez da identi-
dade e o modo como ela pode ser modificada ou pelo menos apresen-
tada de diferentes modos em diferentes situações” (BURKE, 2003, p. 48).
Quando discorre sobre hibridismo, Peter Burke o define como um “termo
escorregadio, ambíguo, ao mesmo tempo literal e metafórico, descritivo
e explicativo” (BURKE, 2003, p. 54). Tendo em vista tais considerações, é
possível verificar traços dessas três acepções de hibridismo, cada um de
acordo com sua particularidade, que podem ser articulados entre si, e
elencados na obra documentária.
O primeiro faz alusão à busca, ressaltada por Hervieu-Léger (2008)
do indivíduo, a partir de seu caminho religioso, por elementos os quais
auxiliem na construção de sua identidade religiosa. O segundo, remete
justamente ao caráter diverso e móvel dessas identidades religiosas, e
o terceiro, por sua vez, demonstra o cuidado que devemos ter ao tratar
dessas construções ao mesmo tempo diversas e singulares. As narrativas
de Santo Forte, salvo suas especificidades, de modo geral, transmitem
essa natureza ambígua, “escorregadia”, fluida, e móvel de que tratam tais
noções, como percebemos nos excertos que trazemos de Carla.
Mais à frente na entrevista, Carla afirma que se encanta muito por
umbanda e candomblé. Porém, no momento se autoafirma enquanto “neu-
tra: nem macumba, nem igreja, nem nada” (SANTO FORTE, 1999)13. Com
essa afirmação, o diretor interroga se Carla teria medo de Maria Padilha
vingar-se dela. Carla afirma que o medo existe, considerando inclusive
seu ambiente de trabalho ser uma boate. Neste momento, há um corte
na narrativa da entrevistada, e vemos a equipe de filmagem andando pela
noite carioca (quadro 6). A chegada é na boate em que a personagem
trabalha como dançarina. Vemos cenas de Carla maquiando-se, em pre-

13 Transcrição da autora.

180
Diversidade Religiosa & História

paração para a apresentação (quadros 7, 8 e 9), intercaladas com cenas da


entrevista em sua casa, onde ela relata sobre sua relação com tal trabalho:

Mal ou bem, você tem rebarba de pessoas que já trabalharam


lá. Entendeu? É um lugar carregado. São lugares onde você
não pode entrar sem uma proteção. Tem dia que eu vou
trabalhar, que eu chego em casa podre, com dor de cabeça,
com o corpo todo dolorido, e as vezes não é nem de tanto
trabalho. Porque é uma coisa que eu já tiro de letra, que eu
já me acostume. É pesado. Porque, mal ou bem, a noite é das
Pombas-gira. A maioria das pessoas dizem que passou da
meia-noite o diabo tá solto (SANTO FORTE, 1999).14

Para finalizar a narrativa, voltamos às relações que podem ser tra-


çadas entre Carla e Maria Padilha. Entendemos que, para Coutinho, há uma
relação de semelhança ou identificação entre a figura a entidade e aquele
que crê. Como afirmamos, a partir de Silva (2005), a entidade se relaciona
com a prostituta, com a mulher “da noite”, no caso de Carla, com a mulher
que dança seminua em uma boate. Apesar de temer Maria Padilha, admite
que a proteção é essencial para o ambiente em que trabalha. As relações de
proteção e identificação entre Carla e Maria Padilha se dão entre o ambiente
de trabalho, as imagens de Carla se maquiando e dançando, que remete à
sensualidade e a sexualidade e também a força que tal entidade possui em
lidar com problemas relacionados às áreas que a entrevistada é inserida,
como vemos na narrativa descrita. Coutinho, a partir da representação de
Carla e de Maria Padilha, parece intencionar dizer que a partir da mitologia
da umbanda e das entidades de seu panteão, podemos compreender os
sujeitos e a realidade brasileira de maneira mais complexa.

Considerações Finais

Diante do exposto, o que percebemos em Santo Forte (1999), é


um esforço por parte de Eduardo, em face à diversidade e à intolerância
religiosa, de trazer uma possibilidade de compreensão do mundo a partir

14 Transcrição da autora.

181
Diversidade Religiosa & História

das distintas formas de crer que fazem parte da realidade. Os hibridismos e


mobilidades religiosos, bem como uma perda de controle das instituições
religiosas, são as chaves de leitura que trazemos aqui para pensar esse olhar.
Além disso, compreendemos que o diretor constrói olhares de
alteridade com a obra. Mesmo que o espectador possa nunca ter tido
contato, ele entende e percebe a dinâmica da religiosidade brasileira ali
evidenciada. Os vários deuses, que intervêm, protegem, punem, exigem,
dialogam com seus fieis no cotidiano da vida são realidades pujantes na
vida dos entrevistados. A partir de combinações especificas e muito varia-
das, estes deuses formam os panteões e estão nos altares particulares, na
intimidade do lar. A partir do documentário Eduardo Coutinho nos convida
a pensar a experiência religiosa não só enquanto parte do cotidiano, mas
também âmbito fundamental da vida das pessoas. Desde questões eco-
nômicas, amorosas, sociais, e de morte e vida estão interligadas com a
experiência e narrativas religiosas.
Há na fonte, uma forte presença do catolicismo, do neopentecos-
talismo, do espiritismo e da umbanda. Esta última, em especial, aparece na
obra como o amalgama entre as denominações citadas. Esse amalgama,
não acontece de maneira tranquila. Percebemos, a partir dos jogos de
força e entrecruzamentos, presentes nos discursos e práticas, as religiões
mediúnicas estarem sempre relegadas a um lugar de “outro” (não próprio)
e estigmatizadas sob a égide da descrença, do charlatanismo e de um mal
a ser combatido.
No que se refere ao catolicismo e os discursos católicos sobre as
religiões mediúnicas, partindo de Artur Isaia (2001) “Hierarquia católica e
religiões mediúnicas no Brasil da primeira metade do século XX”, podemos
elencar de que maneiras se deram as produções de tais narrativas. Em
um momento que as religiões mediúnicas ganham visibilidade no Brasil, o
autor percebe, a partir das fontes, um aumento da frequência de ataques
pelo discurso institucional católico, relacionados a estratégia de atuação
e inserção desse catolicismo na sociedade. Em linhas gerais, Isaia (2001),
aponta que no decorrer do século, o espiritismo e a umbanda eram vistos
enquanto a grande “presença do mal” que rondava a modernidade e obje-
tivava cada vez mais a descristianização da sociedade (ISAIA, 2001). Assim,

182
Diversidade Religiosa & História

a partir da dicotomização que colocava as religiões mediúnicas enquanto


“seduções modernistas” e o catolicismo enquanto “verdade”, esse inimigo,
que eram as crenças mediúnicas e a mediunidade, começava a ser neu-
tralizado e desmoralizado.
Para a construção e justificativa dos discursos, para além de argu-
mentos religiosos e mitológicos, a hierarquia católica, ao longo de toda a
primeira metade do século XX e a partir de vários autores (Negromonte,
Zioni, Frei Boaventura Kloppenburg) se apropria também do discurso
médico-psiquiátrico, utilizando as categorias de histeria e hipnotismo para
explicar os fenômenos mediúnicos. Ou seja, com a retificação por parte
do saber médico-psiquiátrico, mediunidade era vista e narrada enquanto
patologia que apresentava riscos à saúde pública. E, por outro lado, a
profilaxia, seria o catolicismo (ISAIA, 2001).
Por meio de Isaia (2001), percebemos algumas estratégias e cate-
gorizações acerca das religiões mediúnicas, operacionalizadas por parte
de atores (catolicismo e discurso médico-psiquiátrico) que possuem legiti-
mação social e o utilizam para construir um olhar sobre essas crenças que
as colocam perante a sociedade, historicamente, nesse lugar de outro,
que é narrado por um outro que está inserido em um jogo de forças, no
qual não interessa narrá-las a partir de si mesmas.
Mais recentemente, principalmente a partir das décadas de 1980
e 1990, com a expansão das denominações neopentecostais, temos,
mais uma vez, a produção de discursos cristãos que colocam as religiões
mediúnicas nesse lugar de outro e de mal a ser extinguido. Na obra “In-
tolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso
afro-brasileiro” Vagner Gonçalves da Silva (2015), apresenta elementos
que evidenciam isso. A partir de ataques, ou seja, de investidas públicas
de determinado grupo religioso contra outro, tomados como práticas de
intolerância e preconceito religiosos, Silva (2015), elenca notícias de im-
prensa e casos estudados pela literatura acadêmica, de 1980 em diante,
que tratam de diferentes formas de intolerâncias e construções de narra-
tivas reafirmadoras das religiões afro-brasileiras enquanto o “inimigo” a ser
combatido e destruído. São elencados:

183
Diversidade Religiosa & História

I)Ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas neopen-


tecostais e em seus meios de divulgação e proselitismo; II)
agressões físicas in loco contra terreiros e seus membros; III)
ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras realizadas
em locais públicos ou aos símbolos dessas religiões existen-
tes em tais espaços; IV) ataques a outros símbolos da herança
africana no Brasil que tenham alguma relação com as religi-
ões afro-brasileiras; V) ataques decorrentes das alianças entre
igrejas e políticos evangélicos (SILVA, 2015, p. 10).

Com isso, percebemos os diversos âmbitos (simbólicos, públicos,


políticos, sociais, rituais, culturais) em que se desenvolvem práticas de ne-
gação e discriminação em relação às religiões afro-brasileiras. Além disso,
concorrendo por um público de adeptos, em geral, de mesma origem
socioeconômica, os neopentecostais se apropriam e invertem os códigos
advindos das religiões afro-brasileiras — linguagem, entidades, símbolos
e rituais — como estratégia para ao mesmo tempo, dialogarem com seu
público de fieis, e deslegitimar as práticas (SILVA, 2015).
As entidades da umbanda “baixam” na Iurd, como cita o relato
de Vera, mas são tidas, lidas e narradas como “o mal que está na vida da
pessoa”. As estratégias podem ser distintas, com relação ao catolicismo
— principalmente porque os neopentecostais não negam a realidade das
entidades — porém, o resultado ainda sim é da construção de um discurso
de tira o lugar de próprio das religiões mediúnicas. A mediunidade e tais
práticas são vistas a partir desses discursos legitimadores, que vem de um
outro lugar (cristão), e que se coloca como o lugar do próprio.
Relacionado a isso, chamamos atenção ao fato dos personagens
de Santo Forte se declararem, em sua maioria, católicos, como essa reli-
gião “primeira”, em um lugar próprio dela, e, depois enquanto espíritas,
ou “umbandistas espíritas” designando a umbanda como uma vertente
do espiritismo. Evidenciamos, com isso, para além dos hibridismos, os
processos histórico-sociais envoltos nessa narrativa, a partir de uma traje-
tória de desqualificação e repressão das práticas mediúnicas, bem como,
ao mesmo tempo, de tentativas de legitimação. Essa narrativa se enuncia
para nós como a denúncia de um não pertencimento. Isso pois as crenças
mediúnicas, — em especial a umbanda, de tradição afro-brasileira —, difi-

184
Diversidade Religiosa & História

cilmente são apresentadas como forma de crença em si. Como vimos, as


narrativas produzidas estão sempre colocando essas crenças em um lugar
de outro e de descrença. O que faz com que o crente se sinta perdido e não
pertencente em meio a esses discursos. Historicamente, os discursos médi-
co-psiquiátricos e cristão colocam as práticas e os praticantes das religiões
mediúnicas sob o enfoque do demoníaco ou da histeria e da loucura, e as
consequências disso podem ser vistas em alguns enunciados na obra.
Porém, em Santo Forte, entendemos que Eduardo Coutinho tenta
instaurar esse lugar de um próprio, sempre negado às religiões mediúni-
cas e à mediunidade. O intelectual, dessa forma, insere-se nas discussões
que pensam a mediunidade e os fenômenos mediúnicos a partir de seu
próprio lugar. Na obra, narradas pelas vivências dos moradores, essas
crenças começam a ter um lugar ela mesma. Ela traz beleza e encanta-
mento. Essas narrativas passam pelos critérios e intenções do diretor, e são
atravessadas pelas telas da televisão ou do cinema, por meio das quais
Coutinho leva, com o documentário, um pouco desse próprio, narrado e
vivido nas casas dos moradores de Vila Parque para as outras casas: para
nossas casas.
O diretor se coloca em um lugar inverso a muitos discursos inte-
lectuais e cinematográficos sobre as religiões afro-brasileiras e sobre a
mediunidade. Eduardo Coutinho senta e ouve. Apesar de toda mobilidade,
hibridismos, adequação, acomodação, a comunicação com as entidades
continua, mesmo depois de exorcizados, abandonados, medicalizados,
eles continuam, como duplos ancestrais ou como sombras. Eles perma-
necem ao lado do corpo, o qual nutre e é nutrido. O que se tentou recalcar
e banir, permanece e nos vem à tela.

Referências

BEZERRA, Cláudio. A dramaturgia do documentário: a questão da personagem. Revista Cine-


Cachoeira, Bahia, ano 3, n. 6, 2013.

BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Editora da Universidade do Rio dos Sinos, 2003.

FORMAGGINI, Beth. Cinema de afeto. In: ALTMANN, Eliska; BACAL, Tatiana (orgs.). Santo forte
visto por. 1. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017.

185
Diversidade Religiosa & História

HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis:


Vozes, 2008.

ISAIA, Artur C. Hierarquia católica e religiões mediúnicas no Brasil da primeira metade do


século XX. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, n. 30, p. 67-80, out. 2001.

MONTERO, Paula. Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. Novos Estudos, n. 74, p. 47-
65, mar. 2006.

POMBAGIRA. Direção de Maja Vargas e Patrícia Guimarães. Rio de Janeiro: RioFilme, 1998, (13m).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Jor-Thi0sSY Acesso em: 20 jul. 2021.

SANTO FORTE. Direção de Eduardo Coutinho. Cecip/Rio Filmes: Rio de Janeiro, 1999. (83
min.). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bf9-GiJfwog. Acesso em: 9 jul. 2020.

SILVA, Vagner G. da. Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira. São Paulo: Selo
Negro Edições, 2005.

SILVA, Vagner G. da (org.). Intolerância Religiosa: Impactos do neopentecostalismo no campo


religioso afro-brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.

186
UM “MILAGREIRO DE CEMITÉRIO”
NA CIDADE DE CAICÓ/RN: DEVOÇÃO NÃO
OFICIAL A CARLINDO DE SOUZA DANTAS

Mary Campelo de Oliveira15

Resumo
O presente artigo tem como objetivo analisar a devoção a Carlindo Dantas que
após a sua morte trágica, no dia 28 de outubro de 1967, foi alçado à condição de
“Milagreiro de Cemitério” na região do Seridó Potiguar. A metodologia a ser utilizado
na pesquisa foi a coleta de informações contidas nas fontes escritas e orais. Como
resultado constatamos uma religiosidade na cidade de Caicó em que, Carlindo
Dantas opera milagres aos seus devotos.
Palavras-chave: Milagreiro. Cemitério. Seridó. Carlindo Dantas.

Abstract
The present article has its main goal to analyze Carlindo Dantas’ devotion, that after his
tragic death, February 28th of 1967, was raised to the condition of “Cemetery’s Miracle
Maker” in the Potiguar Region of Seridó. The utilized methodology in this research was
information gathering amont written and oral sources. As a result, we verified some
religiosity of the citizens of Caicó in which Carlindo Dantas operates miracles.
Keywords: Miracle Worker. Cemetery. Seridó. Carlindo Dantas.

15 Graduada em História Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN no ano de
2013. Mestre em História Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN no ano de
2016. Atua nos campos de História Cultural e das Religiosidades.

187
Diversidade Religiosa & História

Introdução

Essa pesquisa está ligada à constatação de uma devoção em torno


do túmulo de Carlindo de Souza Dantas, que passou a ser frequentemente
cultuado com rituais que o tornam um “milagreiro de cemitério”. A natureza
da santidade desse milagreiro passou a ser analisada em um projeto de ini-
ciação à pesquisa, cujo título era “Dr. Carlindo de Souza Dantas e José Leão:
Crimes que construíram milagreiros no Seridó Potiguar — desdobramentos
da religiosidade não oficial”. E se tornou o projeto de uma Dissertação de
Mestrado concluída em 2015, com o seguinte recorte temático: Dr. Carlindo
de Souza Dantas, um milagreiro de cemitério (Caicó/RN século XX).
Sendo assim, examinar um fenômeno religioso consiste no fato
de proporcionar um estudo no campo da religiosidade, uma vez que essa
religiosidade é vista como marginal por “não necessitar de uma estrutura
eclesial para existir, mas que está à margem das devoções oficiais” (PE-
REIRA, 2005, p. 31). Ao se deparar com um novo modelo de sacralização,
iremos levantar novas perspectivas sobre o universo não oficializado e os
“milagreiros de cemitério”.
Quanto ao “Milagreiro de Cemitério”, trata-se de um conceito dado
a um morto que passa a operar milagres segundo a crença dos seus de-
votos. Como ele não é oficialmente canonizado, não tem uma igreja para
ser adorado; o túmulo torna-se, então, o local de adoração ao milagreiro.
A sepultura torna-se um espaço onde o devoto mantém uma ligação com
o mundo do sagrado, fazendo os seus pedidos à espera dos milagres
almejados (ANDRADE JUNIOR, 2008).
Esses “milagreiros de cemitério” surgem como parte daquilo que
Pereira (2005) definiu como processo de desterritorialização que, por sua
vez, decorre do fato dos fiéis com suas práticas e rituais — não aceitas
oficialmente — deixarem o território dos templos e passarem a fazer suas
devoções aos milagreiros em lugares considerados “irregulares”. As estra-
das, ruas e, principalmente, os cemitérios, tornam-se os novos locais de
veneração aos milagreiros, onde os devotos independentes dos santos
oficializados se destinam rumo à certeza do pronto atendimento.

188
Diversidade Religiosa & História

Para o desenvolvimento da pesquisa foram coletados vários ma-


teriais — desde livros que narram a vida de Carlindo, atas das reuniões dos
vereadores, jornais e processos jurídicos encontrados no Laboratório de
Documentação Histórica (Labordoc), localizado no campus universitário
UFRN-Ceres-Caicó (Universidade Federal do Rio Grande do Norte — Cen-
tro de Ensino Superior do Seridó).
No Labordoc, foi examinado o jornal A Folha16, cujo editor era o
monsenhor Walfredo Gurgel. Este jornal de nível local abordava os eventos
sociais, econômicos e políticos da cidade de Caicó. Escolhemos o recorte
temporal que consiste da década de 1960 a 1990 com a finalidade de
encontramos informações sobre o assassinato de Carlindo e o início das
visitas ao seu túmulo.
Outra importante fonte para a pesquisa é uma coleção de jornais
locais pertencente a Manoel Ferreira de Macêdo, habitante de Caicó que
vivenciou os acontecimentos dos anos de 1960. Esta coleção de jornais
relata sobre o crime que vitimou Carlindo, a prisão e a morte do suposto
assassino da vítima.
No Labordc encontramos ainda o processo judicial que data de
24 de outubro de 1966. Este processo indiciava Carlindo Dantas como
autor do crime cometido contra o médico Onaldo Pereira de Queiroz. Esse
registro possibilitou outro discurso sobre Carlindo que, apesar de ter sido
absolvido, foi inevitavelmente suspeito de ser o mandante de um assassi-
nato — e este fato marcou sua história de vida.
A coleta de informações por meio da utilização das técnicas oriun-
das da história oral possibilitou a construção de identidades, onde Carlindo
figura propriamente como uma entidade sobrenatural17. Foi necessário

16 Esse jornal foi fundado pelo Monsenhor Walfredo Gurgel, um dos principais representantes da elite
conservadora e católica da cidade de Caicó. Além de ter exercido o sacerdócio e conquistado o título
eclesiástico de Monsenhor, também conquistou carreira na vida política, como governador do Estado
do Rio Grande do Norte, no ano de 1965. Este periódico local, segundo interesses específicos, valorizou
figuras consideradas “dignas” de serem lembradas pela população, bem como desvalorizou personagens e
eventos importantes na construção da história de Caicó. Apesar de existirem outros jornais em circulação na
época, A Folha estabeleceu o padrão conservador e político, característica da própria sociedade caicoense
da década de 1960.
17 Dr. Carlindo de Souza Dantas nasceu no dia 30 de agosto de 1934 e faleceu no dia 28 de outubro de
1967. Em Vida ele se destacou como um médico bondoso que ajudava a população carente. Também foi

189
Diversidade Religiosa & História

selecionar o público a ser entrevistado; dividimos as entrevistas em dois


grupos: o primeiro abarca os devotos com faixa etária de 70 anos, ou seja,
aqueles que conheceram Carlindo, ao passo que a segunda categoria de
devotos alberga aqueles que ouviram falar, por meio das narrativas de
seus familiares, das proezas de Carlindo.
Em resumo, foram necessárias visitas ao túmulo de Carlindo
Dantas, que se iniciaram por volta do ano de 2010, prosseguindo até 2015.
Esse acompanhamento da devoção ao milagreiro se deu no dia dois de
novembro, mais conhecido como o Dia de Finados, no qual o culto a Car-
lindo é mais visível. A sepultura, os objetos simbólicos e os rituais foram
registrados pelas fotografias, as quais são portadoras de intencionalidades,
expressões, informações e representação dos acontecimentos sociais
e culturais de uma determinada realidade. Realidade esta que mostra a
existência de uma entidade sobrenatural na região seridoense.

Cemitério Campos Jorge como espaço de recordação

Os cemitérios ao longo dos séculos tornaram-se espaços de fre-


quentes visitas, rompendo o assombro que os cemitérios representavam
no imaginário popular. Isto ocorreu a partir do século XIX quando as cida-
des brasileiras iniciaram a modernização. A construção desses cemitérios
também fez parte dessa urbanização, tornando-se um espaço de visitação
e recordação dos entes queridos.
Essas visitas eram realizadas sem a presença dos eclesiásticos,
afirmando a dessacralização da morte, em um contexto urbanizado e mo-
dernizado. Estabeleceram de forma laica novos comportamentos perante
a morte. Segundo Aleida Assmann (2011), essas novas práticas estiveram
relacionadas às mudanças da memória cultural.
A presença do sagrado no espaço do cemitério garante as visitas
constantes dos indivíduos, que buscam nos milagreiros urbanos a resolu-
ção dos seus problemas. O Cemitério Campos Jorge, na cidade de Caicó,

Deputado Estadual devido sua popularidade. Após sua morte ele começou a operar milagres, fato consta-
tado pelos seus devotos.

190
Diversidade Religiosa & História

no estado do Rio Grande do Norte, foi construído por volta do ano de 1967
pela Prefeitura Municipal. É nesse cemitério que se encontra o morto mais
visitado e recordado pelos seridoenses, cujas narrativas são contadas para
a perpetuação da memória: Dr. Carlindo de Souza Dantas.
Existe uma simplicidade no túmulo de Carlindo, que é coberto
de cerâmica marrom e preta, contendo uma cruz de Jesus crucificado na
parte superior. Ao centro se encontra a foto do finado, representado como
um indivíduo de classe média. Juntamente a sua foto há uma placa com
a seguinte frase: “Eternas Saudades”, informando o ano que nasceu — dia
30 de agosto de 1934 — e a data na qual faleceu — 28 de outubro de 1967.
É possível perceber que não se trata de uma sepultura comum
dentro do cemitério, mas de um túmulo que é bastante visitado por causa
da quantidade de flores lá existentes. São flores com cores variadas — a
brancas, azuis, amarelas etc. — e estão entrelaçadas com fitas e com
terços. Esses elementos denunciam que algo diferente caracteriza este
túmulo. Algumas das flores encontradas nessa sepultura são acompa-
nhadas de ex-votos representados nos modelos de pés, cabeças, púbis,
mãos, joelhos, nariz, roupas, perfumes e retratos.
Quando visitamos o túmulo de Carlindo, principalmente, no dia 2 de
Finados, percebemos que logo pela manhã já encontramos a sepultura de
Carlindo Dantas com devotos e velas acesas. A cera das velas espalhadas
pela sepultura evidencia a promessa cumprida ou um novo pedido realizado.
Nesse sentido, o túmulo representa o invisível na figura do mila-
greiro, o qual se tornou um morto divinizado com um valor incalculável.
Carlindo representa um passado que interfere no presente e o no futuro.
Ele opera milagres em diversas áreas da vida. No decorrer do dia a visita
dos fiéis se torna mais frequente, aumentando o número de velas acesas
no túmulo do milagreiro. Os devotos não se limitam a acender apenas
uma ou duas velas, cada devoto no mínimo acende uma caixa de velas.
Isto, por sua vez, foi danificando o túmulo de Carlindo; seu filho já teve de
reformá-lo várias vezes. Isso é confirmado por Carlindo Junior de Souza
Dantas, filho de Carlindo Dantas, em uma conversa informal.
A mobilização dos fieis em cumprir um ritual na cova do seu inter-
cessor reafirma uma coletividade sem regras estabelecidas, onde cada

191
Diversidade Religiosa & História

pessoa compartilha suas experiências individuais. O culto aos mortos, com


seus pedidos, sacrifícios e ofertas, em muitos casos, serve para assegurar
aos mortos certo bem-estar no além. Mas os monumentos fúnebres fitam
os vivos exortando-os a não esquecerem os seus mortos (WEINRICH, 2001).
As oferendas são partes constituintes do mobiliário funerário das
sociedades antigas e atuais. Estas oferendas deixadas nas tumbas dos
mortos proporcionam a ligação entre o invisível e o visível e são destinadas
somente aos mortos considerados divinos. Partindo desse pressuposto, os
ex-votos, uma das principais oferendas deixadas no túmulo do milagreiro,
são “numerosos que estorvam os locais de culto e todos tem a função de
garantir a ajuda dos santos e a prosperidade, pois são os tesouros mais
preciosos” (POMIAN, 1984, p. 60). Nesse sentido, cada ex-voto representa
um milagre ou uma graça alcançada por uma pessoa anônima. Eles ex-
pressam diferentes comportamentos executados pelo devoto.
Assim, segundo Assmann (2011) manter as lembranças do morto
significava que as famílias deveriam conservar na memória o nome dos
falecidos e repassa-los à posteridade. Essas rememorações, por sua vez,
são submetidas às recordações dos vivos, pois o ato da recordação partia
das experiências pessoais, iniciando-se no presente e expandindo-se na
recuperação das lembranças. O local de recordação é aquele portador
das lembranças e “ultrapassa amplamente a memória dos seres humanos”
(ASSMANN, 2011, p. 229). Esses locais estabelecem influências que cruzam
as memórias individuais e familiares, gerando sensibilidades por parte
daqueles que os observam — estes também conservam seus mistérios e
significados, pois guardam consigo as lembranças afetivas.
Assim, os locais de memória estão associados à ideia de sacra-
lidade, ou seja, são espaços em que o sobrenatural se apresenta aos
homens. Por isso as lembranças não estão somente na memória de um
grupo, mas estão solidificadas nos lugares mantidos pelos valores sim-
bólicos e espirituais. O cemitério se constituiu ao longo dos séculos em
um espaço da recordação, na medida em que as memórias dos mortos
eram “construídas, representadas e ensaiadas”. Um local que, ao receber
os heróis e os mortos especiais era sacralizado pelo imaginário popular.

192
Diversidade Religiosa & História

“São considerados locais sagrados, as zonas de contato entre os homens


e os deuses” (ASSAMAN, 2011, p. 322).
Os valores sacros atribuídos ao cemitério foram se materializando
por meio das sepulturas dos mortos marcados pela fama que possuíram
em vida. É um espaço estabelecido por uma “topografia sacramental”,
onde se inscreve um texto sagrado que é constantemente reelaborado
e recordado pelos seus frequentadores. Esse local também passa a ser
inscrito na própria memória dos devotos, que reconhecem neste espaço
uma importância simbólica.
O recordar não é um processo inocente, mas se apropria dos meios
externos para legalizar interesses sociais e culturais. A glória garantiu aos
antepassados a imortalidade na lembrança dos vivos. Desde então, a fama
repousa na ideia de que a reputação é a melhor sepultura. Todavia, mesmo
que a memória esteja internalizada em cada pessoa, fazem-se necessários
locais para sua validação. Sendo assim, o cemitério também é o espaço
onde os vivos honram os mortos reputados como maravilhosos.
Nele, a história do morto é revivida pelos vivos e materializada nas
sepulturas e nas oferendas oferecidas ao defunto. Os suportes exteriores
revelam narrativas que se tornam “pontos de referência” para uma me-
mória cultural. Nessa concordância, o indivíduo cristaliza uma ligação do
passado com o presente, buscando a continuidade com uma vida inter-
rompida pelas circunstâncias terrenas.
O cemitério simboliza “que aqui há algo presente indicando acima
de tudo uma ausência; aqui ainda está presente algo que sinaliza o fato de
já haver passado” (ASSAMAN, 2011, p. 329). As lembranças dos mortos são
estabelecidas pelas instituições eclesiásticas e seculares, bem como pe-
las comunidades que consagram lugares destinados aos heróis anônimos
de cada indivíduo.

193
Diversidade Religiosa & História

Biografia de Carlindo Dantas

Dr. Carlindo de Souza Dantas nasceu no dia 30 de agosto de 1934,


cuja filiação remete-se a Raimundo de Souza Dantas e Eliza Elza Dantas,
viveu sua infância no Sítio Riacho da Serra, município de Caicó. Carlindo
foi casado duas vezes, a primeira esposa foi Zilmar Felix e a segunda foi
Wanda Farias. Tendo um filho registrado com o nome de Carlindo de Souza
Dantas Júnior.
No ano de, 1953, Carlindo Dantas se formou pela faculdade do
Recife no curso de Medicina, retornando a Caicó, em pleno exercício da
sua profissão. Ele estabelece uma clínica particular na Avenida Coronel
Martiniano, no centro de Caicó, e também se credencia ao SESP- Serviço
Especial de Saúde Pública. Como atuava em favor das classes marginali-
zadas de Caicó.
No ano de 1966, Carlindo ao conquistar a simpatia do povo
concorreu a vaga para Deputado Estadual e ganhou com muitos votos,
atribuídos as populações marginalizadas da cidade de Caicó. Ainda nesse
mesmo ano, Carlindo foi acusado de ter matado o médico Onaldo Pereira
de Queiroz. Fato este, que abalou os caicoenses. Todavia, as provas que
incriminavam Carlindo não foram suficientes para condená-lo, e Carlindo
foi inocentado.
No dia, 28 de outubro de 1967, em frente ao Caicó Esporte Clube
Carlindo Dantas juntamente com seu amigo Aníbal foram assassinados,
causando comoção e pânico na população de Caicó. Os enterros de
Carlindo e de Aníbal aconteceram no dia 30 de outubro, sendo
dos maiores ocorridos em Caicó: uma multidão de pessoas se
dirigiu ao cemitério Campos Jorge. Parentes, correligionários
e amigos das zonas urbana e rural acompanharam o enterro a
pé até o cemitério, localizado a dois quilômetros do centro de
Caicó. Sentimentos de emoção e de tristeza eram transparentes
às pessoas que admiravam Carlindo e Aníbal.
Nas semanas seguintes foram iniciadas as investigações sobre o
assassinato de Carlindo e de Aníbal, com a abertura do inquérito instaura-
do pela Secretaria do Estado do Interior de Segurança (Seis). No entanto, o

194
Diversidade Religiosa & História

crime cometido contra Carlindo somente foi desvendado no dia 4 de maio


do ano de 1970, quando a Polícia Federal capturou um dos pistoleiros en-
volvidos. Edmar Nunes Leitão foi encontrado no Ceará pelas autoridades
policiais; sua prisão teve repercussão em todo o Nordeste, principalmente
na cidade de Caicó. Antônio Letreiro, como era conhecido, foi levado a
julgamento em 27 de outubro do ano de 1971, declarando ao juiz Antônio
Lúcio quem foram os mandantes da morte de Carlindo Dantas.

O pistoleiro em seu depoimento confessou que tinha matado


o deputado de Caicó, juntamente com seu irmão Edmilson
Leitão, o Zé Maria, a mandado do Coronel Bastos Queiroz, dos
médicos Pedro Militão, Osvaldo Lobo, mais o então prefeito
de Quixaba, Edmilson Queiroz. O contrato estabeleceu que
Carlindo seria assassinado em Natal. Aqui não pode ser, havia
dificuldades na fuga. Por isso o crime foi transferido para
Caicó mesmo, onde existia mais condições para os pistoleiros
fugirem (Tribuna do Norte, 16 de outubro de 1971).

O assassinato de Carlindo mudou a história da cidade de Caicó e


de muitos dos seus habitantes. Esse homem marcado por vários conflitos
morreu, mas deixou um legado que atravessa gerações. Atualmente seu
nome se encontra nas mentes de muitos caicoenses como aquele que se
tornou o intercessor, o médico no mundo espiritual. Ele retornou a Caicó
em um plano superior para dá continuidade ao que foi parado: ajudar seus
conterrâneos mais pobres que vão até ao seu túmulo na certeza que serão
atendidos por Carlindo Dantas.

A origem da devoção a Carlindo Dantas

Uma pobre mulher aflita por socorro, quase desesperada, ro-


gou-o marido que o fosse esperar na estrada. Era noite escura,
a mulher sofria e já estava quase desfalecida quando chega-
mos a uma casinha de taipa, onde a família vivia. Carlindo de
imediato, com a luz de um velho candeeiro, mandou estender
no chão de barro a única esteira disponível onde conseguiu
deitar e medicar a parturiente, enquanto ordenou ao dono do

195
Diversidade Religiosa & História

casebre que imediatamente abrisse um buraco na parede da


frente por onde pudesse entrar a luz do carro para que o parto
pudesse ser feito. E nessas condições nasceu a filha de dona
Zulmira, a menina que veio a se chamar Carlinda. Essa história
virou lenda, por isso depois de dez anos resolvi procurar está
mulher, ela é mãe de cinco filhos todos já casados, mora numa
propriedade rural chamada de Serra do Doutor localizado
entre Currais Novos e Campo Redondo, a mãe dela já morreu,
mas Carlinda mantém na parede uma moldura com o retrato
do finado Carlindo: Cartaz de propaganda política que a mãe
dela conservou na parede pelo resto da vida. Isto demonstra
que pessoas como Carlindo nunca morrem, mas está viva
na memória de muita gente. Seu túmulo não é apenas uma
sepultura, mas um monumento que celebra a caridade (ME-
DEIROS, 2015, p. 288).

A história supramencionada é considerada como o mito fundador


que criou no imaginário popular a imagem de Carlindo como o médico
caridoso que salvou a vida de uma mulher e de uma criança na zona rural.
Uma história que ao longo do tempo foi ganhando várias interpretações
na medida em que foi repassada de geração a geração. Um mito que se
tornou parte da memória coletiva, a qual se encarregou de formar uma co-
munidade que tem nessa história a gênese da devoção a Carlindo Dantas.
Segundo Francisco de Assis Medeiros, a testemunha que vivenciou
o episódio, ocorrido por volta de 1966, qualificou Carlindo Dantas como
“um homem bondoso”, uma característica que atravessaria o século pela
devoção popular. Desde que aconteceu esse evento, o médico não foi es-
quecido por aqueles que passaram a admirá-lo, pois Carlindo continuaria
após a morte exercendo a sua profissão.

Carlindo Dantas e seus milagres póstumos

As primeiras entrevistas foram realizadas junto a grupos de


devotos da faixa etária de 65 aos 80 anos e que chegaram a conhecer
Carlindo. Esse grupo rememorou as ações políticas e médicas de Car-
lindo — a medicina caridosa exercida por ele é a que resiste ao tempo,
permanecendo na memória dos devotos desse milagreiro. No entanto,

196
Diversidade Religiosa & História

existe uma história comum compartilhada por todos os devotos entrevis-


tados, que narra que Carlindo fez um parto na zona rural, salvando mãe
e filha. Essa história falada tantas vezes pelos devotos tornou-se uma
narrativa que posiciona Carlindo como um médico diferente dos demais
presentes na cidade de Caicó/RN.
Os acontecimentos do passado que são recordados com frequ-
ência pelos devotos de Carlindo remetem-se às consultas familiares que
Carlindo realizava na população caicoense. A caridade de, não somente
consultar gratuitamente os pobres, mas de doar os remédios àqueles que
não tinham condições de comprá-los são noções comuns experimenta-
das por cada devoto, formando uma comunidade afetiva. Partindo desse
pressuposto, Maria de Fátima da Silva, de 62 anos, nascida em Caicó,
revelou-nos sobre a sua experiência com o médico Carlindo.

Desde 1980 eu visitava o túmulo de Carlindo e já via muitos


milagres. Aí você sabe os milagres vão acontecendo e você
começa a ter fé também. Mais pode ter certeza ele faz mui-
tos milagres. Eu cheguei conhecer ele tinha apenas 12 anos,
eu lembro porque ele consultava a gente passava remédio
e dava o remédio era muito bom médico, a caridade é com
ele mesmo. É tanto que tudo que eu peço a ele eu alcanço.
Eu tava operada e passei muitos dias hospitalizada porque
deu problema em uma cirurgia que fiz em 1998 e o médico
disse que o jeito era me lavar pra Natal. Pedi ao Dr. Carlindo
que ele me curasse pra que eu não fosse pra Natal. Prometi
que enquanto eu for viva eu iria visitar o seu túmulo pra
rezar e acender cinco velas. Qualquer coisa de saúde eu tô
com ele e eu converso com Dr. Carlindo como eu converso
com você. É mais fácil eu não acender velas pra minha mãe
e acendo pra ele. Hoje ainda, a saúde é precária e devemos
nos pegar muito a Deus, aos milagres é tanto que eu não
gosto nem de ir ao médico eu já vou logo a Carlindo e sou
curada. Eu me apego a ele até em situação financeira. Sabe
da história do parto? Que ele salvou a mulher que ia ter o
bebe, pois ele é muito caridoso. É tanto que as mulheres
que tem problemas com partos difíceis ainda pede a Car-
lindo porque ele é de confiança (sic).18

18 Entrevista concedida por SILVA, Maria de Fátima. Entrevistador: Mary Campelo de Oliveira. Caicó/RN, 2016.

197
Diversidade Religiosa & História

Maria de Fátima enfatizou que a fé que sente em Carlindo é pura


porque ela confia nele como um milagreiro não somente nas questões
de saúde, mas financeiramente também. Com apenas 12 anos, vivenciou
Carlindo atuando como médico, um evento do passado que ainda reflete
no presente, já que Fátima não deseja mais procurar os médicos da terra
se valendo logo do Dr. Carlindo. Durante a entrevista, ela ressaltou que, em
1998, já tinha obtido um milagre de Carlindo: a recuperação de uma cirur-
gia complicada. A devoção a Carlindo é um verdadeiro fenômeno no qual
as lembranças do passado rompem com as barreiras do esquecimento e
encontram lugar em outras memórias.
Compreendermos que, neste tipo de devoção, a intimidade entre
o devoto e Carlindo é vigente. Cada indivíduo se expressa de maneira
diferente com relação a Carlindo, atribuindo a ele valores sobrenaturais.
Carlindo é visto como um intermediador que concede graças e como um
milagreiro que opera coisas impossíveis. Fátima refere-se ao Dr. Carlindo
como um milagreiro, declarando: “tenha certeza que ele opera milagres”
— frase que demonstra a sua fé inabalável em Carlindo.
“A condição de não esquecer que nossos sentimentos e nossos
pensamentos mais pessoais buscam sua fonte nos meios e nas circuns-
tâncias sociais definidas” (HALBWACHS, 2013, p. 36). Um dos meios visíveis
de sempre trazer em memória os milagres de Carlindo, mantendo um
sentimento de devoção para com ele, é o acender de velas diariamente
em seu túmulo. Maria de Fatima se apegou a Carlindo Dantas não somente
pelas suas lembranças pessoais, mas por causa do meio social em que
vive. A saúde é precária e por isso a devota enxerga em Carlindo o mé-
dico que cura todas as suas enfermidades. Fátima terminou a entrevista
trazendo à tona a história do parto, revelando que as mulheres grávidas
também recorrem a Carlindo na medida em que reconhecem o que ele
fez no passado.
A entrevista realizada com Olinda Fernandes de Souza, de 76 anos,
da cidade de Caicó, foi separada em duas falas com a finalidade de com-
preendermos como um mesmo discurso se encontra entre esses devotos.
Ela comentou alguns elementos que já foram mencionados pelas outras

198
Diversidade Religiosa & História

narradoras em tonalidade de revolta, sempre fazendo comparações entre


Carlindo e os médicos atuais.

Cheguei a conhecer ele quando passava no Itans e consultava


todas as crianças de lá. Ele dava remédios a gente que na
época não tinha condição de comprar. Pra os pobres ele era
maravilhoso, não tinha uma casa do pobre que ele não pas-
sava, ele já trazia a bolsinha e dava o remédio a gente. Hoje
em dia ninguém faz isso, e ele fazia isso por a gente, na época
havia três médicos bons Onaldo, Pedro Militão e o finado
Carlindo, mas o melhor era Carlindo que dava remédios. Hoje
em dia os médicos não olham nem pra sua cara e o finado
Carlindo olhava e vinha na casa dos pobres. Cadê que esses
passam na casa da gente como o finado Carlindo passava
nada disso a gente vê mais mudou muito. Hoje em dia pra se
consultar carece pagar caro, e se não tiver dinheiro não é nem
atendido. Depois que ele morreu, zerou, tem médico, mas não
como ele né? Onde ele chegava abraçava as crianças podia tá
limpo como sujo ele abraçava do mesmo jeito. E hoje em dia
eles não dão nem a mão a pessoa né? (sic).19

A bondade desse médico estava baseada principalmente no


tratamento que ele oferecia aos pobres. Quando passava nas casas das
pessoas no bairro do Itans20, oferecendo assistência às crianças limpas
ou sujas, Carlindo conquistava o respeito daqueles indivíduos. Ele não
somente as consultava, mas dava atenção e carinho às crianças. Olinda
considerou Carlindo como o melhor médico que a cidade já teve no cam-
po da medicina. Olinda continuou:

Minha menina entreguei a ele que estava doente, eu pedi a


ele que se fosse pra ela ficar sofrendo levasse ela porque eu
não tinha condição de cuidar dela. Quando ela morreu tinha
quatorze anos e fiquei muito satisfeita com Carlindo. Pedi
que levasse ela porque sofria demais, a pessoa ver seu filho
amarrado num hospital não é brincadeira não. Na minha cons-

19 Entrevista concedida por SOUZA, Olinda Fernandes. Entrevistador: Mary Campelo de Oliveira. Caicó/
RN, 2015.
20 Itans foi um bairro da cidade de Caicó cujos habitantes pertencem às classes pobres, que foram cons-
truindo suas casas próximas ao açude Itans.

