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Carmen Célia Barradas Correia Bastos

Fábio Lopes Alves


Tânia Maria Rechia Schroeder
(Orgs.)
Carmen Célia Barradas Correia Bastos
Fábio Lopes Alves
Tânia Maria Rechia Schroeder
Organizadores

PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS
NA CONTEMPORANEIDADE

EDITORA CRV
Curitiba - Brasil
2015
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Editora CRV
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Profª. Drª. Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
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Profª. Drª. Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
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Prof. Dr Elsio José Corá (UFFS).
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Profª. Drª. Sydione Santos (UEPG PR)
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Prof. Dr. Guillermo Arias Beatón (Universidade de La Havana – Cuba)
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Prof. Dr. Joao Adalberto Campato Junior (FAP - SP)
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
P479

Pesquisas fenomenológicas na contemporaneidade / organização Carmen Célia


Barradas Correia Bastos, Fábio Lopes Alves, Tânia Maria Rechia Schroeder. -
1. ed. - Curitiba, PR: CRV, 2015. 
            178 p.

           Inclui bibliografia
           ISBN 978-85-444-0254-2

           1. Educação. 2. Ciências sociais. I. Alves, Fábio Lopes.

14-17256 CDD: 370


  CDU: 37
29/10/2014    29/10/2014    

Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004


2015
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora
CRV
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Tel.: (41) 3039-6418
www.editoracrv.com.br
E-mail: sac@editoracrv.com.br
APRESENTAÇÃO