199
Diversidade Religiosa & História

ciência, no meu coração ele é um santo, não sei pra Deus... Eu


não sou Deus né? Mas pra mim ele é mesmo que um santo.21

A devota refere-se a Carlindo como um santo que concede graças


aos que anelam por sua ajuda. O que a narradora desejava de Carlindo
era que ele salvasse sua filha dos sofrimentos terrenos, porque Olinda não
tinha condições de cuidar dela. Mesmo a sua filha não estando presente
fisicamente, as lembranças reaparecem quando evocamos um aconte-
cimento que teve lugar na sua vida. São recordações repassadas para o
círculo de amizades e de parentes cujo silêncio é rompido quando esses
devotos encontram uma escuta.
Uma memória não somente individual, mas “uma operação cole-
tiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que reforçam
sentimentos de pertencimentos e fronteiras sociais” (POLLAK, 1989, p. 7).
Busca-se firmar uma identidade individual e a identidade do grupo à qual
pertence. É por meio da reconstrução da identidade que a devota define o
lugar social e suas relações com os outros
Já os devotos aqui mencionados são mulheres e homens de uma
faixa etária de 40 até 50 anos, que revelam o que ouviram falar, bem como
as causas de sua devoção ao milagreiro. Esses entrevistados trabalham
em diferentes profissões — garçons, mecânicos, auxiliares de serviços ge-
rais e docentes. Entrevistamos indivíduos com graus de instrução variados,
denotando como Carlindo permanece na memória do povo caicoense.
Vejamos o primeiro relato narrado por Maura de Araújo Medeiros também
relatou seu contato com Carlindo:

Então um dia entrei no cemitério e pedi a Carlindo para re-


solver minha situação. Meu casamento estava destruído, eu
não tinha casa própria e tinha três filhos pra cuidar. Também
estava sem emprego e quando entrei no cemitério olhei pra
cova dele e rezei três dias em seguida o terço. Então Carlindo
me respondeu, eu arrumei emprego numa lanchonete me
separei do meu marido, e já faz dez anos que sou mãe e pai
pra meus filhos. Eu acredito nos milagres, sou uma devota
fiel, pois Carlindo é um intercessor de Deus. Em 2003 foi o

21 Ibidem, p. 12.

200
Diversidade Religiosa & História

ano que comecei a trabalhar na lanchonete. Sou muito grata


a Carlindo pelo emprego que ele me deu. Minhas filhas são
evangélicas e não gostam que eu acendo velas pra Carlindo,
eu não me importo o que vale é o respeito que sinto por ele,
eu amo Carlindo. Ele é um intercessor bem pertinho de Deus,
um intercessor espiritual só peço a Deus que fortaleça ele pra
que muitas pessoas que necessitam consigam a cura, pois
Carlindo é iluminado.22

Maura faz parte de um grupo de pessoas que acredita que Carlin-


do é um “intercessor bem pertinho de Deus”. Essa comunidade tem como
base comum os milagres obtidos do milagreiro. Desde o ano de 2003,
a devota mantém um contato com o intercessor indo ao cemitério e se
ajoelhando para pedir sua ajuda. Seus pedidos correspondem a bens ma-
teriais, como um emprego para sustentar suas filhas, já que ela desejava
separar-se do marido.
Foi na sua angústia que a devota decidiu rezar três dias e, logo
em seguida, teria recebido a resposta do intercessor conseguindo um
emprego em uma lanchonete. Ela ama Carlindo porque acredita que ele
é um ser iluminado e, apesar da resistência por parte das suas filhas, que
são evangélicas, a devota mantém sua fidelidade a Carlindo. Sua memória
“não é uma tábula rasa” em que esqueceria do milagre operado por Car-
lindo apenas porque suas filhas não aceitam.
Carlindo atendeu aos pedidos de Maura para que sua memória
não se apague entre os vivos. Pois quando os devotos recorrem a Carlindo,
entram, portanto em uma cadeia de intercessão, na qual ele se torna o
intercessor entre Deus e os homens, os quais assumem o compromisso de
não esquecer o seu protetor querido — “uma memória eficaz, que não [dá]
chance ao esquecimento” (WEINRICH, 2001, p. 57).
Alberto José de Souza também falou sobre os benefícios que Carlin-
do fez a sua vida, demonstrando uma profunda gratidão durante a entrevista:

Estava com problemas de saúde devido à bebida e o cigarro,


o doutor disse que meu pulmão estava manchado. Também

22 Entrevista concedida por MEDEIROS, Maura de Araújo. Entrevistador: Mary Campelo de Oliveira. Caicó/
RN, 2015.

201
Diversidade Religiosa & História

estava desempregado, e tinha perdido minha moto, cheguei


ao túmulo de Carlindo e ajoelhei pedindo a ele para me ajudar.
Um dia estava em casa dormindo na rede, e acordei com Car-
lindo na minha frente falando que veio para me ajudar. Depois
disso, meu pulmão melhorou mesmo continuando bebendo
e fumando, arranjei um emprego de pintor em uma oficina,
e consegui comprar uma moto nova. Vejo Carlindo como um
santo, e seu túmulo é o mais visitado aqui no cemitério, todo o
momento que venho aqui beijo a foto de Carlindo.23

Nesse caso, Alberto, também tinha problemas em conseguir um


emprego e, recorrendo a Carlindo para alcançar trabalho, conseguiu o
serviço de pintor em uma oficina. Sente-se feliz porque o milagreiro lhe
ajudou na hora em que se viu frustrado com as adversidades da vida. Além
disso, ele também declarou que recuperou sua moto, graças ao seu inter-
cessor. Alberto ainda mencionou que estava com o pulmão infeccionado
por causa da bebida e do cigarro que ingeria em grandes quantidades. Este
problema de saúde foi curado por Carlindo que, em forma de gratidão,
recebe beijos em sua foto a cada visita realizada pelo devoto no cemitério.
Isto demonstrou que os fiéis vão até Carlindo com os mais variados
pedidos, na certeza que seus problemas serão solucionados. Apesar de
Carlindo ser médico, seus devotos não se limitam apenas às questões mé-
dicas. Na hora da necessidade são feitas petições para solucionar questões
tais como desemprego, relações amorosas, realização profissional, entre
outros, confirmando o poder que Carlindo opera nas distintas situações
do cotidiano. São devotos que, diferentemente do público que conheceu
Carlindo, estão inseridos em um novo contexto urbano que exige deles
outras necessidades.
A ação de beijar a foto do milagreiro é uma maneira que o devoto
encontrou de mostrar seu carinho a Carlindo Dantas. Em uma das visitas
que realizamos no cemitério, deparamo-nos com Alberto arrumando a
sepultura de Carlindo. O devoto comentou em poucas palavras “que fazia
aquilo porque não gostava de ver a cova desarrumada, porque Carlindo é
um santo”. É no cemitério que se busca uma aproximação com seus mor-

23 Entrevista concedida por SOUZA, Alberto José de. Entrevistador: Mary Campelo de Oliveira. Caicó/RN, 2012.

202
Diversidade Religiosa & História

tos queridos, que mesmo distanciados pelas leis do mundo sobrenatural,


mantêm viva a lembrança de um passado presente.
Temos ainda a entrevistada Kadja Fernandes de Souza da cidade
de Caicó. Esta devota apresentou informações que foram rememoradas a
partir dos depoimentos revelados pela sua mãe:

Eu não cheguei conhecer Carlindo, assim essa devoção veio


pelos meus pais que sempre me contavam histórias dele. Então
eu acendo velas no túmulo, mando celebrar missas pra ele. Eu
tinha uns treze anos na época quando eu comecei ir ao cemité-
rio porque eu tenho muita fé em Carlindo. O que me chamava
a atenção era uma perna, uma cabeça, um pé, uma mão, pois
quando você entra no cemitério é a primeira cova que a gente
vê. Também escutava o pessoal falando que ele era um médico
muito bom e que já tinha conseguido milagres. Então são essas
coisas que leva a pessoa a ser devota né? A gente diz: minha
Nossa Senhora me ajude, eu faço isso com Carlindo.24

Kadja faz comparação entre Carlindo e outros santos, pois pedir


que o finado Carlindo lhe ajude, é a mesma coisa de clamar por Nossa
Senhora. Existe uma equiparação entre os poderes de Carlindo e o da
Virgem Santíssima que protege os pecadores.
O discurso das pessoas que conheceram Carlindo o qualificou
como o médico muito bom, isso, por sua vez, deveu-se ao fato de Carlindo
ter atendido gratuitamente as famílias sem condições financeiras. Essas
ações caridosas tornaram-se verdades cristalizadas, colocando-o na po-
sição de intercessor entre Deus e os homens. Esporadicamente foi se for-
mando um grupo de indivíduos responsáveis por estruturar uma memória,
e uma identidade sobrenatural para Carlindo. Um grupo, no qual, Kadja se
sente pertencente, na medida em que, ela acredita que faz parte de uma
devoção em que ela não foi a única a receber os milagres de Carlindo.
Se a narradora foi até Carlindo pedir a sua intercessão nas circuns-
tâncias difícil da vida, é porque ela pensa em comum e se identifica com
as pessoas que também acreditam na intermediação de Carlindo. É esta

24 Entrevista concedida por SOUZA, Kadja Fernandes de. Entrevistador: Mary Campelo de Oliveira. Caicó/
RN, 2015.

203
Diversidade Religiosa & História

comunidade espontânea do qual a devota se encaixou e busca vivenciar


o passado com eles.
Mas que passado é esse? Um passado, no qual, Carlindo se des-
tacou como o médico caridoso e assassinado injustamente por aqueles
que não conseguiram ser igual ele. Um médico popular em vida e após a
morte um intercessor, um santo, um espirito de luz, seja qual for a designa-
ção usada pelos seus devotos, Carlindo se constitui um passado sempre
relembrado pelos seridoenses.
Um compromisso mantido pelo “contrato de memória” em que o
milagreiro opera o milagre e o devoto cumpre sua promessa permitindo
que o pacto da memória não seja limitado temporalmente em sua valida-
de. Carlindo é um morto-vivo que só morre completamente quando de-
saparecem os últimos que estavam em condições de recordá-los (ROSSI,
2010, p. 24).

Considerações Finais

Nesse sentido, constatamos como resultado da pesquisa a


existência de uma devoção não oficial presente na cidade de Caicó/RN.
Carlindo de Souza Dantas após sua morte considerada trágica tornou-se o
morto mais visitado do cemitério Campos Jorge. Atuando na vida dos seus
devotos de maneira sobrenatural, na medida em que, opera milagres e
concede graças aos seus fiéis.
Carlindo Dantas conhece a cidade de Caicó e seus habitantes
porque viveu e passou pelas mesmas angústias que os caicoenses sofrem
atualmente. As gerações posteriores a Carlindo o consideram um ancestral
e procuram no “reencontro simbólico com ele o reconforto e a graça para
continuar a luta” (OLIVEIRA, 1985, p. 120).
Esse milagreiro se tornou o próprio milagre para os seus devotos,
os quais identificam nele um passado marcado por generosidade ao serta-
nejo pobre. Por isso, respeitam-no da mesma maneira como reverenciam

204
Diversidade Religiosa & História

Nossa Senhora de Sant’Ana25. Assim, ressaltamos uma devoção marcada


por mitos, pela oralidade, pela fé e por uma memória seletiva, na qual
Carlindo assumiu o posto de médico espiritual.
Assim, as práticas religiosas dos fiéis evocam ações especializadas,
as quais mesmo não sendo verbalizadas e nem conscientemente ensina-
das tornam-se importantes para a propagação da devoção aos milagreiros.
A posição e a postura de cada devoto expressam não somente o desejo,
mas a autoridade que cada um goza na comunicação com o intercessor.
A gratidão por parte dos fiéis é conceituada a partir de duas defi-
nições. Para Zeny Rosendahl, os indivíduos, ao receberem benefícios dos
santos protetores, ligam-se a eles por meio de uma aliança. Esta é um
“modo devocional” em que o fiel está encarregado de manter um contínuo
culto de veneração com características particulares ao intercessor que,
em troca, sustenta a responsabilidade de proteger o devoto nessa vida e
facilitar seu acesso ao céu (ROSENDAHL, 1999, p. 62).
O ato de pagar promessa se constituiu na marca indelével da religiosi-
dade praticada pelo povo. A promessa, uma vez correspondidas, proporciona
a relação de intimidade entre o devoto e o intercessor. Nesse caso, o túmulo
do milagreiro torna-se o espaço mais procurado para o cumprimento do voto.
A sepultura também mantém um papel relevante na divulgação da devoção
a Carlindo, porque o sagrado habita o seu túmulo e se manifesta aos serido-
enses quando curas são efetuadas na vida dos crentes.
Portanto, os aspectos da devoção a Carlindo Dantas salientados
nesse capítulo demonstraram que a cidade de Caicó exprime várias formas
de se relacionar com o sagrado. Se as missas, as romarias e as festas à Nossa
Senhora de Sant’Ana caracterizam o sagrado oficial, Carlindo simboliza o
sagrado não institucionalizado que operou e ainda opera milagres aos caico-
enses. Essa distinção entre o oficial e o não oficial não é considerada por esses
devotos, já que para este o que importa é a resolução dos seus problemas,

25 Nossa Senhora de Sant’Ana é a padroeira oficial da cidade de Caicó\RN. Sua festa ocorre no dia 26 de
julho e é considerado um evento tradicional sociorreligioso para seus devotos. A fundação da cidade de
Caicó deve-se uma promessa realizada a Santana, por um sertanejo que desejava encontrar um poço de
água, durante uma forte seca no Seridó. Até hoje existe na cidade o Poço de Santana que nunca secou,
tornando-se o símbolo da cidade de Caicó\RN.

205
Diversidade Religiosa & História

independentemente da condição canônica do sagrado. Logo, Carlindo Dantas


se tornou o milagreiro das causas impossíveis do povo seridoense.

Referências

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de uma devoção. 2008. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná,
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Edição do Autor, 2015.

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Zouk, 2005.

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WEINRICH, Herald. Esquecimento mortal e imortal. In: WEINRICH, Herald. Lete: arte e crítica
do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

206
AS TRAGÉDIAS DE DONÁRIA E MARIA:
SECA, CRIME E MILAGRES NO SERTÃO
PARAIBANO - SÉCULOS XIX E XX

Lourival Andrade Junior1

Resumo
A seca de 1877-1879 é apontada como uma das causadoras das maiores tragédias
nos sertões nordestinos. Foi na cidade de Pombal, sertão paraibano, que em 1877,
a menina Maria foi assassinada por sufocamento, sua cabeça decepada e partes
de seu corpo consumidos pela retirante Donária dos Anjos. O local do crime se
transformou em espaço sagrado. Suas tragédias marcaram com sangue e fé a
história de um dos mais terríveis flagelos brasileiros: a miséria.
Palavras-Chave: Sertão. Milagre. Crime.

Abstract
The 1877-1879 drought is regarded as one of the causes of the greatest tragedies in
the arid northeastern Brazilian hinterlands, known as sertão. It was in 1877, in the city
of Pombal, in the interior of Paraíba, that the retirante Donária dos Anjos murdered
the girl Maria by suffocation. She cut off her head and consumed parts of her body.
The crime scene has become a sacred site. Their tragedies marked, with blood and
faith, the history of one of the most terrible scourges in Brazil: misery.
Keywords: Sertão. Miracle. Crime.

1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Programa de Pós-Graduação em História dos Sertões.

207
Diversidade Religiosa & História

“Sertão rude das secas causticantes


Esfumadas montanhas comburidas
As pessoas, com fome, perseguidas,
Se afastam de ti como emigrantes”
(Canção de João Batista de Siqueira).

O sertão nordestino foi marcado por terríveis secas durantes


séculos, e cada uma delas deixou marcas incuráveis na vida e no imagi-
nário sertanejo. O poeta Cancão (1912-1982), em seus versos no poema
“O Sertão” publicado originalmente em 1969 no livro “Flores do Pajeú” e
reeditado em 2013 pela editora CEPE, nos mostra neste e em outros versos
a dura vida no sertão seco. Muitos homens e mulheres não tinham outra
alternativa senão fugir para regiões menos assoladas pela miséria imposta
pela natureza e pela falta de políticas públicas. Muitos sertanejos rumaram
para o sul, sudeste e norte desde o final do século XIX, sobretudo após a
grande seca de 1877-1879. Assim, foi com Donária dos Anjos, jovem de
18 anos que saiu de sua cidade arrasada pela seca no sertão paraibano e
rumou para uma das cidades mais importantes naqueles tempos também
na Paraíba, Pombal. Lá, cometeu um crime que marcou a história da região
até os dias atuais.
O sertão em que se passou o evento e seus desdobramentos era
seco, consumido pela estiagem prolongada e estéril de políticas públicas
que minimamente amenizassem os sofrimentos de milhares, senão milhões,
de brasileiros. O sertão como categoria foi se alterando com o passar do
tempo, até se consolidar no imaginário popular e em boa parte dos estudos
sobre o Brasil, como sendo única e exclusivamente o nordestino, o que por
obviedade esvazia seu significado mais profundo. Sabemos que o “conceito
de ‘sertão’ foi construído pelos portugueses, dependendo, para ser expresso,
da localização do seu enunciante — geralmente um colonizador” (AMADO,
1995, p. 149), sua localização foi marcada pela movência constante. O sertão
podia ser o logo ali a partir das fronteiras já colonizadas como também as
longínquas florestas da Mata Atlântica e Amazônica. Bastava estar distante
da urbanidade consolidada pelos colonizadores que o sertão aparecia como
o espaço a ser desbravado e dominado. O sertão verde e molhado era tão
inóspito e perigoso quanto o sertão seco e aparentemente improfícuo. O

208
Diversidade Religiosa & História

sertão que fazia parte das realidades de Donária e Maria era este segundo.
O sertão real da seca e do abandono.
As secas no atual nordeste são descritas desde o século XVI, mas
por conta de nosso recorte temporal estabelecido pelo crime praticado
por Donária, é fundamental entender a seca de 1877-1879. Avassaladora
no nordeste, ainda descrito como Norte, a seca de 1877 trouxe novos
olhares para esta região, que mesmo já tendo sido assolada por tantas
outras, fez com que o Brasil, observasse de forma mais atenta e perplexa o
que ocorria ao norte das províncias do sul. Além da visibilidade da extrema
pobreza da região, agravada pela falta de chuvas e de uma convivência
precária com o semiárido, por falta de políticas públicas adequadas e am-
plificada pela ganância de muitos produtores que viviam nos espaços da
estiagem prolongada, a “seca passa então a ser sinônimo de multidões de
retirantes que, premidas pela fome, percorrem as estradas na esperança
de adquirirem meios para uma dura sobrevivência” (CÂNDIDO, 2014, p. 19).
Estas misérias que levaram milhares de sertanejos a abandonarem
suas terras em diversas partes “desde localidades do centro de províncias
atingidas pelas secas (sobretudo o Ceará, mas também Paraíba, Rio Gran-
de do Norte, Pernambuco e Bahia) saíam sertanejos fugindo da fome e da
completa miséria a que se viam reduzidos” (CÂNDIDO, 2014, p. 97). Muitos
migraram para regiões distantes, no entanto, por falta total de recursos
e forças, vários partiram para centros urbanos nas proximidades de suas
terras de origem. Assim foi com Donária dos Anjos.
A literatura muito mostrou sobre situações limites em que viviam
os sertanejos em tempos de secas. Desde o século XIX e adentrando o
século XX, muitas obras exploraram a temática, entre elas: “Os Retirantes”
de José do Patrocínio (1879), “Ataliba, o vaqueiro” de Francisco Gil Castelo
Branco (1880), “A Fome” de Rodolfo Teófilo (1890), “Os Sertões” de Euclides
da Cunha (1902), “Luzia-Homem” de Domingos Olímpio (1908), “A Bagacei-
ra” de José Américo de Almeida (1928), “O Quinze” de Rachel de Queiroz
(1930) e “Vidas Secas” de Graciliano Ramos (1938), isso para ficar apenas
nas últimas décadas do século retrasado e as três primeiras do passado.
O desconsolo do sertanejo que observava a continuidade da seca
para além de 1877, é demostrado também em diários que nos alertam

209
Diversidade Religiosa & História

que a fé, na maioria dos casos, era a única esperança que restava, como
podemos ler no Diário de Laurentino Bezerra de Medeiros2 escrito entre
1856 e 1879 no Seridó Potiguar.

1878
Ao raiar deste novo ano estão todos os entes pensantes com
suas esperanças voltadas para Ele, como o salvador de tantas
calamidades que vão neste Mundo, uma couza incomprehen-
sivel é ver-se bradar neste tempo tanta miséria e calamidade
(sic) (ARAÚJO et al., 2015, p. 38).

Os relatos de mortes associadas às secas ficam evidentes quando


consultados os livros de óbitos de diversas Freguesias espalhadas pelos sertões.
Não eram poucas as descrições de falecimentos tendo como causa mortis a
fome e o beribéri, doença causada pela falta de uma alimentação adequada
ou mesmo da falta dela, além de insuficiência de vitamina B no organismo.3
Adentrando o século XX, as secas teimavam em roubar a esperan-
ça e a vida dos sertanejos. Quando observamos que muitos rumaram para
regiões próximas para fugir da fome extrema, anotamos um dos mais terrí-
veis flagelos humanos de toda a história do Brasil: o surgimento de campos
de concentração para que os retirantes não entrassem em cidades que
já sopravam ares de modernidade e embelezamento. O farmacêutico e
escritor Rodolfo Teófilo descreve sua visita ao Campo de Concentração de

2 Laurentino Bezerra de Medeiros (1833-1898) dono de terras na região de Currais Novos/RN, foi líder do
Partido Liberal na região, eleito para a Assembleia Legislativa no biênio 1886-1887. Foi Juiz, sub delegado
provincial e líder da Guarda Nacional. Em 1888, tornou-se presidente da Comissão Libertadora que aboliu a
escravidão na região em 19 de março de 1888. Com a República foi nomeado primeiro Intendente Municipal
da vila de Currais Novos.
3 Em um rastreamento feito em livros de óbitos de espaços sertanejos, o pesquisador Helder Alexandre
Medeiros de Macedo, em informação que nos foi concedida, encontrou referências a mortes por fome e/ou
beribéri no Livro 2 da Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso de Pombal (1879-1889), na Paraíba, a
partir de 1878. E, no âmbito da Província do Rio Grande do Norte, as mesmas indicações de mortes no Livro
2 da Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari (1872-1907), de 1878 a 1880 e no Livro 1 da Freguesia
de Nossa Senhora da Conceição (1857-1913), do atual município de Jardim do Seridó, de 1877 em diante.
O Livro 4 da Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, que vai de 1857 a 1889, também dispõe
de registros da mesma natureza de causa mortis para a seca de 1877-1879, conquanto, esteja bastante
prejudicada sua leitura cronológica, em função do estado de conservação das páginas do mesmo. Tais
fontes históricas encontram-se disponíveis nas secretarias das paróquias referidas e podem ser acessadas,
também, de forma on-line, por meio do site da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, no
endereço https://www.familysearch.org. Acesso em: 9 jul. 2021.

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Diversidade Religiosa & História

Alagadiço, nas proximidades de Fortaleza/CE, espaço este que servia para


impedir a entrada desses retirantes na cidade. Estes seres humanos viviam
ao relento sob a sombra de árvores resistentes e em míseros casebres
que por conta de sua fragilidade construtiva e com tetos pouco protetivos,
estavam sujeitos ao forte sol que consumia a cada dia suas forças. Comiam
ao ar livre e coziam em latas sujas e com apenas algumas verduras mal
cheirosas e já em estado de putrefação, acompanhadas de pedaços de
carne de boi assustadoramente mal conservados. Refletindo o que via,
Teófilo nos informa que estava diante de uma carne “só digna de urubus”
(TEÓFILO, 1980, p. 57) e que segundo informantes aquela ainda era uma
boa carne para ser consumida, comparadas com outras que chegavam de
“rezes que morriam de magras ou do mal” (TEÓFILO, 1980, p. 57) e que por
isso eram enviadas àquele lugar: o Campo de Concentração.
As descrições que se sequem são ainda mais aterradoras. Homens,
mulheres e crianças eram obrigados a beber água contaminada, já que os
locais de acondicionamento ficavam exportas a todo tipo de excrementos
animais. A comida era pútrida e as condições higiênicas do local eram as
piores possíveis. A seca os levou para uma prisão ainda pior que as terras
calcinadas em que viviam, e como não encontravam outra alternativa nes-
tes vastos sertões miseráveis, o que sobrava era aceitar sobreviver nestas
condições desumanas. A volta para a terra de origem parecia impossível.
A seca não pode ser vencida. Conhecer o espaço geográfico e
a climatologia, deveriam contribuir para esforços de convivência com o
semiárido e seus infortúnios, sobretudo em períodos prolongados. Pouco
se fez sobre este aspecto, deixando uma população completamente
desassistida e tendo que se lançar na escuridão da incerteza ao cruzar a
caatinga para buscar uma condição mais digna de vida para si e para os
seus. A natureza não pode ser culpabilizada pela incompetência, sobretu-
do governamental, em lidar com a vida humana em condições adversas.
O ser humano ao longo de sua existência foi buscando se adaptar as estas
situações e assim passou a viver

[...] em regiões geladas, em regiões desérticas, em áreas de


nevadas frequentes, sem contudo, serem registradas cenas

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Diversidade Religiosa & História

dantescas de migrantes esfomeados, de crianças raquíticas,


de solo estorricado, de açudes secos, de retirantes em revoa-
das incertas, de animais mortos (MOREIRA NETO, 2013, p. 58).

Este foi o cenário e o drama vivido por retirantes e por moradores


teimosos que continuaram em suas terras nos sertões nordestinos, sobre-
tudo no final do século XIX.
Também o cordel, gênero literário que possui suas raízes nos ser-
tões nordestinos, mostrou por meio de suas estrofes em sextilhas, sétimas,
oitavas e décimas o quanto a seca fez parte da vida de todos que pelos
interiores viviam. De modo geral, os cordéis guardavam um certo saudo-
sismo de um sertão que aos poucos vai sendo alterado pela modernidade,
mas sobretudo por um sertão que vai ficando para trás, em que o sertanejo
necessitava partir para salvar a si e sua família por conta de secas inclemen-
tes. Aquele lugar de valentes e trabalhadores, “que antes parecia o paraíso,
agora está mais próximo do Juízo Final” (CURRAN, 2011, p. 146).
Um dos cordelistas que melhor demostrou a dor dos sertanejos
quando da chegada da seca foi o cearense Expedito Sebastião da Silva
(1928-1997), que no seu clássico folheto “Os Horrores e a Seca do Nordeste”
descreve toda a angústia de famílias que perderam o sorriso e a alegria
de viver, vendo as plantações secarem e animais serem devorados pelos
urubus. Na sua necessidade premente de comida e água, aproximavam-se
de armazéns e pequenos comércios para pedirem o mínimo para sobre-
viverem, estarrecidos e cansados, viam as portas se fecharem quando se
aproximavam. Mendigavam pelas ruas por um mísero pedaço de pão ou
suplicavam aos comerciantes um punhado de farinha e neste périplo ine-
ficaz e cruel voltavam “para casa de mãos vazias e, vendo a mulher o os
filhos com fome, enlouquecem de desesperança. Fora de si, retornam à vila,
rompem cercos e invadem o mercado e os depósitos de cereais, numa pro-
cura desesperada de comida” (CURRAN, 2011, p. 146). A fome fez o pacato
sertanejo se transformar em um bandido aos olhos da justiça e das elites
econômicas e políticas, rurais e urbanas. Nos versos de Expedito Sebastião
da Silva, esse desalento causado pela miséria ficou escancarado.

212
Diversidade Religiosa & História

Pois a fome quando é pouca


Com paciência se espera
Mas passando do normal
Qualquer um se desespera
Aí se ataca a quem tem
Pois a fome quando vem
Tem a presença de fera (SILVA, s.d., s.p.).

Diante de tanta escassez não sobrava alternativa a não ser partir


para outra cidade e tentar empregar-se ou algo que garantisse a sua so-
brevivência e da família. O problema é que a situação de miséria não se
restringia a uma vila em especial, mas a toda uma região. Até mesmo as
míseras doações enviadas pelo governo provincial não eram suficientes
para todos, ou seja, uma grande massa de retirantes ficava sem nada, res-
tando apenas a “espera num desespero silencioso” (CURRAN, 2011, p. 147).
Muitos não esperaram e partiram para outras regiões não assoladas
pela seca, ou ainda entraram para bandos de cangaceiros, deslocaram-se
para redutos messiânicos buscando o sagrado e a solidariedade ou en-
frentaram a fome das mais diversas formas, inclusive cometendo crimes.
No caso de Donária dos Anjos, esta última foi a forma por ela encontrada.
Partiu de Piancó para Pombal, ambas no sertão paraibano, no ano de
1877, percorrendo cerca de 80 quilômetros atravessando uma vegetação
espinhenta e destruída pela seca prolongada. Sua viagem foi radicalmente
difícil, sua chegada não foi diferente.
Pombal, ou Vila de Pombal, foi elevada à condição de cidade em
1862 e tornou-se uma das urbanidades mais importantes do sertão parai-
bano. Com a presença de inspetores de quarteirão e de um Juizado, po-
de-se calcular o tamanho da cidade naqueles tempos, que ainda possuía
“um açude público, um mercado, uma igreja, a cadeia e casa da Câmara.
Desenvolvia-se, na pecuária, a criação de bovinos, que era uma das fontes
principais de sua riqueza” (ARAÚJO, 2013, p. 12).
Pombal, no final do século XIX era um dos destinos de centenas
de retirantes que acreditavam encontrar ali, lugar para ficar, trabalhar e se
alimentar. Mesmo com sua condição financeira superior a todas as vilas e
cidades da região, também sofria com a seca e com a elevada presença de

213
Diversidade Religiosa & História

migrantes. O trabalho era quase inexistente e a ajuda governamental não


garantia a sobrevivência dos que para ali se deslocavam. Neste espaço de
esperança que se transformava em desilusão a cada dia, o esperar se tornou
martírio para homens e mulheres, trabalhadores das roças sertanejas que
viam o seu sonho se despedaçando a cada negativa de trabalho e comida.
Atualmente, Pombal é cantada pelos artistas populares como um
lugar de múltiplos encantos, como podemos observar nesta setilha que
compõe o folheto “Pombal cantado em Cordel”:

Pombal é um berço fértil


abundante e acolhedor
cheio de vida e cultura
de esperança e amor
dos mais bonitos do mundo
com seu encanto profundo,
magnífico e promissor (DANTAS, 2011, p. 2).

Esta realidade não era sentida no final do século XIX, sobretudo após
a seca de 1877. Antes disso as descrições de Pombal eram de uma cidade
pacata e promissora, muito ligada a vida rural, em que sua população se des-
locava para a cidade apenas nos dias de feira e eventos religiosos, sobretudo
novenários e festas de padroeiros. Mas, a seca fez com que esta situação
mudasse e o êxodo para o núcleo urbano de Pombal, como também para
outras regiões do nordeste ocorressem e a “morte por fome converteu-se
em personagem principal, de um espetáculo macabro, impressionante, onde
se viam famílias mortas pelos caminhos inaptos do sertão, um holocausto
equivalente a muitas guerras” (ABRANTES, 2006, p. 3-4).
Essa mesma visão aterradora pode ser sentida em outro cordel in-
titulado “O triste drama das secas e o pranto dos Nordestinos” de Apolônio
Alves dos Santos (1926-1998) em sua décima primeira estrofe

Ver-se a criancinha magra


faminta dentro da rede
desnutrida e cadavérica
morre de fome e de sede
ficam os pais tristes chorando
recostados na parede (SANTOS, s.d. p. 3).

214
Diversidade Religiosa & História

É neste cenário que Donária dos Anjos encontrou em Pombal sua


vítima. A fome corroeu toda a humanidade de Donária. A visualização da
morte de tantas pessoas e provavelmente, a sensação de sua própria, fez
de uma jovem a protagonista de um dos crimes mais comentados na pro-
víncia paraibana, levando diversos setores da sociedade a se questionar
sobre a sanidade mental de uma pessoa tomada pela inanição e que a
elevou ao mais alto grau de desumanização. A fome marca os corpos, as
mentes, os espíritos e abala todas os rigores morais em nome da sobre-
vivência. Assim, “excitados pela imperiosa necessidade de se alimentar,
os instintos primários, são despertados e o homem, como qualquer outro
animal faminto, demonstra uma conduta mental que pode parecer das
mais desconcertantes” (CASTRO, 1982, p. 249).
Donária dos Anjos e Maria estavam vivenciando esta calamitosa
realidade de fome e abandono no sertão paraibano em 1877. O encontro
das duas em Pombal se deu pela miséria e as colocou frente a frente, tendo
como objetivo a busca desesperada por comida. De onde veio Maria não
se sabe, inclusive os restos de seu corpo morto nunca foram reclamados
por familiares. A situação era tão desoladora que os relatórios que davam
conta da situação na Província da Paraíba neste período, enumeravam
mortes de todo o tipo, além de relatarem que os pais “por sua miséria tem
abandonado seus filhos, de sorte que as ruas vivem cheias de meninos e
meninas no estado mais pungente que se pode imaginar. Há mulheres que
vivem nuas e morrendo de fome” (ABRANTES, 2006, p. 5). Maria era uma
destas crianças. Donária poderia se tornar uma destas mulheres.
Maria e Donária eram corpos da seca. Suas condições físicas,
diante da fome e do abandono, nos fazem lembrar as imagens captadas
por José do Patrocínio em 1878 no Ceará, quando em missão jornalística
cobria a seca e de certa forma observava como os recursos governamen-
tais estavam sendo utilizados na província, já que era jornalista da Gazeta
de Notícia do Rio de Janeiro. Uma das fotografias que mais chocou a
população da capital imperial foi reproduzida pelo recém criado jornal “O
Bezouro — folha illustrada, humorística e satyrica” na primeira página do
dia 20 de julho de 1878, em que duas crianças magérrimas aparecem em
cartões de visita segurados por uma mão de ossos vestindo um paletó em

215
Diversidade Religiosa & História

punhos de camisa. A foto original de José do Patrocínio foi reproduzida em


desenho por José Bordalo Pinheiro e impressa em litografia no jornal. A
matéria que se seguia dava conta da situação de miséria que a população
se encontrava no Ceará e em todas as regiões destroçadas pela seca.
Mesmo que a fotografia de Patrocínio tenha passado por peque-
nas mudanças quando transformada em desenho (por exemplo, os trajes
das crianças foram retirados e elas aparecem, uma nua e outra seminua),
a imagem capturada por ele tinha a intenção de mostrar de forma inequí-
voca a situação de miséria que se encontravam todas as vítimas da seca,
“a fotografia funcionava como um recurso discursivo mais poderoso para
falar dos acontecimentos e também como prova documental, ao mostrar
que não se tratava de palavras inventadas, pois bastava ver as imagens
para crer no ocorrido” (BARBALHO, 2005, p. 141).
Os famintos de 1877 tinham corpos que se assemelhavam na dor,
não eram apenas números estatísticos e desumanizados. Os historiadores
e historiadoras “ignoram que a carne sente dor, que se desmonta com a
putrefação, que tem desejos, ereções e derreamentos que nunca apare-
cem na escrita da história” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2020, p. 153).
Os corpos sentem fome. Donária era uma retirante, expulsa de sua
terra natal pela calamidade, migrou para a cidade mais próspera que lhe
era acessível. Seu corpo cansado e cadavérico, efeitos da viagem pela
caatinga seca, abrolhada e causticante, acampou na periferia da cidade
desejada. Foram dias frustrados em busca de víveres e trabalho. Por não
conseguir nenhuma coisa e nem outra e a fome persistindo em corroer
suas entranhas e sua mente, cometeu um crime e se alimentou da carne
de sua vítima. O corpo pede comida, mesmo que o alimento seja o corpo
do outro. Não diferente, o corpo da menina Maria também sofria com a
fome em uma cidade que poderia ser a de nascimento, mas também po-
deria ser o local que chegou junto com mais uma família de retirantes. Os
corpos das crianças da seca são esquálidos, pele e osso. A sujeira e a falta
de higiene dos locais em que viviam, acompanhado da falta de nutrientes
básicos, fazia delas borrões na paisagem dos famélicos. Dois corpos fa-
mintos que se encontraram. Um desejo em comum: matar a fome. Uma,
momentaneamente, conseguiu.

216
Diversidade Religiosa & História

No início de 1877 a cidade de Pombal recebia uma infinidade de pes-


soas fugindo de vilas, povoados e fazendas que estavam sendo destroçadas
pela seca insistente. Mesmo a cidade sofrendo com a tragédia da falta de
chuva, era ainda o local mais adequado para aqueles que nutriam alguma
esperança em conseguir sobreviver. Chegar na cidade, vindo de qualquer
direção já era um enorme desafio, “isolada e com acesso exclusivamente
por caminhos de terras, a época era dos carros de bois e cascos de cavalos
pelas veredas do sertão” (ABRANTES, 2006, p. 3). No entorno a vegetação
catingueira se estendia ao longe, perdendo-se de vista, transformando o
lugar em uma fortaleza de garranchos e lanças de paus secos. Transpor
este espaço já era uma incalculável provação, sobretudo quando os corpos
frágeis e fracos perdiam as forças a cada passo que conseguiam dar.
No caminho para o Arraial de Canudos, Euclides da Cunha pode
observar e experenciar a caatinga em tempos de seca, e sua descrição
aponta para o desafio de vencer este espaço. Publicado em 1902, Os Ser-
tões nos coloca diante da realidade que milhares de retirantes tiveram que
superar para além de todas as dificuldades que já lhes eram impostas pela
fome, também suplantar a natureza para chegar em outro lugar que para
muitos era a única possibilidade de sobrevivência. O olhar do autor nos
dá a dimensão de um sertão seco e castigado pela seca em que “esterili-
zam-se os ares urentes; empedra-se o chão, gretando, recrestado; ruge o
nordeste nos ermos; e, como cilício dilacerador, a caatinga estende sobre
a terra as ramagens de espinhos...” (CUNHA, 2016, p. 49). Sua descrição nos
transporta para o terreno árido e desafiador que seguidores de Antônio
Conselheiro tiveram que superar, e mentalmente, conseguimos nos des-
locar para o sertão paraibano e também compreender quão terrivelmente
foi para Donária atravessar uma região tão sofridamente vivenciada por
tantos sertanejos despojados de bens e entregues à própria sorte. A indi-
gência imposta aos sertanejos, sobretudo nos períodos de seca extrema,
fez com que se lançassem nestas paisagens de penúria e tivessem que
novamente lutar contra a morte. Chegar vivo ao lugar da esperada pro-
missão já era uma grande vitória contra a moça Caetana, como descrevia
Ariano Suassuna, a morte sertaneja (SUASSUNA, 1977). Sobreviver no lugar
da chegada era uma nova luta a ser vencida.

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Diversidade Religiosa & História

A descrição da terra seca em obras literárias e matérias jornalís-


ticas, entre outras, nos coloca diante da vegetação em sua magnânima
resignação em sobreviver diante da falta de água, mas ao mesmo tempo
se coloca como barreira natural entre o homem e seu caminhar. A vegeta-
ção da caatinga também é resistente. Ao ser humano cabia sobreviver sem
água e ainda desafiar a caatinga em tempos de seca. Mais um empecilho
na realidade experiencial de homens e mulheres que decidiam abando-
nar suas terras de nascença e encontrar lugares mais adequados à vida
humana. Com certeza, este foi o cenário que Donária dos Anjos teve que
enfrentar ao sair de Piancó/PB para Pombal/PB. Em quase um dia de via-
gem, sem paradas prolongadas, desafiando o sol avassalador, a vegetação
seca, as pedras e pedregulhos cortantes do caminho, além dos desafios
pessoais relativos ao cansaço, fome, fraqueza e tantos outros problemas
relativos as péssimas condições de vida que ela se encontrava a exemplo
de tantos outros que fizeram este e outros trajetos em fuga pelos sertões.
Ao chegar em Pombal, novamente Donária era uma sobrevivente.
Encontrou uma cidade em frangalhos como tantas outras. Não havia uma
política pública de distribuição de alimentos aos famintos, obras sociais
ficavam ao encargo de escassas missões religiosas e de beneméritos
comerciantes e cidadãos abastados. O problema é que a seca atingia a
todos, indistintamente. Ou seja, não havia quem acudisse os retirantes.
Vale ressaltar que durante o século XIX várias missões de es-
tudiosos percorreram os sertões do Norte e deixaram amplo material
informativo e com propostas para aplacar as consequências geradas pela
seca. Segundo Sylvia Thereza Bené de Oliveira Sabino, algumas iniciativas
foram tomadas, mas a essência dos projetos que impactariam no tocante
a sobrevivência de um número expressivo de pessoas ficou no papel. Mas,
com as publicações de trabalhos sobre a seca de 1877-1879 “é que se criou
uma mentalidade à pronta execução e obras que pudessem atenuar os
efeitos das secas, passando o problema para o âmbito nacional, devido às
enormes proporções da calamidade” (SABINO, 2002, p. 43). Neste sentido,
Donária e seus contemporâneos não foram tocados por estas melhorias,
mesmo que absolutamente paliativas, mas que gerariam pelo menos
mínimas condições de sobrevivência.

218
Diversidade Religiosa & História

O que sobrou para Donária? A mendicância. Mas, quem naquelas


condições estava disposto a ajudar qualquer um que fosse. Moradores e
retirantes eram personagens da mesma tragédia. E a menina Maria, da
mesma forma, implorava por comida no entorno do Mercado Público,
também vazio de víveres.
No dia 27 de março de 1877, Donária dos Anjos saiu de sua morada,
perto do cemitério local, distante da região urbana da cidade, e se dirigiu
para o Mercado Público para buscar o que fosse preciso para minimizar sua
fome. Lá chegando não encontrou qualquer alimento, nem mesmo pessoas
dispostas em ajudar. Todas precisavam de socorro. Foi neste momento que
ocorreu o encontro entre ela e a menina Maria. Vale salientar que a menina
não tinha sobrenome, como se fosse apenas um nome genérico e ao mes-
mo tempo despersonalizado. Nenhuma família procurou as autoridades
dando conta de seu desaparecimento. Naquelas condições era uma pessoa
a menos para alimentar. A tragédia tem muitas faces.
As duas tinham muitas coisas em comum, mas uma em especial:
a fome. No que relata a própria acusada, ofereceu comida à menina de
cinco anos, mas disse a ela que o alimento estava longe dali. Ao que tudo
indica, Maria não ofereceu resistência e caminhou até o local em que vivia
Donária, sob uma frondosa oiticica na margem de um riacho, próximo à
estação de trem e ao cemitério (ABRANTES, 2006, p. 8). Lá chegando não
havia comida e o plano de Donária começou a ser executado, como pode
ser observado na denúncia encaminhada pelo Promotor de Justiça.

O Promotor Público da Comarca de Pombal, usando da fa-


culdade que lhe confere a lei, vem perante V.Sa., denunciar
a Donária dos Anjos, pelo fato que passa a expor: chegando
a denunciada, com a sua vítima, em seu antro, matou-a por
meio de sufocação, decepou-lhe a cabeça, reduziu o corpo a
diversos pedaços de carne, cozinhou parte deste, que comeu,
guardou outros em uma moita onde foram devorados pelos
cães. Num riacho que passa a pouca distância do Cemitério,
enterrou, à sombra de uma oiticica, a cabeça de sua desditosa
vítima, que foi exumada (SEIXAS, 2004, p. 416-417).

219
Diversidade Religiosa & História

A denúncia e o processo ficaram esquecidos durante oitenta e cinco


anos no Cartório do 1º Ofício de Pombal, sendo trazido à luz pelo escritor
e historiador Wilson Nóbrega Seixas, que, ao procurar documentos para
escrever a história da cidade, deparou-se com a documentação do crime
que até então era conhecida pelos relatos orais e pela existência de um mo-
numento no local do crime. Com o processo as tragédias das duas mulheres
vieram à tona, mostrando suas entranhas no conturbado ano de 1877.
A imprensa provincial também destacou o caso na época, notician-
do o início do julgamento, como pode ser lido no Jornal O Publicador de 24
de abril de 1877.

A 27 de março próximo findo a retirante Donária dos Anjos


encontrou na casa do mercado da cidade de Pombal a menor
Maria de cinco annos de idade, levou-a com o maior carinho
para sua casa, próxima ao cemitério; ahi chegando, decapitou
a mesma menor, enterrou a cabeça e comeu a carne do corpo
da sua victima! Presa, Donária confessou este horroroso crime
(sic) (ABRANTES, 2006, p. 4).

Da mesma forma que Maria não resistiu a sua algoz, Donária, nos
seus 18 anos de vida, também não resistiu à prisão e no seu depoimento,
levado a cabo pelo Juiz Municipal Dr. Venâncio Augusto de Magalhães
Neiva, deixou claro sua intenção e sua motivação: aplacar sua fome e que
esta foi causada pela seca. Acrescentou que estava arrependida do que
havia feito com a criança (ABRANTES, 2006).
Em outro momento de seu depoimento, a ré informou que não
comeu a cabeça e sobretudo as mãos e pés porque eram amargos. No
processo não aparece nenhuma outra pergunta relativa a esta declaração.
Donária poderia estar apenas supondo, mas também fica a dúvida se esta
já não era uma prática experenciada por ela ou por ter ouvido de outra
pessoa. Não saberemos, já que a documentação é omissa neste sentido.
Nos deparamos então, com um assassinato por sufocação, segui-
do de esquartejamento, ocultação de parte do cadáver e canibalismo. Aqui
preferimos este conceito, apropriado dos estudos arqueológicos, por dar
conta da especificidade do ocorrido, já que o ato do canibal é comer carne
da mesma espécie, ou seja Donária comeu a carne de Maria. O termo

220
Diversidade Religiosa & História

antropofagia, que significa comer carne humana, não se aplica, exclusiva-


mente, ao ser humano se alimentar de outro ser humano, mas de qualquer
espécie se alimentar de carne humana (SILVA, 2018). Donária, cometeu um
ato de canibalismo e com isso seu objetivo principal, diminuir sua fome, foi
momentaneamente alcançado.
Como era de se esperar, Donária dos Anjos foi condenada e cum-
priu pena na cadeia pública de Pombal por alguns anos (esta informação
se perdeu na documentação), mas ao que tudo indica não foi por muito
tempo, e ela atormentada, segundo o relato de memorialistas, ficou du-
rante alguns dias perambulando pelas ruas de Pombal até retornar para
Piancó, vivendo seus últimos dias em “isolamento social. Dela, poucos se
aproximavam e muitos a evitavam. Louca, ignorada por seus conterrâneos,
foi encontrada morta no chão de um casebre, nos arredores de Piancó e
sepultada sem nenhum cortejo” (SANTOS, 2013, p. 1).
A discussão sobre o crime e sua motivação pode gerar diversas
outras análises, inclusive no campo jurídico. Neste sentido, advoga-se que
o crime foi praticado por Donária para saciar sua fome, tendo como vítima
a menina Maria, e que a primeira o praticou levando em conta a manuten-
ção de sua própria vida, direito garantido para todos os viventes, ou seja “o
passo que a mesmíssima premissa assentada serve de fundamento para
defesa de um ângulo de ponderação como serve de fundamento para
defesa de outro ângulo de ponderação. Tudo, como dito, segue o curso do
direito de viver” (MOURA, 2009, p. 25).
A fome precisava ser estancada, assim pensava Donária. De outro
lado, Maria também desejava se alimentar, da mesma forma que milhares
de famintos retirantes espalhados pelos sertões nordestinos no final do
século XIX. Ou seja, aquilo que todos desejavam e buscavam era a vida. É
justamente isso que demonstra “que o bem jurídico vida serve como subs-
trato tanto para acusar quanto para defender Donária dos Anjos” (MOURA,
2009, p. 28).
Não há dúvida que Maria era a vítima mais vulnerável, por ser
criança e frágil, agravando-se a isso, suas fraquezas evidentes diante da
miséria que estava submetida. Mas em que pese as condições gerais
em que viviam os retirantes, Donária estava apenas distante na idade e

221
Diversidade Religiosa & História

possivelmente na força física. Eram personagens da mesma condição de-


sumana a que eram submetidos os pobres nômades involuntários, filhos
da fome, da incompetência governamental e da corrupção que fez parte
da constituição da indústria da seca, sempre beneficiando uma minoria
que enriquecia às custas da desgraça alheia e coletiva. Estes desvios de
recursos governamentais que deveriam beneficiar os mais pobres, “serviu
de tema para debates tanto no parlamento Imperial como no Congresso
Nacional” (FERREIRA, 1993, p. 73).
Os governos imperial e provincial em suas inércias, colocaram Do-
nária no limite de sua capacidade de se sentir viva e humana. Sem auxílios
e empurrada a própria sorte, viu-se diante de um dilema: morrer ou viver.
Optou pela sua vida.
Os escritos sobre o dilema da fome e suas consequências mentais
e físicas nos levam a acreditar que atitudes e pensamentos provocados
pela falta de alimentação adequada não são tão raros como se imagina.
Na literatura as agruras de determinadas personagens diante da fome nos
colocam diante de uma humanidade sempre no limite. Um dos romances
mais importantes da literatura universal é “A Fome” do norueguês Knut
Hamsun, ganhador do Nobel de Literatura em 1920. Publicado original-
mente em 1890 e traduzido no Brasil por Carlos Drummond de Andrade,
expõe de forma poética e dura a vida de um escritor que vivia rondando
com um pedaço de lápis e papel pela cidade de Christiania na Dinamarca
escrevendo textos para jornais. Possuído pela fome, descreve suas sensa-
ções e como isso afetava sua vida e sua existência, além de se questionar
sobre manter uma moral que agradaria a Deus, ou se entregar aos desejos
demoníacos e praticar atos condenáveis aos olhos divinos. Segundo o es-
critor, a fome fazia com que ele tivesse que resistir contra os pensamentos
mais abjetos, como roubar outros miseráveis como ele, “tudo isso sem
peso na consciência, sem remorso. Manchas de putrefação começavam
a surgir em meu ser, mofos enegrecidos que se estendiam cada vez mais”
(HAMSUM, 2009, p. 35).
A fome desestabiliza o ser humano. A personagem do romance de
Hamsum, por mais que vivesse faminto, ainda conseguia após vender seus
textos para os jornais da região alguns trocados que momentaneamente o

222
Diversidade Religiosa & História

faria se alimentar. Donária, foi privada de qualquer possibilidade de sobre-


vivência nas condições em que se encontrava e sob o flagelo da seca que
abatia homens e animais cotidianamente. A fome unia Donária e o escritor
de Christiania: ela no sertão seco paraibano; ele na gélida Escandinávia. Com
o passar das horas, segundo ele, “a fome começava a ficar terrível. Exte-
nuado, vinham-me náuseas; e enquanto caminhava, ia vomitando de vez
em quando, disfarçadamente” (HAMSUM, 2009, p. 32). De Donária apenas
podemos imaginar sua penúria diante de seu entorno e de sua condição,
talvez com as mesmas náuseas que o escritor, mas sem o que vomitar.
As secas e as tragédias de Donária dos Anjos e da menina Maria
nunca foram esquecidas pelo povo sertanejo. Ao longo desses mais de
cento e quarenta anos, suas histórias foram contadas por moradores da
região de Pombal, mas é a partir de dois elementos materiais que suas
trajetórias e as consequências disso passaram a fazer parte da história
da cidade. De um lado o cordel e de outro um monumento que serve
para lembrar o local do crime e se demonstra, em tempos hodiernos,
um espaço sagrado.
Vamos iniciar pelo cordel. Gênero literário brasileiro, o cordel teve
um papel fundamental na divulgação de narrativas sobre temas diversos
dos sertões inicialmente. As histórias de cangaceiros, Padre Cicero, mes-
sianismos entre outras temáticas muito relacionadas as vivências sertane-
jas nordestinas, no final do século XIX ampliou suas narrativas para temas
ainda mais diversos e contemporâneos. Um dos motivos desse novo
mercado editorial foi a partida de muitos cordelistas para regiões longe
das secas. Com eles também partiram várias gerações de sertanejos que
passaram a ter nos folhetos uma forma de se manterem ligados ao seu
sertão, mesmo que imaginado, mas também ter acesso as novidades que
ocorriam nas urbanidades. Crimes eram um dos temas que passaram a
figurar nas estrofes dos cordéis. Um deles foi o de Donária.
O primeiro relato em que o crime em Pombal aparece no cordel
foi por meio dos versos de Nicandro Nunes Nascimento (1829-1918) e
Bernardo Nogueira (1832-1905), ambos de Teixeira/PB, em que narraram a
partir de seus versos a saga de um anônimo sertanejo paraibano que relata
o terror da seca de 1877. Estes versos foram recolhidos e divulgados por

223
Diversidade Religiosa & História

José Américo de Almeida. Os dois poetas eram contemporâneos a seca e


viviam no sertão daqueles dias. Em uma das estrofes, aparece o caso em
questão, mas com uma incorreção. Não foram duas mulheres, mas apenas
e exclusivamente Donária dos Anjos.

A fome foi tão canina


Que, se mais saber tu queres,
No Pombal duas mulheres
Comeram uma menina (ALMEIDA, 1980, p. 127).

Um segundo cordel, “A Cruz da Menina de Pombal” de Enoque


Marinho de Oliveira, foi publicado em novembro de 2012, com uma tira-
gem de mil exemplares e inspira-se em estudos e publicações anteriores,
sobretudo de Verneck Abrantes. O cordel é construído com sessenta
e seis estrofes em setilhas com 23 páginas. Na capa uma fotografia do
monumento que foi construído em homenagem a menina e serve como
memória materializada dos acontecimentos. Na quarta capa observa-se
que o cordel teve apoio cultural para sua publicação de Verneck Abrantes,
da LICTA-CTRN-UFCG (Laboratório Interdisciplinar de Ciências e Tecnolo-
gias — Centro de Tecnologia e Recursos Naturais — Universidade Federal
de Campina Grande), SOS Sertão e do próprio autor, sendo publicado pela
Gráfica Martins de Campina Grande/PB.
Enoque Marinho de Oliveira nasceu em Taperoá/PB em 15 de
junho de 1950. Além de cordelista é técnico agrícola pela Universidade
Federal da Paraíba, campus de Bananeiras e Engenheiro Agrônomo pelo
Centro de Ciências Agrárias da mesma universidade, campus de Areia.
Possui especialização em manejo Ecológico Integrado de bacias Hidrográ-
ficas no Semiárido Brasileiro e Mestrado em Engenharia Agrícola na área
de Irrigação e Drenagem pelo Centro de Tecnologia e Recursos Naturais
da Universidade Federal de Campina Grande. Atualmente é Técnico da
UFCG atuando no Laboratório Interdisciplinar de Ciências e Tecnologias.
Publicou outros títulos, entre eles: A bagaceira Eleitoral em Cordel: História
da Criação da Justiça Eleitoral (OLIVEIRA, 2014).
Mesmo que o cordel de Enoque tenha como parâmetro os escritos
de Werneck Abrantes, não deixa de conduzir a narrativa pontuando suas

224
Diversidade Religiosa & História

posições e reflexões sobre o caso. Os cordelistas não deixam de colocar suas


opiniões no que escrevem, mostrando muitas vezes uma pessoalidade em
relação ao narrado, ou seja, o cordelista se coloca dentro da história invocan-
do seus conhecimentos, sua religiosidade e sua crítica diante dos eventos.
O autor ao descrever a situação de penúria em que viviam as
pessoas no sertão paraibano no ano de 1877, informa ao leitor que vai
contar uma “História macabra:/Caso de canibalismo” (OLIVEIRA, 2012, p. 6).
Aqui fica evidente que o cordelista faz também opção pelo uso do termo
canibalismo, por aderir mais claramente ao conceito e ao ato em si, e não
de antropofagia como alguns estudos preferem utilizar4.
Todos os passos do crime são descritos no folheto, acompa-
nhando o relato do texto original de Abrantes e ao finalizar a saga o autor
verseja sobre as consequências da seca e os impactos na vida das pes-
soas, descrevendo terríveis corpos de mulheres, homens e crianças que
perambulam sem destino certo, tudo isso agravado pela falta de ajuda
governamental a estes despossuídos (OLIVEIRA, 2012, p. 13-14).
A partir dessa descrição, o autor relata que as agruras da seca
continuavam a matar e dizimar todos os viventes que teimavam em per-
manecer em suas terras e que somente com a ajuda do sagrado esta cala-
midade poderia ser superada. É aí que, segundo os devotos, a intercessão
da menina canibalizada começou a mudar a história no sertão da Paraíba
e em especial, Pombal.
No final de dezembro de 1879, com o agravamento das secas e
a miséria batendo em todas as portas, devotos saíram em procissão da
Igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso e rumaram com velas e cantando
ladainhas até o local do crime que vitimou Maria quase dois anos antes. No
local encontrava-se uma cruz e algumas pedras que marcavam a cena do
crime. Os devotos se ajoelharam e pediram para a menina interceder junto

4 LIMA, Tatiane Ribeiro de. Antropofagia: Sagrado, Crime ou Pecado? 2013. 40 f. Trabalho de Conclusão de
Curso (Graduação em Ciências da Religião) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2013; SOUZA,
Sabrina Fernandes de. Tradição de Fé: uma História da “Cruz Da Menina” em Pombal-PB (2006-2010). 2019.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal de Campina Grande,
Cajazeiras, 2019.

225
Diversidade Religiosa & História

a Deus para que as chuvas chegassem com urgência para o bem de todas
as pessoas que ali viviam.

Era uma noite escura


Em período natalino
Próximo ao advento
Do nascer do Deus Menino
Na minha compreensão
A fé e a oração,
Chegaram a seu destino.
Foi surpreendente
Em meio àquelas preces
Caiu uma forte chuva
Vinda da corte Celeste
Muito relâmpago e trovão
Houve um rápido apagão
Como que uma benesse (OLIVEIRA, 2012, p. 15-16).

Temos aí a primeira manifestação de milagre da menina que não


tinha sobrenome, Maria, assassinada por Donária, que era Dos Anjos. Maria
morreu em tempos de seca e com o pedido de desesperados sertanejos,
enviou para eles aquilo que lhe faltou em 1877: chuva. A tragicidade da
morte da menina e seu martírio, inclusive encontramos o termo “criança
mártir” e “menina mártir” em relatos (SANTOS, 2013, p. 1; OLIVEIRA, 2012,
p. 18; ABRANTES, 2006, p. 8), foi determinante para fazer com que os
devotos a procurassem. O trágico aproxima o morto ao martírio vivido
por Jesus e vários outros santos do início do cristianismo. Essa é uma das
características principais da criação de milagreiros em toda a América
Latina. Outra característica é a relação do morto com a realidade que
vivem os seus devotos, estabelecendo entre eles uma reciprocidade de
pertencimento, “ou seja, eles conhecem os lugares e as pessoas destes
espaços. O devoto vê o sofrimento como parte da constituição da sacra-
lidade que dotará o morto de poderes. O martírio cristão se ressignifica”
(ANDRADE JUNIOR, 2012, p. 98).
Todas as condições estavam dadas: a cidade em que ocorreu
o pedido dos devotos era exatamente o lugar em que viveu e morreu a
menina e por consequência, conhecia as dores e suplícios daqueles que

226
Diversidade Religiosa & História

a procuravam, além de sua morte trágica causada pela fome e sede ser
justificativa suficiente para atuar como intercessora e promover, por meio
do milagre, a redenção de seus devotos. Também o cordelista Enoque
Marinho de Oliveira destaca como sendo esta a primeira graça alcançada
pelos devotos. Neste caso, em termos conceituais, Maria é uma mila-
greira, não uma santa, sequer popular. Milagreiro é aquele que alcança a
sacralidade única e exclusivamente pela ação e crença de devotos sem
passar por qualquer instância religiosa oficial, assim “o devoto constrói
um caminho rico em gestos e sensibilidades que emolduram o campo
devocional brasileiro e todas as suas complexas redes da fé” (ANDRADE
JUNIOR, 2018, p. 2-3).
Maria, segundo o cordel “A Cruz da Menina de Pombal”, derramava
suas lágrimas em forma de chuva dois anos depois de sua trágica morte,
com isso demostrava sua grandiosidade perdoando os cristãos por não
terem feito nada enquanto sofria de sede e fome. Assim, a partir daquele
momento, a menina se tornou milagreira e o local em que se encontrava a
cruz passou a receber devotos de várias partes da cidade e região, com pe-
didos de ajuda para diversos assuntos relacionados a seca, fome e doenças.
O cordel não relata a construção do monumento que hoje se
encontra no local que antes era apenas marcado por uma cruz e algu-
mas pedras, mas isso ocorreu em 1948 quando Dalva Carneiro Arnaud ao
receber uma graça da Menina da Cruz, cinco dias após seu pedido, “sen-
sibilizada e agradecida, mandou construir o Pedestal em alvenaria com a
cruz de madeira no alto, tendo o cuidado da construção sendo no exato
local em que foram enterrados os restos mortais da infortunada criança”
(ABRANTES, 2006, p. 8). Durante décadas o local era marcado por pedras
e uma singela cruz deixadas por devotos de todas as idades.
Atualmente, a cruz é de ferro e o monumento/pedestal está loca-
lizado em uma praça conhecida popularmente como a “Praça da Menina
da Cruz”, inaugurada em 2010, na Rua Matilde de Castro Bandeira, Bairro
Pereiros, Pombal/PB, sendo este o local exato do enterramento de Maria.
Nele há um espaço para o acendimento de velas, está pintado de azul,
possui uma altura de aproximadamente três metros com um metro e trinta
centímetros de largura. Está dividido em seis planos até chegar ao ponto

227
Diversidade Religiosa & História

mais alto em que se encontra a cruz ornada com flores artificiais. E, ainda
continua recebendo devotos que se ajoelham diante da construção, acen-
dem velas, depositam flores e fazem seus pedidos.
Donária e Maria eram mulheres de um sertão profundo. Viventes
do drama natural e do descaso dos governos. Uma matou, foi presa, con-
fessou, arrependeu-se e morreu esquecida e com problemas mentais em
um casebre em sua cidade natal. A outra foi alçada ao panteão das Mila-
greiras, em que os martírios justificam suas sacralizações. Estarão ligadas
para sempre, já que uma não existe sem a outra. Suas invisibilidades foram
superadas pelo drama. Maria e Donária são filhas da tragédia, da seca e
da exclusão social e permanecem vivas no imaginário de sertanejos que
sabem exatamente o que é sobreviver por conta própria e vencer todos os
desafios que são impostos pela natureza e pelos homens.

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230
O ULTRAMONTANISMO
E OS DESENCONTROS COM O CATOLICISMO
POPULAR NO PARÁ OITOCENTISTA

Allan Azevedo Andrade1

Resumo
O escopo do presente artigo é analisar como o bispo do Pará, D. José Afonso,
desdobrou-se na aplicação do catolicismo ultramontano em sua diocese, entre
os anos de 1844 a 1857, esbarrando na tradição católica do povo. Para isso, foi
imprescindível o uso de documentos contendo discursos da Igreja — jornais, livros,
relatórios de presidente da província —, para extrair os elementos que possibilita-
ram perceber o contato do bispo com o catolicismo popular.
Palavras-chave: Igreja. D. José Afonso. Catolicismo.

Abstract
The scope of this article is to analyze how the bishop of Pará, D. José Afonso,
unfolded in the application of ultramontane Catholicism in his diocese, between
the years 1844 to 1857, colliding with the Catholic tradition of the people. For this,
the use of documents containing speeches of the Church — newspapers, books,
reports of the president of the province — was essential to extract the elements
that made it possible to perceive the bishop’s contact with popular Catholicism.
Keywords: Church. D. José Afonso. Catholicism.

1 Doutor em História Social da Amazônia. Professor da Secretaria de Educação do Estado do Pará.

231
Diversidade Religiosa & História

Introdução

Quando tomou a frente da diocese do Pará2 o bispo ultramontano


D. José Afonso de Moraes Torres se deparou com um cenário bem diferen-
te do que ele entendia como ideal de catolicismo. Os desafios do prelado
diocesano eram imensos, seja em relação aos clérigos que este entendia
como desqualificados e portadores de um comportamento desviante, seja
pela existência de práticas católicas que não se encaixavam dentro dos
ditames do catolicismo emanado de Roma.
Em vista do corolário religioso existente na Amazônia, o estudo em
tela visa estudar o contato do bispo D. José Afonso com o catolicismo po-
pular no Pará, entre 1844 até 1857. Antes de avançar no debate, vale frisar
a conceituação de Ultramontanismo que tanto D. José Afonso se dedicou
a aplicar. O Ultramontanismo é um conjunto de medidas teórico e práticas
alicerçadas na condenação da modernidade em seu conjunto (sociedade,
política, economia, cultura), tendo a medievalidade como referência, con-
quanto pautasse muitas de suas ações no Concílio de Trento, ao mesmo
tempo em que condenava a Revolução Francesa pois era entendida como
marco de um novo tempo de secularização da sociedade; centralização
das atitudes da Igreja em Roma, reforçando a infabilidade papal, sobretu-
do após o estabelecimento dessa diretriz como dogma após o Concílio do
Vaticano I, em 1870; valorização do episcopado e o reforço do magistério,
retomando o Tomismo, considerado pela Igreja uma filosofia fundamental
para o cristão (MANOEL, 2004). No Brasil, esse movimento ganhou força
em meados do século XIX, sendo D. José Afonso o pioneiro da campanha
ultramontana no Pará (ANDRADE, 2017).
Apesar da concisa definição de Ivan Manoel apontando aqueles
que defendiam a ortodoxia romana e se opunham às políticas liberal e
regalista — difundidas após a Revolução Francesa — como ultramontanos,
entendo que estes não configuram um grupo homogêneo, portanto, é ne-
cessário ter cuidado para distinguir tal conceito, considerando as injunções,

2 Tendo como sede a cidade de Belém, a diocese do Pará compreendia aproximadamente a toda atual
Amazônia, abrangendo uma área de 4.000.000 km², até que fora fracionada com a criação da diocese do
Amazonas no ano de 1892, pelo papa Leão XIII.

232
Diversidade Religiosa & História

peculiaridades, e o espaço/tempo da reforma ultramontana no Brasil e na


Europa. Sendo assim, como afirma Gustavo de Souza Oliveira (2015) em seu
estudo comparativo do catolicismo ultramontano em Portugal e no Brasil,
o Ultramontanismo não é fixo ou padronizado, mas um espaço conflituoso
de ideias, perspectivas e práticas, embora, é claro, apresente preceitos em
comum. Dessa forma, além de estudar a campanha ultramontana como
um transplante da Europa para a América, também é de igual importância,
ou até maior, analisar o Ultramontanismo e as interferências que sofre do
ambiente político e cultural. Portanto, a reforma ultramontana é um espaço
de assimilações e resistências criado por clérigos vinculados à ortodoxia
romana, “que tinham como objetivos mudar a formação religiosa a partir
de uma submissão à autoridade papal. Não se trata de um grupo coeso,
mas de um processo de luta constante” (OLIVEIRA, 2015, p. 15).
Dito isso, apresento agora o principal personagem em questão, o
bispo D. José Afonso. Nascido no Rio de Janeiro, em 1805, José Afonso
de Moraes Torres foi educado pelos lazaristas na Congregação da Missão
em Caraça (um dos centros de referência no que tange à formação de
religiosos portadores da cultura ultramontana) apartado, portanto, da
tradição da formação sacerdotal brasileira reputada como a responsável
pela formação deficiente dos padres nos negócios eclesiásticos e pouco
interessados nestas. Depois de ordenado sacerdote em Mariana em 1829,
voltou ao estabelecimento para ocupar o cargo de professor de filosofia e
retórica, sendo nomeado em 1834 como superior do Colégio de Congonhas
do Campo (também gerido pelos Lazaristas). José Afonso permaneceu no
citado Colégio até 1838, quando resolveu renunciar à condição de clérigo
regular, tornando-se sacerdote secular e dirigindo-se para o Rio de Janeiro
a fim de assumir a função vigário colado da Freguesia do Engenho Velho.
Por indicação do governo imperial, o papa Gregório XVI nomeou o
então pároco à condição de bispo da diocese do Pará em 1844, chegando
à Belém em 7 de julho do mesmo ano. Preocupado com a aplicação das
orientações oriundas da Santa Sé, o bispo D. José Afonso dedicou atenção
aos sacramentos entre os fiéis e à formação de padres. Isso pode ser
detectado na instituição de seminários ao longo de sua diocese. Mesmo
com a dificuldade das grandes distâncias entre uma localidade e outra na

233
Diversidade Religiosa & História

diocese do Pará, o bispo elegeu alguns núcleos para executar essa cam-
panha religiosa. As cidades de Manaus (Comarca e Vigária geral do alto
Amazonas), Óbidos (Comarca localizada no médio Amazonas) e Cametá
(cidade nas margens do Tocantins paraense, principal frente de interiori-
zação da ocupação e desbravamento do território) foram comtempladas
com essa distinção.
Para desenvolver o estudo em tela, foi utilizada documentação
proveniente de periódicos e livros da época. Essas fontes, em sua maioria,
produzidas por autoridades religiosas, mostram a visão da Igreja Católica
sobre a religiosidade popular. Assim, é possível extrair pistas para entender
a atuação de D. José Afonso, fazendo uso da involuntariedade dos teste-
munhos contidos nos documentos, tal como aponta o historiador Carlo
Ginzburg. A partir dos rastros deixados pelo tempo, Ginzburg se vale dos
depoimentos involuntários para sua investigação, buscando extrair vestí-
gios do passado de fontes que não tinham o interesse de serem deixadas
para a posteridade, a fim de tentar reconstruir o quebra-cabeça da história
ou mesmo criar possibilidades explicativas (GINZBURG, 2007). Tendo em
vista essa metodologia é que busco extrair o máximo de vestígios possíveis
para investigar a tentativa do prelado diocesano de controlar, disciplinar e
normatizar a conduta católica na Amazônia.

D. José Afonso e o Corolário Religioso na Amazônia

Fernando Neves (2015), apoiado no estudo de Evandro Faustino


(1991), entende que a “supraidentidade católica abriga diferentes modos
de ‘ser igreja’, popular, ilustrado, tradicional sob hegemonia do catolicismo
diocesano à testa da hierarquia” (NEVES, 2015, p. 22). Ainda que dentro da
noção de supraidentidade católica comporte outras formas de experimentar
o catolicismo, tais como aquelas formas de experimentar a religião que não
são vistas com bons olhos pela Igreja oficial — como é o caso do catolicismo
popular, ou ilustrado —, de forma geral, a hierarquia católica entende serem
estas experiências católicas contornáveis a partir de um melhor esclareci-
mento da doutrina, com ações da campanha ultramontana.

234
Diversidade Religiosa & História

O manto da supraidentidade católica recobria a cristandade na


Amazônia, não por acaso, as formas populares de percepção do sagrado
estavam enraizadas no cotidiano da diocese do Pará, podendo ser perce-
bido não apenas na capital da província, mas, principalmente, nos relatos
do prelado diocesano em suas visitas pastorais pelo interior do bispado.
Para melhor entender o catolicismo popular é necessário recorrer
ao antropólogo Heraldo Maués:

O Catolicismo popular é aqui entendido em oposição ao


catolicismo oficial, isto é, àquele que é professado pela Igreja
como instituição hierarquica estabelecida, que o procura incu-
tir no conjunto da população. Não se trata de um catolicismo
das classes populares, pois o conjunto da população católica
(os leigos, em oposição aos sacerdotes), independentemente
de sua condição de classe, professa alguma forma de cato-
licismo popular, que, às vezes, é partilhada pelos clérigos,
assim como os leigos também partilham o catolicismo oficial.
[...] Não se deve esquecer, também, que o erudito e o popular
perpassam toda a estrutura de classes da sociedade, não se
podendo estabelecer uma identificação mecânica e a priori
entre aquilo que é popular ou erudito e as diferentes classes
sociais (MAUÉS, 1995, p. 17).

O Catolicismo popular é “conjunto de crenças e práticas social-


mente reconhecidas como católicas, de que partilham, sobretudo, os não
especialistas do sagrado, quer pertençam às classes subalternas ou as
classes dominantes” (MAUÉS, 1995, p. 17). Tal como Maués (1995) propõe,
o presente artigo entende de maneira fléxivel essa relação entre o cato-
licismo oficial e popular, já que separa-los em dois polos completamente
distintos é ignorar os pontos de intercessão que ambos apresentam no
cotidiano de suas práticas e seus praticantes, embora a hierarquia eclesi-
ástica faça questão de ratificar a distinção que há entre essas duas manei-
ras de professar a fé católica.
Ainda que eu use a expressão “catolicismo popular” para apontar o
universo religioso do povo, reconheço os limites de tal definição, afinal, as
experiências religiosas que não estão dentro dos parâmetros do catolicismo
oficial são diversas, logo, é dificil encaixá-las em uma única definição (o dito

235
Diversidade Religiosa & História

catolicismo popular), devido ás inúmeras variações que cada uma dessas


manifestações religiosas podem apresentar. No entanto, o que interessa aqui
é analisar o contato entre catolicismo ultramontano e as práticas religiosas
do catolicismo não oficial pelo prisma do bispo D. José Afonso, por isso, o
foco maior é entender como este via a religiosidade na Amazônia e não,
necessariamente, sobre o debruçamento sobre análises pormenorizadas da
população do Pará e sua religião distinta das diretrizes romanas.
Desde a época colonial, a vida eclesiástica no Brasil dependia
praticamente da Mesa da Conciência e Ordens de Portugal, e não, ime-
diatamente, da Cúria Romana. Devido ao Padroado lusitano — sobretudo
a partir do período pombalino —, era o monarca de Portugal que decidia
efetivamente sobre a construção de igrejas, fundação de conventos e
criação de dioceses e paróquias (AZZI, 1992). Por isso, Dilermando Ramos
Vieira (2016) declara:

O “pombalismo” não foi diretamente responsável pelas singu-


laridades da religiosidade popular no Brasil, que, adaptando
com extrema liberdade celebrações e demonstrações de
piedade, ao final escapava quase por completo à intenção
liturgica original. Mesmo assim, ao inibir o trabalho catequé-
tico, colaborou decisivamente para a consolidação duma
religiosidade exteriorizada e devocionista em que não era o
dogma, o ato da fé, fruto da razão e do sentimento racional, a
orientar o culto consequente (VIEIRA, 2016, p. 149).

Com isso, o regime do Padroado português colocava um anteparo


diante das determinações provenientes do Sumo Pontífice que deveriam
ser seguidas pelos clérigos seculares e regulares. Sobre o clero regular, é
importar frisar sua relativa autonomia em relação aos bispos e ao próprio
Estado, principalmente, no caso dos Jesuítas, na qual seu regulamento
rígido dentro da Ordem e seu vínculo com os superiores os colocavam
em situação peculiar e, em certa medida, os afastava dos limites impostos
pelo sistema do Padroado (MAUÉS, 1995).
Esse contato indireto entre a Igreja no Brasil e a Santa Sé acabou
por fazer o catolicismo ser experimentado de maneira peculiar na colônia
— estendendo até o Império e a República —, tendo o leigo papel funda-

236
Diversidade Religiosa & História

mental na medida em que participava das confrarias relgiosas (irmandades


e ordens terceiras) em que predominavam o aspecto devocional, por meio
de romarias, procissões e festas dedicadas aos santos, que continham
também um caráter social e popular (AZZI, 1992; MAUÉS, 1995).
As confrarias são associações leigas nas quais eram manifestadas
as expressões do catolicismo popular. Segundo Riolando Azzi (1992),
existem dois tipos de confrarias: as irmandades e as ordens terceiras. As
irmandades são associações caracterizadas pela participação leiga no
culto católico, que tinham como finalidade a promoção da devoção de um
santo, no qual cada irmandade possuía seu estatuto e seu compromisso
particular (AZZI, 1992). As ordens terceiras também tem ampla participação
dos leigos, bem como se reúnem em torno da devoção de um santo, no
entanto, estão associadas às ordens religiosas.
Não por acaso, essa forma de experimentar o culto católico foi
relatado por alguns viajantes, como foi o caso de James C. Fletcher — mis-
sionário metodista norte-americano, que veio ao Brasil em missão evangé-
lica das décadas de 1850 e 1860 — que, escrevendo uma carta a seu pai,
relatou que “de todos os povos que tinha conhecido, os brasileiros eram
os que menos se importavam com a religião” limitando sua vida religiosa
a “foguetórios e procissões” (FLETCHER apud VIEIRA, 1980. p. 170). Para
ele, essa religião popular consistia na adoração de gravuras e imagens
de santos, uma espécie de “sincretismo entre o catolicismo puramente
simbólico do camponês português e os conceitos religiosos dos índios e
dos africanos” (FLETCHER apud VIEIRA, 1980. p. 170).
Essa realidade do Catolicismo popular se fez presente na Ama-
zônia, sendo essa experiência religiosa parte integrante do cotidiano dos
fiéis. Porém, tanto a hierarquia católica quanto os missionários protestantes
não entendiam a significação do catolicismo popular na medida em que
um e outro trocam acusações. James Fletcher coloca a si e aos seus como
vítimas da perseguição da Igreja, julgando a si próprio como a verdade ao
declamar uma única certeza na interpretação da Bíblia, refutando qual-
quer possibilidade de aproximação com Deus nas várias expressões de-
vocionais aos santos. Quando questionou os argumentos do bispo D. José
Afonso de Moraes Torres sobre como “Abrahão adorou a Deos, adorou os

237
Diversidade Religiosa & História

Anjos, adorou filhos de Heth. [Genes 17, 18, 23]” (TORRES, 1857, p. 1), Flet-
cher persistiu em suas crenças, tanto quanto o Catolicismo ultramontano
também procurou minar o Catolicismo popular (NEVES, 2015).
O protestantismo norte-americano trazido para o Brasil se depa-
rou com demandas inesperadas ao entrar em contato com uma cultura
religiosa distinta e já estabelecida. Na passagem do missionário da Igreja
Episcopal Richard Holden no Pará, em 1861, ficou notório esse choque de
realidades. O relato contido em seu diário sobre a festa de Nossa Senhora
do Carmo (título dado a Maria em honra de sua função como padroei-
ra da Ordem Carmelita) expressa bem suas impressões sobre isto.

A festa foi em honra de Nossa Senhora do Carmo, e depois


que a missa costumeira tinha sido dita na Igreja da paróquia,
de acordo com os ritos peculiares da Senhora em questão,
às custas do dono da festa, que iam de 20 a 50 mil réis, o res-
tante dos festejos realiza-se em sua casa, e consiste em tocar
violão, dançar, comer e beber. Quando soube destas particu-
laridades, não pude senão lembrar os ritos pagãos, antigos, de
vênus e de Baco, e fiquei pensando no mistério da iniquidade,
que tinha tão habilidosamente enxertado os frutos mortos do
paganismo no tronco do Cristianismo, e tinha perpetuado no
nome de Jesus, aquelas mesmas cerimônias hipócritas e pro-
fanações que ele tinha vindo destruir. Se alguém duvida que o
Romanismo é a grande apostasia e a religião do anticristo, que
venha aqui olhar (HOLDEN, 1990, p. 133).

Essas formas populares de percepção do sagrado estavam enraiza-


das no cotidiano da diocese do Pará, podendo ser percebido não apenas na
capital da província, mas também no interior a partir dos relatos do prelado
diocesano em suas visitas pastorais pelo interior do bispado. Em meio a isso,
é importante atentar como Holden, no excerto destacado, não distinguiu o
catolicismo propagado pela hierarquia católica e o praticado pelos popu-
lares, rotulando todo o catolicismo como “Romanismo”, caracterizando-o
como a manifestação da renúncia ao cristianismo. Holden tinha noção que
a hierarquia católica buscava promover uma campanha de reforma religiosa
na Amazônia, mas suas declarações generalizantes eram fruto de sua visão
desqualificadora da Igreja Católica. Ainda sobre a aversão à religião católica,

238
Diversidade Religiosa & História

compará-la aos ritos pagãos anteriores à Roma Cristã, expressa o quanto


Holden enxergava com atraso a missão da Igreja que, em vez de, segundo
sua concepção, bafejar seu pasto espiritual com práticas cristãs, retoma e/
ou tolera ritos similares ao paganismo da Roma antiga.
Esse olhar do missionário protestante permite a reflexão sobre
como o ideal de modernidade estava entranhado em sua conceituação
de mundo. A concepção protestante de Holden partilha da noção de
evolução linear, considerando o processo histórico como teleológico,
acolhendo e adaptando certas ideias da modernidade, quando entende
a história caminhando rumo à vitória da Razão em associação com a visão
cristã protestante. A linha evolutiva do pensamento moderno não concebia
retrocessos, portanto, retroagir ao que ele entendia como estágio politeísta
seria absurdo aos olhos protestantes, sobretudo do ponto de vista religio-
so, pois tal situação descrita por Holden significava a derrota temporária da
religião cristã. Assim, o protestantismo enxerga as práticas do catolicismo
popular como um grave desvio religioso, fruto da ignorância.
O incômodo dos ultramontanos e dos protestantes com a situação
da religião no Pará (e no Brasil como um todo) está ligado aos valores de
sua própria experiência religiosa, uma vez que acreditavam existir apenas
uma religião de fachada entre os praticantes do catolicismo popular, isto
é, distante do coração e das almas dos homens. Mesmo estes cultos po-
pulares sendo solenizados com pompas nos templos, não foi percebido o
quanto estava incrustada estas experiências no quotidiano dos indivíduos
(NEVES, 2015).
É por não perceber a plena significação do catolicismo popular que
o bispo D. José Afonso empreende restrição à manifestação na “Festividade
do Gloriozo N. P. S. Domingos” realizada pela Congregação dos Terceiros
Dominicanos. A respeito disso, o bispo se pronuncia determinando que
não é permitido “alçar cruz” durante a festividade, nem tão pouco pode sair
“os que forem Terceiros, vestidos como as outras Ordens terceiras, isto he,
sem murças e capellos, por serem estes próprios da primeira Ordem, e dos
Terceiros que vivem colegialmente (sic)”, ameaçando excomungar “todo
sacerdote que presidir ao acto, e accompanhar os dictos Irmaons não hindo
com as condicçoens prescristas!!! (sic)” (SANTARÉM, 1850). Essa tentativa de

239
Diversidade Religiosa & História

controle eclesiástico de D. José sobre a festividade causa polêmica, como


pode ser verificado na declaração irônica publicada na imprensa:

Daqui se conclue, que se os Congregados de S. Domingos


aparecerem devotamente em Procissão com Sagradas
Imagens da Virgem e dos Santos, levando Cruz, e capellos,
perde esse acto todo o caracter religioso, e augusto, e torna-
-se huma reunião de hereges, de excomungados, pois que
o Sr. D. Jozé julga digno de excommunhão o Sacerdote que
os accompanhar, ou presisdir esse acto de devoção! Que
blasfemia! (sic) (SANTARÉM, 1850).

Apesar do jornal no qual está contido o excerto ter antecedente de


criticar veementemente as ações do bispo D. José Afonso, é perceptível
essa tensão entre a fé popular e o catolicismo ultramontano quando é ex-
pressa a insatisfação com a intervenção do bispo na referida manifestação
popular religiosa, ao mesmo tempo em que é relatada como a população
não via problema em experimentar essas práticas entendidas pelos ul-
tramontanos como errôneas, já que mesmo com a condenação expressa
pela hierarquia, os fiéis se consideravam bons católicos.
Além das confrarias, outra forma de manifestação das práticas
católicas populares pode ser identificada por meio da pajelança cabocla.
A pajelança cabocla, muito comum, principalmente, na Amazônia rural,
é constituída por uma relação entre santos católicos e encantados da
pajelança. Heraldo Maués (2002) elucida que a pajelança cabocla é parte
integrante do catolicismo popular. Com origem em crenças e costumes
dos antigos índios Tupinambás, sincretizados pelo contato com o branco e
o negro, desde pelo menos a segunda metade do século XVIII, essa forma
de pajelança, que não pode ser confundida com a pajelança indígena,
pode ser considerada uma forma de xamanismo, já que é uma prática
ritual voltada, principalmente, para a cura de doenças, por meio da ação
de pajés ou curadores, que agem sobre os doentes enquanto estão incor-
porados por entidades sobrenaturais, os encantados ou caruanas. O termo
“pajé”, embora seja usado localmente, tem, todavia, um sentido pejorativo,
não sendo assumido de bom grado pelos oficiantes da pajelança, que
preferem chamar-se de “curadores”. Por outro lado, se inquiridos a respeito

240
Diversidade Religiosa & História

de sua identidade religiosa, tanto os curadores ou pajés, quanto os parti-


cipantes locais dos cultos de pajelança, dirão sempre que são católicos.
Por isso, mesmo que a pajelança não possa ser considerada, por católicos
estranhos ao seu culto, como parte do catolicismo, a sua participação nas
crenças e práticas do catolicismo popular, entre as populações rurais ou
de origem rural amazônicas, é muito forte.
Por ser adepto da campanha ultramontana, D. José Afonso repro-
vava tais práticas, entendendo como charlatanismo o que era praticado
nas localidades. Em uma visita a Salinas, o bispo mostra toda sua aversão
pelo pajé local, desqualificando suas práticas de curandeirismo rotulando-
-o como embusteiro.

Saímos de volta para a capital, às 4 horas da tarde, acompa-


nhados do povo, e por entre alas de soldados; entre estes
estava um que denominavam Pagé. São curandeiros ou feit-
ceiros, a que chamarei antes de embusteiros e velhacos, que
por meio de inventadas e incríveis curas procuram enganar o
povo para seus fins (TORRES, 1978a, p. 3).

Dentro dessa lógica, a Igreja acaba deixando pulsar a influência


moderna em sua forma de agir. Isso porque quando refuta a prática cató-
lica popular, a hierarquia assume um posicionamento moderno ao secun-
darizar qualquer prática que não esteja alinhada com a racionalização dos
hábitos do povo, em outras palavras, a conduta correta de professar a fé
seria aquela pautada nos preceitos diocesanos, enquanto as manifesta-
ções religiosas populares são vistas como subproduto da ingnorância de
uma população que ainda não havia sido esclarecida com as orientações
do catolicismo ultramontano, não sem razão, o bispo D. José Afonso fala
que as pessoas do interior do bispado “vivem na maior ignorância das
coisas religiosas e se persuadem que amam Deus vivendo no hábito do
pecado” (TORRES, 1978b, p. 3). Nesse sentido, Aldrin Figueiredo, afirma que
“as práticas da religiosidade popular foram pensadas como algo arcaico,
obscuro e selvagem, que portanto deveriam ser extintas para o bem do
catolicismo” (FIGUEIREDO, 2009, p. 21). Dentro desse fundamento que D.

241
Diversidade Religiosa & História

José Afonso mostra aversão pela prática da “pajelança cabloca” que era
tão comum na região.
É seguindo essa premissa que o bispo, em uma de suas visitas
pastorais pelo Baixo-Amazonas, faz uma descrição fria — dentro de sua
percepação de catolicismo ideal — sobre festa do Sairé3, despindo-a de
seu caráter sagrado e, de certo modo, desqualificando determinados ritos
praticados na festividade, subestimando a essência religiosa daqueles atos.

uma velha com um pequeno tambor vai adiante de um


rancho de mulheres tocando-o monotonamente, ao som de
uma gaita de taquara, cujo o som fere desagradavelmente
o timpano. Seguem-se três a quatro raparigas, segurando
um arco coberto de rama de algodão e fitas, com diferentes
repartições, a que dão um movimento de alto a baixo, incli-
nando-se às vezes quando voltam para o Padre como quem
o chama para si, e isto o fazem com um canto desagradável
na língua indígena, que mais parece um choro do que uma
música (TORRES, 1978d, p. 3).

Outra forma de expressão do catolicismo popular é por meio do


ambiente doméstico, principalmente no oratório. O oratório era tradicio-
nalmente um nicho dedicado à devoção de um ou mais santos. Em vista
disso, D. José Afonso Torres também estende seu plano ultramontano até
aos espaços privados dos fiéis ao orientar o laicato sobre a utilidade e o
local da casa que deve ser colocado os oratórios domésticos.

O Summo Pontifice, Pio 9° por um Breve expedido de Roma em


data de 13 de Janeiro do corrente anno nos concede novas fa-
culdades por dez annos; por ele autorizados fazemos algumas
concessões á respeito dos Oratorios domésticos, e damos as
seguintes instrucções e regras para o uso das mesmas.

1.a Os Oratorios que tinhaõ licença nossas antes de ter expira-


do o tempo das primeiras decenaes poderaõ continuar no uso
della neste corrente anno de 1856

3 O Sairé é uma composição festiva mesclada de elementos católicos com ritos nativos. O registro mais
antigo da celebração do Sairé é atribuído ao missionário João Daniel, que esteve na Amazônia entre 1741 e
1757, e presenciou o Sairé na então Missão jesuítica de Nossa Senhora da Purificação (CARVALHO, 2016).

242
Diversidade Religiosa & História

2.a Nos ditos Oratorios não se poderá cantar Missa, administrar


os Sacramentos do matrinonio, baptismo solemne, e a confis-
são as mulheres sómente havendo confessionarios proprios
para ellas com grades.

3.a Os Oratorios deveram estar em lugar decente, e inteira-


mente separado dos lugares destinados aos usos domésticos,
como salas de jantar, &.

4.a Deverão ter pedra d’ara com reliquias, calix e patena doura-
dos por dentro e sagrados.

[...] O sacerdote que celebrar nos mencionados Oratorios será


obrigado a annunciar aos assistentes os dias santos e de Jejum
de preceito da semana, e a resar com os mesmos os actos de
fé, esperança e caridade e explicar ao menos nas principaes
festas do anno alguns pontos da doutrina christã para que os,
que se aproveitaõ da licença naõ fiquem privados do pasto
espiritual não indo as matrises (sic) (TORRES, 1856, p. 11).

Seguindo a diretriz de Pio IX em 1856, o bispo publica portaria


definindo que o oratório, enquanto local de oração, não poderia ser fixado
em qualquer parte do ambiente doméstico justamente por expressar o
caráter sagrado do catolicismo, por isso, ele determina “que os Reveren-
dos parochos mandem affixar em todos os Oratorios de suas freguesias
em lugar publico estas faculdades e instruncções (sic)” (TORRES, 1856,
p. 11). Assim, D. José Afonso procura direcionar a cristandade ao caminho
da salvação mesmo que isso interfira em sua intimidade, não existindo
limites à difusão da fé, ao passo que é evidenciada mais uma vez em seu
comportamento características de controle eclesiástico sobre a forma
de vivenciar o catolicismo entre os cristãos da Amazônia. Ele interfere
desde a ornamentação do oratório — ao determinar que sejam colocados
objetos sagrados ao redor da imagem, como a pedra d’ara com relíquias,
cálix e patena dourados; em vez de qualquer outro ornamento referente
ao catolicismo popular —, até a maior orientação sobre a doutrina católica
durante a festa dos santos na ocasião dos feriados, bem como proibindo a
administração de determinados sacramentos nos ditos oratórios.

243
Diversidade Religiosa & História

Tal como teoriza Heraldo Maués (1995), nem só de conflito viveu


essa relação. Exemplo de como o catolicismo popular também pode in-
tegrar as práticas do catolicismo oficial é quando D. José se empenha na
propagação do Dogma da Imaculada Conceição de Maria, valendo-se da
criação de uma irmandade. Em 1854 foi definido a partir da bula Ineffabilis
Deus o dogma da Imaculada Conceição pelo Papa Pio IX. A partir disso, o
bispo da diocese do Pará mostra proximidade com os valores propagados
pelo Sumo Pontífice quando coloca em pauta o debate sobre esse dogma
recentemente estabelecido pela Santa Sé. No trecho a seguir é perceptível
a tentativa de D. José Afonso Torres em difundir o referido preceito católico.

Os fieis abaixo assignados, querendo dar uma prova de sua


devoção para a Immaculada conceição de Maria, que hoje é
dogma da Fé Catholica, declarado como tal solemnemente
pelo summo pontifice Pio 9°, no dia 8 de Dezembro de 1854, á
quem quasi todas as nações Christães tem procurado tributar
um especial culto, correspondendo assim aos fervorosos
desejos do Summo Pontifice, e aos impulsos de sua piedade
com tão piedosa mãi, considerando que esta Diocese do Pará
deve não só imitar tão edificante exemplo, como ser uma das
primeiras em testemunhar sua filial devoção a Mãi de Deos,
e dos pecadores, debaixo d’quelle honroso titulo, convidados
por S. Ex.ª Reverendissima, deliberarão reunir-se em Irmanda-
de (sic) (TORRES, 1855).

O dogma por si só contraria a razão na medida em que não se fun-


damenta na ciência, e sim na fé. Logo, o dogma da Imaculada Conceição
de Maria representa uma afronta à modernidade, na medida em que é
fundamentado na Bíblia e na tradição patrística de Irineu de Lyon e Ambró-
sio de Milão, de modo e exaltar a graça do homem em detrimento da razão
(NEVES, 2015). O bispo do Pará exalta a Virgem Maria em suas declarações,
atribuindo a ela o papel de mãe dos pecadores, intercedendo por seus
filhos nos momentos de dificuldade, o que o levou a imprimir eloquentes
declarações sobre a santidade de Maria, procurando espalhar pela dio-
cese a diretriz proveniente de Roma. Todavia, D. José Afonso valoriza esse
dogma se valendo de um instrumento muito usado pelo do catolicismo

244
Diversidade Religiosa & História

popular — a irmandade —, quando cria, em 1855, para dar sustento a de-


voção da santa, a Irmandade da Imaculada Conceição de Maria.
Segundo Anderson de Oliveira (2002), além das funções religiosas,
a irmandade também tinha um importante papel social quando assistia
aqueles que estavam associados a ela, suprindo em muitas ocasiões as
funções do Estado e da Igreja. Na concepção dos bispos ultramontanos,
se direcionadas de forma errônea, as irmandades poderiam representar
uma religiosidade supersticiosa, cheia de contradições e imbricações
refutadas pela Santa Sé, por isso, a hierarquia católica procurou controlar
o funcionamento desses estabelecimentos porquanto entendiam que a
autonomia em demasia que os leigos assumiam por conta das irmandades
não era frutífera ao catolicismo ortodoxo.
Até certo ponto, os elementos do catolicismo popular poderiam
integrar campanha ultramontana, desde que não entrassem em choque
com a proposta católica da Santa Sé. Com isso, o projeto diocesano pas-
sava pelo recurso à Santa Sé como forma de extinguir ou reorganizar as
irmandades, acolhendo esse elemento do catolicismo popular, substituin-
do essas instituições por associações sob o poder do pároco e do bispo
(OLIVEIRA, 2002). Com D. José não foi diferente. Apesar da forte devoção
a Nossa Senhora de Nazaré no Pará4, o bispo procurou instituir o culto a
Maria Imaculada, fundando, para tanto, uma irmandade e a colocando
sobre o controle eclesiástico no intuito de reforçar a ligação dos cristãos
com a Santa Sé, convidando todos os sacerdotes e seculares para, na ir-
mandade, se “associarem, e assim aproveitarem-se de tão grandes graças
concedidas pelo Summo Pontifice” (TORRES, 1854, p. 1).
É partindo da lógica ultramontana que D. José Afonso define o
proceder da festividade organizada pela irmandade, sem os exageros típi-
cos do catolicismo popular — fogos de artifício, festas, danças, folguedos

4 Tem sua origem no XVIII (1701), quando foi achada uma imagem de Nossa Senhora de Nazaré, dan-
do origem à devoção do catolicismo popular em homenagem a referida santa e, consequentemente, a
procissão do Círio. A celebração foi oficialmente instituída em 1793 e desde então, tem acontecido sem
interrupções, com exceção de 1835, por ocasião da guerra cabana. Foi ganhando, progressivamente, maior
grau de importância, e no século XIX já era a maior celebração católica da região.

245
Diversidade Religiosa & História

populares, entre outros —, mas sim, apresentando os ritos vistos com bons
olhos pela hierarquia católica.

A festividade da Senhora consistirá em uma novena, missa so-


lemne, e procissão a tarde com a imagem da mesma Senhora
com toda a pompa possivel, ficando a Senhora depois das
novenas exposta por algum tempo ao culto publico com dous
irmãos para recolher as esmolas que os devotos depositarem
no altar, que serão guardadas no cofre (sic) (TORRES, 1855, p. 1).

Além de procurar ajustar essas duas culturas católicas, a fim de


alcançar certo controle dessas práticas populares encontradas na região
amazônica, promovendo o culto a Maria por meio de irmandade, D. José
Afonso também foi responsável pela criação de outra irmandade no fito
de ajudar no sustento do colégio São Luiz Gonzaga, que, segundo o bis-
po, a existência desse estabelecimento de educação “é toda devida aos
esforços dos seus habitantes, que reunidos em uma irmandade protegem
esse estabelecimento com um zelo digno de todos os elogios” (TORRES,
1978c, p. 3). O prédio do referido colégio católico de Óbidos apresentava
graves problemas estruturais, necessitando de reformas urgentes, por
isso, o prelado diocesano se envolveu diretamente na arrecadação de
recursos para esse intento, pedindo “pessoalmente esmolas”, e fazendo
“rifa que produzio (sic) 200$ réis a favor da Irmandade” (TORRES, 1851, p. 7).
Mesmo com a distância que separa Óbidos da capital do bispado (Belém),
houve sintonia entre as proposições do bispo, e as atividades da irman-
dade. Não por acaso, é percebido na documentação agradecimentos dos
irmãos da irmandade pelo esforço imprimido pelo bispo quando ajudou na
movimentação da referida associação para arrecadação de fundos para o
sustento do Colégio.

A Irmandade de S. Luiz Gonzaga estabelecidade nesta Villa


incorreria na mais notável omissão dos seus deveres e me-
recida censura, se deixando passar esta oportunidade, não
fizesse subir á Presença de V. Ex.a Rv.ma a expressão do seu
humilde reconhecimento pelo decidido zêlo, com que V. Ex.a
Rv.ma se tem digndado proteger o Collegio da Irmandade (sic)
(TORRES, 1851, p. 7).