Léia Teixeira Lacerda


Kátia Cristina Nascimento Figueira
Maria Leda Pinto

A obra Pesquisas Fenomenológicas na Contemporanei-


dade apresenta um conjunto de reflexões e de resultados de
pesquisas desenvolvidas na perspectiva da fenomenologia. Os
autores e coautores dos capítulos apresentam aspectos fundamen-
tais do método fenomenológico, o seu percurso histórico, desde a
sua origem até a atualidade, bem como os principais fundadores
e os estudiosos dessa perspectiva teórica, ressaltando, de modo
especial, a singularidade e a riqueza desta maneira de produzir
conhecimento científico na área de Ciências Humanas.
No Capítulo de abertura da presente obra, o renomado
sociólogo francês Michel Maffesoli sob a tradução de Eduar-
do Portanova Barros, apresenta a Lei dos Irmãos. Neste tex-
to, o autor aborda que – mesmo sendo a experiência da vida
cotidiana tão contundente – é curioso constatar que se recuse,
constantemente, perceber como essa experiência se constitui.
Para o sociólogo, se há uma lei universal regendo o gênero
humano, não é aquela que se vê diante do espelho, mas, antes,
aquela que se reconhece em face do Outro, tendo em vista
que é por meio da alteridade que nos constituímos. Trata-se
de uma dessas banalidades a respeito da qual se teria algum
escrúpulo em lembrar se o conformismo lógico, a opinião in-
telectual, o politicamente correto não nos forçassem a fazê-lo.
Maffesoli salienta que o sonho coletivo e a completude
do ser são as características essenciais de uma “socialidade”.
Isso significa que a convivência não repousa sobre o simples
e o racional Contrato Social, da forma como foi elaborado a
partir do Século XVIII, mas, antes, sobre um Pacto em que
o afetual tem um papel não negligenciável. Dessa maneira,
reforça-se o traço, que pode ser chamado “lei dos irmãos”: re-
gras, rituais, obrigações múltiplas, mas tudo isso é reversível,
interativo e está em constante movimento.
Para Maffesoli, a “socialidade” é uma metáfora etérea
que pode ajudar na compreensão das formas empíricas de in-
terações, de reversibilidades e de ajuda mútua que constituem,
em certos momentos, um elo social enraizado no que é vivido
o mais próximo do dia a dia. Esse texto, sem dúvida, apresenta
um legado para as investigações atuais no campo do cotidia-
no, sobretudo para a compreensão das diferenças entre o Eu e
o Outro nos momentos de encontros, confrontos e desencon-
tros dos sujeitos, na esfera social.
No Capítulo II, Carmen Célia Barradas Correia Bastos,
Fábio Lopes Alves e Tânia Maria Rechia Schroeder nos levam
à reflexão sobre os fundamentos teóricos e metodológicos da
fenomenologia formista, propostos por Michel Maffesoli. De
acordo com os autores, abordar esses pressupostos implica em
investigar uma tradição de pesquisa das Ciências Humanas
com algumas ramificações teóricas importantes. Nessa pers-
pectiva, os autores apresentam as contribuições teóricas de:
Merleau-Ponty (1994), Amedeo Giorgi (1978), Alfred Schultz
(1962) e Joel Martins (1989).
No Capítulo III, Eduardo Portanova Barros apresenta os
Princípios metodológicos e a fenomenologia no relativismo
maffesoliano, tendo como preocupação produzir uma análise
por meio de um reencantamento do mundo pelo viés da Socio-
logia Compreensiva. Para Barros, o sociólogo francês Manffe-
soli diferencia dois elementos de pesquisa: o conceito e a no-
ção. O conceitualismo procura na dialética a resposta para os
fenômenos sociais, já a noção aceita o caráter dialógico desses
fenômenos, cujas características podem ser, ao mesmo tempo,
complementares, antagônicas e também contraditoriais.
Barros salienta que, em relação ao contraditorial, Maffe-
soli se aproxima do teórico da ciência de Paul Feyerabend,
para quem o relativismo é uma forma de enfrentar a diversi-
dade, tendo em vista que o cotidiano pode ser observado para
apontar tendências gerais e não leis irrefutáveis, por meio de
uma Sociologia Compreensiva, buscando na pluralidade e na
convivência de fatores díspares a base de seu olhar sobre a
sociedade contemporânea.
A Didática na Perspectiva Fenomenológica é discutida
por Carlos Cardoso Silva no Capítulo IV, evidenciando uma
estreita relação entre o ato de educar e a realidade vivenciada
pelo ser humano, seja essa realidade informal, não formal ou
formal. Para esse autor, a educação representa uma abordagem
da fenomenologia que tem implícitos matizes problemáticos
que abrangem o desenvolvimento da sociedade, da cultura e
do indivíduo. Se o ato educativo, nas diversas realidades, se
mostra como fenômeno a ser compreendido, estudado e pes-
quisado pelo homem, o ato de ensinar também se caracteriza
como fenômeno e é apreendido por uma diversidade de con-
cepções teóricas que merecem atenção.
Dessa maneira, segundo esse autor, na escola as práticas
pedagógicas das diversas áreas de conhecimento devem valori-
zar e proporcionar condições de discussão e vivência de atitu-
des éticas, de valores, de solidariedade, de respeito mútuo, de
tolerância e compreensão da diversidade cultural, social, polí-
tica, religiosa, sexual, física e racial, ou seja, das diversidades
humanas que colaborem com a formação de sujeitos éticos.
O cuidado na educação numa perspectiva fenomenológi-
ca: apontamentos para uma reflexão sobre a contemporanei-
dade é a temática apresentada no Capítulo V por Crisóstomo
Lima do Nascimento. Nesse texto, o autor apresenta a principal
obra do filósofo alemão Martin Heidegger, Ser e tempo (1927),
elaborada e dedicada ao mestre e inspirador Edmund Husserl.
O autor destaca que, apesar de serem poucos os momentos
em que Martin Heidegger trata de assuntos diretamente ligados
à educação, não só na obra Ser e Tempo, mas em toda a sua
produção filosófica – insuficientes para compor uma filosofia
da educação – a empreitada de pensarmos intersecções entre a
fenomenologia hermenêutica e a educação se justifica por pos-
sibilitar a aproximação do pensamento de um autor de inegável
influência aos diversos pensadores do seu século e na história
contemporânea do pensamento científico.
Além disso, evidencia a possibilidade de compreender, fi-
losoficamente, o educar, aprofundando suas questões, encami-
nhando a reflexão que põe a educação no centro de um diálogo
possível por meio do pensamento filosófico heideggeriano.
Para esse autor, a complexidade dos campos de conheci-
mento que se entrecruzaram – educação, psicologia e filosofia
– aponta para a inesgotabilidade das possibilidades de discussão
da temática em questão, como mais um instrumento potencia-
lizador das múltiplas reflexões sobre o fenômeno educacional.
O Ingresso e Início da Docência na área da Saúde: aná-
lise existencial fenomenológica é investigado por Alberto Du-
rán González; Mara Lúcia Garanhani e Maira Sayuri Sakay
Bortoletto, no Capítulo VI. Os autores apresentam os resulta-
dos de uma pesquisa desenvolvida junto ao Programa de Pós-
-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de
Londrina (UEL), com dados levantados junto aos professores
do Centro de Ciências da Saúde dessa Universidade.
Esses resultados evidenciam que a atuação da docência
na área de saúde assusta os novos docentes, pois relataram
sentirem-se mais confortáveis na atuação como profissionais
da saúde, tendo em vista que, nessa função, compartilhavam
com outros profissionais/colegas o mundo do cuidado, com
possibilidade de maior interação, nesses espaços.
Diante disso, a entrada do estudante da área de saúde, no
mundo do cuidado, deve estar vinculada à ressignificação do
próprio mundo da educação pelo docente. Na concepção des-
ses profissionais, na Universidade se trabalha com o mundo ide-
al, e só a prática possibilita a oportunidade de conhecimento do
mundo real. Para esses autores, a Universidade pode, portanto,
oportunizar espaços de atuação profissional e oferecer novos
momentos de aprendizado aos estudantes, a fim de ampliar a
interação com a comunidade e o aprimoramento do docente
em sua especialidade.
No Capítulo VII, Carlos A Gadea, em seu texto Cena/
diálogo de família: o encontro do interacionismo simbólico
com as dimensões da cultura e do poder argumenta que exis-
te uma relação conceitual clara entre o “Interacionismo Sim-
bólico” e os contemporâneos estudos sobre cultura e poder,
o pós-estruturalismo e a chamada crítica pós-moderna. Com
evidências de influência do pensamento foucaultiano, o autor
tem o interesse em evidenciar em que medida se assiste a um
gesto teórico e analítico que insere a problemática da política
e do poder em claro nexo com os aspectos culturais e a ordem
simbólica própria das interações sociais. Ao mesmo tempo, o
objetivo é sugerir que os heterogêneos “Estudos Culturais”,
bem como a crítica pós-moderna se apresentam como uma es-
pécie de reutilização de perspectivas interacionistas na socio-
logia na atualidade.
Desse modo, os autores e coautores desta obra oferecem
aos seus leitores uma série de estudos e reflexões teóricas
com base em suas investigações e em seu comprometimento
de pesquisadores, nada impondo aos seus leitores, mas ofere-
cendo-lhes elementos para que possam descobrir, por meio do
método fenomenológico, novas formas de desenvolver pes-
quisas sobre as relações de alteridade e os processos de sub-
jetivação no cotidiano, pois, como poetisa Manoel de Barros
“[...] Os outros: o melhor de mim sou Eles / Só conheço as
ciências que analfabetam. / Todas as coisas tem ser? / Sou um
sujeito remoto. / Aromas de jacintos me infinitam. / E estes
ermos me somam.”1.