246
Diversidade Religiosa & História

Conclusão

Como se vê, diversas eram as manifestações religiosas existentes na


Amazônia, contudo, a Igreja Oficial se mostrava insatisfeita com aquele co-
rolário. Para a hierarquia católica era fundamental o combate às práticas do
Catolicismo Popular, por este não valorizar o sacramento, liturgia e doutrina
para o exterior da vivência religiosa. Não foi pouca a dedicação do prelado
diocesano para levantar a bandeira do catolicismo ultramontano em meio a
tantas práticas da religiosidade popular na Amazônia, no qual ficou evidente,
inclusive, a marca do mundo moderno no seu comportamento de reprimir
essas práticas populares. Além disso, até certo ponto, ele buscou usar em
favor da Igreja Católica aspectos da crença popular, como foi o caso da
criação de irmadades sob os auspícios da hierarquia eclesiástica.

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248
VIVÊNCIAS DO CATOLICISMOO PEREGRINAR
COMO EXPERIÊNCIA RELIGIOSA NO HALLEL
(MARINGÁ-PR, 1995-2019)

Mariane Rosa Emerenciano da Silva5

Resumo
No presente capítulo, buscamos apresentar os módulos do Hallel em Maringá
(1995-2019), evento de música católico. Neste meio, diversas frentes apresentam
suas atividades dentro da Igreja Católica. Partindo de pesquisas de campo (2014-
2019) e entrevistas, é possível observar a figura do “peregrino”, o qual vivencia a
prática religiosa como voluntária, autônoma, individual, móvel e de caráter excep-
cional no evento (HERVIEU-LÉGER, 2008).
Palavras-chave: Pelegrino. Hallel. Catolicismo. Módulos.

Abstract
This study aims to present the Hallel Modules in Maringá (1995-2019), a Catholic
music event. There, several movements present their activities within the Catholic
Church. Based on field research (2014-2019) and interviews, it is possible to observe
the figure of the “pilgrim”, who experiences the religious practice as a volunteer, au-
tonomous, individual, mobile and exceptional at the event (HERVIEU-LÉGER, 2008).
Keywords: Pilgrim. Hallel. Catholicism. Modules.

5 Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá. Doutoranda em História pela Universidade
Estadual de Maringá

249
Diversidade Religiosa & História

Se do ponto de vista historiográfico é difícil falar em catolicismo


no singular, o mesmo é válido para as formas diversas como os adeptos
vivenciam e experienciam a prática religiosa. Essa fluidez e pluralidade
da experiência é o que constatamos ao analisar o Hallel, na cidade de
Maringá-PR. Um movimento religioso que se caracteriza pelo teor festi-
vo, emocional e voltado principalmente para juventude. Organizado no
Parque de Exposições Francisco Feio Ribeiro — Maringá-PR em um final
de semana predeterminado. Para a realização do evento eram montados
diversos módulos pelo Parque de Exposições, tais como: Módulo dos
Pregadores, Módulo Namoro, Módulo Família, Palco Central, Capela do
Louvor. Nesses módulos se encontravam diversas frentes, pastorais e
movimentos da Igreja Católica — movimentos leigos como, Projeto Mais
Vida, Renovação Carismática Católica, Vicentinos, Movimento Familiar
Cristão; padres e religiosas — que apresentavam atividades como músicas,
palestras, teatros, oração em silêncio, dança, confissões e missas, o que
permitia aos participantes “peregrinarem” entre os módulos em busca de
atividades que atendessem melhor suas escolhas individuais de crença.
O evento chamava atenção ao movimentar um grande público de jovens,
seu público alvo, sendo que o evento já reuniu em dois dias mais de 100
mil participantes.
Recordamos que dentre os anos de 2016-20196, ao conversarmos
com 495 participantes era possível constatar que vinham de diferentes
cidades dos estados do Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo. No que
consiste a declaração do sexo, 60,60% era feminino e 32,72% masculino.
No que tange a idade 73,22% possuíam a maioria tinha a idade menos que
25 anos com 73,22%. Sobre a religião dos participantes 98% disseram ser
católicos, 91% desses católicos nunca participaram de outras religiões.
Das religiões que aparecem como outras práticas, estão: evangélicas
(32); espírita (3); afro-brasileiras (2); protestantes (2); metodista (1); batista
(1); mórmon (1); e seicho-no-ie (1). Alguns desses participantes já fizeram
parte de outra religião, e as procuram outras religiões porque gostam de

6 Partimos da análise metodológica de pesquisa de campo durante os anos de 2014-2019. Recolhemos


materiais como as programações impressas do evento, realizamos uma pesquisa de opinião entre 2016-
2019 com 495 participantes.

250
Diversidade Religiosa & História

ver outras práticas ou, ainda, por seus familiares, que participam dessas
religiões. Entre os 6% que não são católicos, houve a declaração que eram
evangélicos e/ou não tinham religião. Um cenário, marcado — como nos
lembra Hervieu-Léger (2008) por uma maior fluidez e autonomia nas es-
colhas dos indivíduos.
Hervieu-Léger (2008), ao se dedicar a pensar memória e tradição
religiosa, questiona os sistemas tradicionais de crença e aponta para a
singular mobilidade religiosa contemporânea. A história oficial de Marin-
gá é intrinsecamente marcada pela presença da instituição católica7, e
a Catedral Nossa Senhora da Glória é o cerne desse universo, pois está
literalmente no centro de sua existência e é visível a toda a comunidade
como ponto de referência turística, religiosa e espacial. Em suma, o sím-
bolo da cidade é marcado por uma identidade católica. Nesse sentido,
percebemos a importância do Hallel para a manutenção e constante
atualização dessa presença, pois o evento estabelece diálogos com a
juventude católica em Maringá, operando como forma de comunicação
entre os jovens e a instituição.
Podemos dizer que a composição do evento em módulos é um
meio de reaproximação e refiliação de fiéis à instituição, sugerido princi-
palmente pelos organizadores, como locais que possibilitam a conversão.
Entretanto, lançamos olhar a outra figura do que surge dentro do cenário
religioso contemporâneo e no qual é possível observar transitando pelos
módulos, a do “peregrino”, “[...] que pode cristalizar de maneira ideal-típica
alguns traços do religioso em movimento que mencionávamos metafo-
ricamente ao de ‘religiosidade peregrina’” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 98).
O “peregrino”, vivencia a prática religiosa como voluntária, autônoma,
variável, individual, móvel e de caráter excepcional.

O que se distingue de maneira decisiva a figura do praticante


e a do peregrino diz respeito ao grau de controle institucional
presente em uma e em outra. O praticante se conforma a

7 Ao considerar que Maringá é uma cidade com sua história e memória demarcada pela influência da
Igreja Católica, na década 1990; 77,41% dos habitantes da cidade declaravam-se católicos, no censo de
2000; 70,41% declaram-se católicos e 2010; 64,83%. IBGE. Sidra. Censo Demográfico. Tabela 137 — População
residente por religião. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/137#resultado. Acesso em: 20 jan. 2021.

251
Diversidade Religiosa & História

disposições fixas, que têm, por isso, um caráter de obrigação


para todos os fiéis. Mesmo quando a observância é solitária,
ela conversa uma dimensão comunitária. A prática peregrina,
ao contrário, é uma prática voluntária e pessoal. Ela implica
uma opção individual que mantém a primazia mesmo no caso
em que a atividade assume uma forma coletiva (HERVIEU-LÉ-
GER, 2008, p. 98).

Assim, o jovem católico que decide participar do Hallel, entre em


um módulo e outro, inscreve seus passos nos das gerações que o pre-
cederam nos mesmos lugares, na tradição católica. Ainda assim, é uma
prática facultativa, que depende de sua escolha pessoal.
Ao tratar das identidades religiosas na Europa e da religiosidade
dos jovens europeus, Hervieu-Léger (2008) formulou a hipótese de que
os processos de identificação religiosa nas sociedades modernas não são
mais articulados pela regulamentação institucional. No Brasil percebemos
que a Igreja Católica antes tida como a religião oficial do país passa por
significativas perdas de adeptos.
No ano de 1940 Antônio Flávio Pierucci (2004) relata que 95,2% de-
clararam-se católicos, já na década de 1970 estimara-se 91,1% de católicos.
Já nas últimas décadas do século o declínio era cada vez mais evidente,
em 1991 declaram-se católicos 82,9% dos brasileiros e em 2000 73,5%.
Como alerta Pierucci (2004), o campo religioso brasileiro vem sofrendo
alterações no que concerne à prevalência da religião católica, não apenas
na busca de outras denominações religiosas, mas também em outras
formas contemporâneas de religiosidades.
Esse decréscimo pode ser identificado no contexto religioso que
segundo Hervieu-Léger (2008) é caracterizado pelo enfraquecimento
das instituições tradicionais e pela racionalização do conhecimento o
que contribui para uma maior autonomia das escolhas individuais sem a
participação institucional. A crença passa por um interesse maior de veri-
ficação e experimentação, mas encontra sua razão de ser no fato de dar
um sentido à experiência subjetiva dos indivíduos. Na paisagem moderna
das crenças, ocorre uma mistura das crenças ou práticas religiosas dos
indivíduos, definido como “bricolagem” (HERVIEU-LÉGER, 2008).

252
Diversidade Religiosa & História

A crise das instituições tradicionais, a marca das formas individua-


listas de crenças que se caracterizam pela pertença confessional a mais de
uma religião, ou ainda pela busca de diversificação da experiência religio-
sa, especialmente entre os jovens, são características que intensificaram
os investimentos da instituição por medidas que envolvessem a juventude,
as quais passam a ser uma pauta constante. As Jornadas Mundiais da
Juventude (JMJ) com início em 1986, ou eventos como, o Hallel no Brasil,
que surge em Franca em 1988 organizado pela Renovação Carismática
Católica, e em 1995 começa a ter edições em Maringá que por sua vez foi
realizado pelo Projeto Mais Vida8.
Depois da primeira edição na cidade do interior paulista na década
de 1988, uma edição do Hallel foi realizada em 1993, em Guadalajara, no
México. Já em 1994, expande para outros lugares no Brasil, em Piraju-SP,
seguido de Brasília-DF, Rio de Janeiro-RJ, São Paulo-SP, Cuiabá-MT, Curi-
tiba-PR, Maringá-PR e Porto Alegre-RS em 1995. Em 1996, apenas Brasília,
Maringá e Paracatu9 continuaram. Chegando ao século XXI, mais precisa-
mente em 2003, mais cidades brasileiras promoveram o Hallel, e em 2005 e
2006 o evento passou a ocorrer, respectivamente, nos Estados Unidos e na
Colômbia. Cada uma das localidades que realizam o evento possui suas par-
ticularidades, entretanto, seguem com semelhanças como, a necessidade
da autorização da Diocese, a configuração em módulos, o início do evento
com a realização de uma missa e encerrando com a Benção do Santíssimo.
A expansão do Hallel para outras cidades ocorreu principalmente
por meio da Evangelização 2000, uma campanha de oração lançada para
promover a “Década de Evangelização” — do Natal de 1990 até o Natal de
2000. A intenção era converter o máximo possível de católicos, ou seja,
reaproximá-los da religião. “Quase 4 mil casas de meditação e 1.400 indi-
víduos e grupos e intercessão foram abordados neste sentido apenas em
1988”, discorre David Jacobus Bosch (2002, p. 634).

8 O Mais Vida é um movimento leigo que pertence à Arquidiocese de Maringá e realiza acampamentos
religiosos para pessoas acima de 21 anos, participa da preparação de missas e de reuniões abertas sema-
nais, além de promover reuniões de formação espiritual e o próprio Hallel.
9 Em Hallel – som e vida: 20 anos! não é citado em que ano a cidade de Paracatu começou a realizar o
Hallel. SILVEIRA, Maria Theodora Lemos (org.). Hallel – som e vida: 20 anos! Uma história a ser contada e
cantada. Franca: Hallel, 2007.

253
Diversidade Religiosa & História

A partir da Evangelização 2000, uma campanha que visava novas


abordagens e métodos de evangelização, em 1995 é expandida para
outras cidades. Reginaldo Prandi (1998) aponta que no papado de João
Paulo II, no Brasil, as formas de catolicismo carismático se destacam
com os megaeventos, padres midiáticos e uma concepção festiva da
religiosidade, voltando a lotar as Igrejas. Nesse período, alguns jovens da
Igreja Católica de Maringá também participavam de encontros referentes
à Evangelização 2000 e à discussão de novos meios de evangelização.
Esses jovens leigos, que começaram a realizar acampamentos católicos
em 1992, passaram a compor o Projeto Mais Vida, estabelecendo contato
com os grupos de Franca.
O Hallel surge de movimentos leigos, que estão inseridos em
novas demandas históricas e sociais, que buscam criar uma ponte entre o
tradicional e o novo como forma de atrair públicos distintos. Em Maringá o
evento é resultado de uma necessidade de métodos para uma maior par-
ticipação de fiéis na prática católica, pois, nesse caso, os jovens parecem
receber mais atenção. A música, os acampamentos, os encontros e retiros,
a realização de megaeventos, tudo isso surge como alternativa, e os gru-
pos que realizam tais atividades ganham espaço e apoio institucional. Um
exemplo interessante são os “barzinhos de Jesus”. Carranza Dávila (1998, p.
44) afirma que em meados de 1980, com esses barzinhos, surge um am-
biente com “[...]músicas cantadas em ritmo de rock, samba e heavy metal
e com inspiração na música Gospel trazida ao Brasil em 1989, pelas Igrejas
Evangélicas, dão o tom convocatório aos jovens para rezarem e louvarem
a Deus festivamente”. Lá as pessoas comiam, bebiam e cantavam com
Jesus, ainda de acordo com Dávila (1998).
No que tange o Hallel, parte dos participantes chegava ainda no
sábado e ali eles permaneciam acampados, aguardando as atividades
do domingo. Estas se iniciavam cedo, com uma missa, às 8h. O fluxo de
pessoas ia aumentando com o passar do dia. Nesses anos (2014-2019), a
expectativa de público girava em torno de 50 mil a 70 mil pessoas, e a
maior parte destas ia apenas no domingo.
O acesso ao evento se dava pela entrada principal localizada na
Avenida Colombo. Formavam-se duas filas: uma para mulheres e outra

254
Diversidade Religiosa & História

para homens, ambas passando por vistoria para então adentrar pelo Pa-
vilhão de Indústria e Comércio Christina Helena Barros, o “Pavilhão Azul”.
Os que traziam um quilo de alimento para doação ali o entregavam para
os Vicentinos. Logo à esquerda havia um local montado para a venda
das camisetas oficiais do Hallel10 e grande parte das pessoas transitavam
pelo local vestindo a camiseta do evento. Havia também um espaço com
a programação impressa que ficava em cima de uma mesa, contendo o
horário e o local onde cada artista e pregador estariam, com um mapa de
localização dos módulos.
Nos 6.731 m² do Pavilhão, com capacidade para 13 mil pessoas, um
corredor com estandes era montado, formando um U (imagem 1). Nesses
estandes estavam ordens religiosas, grupos e movimentos católicos que con-
versavam com as pessoas que por ali passavam, patrocinadores do evento,
além de estandes com vendas de artigos religiosos, livros e camisetas.

Imagem 1 – Estandes no Pavilhão Azul.


Fonte: Emerenciano da Silva (2019).

Ao sair desse corredor, acessávamos a praça de alimentação, onde


mesas e cadeiras estavam dispostas para comportar as pessoas que qui-
sessem consumir os alimentos. O Hallelzinho, módulo dedicado às crianças,
na maioria das vezes, estava montado por ali. Ao sair do Pavilhão havia outro
corredor com barracas de comida, como podemos observar na imagem 2.

10 Vale ressaltar que nas duas últimas edições as camisetas haviam esgotado. A venda começava de forma
antecipada, pelo site do Hallel (http://hallelmaringa.com.br/2019/) e/ou por pessoas que se disponibilizavam
para vendê-las pessoalmente, mas era no dia do evento que as vendas aconteciam com mais intensidade.

255
Diversidade Religiosa & História

Imagem 2 – Praça de Alimentação Externa.


Fonte: Emerenciano da Silva (2015).

O Pavilhão Azul era ligado ao Palco Central por um corredor mon-


tado como praça de alimentação. Todos que chegavam ao evento obriga-
toriamente tinham de realizar este percurso, a saída, no entanto, dava-se
por outros espaços, em geral sendo indicada Av. Guaiapó, ou o portão
principal do Parque na Av. Colombo. Apenas no último ano observamos
os participantes acessarem o Pavilhão Azul para saírem do local, após o
encerramento do Hallel.
Os módulos no Hallel eram as partes que compõem o evento, re-
alizados sob encargo de Pastorais, movimentos e várias frentes da Igreja
Católica em Maringá, como formas múltiplas de evangelização — por meio
de arte, música, fala e teatro. Cada módulo contava com palestras e falas di-
rigidas por convidados artistas, pregadores, padres e leigos, contando com
a circulação constante das pessoas. Sobre isso, Menegazzo Silva explicou:

Nós temos o que a gente chama de módulos evangelizadores,


que são os módulos de pregação, Capela do Louvor, Capela do
Silêncio, Movimento Familiar Cristão, RCC, todas essas coisas
nós chamamos de módulos evangelizadores. E nós temos os
módulos expositores, que acontecem hoje no Pavilhão Azul, que
são, é, espaços que nós locamos pra editoras, pra pessoas que
tem comércio de livros, de artigos religiosos dentro do... dentro
desse espaço do... do Hallel. Tudo isso ajuda, nos ajuda a fazer-
mos esse caixa que mantém a... a... que possibilita a execução
do evento (MENEGAZZO SILVA, 2020).

256
Diversidade Religiosa & História

Cada um dos módulos contava com uma ou mais atividades,


referentes ao que cada um dos grupos e frentes, que ali se apresentam,
desenvolviam e se dedicavam. É importante ressaltar que durante os 25
anos do Hallel a disposição espacial dos módulos modificou. Surgiram
módulos novos e outros foram extintos, sempre acompanhando o inte-
resse dos movimentos religiosos em participar e da viabilidade desses em
estarem presentes no evento.
O Pavilhão Branco, por exemplo, contava com o Festival Novo
Som — o horário durante cada edição era variado, mas com início sempre
11

depois das 13h. No concurso, bandas e/ou artistas apresentavam suas


músicas autorais, com o vencedor anunciado no Palco Central no dia se-
guinte, às 15h, cujo prêmio era a apresentação nesse mesmo espaço. Nos
anos em que não havia shows grandes no sábado, realizava-se no Pavilhão
a missa de abertura do Hallel.
Se o sábado contava com alguma atração de mais visibilidade,
como Pe. Reginaldo Manzotti (2017) ou Pe. Marcelo Rossi (2019), o local de
concentração era o Palco Central. Na manhã seguinte realizava-se a missa,
sendo este o primeiro Módulo a iniciar as atividades. Encerrada a missa, o
Santíssimo12 saía do Palco em procissão para a Capela do Louvor, e assim
os demais módulos iniciavam suas atividades.
Diferentemente dos outros módulos, o Palco Central (imagem 3)
tinha a característica de show (imagem 4), pois o local é uma construção
com arquibancada ao redor e uma arena no meio sob uma cobertura,
com capacidade para 14 mil pessoas, onde montava-se um palco. É nes-
se palco que eram anunciados os apoiadores do Hallel e os patrocínios,
além de ser o local onde as principais atrações13 tocavam, como The
Flanders (2016-2019), Rosa de Saron (2016-2017), Thiago Brado (2016-
2019), Dj Léo Guimarães (2016-2019) e Anjos de Resgate (2017), ou como

11 Em 2015 foi realizado no Módulo dos Pregadores.


12 Santíssimo é o nome devocional usado pela Igreja Católica para referir-se ao corpo e ao sangue de
Cristo, na forma de pão e vinho, consagrados na celebração da Eucaristia. Vide: CONFERÊNCIA EPISCOPAL
PORTUGUESA. Sagrada Congregação para o Culto Divino. Paulus Editora, 2000. Disponível em: http://www.
liturgia.pt/rituais/CultoEucaristico.pdf. Acesso em: 4 ago. 2018.
13 Vide: Hallel Maringá (2014), Hallel Maringá (2015), Hallel Maringá (2016), Hallel Maringá (2017), Hallel
Maringá (2018) e Hallel Maringá (2019).

257
Diversidade Religiosa & História

foi em outros anos, em que por ali passaram nomes como Dunga, Martin
Valverde, Mistério de Oração, Pe. Zezinho, Pe. Fábio de Melo, Dani Boy,
Adriana e Ceremonya. Era o último módulo, que encerrava as atividades
com a Benção Final (imagem 5).
Entre as atividades mais procuradas no Hallel, nossa pesquisa
constatou que os shows foram os mais citados, aparecendo 228 vezes,
ficando à frente de todas as atividades, com 44 menções, de adoração,
com 37 citações, e música, com 33 respostas. A procura pelos shows por
parte dos participantes ressalta as indicações sobre o módulo com mais
concentração de pessoas, o Palco Central. Como já descrevemos, no
espaço era montado um palco e ali se apresentavam os principais artistas.

Imagem 3 – Palco Central.


Fonte: Emerenciano da Silva (2015).

258
Diversidade Religiosa & História

Imagem 4 – Show.
Fonte: Emerenciano da Silva (2015).

Imagem 5 – Incenso no rito final.


Fonte: Emerenciano da Silva (2015).

No domingo pela manhã, após a missa, o arcebispo Dom Anuar


Battisti saía em procissão com o Santíssimo do Palco Central e se dirigia
para a Capela do Louvor. Nesse momento, os módulos se esvaziavam e
algumas pessoas acompanhavam a procissão até a Capela do Louvor
(imagens 6 e 7). No centro da capela, o Santíssimo era exposto, cadeiras
eram espalhadas e ali indivíduos e grupos conduziam os momentos, como
Irmã Zélia (2016-2019), Colo de Deus (2018-2019), Thiago Brado (2016-2017)
e Projeto Mais Vida (2016-2019), com música, louvores e orações. O Mais
Vida ficava responsável tanto pelo Palco Central quanto por essa capela e

259
Diversidade Religiosa & História

convidavam artistas, pregadores e bandas para conduzirem a adoração ao


Santíssimo durante o dia todo.

Imagem 6 – Capela do Louvor.


Fonte: Emerenciano da Silva (2015).

Imagem 7 – O Santíssimo.
Fonte: Emerenciano da Silva (2015).

Ao sair da Capela do Louvor e atravessar uma das ruas construídas


no Parque, nos deparamos com uma fila grande, que formava durante
todo o dia, para acessar o Módulo de Confissão. Mais recentemente, nas
últimas edições, também havia o Módulo de Aconselhamento/Escuta.
Na mesma rua do Módulo de Confissão, à esquerda, situava-se o Módulo
Artes (imagem 8), que em alguns anos foi denominado Módulo Teatro e/
ou Módulo Teatro e Dança.

260
Diversidade Religiosa & História

Imagem 8 – Módulo Arte.


Fonte: Emerenciano da Silva (2019).

Em linha reta em direção aos banheiros, estava localizado Módulo


Jovens (imagem 9), mas em outros anos ali também havia os Módulos
Som da Terra — com bandas de música sertaneja e música gaúcha — e
o Adolescente. No Módulo Jovens, o mais citado nos questionários, havia
algumas pregações e palestras, como: Sementes de uma nova geração
— Grupo Quadrilha de Jesus e Anjos Guardiões (2016); Os planos de Deus
na minha vida — Dom Anuar Battisti (2016); Jesus é a minha Força e Sus-
tentabilidade — Pe. Maxwell Quaye de Gana/ África (2017); Eu sou do meu
amado e Ele é meu — Colo de Deus (2018); e Depressão e Suicídio — Onias
Botelho (2019). Ouvimos várias falas dos participantes sobre o significado
do Hallel que faziam referência às pregações ocorridas nos módulos; uma
participante nos explicou que a importância do evento era “mostrar que
dá para ser jovem sem deixar de ser santos”. Atrás desse módulo ficava o
local do camping, onde pessoas e caravanas que chegavam no sábado
acampavam — em 2019, até um luau foi realizado ali para os campistas.

261
Diversidade Religiosa & História

Imagem 9 – Módulo Jovem.


Fonte: Emerenciano da Silva (2019).

Rumando à direita do camping, observando externamente a praça


de alimentação, situava-se o Módulo dos Pregadores (imagem 10), um
grande espaço com palco construído na frente da própria estrutura do
prédio e que reunia leigos ou religiosos, artistas ou não, para realizar pre-
gações, sempre acompanhados de uma equipe de músicos, o que de for-
ma geral era possível constatar em quase todos os módulos. Algumas das
pregações ali apresentadas foram: Da morte para vida — Valdemir Freire
(2016); Deus te ama e está contigo no sofrimento — Luiz Cláudio Schiebel
(2017); e Perdão: a chave para todas as curas — Paulo Ramão (2019).

Imagem 10 – Módulo Pregadores.


Fonte: Emerenciano da Silva (2019).

262
Diversidade Religiosa & História

Em alguns anos, o Hallelzinho (imagem 11) era montado logo à


vista de quem passava pela praça de alimentação, no mesmo espaço. Em
outros, era em um local anexo ao Pavilhão Azul. A imagem estampada e
colocada em frente ao módulo no ano de 2019 refere-se ao Infância Ado-
lescência Missionária (IAM), responsável pelas atividades do Hallelzinho,
como pinturas, músicas e brincadeiras, conduzidas por algumas paróquias
de Maringá para crianças.

Imagem 11 – Módulo Hallelzinho.


Fonte: Emerenciano da Silva (2019).

Ao sair do Pavilhão Azul pela praça de alimentação, à esquerda


ficava o Módulo do Namoro (imagem 12), em lona branca, com corações es-
palhados pelo local, som à frente e cadeiras distribuídas no espaço. O nome
do Módulo é indutivo, abordando relacionamento, vocação, castidade, afeti-
vidade, sexualidade, solidão, casamento e corpo. Entre os temas, tínhamos:
Namoro a distância, dá certo? — Emerson Laines, da Comunidade Shalon
(2016); Afetividade e sexualidade — Antonio Henrique, do Grupo Filhos de
Abrãao (2016); Castidade, Deus quer, você consegue — Crislayne Cristina e
Fernando Janegitz (2017); Vocação, qual o caminho? — Pe. Rodrigo Gutierrez
Stabel; Como enfrentar a dificuldade do relacionamento a dois? — Psicóloga
Leila Ferreira Farias (2018); e Teologia do Corpo — Ana Nerry (2019). Cada
palestrante trazia uma perspectiva, podendo perpassar questões como
castidade, vocação, valorização de si e do outro e sexualidade. A forma que
esses temas eram abordados referiam-se geralmente ao grupo do qual es-
ses palestrantes fazem parte, podendo ser eles mais conservadores ou não.

263
Diversidade Religiosa & História

Imagem 12 – Módulo Namoro.


Fonte: Emerenciano da Silva (2019).

Um tema recorrente no Hallel é família. Ao seguir alguns metros,


um dos módulos que discutia a instituição familiar era o Módulo Família
(imagem 13), com pregações como: Segunda união e Nulidade — Diác. Cel-
so Mendes (2016); Pais, os verdadeiros amigos (resgate de um dependente
químico) — Onias Botelho (2017); Cuide bem do tempo que você tem — Roger
Naves (2018); e Pais e Filhos — Cantora Carmem (2019). Aqui, pode-se per-
ceber que são diversas as questões relacionadas à família e que enfatizam
a concepção de como viver em grupos e comunidades, que podem ser
vistos como uma nova família, além de tratar da relação com membros
familiares e da base que a família deve exercer na vida do indivíduo — vide
o título da palestra de Onias Botelho em 2017.

Imagem 13 – Módulo Família.


Fonte: Emerenciano da Silva (2019).

264
Diversidade Religiosa & História

Andando alguns passos, também em um local de lona branca,


havia o Módulo Acampamento (imagem 14), com desafios e dinâmicas
organizados pelo Projeto Mais Vida, além de pregações. Em frente a esse
estava o Módulo RCC (imagem 15), em que a Renovação Carismática Ca-
tólica conduzia pregações, como O Espírito Santo, o Sopro da Vida — Alex
Chaves (2016), e orações, como Oração por cura com o Santíssimo — Mi-
nistério de Oração por Cura Interior (2017) e Oração de efusão — Wellington
Dutra (2019). Além de música, pregações e orações, o módulo conduzia a
realização de missas (2016-2019).

Imagem 14 – Módulo Acampamento.


Fonte: Emerenciano da Silva (2019).

Imagem 15 – Missa Módulo RCC.


Fonte: Emerenciano da Silva (2019).

265
Diversidade Religiosa & História

Descendo a rua em uma construção de esquina, estava a Capela


do Silêncio (imagem 16). Nela, assim como a Capela do Louvor, havia a
exposição do Santíssimo e a programação era “silêncio na presença do
Santíssimo” — era o único módulo sem música nem palavras, por vezes,
escutava-se o som do Palco Central.

Imagem 16 – Exposição Santíssimo Capela do Silêncio.


Fonte: Emerenciano da Silva (2019).

O último espaço presente no mapa de 2019 era o Módulo de Maria


(imagem 17), que em 2016 foi voltado para a oração das mil Ave Maria.
Nos anos seguintes foram realizadas algumas pregações, como O sim de
Maria — Janice D’Avila Versan (2017) e Nossa senhora de Guadalupe — Tia
Lolita (2018), além do terço mediado (2017-2019) e a celebração da missa
como última atividade do módulo (2017-2019). Era um local que por vezes
tinha flores e a imagem de Maria à frente do módulo.

266
Diversidade Religiosa & História

Imagem 17 – Missa Módulo de Maria.


Fonte: Emerenciano da Silva (2019).

Alguns dos módulos citados por participantes não foram montados


em determinados anos, como o Módulo Rock (imagem 18), um palco para
shows montado em local mais amplo e livre. Por ali passaram bandas The
Flanders (2016-2017), Cavaleiros Consagrados (2017) e Morya (2017). Durante
a pesquisa, percebeu-se sua ausência a partir de 2018, apesar de muitas
pessoas mencionarem o espaço nos questionários. Uma moça, inclusive,
que via o parceiro responder ao questionário de 2019, exclamou: “Mas esse
módulo não tem!”, ao que ele respondeu: “Mas das outras vezes eu fui nele!”.

Imagem 18 – Módulo Rock.


Fonte: Emerenciano da Silva (2015).

267
Diversidade Religiosa & História

Além dos módulos aqui citados, foi mencionada a Pastoral dos


Surdos, que conduziu o Módulo Mãos que Evangelizam (imagem 19) entre
2016-2018 e em 2019 marcou presença em alguns módulos, participando
de atividades pontuais em Libras, a língua de sinais oficial do Brasil, além
da celebração das missas pela manhã, no Palco Central.

Imagem 19 – Módulo Mãos que Evangelizam.


Fonte: Emerenciano da Silva (2015).

Esse caminho realizado pelo parque durante o evento ajuda a


compreender a opção pelo termo “módulo”, pois cada um desses espaços
apresenta uma fração unitária de um amplo projeto de evangelização
católica. Trata-se de um evento no qual percebemos as distintas formas
de evangelização, de debate de temas sociais, de estratégias de diálogo
com a juventude e de técnicas de aproximação. Apesar de distintas, elas
se sujeitam a uma unidade padrão, a Igreja Católica, e os módulos fazem
parte dessa construção.
As atividades propostas e os módulos são uma configuração impor-
tante para atingir os crentes na contemporaneidade. Ao ouvirmos questões
como a importância do Hallel é a “Diversidade de módulos, qualidade dos
convidados”, “a evangelização através de diversos módulos”, pois “consegue
reunir várias tribos da Igreja Católica num local. Uma forma de reunir tanto
católico ou não pra falar de Deus”. Nos faz considerar que as pessoas que
passam pelo Hallel podem escolher seu programa peregrinando entre os
módulos, e esse movimento revela a busca individual dos “peregrinos” e a

268
Diversidade Religiosa & História

preferência de vivenciar o sagrado desde as atividades mais agitadas até


as que exigem silêncio. Mesmo aqueles que mencionaram não participar
de “nenhum”, estavam ali para ver os shows no Palco Central — como iden-
tificado em uma das respostas: “raramente vou nos módulos”.
Ao atentarmos para a mobilidade existente no cenário religioso,
em que as instituições perdem relativa influência sobre as escolhas dos
indivíduos, o que influi nas perspectivas de trajetórias individuais, as pes-
soas aderem a crenças motivadas por suas experiências e preferências,
configurado na “figura do peregrino”. Esta é permeada pela construção
de uma narrativa de si mesmo: “é a trama das trajetórias de identificação
percorridas pelos indivíduos” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 89).
Essa construção refere-se à formação de uma identidade religiosa
quando a subjetividade se encontra com a objetividade de uma linhagem
de crença, nesse caso encarnada em uma comunidade na qual o indivíduo
se reconheça. O que não significa que essa referência implica em adesão
completa a uma doutrina religiosa, sequer em incorporação definitiva
em uma comunidade: “Essa ‘religiosidade peregrina’ individual, portanto,
se caracteriza, antes de tudo, pela fluidez dos conteúdos de crença que
elabora, ao mesmo tempo que pela incerteza das pertenças comunitárias
às quais pode dar lugar” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.89-90). Por fim, cons-
tamos que é possível ser católico sem ir à missa todos domingos, e vale a
motivação e o desejo em participar dos acampamentos, dos eventos de
música, ou seja, há outras formas de se experienciar o sagrado. A fonte da
obrigação é, antes de mais nada, pessoal e “interior”.

Referências

BOSCH, David J. Missão transformadora, mudanças de paradigma na teologia da missão. São


Leopoldo: EST: Sinodal, 2002.

CARRANZA DÁVILA, Brenda Maribel. Renovação Carismática Católica: origem, mudanças e


tendências. 1998. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Unicamp, Campinas, 1998.

EMERENCIANO DA SILVA, Mariane Rosa. Juventude e Catolicismo: A história do Halle em Ma-


ringá- PR (1995-2019). 2020. 163 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual
de Maringá, Maringá, 2020.

269
Diversidade Religiosa & História

EMERENCIANO DA SILVA, Mariane Rosa. Observação Hallel de Maringá 2015: 21ª edição, 2º
dia. Maringá: Parque de Exposição Francisco Feio Ribeiro, 2015. (Trabalho de campo – História,
Universidade Estadual de Maringá).

EMERENCIANO DA SILVA, Mariane Rosa. Observação Hallel de Maringá 2019: 25ª edição, 2º
dia. Maringá: Parque de Exposição Francisco Feio Ribeiro, 2019. (Trabalho de campo – História,
Universidade Estadual de Maringá).

HALLEL MARINGÁ. Programação do Hallel: Eis me aqui envia-me. Maringá: [s. n.], 2015. Edição XXI.

HALLEL MARINGÁ. Programação do Hallel: Em Cristo somos todos irmãos. Maringá: [s. n.],
2018. Edição XXIV.

HALLEL MARINGÁ. Programação do Hallel: Enviados e Batizados. Maringá: [s. n.], 2019. Edição XXV.

HALLEL MARINGÁ. Programação do Hallel: Fazei tudo o que Ele voz disser. Maringá: [s. n.],
2017. Edição XXIII.

HALLEL MARINGÁ. Programação do Hallel. Maringá: [s. n.], 2014. Edição XX.

HALLEL MARINGÁ. Programação do Hallel: Sementes de uma nova geração. Maringá: [s. n.],
2016. Edição XXII.

HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis:


Vozes, 2008.

MENEGAZZO SILVA, Mauro. Mauro Menegazzo Silva. Maringá: HCIR- UEM, 2020. (Depoimento
de 2019).

PIERUCCI, Antônio Fávio. “Bye bye, Brasil” – O declínio das religiões tradicionais no Censo
2000. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 52, p. 17-28, 2004.

PRANDI, Reginaldo. Um sopro do Espírito: a renovação conservadora do catolicismo carismá-


tico. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 1998.

SILVEIRA, Maria Theodora Lemos (org.). Hallel – som e vida: 20 anos! Uma história a ser conta-
da e cantada. Franca: Hallel, 2007.

270
O PÂNICO SATÂNICO: CONSIDERAÇÕES
SOBRE SATÃ E SATANISMO NOS ESTADOS
UNIDOS NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980

Rafaela Arienti Barbieri1

Resumo
Este artigo discute o fenômeno do Pânico Satânico nas décadas de 1970 e 1980
nos Estados Unidos. Relacionado ao contexto religioso e cultural do período, à uma
histórica compreensão de Satã, à publicação de livros acusatórios e programas
televisivos, instensificou-se a ideia de uma conspiração Satanista internacional.
Problematizar este fenômeno considerando o Satanismo Religioso auxilia a pensar
sobre a diversidade religiosa no país em questão.
Palavras-chave: História das Religiões. Satanismo. Pânico Satânico.

Abstract
This paper discusses the phenomenon of Satanic Panic in the 1970s and 1980s
in the United States. Related to the religious and cultural context of the period,
to a historical understanding of Satan, to the publication of accusatory books and
television programs, the idea of an international Satanist conspiracy was intensified.
Problematizing this phenomenon by considering Religious Satanism helps to think
about religious diversity in the country in question.
Keywords: History of Religions. Satanism. Satanic Panic.

1 Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina.


Graduada e mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá. Membro do Núcleo de Estudos em
História e Cinema (NEHCINE/UFSC), do Grupo de Pesquisa em História das Crenças e das Ideias Religiosas
(HCIR/UEM), do Humanitas - Núcleo de Pesquisa em Epistemologias, Práticas e Saberes interdisciplinares,
e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais (Meridianum/UFSC). Bolsista CNPq.

271
Diversidade Religiosa & História

Introdução

Em 1988, o programa de televisão estadunidense Devil Worship:


Exposing Satan’s Underground2 discutiu supostos crimes Satânicos. Ao
apresentar casos de mães que teriam oferecido seus filhos em sacrifício
para Satã, o apresentador Geraldo Rivera afirmou que

foi determinado, como você já viu neste programa e nos


tribunais de justiça agora, que o sacrifício humano é, algumas
vezes, um elemento em rituais de pessoas que denominam-
-se Satanistas [...] o sacrifício ideal, nos foi dito, aparentemente
requer bebês, e há aqueles, pessoas em seitas satânicas,
inclusive mães, que pertenceram e falam sobre bebês criados
para sacrifício (DEVIL WORSHIP, 1988, 01:11:29).3

Logo após a fala do apresentador, foram exibidas cenas de Rose-


mary’s Baby4, filme de terror lançado em 1968 cuja narrativa construiu uma
representação do Satanismo. Na sequência exibida, Rosemary, com um
livro na mão, fala desesperadamente para seu marido Guy sobre o uso
de sangue em rituais: “o sangue que mais tem poder é o sangue de bebê”
(ROSEMARY apud DEVIL WORSHIP, 1988, 01:11:58)5. Cenas do estupro da
personagem por Satã também foram destacadas enquanto Rivera formali-
zava o seguinte discurso: “no clássico filme de horror O Bebê de Rosemary,
Mia Farrow é atraída pelas garras de um culto Satânico e casa-se com o
Diabo [...] ela concebe o Anticristo, fornecendo ao grupo um símbolo vivo
de Satã para ser cultuado e adorado” (DEVIL WORSHIP, 1988, 01:12:08).6

2 Adoração ao Diabo: Expondo o Subterrâneo de Satã. Todas as traduções feitas neste documento, exceto
o título O Bebê de Rosemary, são de minha autoria.
3 “It has been established, as you have already seen on this program in courts of law now, that human
sacrifice is sometime an element in rituals performed by people calling themselves Satanists […] the ideal
sacrifice, we are told, apparently requires babies, and there are those, people in Satanic sects, including
mothers, who have belonged who tell of babies being bred for sacrifice” (DEVIL WORSHIP, 1988, 01:11:29).
4 O Bebê de Rosemary.
5 “the blood that has most power is baby’s blood” (ROSEMARY apud DEVIL WORSHIP, 1988, 01:11:58).
6 “in the classic horror film Rosemary’s Baby, Mia Farrow is drawn into the clutches of a Satanic cult, and is
married to the devil [...] she conceives the Antichrist, providing the group with a living symbol of sake to be
worship and adore” (DEVIL WORSHIP, 1988, 01:12:08).

272
Diversidade Religiosa & História

Após a exibição dessas cenas impactantes do filme, imagens de


crianças foram mostradas, brincando em um parquinho enquanto o apre-
sentador reforçava a ideia defendida ao longo do programa como um todo
e também perceptível em seu cartaz de divulgação destacado a seguir:
“por mais doentio e inacreditável que pareça, gestar crianças para o uso
em rituais satânicos pode estar realmente acontecendo” (DEVIL WORSHIP,
1988, 01:12:27).7

Imagem 1 – Cartaz de divulgação da edição especial do programa de Geraldo Rivera, Devil


Worship: Exposing Satan’s Underground (1988).
Fonte: IMDb.8

Os exemplos e cenas do programa e filme podem ser compreendi-


dos como parte do que Douglas Kellner (2001) denomina Cultura da Mídia,
a qual é social e politicamente localizada, “articula posições ideológicas

7 “as sickening and unbelievable as it sound, bearing children for use in satanic rituals may really be hap-
pening” (DEVIL WORSHIP, 1988, 01:12:27).
8 Disponível: https://www.imdb.com/title/tt1136645/mediaviewer/rm365130240/. Acesso em: 16 jan. 2020.

273
Diversidade Religiosa & História

específicas e ajudam a reiterar formas dominantes de poder social, servin-


do aos interesses da dominação da sociedade ou de resistência às formas
dominantes de cultura e sociedade — ou se têm efeitos contraditórios”
(KELLNER, 2001, p. 12). Essa cultura possui um impacto social, podendo
suscitar transformações, veicular representações ou propor modelos.
O posicionamento político e social perceptível na abordagem de
Geraldo Rivera encontra diálogo com o contexto bastante conservador
nos Estados Unidos, marcado pela eleição de Ronald Reagan e ascensão
da Nova Direita.9 Em seu programa, Rivera explanava acusações e casos
judiciais posteriormente identificados como parte do Pânico Satânico.
Durante as décadas de 1980 e 1990, em alguns países como os Estados
Unidos, “[...] segmentos sociais importantes (por exemplo, a comunidade
policial e psicoterapeutas) acreditavam na existência de uma vasta rede
underground de cultos satânicos malignos que sacrificavam e abusavam
de crianças” (DYRENDAL; LEWIS; PETERSEN, 2016, p. 103).
Segundo historiadores, sociólogos e teólogos como Ruben Van
Luijk (2016), Asbjørn Dyrendal (2016), James Lewis (2016), Jesper Aa. Peter-
sen (2016), Massimo Introvigne (2016) e Bill Ellis (2000), o Pânico Satânico
refere-se à um Pânico Moral que envolveu casos judiciais sobre crimes
satânicos, nos quais as vítimas relatavam traumas e violências sofridas em
rituais satanistas. Atrelado ao contexto religioso e cultural, à publicação de
livros em tom acusatório, programas televisivos que traziam depoimen-
tos de ex-satanistas sobre seus crimes violentos, e à uma generalização
das definições de Bruxaria, Satanismo e Oculto, intensificou-se a noção
de uma conspiração Satanista internacional, posteriormente identificada
como equivocada.
Dessa forma, compreendendo a historicidade da imagem de
Satã, busca-se realizar algumas ponderações sobre o uso da mesma nas
décadas de 1970 e 1980 nos Estados Unidos, dialogando com o referido
Pânico Satânico e contextualizando-a em relação aos grupos Satanistas

9 Segundo Sean Purdy (2007), os governos de Ronald Reagan, George Bush e Bill Clinton reagiram à
crise da década de 1970 com políticas neoliberais, dando vazão à uma “nova direita” que passou a permear
a cultura e a política. Nos estudos sobre mídias, Douglas Kellner (2001) também argumenta sobre este
contexto político conservador para analisar as ansiedades sociais a partir de Poltergeist (1982).

274
Diversidade Religiosa & História

autodeclarados, na medida em que a percepção cristã de Satã difere-se


daquela articulada pelos grupos Satanistas.

O Pânico Satânico (1970-1980)

É importante considerar que o Pânico Satânico teve seu ápice em


meio ao crescimento do conservadorismo na década de 1980 nos Estados
Unidos, na qual identificou-se um aumento do número de cristãos e evan-
gélicos para os quais o Diabo associado ao mal ocupa um papel central
em suas cosmovisões. Em um ambiente no qual os Satanismos já haviam
se institucionalizado e se ramificado10, o que viabiliza compreendê-los em
sua heterogeneidade, essa tendência conservadora influenciou o Pânico
Satânico, que

[...] engloba um grande e diverso medo cultural e vários “pâni-


cos”, majoritariamente locais. O termo abrange amplas áreas
do medo onde “o Oculto” e “Satânico” eram compreendidos
como se estivessem agindo através da cultura popular, dro-
gas (ameaças às “crianças”), crimes mais graves e atividades
culturais e políticas subversivas para prejudicar a sociedade
(DYRENDAL; LEWIS; PETERSEN, 2016, p. 103).11

Luijk (2016), destaca a percepção escatológica da teologia dos


grupos carismáticos, para os quais o retorno de Cristo está próximo, mas
é precedido por uma crescente perseguição aos cristãos e ao reinado de
Cristo. Neste sentido, as transformações das décadas anteriores, que en-
volvem mais liberdade sexual, pluralidade religiosa e modos alternativos

10 Após a formação da Church of Satan em 1966 e sua crise no final da década de 1970, é possível perceber
uma pluralização dos Satanismos nas décadas posteriores devido às dissidências do grupo e formação de
outros, como é o caso do Temple of Set, Church of Satanic Brotherhood, Ordo Templis Satanas, Brotherhood
of the Ram, Orthodox Temple of the Prince, Order of Nine Angles e outras. Sobre este contexto e alguns destes
grupos, ver o capítulo The Origins of Contemporary Satanism, 1952-1980 em Satanism: A Social History de
Massimo Introvigne (2016)
11 “[...] encompasses a large, diverse cultural scare, and several, mostly local, “panics.” The term covers
broad areas from fear where “the occult” and “satanic” was seen to be acting through popular culture, drugs
(threats to “children”), more serious crime, and cultural and political subversive activities to harm society”
(DYRENDAL; LEWIS, PETERSEN, 2016, p. 103).

275
Diversidade Religiosa & História

de viver, “[...] eram interpretadas como sinais ameaçadores desses eventos


iminentes. Como já aconteceu anteriormente na história do Cristianismo,
esses ingredientes provaram ser um terreno perfeito para o reaparecimen-
to de antigos padrões de atribuição” (LUIJK, 2016, p. 357).12
Os pesquisadores argumentam sobre uma dinâmica entre o
Satanismo no sentido acusatório, de atribuição, e o Satanismo como
identificação com a figura de Satã ou com o conceito de Satanismo. O
Pânico Satânico, neste sentido, aproximou-se da percepção acusatória
em direção à crença de um outro, mas também de confirmação de pro-
fecias de outras crenças. Em uma leitura semelhante, Introvigne (2016)
desenvolve sua Teoria do Pêndulo, que refere-sese refere à interação
entre Satanismo e antissatanismo. O modelo pendular do autor inclui três
estágios. No primeiro, os movimentos Satanistas emergem dentro de uma
subcultura do Oculto preexistente, ganhando notoriedade gradativamente
e expandindo-se para além desta. No segundo estágio, a religião e cultura
dominantes reconhecem a existência destes movimentos Satanistas e
recusam-se a aceitar sua legitimidade. Há aqui a criminalização do Sata-
nismo, exagerando suas dimensões e ridicularizando-o. Na terceira fase, o
movimento antissatanista enfrentaria complicações:

A primeira é falta de clareza na identificação do adversário.


Neste ponto, de fato, os Satanistas sabiamente reduziram sua
visibilidade, na medida em que suas armas são claramente
menos poderosas. A fim de continuar mobilizando recursos
significativos, as confissões de “ex-satanistas” devem tornar-
-se progressivamente mais extremas, até que se tornem cada
vez menos críveis e muitas vezes façam com que o “apóstata”
seja desmascarado como um impostor. Enquanto o movi-
mento anti-satanista (sic) perde credibilidade, as minorias em
oposição às estruturas sociais dominantes podem redirecio-
nar seus argumentos para um interesse positivo renovado
no Satanismo. O Satanismo é lentamente organizado dentro

12 “[…] were interpreted as threatening signs of these imminent events. As had happened before in the
history of Christianity, these ingredients proved a perfect breeding ground for a resurgence of old patterns
of attribution” (LUIJK, 2016, p. 357).

276
Diversidade Religiosa & História

da subcultura do Oculto e está assim pronto para reemergir,


dando origem a um novo ciclo (INTROVIGNE, 2016, p. 13).13

Dentro deste modelo, o Pânico Satânico foi um caso de antissata-


nismo em um contexto, não somente, reativo aos movimentos culturais das
décadas anteriores. Segundo Luijk (2016), durante 1960 identificou-se um
questionamento às tradicionais formas de cristianismo e um aumento do
interesse pelo Ocultismo, paralelamente à emergência da contracultura e
mudanças morais ocasionadas pela Revolução Sexual. Inserido no debate
sobre as religiões nos Estados Unidos e intensificação do conservadoris-
mo, Emory Elliot (1988) também destaca que

[...] muitos integrantes da Nova Direita acreditam que nos anos


60 e 70 os Estados Unidos desceram ao ponto mais baixo de
bancarrota moral, da decadência espiritual, do pessimismo;
para esses males o único tratamento possível é a revitalização
religiosa (ELLIOT, 1988, p. 127).

Em reação a estes movimentos culturais e religiosos, organizações


anticulto foram fundadas, como a FREECOG14 (1970), Citizen’s Freedom Fou-
ndation e CAN15 (1978). Já durante a década de 1970, identificam-se livros
em tom acusatório frente à estas transformações sociais. O autor cristão
Harold Lee Lindsey e Carole Carlson, por exemplo, publicaram Satan Is
Alive and Well on Planet Earth (1972) no qual escreveram sobre as manifes-
tações satânicas na sociedade contemporânea, “[...] “Bruxas e satanistas,
espíritos e demônios surgiram em nossa geração” [...]. O estabelecimento

13 “The first is the lack of a clearly identifiable adversary. At this point, in fact, Satanists have wisely reduced
their visibility, since their weapons are clearly inferior. In order to continue to mobilize significant resources,
the confessions of “ex-Satanists” should become progressively more extreme, until they become hard to
believe and often cause the “apostate” to be unmasked as an impostor. While the anti-Satanist movement
loses credibility, minorities in opposition to the dominant cultural structures may redirect its arguments
towards a renewed positive interest in Satanism. Satanism is slowly reorganized within the occult subculture
and is thus ready to reemerge, giving rise to a new cycle” (INTROVIGNE, 2016, p. 13).
14 Free Our Children from the Children of God ou Liberte Nossas Crianças das Crianças de Deus.
15 Cult Awarness Network ou Rede de Conscientização de Culto.

277
Diversidade Religiosa & História

da Igreja de Satã de Anton LaVey foi citado como um indicador primordial


desta tendência” (LUIJK, 2016, p. 357).16
Filmes de terror como Rosemary’s Baby e The Reincarnate17 (1971)
são mencionados por Lindsey e Carlson para demonstrar uma preocupa-
ção social com a emergência do Oculto e também ressaltar “como Satã
está usando o mundo no entretenimento para expandir seu reino. Quando
os filmes não estão apresentando sexo, violência ou temas satânicos, ob-
servamos uma óbvia zombaria da fé Cristã” (LINDSEY, 1972, p. 94).18 Para os
autores, este mesmo contexto foi amplamente influenciado pelas ideias de
Immanuel Kant, Georg W. F. Hegel, Søren Kierkegaard, Karl Marx, Charles
Darwin e Sigmund Freud, “as forças intelectuais profundas que moldaram
a civilização ocidental. [...] A “contaminação” de suas “ideias explosivas”
havia sido uma ferramenta importante para o Diabo moldar o pensamento
ocidental do século XX” (LUIJK, 2016, p. 358).19 No mesmo período, foram
publicados livros de ex-satanistas ou ex-bruxas, como The Satan Seller20
(1972), de Mike Warnke, e From Witchcraft to Christ21 (1973) de Doreen Irvine.
Segundo Bill Ellis (2000), estes autores

[…] descreveram cultos elaborados, compostos por pessoas


inteligentes, politicamente poderosas, que comunicaram sua
agenda subversiva através de uma rede mundial secreta. No
nível terreno, tais cultos atraiam jovens curiosos para depois
envolvê-los em cerimônias ocultistas invocando poderes
demoníacos. No nível global, estes grupos supostamente
planejavam infiltrar-se e tomar conta da sociedade ocidental
(ELLIS, 2000, 144).22

16 “[…] Witches and Satanists, spirits and demons have surfaced in our generation” […]. The establishment of
Anton LaVey’s Church of Satan was cited as a prime indicator of this trend” (LUIJK, 2016, p. 357).
17 A Reencarnação.
18 “[...] how Satan is using the world of entertainment to advance his kingdom. When movies are not pre-
senting sex, violence, or Satanic themes, we see blatant mockinf of the Christian faith” (LINDSEY, 1972, p. 94)
19 “[...] the deeper intellectual forces that had shaped Western civilization. [...] The “contamination” of their
“explosive ideas” had been an important tool for the devil to shape twentieth-century thinking in the west”
(LUIJK, 2016, p. 358).
20 O Vendedor Satã.
21 Da Bruxaria a Cristo.
22 “[...] described elaborate cults, made up of intelligent, politically powerful people who communicated
their subversive agenda through a secret worldwide network. On the ground level, such cults were said to

278
Diversidade Religiosa & História

Foi também durante a década de 1970 que os primeiros rumores


de pânicos vinculados ao Satanismo começaram a aparecer. Relacionado
às alegações anteriores na Califórnia, Luijk e Ellis citam o The Cattle Muti-
lation Panic23, no Meio Oeste dos Estados Unidos em 1973, quando agricul-
tores e moradores da cidade se preocuparam com o gado supostamente
mutilado encontrado em suas propriedades. Entre as explicações para o
fenômeno, ““rituais de sangue” por grupos Satanistas secretos se destaca-
ram [...] supunha-se que o gado era apenas o início de sua prática sacrifical
e que os seres humanos seriam os próximos” (LUIJK, 2016, p. 358).24 As in-
vestigações oficiais posteriores afirmaram que as carcaças eram resultado
de predadores naturais e processos normais de decomposição.
O programa de Geraldo Rivera anteriormente citado também
mencionou um destes casos, na Louisiana. Segundo Rivera, “um dos mais
horríveis e ainda aparentemente o mais comum ritual em adorações ao
Diabo é o sacrifício de animais, que muitas vezes envolve a remoção de
órgãos e a drenagem de seu sangue em cerimônias elaboradas” (DEVIL
WORSHIP, 1988, 00:32:12).25 Rivera entrevistou duas moradoras da região
que mostram a carcaça de um animal e especificam supostas evidências
do crime, como a cauda, olhos e órgãos internos arrancados. Uma delas
ainda clama por ajuda: “eu estou implorando para que algo seja feito,
estou com medo” (DEVIL WORSHIP, 1988, 00:32:48).26 A mesma moradora
complementa sua fala dentro de uma Igreja: “Eu acredito na lei e acredito
em você, mas ainda vou carregar minha arma, porque estou com medo”
(DEVIL WHORSHIP, 1988, 00:32:27).27

entice curious youngsters, and then involve them in occult ceremonies invoking demonic powers. On the
global level, these groups allegedly planned to infiltrate and take over western society” (ELLIS, 2000, p. 144).
23 O Pânico da Mutilação do Gado.
24 ““blood rites” by secret Satanist groups loomed prominently. [...] it was assumed that cattle were only the
beginning of their sacrificial practice and that human beings would follow suit” (LUIJK, 2016, p. 358).
25 “one of the ugliest yet apparently most common ritual in devil worship is the sacrifice of animals, often
involving the removal of organs and the draining of their blood in elaborate ceremonies” (DEVIL WORSHIP,
1988, 00:32:13).
26 “I’m beggin for something to be done, I’m scared” (DEVIL WORSHIP, 1988, 00:32:48).
27 “I believe in the law, and I believe in you, but I’m still gonna carry my gun because I’m scared” (DEVIL
WORSHIP, 1988, 00:33:27).

279
Diversidade Religiosa & História

Contribuindo para tal insegurança no período, já nos anos 1960


ocorreram os assassinatos de Tate-LaBianca relacionados à Família, grupo
organizado em torno de Charles Manson. Em 1969, Sharon Tate, esposa do
diretor Roman Polanski, foi vitima de assassinato junto de Abigail Folger,
Woyciek Frykowski, Jay Sebring e Steven Parent. Em seguida, Pasqualino
Antonio “Leno” LaBianca e sua esposa Rosemary também foram assassi-
nados.28 Manson frequentemente identificava-se como Lúcifer ou Jesus,
mantinha contato com o grupo The Process Church of the Final Judment29,
assim como dois de seus seguidores, Bobby Beausoleil e Susan Atkins,
também tiveram contato com a Church of Satan30. Essas relações eram
suficientes para rotular Manson como Satanista: “a enchente de publicida-
de em torno do grupo de Manson constituiu tanto uma resposta quanto
um estímulo ao mal-estar que muitos americanos sentiram em relação
às novas formas alternativas de religiosidade” (LUIJK, 2016, p. 359). O mo-
vimento anticulto decorrente era composto por Cristãos conservadores,
profissionais de saúde mental e policiais,

este movimento sustentou que os “cultos” usaram técnicas de


lavagem cerebral para transformar os jovens em discípulos
incondicionalmente obedientes e inquestionáveis. Em reação,
ativistas anticultos retiraram seguidores destes grupos, às
vezes à força, e os submeteram a uma terapia de “desprogra-
mação”, que equivalia a uma lavagem cerebral inversa, com
o objetivo de torná-los membros “normais” (e, na maioria dos
casos, Cristãos) da sociedade novamente (LUIJK, 2016, p. 359).

Também relacionado às denúncias durante o Pânico Satânico e


todo o panorama apresentado, Luijk e Introvigne ainda destacam o inte-

28 É possível ter mais informações sobre os assassinatos em Carisma: êxtase e perda de identidade na
veneração ao líder, de Charles Lindholm (1993) e no capítulo de Massimo Introvigne Satan in Jail: the case of
Charles Manson em Satanism: a Social History (2016).
29 Apesar da ampla influência da Church of Satan, nem todos os Satanismos do final do século XX possuem
suas origens no grupo de LaVey. Um destes casos é a Igreja do Processo do Juízo Final. Fundada por Marry
Ann e Robert De Grimston entre o fim de 1966 e 1967, em Londres, o grupo realizou uma leitura da psicolo-
gia Jungiana e da trindade, sugerindo a existência de um quarto elemento, Satã. Para o grupo, a adoração à
Satã, assim como a de Jeová ou Lúcifer, constituía um estágio importante para a correta adoração de Cristo,
sendo este o objetivo final da jornada espiritual. Apesar de pensar o Satanismo como um estágio, para De
Grimston, “[...] all must become “Satanists” and consider Satan as their main god” (INTROVIGNE, 2016, p. 332).
30 Igreja de Satã. O grupo será abordado ainda no decorrer deste capítulo.

280
Diversidade Religiosa & História

resse crescente da psiquiatria por pacientes com Transtorno de Personali-


dade Múltipla (MPD) que “[...] manifestaram diferentes identidades, muitas
vezes totalmente dissociadas” (LUIJK, 2016, p. 359)31, sendo um trauma o
provável gerador da aflição. Neste contexto, no qual terapeutas começa-
ram a experimentar a hipnose para trazer à tona memórias reprimidas, o
livro Michelle Remembers32 (1980) foi lançado pelo psiquiatra canadense
e católico romano Lawrence Pazder, que procurou permissão oficial do
Vaticano para sua investigação. Segundo Introvigne: “Smith e Pazder eram
Católicos Romanos e acreditavam na existência do Diabo, mas o método
usado para lembrar das memórias diabólicas era típico da psicologia secu-
lar” (INTROVIGNE, 2016, p. 375).33
O livro narra as memórias de Michelle Smith recuperadas em
terapia que incluíram:

[…] agressões físicas e sexuais regulares durante cerimônias de


adoração a Satã por um coven de bruxas, que possuíam, cada
uma, seu dedo médio amputado; em sua persona de cinco anos
de idade, Smith também descreveu como foi forçada a teste-
munhar sacrifícios animais e humanos, que envolveram em uma
ocasião, muitos bebês assassinados (LUIJK, 2016, p. 360).34

Michelle Remembers introduziu o tema Satanismo à comunidade


psiquiátrica, na qual teve um forte impacto. Pacientes começaram a adotar
o rótulo “abuso ritual” ou “abuso satânico” como narrativa dominante. Nes-
te contexto, em 1983, sete trabalhadores da pré-escola McMartin em Los
Angeles foram acusados de envolver 360 crianças em rituais de sacrifício.
Ainda em Los Angeles, outras 63 creches também estariam envolvidas em
casos de abuso ritual:

31 “[...] manifested different, often totally dissociated identities” (LUIJK, 2016, p. 359).
32 Michelle Lembra-se.
33 “Smith and Pazder were Catholics and did believe in the personal existence of the Devil, but the method
used to recall the diabolical memories was typical of secular psychotherapy” (INTROVIGNE, 2016, p. 375).
34 “regular physical and sexual assault during Satan-worshipping ceremonies by a coven of witches who
each had their left middle finger amputated; in the persona of a fiveyear- old child, Smith also described how
she was forced to witness animal and human sacrifices, at one time involving a heap of murdered babies”
(LUIJK, 2016, p. 360).

281
Diversidade Religiosa & História

Em várias cidades menores dos Estados Unidos, surgiram ru-


mores locais sobre Satanistas que sequestraram virgens loiras
de olhos azuis, e foi construída uma conspiração Satanista
que combinava abuso infantil organizado, pornografia, formas
extremas de música popular, Satanismo adolescente [...] gra-
fite “ocultista”, e lendas locais sobre o sobrenatural. Quando
questionados em uma pesquisa no início dos anos 1990, 63%
dos texanos confirmaram que consideravam o Satanismo um
problema “muito sério” para a sociedade (LUIJK, 2016, p. 361).35

Segundo os autores, uma posterior análise mais crítica dessas


acusações mostrou um conjunto de equívocos e erros de interpretação.
Em 1990, todos os réus do julgamento McMartin, o mais longo e caro
da história jurídica da Califórnia, foram absolvidos, resultando em uma
diminuição dos processos judiciais posteriores envolvendo “abuso ritual
satânico”. A comunidade acadêmica começou a demolir a ideia de um
Satanismo assustador36 enquanto o FBI, em seu relatório oficial, afirma
não ter encontrado sequer um caso genuíno de abuso ritual Satanista. Em
1989, o relatório de pesquisa Satanism in America: How the Devil Got Much
More Than His Due37 destaca:

Está agora muito claro que uma pequena minoria de fun-


damentalistas e evangélicos de ultradireita, acreditando
tanto na realidade de Satã como personalidade, quanto na
Tribulação, são responsáveis pela má interpretação, pela
disseminação e, em alguns casos, pela fabricação direta
de “fatos” para apoiar o que é essencialmente uma doutrina
religiosa (CARLSON et al., 1989, p. 123 apud DYRENDAL,
PETERSEN, LEWIS, 2016, p. 107-108).38

35 “Local rumor panics about Satanists out to kidnap blue- eyed, blond virgins ensued in several smaller
towns throughout the United States, and a Satanist conspiracy was constructed that combined organized
child molestation, pornography, extreme forms of popular music, adolescent Satanism […], “occult” graffiti,
and local legends about the supernatural. When asked in a poll during the early 1990s, 63 percent of Texans
confirmed they thought Satanism a “very serious” problem to society” (LUIJK, 2016, p. 361).
36 Foi neste contexto que o ambiente acadêmico começa a melhor definir Satanismo como um objeto
legítimo de pesquisa. Para tal discussão, ver o artigo de Jesper Aa. Petersen Bracketing Beelzebub: Introduc-
ting the Academic Study of Satanism (2013).
37 Satanismo na América: Como o Diabo conseguiu muito mais do que o merecido
38 “It is now abundantly clear that a small minority of ultra-right-wing fundamentalist and evangelicals,
believing in both the reality of Satan as a personality and that the Tribulation is at hand, are responsible for
the misinterpretation, the dissemination and in some instances the outright fabrication of ‘facts’ to support

282
Diversidade Religiosa & História

As conclusões deste relatório podem ser demasiado incisivas em


direção àqueles que considera como responsáveis pelo Pânico Satânico,
porém indicam uma problematização mais crítica dos casos já no final da
década de 1980, que também partiam de dentro da cosmovisão cristã.39
Neste sentido, Introvigne (2016) e Petersen (2016) ressaltam o trabalho
de Bob Passantino, Gretchen Passantino e John Trott publicado na revista
cristã Cornerstone em 1989, Satan’s Sideshow40, o artigo de Bob e Gretchen
Passantino publicado no Christian Research Journal em 1992 intitulado The
Hard Facts about Satanic Ritual Abuse41, e outros que partem de aborda-
gens semelhantes.42
Ainda neste panorama, é necessário destacar alguns impactos do
Pânico Satânico. Em 1989, aproximadamente cinquenta pessoas haviam
sido levadas a julgamento sob acusações decorrentes de casos de abuso
ritual e tiveram danos em sua reputação pessoal. Alguns destes foram
condenados e libertos após recorrerem, mas ainda passaram anos em
detenção. Luijk destaca o caso de Paul Ingram, acusado de abuso ritual
por suas filhas adolescentes,

[…] após um deles, enquanto estava em um acampamento


bíblico, havia recuperado memórias sobre rituais Satanistas na
casa da família. Ingram, que era um piedoso Cristão Pentecos-
tal e o presidente do Partido Republicano do condado, não se
lembrava de nada: mas depois de muitas orações e intensos
questionamentos, “recuperou” memórias do abuso Satanista
de suas filhas que ele nunca havia cometido. Desta forma, ele
se declarou culpado em seu julgamento e foi condenado a
vinte anos de prisão em 1º de maio de 1989. Uma vez preso,

what is essentially a religious doctrine” (CARLSON, 1989, p. 123 apud DYRENDAL, PETERSEN, LEWIS, 2016,
p. 107-108).
39 Neste sentido, é interessante destacar a crítica indicada por Introvigne (2016), baseado em Barbara
Hargrove em Social Sources and Consequences of the Brainwashing Controversy (1983), de que o mesmo
argumento relativo à “lavagem cerebral” usado para acusar não-cristãos pode também ser utilizado contra
grupos cristãos.
40 O Sideshow de Satã.
41 Os Fatos Difíceis sobre o Abuso Ritual Satânico.
42 Petersen (2016), Dyrendal (2016) e Lewis (2016) ainda citam outros livros publicados na década de 1990
como Selling Satan: the Tragic History of Mike Warnke (1993) de Mike Hartenstein e Jon Trott, e o outro artigo
de Bob e Gretchen Passantino publicado no Journal of Psychology and Theology intitulado Satanic Ritual
Abuse in Popular Christian Literature (1992).

283
Diversidade Religiosa & História

o ex xerife (sic) pensou melhor sua confissão, mas um recurso


contra seu veredicto foi inútil pois ele mesmo já havia se de-
clarado culpado. Ele foi liberto em 2003 (LUIJK, 2016, p. 362).43

O Pânico Satânico e Satanismo Religioso

O Satanismo organiza-se formalmente pela primeira vez em 1966


nos Estados Unidos com a Church of Satan fundada por Anton LaVey, re-
alizando uma leitura positiva de Satã como símbolo de oposição, rebelião
e revolta contra a autoridade arbitrária e fomentando uma das formas de
Satanismo categorizadas por Petersen (2009, 2013, 2016) e Introvigne (2016)
como Satanismo Racionalista44: “o tipo racionalista indica o uso de Satã
como símbolo de não-conformidade e sabedoria material em uma luta pela
indulgência e existência vital, como encontrado na mundana Igreja de Satã
de Anton LaVey e seus descendentes” (PETERSEN, 2013, p. 168).45
Tal percepção de Satã identificável na Church of Satan e nos Sata-
nismos posteriores foi viabilizada, segundo Luijk (2016) por uma mudança
nos esquemas de atribuição e identificação. O momento de transição
entre tais mecanismos foi durante o Satanismo Romântico, um movimento
literário do século XIX que, influenciado pelo anjo caído de John Milton em
Paraíso Perdido (1667), realizou uma releitura positiva de Satã, percebido
não apenas como uma figura de medo, mas também de identificação. Peter
A. Schock (2003) argumenta sobre um emergente fascínio pelo satânico,
porém o uso de tal repertório não foi no sentido de demonizar adversários,

43 “[…] after one of them, while at a summer bible camp, had recovered memories about Satanist rituals
in the family home. Ingram, who was a pious Pentecostal Christian himself and the county Republican
Party chairman, did not remember anything: but after much prayer and intensive questioning, he eventually
“recovered” memories of the Satanist abuse of his daughters he had never committed. In accordance, he
pleaded guilty at his trial and was convicted to twenty years in prison on May 1, 1989. Once behind bars, the
former sheriff thought better of his confession, but an appeal against his verdict was pointless because he
had already pled guilty himself. He was eventually released in 2003” (LUIJK, 2016, p. 362).
44 Outras formas de Satanismo identificadas por Petersen (2009, 2013) são denominadas de Satanismo
Esotérico e Satanismo Reativo, enquanto Introvigne (2016) delimita o Satanismo Folk e Satanismo Ocultista.
45 “The rationalist type points to the use of Satan as a symbol for non-conformity and material wisdom in
a strive for indulgence and vital existence, as found in Anton LaVey’s decidedly this worldly Church of Satan
and descendants” (PETERSEN, 2013, p. 168).

284
Diversidade Religiosa & História

mas transformou-se o “[...] anjo caído de Milton em um tipo diferente de


âncora mítica para a identificação ideológica” (SCHOCK, 2003, p. 3).46
A Church of Satan ramificou-se na década de 1970 em grottos47,
sedes em diferentes locais do país como Ohio, Califórnia, Nova York e Lou-
isville, passando a relacionar-se mais com aspectos comerciais em prol
de sua expansão, o que pode ser notado com a sistematização do Cloven
Hoof, um boletim internacional do grupo. Entre as obras publicadas por
LaVey após a The Satanic Bible48 em 1969, estão The Satanic Rituals (1972),
e The Devil’s Notebook (1992).49 Após seu crescimento em 1970, o grupo
passou por uma crise e alguns líderes de grottos criaram novos grupos.
Uma das dissidências do Satanismo de LaVey é o Temple of Set50, fundado
em 1975 por Michael A. Aquino, antigo editor do boletim Cloven Hoof e um
tenente do exército estadunidense. Aquino participou da Church of Satan
de 1968 a 1975, deixando-a após discordâncias teóricas internas sobre
Satã e depois da publicação de um artigo na Cloven Hoof, na qual LaVey
definiu que a posição hierárquica do membro na Igreja seria influenciada
por sua contribuição financeira.
Considerando esse panorama, durante o Pânico Satânico a The
Satanic Bible se tornou uma referência dentro do Satanismo organizado,
mas também alvo de críticas fora deste meio:

[...] símbolos e artefatos associados à Igreja de Satã [...] foram


pesquisados em buscas de pistas para o mundo Oculto dos
senhores do crime satânico. Como resultado, a Bíblia de Satã
foi frequentemente examinada em conferências sobre crimes
ocultistas, e sua presença entre os pertences de um infrator

46 No original: “[…] Milton’s fallen angel into a different kind of mythic anchor for ideological identification”
(SCHOCK, 2003, p. 3).
647 Segundo Luijk (2016, p. 344) “grotto” é provavelmente uma influência do termo “6coven” em tal
momento histórico: “Followers who wished to convene with other Satanists should organize themselves
in grottos on their own, using the soon-to-be-published Satanic Rituals as their guide, while the Church of
Satan properly speaking should become an organization for an elite of leaders” (LUIJK, 2016, p. 347).
48 A Bíblia Satânica.
49 Os Rituais Satânicos e O Caderno do Diabo, respectivamente.
50 Templo de Set.

285
Diversidade Religiosa & História

poderia ser suficiente para que o crime fosse rotulado como


satânico (DYRENDAL; LEWIS; PETERSEN, 2016, p. 105).51

No programa de Rivera, por exemplo, é possível identificar uma


aproximação entre os crimes violentos e a The Satanic Bible, crucifixos in-
vertidos e pentagramas. Após apresentar o caso de Thomas Sullivan, que
teria assassinado sua mãe em nome de Satã, Rivera questiona: “como isso
pode estar acontecendo aqui, a um bom garoto de uma boa escola cató-
lica e a uma boa família de classe média? Claro que ele estava obcecado
por símbolos” (DEVIL WORHISP, 1988, 00:12:52).52 O quarto de Sullivan é
então mostrado, onde nota-se uma cruz e um pentagrama invertido.
A percepção de Satã apresentada no decorrer do programa e
também perceptível em outros casos de Pânico Satânico, compreendem
Satã como uma expressão do mal, relacionado à assassinatos e atitudes
violentas. Quando Michael Aquino foi entrevistado no programa, essas
distintas percepções de Satã são visíveis: “Eu acho que há alguma con-
fusão esta noite, pois o mesmo termo possui diferentes significados para
os Satanistas e para os Cristãos dos Estados Unidos” (DEVIL WORSHIP,
1988, 00:27:42).53 Após a fala de um Padre sobre o poder do Diabo como
uma força do Mal, Rivera novamente questiona Aquino a respeito de tal
associação, o qual responde:

Se você está falando sobre Satanismo como um Satanista


legítimo o define, de forma alguma. É ético, está na superfície,
é positivo. Se você está falando do Diabo como ele é definido
por religiões como a do Padre Lebar, então ele é de fato um
símbolo de comportamento degenerado (DEVIL WORSHIP,
1988, 01:22:51).54

51 “[...] symbols and artifacts associated with the Church of Satan […] were scrutinized for clues to the hidden
world of satanic crime lords. As a result, TSB frequently came up for examination at occult crime law en-
forcement conferences, and its presence among the belongings of an offender could be quite sufficient for
the crime to be labeled satanic” (DYRENDAL; LEWIS; PETERSEN, 2016, p. 105).
52 “how could this happened here, to a nice boy from a good Catholic school and a fine middle-class
Family? Sure he was obsessed by the symbols” (DEVIL WHORSHIP, 1988, 00:12:52).
53 “I think that there is some confusion tonight because the same term means something different to
Satanists than it does to Christians in the United States” (DEVIL WORSHIP, 1988, 00:27:42).
54 “If you are talking about Satanism as legitimate Satanist define it, absolutely not. It is ethical; it is above
ground, it is positive. If you are talking about the devil as it is defined by religions such as father Lebar’s, than

286
Diversidade Religiosa & História

Na The Satanic Bible, citada frequentemente no programa, LaVey


buscou defender-se de algumas acusações ao ressaltar que “sob NE-
NHUMA circunstância um satanista sacrificaria qualquer animal ou bebé!
Durante séculos, os propagandistas do caminho da direita têm vindo a
tagarelar sobre os supostos sacrifícios de crianças pequenas e donzelas
voluptuosas às mãos dos diabolistas” (LAVEY, 1969, p. 89).55 No mesmo
livro, também questionou a associação de Satã diretamente ao mal para
então retomar seu significado semântico: “é o “adversário” ou o “opositor”
ou o “acusador” [...] Satã representa a oposição a todas as religiões que ser-
vem para frustrar e condenar o homem por seus instintos naturais” (LAVEY,
1969, p. 55).56 Lúcifer também é invocado nos rituais satânicos indicados
por LaVey, “o portador da luz, esclarecimento, o ar, a estrela da manhã, o
leste” (LAVEY, 1969, p. 57).57
Tal associação, como já foi aqui indicado, relaciona-se à um
processo histórico no qual Satã é reabilitado positivamente na literatura
romântica do século XIX58, influenciando posteriormente o Satanismo or-
ganizado e viabilizando a compreensão de Satã como símbolo de rebelião,
subversão e liberdade, tanto por grupos teístas quanto não-teístas. Porém,
apesar de tal processo influenciar a percepção de LaVey e da Church of
Satan, o contexto histórico dos Estados Unidos nas décadas de 1960, 1970
e 1980 é distinto. LaVey, de forma contraditória e paradoxal, ao mesmo
tempo que enfatiza a liberdade do indivíduo, dialogando com a Revolução
Ocidental, também demonstra ideias provenientes do Darwinismo Social,
uma determinada leitura de Friedrich Nietzsche (1844-1900), Arthur Des-
mond/Ragnar Readbeard (1859-1929), que caminham em direção a uma
visão elitista, anti-igualitária e de hierarquia social que inclusive encontrava

it is in fact a symbol of degenerate behavior, and this is part of problems tonight” (DEVIL WORSHIP, 1988,
01:22:51).
55 “Under NO circumstances would a Satanist sacrifice any animal or baby! For centuries, propagandists
of the right‐hand path have been prattling over the supposed sacrifices of small children and voluptuous
maidens at the hands of diabolists” (LAVEY, 1969, p. 89)
56 No original: “[...] is the “adversary” or “opposition” or the “accuser” [...] Satan represents opposition to all
religions which serve to frustrate and condemn man for his natural instincts” (LAVEY, 1969, p. 55).
57 No original: “bringer of light, enlightenment, the air, the morning star, the east” (LAVEY, 1969, p. 57).
58 Para tal discussão, ver em Romantic Satanism (2003) de Peter Shock e o capítulo Sex, Science, and
Liberty de Ruben Van Luijk em The Devil’s Party (2013).

287
Diversidade Religiosa & História

semelhanças com o Neonazismo e com a direita política do momento.59


O tom elitista, darwinista social e antissemita60 que permeava a Church of
Satan foi intensificado em grupos posteriores, como é o caso da The Order
of the Nine Angles (ONA).
Luijk, nesse sentido, ressalta a intensificação da crítica ao cristia-
nismo em LaVey impulsionada pelo Pânico Satânico. Em Devil’s Notebook
(1992), LaVey argumenta:

[...] as crianças são atraídas, não pelos satanistas, mas pelas


autoridades, para inventarem mentiras prejudiciais sobre seus
próprios pais. Qualquer estrela, círculo, triângulo, hexagrama
ou octógono se torna um símbolo “satânico”. A lista de objetos
amaldiçoados cresce: vitrais, gatos de cerâmica, um roupão
de banho de cor sólida, roupas de couro, gravações de pe-
dra (especialmente se tocadas ao contrário). Se uma Bíblia
satânica é descoberta, ela se torna a prova de que seu leitor
perpetra todos os crimes conhecidos pelo homem (LAVEY,
1992, p. 126 apud LUIJK, 2016, p. 364).61

59 Pensando nessas relações e também citado por Luijk, Ellis (2000) destaca o caso de Isaac Bonewits
e sua experiência em rituais da Church of Satan. Bonewits relata um desconforto em relação ao clima
político do movimento à medida em que seus colegas da Universidade de Berkeley direcionavam-se para
o espectro político da esquerda em protesto contra a Guerra do Vietnã (1955-1975). Enquanto isso, o grupo
de LaVey citava Ayn Rand e até mesmo Adolf Hitler como modelos: “some were bringing authentic Ku
Klux Klan robes and Nazi uniforms for the ceremonies [...] I was assured that the clothes were merely for
‘Satanic shock value’ to jar people from their usual staid patterns of thinking. Then I would talk to the men
wearing these clothes and realize that they were not pretending anything. I noticed that there were no black
members of the Church and only one Asian, and began to ask why” (BONEWITS apud ELLIS, 2000, p. 172).
Luijk também destaca momentos nos quais LaVey indica que uma afinidade entre “[...] modern Satanism and
National Socialism was primarily a matter of aesthetics. [...] But it seems plausible that more was at stake than
mere aesthetic attraction to black uniforms and invigorating marching tunes. Fascism was, of course, another
historical manifestation of the same current of anti-egalitarian critique that had been embraced by LaVey”
(LUIJK, 2016, p. 368). Para mais sobre este tópico, ver em Nazism, The Western Revolution, and Genuine
Satanist Conspiracies em Children of Lucifer de Ruben Van Luijk (2016).
60 Este é um elemento gerador de muitos debates mas, nesse sentido, vale lembrar das raízes judaicas
presentes na família de Anton LaVey. Sobre este assunto, ver o capítulo Tribulations of the Early Church, no
livro Children of Lucifer, de Ruben Van Luijk (2016).
61 “Children are enticed — not by Satanists, but by authorities, to concoct damaging lies about their own
parents. Any star, circle, triangle, hexagram or octagon becomes a “Satanic” symbol. The list of accursed ob-
jects grows: stained glass, ceramic cats, a solid color bathrobe, leather clothes, rock recordings (especially if
played backwards). If a Satanic Bible is discovered, it becomes proof that its reader perpetrates every crime
known to man” (LAVEY, 1992, p. 126 apud LUIJK, 2016, p. 364).

288
Diversidade Religiosa & História

Porém, é também necessário enfatizar que apesar das acusações


do Pânico Satânico em direção aos Satanismos serem falaciosas, LaVey
não rejeita a ideia de que este é uma força secreta que influencia a socie-
dade. Segundo Luijk, “O Papa Negro claramente gostava de se ver como
um manipulador sombrio e preferencialmente apresentou suas decisões
relativas à sua Igreja de Satã como passos de um grande “Plano Mestre””
(LUIJK, 2016, p. 365).62 Ainda em tom conspiracionista, a filha de LaVey,
Blanche Barton também argumentou: “Um dos nossos pontos fortes é que
não precisamos de grandes edifícios. Nós temos células de atividade em
todo o mundo… A Igreja de Satã não precisa ser governada ou ditada por
nada além das diretrizes da Bíblia de Satã. Esse é um dos perigos da nossa
religião” (BARTON apud LUIJK, 2016, p. 365-366).63
Já em 1970 LaVey fala sobre fases do Satanismo64, sendo que a
fase cinco, “Aplicação” foi publicada em 1988, no ápice do Pânico Satâni-
co. Não desconectada dos posicionamentos anteriores de LaVey, a fase
envolveria alguns objetivos como estratificação, taxação de igrejas e o
reestabelecimento da Lex Talionis65. A noção de estratificação se afasta da
ideia de igualdade desenvolvida durante a Revolução Ocidental:

Em vez do mito da igualdade, ele viu a humanidade como


estratificada, uma hierarquia de pessoas inferiores e superio-
res: uma elite criativa e intelectual “que deve ser sancionada a
qualquer custo”, e o resto da humanidade, que foi categoriza-
da como “gafanhotos”. Em suas “divagações” mais extremas,
LaVey não hesitou em propor medidas estatais policiais para

62 “[...] The Black Pope clearly liked to see himself as such a shadowy manipulator and preferably presented
his decisions concerning his Church as steps in a great “Master Plan”” (LUIJK, 2016, p. 365).
63 “One of the strengths is that we don’t have to have big buildings. We have cells of activity all around the
world… The Church of Satan doesn’t need to be governed or dictated by anything other than the guidelines of
the Satanic Bible. That’s one of the dangers of our religion” (BARTON apud LUIJK, 2016, p. 365-366).
64 Após o cisma com Michael Aquino e a fundação do grupo dissidente Temple of Set em 1975, LaVey
publicou as fases de um “Plano Mestre”. As três primeiras fases implicavam o estabelecimento e propa-
gação de um “corpo político Satânico”, sendo que o conflito com Aquino faria parte da quarta fase relativa
à “dispersão” e “desinstitucionalização”. Por sua vez, a quinta fase seria a “aplicação”. Segundo Luijk (2016),
Barton menciona a publicação desta fase em 1988 em seu livro Church of Satan (1990), sendo que no livro
de LaVey The Devil’s Notebook (1992) é também possível observar a radicalização do posicionamento crítico
ao Cristianismo e os objetivos da fase cinco.
65 Lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”.

289
Diversidade Religiosa & História

coibir o “rebanho” e “sancionar” a elite: guetoização, eugenia,


esterilização forçada (LUIJK, 2016, p. 366).1

A tradição da qual LaVey provém, relaciona-se com as ideias de


Arthur Desmond ou Ragnar Readbeard em Might is Right (1890), Éliphas
Lévi e Aleister Crowley que argumentou em The Book of the Law2 sobre “a
lei do mais forte” ou afirmou que “os servos devem servir”. A adesão a estas
ideias não é sem precedentes:

Do ocultismo, o Satanismo LaVeyano também herdou uma


perspectiva que pode ser chamada de elitista, por falta de
uma palavra melhor. Aqueles a quem o “conhecimento oculto”
é revelado, são, só por este fato, separados e tornados mais
“conhecedores” e “poderosos”. O sistema de graus que é co-
mum a muitas organizações ocultistas, cria uma diferenciação
por sua própria natureza; as provas reais e rituais que se devem
ser superadas sugerem que somente indivíduos excepcionais
podem alcançar o terreno mais elevado de sabedoria e poder
(LUIJK, 2016, p. 367-368).3

Porém, segundo Luijk, Petersen e Introvigne, tais afinidades entre


o Satanismo e a direita política são complexas e não significam necessa-
riamente que LaVey aceitava a agenda racista Nazista. Ao mesmo tempo,
na The Satanic Bible, LaVey argumentava que o Satanismo “transcende as
diferenças étnicas, raciais e econômicas” (LAVEY apud LUIJK, 2016, p. 369).4

1 “Instead of the myth of equality, he saw humanity as stratified in a hierarchy of inferior and superior people: a
creative and intellectual elite “that must be sanctioned at any cost,” and the rest of humanity, which was catego-
rized as “locusts.”168 In his more extreme “ramblings,” LaVey did not hesitate to propound police state measures
to curtail the “herd” and “sanction” the elite: ghettoization, eugenics, forced sterilization” (LUIJK, 2016, p. 366).
2 O Livro da Lei.
3 “From occultism, LaVeyan Satanism also inherited an outlook that can be called elitist, for want of a
better word. Those to whom “occult knowledge” is disclosed are, by this fact alone, set apart and made
more “knowing” and “powerful.” The system of grades that is common to many occult organizations creates
differentiation by its very nature; the real and ritual trials one has to overcome suggest that only exceptional
individuals may attain the higher ground of wisdom and power” (LUIJK, 2016, p. 367-368).
4 “Transcends ethnic, racial and economic differences” (LAVEY apud LUIJK, 2016, p. 369).

290
Diversidade Religiosa & História

Conclusão

O objetivo do capítulo foi discutir o fenômeno conhecido como


Pânico Satânico, principalmente nos Estados Unidos em 1980, contextuali-
zando-o, indicando suas relações com o Satanismo Religioso já institucio-
nalizado e destacando as diferentes percepções de Satã e do Satanismo.
Buscando estabelecer um diálogo com essas distintas leituras sociais,
explorando alguns de seus limites e visando uma problematização do
fenômeno, destacamos o programa Devil Worship: Exposing Satan’s Under-
ground e livros publicados tanto por Satanistas autodeclarados quanto por
adeptos da cosmovisão cristã. A compreensão do Pânico Satânico com o
auxílio dos autores mencionados, que dedicam-se ao estudo das espe-
cificidades do Satanismo religioso como Ruben Van Luijk (2016), Asbjørn
Dyrendal (2016), James Lewis (2016) e Jesper Petersen (2016), ajudam a
pensar sobre a diversidade religiosa no Estados Unidos e suas relações
com o contexto social e histórico da década de 1980, não desconectado
das transformações dos anos anteriores.

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292
O GÊNERO DE DEUS: RESSONÂNCIAS
DE DISCURSOS CLERICAIS MEDIEVAIS
EM UMA DECISÃO JUDICIAL SOBRE
A LEI MARIA DA PENHA

Rodolpho Alexandre Santos Melo Bastos5

Resumo
Objetiva-se analisar a presença de discursos clericais medievais sobre o feminino
em uma decisão judicial proferida no ano de 2007, na qual o juiz ataca a Lei Maria
da Penha sob o argumento de que a norma seria uma heresia manifesta contra a
lógica de Deus. Para tanto, utilizaremos como referencial teórico e metodológico,
as concepções de imaginário social e entrelaçamentos transculturais, inseridos em
um recorte de longa duração.
Palavras-chave: Lei Maria da Penha. Violência Contra a Mulher. Idade Média.

Abstract
The objective is to analyze the presence of medieval clerical speeches about the
female in a judicial decision handed down in 2007, in which the judge attacks the
Maria da Penha Law on the grounds that the rule would be a heresy manifested
against the logic of God. For this purpose, we will use the concepts of social
imaginary and cross-cultural entanglements as a theoretical and methodological
framework, inserted in a long-term view.
Keywords: Maria da Penha Law; Violence against women; Middle Ages.

5 Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Ca-
tarina (UFSC). Professor Colaborador da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO).
Integrante do MERIDIANUM: Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais (CNPq/UFSC). Vice coordenador
do Contra Legem: Núcleo de Estudos em Epistemologia Jurídica (CNPq/UNIPAMPA). Integrante do HUMA-
NITAS: Núcleo de Pesquisa em Epistemologias, Práticas e Saberes Interdisciplinares (CNPq/UFSC).

293
Diversidade Religiosa & História

Introdução

Em 2007, o juiz Edílson Rumbelsperger Rodrigues, de Sete Lago-


as-MG, proferiu uma sentença sobre a aplicação da Lei 11.340/2006, mais
conhecida como Lei Maria da Penha, a respeito de uma situação concreta
de violência doméstica. O magistrado negou a aplicação de medidas pro-
tetivas solicitadas por uma mulher em situação de violência por entender
que a referida lei padecia de inconstitucionalidade6.
O que nos chama a atenção nesta sentença, porém, são as fun-
damentações oferecidas como justificativas para legitimar sua decisão.
O juiz, antecipadamente, assume que fará um julgamento religioso para
analisar a autoridade da Lei Maria da Penha, apegando-se ao preâmbulo
constitucional7, que faz remissão a Deus. Para Rodrigues, “[...] segundo a
própria Constituição Federal, é Deus que nos rege — e graças a Deus por
isto — Jesus está então no centro destes pilares, posto que, pelo mínimo,
nove entre dez brasileiros o têm como Filho Daquele que nos rege”8.
Mesmo não apresentando nenhuma pesquisa para justificar tais
dados (sobre a maioria dos brasileiros compreender Jesus como filho de
Deus), Rodrigues destaca que por essa razão é o evangelho que, “[...] por

6 É importante mencionar que a sentença proferida por Rodrigues provocou grande repercussão, sendo
noticiado por vários canais de informações e comunicações, como no site do Conselho Nacional de Justiça.
Para maiores informações, consultar: AGÊNCIA CNJ DE NOTÍCIAS. Corregedoria analisará caso do juiz que
negou aplicação da Lei Maria da Penha. CNJ: Conselho Nacional de Justiça. 23 de outubro de 2007. Disponível
em: https://www.cnj.jus.br/corregedoria-analisaraso-do-juiz-que-negou-aplica-da-lei-maria-da-penha/.
Acesso em: 27 fev. 2021.
7 Assim diz o preâmbulo da Constituição Brasileira de 1988: “Nós, representantes do povo brasileiro,
reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar
o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica
das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL” (grifo nosso). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm. Acesso em: 21 nov. 2017. Apesar dos debates jurídicos a respeito da força normativa do
preâmbulo constitucional, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou sobre a mencionada invocação da
proteção de Deus, decidindo que tal passagem não tem força normativa. Para mais informações checar
a Ação Direta de Inconstitucionalidade N. 2076-5 Acre. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=AC&docID=375324. Acesso em: 10 jul. 2019.
8 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-
C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf . Acesso em: 27 fev. 2021.

294
Diversidade Religiosa & História

via de conseqüência (sic) também nos rege — está inserido num Livro que
lhe ratifica a autoridade, todo esse Livro é, no mínimo, digno de credibilida-
de — filosófica, religiosa, ética e hoje inclusive histórica”9.
Partindo, portanto, da ideia de que a maioria da sociedade brasileira
é cristã, e que por isso a Bíblia estaria acima da própria Constituição10, o juiz
passa a analisar a Lei Maria da Penha a partir de sua própria interpretação
dos textos bíblicos. O magistrado afirma que a Lei Maria da Penha é uma
heresia manifesta e um conjunto de normas diabólicas; herética, porque fere
a lógica de Deus e por isso é injusta, pois, como é de conhecimento de todos
e de todas, a desgraça humana começou no Éden por causa da mulher, em
virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem11.
Em suma, para o juiz o “[...] mundo é masculino! A ideia que temos
de Deus é masculina! Jesus foi Homem!”12. Ou seja, para o magistrado, o
mundo masculino impera, enquanto a mulher é relegada à submissão
e recato, sendo a Lei Maria da Penha, portanto, uma heresia manifesta
contra o sagrado lugar do Deus masculino. Por estes motivos, Rodrigues
considera a Lei Maria da Penha um “monstrengo tinhoso”13:

É portanto por tudo isso que de nossa parte concluímos


que do ponto de vista ético, moral, filosófico, religioso e até
histórico a chamada “Lei Maria da Penha” é um monstrengo
tinhoso. E essas digressões, não as faço à toa — este texto
normativo que nos obrigou inexoravelmente a tanto. Mas
quanto aos seus aspectos jurídico constitucionais, o “estrago”
não é menos flagrante.14

9 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-


C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.
10 Atitude flagrantemente inconstitucional, já que o Artigo 5º, VI, VII e VIII, elenca a liberdade religiosa
como um direito fundamental, e o Artigo 19, I estabelece a laicidade do Estado.
11 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-
C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.
12 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-
C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.
13 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-
C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.
14 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-
C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.

295
Diversidade Religiosa & História

Diante dessa fundamentação, este ensaio objetiva identificar


as ressonâncias de um determinado imaginário social feminino, como o
resultado de algumas formações discursivas clericais medievais, de longa
duração e tradição. Dessa forma, estamos no encalço das formações dis-
cursivas que foram veiculadas por um determinado corpo de clérigos no
medievo sobre as mulheres durante a construção dos cânones cristãos,
como ocorreu na Alta Idade Média, emergindo com mais força na Baixa
Idade Média, sobretudo nos séculos XI e XII.
Ocorre que durante o medievo existiram investimentos discursivos
em torno da figura feminina, ancorados em figuras míticas da Bíblia como
Maria e Eva, e que podem ser identificados como modelos de feminilida-
des15. Dessa forma, esses imaginários e discursos clericais estão inseridos
nas várias possibilidades de discursos concorrentes no período Medieval.
Neste sentido, acreditamos que o teor da fundamentação do juiz é
o resultado de ressonâncias de discursos específicos sobre o feminino e o
sagrado; tem-se, como exemplo, a escrita de Tertuliano, no século III, que
acusa a mulher de ser a porta do diabo, por ser descendente de Eva (TER-
TULIANO apud DALARUN, 1990); o viés de Santo Agostinho (2000), nos sé-
culos IV-V, que alega ter sido a mulher, e não o homem, quem transgrediu
a lei de Deus, já que Eva aceitou como verdade as palavras da serpente; e
Petrarca, no século XIV, que afirma que a mulher é um verdadeiro diabo e
inimiga da paz (PETRARCA apud DELUMEAU, 1990).
A decisão do juiz Rodrigues, portanto, nos alerta para o alcance
desse imaginário de longa sobrevivência, já que qualquer tipo de eman-
cipação feminina é por essa perspectiva compreendida como heresia
contra um Deus masculino. Dessa forma, faz-se necessário perceber quais
eram estes discursos e quando foram divulgados, uma vez que eles ainda

15 Entendemos como modelo de feminilidade medievais os discursos sobre o feminino, por parte,
principalmente, de uma elite clerical. Tais discursos estavam ancorados em interpretações bíblicas sobre
as personagens de Eva (pecadora e desobediente), modelo de feminilidade que as mulheres deveriam
evitar se aproximar; a virgem Maria (virgem, obediente e recatada) e Maria Madalena (pecadora, mas se
arrependeu), dois referenciais que as mulheres deveriam se espelhar. Ver maiores em: BASTOS, Rodolpho
Alexandre Santos Melo. Ressonâncias medievais no feminino contemporâneo: os modelos de feminilidades
do medievo e sua relação com a violência contra as mulheres. Mandrágora, São Paulo, v. 22. n. 2, p. 67-89,
2016. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/MA/article/view/6902.
Acesso em: 9 jul. 2019.

296
Diversidade Religiosa & História

repercutem na atualidade, inclusive em âmbito jurídico, no qual a mulher


continua a ser condenada como fonte do mal. Os imaginários sociais
femininos construídos por tais discursos, em uma longa temporalidade,
certamente sofreram transformações e ressignificações, conforme os in-
teresses daqueles que os utilizavam, mas mantendo viva a ideia de culpa,
fragilidade e inferioridade das mulheres.
Mesmo que esses discursos sobre o feminino tenham sido elabo-
rados e divulgados durante a Idade Média, é somente na Modernidade que
eles terão maior efetividade entre os cristãos; em especial, os discursos
que entendem a mulher como fonte de pecado, ancorados na figura mítica
de Eva. O próprio Malleus Maleficarum, escrito por Heinrich Kramer e Ja-
mes Sprenger, no final da Idade Média, só foi amplamente utilizado em
séculos posteriores como manual de combate aos praticantes de heresia,
tendo na mulher a grande protagonista e agente do Diabo, partilha de
muitas ideias de tais discursos clericais medievais. Neste contexto, esses
discursos foram utilizados de várias maneiras, em especial, para legitimar
as ações relativas ao evento conhecido como a caça às bruxas e que ainda
ressoam, com certa intensidade, na contemporaneidade, como veremos
na referida sentença judicial.
Para entender esta história interconectada entre o medievo (dis-
cursos clericais medievais) e o tempo presente (decisão do juiz Rodrigues),
buscaremos estabelecer por meio dos estudos sobre o imaginário social,
o fio condutor para compreendermos as sobrevivências, mas também as
transformações desses discursos. Do mesmo modo, também iremos re-
correr a concepção de experiência do tempo (“horizonte de expectativas”
e “espaço de experiência”) do historiador Reinhart Koselleck (2006), asso-
ciado a uma concepção de longa duração histórica e “entrelaçamentos
transculturais”, proposta pela historiadora Aline Dias da Silveira (2015).

297
Diversidade Religiosa & História

“Ora! A desgraça humana começou no Éden: por causa da


mulher”

A Lei Maria da Penha parece ser taxada de monstrengo tinhoso,


por ser uma lei feminina, de forma que as palavras do juiz Rodrigues se
aproximam de formações discursivas de longa duração construídas du-
rante a Idade Média. Dentre elas, destacam-se certos discursos clericais
medievais que enxergavam as mulheres como herdeiras da mácula de
Eva. São interpretações ancoradas nos textos bíblicos, como no episódio
da expulsão do casal do paraíso, que servem de justificativas para depre-
ciar a mulher.
Vânia Vasconcelos (2005) informa que foi entre os séculos III e
XIII, que os homens da Igreja16 investiram em escritos religiosos que sedi-
mentaram as representações femininas, neles apresentando um enorme
mosaico de referências às mulheres. Conforme Jacques Dalarun (1990), os
discursos produzidos por uma elite eclesiástica na Idade Média se dirigiam
principalmente a outros clérigos, divulgando informações depreciativas
sobre as mulheres, na tentativa de convencê-los a se afastarem delas.
Assim, os discursos nos quais buscaremos conexões com a deci-
são judicial selecionada, são aqueles que veicularam uma imagem da mu-
lher como ser inferior, agente do diabo e fonte de todo mal. Por exemplo,
quando o juiz afirma, em sua decisão “Ora! A desgraça humana começou
no Éden: por causa da mulher — todos nós sabemos — mas também em
virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem”,
ele se aproxima dos discursos de Tertuliano, clérigo medieval, que culpa a
mulher pela expulsão dela e de Adão, do paraíso. Segundo Dalarun (1990,
p. 35), Tertuliano, dirigindo-se a todas as mulheres, exclama: “Não sabes tu
que és Eva, ti também? Tu és o Diabo, tu consentiste na sua árvore, foste a
primeira a desertar da lei divina”.

16 Quando estamos nos referindo aos “homens ligados à Igreja” e os discursos que eles veicularam dire-
cionado as mulheres, entendemos que a palavra Igreja na Idade Média europeia servia para definir o corpo
de fiéis e padres, pois não havia, neste período, uma instituição organizada e homogênea, mas sim, pessoas
dentro desse corpo que criaram uma tradição escrita definidora dos cânones. Somente no fim do período
medieval e início da modernidade, que a Igreja começa a adquirir a força e o status como instituição política.

298
Diversidade Religiosa & História

Pouco mais de um século depois, Santo Agostinho (2000) também


interpreta esse mesmo episódio na narrativa bíblica de forma semelhante,
ao dizer que Adão não caiu no engano, mas Eva sim.

[...] lá no Paraíso corporal onde, com os dois homens (varão


e fêmea), viviam também os outros animais terrestres [...] a
serpente — animal escorregadio que se move em sinuosas
curvas. Submetendo-a com malícia espiritual, valendo-se da
sua presença angélica e da superioridade da sua natureza,
usou dela como de um instrumento para dirigir à mulher
palavras falaciosas. Começou pela parte mais débil daquele
par humano para gradualmente chegar ao todo: pensou que
o homem não acreditaria facilmente nem facilmente poderia
ser enganado por erro, mas cederia a erro alheio. [...], para
chegar a transgredir a Lei de Deus, o primeiro homem não foi
arrastado pela sedução, acreditando na verdade das palavras
de sua mulher: cedeu sim devido à afeição que tinha à sua
única companheira, à sua a si igual, à sua mulher. [...] Ela tomou
por verdadeiro o que a serpente lhe disse, mas ele não quis
separar-se da sua única mulher nem mesmo na com unhão
do pecado (AGOSTINHO, 2000, p. 1273-1274).

Assim como Rodrigues, Tertuliano e Agostinho já preconizavam in-


terpretações do primeiro testamento que atribuíam a Eva (e sua condição
feminina), a culpa pela expulsão do casal do Éden. De acordo com tais dis-
cursos, à mulher são atribuídos os adjetivos de desertora e transgressora
da lei; por essas ações, como pontua o juiz, a desgraça humana tem início.
Somado a isto, tem-se a ingenuidade, a tolice e a “[...] fragilidade emocional
do homem”, pois, conforme afirmou Agostinho, Adão, não podendo sepa-
rar-se de Eva, também foi punido.
Ressalte-se que Adão também desobedece às ordens do criador,
ao “aceitar” o fruto dado por Eva, mas tenta se eximir da culpa atribuindo-a
à sua companheira: “A mulher que puseste junto de mim me deu da árvore,
e eu comi” (BÍBLIA, Gênesis, 3,12). Logo, a mulher é culpada por tal desobe-
diência, pois teria se aproveitado da fragilidade do homem (e aqui, parece
existir uma ideia pré-concebida de que o homem é um ser frágil).
O juiz continua sua argumentação, afirmando que Deus “[...] irado,
vaticinou, para ambos. E para a mulher, disse: ‘[...] o teu desejo será para o

299
Diversidade Religiosa & História

teu marido e ele te dominará [...]’. Já esta lei [Lei Maria da Penha] diz que aos
homens não é dado o direito de ‘controlar as ações (e) comportamentos
[...]’ de sua mulher”. As aspas abertas na legitimação do argumento de Ro-
drigues, sinalizam o uso do texto bíblico do Gênesis, em que Deus atribui a
mulher sua subordinação ao homem. Segundo o texto: “Iahweh Deus disse
à mulher: ‘Que fizeste?’ E a mulher respondeu: ‘A serpente me seduziu e
eu comi’, [...] Então Iahweh Deus disse [a mulher]: ‘Multiplicarei as dores de
tuas gravidezes, na dor darás a luz. Teu desejo te impelirá ao teu marido e
ele te dominará’” (BÍBLIA, Gênesis, 3, 6-1).
A interpretação dessa passagem bíblica, por parte do juiz, está de
acordo com os discursos de Tertuliano e Agostinho, ao interpretar a Mulher
como culpada por toda a desgraça humana que, como forma de punição,
é submetida ao seu marido (Homem). Para João Pires (2015), o fato de
Eva ter sido tentada e enganada, serviu para legitimar a mentalidade da
mulher como fraca e estúpida, fato que justifica a suposta superioridade
masculina em detrimento do feminino. As mulheres, todas descentes de
Eva, possuiriam, assim, uma tendência natural de se corromper, e, por
isso, a necessitariam da tutela masculina. Discursos similares aparecem
durante todo o medievo.
Jean Delumeau (1990) destaca que Petrarca, no século XIV, identi-
fica a mulher como o próprio diabo, inimiga da paz e fonte de impaciência,
uma fonte de disputas da qual o homem deve manter-se afastado se quer
gozar a tranquilidade (PETRARCA apud DELUMEAU, 1990). No século XIII,
Thomas de Aquino em sua Suma Teológica afirmava:

No fenômeno da geração, é o homem que desempenha


um papel positivo, sua parceira é apenas um receptáculo.
Verdadeiramente, não existe mais que um sexo, o masculino.
A fêmea é um macho deficiente. Não é então surpreendente
que este débil ser, marcado pela imbecilitas de sua natureza, a
mulher, ceda às tentações do tentador, devendo ficar sob sua
tutela (AQUINO, 2005, p. 685).

Por sua vez, Pedro Custódio (2010) comenta que o corpo feminino
e suas especificidades fisiológicas, durante a Idade Média, eram motivos
de repulsa. Na obra Etimologia, de Isidoro de Sevilha (560-636), por exem-

300
Diversidade Religiosa & História

plo, é posto “o poder destrutivo, maléfico e monstruoso do mênstruo”. O


mesmo autor ainda recorda as afirmações do Papa Inocêncio III (1161-1216)
no livro De miseria condicionis humanae, para quem a menstruação pode-
ria provocar doenças no homem, morte das plantas, loucura nos cães e
ferrugem.
André Bueno (2016, p. 18), a seu turno, afirma que os pensadores
cristãos medievais, trabalharam assiduamente para apagar quaisquer
subversões femininas.

Hipácia [351-415 d.C.], em Alexandria, a última grande filósofa


do mundo antigo, foi apedrejada até a morte pela turba
cristã instigada pelo bispo Cirilo; Tertuliano e Agostinho teriam
sérios problemas com a castidade e a concupiscência, reco-
mendando distância e controle do feminino; por fim, Isidoro de
Sevilha, mostra a tônica da sabedoria medieval sobre a mu-
lher, afirmando que o sangue menstrual deixa a terra infértil...

Estes discursos irão produzir um imaginário social feminino,


sobretudo, em regiões que foram submetidas a catequizações cristã e
colonização europeia, como no Brasil, de forma que esse imaginário pro-
duz ressonâncias sobre os espaços de atuação entre homens e mulheres
mesmo na contemporaneidade, especialmente em sociedades que estão
assentadas sobre este substrato cultural e religioso.
Neste ponto, cabe destacar que entendemos por imaginário social,
um fenômeno coletivo que se construiu e se constrói sobre a realidade,
(re)produzido pelos múltiplos canais culturais que irrigam a sociedade
na qual se insere. Ele atua como espécie de maquinaria escondida sob
a superfície das coisas, capaz de revelar algo de mais profundo e anti-
go, poderosamente ativo, porque cria sistemas de explicação e motiva
as ações individuais e coletivas, com seus ethos comportamentais, suas
hierarquizações sociais de gênero, raça e classe.
Trata-se, portanto, de um conjunto da relação entre imagens,
realizações e produções do pensamento humano, o que inclui a própria
razão e a racionalidade, como pontuou Gilbert Durand (2001). O imaginário
social assim é um denominador comum que abarca os procedimentos
desse pensamento e da realidade historicamente produzida. Não é uma

301
Diversidade Religiosa & História

força determinante ou determinista, mas um elemento que é constitutivo


da sociedade e de seus indivíduos.
Dessa forma, os discursos clericais medievais sobre as mulheres
produzem um tipo de imaginário social, escrito por homens e destinado às
mulheres. Segundo Dalarun (1990), tais discursos tinham como audiência
os próprios clérigos, no intuito de convencê-los a manterem-se afastados
das mulheres, herdeiras do pecado original cometido por Eva:

Separados das mulheres por um celibato solidamente es-


tendido a todos a partir do século XI, os clérigos nada sabem
delas. Figuram-nas, ou melhor, figuram-n’A; representam-se
a Mulher, à distância, na estranheza e no medo, como uma
essência específica ainda que profundamente contraditória
(DALARUN, 1990, p. 30).

Havia, portanto, uma tentativa de relacionar as mulheres em geral


à figura mítica de Eva (de forma depreciativa), de modo que seu único
caminho para alcançar a salvação seria o de ancorar-se nos atributos ma-
rianos de obediência, submissão e recato. É a presença desse imaginário
social feminino que identificamos como elemento que norteia a decisão
judicial proferida no Brasil de 2007.

“O mundo é e deve continuar sendo masculino”: o gênero de


Deus e a Lei Maria da Penha

Um ponto crucial a ser destacado na decisão refere-se a seguinte


passagem: “[...] aos homens não é dado o direito de controlar as ações (e)
comportamentos [...] de sua mulher (art. 7º, inciso II)”. Aqui, o magistrado
ratifica, mesmo com outras palavras, a legitimidade e o direito que o Ho-
mem supostamente teria para comandar a Mulher, sendo ela submissa.
Trata-se de um pensamento extremamente problemático, pois é capaz
de justificar todos os tipos de violências contra a mulher em prol desse
hipotético direito — algo que paradoxalmente a Lei Maria da Penha visa,
justamente, combater.

302
Diversidade Religiosa & História

Com a intenção de legitimar seu argumento, o juiz também subli-


nha: “[...] O mundo é masculino! A idéia (sic) que temos de Deus é masculi-
na! Jesus foi Homem!”17. E, por isso, “[...] o mundo é e deve continuar sendo
masculino, ou de prevalência masculina, afinal. Pois se os direitos são
iguais — porque são — cada um, contudo, em seu ser, pois as funções são,
naturalmente diferentes”18. Isto significa dizer que na lógica do magistrado
Deus é homem e, por isso, o mundo é masculino e, por consequência, deve
prevalecer um modelo prescritivo e universal de masculinidade (ocidental,
hétero, branca, cristã, burguesa etc.). Qualquer outro sujeito destoante de
tal padrão será, assim, considerado submisso.
Em outra passagem o juiz argumenta: “Se se prostitui a essência,
os frutos também o serão. Se o ser for conspurcado, suas funções também
o serão. E instalar-se-á o caos”19. Dentro de seu viés, isto significa dizer
que atribuir igualdade à mulher, é subverter sua “verdade” essencialista e
a priori de um mundo e de um deus masculino. Assim, na argumentação
distorcida do magistrado, a Lei Maria da Penha atuaria como elemento de
subversão a partir do qual o caos se estabeleceria.
Na ausência desses motivos não “masculinos” na Lei Maria da
Penha, Rodrigues a acusa de ser um “conjunto normativo de regras
diabólicas”20 que coloca a família em perigo, “[...] desfacelada, os filhos
sem regras — porque sem pais; o homem subjugado; sem preconceito,
como vimos, não significa sem ética — a adoção por homossexuais e o
‘casamento’ deles, como mais um exemplo”21. Para o magistrado, tudo isso
foi em nome de “uma igualdade cujo conceito tem sido prostituído em
nome de uma ‘sociedade igualitária’”22. E o homem, para não ser vítima

17 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-


C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.
18 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-
C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.
19 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-
C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.
20 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-
C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.
21 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-
C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.
22 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-
C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.

303
Diversidade Religiosa & História

dessa lei absurda, continua o juiz, terá que se manter tolo e mole, ao ceder
facilmente às pressões, e ser “[...] dependente, longe portanto de ser um
homem de verdade, másculo (contudo gentil), como certamente toda
mulher quer que seja o homem que escolheu amar”23.
Nesta afirmativa sobre a masculinidade de Deus, também é possível
identificar a presença de certa similaridade com os discursos clericais me-
dievais. Em outra passagem de Tertuliano, ele afirma que a mulher foi quem
“[...] convenceu aquele a quem o diabo não foi suficientemente valente para
atacar. Assim [a mulher] facilmente destruiu a imagem de Deus, o homem”24.
Assim, temos nesse excerto, uma menção sobre o possível “gênero” de Deus.
É este imaginário monoteísta sobre um deus masculino e de longa duração,
que parece envolver todo o discurso de Rodrigues, quando nega medida
protetiva a uma mulher que buscava na Lei Maria da Penha, os meios legais
para se proteger das agressões de seu antigo companheiro.
Sabemos que a sentença que estamos analisando, está distante
espacial e temporalmente do contexto geográfico e, sobretudo, histórico
dos discursos clericais medievais. Entretanto, não podemos nos esquecer
que a construção, constituição e colonização do Brasil está assentada em
um substrato cultural de tradição cristã, o que nos permite, de alguma for-
ma, fazer essa relação. Segundo a matéria publicada no site Aleteia, no dia
11 de abril de 2017, “[...] o Brasil, no conjunto dos dez países no mundo com
maior consistência de católicos batizados, ocupa o primeiro lugar, com
172,2 milhões de católicos, o que representa 26,4% do total dos católicos
do continente americano”25.
Em sua sentença, o juiz ainda afirma que “Á própria Maria — inobs-
tante a sua santidade, [...] (que inclusive a credenciou como ‘advogada’ nossa
diante do Tribunal Divino) — Jesus ainda assim a advertiu, para que também
as coisas fossem postas cada uma em seu devido lugar: ‘que tenho contigo,

23 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-


C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.
24 Grifo nosso.
25 Ver maiores informações em: https://pt.aleteia.org/2017/04/11/brasil-e-o-pais-com-o-maior-numero-
-de-catolicos-do-mundo/. Acesso em: 7 maio 2018.

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Diversidade Religiosa & História

mulher!?’”26. Lugar este, abaixo do teu filho, Homem e filho de Deus. Ou seja,
mesmo Maria sendo uma figura importante no cristianismo católico, fato
que o juiz reconhece, a ela não pode ser dado muito poder. Do contrário,
será preciso seguir o exemplo de Jesus, advertindo-a, e lembrando-a qual é
o devido lugar da mulher, e sua condição de submissa e obediente.
Esta menção a Maria também evoca outros discursos (muitas vezes,
proferidos pelos clérigos já mencionados) que a entendem como outro
modelo de feminilidade. Diferente de Eva, que era um modelo que devia
ser repudiado pelos atributos de pecadora e desobediente, Maria, pelo
contrário, partilhava dos atributos de maternidade, obediência e silêncio.
Dalarun (1990, p. 42) informa que desde época remota, Efrém (sec.
IV) e Pedro Crisólogo (séc. V) “[...] desenvolveram a ideia de uma Maria
‘irmã, esposa e serva do Senhor’, ‘mãe de todos os seres que vivem pela
graça’, em oposição a Eva, ‘mãe de todos os seres que vivem pela nature-
za’”. Dalarun (1990) ainda menciona Isidoro de Sevilha (560-636 d.C.) que
afirmava que “Eva é Vae, a desgraça, mas também vita, a vida”, pois, assim
como uma mulher foi o centro da “desgraça humana”, somente outra, no
caso, Maria, poderia redimir a humanidade. O autor também recorre a São
Jerônimo (347-420 d.C.), que propunha: “Morte por Eva, vida por Maria”.
Igualmente, o medievalista invoca Santo Agostinho que alegava: “Pela
mulher a morte, pela mulher a vida”.
Foi com o advento da exaltação do culto mariano no século XII,
como novo modelo de feminilidade, que Maria surge como redentora para
as mulheres, redimindo as filhas de Eva e libertando-as da maldição da
queda. Embora houvesse uma espécie de movimento de valorização ao
culto a Maria nos primeiros séculos do cristianismo, é no século XII que o
sexo feminino, por intermédio de Maria, apresenta a “nova Eva”, aquela que
deu à luz à Cristo e aos cristãos, sendo todos seus filhos e irmãos.
Para Vasconcelos (2015), Maria representava a mulher assexuada e
pura, capaz de conceber sem pecar e sem prazer sexual. A mãe de Cristo
redime a companheira de Adão, que carrega o castigo na sua sexualidade,

26 Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3915965/mod_resource/content/1/Senten%-


C3%A7a%204%20-%20Lei%20Maria%20da%20Penha.pdf. Acesso em: 27 fev. 2021.

305
Diversidade Religiosa & História

mostrando que é possível à mulher gerar filhos sem exercer o desejo car-
nal. Para os padres medievais, é preciso perseguir esse modelo mariano,
ainda que se trate de um ideal inalcançável (ser mãe e virgem).
Assim, enquanto Eva desobedeceu às ordens diretas do criador,
para Raquel Lima e Igor Teixeira (2008), Maria acreditou na anunciação do
Arcanjo Gabriel e obedeceu aos desígnios divinos, tornando-se o protótipo
idealizado do feminino e destacando-se pela sua virgindade e materni-
dade de Cristo. A Igreja cristã, por meio de Maria, foi capaz de oferecer
uma espécie de saída, redenção e participação na economia da salvação
às mulheres descendentes de Eva. Na impossibilidade de as mulheres
atenderem o ideal da virgindade, castidade e viverem em conventos, era
preferível, então, que se casassem para serem esposas (servir ao homem)
e, principalmente, mães (restritas a maternidade e ao espaço doméstico).
Para Rodolpho Bastos (2016), Maria, de certa forma, consegue
redimir e libertar as mulheres, principalmente do imaginário que culpabi-
liza Eva (referente ao pecado original). Porém, não consegue livrá-las do
estigma da inferioridade usado para submetê-las a autoridade masculina,
restringindo-as ao espaço da família (maternidade) e do lar (ambiente
doméstico), reafirmando a necessidade dos atributos de subserviência.
Quando nos referimos a Eva, as mulheres são reprimidas, enquanto em
Maria as mulheres são controladas.

Outras considerações sobre Eva

Interpretamos as argumentações feitas na decisão proferida por


Rodrigues, como produto e produtor de um determinado imaginário social
feminino, fruto dos discursos clericais medievais que tendem a atribuir
ao homem, atributos de superioridade, razão, mas também de inocência,
porque foi enganado pela mulher; a ela, é atribuído os estereótipos de
tentadora, imperfeita e inferior ao homem. Em razão desses discursos, as
mulheres herdam uma tradição negativa de longa temporalidade que recai
sobre Eva a culpa, pela expulsão do casal do paraíso; luxuriosas e fracas,
elas deveriam se submeter ao homem, mesmo que isso implicasse em

306
Diversidade Religiosa & História

diversas formas de violência. Percebemos que existe uma preocupação,


por parte de alguns desses discursos, com os assuntos voltados ao corpo,
aos sentidos, ao desejo e a sexualidade.
Essa conduta moral Cristã em relação aos seus fiéis, principalmente
com as mulheres, está diretamente influenciada pela Patrística (séculos II
ao VII) e a Escolástica (século IX ao XVI). Tais linhas de pensamentos fazem
parte do desenvolvimento e estruturação da filosofia Cristã, consistindo,
basicamente, argumentação ontológica e lógica para a defesa da exis-
tência de um Deus; contra-ataques de pagãos; as heresias; a criação da
liturgia; a disciplina etc. O pensamento platônico (e aristotélico) tem forte
influência sobre essas correntes, sobretudo na Patrística. A partir de Platão
e da ressignificação de seu corpo teórico pelos pensadores Cristãos, com-
preende-se o porquê dessa repulsa ao corpo em detrimento do intelecto,
da alma, da razão e da fé.
Esses discursos eclesiásticos, entretanto, padecem de algumas
limitações. Observa-se que foram escritos e/ou veiculados, em sua
maioria, em latim, em uma sociedade medieval de poucos letrados, não
apresentando, portanto, efetividade — principalmente no que se refere
à sua disseminação por entre as camadas de baixa renda da população.
Ocorre que, apesar da insistência por parte dos clérigos em relacionar
este discurso às seguidoras cristãs, que deveriam seguir os atributos de
recato, obediência e submissão, as mulheres, por vezes, agiram de forma
contrária, ignorando tais preceitos.
Prova disso, é o destaque que muitas mulheres atingiram durante o
medievo, em especial na baixa Idade Média, como ocorreu com Hildegard
Von Bingen (doutora da Igreja, Abadessa, curandeira, filósofa, visionária,
compositora); Heloisa de Argenteuil (Filósofa, escritora, erudita, abadessa
e freira); Marie de France (poetisa) no século XII; Cristine de Pisan (poetisa,
escritora e filósofa) no século XIV; e Joana d’Arc (guerreira e chefe militar
na guerra dos cem anos) no século XV, apenas pra citar alguns nomes27.

27 Para maiores informações consultar: RUCQUOI, Adeline. La Mujer en la Edad Media. História, n. 16,
1978. Disponível em: http://www.geocities.com/urunuela33/rucquoi/mujermedieval.htm. Acesso em: 19
mar. 2017; MACEDO, José Rivair. A Palavra e a voz das mulheres. In: MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade
Média. São Paulo: Contexto, 2002.

307
Diversidade Religiosa & História

Também é preciso destacar que os discursos sobre Eva eram


plurais que, ao mesmo tempo que a revestiam como figura antagônica
a Maria, existiam outras formações discursivas sobre ela, do qual a en-
tendiam de outra forma. Franco Junior (2010) afirma que, na contramão
da cultura erudita, é possível encontrar nas obras da cultura intermediária
— aquela entendida como comum a todos os segmentos sociais28 — uma
(re)aproximação das duas figuras:

Em fins do século XI, na arquivolta da pequena igreja rural


de Besse, na Aquitânia, Eva vira o rosto para o lado oposto à
serpente, negando-a, antecipando a própria sentença divina
que condena o animal com a “inimizade entre você e a mulher,
entre a sua posteridade e a dela”. Ou seja, nessa cultura Eva
já é Maria. Ora, a despeito de toda a distância que a cultura
eclesiástica estabelecera entre ambas as personagens,
não podia negar que elas se assemelhavam nos principais
eventos biográficos. Como filhas, ambas tiveram nascimento
imaculado, sem a mancha do Pecado Original. Como mães,
uma teve filho “com a ajuda do senhor”, outra teve “porque
grandes coisas fez em mim o Poderoso”. Como esposas, uma
ligou-se ao primeiro Adão, outra, ao segundo Adão (FRANCO
JUNIOR, 2010, p. 315).

Franco Junior (2010) relata que foi neste contexto, que São Justinia-
no no Oriente e Santo Irineu, no Ocidente, no século II, irão pela primeira
vez propor a oposição entre Eva e Maria, ao perceber que Maria poderia
ser vista como uma versão do antiquíssimo arquétipo manifestado em Eva,
mas também de antigas divindades femininas, como Ísis, Ishtar, Cibele,
Hera, Atena etc. Para o referido autor, o pensamento cristão, produto do
mesmo ambiente cultural (pagão) que tentava negar, “[...] buscou então
fundar a distinção entre Maria e outras divindades femininas sintetizadas
na figura de Eva — não em uma característica e sim em uma função”
(FRANCO JUNIOR, 2010, p. 309).
Portanto, para este artigo, foi preciso ter por foco os discursos
clericais medievais em relação a Eva em oposição a Maria. Isto porque,

28 Para maiores informações, consultar: FRANCO JUNIOR, Hilário. Meu, Teu, Nosso: Reflexões sobre o
Conceito de Cultura Intermediária. Ensaios I, p. 27-44.

308
Diversidade Religiosa & História

foi este discurso que produziu um imaginário social sobre as mulheres, no


ocidente, especialmente em sociedades que estão assentadas sobre este
substrato cultural e religioso. Este imaginário social, por sua vez, produziu
uma experiência temporal sobre o feminino, datada e localizada, embora
não se fixe em nenhum lugar, ele está sempre em movimento e se transfor-
mando no espaço e no tempo. Por isso, é capaz de produzir ressonâncias
sobre os espaços de atuação entre homens e mulheres, como foi o caso
da referida decisão judicial.

As Experiências Temporais e os Entrelaçamentos Transculturais


dos Discursos Clericais Medievais sobre as mulheres

Entendemos por experiências temporais as formulações teóricas


sobre o tempo, do historiador Reinhart Koselleck, no qual lança as bases para
pensarmos a fonte histórica dentro de um “espaço de experiência” referente
a um passado (ou passados), e que conflui em direção, não sem tensão, a um
“horizonte de expectativas”. Isto significa dizer que “[...] um determinado tempo
presente, a dimensão temporal do passado entra em relação de reciprocida-
de com a dimensão temporal do futuro” (KOSELECK, 2006, p. 15).
Por seu turno, o “horizonte de expectativas”, conecta-se à pessoa
e ao interpessoal que se realiza no hoje; é um futuro presente que está
voltado para o não experimentado e que só pode ser previsto. “Esperança
e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a
visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem”
(KOSELLECK, 2006, p. 310). São as múltiplas experiências temporais que
convergem em um determinado ponto de intersecção que as canalizam
e presentificam por meio dos objetos culturais historicamente produzidos.
O “espaço de experiência” e o “horizonte de expectativas” presen-
tificam assim as ações concretas em relação ao contexto social, político,
jurídico ou formas de se pensar determinadas realidades sociais ao en-
trelaçar o passado e futuro. Ou seja, as expectativas que o juiz Rodrigues
teve, ao fundamentar sua sentença com argumentos ancorados na Bíblia,
era tributária do seu repertório de experiências que envolve o poder

309
Diversidade Religiosa & História

judiciário, a Lei Maria da Penha, as hierarquizações sociais de gênero, a


religião, o sagrado e o feminino. Este “espaço de experiência” ou, talvez,
sua nostalgia pelas experiências passadas sobre os referidos temas, que
o possibilitou expor suas expectativas, medos e anseios sobre a Lei Maria
da Penha. Esta nostalgia é uma tentativa de recuperar um tempo e status
quo que, outrora, era mais evidente (o que não significa que não existia)
e acentuado um determinado ethos desigual, no contexto das relações
sociais e de poder entre homens e mulheres.
A referida sentença opera como um ponto de intersecção que
condensa a confluência de tais experiências temporais, visto que é o
produto das intenções (e involuntarismos) do juiz Rodrigues, por meio
de seus argumentos. Tal decisão judicial, também é o resultado de dis-
cursos, temporalidades e imagens que envolvem o feminino que, dentro
de um processo de entrelaçamentos transculturais, igualmente se refere
às diversas interações simultâneas de representações espaciais, como
o espaço religioso, geográfico, cultural, imagético, simbólico, linguístico,
midiático, dentre outras.
Por entrelaçamentos transculturais, estamos de acordo com a pro-
posta da historiadora Aline Dias da Silveira (2016) que, por intermédio da
fonte é possível identificar os movimentos dos fios e seus entrelaçamentos
a partir de uma história interconectada. Para a historiadora, “[...] a ideia de
entrelaçamentos constrói imagens mentais de uma teia ou rede, onde cada
fio interconectado a outros infinitos fios e laços seria parte constituinte de
um tecido histórico maior” (SILVEIRA, 2016, p. 41).
Quando o pesquisador se torna, de fato, consciente dessa rede
encadeada, surge a questão de como trabalhar metodologicamente com
essa perspectiva, como continua Silveira (2016). Este caminho metodo-
lógico seria uma via possível, a partir da identificação de um ponto de
intersecção nessa teia, para analisar as diversas conexões e confluências
para uma perspectiva mais ampla do fenômeno histórico.

310
Diversidade Religiosa & História

Com isso, esse fenômeno de interações, trocas e conexões, como


os “entrelaçamentos transculturais”29, remete as especificidades de uma
cultura entendidas como uma combinação de elementos partilhados
com outras culturas, produzida por diferentes constelações dos mesmos
elementos, e não uma perspectiva de análise unilateral. É uma alternativa
que pode balancear sistemas culturais mais abrangentes e o modo de
sua efetivação, ou não, com espaços menores. Por exemplo, favorecendo
análises comparativas mais específicas que selecionam elementos de
um fenômeno macro de trocas e transformações, em locais e espaços de
pequenas escalas (SILVEIRA, 2016).
É neste contexto, que entendemos a decisão do juiz Rodrigues,
como um espaço de intersecção, onde é possível observar as confluências
transculturais e espaciais que envolvem as experiências temporais sobre o
feminino. Esta decisão é o resultado de diversos ambientes cultuais, como
as tradições, imaginários e elementos socioculturais, étnicos e religiosos
sintonizado com os discursos clericais medievais que salientamos, no
qual produziram um determinado imaginário social feminino. Tal sentença,
ainda, permite perceber como o período medieval está interconectado
com outros períodos históricos, em escalas supra regionais e supra conti-
nentais, uma vez que estamos nos referindo a um legado cristão (que se
desenvolveu no medievo), tributário do patriarcalismo judaico (referente a
passados longínquos que remetem a região do antigo Crescente Fértil), no
Brasil, do século XXI.
Ou seja, estes discursos clericais estão inseridos em uma longa
duração e tradição de temeridade a mulher e são ressonâncias de uma
narrativa mais antiga: a deslegitimação das deusas cultuadas na região do
Crescente Fértil. Estes povos cultuavam deusas como Inanna (sexualidade

29 Para Silveira (2015, p. 174) “No desdobramento da metáfora do tecido social e histórico e perante a
necessidade de romper com a ideia de um centro e uma periferia dentro da própria Europa, a perspectiva
teórica dos ‘Entrelaçamentos Transculturais’ (Transkulturelle Verflechtungen) da História é uma resposta à
demanda de compreender e demonstrar, de forma ampliada, que a Europa medieval insere-se em uma
trama ainda maior de fios interconectados com a África e a Ásia”. Ver maiores informações em SILVEIRA,
Aline Dias da. Saber em movimento na obra andaluza Gāyat al-hakīm, o Picatrix: problematização e pro-
postas. Revista Diálogos Mediterrânicos, Curitiba, n. 9, p. 169-188, dez. 2015. Disponível em: http://www.
dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM/article/view/175. Acesso em: 23 jun. 2019.

311
Diversidade Religiosa & História

e fertilidade), como era conhecida entre os Sumérios, ou Ištar entre os


Amorreus, Semitas e Assírios, onde foi a deusa tutelar da cidade de Uruk,
na antiga Mesopotâmia (2150-2100 a.C.).
Com o advento do deus Yahweh (sua religião e seus seguidores)
e seu cunho necessariamente monoteísta, as divindades femininas que
ali outrora habitavam foram destituídas de seus poderes e relegadas
a categoria de demônios, responsáveis por toda a sorte de mazelas e
práticas abomináveis contra este deus e a humanidade (presente em di-
versas passagens dos livros 1 e 2 de Reis do Primeiro Testamento). Assim,
o espaço do feminino no âmbito sagrado é destituído para ceder espaço
à masculinização do deus Yahweh, sendo ele a figura legítima de salvação
e adoração na visão dos hebreus, o qual tentou se impor, inclusive, às
mulheres estrangeiras com quem se casavam30.
Estes discursos ecoam sobre a formação dos cânones cristãos
e seus pensadores, uma vez que são tributários de várias tradições do
judaísmo e, consequente, do povo hebreu. Os discursos clericais dão um
“tom” cristão a deslegitimação da participação do sagrado feminino no
âmbito divino. Tais discursos clericais medievais sobre as mulheres são
constantemente (re)significados, variando conforme os espaços e contex-
tos históricos que transitam, como o discurso racionalista do Iluminismo e
o discurso médico científico do século XIX e início do XX.
De acordo com Raquel Soihet (2007), o Iluminismo produziu um
discurso próprio a partir do racionalismo, classificando as mulheres como
seres inaptos à reflexão e criação, mesmo tendo acesso a literatura ou
a determinadas ciências. Pois, paixão, imaginação, mas nunca a razão,
constituíam suas qualidades e, por isso, estariam excluídas da genialidade.
No que se refere ao século XIX e início do XX, esse pensamento misógino
se estendeu ao cientificismo, por meio de um discurso que identifica as
mulheres como seres biologicamente incompletos, portando apenas

30 Sobre os “entrelaçamentos transculturais” no antigo crescente fértil, da deslegitimação das deusas


desta região, e a relação com o deus dos hebreus, consultar: ZDEBSKYI, Janaína de Fátima: As Prostitutas
Sagradas e os Entrelaçamentos Transculturais no Antigo Crescente Fértil. 2018. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018. Disponível em: https://www.acade-
mia.edu/36613100/DISSERTA%C3%87%C3%83O_A_PROSTITUTA_SAGRADA_E_OS_ENTRELA%C3%87A-
MENTOS_TRANSCULTURAIS_NO_ANTIGO_CRESCENTE_F%C3%89RTIL. Acesso em: 12 jul. 2019.

312
Diversidade Religiosa & História

habilidades de forno e fogão. “Segundo a medicina social, por razões


biológicas, fragilidade, o recato, o predomínio das faculdades afetivas
sobre as intelectuais, a subordinação da sexualidade à vocação maternal,
constituíam-se em características femininas” (SOHIET, 2007, p. 34).
Dessa forma, o imaginário social sobre o feminino produzido pelos
discursos clericais medievais manteve sua essência, no qual ao feminino
ainda estava atrelada a ideia de fragilidade, inferioridade, incapacidade,
imbecilidade, submissão, ausência de razão, dentre outros. Foram as res-
sonâncias desses discursos, que buscamos observar (e, mesmo, mapear)
na referida sentença do juiz Rodrigues.

Considerações Finais

É oportuno pontuar que toda essa querela, em um processo de


longa duração, teve um resultado jurídico: o Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) abriu um processo administrativo disciplinar contra o juiz Edilson
Rumbelsperger Rodrigues e, em 2010, aprovou por nove votos a seis a
disponibilidade compulsória (afastamento das atividades profissionais por
dois anos, com recebimento de salário proporcional) do magistrado, da
Comarca de Sete Lagoas (MG) por ter utilizado declarações discrimina-
tórias de gênero31. O juiz, porém, recorreu ao Supremo Tribunal Federal e
obteve uma liminar para voltar ao cargo em 201132.
Enquanto o processo corria na justiça33 e o magistrado seguia tra-
balhando, Rodrigues se aposentou anos mais tarde, no qual, no ano de
2018, saiu como candidato a deputado federal pelo Partido Democrático
Trabalhista (PDT), não conseguindo se eleger, alcançando apenas 1.911

31 A decisão do processo administrativo disciplinar (N. 0005370-72.2009.2.00.0000) encontra-se disponível


em: http://www.cnj.jus.br/dje/jsp/dje/DownloadDeDiario.jsp?dj=DJ36_2011-ASSINADO.PDF&statusDoDia-
rio=ASSINADO. Acesso em: 21 nov. 2018.
32 A liminar encontra-se disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoTexto.asp?i-
d=2939061&tipoApp=RTF. Acesso em: 21 nov. 2018.
33 É possível acompanhar o andamento do processo em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verPro-
cessoAndamento.asp?incidente=4022577. Acesso em: 21 nov. 2018.

313
Diversidade Religiosa & História

votos. Este desfecho, nos leva a uma sensação de impunidade e de na-


turalização desse tipo de discurso, historicamente construído e enraizado.

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ZDEBSKYI, Janaína de Fátima. As Prostitutas Sagradas e os Entrelaçamentos Transculturais no


Antigo Crescente Fértil. 2018. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 2018.

315
MITO E MAGIA:
O VEÍCULO MÁGICO DA POÉTICA MEDIEVAL

Daniel Lula Costa1

Resumo
O objetivo deste capítulo é verificar os vestígios do veículo mágico da poética
medieval por meio da magia da linguagem (BENJAMIN, 2013) que enuncia a
espiritualidade do mundo enquanto presença (GUMBRECHT, 2009) e não como
uma significação em seu sentido de distanciamento entre o ser e o mundo, algo
verificável na escrita mitológica. Para isso, a fonte analisada é a Commedia, escrita
por Dante Alighieri no século XIV.
Palavras-chave: Mitologia. Poetry. Medievo, Commedia.

Abstract
The aim of this chapter is to verify the traces of the magical vehicle of medieval
poetics through the magic of language (BENJAMIN, 2013) that enunciates the spir-
ituality of the world as a presence (GUMBRECHT, 2009) and not as a signification
in its sense of detachment between being and the world, something verifiable in
mythological writing. Thus, the source analyzed is the Commedia, written by Dante
Alighieri in the 14th century.
Keywords: Mythology. Poetry. Medieval. Commedia.

1 Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina com período de Doutorado
Sanduíche na Università di Bologna. Professor do colegiado de História da Unespar (Universidade Estadual
do Paraná). Integrante do HCIR (Grupo de Pesquisa de História das Crenças e das Ideias Religiosas) da
Universidade Estadual de Maringá e do Meridianum (Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais) da
Universidade Federal de Santa Catarina.

316
Diversidade Religiosa & História

Introdução

As filosofias neoplatônicas2 e herméticas3 desempenharam um


papel importante no medievo e transmitiram formas de entender o mundo
e a natureza presente nele. Um dos aspectos principais era tentar compre-
ender os vestígios divinos presentes no mundo, interpretando-os por meio
de sua relação de presença e experiência: “Deus cria de modo admirável e
inefável em toda criatura, manifestando-se a si mesmo, fazendo-se visível
e conhecido de oculto e incompreensível que é” (ECO, 2012, p. 119). Dessa
forma, a crença teve papel fundamental na conexão entre a palavra, que
enuncia as coisas do mundo e lhes confere existência no mundo da lin-
guagem, e a imagem, que é evocada pela palavra e a narrativa mítica, que
busca manifestar a sabedoria divina presente no mundo e experienciada
pelo ser humano. Seguindo esse raciocínio, a palavra, o nome, a linguagem
e o seu uso em narrativas míticas demonstram o veículo mágico da poética
medieval, sendo possível de ser percebido pelo poder da linguagem prati-
cado em sua forma criadora e não significadora, dotada de intensidade de
presença, algo visualizado na Commedia, de Dante Alighieri.
Assim sendo, o objetivo deste capítulo é verificar os vestígios do
veículo mágico da poética medieval, ou seja, da magia da linguagem que
enuncia a espiritualidade do mundo e não uma significação em seu sen-
tido de distanciamento entre o ser e o mundo, algo verificável na escrita

2 O neoplatonismo é uma corrente de interpretação filosófica praticada no medievo que advém de estudos
mais antigos sobre o mundo enquanto emanação do Uno ou do divino. Boécio (480-524 E.C.) e Agostinho
(354-430 E.C.) foram alguns dos filósofos que utilizaram essa forma de ver o mundo. Dante, enquanto leitor
de ambos, é também profundamente influenciado por essa corrente filosófica, a qual é desenvolvida por
Boécio em sua De Consolatione em que afirma “que as coisas são boas porque fluem da vontade do primei-
ro Bem, cuja identidade é idêntica a do Uno. Todas as coisas devem sua existência a emanação do Bem, que
compartilha em abundância” (ESCUDÉ, 2011, p. 30, tradução nossa).
3 O hermetismo é uma filosofia que advém de obras astrológicas gregas e egípcias, sendo muitas de-
las traduzidas pelos árabes. Seu nome está ligado a Hermes Trismegisto (três vezes grande), o qual foi
mencionado em algumas obras de cunho hermético, como é o caso da obra Asclepius (PARRI, 2018): “O
encontro entre o viés mágico de Hermes e aquele filosófico é reforçado e confirmado em duas passagens
do Asclepius [...]. As passagens incriminadas [...] constituem o primeiro contato do mundo latino com a magia
hermética, descrevem a fabricação de estátuas dotadas de poderes maravilhosos, as quais Trimegisto
define como ‘deuses terrenos’” (PARRI, 2018, p. 50, tradução nossa).

317
Diversidade Religiosa & História

mitológica. Analisaremos as passagens da Commedia4 que demonstram


a linguagem, o nome, a palavra e a imagem mental produzidas enquanto
um veículo mágico que estimula a criação por meio da revelação, manifes-
tando os sinais da divindade que estão ocultos no mundo.
O raciocínio teórico-metodológico que equipara o conceito de
veículo mágico da poética medieval está relacionado aos conceitos de
“magia da linguagem” de Walter Benjamin (2013) e de “presença”, desen-
volvido por Hans Ulrich Gumbrecht (2009), aqui relacionado à intensidade
da evocação da imagem realizada pela linguagem. Esses aspectos teóri-
cos nos permitem compreender como a poética mítica medieval relacio-
nava a espiritualidade a um aspecto místico neoplatônico que enunciava
a linguagem em sua dimensão criadora e reveladora, manifestando a
sabedoria divina.
O veículo mágico da poética medieval pode ser percebido por
meio de três formas: a primeira é a identificação da linguagem enquanto
evocação de uma espiritualidade que está oculta no mundo e que pode
ser revelada por meio da matéria e dos saberes enunciados e revelados
pela alegoria do mundo; a segunda é a presentificação de temporalidades
que é realizada pela hermenêutica praticada na leitura de obras antigas
e medievais, ou seja, na busca pela divindade, pela sua justiça, vontade
e enunciação, a qual pode ser praticada por meio da revelação figural5; a
terceira é a linguagem enquanto detentora de um processo mágico que
pratica o papel mítico do agente criador e enunciador da verdade mítica.
Esse veículo mágico é enaltecido pela crença de saberes divinos
que estão ocultos na natureza, sendo emanados, presenciados e proces-

4 A análise foi realizada a partir da obra escrita em toscano medieval, comentada e organizada por Pasquini
e Quaglio (2014). A tradução em língua portuguesa é de Cristiano Martins (1991) e será colocada no corpo do
texto enquanto que o original estará em nota de rodapé.
5 O conceito de revelação figural é uma ferramenta de análise de narrativas míticas que funciona por
meio da “alegoria (BENJAMIN, 1984) enquanto um veículo da linguagem que transmite a verdade divina
presente nas coisas do mundo, da pré-figuração e da figuração (AUERBACH, 1997) e da associação entre
mundos passados, presentes e futuros que confluem para a eternidade do pós-morte medieval, sendo,
então, a presentificação de mundos passados (GUMBRECHT, 2010) que passam a se constituir na revelação
da justiça divina” (COSTA, 2020, p. 208). Para saber mais sobre o conceito, recomendamos a leitura da Tese
de Doutorado intitulada “Revelação figural: alegoria e presença dos seres híbridos na Divina Comédia, de
Dante Alighieri”, defendida em 2019 por Daniel Lula Costa (COSTA, 2019).

318
Diversidade Religiosa & História

sados pelo espírito humano que os identifica e nomeia. O nome é, então,


um veículo mágico potente pois inaugura o mundo por meio da enuncia-
ção da criação divina, que é presentificada pelo ser humano ao nomear
e sentir a espiritualidade das coisas presentes no mundo e nos saberes
antigos e medievais. Ao analisar o papel do nome na Idade Média, Lauand
(2013) percebe que existe um tipo de intensidade relacionada ao nome e
as coisas do mundo. O autor verifica esse elemento em alguns intelectu-
ais medievais como Jerônimo (347-419), Agostinho (354-430) e Tomás de
Aquino (1225-1274): “As palavras são nomes. E o falar é a grande arte de
lidar com o nome das coisas, com a essência das coisas e com a essência
da própria alma na sua harmonia querida por Deus” (LAUAND, 2013, p. 57).
O nome em uso poético medieval atrelado às narrativas míticas harmoni-
zava o ritmo da leitura, a musicalidade da rima, a seleção de versos e de
números unidos a função neoplatônica que buscava os sinais da divindade
na natureza ou nos saberes antigos e medievais.
Dessa forma, o veículo mágico da poética medieval é enunciado
por meio da magia da linguagem posta em prática na criação da narrativa
poética. É importante entender o que está sendo compreendido enquanto
“magia da linguagem” e que remete ao que denomino enquanto “veículo
mágico”. Para compreender esse exercício da linguagem poética e mítica
utilizaremos os conceitos de “magia da linguagem” e “essência espiritual
das coisas” de Walter Benjamin (2013). Segundo o autor, não há na natureza,
animada ou inanimada, nada que não apresente alguma forma de lingua-
gem. Nesse caso, cada aspecto do mundo transmite alguma linguagem,
que ele denomina ser a forma espiritual da comunicação: “se a lâmpada e
a montanha e a raposa não se comunicassem ao homem, como poderia
ele nomeá-las?” (BENJAMIN, 2013, p. 55). A única forma de linguagem que
se utiliza da palavra e do nome é a humana. Para compreender o que
Benjamin (2013) denomina como essência espiritual das coisas do mundo,
devo elucidar o que ele entende por expressão da linguagem.
Todo objeto ou ser expressa linguagem, porém, a forma como se
comunicam dá sentido ao entendimento de um para o outro, no caso, a es-
piritualidade ativa no ser a possibilidade de uma comunicação. Isto é muito
similar ao que os medievais reconheceram como alegoria universal (ECO,

319
Diversidade Religiosa & História

2012) enquanto forma espiritual que as coisas possuem e como elementos


do ato de saber superior. Porém, neste caso, funcionam como sintonias
do divino e de sua vontade. É importante destacar que na antiguidade e
no medievo, aquilo que reconhecemos como objetos inanimados eram
entendidos enquanto registros da criação e, por isso, dotados de energia
espiritual, a qual cintilava sinais a serem vistos e sentidos pelos seres
humanos. Os mitos partem dessa experiência vivenciada pelas sensações
do ser humano em conexão com o mundo, não sendo apenas formas
para tentar compreender a realidade, mas também formas de experimen-
tar as sensações e a vida enquanto um modelo conectado, profundo e
confluente em que a natureza e o universo se comunicam pelas alegorias
mitológicas, sendo o mito uma experiência de estar vivos e em conexão
com o mundo (CAMPBELL, 1991).
Sendo assim, a natureza está relacionada à mitologia que é pre-
sente no ato de sensação da espiritualidade das coisas e de sua emanação
no mundo, ou melhor, de sua conduta. Quando olhamos para algo, aquilo
nos olha de volta, ou seja, a espiritualidade daquele objeto ou ser transmi-
te algo para nós que é sentido e experienciado, podendo ser apresentado
por meio da ritualística performática, da palavra ou da fala. Essa forma de
envolvimento e a relação de imediatidade entre a expressão espiritual e
o seu ser linguístico é o que Benjamim chama de “magia da linguagem”,
isto é, “uma filosofia da natureza que explica o Ser determinado por Deus”
(PORTUGAL, 1992, p. 56). Como o caso da palavra spell, de língua inglesa,
em que spelling é usado para soletrar ou enfeitiçar, sendo possível perce-
ber que a linguagem está relacionada a magia e a magia está relacionada
a imediatidade da linguagem. A magia da linguagem é uma forma de
revelar algo que está oculto no espaço/tempo; em Dante, é manifestar a
revelação da sabedoria divina ao vivenciar os estágios da vida e da morte,
sendo a linguagem a forma utilizada para dar presença à espiritualidade
do mundo, de seu passado, presente e futuro, envolvimento que acontece
no cunho atemporal do enredo da Commedia. Esse processo acarreta a
criação de uma escrita mítica, a qual se modela pela experiência de vida/
morte/natureza/renascimento, ou seja, da completude do universo em
sua diversidade, da sensação mística de que o microcosmo e o macrocos-

320
Diversidade Religiosa & História

mo estão sincronizados. Dante cria uma mitologia ao utilizar a linguagem


enquanto meio comunicador da revelação que a natureza divina lhe con-
fere, o que pode ser visualizado pelo veículo mágico da poética medieval.
Essa linguagem poética sintoniza a palavra e a imagem mental produ-
zida pela leitura dos cantos e de sua musicalidade oferecida pela rima,
funcionando como “magia da linguagem” ao criar o mundo por meio da
revelação divina. Essa prática intensifica a presença do mundo na narrativa
mítica e confere uma experiência espiritual que evoca a imagem por meio
da leitura poética, conferindo uma sensação de presença profunda sobre
os acontecimentos narrados e a sua confluência temporal, principalmente
quando relacionados à crença.
Para pensar a estrutura de um texto medieval e de suas inspirações,
devemos entender que o processo de significação do mundo é diverso
daquele que foi praticado em outros tempos. Para o medievo, a linguagem
pode evocar presenças e desenvolver os vestígios de sensações divinas
inauguradas em illo tempore, ou seja, desde quando os véus do tempo
ocultavam os sinais da cosmogonia6. Nesse caso, há uma relação de con-
fluência entre o ser e o mundo, sendo que um é parte do outro. Diante des-
se modelo de interpretação, o corpo do ser humano é parte da criação e
detém elementos que estão ligados ao macrocosmo, como os planetas, os
animais, as plantas, as pedras e os acontecimentos antigos e míticos. Esse
raciocínio se aproxima do que Gumbrecht (2009) denominou como “cultu-
ra de presença” do ser humano no mundo. Para o autor, a forma de pensar
medieval é composta por um pensamento corpóreo e não excêntrico, ou
seja, há uma constante busca pela sensação da presença das coisas do
mundo, as quais conferem sinais que são revelados e presentificados pela
linguagem: os seres humanos medievais não separam o sujeito do objeto,
pois a sua autorreferência humana é delimitada pelo corpo em associação
com a natureza, eles “buscam apenas inscrever seu comportamento no
que consideram ser estruturas e regras de uma determinada cosmologia”
(GUMBRECHT, 2009, p. 13).

6 Criação do universo com base em uma mitologia de origem.

321
Diversidade Religiosa & História

Essa cosmologia ordenada é encontrada nas fontes medievais


compostas por narrativas míticas, nas quais identificamos os elementos que
sintonizam o ser humano e o mundo em um aspecto de espiritualidade em
relação à natureza, dando presença ao divino que se revela pelos animais,
pela montanha, pelas plantas, pelos saberes antigos e pelos comporta-
mentos ocasionados pelos fenômenos naturais. Esses elementos são de-
senvolvidos pela narrativa, a qual coloca em prática o poder da linguagem
criadora e revela a justiça divina e os seus sinais de criação cosmogônica.
Por isso, para identificar o veículo mágico da poética medieval, é necessá-
rio reconhecê-lo em uma narrativa mítica, na qual as temporalidades são
evocadas e a linguagem funciona como verbo criador, sendo emanada pela
nomeação, criação e revelação da justiça e das vontades divinas: “isso que
significa o conceito de revelação, quando toma a intangibilidade da palavra
como condição única e suficiente — e a característica — do caráter divino
da essência espiritual que nela se exprime” (BENJAMIN, 2013, p. 59). O poder
da linguagem enquanto enunciador da criação divina e, por isso, detentor
de uma linguagem adamítica, pode ser visualizado na literatura medieval,
como é o caso da Commedia, de Dante Alighieri.
Olhar o mundo e senti-lo foram algumas das formas encontradas
para poetizar sobre o universo e as divindades que o ocupam. Por mais que
tratemos de uma obra produzida na Idade Média, foi a partir da obra dos
antigos que ele foi mais sentido pelos medievais que viam nessas ideias a
alegoria universal (ECO, 2013), o caminho de pensamento que pode elevar
o ser para o contato divino. No caso do cristianismo, os poetas esperavam
encontrar na palavra a função do verbo criador, dinamizado por Deus, no
Gênesis, e agora sentido como energia de criação pelo poeta que dinamiza
as ideias da divindade, já que, no imaginário medieval, a natureza e tudo o
que é do mundo possui um vestígio do poder superior, como se houvesse
ocorrido uma fusão no momento da criação cosmogônica, entre criador e
criatura. Sendo assim, as árvores, os animais, as montanhas, os rios, o fogo, o
ar, as frutas, as cores, a música, dentre outros elementos seriam visualizados
e presenciados pelos seres humanos enquanto formas de acesso à sabe-
doria divina. Na Commedia de Dante, é possível perceber que essa prática

322
Diversidade Religiosa & História

de leitura hermenêutica era utilizada em textos antigos como a Eneida de


Virgílio, a Metamorfoses de Ovídio, a Farsalias de Lucano, dentre outras.
No século XIV, a dinâmica da alegoria universal já estava presente
em obras que fortaleciam o saber completo, do todo, ou seja, dos sabe-
res até então conhecidos, o que identificamos hoje como “enciclopédias
medievais”. Não era apenas um conjunto de saberes, mas os vestígios de
saberes enquanto passado-presente, que revelam condutas morais e re-
lações com o modo de acesso ao pós-morte, primeiramente difundido aos
antigos e posteriormente anunciados pelos medievais. Essas obras apre-
sentam elementos que eram pensados e vivenciados pela união do saber,
o qual servia para possibilitar a compreensão alegórica do texto bíblico e
de seus enigmas. Algumas dessas obras que possivelmente foram utili-
zadas por Dante são a Etimologias de Isodoro, Il Tesoro de Bruneto Latini,
Natura Rerum de Beda, De proprietatibus rerum de Bartolomeu Anglicus.
Benjamin (2013) utilizou o Gênesis bíblico para explicar a teoria da
linguagem em seu processo de criação. Nos atos de inauguração do mun-
do, de seu vir a existir, a mitologia judaico-cristã utiliza da palavra como
processo criador. É por meio dela que o mundo começa a ser moldado
e manifestado, como ocorre na utilização de termos como “Haja” e “Ele
chamou” em que se presentifica “a profunda e clara relação do ato criador
com a linguagem” (BENJAMIN, 2013, p. 61). Termos como “Faça”, “Haja” e
“Veja”, por exemplo, conferem às narrativas míticas o poder da linguagem
criadora que passa a dar existência a uma realidade que ocorreu antes
do tempo e que começa a ser revelada pela presença da natureza e da
experiência de mundo sentida pelos seres humanos. As narrativas míticas
utilizam a linguagem enquanto um processo criador e de presença, confe-
rindo à existência a ligação da espiritualidade das coisas do mundo com a
sensação humana de ser parte do todo, natureza em que os seres habitam.
Esse processo criativo é fortalecido por meio da relação existente entre
palavra e imagem, podendo ser a imagem mental produzida pela narrativa
oralizada, declamada: “A imagem e a palavra se alternam no domínio da
imaginação; fortificam-se reciprocamente e alimentam-se mutuamente”
(KAPPLER, 1994, p. 287).

323
Diversidade Religiosa & História

Seguindo esse raciocínio, a leitura e composição de um poema


mítico transmitem a evocação de saberes e coisas que estão distantes no
tempo e no espaço, manifestando-as na imagem mental que se choca
com a vivência do indivíduo que ouve ou cria a narrativa poética. Aqui
notamos a presentificação da imagem mental produzida pela leitura do
mito. Essa presença possibilita que a linguagem revele os sinais ocultados
no mundo, de forma neoplatônica, e note os vestígios da criação divina e
de sua vontade. Esse é um dos pontos essenciais do veículo mágico da
poética medieval, o momento no qual a palavra evoca a imagem como
uma constelação de saberes que sensibiliza o ser humano a sentir as
profundezas de seus desejos e sentimentos mais íntimos manifestados
pela profundidade da narrativa mítica. O veículo mágico presente nos
mitos e, no nosso caso, na mitologia dantesca medieval, é possível de ser
visualizado por meio da construção da narrativa e do papel espiritual e
hermético manifestado pelo poder da linguagem criadora. Por isso, ao uti-
lizar a palavra e a evocação da imagem enquanto presença é colocada em
prática a revelação da criação e, por conseguinte, a operacionalização da
linguagem criadora revelacionista operada pelo mito, em que os nomes e
as palavras promulgam o veículo mágico da poética medieval: “Esse nome
garante a cada homem sua criação por Deus e, nesse sentido, ele mesmo
é criador, como a sabedoria mitológica bem exprime na visão (aliás, nada
rara) de que o nome de um homem é seu destino” (BENJAMIN, 2013, p. 63).
Dante Alighieri usou da poética medieval e escreveu uma das
poesias até hoje conhecida e publicamente referenciada, a Commedia.
Porém, o que pouco se estuda em Dante é o seu uso místico da linguagem
e o seu caráter hermético presente na forma de compreensão dos anti-
gos e do uso da língua. É possível pesquisar a Commedia com o objetivo
de reconhecer nela outras questões, como é o caso das pesquisas que
buscam o conhecimento político de Dante ou o seu conhecimento social
da Toscana, porém, no nosso caso, interessa o imaginário do poeta e a
sua relação com a linguagem da narrativa mítica, principalmente da forma
como é construída na Commedia por meio de sua estrutura numerológica
e da efetivação do uso da linguagem como meio criador.

324
Diversidade Religiosa & História

Para identificar o veículo mágico da poética medieval na Comme-


dia, analisaremos as passagens em que a nomeação, a linguagem e os
vestígios ocultos da natureza são enunciados e presenciados por meio
da revelação divina. Dessa forma, demonstraremos o veículo mágico por
meio de suas três formas: 1- a função da magia da linguagem que busca a
espiritualidade das coisas do mundo e as revela pela linguagem criadora;
2- a confluência de temporalidades ocorrida por meio do choque de sa-
beres antigos e medievais que são presentificados pela narrativa mítica;
3- o papel do agente criador da narrativa que promove as experiências
reveladoras da verdade divina pela magia da linguagem, ou seja, pela
formação de uma mitologia.

A magia da linguagem na Commedia

As estratégias de escrita medievais elaboradas com base na retóri-


ca e nas filosofias neoplatônicas dinamizaram um veículo que relacionava
o antigo ao medieval de forma presencial e, assim, ativava o poder da
linguagem adamítica, relacionada às coisas. Benjamin (2013) afirma que a
linguagem adamítica se associava à coisa em si e não expandia a comu-
nicação com base em uma existência significadora, a qual só passaria a
existir após a expulsão da humanidade do paraíso. No entanto, na Idade
Média, as pessoas observavam o mundo com o intuito de enxergar aquilo
que estava oculto na natureza, decifrando seus códigos alegóricos e efeti-
vando a busca pela essência espiritual das coisas do mundo.
Sendo assim, podemos visualizar no medievo a prática do uso das
palavras para comunicar e evocar o meio material e espiritual, os quais se
conectavam ao poder divino de criação do mundo. A linguagem funcio-
nava como veículo mágico ao desvelar o mundo por meio da experiência
divina e das sintonias contextuais. A conexão entre a palavra, a imagem e
a crença, está associada às filosofias herméticas e neoplatônicas, sendo
usada em vários âmbitos do movimento de saberes medievais, por exem-
plo, a patrística e a literatura medieval. A ligação entre o microcosmo e o
macrocosmo era um dos princípios ativos do pensamento neoplatônico

325
Diversidade Religiosa & História

medieval, algo que podemos acessar em Bernardo Silvestre, filósofo


do século XII. De acordo com Jaeger (2019), ao citar e analisar a obra de
Bernardo, pontua que o humanismo do século XII era fundamentado por
um acesso ao ser humano como figura divina, o que também possibilita
que interpretemos a conexão entre palavra, crença e imagem como uma
prática de escrita de revelação que seja criadora, em sentidos míticos:

O homem deve ser divino quanto à mente, e o seu corpo


deve ser adequado à sua mente, para que um laço harmo-
nioso se efetive: “O homem por si só, cuja estatura testemu-
nha a majestade da sua mente, elevará sua nobre cabeça em
direção às estrelas, e poderá empregar, como padrão da sua
própria vida, as leis das esferas e os seus cursos inalteráveis”
(JAEGER, 2019, p. 326).

Diante desses elementos, analisaremos algumas passagens da


Commedia, de Dante Alighieri, principalmente os Cantos XV, XVIII, XX e
XXXIII do Paraíso. Convém destacar que a obra foi escrita no século XIV,
nomeada Commedia e dividida em três partes: Inferno, Purgatório e Pa-
raíso. A narrativa descreve o caminho percorrido por Dante, personagem
da obra, pelo pós-morte medieval, onde passa por inúmeros processos
de aprendizados e de experiências relacionadas à sabedoria divina. Ainda
vivo, Dante é encontrado pelo espírito do poeta romano Virgílio, o qual
afirma ter sido enviado por Beatriz para guiar Dante pelo inferno e pur-
gatório. Ao chegar no final do purgatório a caminho do paraíso, Dante é
recebido por Beatriz e, no final da última obra, guiado por São Bernardo.
Em cada uma das obras são apresentadas as características geográficas
e míticas dos ambientes do pós-morte medieval: o inferno é dividido em
nove círculos concêntricos e localizado no planeta Terra, começando em
Jerusalém e terminando no núcleo do planeta; o purgatório é dividido em
um antepurgatório, sete cornijas e o Paraíso Terrestre; o paraíso é compos-
to por nove espaços localizados no universo, os sete planetas como a Lua,
Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno e, depois, as esferas fixas, o
Primeiro Motor e o Empíreo, onde está Deus.
Essa descrição da obra já nos apresenta a trajetória do poeta que
deve percorrer esses espaços para encontrar a sabedoria divina, encontrada

326
Diversidade Religiosa & História

em cada uma das etapas. Convém destacar que a numerologia medieval


também era importante para a dimensão da crença e integrava as inter-
pretações sobre o mundo, desvelando os vestígios divinos. Nesse caso, os
números são cuidadosamente selecionados e expostos no poema. Cada
um deles detém uma simbologia que conflui saberes antigos e medievais,
alguns deles relacionados ao hermetismo, à cabala e aos ensinamentos
sobre a ligação entre o que está embaixo e o que está em cima, assim como
ao processo de manifestação da divindade no décimo local do paraíso, ou
seja, na casa dez em que ocorre a confluência do ser com o todo do univer-
so. O número três também é muito emblemático na estrutura do poema, já
que cada uma das partes da Commedia possui 33 Cantos com exceção do
Inferno que possui 34, totalizando 100 Cantos, ou seja, a integração espiritual
sinalizada pelo número 10. Esses exemplos demonstram as influências dos
astros e da sabedoria simbólica dos números para compor a obra mítica
que Dante escreveu, ou seja, uma narrativa que possui saberes herméticos,
pitagóricos, aristotélicos, neoplatônicos, dentre outros.
O uso dos números ritualiza a leitura da obra referente à quantidade
de Cantos, de rimas (terza-rima), de estrofes e de conteúdos selecionados.
Essa utilização da linguagem matemática direcionada à poética também
é uma demonstração do processo criador da linguagem, a qual enxerga
nas obras antigas e no mundo alguns números simbólicos e os apresen-
ta para dar função profética e de visão (visio) à Commedia. Além desses
exemplos, os números 666 e 515 são encontrados ao contar os versos que
separam cada uma das profecias realizadas por personagens específicos7
no Inferno. Assim sendo, a repetição de alguma palavra, frase ou evento
em alguns números de vezes possibilitava fortuna ou presságios e poderia
revelar a sabedoria oculta, algo que Dante conhecia bem pois o faz em
sua obra ao falar dos ambientes do pós-morte, sempre se utilizando do
número três, nove, sete, onze, dez, 515 e 666: “A numerologia, como qual-
quer outro sistema de interpretação da realidade visível, expressava a ideia

7 A primeira é a profecia de Virgílio, que está separada de Ciacco por 666 versos; a segunda a de Ciacco,
separada por 515 versos da de Farinata; a terceira a de Farinata, que se distancia em 666 versos de Bruneto
Latini e, a quarta, a de Bruneto que está 515 versos distante de Nicolau III, que realiza a quinta e última
profecia do Inferno.

327
Diversidade Religiosa & História

de que por trás das aparências imediatas haveria um significado profundo,


metafísico, das coisas” (FRANCO JUNIOR, 2000, p. 85).
Dante (1265-1321) possuía conhecimento de obras antigas e me-
dievais e do imaginário de seu contexto histórico-cultural para o auxiliar
na escrita da Commedia. O uso da linguagem com base nos números e
na revelação figural do poeta diante do uso das obras antigas enquanto
processo profético demonstra que o meio de organização da estrutura e
dos saberes manifesta a intenção de uma obra criadora, a qual compõe
uma mitologia medieval com base na visão, nas vontades de desvelar
o oculto. Esses elementos promovem o terceiro e segundo alicerce do
veículo mágico da poética, os quais serpenteiam a confluência de tempo-
ralidades com base na presença e experiência de mundo (GUMBRECHT,
2009), na revelação figural (COSTA, 2020) e no desenvolvimento de uma
mitologia. Vejamos outros exemplos da Commedia que usam a linguagem
enquanto um processo criador e confluente com a natureza, buscando
nela as figuras da divindade.
Ao viajar pelo Paraíso, em sua quinta esfera ou céu de Marte, Dante
escuta a voz de Cacciaguida e enaltece o poder do nome enquanto po-
tência criadora. Cacciaguida foi ancestral de Dante, como um trisavô, ele
se apresenta como “O que te deu o nome familial” (Par., XV, 91)8. Por mais
que o nome seja já assentido nesse verso, é naqueles presentes no Canto
XVIII que ele intensifica sua linguagem criadora e reveladora. Cacciaguida
diz: “Observa a cruz que de astros se recama:/ O que eu nomear verás luzir
ligeiro, / Como nas nuvens repentina chama” (Par., XVIII, 34-36)9.
Nesse momento, o poeta nos apresenta os combatentes que
lutaram pela fé cristã. Eles são invocados pelo nome e começam a se
revelar. As almas dos combatentes se apresentam no formato de cruz e
parecem reluzir como astros, como se as estrelas ditassem a sua natureza
divina. Conforme Cacciaguida nomeia as almas, elas brilham e revelam
sua existência por meio do cintilar de um relâmpago. Essa prática do ato

8 “Poscia mi disse: ‘Quel da cui si disse” (Par., XV, 91) e continua nos versos seguintes: “tua cognazione e che
cent’anni e piúe / girato há ’l monte in la prima cornice” (Par., XV, 92-93).
9 “Però mira ne’ corni de la croce: / quello ch’io nomerò, lí farà l’atto / che fa in nube il suo foco veloce”
(Par., XVIII, 34-36).

328
Diversidade Religiosa & História

de nomear é um elemento mágico forte presente no imaginário medieval


e na operacionalização da crença, sendo também identificável na anti-
guidade. O nome, como vimos, está atrelado ao destino e à existência de
determinados elementos. Ao nomear, a coisa passa a existir e se revela
enquanto detentora de sinais divinos, ou seja, a linguagem exerce seu
papel de criação mítica, gerando um processo de reconhecimento do ato
de criar manifestado por meio da revelação divina.

O homem comunica-se a Deus através do nome que dá à


natureza e a seus semelhantes (no nome próprio), e ele dá
nome à natureza segundo a comunicação que dela recebe,
pois também a natureza toda é atravessada por uma língua
muda e sem nome, resíduo da palavra criadora de Deus, que
se conservou no homem como nome que conhece e paira. [...]
A linguagem da natureza pode ser comparada a uma senha
secreta, que cada sentinela passa a próxima em sua própria
língua, mas conteúdo da senha é a língua da sentinela mesma
(BENJAMIN, 2013, p. 73).

Seguindo este processo de criação mítica, quando Beatriz e Dante


chegam à sexta esfera, a de Júpiter, onde estão os espíritos dos príncipes
justos, outro evento ocorre por meio do uso da linguagem, a qual alegoriza
o poder da expressão comunicativa que evoca a imagem por meio da pa-
lavra. Chegando na esfera de Júpiter, os espíritos dos príncipes começam
a se organizar no céu com a intenção de comunicar algo a Dante: “E na
jupiteriana alva paragem / luzes mil fulguravam mui ligeiras, / a jeito de
exprimir nossa linguagem” (Par., XVIII, 70-72)10.
Essas luzes são as almas destinadas à sexta esfera, as quais co-
meçam a tentar exprimir por meio da linguagem algo que comunique a
Dante uma revelação divina. Podemos perceber que a escrita comunica
um sentido específico e precisa ser manifestada dessa forma para tornar
viva a mensagem, sendo possível de ser entendida e transmitida pelo
poeta. Dante, então, pede para que as musas antigas lhe ajudem a decifrar
o que viu no alto, utilizando-se do saber antigo com a intenção de decifrar

10 “Io vidi in quella giovial facella / lo sfavillar de l’amor che lí era / segnare a li occhi miei mostra favella”
(Par., XVIII, 70-72).

329
Diversidade Religiosa & História

as figurações divinas, algo que compete às musas ajudá-lo a decodificar


tal saber, como ajudaram os poetas Hesíodo, Virgílio e Ovídio. Esse pedido
é uma evocação para que a linguagem possa emanar o poder necessário
ao conceder sentido e presença aos seres humanos: “Nos meus versos
mostrai vosso [musas] poder” (Par., XVIII, 87)11. As almas dos príncipes se
organizam e revelam a mensagem por meio da palavra ao mesmo tempo
em que constroem uma imagem no alto.

Ó pegaseanas Musas, que inspirais


Os homens, e os fazeis sobreviver,
E às cidades e reinos ilustrais,
Ajudai minha pena a descrever
Aquelas letras, tais como eu as vi:
Nos meus versos mostrai vosso poder!
Trinta e cinco sinais contei ali,
Entre consoantes e vogais; por fim,
Suas partes distintas traduzi.
“DILIGITE IUSTITIAM” era, assim,
Co’ verbo e o nome, o dístico gravado;
“QUI IUDICATIS TERRAM” — vinha, enfim.
(Par., XVIII, 82-93).12

Nessa citação, podemos perceber alguns dos elementos do que


reconhecemos ser o veículo mágico da poética medieval, como a trans-
temporalidade das presenças de passado vinculadas às musas e à sua
evocação, lugar-comum nas poesias gregas e romanas, principalmente
naquelas que foram utilizadas como vestígio da divindade: Eneida de
Virgílio e Metamorfoses de Ovídio. Outro elemento é o papel criador de-
sempenhado pela linguagem, quando Dante clama para que as musas
o ajudem a descrever as letras que se formaram no encontro das almas.
A linguagem terrena é o alicerce escolhido pelas almas para se comu-
nicarem com Dante, por meio de consoantes e vogais, contando trinta
e cinco letras que formaram a frase em latim: “Amai a justiça, ó vós que

11 “paia tua possa in questi versi brevi!” (Par., XVIII, 87).


12 “O diva Pegasea che li ’ngegni / fai gloriosi e rendili longevi, / ed essi teco le cittadi e ’regni, / ilustrami di
te, sì ch’io rilevi / le lor figure com’io l’ho concette: / paia tua possa in questi versi brevi! / Mostrarsi dunque in
cinque volte sette / vocali e consonante; e io notai / le parti sì, come mi parver dette. / ‘DILIGITE IUSTITIAM’,
primai / fur verbo e nome di tutto ‘l dipinto; / ‘QUI IUDICATIS TERRAM’, fur sezzai” (Par., XVIII, 82-93).

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Diversidade Religiosa & História

governais a terra”. Para Martins (1991), essas palavras fazem parte do Livro
da Sabedoria, atribuídas a Salomão. A partir do momento em que as almas
formam o último dístico, a letra M, elas se transformam na imagem de uma
grandiosa águia em que se verifica o símbolo da justiça divina. Nessa pas-
sagem, notamos a relação entre a palavra escrita e a imagem produzida
como evocação da mensagem transmitida. Assim sendo, a justiça é sinali-
zada e criada como revelação divina e alegorizada pela imagem da águia
evocada após a pronúncia e escrita da mensagem “DILIGITE IUSTITIAM” e
“QUI IUDICATIS TERRAM”. A linguagem cria e emana a imagem da águia
enquanto sabedoria e justiça divina, ela funciona como um mecanismo
que se corretamente operacionalizado pode evocar a presença divina nas
coisas do mundo — algo caro ao neoplatonismo medieval. A águia alego-
riza o símbolo da justiça divina, dando presença aos saberes da divindade.
Sendo um ser identificável na natureza, a águia foi um animal muito
importante para o imaginário antigo e medieval. Seus símbolos alegóricos
possuíam temporalidades que se conectavam e sincronizavam elementos
possíveis de decifrar alguns dos mistérios do mundo. A presença desses
seres era descrita nos Bestiários medievais e em algumas obras antigas
como a História dos Animais de Aristóteles (século IV A.E.C.) e a História
Natural de Plinio (século I E.C.), o velho.
O Bestiário Ms Bodley 764, escrito no século XIII, destaca o com-
portamento da águia e sinaliza que quando suas asas estão pesadas e
seus olhares nebulosos, ela voa até a atmosfera em que o sol é mais forte,
onde suas asas pegam fogo e seus olhos passam a ser clareados e, depois
disso, mergulha na água três vezes para restaurar a visão e o poder de suas
asas. A interpretação alegórica dada pelo autor é que os seres humanos
devem buscar a fonte divina e “direcionar seus olhares e mentes para Deus,
fonte da justiça” (BARBER, 1992, p. 119, tradução nossa). Esse saber advinha
do simbolismo da águia como um ser especial dotado de elementos que
a aproximavam do poder político e religioso. Aqui é possível verificar a
transtemporalidade da revelação figural em que o imaginário medieval e
as fontes antigas manifestam a revelação divina para Dante, é um choque
de temporalidades que emanam sua conjunção na eternidade do pós-
-morte medieval. Os animais, presentes na natureza, funcionavam como

331
Diversidade Religiosa & História

símbolos emanadores de verdades divinas. O acesso a eles foi feito pelos


antigos e também pelos medievais. Dante busca esses saberes em obras
míticas antigas e em enciclopédias e bestiários medievais com o objetivo
de confluir os saberes e transmitir o conhecimento místico medieval. Aqui
notamos a presença da natureza e da sua criação revelacionista.
Seguindo adiante, no Canto XXXIII do Paraíso, o poeta clama no-
vamente pelo poder de sua escrita para conseguir descrever e evocar a
imagem que estava vendo. Nesse momento, Dante está sendo guiado por
São Bernardo pelo Empíreo do paraíso, onde ele visualiza a luz divina e
tenta mensurá-la em palavras. Para fazer isso, ele pede que a luz irradie
sobre si mesmo um sinal de esplendor (Par., XXXIII), fazendo-o descrever
e criar a sensação de estar diante da divindade: “E torna a minha voz ora
potente / Por que um vislumbre ao menos de tal glória /Possa eu deixar à
porvindoura gente!” (Par., XXXIII, 70-72)13.
Dante pede a intercessão divina para que dê potência às suas
palavras, com a intenção de relampejar a ideia do mistério da pós-vida.
Seu objetivo é passar adiante o conhecimento que havia vislumbrado no
contato com o divino, sendo a língua e a oralidade a sua forma de acesso
ao mundo e aos outros, ou seja, a linguagem funcionava como uma forma
de comunicação mágica e, por isso, criadora, a qual emanava a relação en-
tre o que é visto e sentido e o que é produzido pela língua. Aqui notamos a
conexão entre o que se vê, a imagem, e a sua tradução em formato escrito.
Nesse caso, a língua concede papel de evocar a imagem vista enquanto
presença para que as pessoas, ao ouvirem a Commedia, possam ver se
formar em sua mente a luz imagética, trazendo o que está distante no
tempo e no espaço para perto, como se formasse uma constelação de
imagens mentais por meio das suas presenças emanadas pela linguagem
(GUMBRECHT, 2009) transformada em imagens alegóricas (COSTA, 2020).
Dessa forma, a narrativa mítica tem o papel de conceder, por
meio do poder da linguagem ou magia da linguagem, a confluência de
acontecimentos realizados em outros espaços e tempos, revelando ex-

13 “e fa la lingua mia tanto possente, / ch’una favilla sol de la tua gloria / possa lasciare a la futura gente”
(Par., XXXIII, 70-72).

332
Diversidade Religiosa & História

periências profundas da integridade e confluência do ser, do mundo e do


universo. A leitura poética é o rito colocado em prática, principalmente
ao operacionalizar a crença, a palavra e a imagem enquanto veículos
mágicos da poética medieval. Dante nota esse papel do verbo e o utiliza
como instrumento hermético e neoplatônico, buscando desvelar os véus
que ocultam o mundo por meio do papel de criação-revelacionista de sua
narrativa mítica: “A poesia sozinha está próxima da revelação e é capaz de
expressá-la” (AUERBACH, 2007a, p. 100, tradução nossa).
Essa operacionalização também ocorre por meio do nome atribuí-
do às coisas, no momento em que Dante descreve o Canto XX do Paraíso,
quando apresenta o nome como elemento de poder. Nessa parte da Com-
media, Dante e Beatriz estão no sexto céu, de Júpiter, ainda em companhia
da águia formada pelos espíritos, que apresenta a eles os príncipes e reis
que foram destinados a essa esfera. Em determinado momento, Dante fica
surpreso por Trajano14 e Rifeu15 terem sido destinados a esse local. Então a
águia lhe diz:

Aceitas estes fatos tão somente


porque os afirmo aqui, sem todavia
lograres entendê-los claramente.
És tal como o que as coisas apropria
pelo seu nome, mas a quididade
não lhes apreende sem ajuda e guia
(Par., XX, 88-93).16

A águia demonstra a Dante que para conhecer aquilo que parece


impreciso ou o que está oculto nas coisas do mundo, é preciso deter um
guia ou auxílio. Ela explana que Dante, enquanto personagem, age como
se apropriasse das coisas pelo seu nome sem perceber a sua quididade, ou
seja, a essência das coisas em si. Para Benjamin (2013), as coisas do mundo
transmitem a sua essência espiritual, a qual é nomeada, no entanto, para

14 Trajano (98-117 E.C.) foi imperador romano reconhecido pela expansão territorial do império.
15 Personagem mencionado na Eneida de Virgílio como um soldado troiano que acompanhou Eneias,
sendo justo e virtuoso.
16 “io veggio che tu crei queste cose / perch’ io le dico, ma non vedi come; / sí che, se non credute, sono
ascose. / Fai come quei che la cosa per nome apprende ben, ma la sua quiditate / veder non pò se altri non
la prome” (Par., XX, 88-93).

333
Diversidade Religiosa & História

se chegar a ela, é necessário decifrar os sinais encontrados na natureza,


os quais procedem do divino. A águia demonstra que Dante precisa ser
detentor de conhecimento para entender a quididade das coisas do mun-
do, principalmente daquelas decodificadas pelo pós-morte: “Na verdade,
quanto eu do reino santo /pude na mente conservar, revel, / matéria me
dará ao novo canto” (Par., I, 10-12)17.
Nesta passagem, Dante informa ao leitor que vai comunicar por
meio de seu canto tudo o que conseguir revelar da sua viagem ao reino
santo, ou seja, do ambiente celestial. Essa estrofe é emblemática por de-
monstrar que a linguagem tem o objetivo de apresentar à humanidade a
trajetória de sua viagem ao pós-morte. No entanto, somente aquilo que ele
conseguir conservar em sua mente e fazer se tornar tesoro vai ser relatado
pela sua obra, outras partes ainda se mantém ocultas, podendo ser decifra-
das pela leitura da Commedia. Dante demonstra que a linguagem utilizada
dá corpo à essência espiritual das coisas do mundo conforme a revelação é
transmitida, com o objetivo de mostrar como o ser humano pode alcançar a
divindade por meio do exercício de sua sabedoria. Para isso, faz-se neces-
sário conhecer os aspectos mais profundos da mente humana, viajando ao
inferno, purgatório e paraíso. A narrativa desenvolvida por Dante desempe-
nha o papel de criação e revelação mítica ao transmitir o veículo mágico da
poética medieval por meio do papel da linguagem enquanto aquela que
desvela o mundo da natureza e anuncia a divindade, da sua confluência de
temporalidades manifestada na eternidade e do seu papel criador desem-
penhado pelo poeta que vê, sente e comunica a imagem alegórica por meio
da visão de mundo anunciada pela eternidade do pós-morte medieval.

Considerações finais

Portanto, diante da análise realizada de algumas passagens do


Paraíso da Commedia de Dante Alighieri, é possível identificar os elemen-
tos que conferem à linguagem uma potência de criação-revelacionista,

17 “Veramente quant’io del regno santo/ ne la mia mente potei far tesoro, / sarà ora materia del mio canto”
(Par., I, 10-12).

334
Diversidade Religiosa & História

permitindo que a narrativa mítica desenvolvida efetive o veículo mágico


da poética medieval. Baseando-se nas teorias de “magia da linguagem” de
Benjamin (2013) e de “presença” de Gumbrecht (2009), a essência espiritual
identificada na Idade Média é promovida enquanto uma essência espiritual
da natureza que é transmitida para o ser humano, possibilitando que este
a traduza/crie por meio da linguagem escrita e a comunique para evocar
a imagem mental produzida pela espiritualidade mística medieval. Ao ana-
lisar alguns elementos narrativos como o uso dos nomes, dos números,
da palavra, do pedido pela inspiração das musas, da evocação divina para
potencializar a sua escrita com o intuito de comunicar a espiritualidade
e a materialidade do que está sendo experienciado, da apresentação da
águia dos combatentes como uma imagem mental que se forma por meio
da escrita anunciada, é possível verificar os três elementos do que reco-
nhecemos ser o veículo mágico da poética medieval, o qual pode estar
presente em narrativas míticas medievais.
Dante, então, utiliza-se da linguagem criadora e revela a sua jor-
nada ao além-túmulo por meio do veículo mágico da poética medieval
ao decifrar as alegorias do mundo e do divino por meio da poesia, pra-
ticando o papel do agente criador que anuncia a verdade alegórica. Ao
deter o papel daquele que viaja pelo pós-morte medieval, Dante informa
ao leitor todas as suas experiências por meio da poesia. Constantemente,
o poeta conversa com o leitor e pede a ele que preste atenção em sua
linguagem e revelação: “Dante dirige-se ao leitor como se tudo o que tem
a relatar fosse não apenas a mais pura verdade factual, mas a verdade
infundida de revelação divina” (AUERBACH, 2007b, p. 129). Sendo assim,
Dante desenvolve uma mitologia dantesca, ou seja, uma confluência de
experiências profundas transmitidas pelo saber dos antigos e medievais,
de suas mitologias, dos entes divinos e de sua criação.

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336
O BUDISMO E AS CIÊNCIAS HUMANAS:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRODUÇÃO
ACADÊMICA NO BRASIL

Leonardo Henrique Luiz1


Richard Gonçalves André2

Resumo
Mapeia-se a historiografia sobre o budismo japonês no Brasil, utilizando como
fontes trabalhos acerca do tema, entendidos a partir do conceito certeauniano de
lugar social. Essa produção privilegia questões como: as categorias de budismos
de imigração e de conversão; a generalização sobre a crise da religião no país; as
dicotomias opondo diferentes formas de budismo; e, entre outras, a ênfase dos
pesquisadores sobre a religião institucional.
Palavras-chave: Budismo. Historiografia. Brasil

Abstract
The historiography on Japanese Buddhism in Brazil is traced here, using as sources
works on the theme, understood from the Certeaunian concept of place. This
production favors issues such as: the categories of immigration and conversion
Buddhism; the generalization about the religious crisis in the country; dichotomies
opposing different forms of Buddhism; and, among others, the emphasis or re-
searchers on institutional religion.
Keywords: Buddhism. Historiography. Brazil.

1 Mestre em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e doutorando na mesma área pela Universi-
dade Estadual de Maringá (UEM). Membro do Grupo de Pesquisa História das crenças e ideias religiosas (HCIR/
UEM) e do Laboratório de Pesquisa sobre Culturas Orientais (Lapeco/UEL). E-mail: leonardo_luiz8@hotmail.com.
2 Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pós-doutor em Língua, Literatura e
Cultura Japonesa pela Universidade de São Paulo (USP). É professor do Departamento de História da UEL
e do Programa de Pós-Graduação em História Social. Coordena o Lapeco. E-mail: richard_andre@uel.br.

337
Diversidade Religiosa & História

Historiografia3 do budismo no Brasil

O presente capítulo busca discutir a produção acadêmica sobre


o budismo no Brasil, para desenvolver a análise, delineamos as tendên-
cias das pesquisas, demonstrando as relações entre autores, instituições
budistas (quando é o caso) e pertencimentos acadêmicos. Para tanto,
pretendemos realizar um remapeamento4 da produção historiográfica
sobre o budismo japonês no Brasil, utilizando como fontes os próprios
trabalhos produzidos, envolvendo artigos, livros, dissertações e teses.
Dentre os autores, é possível destacar Frank Usarski, Eduardo Basto de
Albuquerque, Ricardo Mário Gonçalves, Cristina Rocha e Rafael Shoji que,
entre outros textos, contribuíram na coletânea intitulada O Budismo no
Brasil, organizada pelo primeiro (USARSKI, 2002a). Tais pesquisadores,
partindo de múltiplos campos do conhecimento, como a História, a So-
ciologia e a Ciência da Religião, foram aqui selecionados considerando a
importância de suas discussões para balizar a produção acadêmica sobre
o budismo no país, definindo linhas de investigação, bem como objetos
privilegiados no interior dessa historiografia. Embora não seja possível
generalizar os elementos a seguir, havendo exceções significativas, certos
aspectos privilegiados por alguns dos autores são os seguintes: o lugar
de produção matizado pelo budismo, o delineamento de uma crise geral
da religião, a dicotomia qualitativa entre tradição e modernidade e, entre
outras questões, a ênfase sobre a dimensão institucional.
Além disso, a presente análise será circunscrita aos trabalhos
elaborados a partir dos anos 1970 no Brasil, que marca o início da reflexão
acadêmica de forma sistemática sobre o objeto, refletindo particulari-
dades na produção do conhecimento, como sugere o conceito de lugar

3 No presente capítulo, a expressão “historiografia” refere-se a obras que tenham versado sobre a história
de determinado fenômeno (aqui, especialmente, o budismo), independentemente se escritas por historia-
dores de formação ou não.
4 Quando falamos de budismo, estamos nos referindo sobretudo à religião a partir de sua matriz japo-
nesa e como foi desenvolvida no Brasil. É válido ressaltar, também, que esse mapeamento foi realizado
em outros momentos por pesquisadores como o próprio Usarski (2002b, 2008). No entanto, a iniciativa de
remapeamento justifica-se aqui considerando a necessidade de realizar novo balanço sobre os trabalhos
produzidos, problematizando certas temáticas e conceitos estabelecidos.

338
Diversidade Religiosa & História

social discutido por Michel de Certeau (1982)5. Atentamos aqui para como
pesquisadores brasileiros interpretam o budismo, ressaltando que suas
implicações epistemológicas não podem ser deslocadas da realidade das
práticas e crenças religiosas. Dessa forma, podemos perceber que assim
como a ciência ocidental foi desenvolvida a partir de debates teológicos
(CERTEAU, 1982), as pesquisas desenvolvidas sobre o budismo foram
elaboradas, sobretudo, por indivíduos engajados nessa religião, como é
o caso de Albuquerque e Gonçalves. Ressaltar essa atuação religiosa dos
autores não significa desvalorizar seus trabalhos, mas sim reconhecer os
limites, jogos de forças, e pressões por parte do grupo praticante em que
o autor está inserido.
Da mesma forma, nos casos abordados no presente texto, perce-
bemos que a posição social dos autores como membros da classe média
e intelectuais têm impacto significativo sobre fontes, métodos, recortes
temporais e espaciais. Cristina Rocha, ao analisar as ideias de modernida-
de associadas ao Zen6 no Brasil, destaca que seu pertencimento à classe
média alta delineou suas escolhas: “Um pesquisador que não fosse bra-
sileiro nem pertencente à mesma camada social que eu, possivelmente
teria escolhido outro caminho” (ROCHA, 2016, p. 27). O que a autora eviden-
cia não necessariamente aparece de forma clara nas demais produções
brasileiras sobre o budismo e, por isso, buscamos aqui sugerir as ligações
entre autores e produções sobre a religião.

5 Antes dos anos 1970, há poucos trabalhos que versam sobre o budismo japonês no Brasil, abordando-o
de forma indireta. O mais célebre deles é a dissertação de Mestrado de Takashi Maeyama (1967), que tem
como foco a Seichō-no-ie e acaba passando por certas questões budistas, considerando o caráter híbrido
daquela. Embora não seja classificada como budista, a Seichō-no-ie, fundada por Masaharu Taniguchi no
Japão dos anos 1930, hibridiza elementos de diferentes religiões, inclusive o cristianismo e o espiritismo.
Voltando à questão da produção acadêmica anterior à década de 1970, pode-se destacar artigo de Herbert
Baldus e Emílio Willems (1941) sobre casas e túmulos de japoneses no cemitério de Registro, em São Paulo.
6 O zen foi introduzido no Japão no século XIII por monges como Eisai e Dōgen, possuindo ênfase, sobre-
tudo, em práticas de caráter meditativo (SUZUKI, 2005).

339
Diversidade Religiosa & História

Um budismo à brasileira: as teses defendidas pelos


intelectuais e seus embates

Buscando refletir sobre as correntes explicativas do budismo no


Brasil, sugerimos que uma tendência de destaque são os trabalhos quan-
titativos realizados por Frank Usarski, pesquisador ligado ao Programa de
Pós-Graduação em Ciência da Religião da PUC-SP. Nessa instituição, o
Usarski orientou diversas pesquisas em nível de Mestrado e Doutorado
sobre temas relacionados ao budismo na área da Ciência da Religião.
Graças aos seus esforços, as pesquisas sobre budismo se tornaram cada
vez mais expressivas. Como sugerido, sua principal contribuição pode ser
percebida pela organização do livro O Budismo no Brasil (USARSKI, 2002a),
que embora a diversidade de autores e abordagens não permita uma
redução das várias visões propostas no livro, o primeiro capítulo, escrito
por Usarski, possui marcas significativas de como o budismo foi abordado
por diversos pesquisadores ao longo do tempo.
Uma primeira constatação de Usarski é sobre o atraso das pes-
quisas brasileiras sobre o budismo quando comparadas àquelas realiza-
das no exterior:

[...] no passado, alguns historiadores de religião bem como


sociólogos e antropólogos ocuparam-se de fenômenos re-
levantes ao tema. Todavia, por se tratar de focos específicos,
publicações isoladas, ou seja, por faltar uma abordagem
integrativa ao fenômeno em sua complexidade, aquelas
obras não chamaram atenção adequada, nem na discussão
acadêmica nacional, muito menos nos debates internacionais
[...] (USARSKI, 2002b, p. 9).

A partir disso, o autor aplica o modelo proposto por Charles Pre-


bish (BAUMANN, 2002) e que se tornou clássico (USARSKI, 2002b) para o
estudo sobre o budismo na América, dividindo-o “budismo de imigração”
e “budismo de conversão”. Embora problematizado por Martin Baumann
(2002) no mesmo livro e, posteriormente, rediscutido por C. Rocha (2016), o
modelo clássico ganhou papel de destaque, sendo amplamente utilizado
para a interpretação da situação dos templos no país. Segundo a pers-

340
Diversidade Religiosa & História

pectiva, o budismo de imigração se refere às práticas, crenças e principal-


mente instituições ligadas aos imigrantes japoneses, enquanto o budismo
de conversão (subdividido em primeira e segunda geração) encontra-se
voltado para não descendentes de japoneses com vários movimentos
particulares desde os anos 1960.
Para Usarski, a partir do modelo é possível perceber a crise da
religião no Brasil, pois os dados do IBGE, entre 1991 e 2000, demonstram
o “pequeno” (USARSKI, 2002b, p. 15) impacto das instituições do budismo
de imigração, pois, “Pelo alto grau de especificidade cultural das suas
doutrinas, suas práticas e das suas formas, nem o Budismo japonês, que
é estatística e institucionalmente forte no Brasil, tem conseguido atrair um
número notável de adeptos não-descendentes (sic) de japoneses” (USAR-
SKI, 2002b, p. 15). Em seus vários artigos publicados ao longo dos anos,
o autor recorre a esses dados para demonstrar que, embora exista uma
imagem difundida na mídia da expansão do budismo, o cenário dentro
dos templos seria marcado pela crise e cada vez menos praticantes. Em
trabalhos posteriores, Usarski reafirma e problematiza para um suposto
desaparecimento do budismo no Brasil, pois

Em 2000, somente cerca de 0,14% da população brasileira


optou pela rubrica “budismo” no questionário do IBGE. Esse
é um valor bem modesto, mesmo se comparado ao número
de adeptos de minorias religiosas tais como os adventistas (H”
0,73%) ou as testemunhas-de-jeová (H” 0,6%). Uma compara-
ção com os últimos censos nacionais também nega a difundi-
da idéia (sic) de que o budismo é uma religião em constante
crescimento. O oposto é verdadeiro, especialmente quando
se descarta uma relativa distinção entre o budismo étnico e
o budismo dos convertidos e se leva em conta a dinâmica
negativa do campo budista em geral entre 1991 (236.408) e
2000 (214.873) (USARSKI, 2008, p. 136-137).

Como sugerido, o enfoque apresentado por Usarski foi base para


o trabalho de outros autores (GONZAGA; APOLLONI, 2008; SHOJI, 2011,
GONÇALVES, 2008; GONZAGA, 2006). Entretanto, a posição defendida
por Usarski foi alvo de críticas em artigos dispersos em dois sentidos.
Em primeiro lugar, é questionado o método quantitativo como maneira

341
Diversidade Religiosa & História

de qualificar o pertencimento religioso. Debatendo diretamente com as


análises de Usarski, Deyve Redyson (2016) ressalta:

O perigo de tal constatação é a forma numérica que o senso


estabilizou, pois, muito provavelmente estes números não
demonstram a realidade do budismo no Brasil. Se de fato
somente determinado número se declarou budista não se
está levando em consideração a quantidade de budistas, ou
praticantes e simpatizantes budistas, que não responderam
ao senso ou que omitiram suas tendências entre 1991 e 2000.
Esta realidade parece ter mudado com o senso de 2010 onde
pode ser visualizado um crescimento do budismo no Brasil.
Notadamente deve-se ter novo cuidado com essa metrifica-
ção das religiões no Brasil, levando em consideração que seu
aumento ou diminuição, muito provavelmente, não representa
a face dessa religião no Brasil (REDYSON, 2016, p. 227).

Embora o livro de Redyson tenha formulações problemáticas7,


essa crítica constitui ponto importante para pensar novos caminhos de
análise do budismo, pois ressalta a divergência entre prática e necessida-
de de declaração religiosa.
Em segundo lugar, são feitos complementos críticos que eviden-
ciam a formação de um budismo brasileiro. Nas palavras de Shoji (2002):

Em contraposição ao Budismo nos EUA e Europa e ao Budis-


mo Global, proposto por Martin Baumann, quero mostrar que
existe um Budismo no Brasil que é em parte influenciado
pelo Catolicismo e por religiões populares brasileiras, que
geram uma diferente motivação e padrão de prática budista.

7 No livro, grande parte da narrativa é intermediada por trechos de entrevistas com R. M. Gonçalves, ide-
alizando a própria experiência de Gonçalves como expressão do budismo. Isso é perceptível em diversos
trechos. Após destacar “As primeiras interpretações do Budismo feito por brasileiros” (2016, p. 52), Redyson
argumenta: “[...] todas estas publicações [...] tiveram uma grande apreensão no Brasil. Esta apreensão circunda
[...] um budismo mais intelectualizado, isto é, um amplo conhecimento da doutrina budista e de sua filosofia
a prática ainda não acontecia da forma que deveria ser. É exatamente por isso que configuramos os nomes
de Murillo Nunes de Azevedo e Ricardo Mário Gonçalves como um elemento a parte do momento inicial de
divulgação do budismo através de livros, que de certa forma traziam uma realidade mais verdadeira do bu-
dismo, muitos desses livros são publicados até hoje, pois o que se tinha eram obras que ora apresentavam
uma imagem positiva do budismo aos brasileiros e ora deturpava ideias e noções fundamentais da essência
do budismo” (REDYSON, 2016, p. 67, 68). É como se apenas Azevedo ou Gonçalves fossem os únicos a
praticarem a essência ou verdadeiro budismo. Uma análise sobre as práticas desses intelectuais revela que
eles também dialogavam com os autores mencionados por Redyson.

342
Diversidade Religiosa & História

Em complemento crítico ao modelo de Frank Usarski, penso


também como diferenciação determinante a existência de
um Budismo mais popular e próximo de influências brasi-
leiras, mais independente de aspectos globalizados, e que
apresenta uma diferente recepção das idéias (sic) budistas
(SHOJI, 2002, p. 92-93).

Ao complexificar a situação do budismo no Brasil, Shoji abre ca-


minhos pouco percorridos ressaltando as relações entre budismos e as
práticas presentes no Brasil. De qualquer forma, Usarski influencia duas
grandes tendências entre os historiadores: estudar o budismo étnico em
crise ou o budismo intelectual difundido entre a classe média-alta. O livro
O Budismo no Brasil (USARSKI, 2002a) é um exemplo significativo do enfo-
que no budismo japonês: dos onze capítulos, dois versam sobre questões
teóricas e gerais da religião, sete tratam do budismo japonês, um sobre
budismo chinês e um sobre budismo tibetano. Essas escolhas não estão
relacionadas apenas ao impacto dessa crença no Brasil, mas também no
tocante às ligações dos autores com esse tipo de budismo. Por exemplo,
dentro dos sete capítulos sobre o budismo japonês, é possível notar um
destaque às práticas do budismo de Terra Pura8, não apenas devido à
grande quantidade de imigrantes japoneses que praticaram essa escola
no Brasil, mas também porque os autores, como R. M. Gonçalves, pratica-
vam tal vertente.
A atuação budista de Gonçalves é sintomática de como os autores
possuem visões acadêmicas derivadas das suas práticas religiosas par-
ticulares. Isso não significa que a devoção impeça a produção científica,
mas que, “Da mesma forma que o discurso, hoje, não pode ser desligado
de sua produção, tampouco o pode ser a práxis política, econômica ou
religiosa, que muda as sociedades e que, num momento dado, torna pos-
sível tal ou qual tipo de compreensão científica” (CERTEAU, 1982, p. 41). No
caso do budismo, o olhar religioso esteve entrelaçado ao desenvolvimento
acadêmico. O próprio Gonçalves ressalta que

8 As escolas de Terra Pura são voltadas para a devoção do buda Amida, que permitiria, por meio da recitação
de seu nome, o renascimento dos praticantes na Terra Pura. Diferentemente do zen, as escolas em questão
não possuem ênfase sobre a meditação, sendo voltadas para as práticas recitativas (GONÇALVES, 1971).

343
Diversidade Religiosa & História

Discorrer sobre o budismo no Brasil significa, para mim, tra-


balhar com uma história da qual sou ao mesmo tempo um
dos estudiosos e um dos personagens. Com efeito, tendo
começado a me interessar pela tradição budista ainda na
adolescência, em fins dos anos 50, muito antes dessa doutrina
começar a chamar a atenção do público brasileiro, sou hoje
reconhecido nos meios budistas nacionais como um dos pio-
neiros do processo de introdução da mesma em nosso país
(GONÇALVES, 2005, p. 199).

O caso de Gonçalves é um exemplo entre tantos outros da relação


entre pesquisa acadêmica e prática religiosa. Essa relação, em alguns
casos, dificultou o olhar dos autores para com as mudanças no campo do
budismo. Destacando a crise geracional do budismo, marcado pelo enve-
lhecimento e falecimento dos imigrantes japoneses de primeira geração,
autores como Usarski e Gonçalves transformaram as dificuldades parti-
culares das escolas étnicas (principalmente a Terra Pura) em desafios do
budismo japonês como um todo. Dessa forma, generalizar a existência
de uma crise do budismo é um olhar relativo à experiência pessoal com
uma vertente específica e não a todos os locais de prática da religião no
país. A distinção é fundamental para observar os desenvolvimentos parti-
culares das crenças.
Primeiramente, é importante delinear no que consiste a sugerida
crise. Com a progressiva morte dos imigrantes japoneses de primeira
geração, considerando que a imigração iniciou formalmente em 1908, tem
havido um esvaziamento dos templos budistas em relação a esse público.
Além disso, há um declínio, no decorrer do tempo, da continuidade da
língua japonesa entre descendentes no Brasil, o que é sugerido, inclusive,
pelos trabalhos realizados já nos anos 1960 por Teiiti Suzuki (1969). Em
linhas gerais, a segunda geração mantém as características de falantes da
língua, embora nem sempre isso seja acompanhado pela leitura e escrita.
A terceira e as demais gerações, por sua vez, têm perdido o contato com
o japonês. Em termos de budismo nipônico, a morte dos imigrantes de
primeira geração e a falta de condições para a continuidade linguística
tem gerado a crise em questão, tendo em vista a preponderância de
japoneses e descendentes nos ritos realizados nos templos, a utilização

344
Diversidade Religiosa & História

do japonês nessas cerimônias e o próprio perfil dos monges, em certos


casos japoneses que não dominam ou possuem pouca familiaridade com
a língua portuguesa (ANDRÉ, 2011).
Contudo, as implicações dessa crise não podem ser generalizadas
para todas as escolas. No caso da Terra Pura, uma das vertentes mais po-
pulares no Japão desde o século XIII, a crise é bastante emblemática, ten-
do em vista as observações de Gonçalves, considerando três elementos
importantes: a predominância de público nipo-brasileiro, a manutenção da
língua japonesa nos rituais e a ênfase em corpo monástico nipônico e com
pouca ou nenhuma familiaridade com o português (ANDRÉ, 2021; ANDRÉ;
LUIZ, 2018). Porém, outros ramos do budismo têm reagido de formas di-
ferenciadas. Derivada das concepções e práticas do Nichiren, a Honmon
Butsuryūshū é a escola institucionalmente mais antiga do Brasil, cujo
templo é datado dos anos 1930, tendo à frente o monge Genjū Ibaragui
(NAKAMAKI, 2002)9. Desde a primeira metade do século XX, entretanto,
a Honmon tem constituído corpo monástico local, de forma que diversos
monges são brasileiros sem ascendência japonesa. Além disso, os rituais e
os textos utilizados têm sido traduzidos para o português. Isso se reflete no
público que frequenta os templos, envolvendo também não descenden-
tes, derivado dos projetos de expansão organizados pela própria Honmon
no país (ANDRÉ, 2021).
Além da Terra Pura e da Honmon Butsuryūshū, é possível destacar,
também, templos referentes à escola Shingon presentes no Estado de São
Paulo10. Alguns deles passaram a apropriar-se de elementos das religiões
mediúnicas, como o espiritismo e a umbanda, realizando práticas como
sessões de passe e desobsessão espiritual. Não se trata de um hibridis-
mo espontâneo, mas, antes, estratégias utilizadas por monges e outros

9 Assim como as escolas de Terra Pura, a vertente Nichiren foi fundada no século XIII por monge homô-
nimo, Nichiren. Assim como aquelas, possui base recitativa, voltada para a reverência do chamado Sutra
do Lótus, que postula a possibilidade de iluminação por todos os seres (GONÇALVES, 1971). A Honmon
Butsuryūshū, por sua vez, surgiu no Japão da segunda metade do século XIX como derivação da vertente
Nichiren, possuindo ênfase sobre a possibilidade de resolução de problemas de caráter mais imediato por
meio da recitação de sutras (ELIAS, 2016).
10 A escola Shingon foi fundada no século IX pelo monge Kūkai, tendo como fundamento práticas medi-
tativas de caráter extático, semelhantemente ao budismo tibetano.

345
Diversidade Religiosa & História

sujeitos à frente dos templos com o objetivo de atrair diferentes públicos,


cooptando aspectos das religiões e religiosidades popularmente dissemi-
nadas no Brasil (SHOJI, 2003).
É importante também citar o caso do Zen budismo. As práticas dos
templos Zen são, geralmente, divididas em duas modalidades: os rituais
mortuários e as sessões de meditação. No caso das primeiras, que com-
partilham questões semelhantes às outras escolas, o público é voltado,
sobretudo, para japoneses e descendentes. As sessões de meditação cos-
tumam atrair público não descendente, costumeiramente voltadas para
determinado perfil social de sujeitos de classe média-alta e com elevado
grau de escolarização (curso superior). Dentre as razões que levam esses
indivíduos a procurarem o Zen, pode-se ressaltar a busca por formas di-
ferenciadas de espiritualidade, atreladas ao afã de combater problemas
como stress, depressão e síndrome do pânico (ROCHA, 2002).
As sessões de meditação são percebidas e utilizadas pelos respon-
sáveis à frente dos templos Zen no Brasil como forma de difundir a religião
entre não descendentes, como fica claro por intermédio da experiência
pessoal do professor, pesquisador e monge budista E. B. de Albuquerque
(2002) no Templo Busshinji, na grande São Paulo, desde os anos 1960.
Essa tendência, que constitui uma das soluções encetadas pelo Zen para
responder à crise, acentuou-se nos últimos anos, alcançando o universo
virtual. A cybersangha (ou cyber comunidade) (ROCHA, 2002) difundiu-se
por intermédio de canais no Youtube, como o MOVA. Destaca-se, nesse
sentido, o caso de Cláudia Coen, monja que, não possuindo descendência
nipônica, tornou-se uma das figuras mais populares do cenário budista
brasileiro. Seus vídeos são voltados para questões como relações inter-
pessoais, medo, stress, ansiedade e depressão, que constituem algumas
das balizas, como sugerido, para a busca pela meditação pelo público não
descendente. Nesse sentido, talvez o Zen tenha sido uma das escolas que
mais alcançou capilarização no estrato religioso do Brasil, respondendo à
crise de formas diferenciadas (ANDRÉ, 2019).
Como visto, analisando os movimentos peculiares das diversas
escolas do budismo, percebemos que, a partir de movimentos próprios,
elas encontraram meios de sobrevivência para além da comunidade

346
Diversidade Religiosa & História

étnica no Brasil e oferecem soluções diferentes à crise. Embora diversos


autores tenham demonstrado isso no próprio O Budismo no Brasil (USAR-
SKI, 2002a), destacando-se o texto de Rocha (2002), a interpretação de
que o budismo japonês passa por uma crise geral se tornou parte central
nos debates em trabalhos posteriores. A constatação da crise dentro de
templos específicos é parte importante do estudo da religião no Brasil.
Entretanto, as pesquisas acadêmicas devem ir além mostrando como a
crise é enfrentada pelos vários templos. Malgrado os dados dos sensos
sejam indícios da situação do budismo, não são suficientes para observar
a difusão das ideias, práticas e conceitos budistas que não exigem a au-
todeclaração como praticante de determinada religião, como é o caso do
espectador dos vídeos da Monja Coen.

Tradição e modernidade em debate: como pensar a


historicidade do budismo?

Outra questão marcante na bibliografia especializada se refere a


como abordar as transformações pelas quais a religião passou no Brasil,
isso ocorre, principalmente pelos embates entre as práticas japonesas
(vista como tradicionais) e as ocidentais ou brasileiras (definidas como
modernas). Cristina Rocha (2016) sugere ir além desses modelos, proble-
matizando também as formas que os convertidos foram abordados em
estudos anteriores. Argumenta que as definições de budismo tradicio-
nalista, voltado para os ritos e atos devocionais, e budismo modernista,
que enfatiza os elementos racionais, escrituras e meditação, devem ser
complexificadas tendo em vista as relações entre esses grupos:

Resolver a questão de como classificar quem é budista (“con-


vertido” ou “étnico”), como cada vertente chegou ao Ocidente
(importação, exportação ou bagagem) e o tipo de budismo
praticado (tradicionalista ou modernista) é essencial para [...]
entender as características atuais do budismo no Ocidente.
No entanto, eu sustento que é preciso também olhar para a
relação dialógica entre esses grupos, [...] para detectar empi-
ricamente o que está acontecendo no dia a dia. Continuidade

347
Diversidade Religiosa & História

e inovação através da hibridação e a crioulização, assim como


eventuais tendências futuras, só podem ser identificadas
nesse espaço de encontro, diálogo e negociação (ROCHA,
2016, p. 242).

Há diversos problemas com as “tradições” ao se pensar o budismo,


pois parecem remeter à religião como algo estático, isolado e unificado
(HOBSBAWM, 2015). Em certo sentido, essas divisões elaboradas são ten-
tativas de buscar definir um budismo ocidental que diferiria do budismo
asiático ou étnico japonês. Chamar uma prática de étnica é estabelecer re-
lações desiguais de poder, como se o budismo étnico não fosse autêntico
devido aos acréscimos culturais. Esse movimento tem profundas relações
com as próprias transformações pelas quais o budismo, principalmente
o Zen, passou no Japão a partir do século XIX, quando intelectuais Zen
budistas buscaram uma visão internacional da religião. Fascinados pela
cultura ocidental, apropriaram-se de conceitos chaves do Ocidente para
desafiar a própria hegemonia do Ocidente:

[...] Suzuki [...] e os filósofos da escola de Quioto construíram o


zen budismo11, não como uma religião com seus rituais e doutri-
na, mas como uma experiência espiritual individual que levaria
a “um modo [...] empírico, racional e científico de inquérito sobre
a natureza das coisas”. Ao identificar esta experiência espiritual
com sua “essência”, “atemporal”, “pura” e “invariável” do zen, e
diferenciando-o de suas expressões culturais (consideradas
acréscimos degenerados e “impuros”), estes defensores do zen
foram capazes de construí-lo como transcultural e universal.
Assim, o zen não seria parte de uma [...] religião, filosofia ou me-
tafísica, mas [...] “o espírito de toda religião e filosofia”. Tendo em
conta que [...] Suzuki e outros intelectuais que popularizaram
o zen no Ocidente não faziam parte de instituições zen e não
haviam recebido transmissão formal [...], não é de estranhar
que defendessem o zen “autêntico” como uma experiência
individual, leiga, que não exige uma associação com a tradição
institucional. [...] uma das principais características do budismo
no Ocidente é um híbrido das práticas leigas e monásticas. A [...]
maioria dos praticantes ocidentais não é celibatária e trabalha

11 Aos 17 anos Suzuki conheceu Nishida Kitarō, tornaram-se amigos e trocaram ideias ao longo de suas
vidas. As influências sobre o pensamento de Kitarō podem ser notadas no livro de 1911, Zen no kenkyū, no
qual Kitarō lançou as bases do movimento que viria se chamar Escola de Quioto (SHARF, 1993).

348
Diversidade Religiosa & História

enquanto pratica meditação e estuda textos sagrados (ROCHA,


2014, p. 66).

A popularidade das ideias de Daisetz Teitaro Suzuki não se res-


tringiu ao universo religioso. Diversos pesquisadores elaboraram seus
trabalhos acadêmicos com base em suas formulações, mas sem realizar
crítica adequada dos interesses que perpassam a construção do Zen
budismo para o Ocidente. Devido à tradução já na década de 1960 do
livro Introdução ao zen budismo realizada por Murilo Nunes de Azevedo,
entre os praticantes não descendentes, a visão suzukiana é apropriada,
enfraquecendo e deslegitimando a prática asiática e reforçando a ideia
segundo a qual o budismo poderia se desenvolver no Brasil sem os acrés-
cimos culturais que existiram no Japão, principalmente o culto aos ances-
trais. O conflito de visões ganha corpo nos templos budistas, levando à
fragmentação e disputas de poder. Isso levou ao afastamento de monges
no templo Busshinji em São Paulo: o terceiro abade, Moriyama Roshi, foi
“desposto do templo e de suas funções na Sôtôshû” (ROCHA, 2016, p. 71)
devido à pressão exercida pela congregação composta por japoneses.
Influenciado pela visão de Suzuki, Moriyama dava preferência à realização
da meditação junto aos brasileiros. Em entrevista concedida a Rocha em
1999, o religioso revelou que tem esperanças do Zen budismo ser criado
no estrangeiro (principalmente no Brasil) de uma “maneira mais pura”
(ROCHA, 2016, p. 71), comparando ao caso japonês, em que os monges
estariam mais interessados “no dinheiro” (ROCHA, 2016, p. 71).
No âmbito acadêmico, essas tensões também surgem: versando
sobre a construção de um novo budismo, é possível perceber elogios para
a “fidelidade” do budismo ocidental aos ensinamentos do Buda (ROCHA,
2016). Um exemplo prático pode ser percebido na tese de Doutorado de
Ricardo Strauch Aveline (2011)12, na qual discute o fenômeno do budismo
engajado. Após descrever os desafios que o budismo tem enfrentado no
Oriente desde o século XX, principalmente ligado às perseguições nacio-

12 A tese de Aveline é outro exemplo da proximidade entre a produção acadêmica e o budismo. O autor é
filho de Alfredo Aveline, mais conhecido como Lama Padma Samten, monge ligado ao budismo tibetano.
Suas pesquisas de campo entre 2007 e 2010 foram realizadas na comunidade fundada por seu pai em
Viamão, Rio Grande do Sul (AVELINE, 2011, p. 126).

349
Diversidade Religiosa & História

nalistas no Japão, China, Tibete, entre outros, o autor afirma: “Neste ponto,
é importante salientar que o budismo é tido como uma religião pacifista,
uma religião de ‘não-violência’ (sic). O próprio Buda teria dito que ‘não há
maior felicidade do que a paz’” (AVELINE, 2011, p. 38, grifo nosso). E continua:

Aplicando esses conhecimentos à situação do budismo no


Oriente é possível compreender o motivo pelo qual o budismo
desloca-se para o Ocidente. O budismo se torna, em parte,
uma religião nômade no momento em que uma situação de
violência se coloca diante dos seus praticantes e mestres,
sendo que alguns terminam por migrar para outros países
(AVELINE, 2011, p. 38).

Devido à sua proximidade com o budismo tibetano, o autor ten-


de a generalizar os vários budismos. Sugerimos que, ao ressaltar a não
violência, Aveline realiza uma defesa da própria religião, ignorando as vio-
lências cometidas por budistas13. O que está em questão em afirmações
do gênero é a tentativa de delimitar o que é e o que não é budismo. Isso
constitui uma fetichização e forma de deslegitimar a história do budismo
em suas contradições, negociações de poder e violências. O discurso liga
o budismo aos valores do Iluminismo, da modernidade e da razão. Nas
palavras de Rocha (2016):

[...] em um estranho paradoxo, o verniz da cultura americana/


europeia funciona como uma camada de pátina que confere
autenticidade à prática budista. O que de outra forma seria re-
conhecida simplesmente como a mais recente adição e cria-
ção a uma antiga prática é [...] imaginado ao contrário. Como
os arqueólogos que escavam buscando o núcleo “essencial”
que traz o verdadeiro e autêntico budismo à luz, os budistas
brasileiros enaltecem o Zen americano/europeu como se
fosse o verdadeiro caminho. Tão poderosa é essa ideia que
eles fecham os olhos para a extensão do budismo “tradicional”
em suas práticas. Sem dúvida, os fluxos globais de ideias que

13 Usarski (2006) argumenta que existe uma longa tradição que qualifica o budismo como racional,
tolerante e pacífico. Visando confrontar essa ideia, o autor demonstra alguns casos de violências como o
engajamento militar do mosteiro Shaolin, as guerras entre autoridades budistas na Birmânia e outros países
asiáticos, o proselitismo violento do budismo na Mongólia, as atitudes nacionalistas do Zen budismo no
Japão durante a Segunda Guerra Mundial (USARSKI, 2006, p. 12). Além disso, podemos citar o shakubuku
(quebrar e subjugar) como forma agressiva de conversão presente na Soka Gakkai (ROCHA, 2016, p. 222).

350
Diversidade Religiosa & História

irradiam de centro metropolitanos têm um fascínio encantado


ao sul do Equador (ROCHA, 2016, p. 251).

Ligadas a essas visões, percebemos que certas vertentes do


budismo, principalmente a Soka Gakkai e a Honmon Butsuryūshū, aca-
bam sendo interpretadas de formas diferentes nos estudos acadêmicos
(PEREIRA, 2008; NAKAMAKI, 2002; ELIAS, 2016)14. A análise de ambas as
vertentes é mais aproximada das questões inerentes às chamadas Shin
Shūkyō (Novas Religiões Japonesas), movimentos que passaram a emergir
no cenário japonês na transição dos séculos XIX para o XX. No bojo de
emergência dessas novas manifestações, surgiram diferentes interpreta-
ções do budismo, como é o caso da Honmon e da Soka Gakkai, entre ou-
tras vertentes, que se desdobraram majoritariamente da Escola Nichiren
(DEAL; RUPPERT, 2015).
Apesar dos problemas comuns enfrentados pelas religiões
japonesas no Brasil, tanto a Honmon Butsuryūshū quanto a Soka Gakkai
parecem ser, como sugerido, descoladas academicamente do budismo.
Isso acontece devido aos próprios desenvolvimentos históricos dessas
escolas. Em contexto japonês, Nichiren foi um crítico das escolas de Ter-
ra Pura e Zen, exigindo dos fiéis a devoção exclusiva ao Sutra do Lótus
(PEREIRA, 2002). Mesmo em termos doutrinários, o budismo Nichiren
atribui mais ênfase ao seu fundador, Nichiren, como o “Buda Original” do
que o Buda histórico. Durante o período do ultranacionalismo nipônico
na primeira metade do século XX, quando a maioria das escolas budistas
havia se alinhado ideologicamente ao Estado, um dos fundadores da Soka
Gakkai, Tsunesaburō Makiguchi, foi preso por rejeitar a demanda gover-
namental de fusão de todos os grupos derivados do Nichiren. Makiguchi
se negava, também, a venerar os talismãs produzidos no Santuário de Ise,
um dos principais locais de devoção xintoísta e pilar ideológico do ultra-
nacionalismo, uma vez que o imperador era considerando uma divindade
(DEAL; RUPPERT, 2015). No pós-guerra, paralelamente à crise enfrentada

14 Criada originalmente no Japão dos anos 1930, a Soka Gakkai foi concebida, a princípio, como desdobra-
mento da vertente Nichiren. Assim como outros grupos budistas que emergiram na transição dos séculos
XIX para o XX, como é o caso da própria Honmon Butsuryūshū, a Soka Gakkai é voltada, sobretudo, para a
resolução de problemas imediatos (DEAL; RUPPERT, 2015).

351
Diversidade Religiosa & História

pelos templos estabelecidos, cujo perfil dos adeptos era voltado para a
população mais velha que residia nas áreas rurais, concentrando-se em
práticas mortuárias, a Soka Gakkai apresentou crescimento expressivo
entre outros grupos demográficos. A religião passou a atuar nas cidades,
desenvolvendo reflexões em consonância com os problemas sociais do
período, atrelada ao relativo sucesso de seu partido político nos anos 1950,
o Kōmeitō (KIYOTA, 1969). Isso levou a certa hostilidade no tocante à Soka
Gakkai pelos grupos budistas anteriormente estabelecidos.
No Brasil, a Soka Gakkai nunca fez parte da Federação das Seitas
Budistas no Brasil (Butsuren). Segundo Ronan Alves Pereira (2002):

Fundada em 1958, a Butsuren conta apenas com seis grupos


budistas japoneses, entre os vários existentes aqui: Nishi
Honganji, Higashi Honganji, Jôdoshû, Sôtô Zenshû, Shingon
e Nichirenshû. A [...] Honmon-butsuryû-shû participou por um
curto período, retirando-se depois da Federação (PEREIRA,
2002, p. 283).

Diferentemente das outras escolas, a Soka Gakkai consegue am-


plo espaço na sociedade brasileira, o que se deve ao investimento em
estratégias de proselitismo, permitindo que, em 2000, 90% de seus mem-
bros fossem não descendentes. A maioria era composta por membros da
“classe média-baixa urbana” com um terço dos membros sendo jovens
(PEREIRA, 2002, p. 272).
O quadro é muito diferente da crise geracional vivida pelos tem-
plos de Terra Pura. O budismo da Butsuren

[...] ficou [...] restrito à comunidade nipo-brasileira e, nos casos


em que houve abertura, acabou se voltando para grupos
específicos de pessoas, com destaque para intelectuais,
estudantes e profissionais liberais. Em outros termos, [...] tais
escolas budistas não conseguiram atingir as camadas mais
populares. Por sua vez, a Sôka Gakkai propõe-se como um
movimento de massa (PEREIRA, 2002, p. 283-284).

Também no Brasil, novos budismos têm passado por certas rejei-


ções no interior dos grupos budistas, o que é reproduzido academicamente.

352
Diversidade Religiosa & História

O artigo de R. M. Gonçalves (2005), As flores do dharma desabrocham sob o


Cruzeiro do Sul: aspectos dos vários “budismos” no Brasil, é sintomático nesse
sentido. Ao citar a existência de influências teosóficas, ocultistas e new age
sobre o budismo no Ocidente, o autor considera essas “versões do budismo
deformadas” (GONÇALVES, 2005, p. 203). Além disso, denominadas como
“pseudomorfoses”15 japonesas, ao abordar os movimentos da Reiyukai, Ris-
shō Kōsei Kai e Soka Gakai16, Gonçalves (2005, p. 203) segue os especialistas
japoneses, pois “[…] não são reconhecidas como tais pelas correntes budistas
tradicionais nipônicas […]”. Sugerimos que justificar os limites para a análise
utilizando tais critérios é academicamente problemático, não cabendo ao
historiador uma abordagem essencialista e confessional.
Defendemos que as diferenças dos vários budismos no Brasil não
permitem uma generalização da crise. Academicamente falando, é neces-
sário explicitar as particularidades do budismo em discussão, destacando
as mudanças e as relações em termos de tempo e espaço.

Takashi Maeyama, os anos 1950 e a institucionalização


das práticas

Outro aspecto presente na pesquisa acadêmica está relacionado


à ênfase na institucionalização das práticas. Como sugerido, em certos
casos, os autores têm ligações com as escolas budistas que analisam,
privilegiando o processo de estabelecimento das missões japonesas no
Brasil. Embora a imigração japonesa tenha começado em 1908, as missões
oficiais das escolas, em geral, ganharam forma a partir dos anos 1950,
quando foram enviados ao Brasil monges com o intuito de formar templos
e prestar os serviços religiosos (ROCHA, 2016).
Os anos 1950 constituem momento em que as várias escolas
começaram a estabelecer seus templos, tornando-se lugar comum
afirmar que a conjuntura marca o início da prática no Brasil. A afirmação

15 Termo usado na fisiologia para se referir a um aumento anômalo de uma parte normal.
16 Os três grupos em questão foram concebidos, originalmente, como derivados da vertente Nichiren e
emergiram no contexto histórico de passagem dos séculos XIX para o XX (DEAL; RUPPERT, 2015).

353
Diversidade Religiosa & História

aparece nos trabalhos de Rocha (2016, p. 51), que considera o budismo


não “muito praticado”, mesmo entre japoneses no Brasil antes da Segunda
Guerra Mundial. A tese ganhou força com as considerações do antropó-
logo japonês Takashi Maeyama (1967). Conforme André (2011) argumenta,
embora Maeyama tenha mostrado a existência de práticas budistas antes
da formação dos templos, a produção acadêmica, em geral, atribui pouca
importância para o estudo de práticas não institucionalizadas.
Trata-se de um problema significativo na medida em que marca
um direcionamento nos estudos sobre o budismo. No livro O Budismo no
Brasil (USARSKI, 2002a), a tendência pode ser verificada pelo espaço dedi-
cado nos diversos capítulos às análises dos templos e monastérios. Como
Certeau (1982, p. 43) aponta, “A marca das compartimentações sócio-i-
deológicas (sic) é [...] visível na historiografia religiosa francesa”. O mesmo
pode ser dito em relação à produção sobre o budismo, pois a ênfase sobre
os espaços institucionais possui conexão com os lugares que as escolas
ocuparam na sociedade brasileira. Isso é perceptível pelas diversas repor-
tagens na mídia nas décadas de 1990 e 2000, que alardeavam o boom
dos budismos Brasil (USARSKI, 2008), o que potencialmente instigou as
produções sobre os templos.
Entretanto, como demostrado por André (2011), a circulação de
concepções e práticas budistas transcendeu os canais institucionais,
estando presente também nas residências e cemitérios. Se, conforme
sugerimos, os dados estatísticos não são suficientes para compreender
a complexidade do fenômeno budista, trabalhos que lidem com os cami-
nhos não institucionais podem apontar de que formas os budismos foram
representados, percebidos e praticados.
Dentre as práticas não institucionais, é possível apontar aquelas
realizadas pelos bōzu gawari (substitutos de monges). Antes da vinda de
monges japoneses para o Brasil ou de ordenações nacionais, os substi-
tutos de monges, sem formação monástica, foram os responsáveis pelo
desenvolvimento dos ritos mortuários. Tais indivíduos atuavam como
voluntários e usavam seus conhecimentos prévios para suprir a ausência
de especialistas religiosos no país (MAEYAMA, 1967).

354
Diversidade Religiosa & História

A função de tais monges não é menos importante considerando


seu caráter leigo, na medida em que sua atuação formou as balizas para a
estruturação do budismo em diferentes regiões brasileiras (ANDRÉ, 2011).
Grupos de oração foram constituídos em torno de suas figuras e de outros
membros das comunidades japonesas, a ponto de tornarem possível a
estruturação dos templos institucionalizados a partir dos anos 1950. Uma
característica dos templos budistas em âmbito brasileiro é a importância
da comunidade em sua manutenção, atuando, por exemplo, na presidência
local, o que provavelmente reflete a herança do período pré-institucional,
marcado pela prática leiga.
Outras práticas não institucionais dizem respeito ao culto aos an-
cestrais realizados nos oratórios domésticos. Embora, em geral, esses ar-
tefatos não tenham sido trazidos para o Brasil pelos imigrantes japoneses,
com as mortes que ocorriam no país e com a inviabilização do projeto de
retorno para o Japão em poucos anos, os japoneses passaram a constituir,
a princípio, oratórios improvisados. Posteriormente, houve a confecção de
butsudan por artesãos locais e, também, por empresas especializadas que
permanecem até a atualidade (ANDRÉ, 2016). Além disso, houve também
transformações no culto aos ancestrais no cenário brasileiro, destacan-
do-se seu processo de cemiterização, com o deslocamento tanto de
oratórios e seus apetrechos para diferentes necrópoles do país, como o
Cemitério de Assaí, no Paraná (ANDRÉ, 2011).
As práticas não institucionais costumam aparecer de forma pontual
na historiografia sobre a imigração japonesa ou acerca das religiões nipô-
nicas no Brasil (MAEYAMA, 1967). Contudo, sua análise pode abrir veredas
importantes para as investigações acadêmicas, transcendendo a religião em
esfera organizada e alcançando a dimensão das práticas, que nem sempre
aparecem nos censos ou a partir de categorias como a noção de conversão.

Considerações Finais

Como visto no decorrer do capítulo, pretendeu-se aqui remapear


a produção historiográfica sobre o budismo no Brasil a partir de diferentes
perspectivas, atentando para linhas gerais, problemas e objetos lacunares

355
Diversidade Religiosa & História

nessa produção acadêmica. Primeiramente, as investigações parecem ter


sido desenvolvidas a partir das balizas propostas por Usarski no livro O
Budismo no Brasil (USARSKI, 2002a) em torno dos conceitos de budismo
de imigração e de conversão. Não obstante a importância inegável das
contribuições de Usarski, certos pontos podem ser revistos. Dentre eles,
é possível destacar as limitações do mapeamento da religião em território
brasileiro considerando dados estatísticos, que costumam deixar de lado
aqueles que não respondem aos censos ou que não se declararam conver-
tidos. Por exemplo, indivíduos que se apropriam de certas práticas, como
a meditação zen budista, mas não se declaram budistas, o que é comum
considerando o caráter pick-and-mix sugerido por Rocha (2002), acabam
sendo ignorados pelos números. Além disso, corolário dessa questão,
a própria noção de conversão é problemática considerando as práticas
híbridas que articulam o budismo a outras religiões, como o catolicismo e
aquelas de matrizes mediúnicas (SHOJI, 2003).
Outro ponto que parece caracterizar parte dessa historiografia diz
respeito ao lugar de produção dos pesquisadores, que às vezes refletem
também como religiosos, como é o caso de Gonçalves, um dos pilares
dessa produção acadêmica. Nesse sentido, certos postulados de crise do
budismo, afirmados de maneira relativamente generalizada, são passíveis
de questionamento. O cenário referente às escolas de Terra Pura, forte-
mente atreladas a características étnicas, não é o mesmo, por exemplo, da
Honmon Butsuryūshū, da Soka Gakkai e do Shingon, que respondem ao
problema com estratégias de propagação entre o público não descenden-
te. O Zen budismo, por sua vez, goza de situação peculiar, dividido entre
ritos mortuários para nipo-descendentes e práticas de meditação para não
descendentes, bastante popularizadas pela cybersangha (ROCHA, 2002).
Questão que parece permear também essa historiografia diz
respeito às oposições binárias entre as formas de budismo, cuja relação
é caracterizada não apenas em termos de diferença, mas qualitativa e
hierarquicamente. A primeira seria a dicotomia entre o Zen “puro” e o Zen
matizado pelas concepções e práticas mortuárias japonesas. Por outro
lado, haveria outra oposição contrapondo as escolas tradicionais do budis-
mo àquelas que emergiram no bojo das Novas Religiões Japonesas, como

356
Diversidade Religiosa & História

a Honmon Butsuryūshū e a Soka Gakkai, compreendidas pejorativamente


tanto pelos adeptos quanto, eventualmente, pelos próprios pesquisadores.
Compreende-se, aqui, a religião como fenômeno dinâmico que implica,
portanto, mudanças no decorrer da história. As transformações não devem
ser vistas como corruptelas de um repertório supostamente original, mas
como sintomas de sua flexibilidade.
Por fim, entre outros apontamentos, observou-se no decorrer
deste capítulo que a maioria dos pesquisadores se deteve na dimensão
institucional do budismo, considerando a emergência de templos formali-
zados a partir dos anos 1950, conforme as proposições de Maeyama (1967).
No entanto, elementos não institucionais da religião estiveram presentes
no Brasil desde a chegada dos primeiros imigrantes japoneses em 1908,
tendo em vista a atividade de sujeitos como os substitutos de monge, que
criaram condições para a estruturação dos próprios templos, e posterior-
mente a realização do culto aos ancestrais tanto em oratórios improvi-
sados quanto nos cemitérios brasileiros. Esperamos que o mapeamento
realizado no presente texto possa auxiliar a compreensão da produção
acadêmica sobre o budismo, constituindo, também, potencial baliza para
o desenvolvimento de novas investigações sobre o budismo no Brasil.

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359
ÍNDICE REMISSIVO

ARTIGO 157 121, 122, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 142, 143

BUDISMO 5, 11, 337, 338, 339, 340, 341, 342, 343, 344, 345, 346, 347, 348, 349, 350, 351,
352, 353, 354, 355, 356, 357, 359

CARLINDO DANTAS 10, 187, 189, 190, 191, 194, 195, 196, 198, 202, 204, 205, 206
CATIMBÓ-JUREMA 9, 102, 106, 117
CATOLICISMO 7, 8, 10, 20, 24, 25, 59, 77, 85, 86, 169, 171, 172, 173, 177, 182, 183, 184, 231,
232, 233, 234, 235, 236, 237, 238, 239, 240, 241, 242, 243, 244, 245, 247, 248, 250,
254, 270, 356
CEMITÉRIO 10, 187, 188, 190, 219, 355
CESARE LOMBROSO 9, 146, 147, 148, 149, 152, 153, 157, 159, 162, 163, 164, 165

DANTE ALIGHIERI 11, 316, 317, 318, 322, 324, 326, 334, 336

EDUARDO COUTINHO 9, 166, 167, 171, 176, 182, 185, 186


ESPIRITISMO 9, 59, 76, 77, 121, 122, 130, 131, 133, 134, 135, 136, 138, 139, 140, 142, 143,
144, 145, 151, 152, 153, 163, 164, 165, 169, 172, 182, 184, 339, 345
EXU 8, 9, 23, 29, 80, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100,
101, 176

IGREJA. D. JOSÉ AFONSO 231


INDÍGENA 9, 66, 107, 121, 138, 139, 140, 142, 144, 145, 240, 242

JOÃO BAPTISTA PEREIRA 121, 122, 124, 126, 127, 133, 137, 143

360
Diversidade Religiosa & História

JOÃO DO RIO 8, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35,
36, 42, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53

LEI MARIA DA PENHA 11

MEDIUNIDADE 9, 117, 139, 144, 147, 149, 152, 153, 154, 160, 163, 183, 184, 185
MILAGREIRO 10, 187, 188, 227
MITOLOGIA 54, 101, 316

NINA RODRIGUES 8, 24, 34, 35, 36, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 49, 51, 52, 53, 54, 165

PÂNICO SATÂNICO 10, 11, 271, 274, 275, 276, 277, 280, 283, 284, 285, 286, 288, 289, 291
PEREGRINO 10, 177, 186, 249, 251, 269, 270

RELIGIÃO 5, 6, 7, 9, 11, 17, 18, 20, 23, 24, 27, 28, 29, 30, 33, 47, 48, 51, 52, 56, 57, 58, 59, 60,
61, 62, 63, 74, 75, 76, 80, 91, 92, 101, 102, 120, 136, 144, 145, 151, 156, 162, 164,
167, 168, 169, 173, 177, 179, 184, 186, 228, 234, 236, 237, 238, 239, 250, 251, 252,
253, 270, 276, 289, 310, 312, 337, 338, 339, 340, 341, 342, 343, 344, 346, 347, 348,
350, 352, 355, 356, 357, 358
RITO 8, 29, 34, 35, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 46, 48, 49, 50, 52, 53, 78, 104, 160, 259, 333

SATANISMO 10, 16, 48, 271, 272, 274, 276, 279, 280, 281, 282, 284, 285, 286, 287, 289, 290, 291
SERIDÓ 10, 105, 106, 110, 187, 188, 189, 205, 210, 230
SERTÃO 207, 208, 209, 212, 213, 214, 215, 217, 223, 224, 225, 228, 229

UMBANDA 5, 47, 50, 52, 80, 91, 92, 93, 100, 105, 108, 119, 120, 168, 169, 170, 172, 173, 174,
175, 176, 177, 180, 181, 182, 184, 345

361
SOBRE OS ORGANIZADORES

Vanda Fortuna Serafim

É doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (2013).


Professora Adjunta do Departamento de História e do Programa de Pós-
-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá. Coordena-
dora do Grupo de Pesquisa em História das Crenças e das Ideias Religiosas
(HCIR-UEM) e do Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades
(LERR-UEM). Desenvolve e orienta pesquisa sobre crenças e ideias religio-
sas, com foco nas práticas afro-brasileiras.

Daniel Lula Costa

Possui Doutorado em História Cultural pela Universidade Federal de Santa


Catarina (2019) com período de Doutorado Sanduíche na Universitá di Bo-
logna, Mestrado em História pela Universidade Estadual de Maringá (2013)
e Graduação em História pela mesma universidade (2010). Integra os se-
guintes grupos de pesquisa: HCIR-UEM (Grupo de Pesquisa em História das
Crenças e das Ideias Religiosas) e Meridianum-UFSC (Núcleo Interdisciplinar
de Estudos Medievais). Suas pesquisas versam sobre História Antiga e Me-
dieval, História das Religiões, mitologias, Dante Alighieri, inferno, bestiários,
revelação figural e seres híbridos antigos e medievais.

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