1 BARROS, Manoel. Livro Sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 73 e 85.
SUMÁRIO
A LEI DOS IRMÃOS ............................................................13
Michel Maffesoli

OS FUNDAMENTOS DA FENOMENOLOGIA FORMISTA


DE MICHEL MAFFESOLI ...................................................23
Carmen Célia Barradas Correia Bastos
Fábio Lopes Alves
Tânia Maria Rechia Schroeder

PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS E FENOMENOLOGIA


NO RELATIVISMO MAFFESOLIANO: um reencantamento
do mundo pelo viés da sociologia compreensiva ...............39
Eduardo Portanova Barros

A DIDÁTICA NA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA ......61


Carlos Cardoso Silva

O CUIDADO NA EDUCAÇÃO NUMA PERSPECTIVA


FENOMENOLÓGICA: apontamentos para uma reflexão
sobre a contemporaneidade ..............................................101
Crisóstomo Lima do Nascimento

INGRESSO E INÍCIO DA DOCÊNCIA NA ÁREA DA


SAÚDE: análise existencial fenomenológica .....................129
Alberto Durán González
Mara Lúcia Garanhani
Maira Sayuri Sakay Bortoletto

CENA/DIÁLOGO DE FAMÍLIA: o encontro do


interacionismo simbólico com as dimensões da cultura e
do poder ............................................................................155
Carlos A. Gadea

SOBRE OS AUTORES .....................................................175


A LEI DOS IRMÃOS

Michel Maffesoli2


Mesmo sendo a experiência da vida cotidiana tão con-
tundente, é curioso constatar que se recusa, constantemente,
ver que “con-naître” (no original, para destacar o sentido de
“naître”, isto é, nascer. N.T.) significa, antes de tudo, e no seu
sentido estrito, nascer com. De fato, se há uma lei universal
regendo o gênero humano não é, na verdade, aquela que se vê
diante do espelho, mas antes aquela se reconhece em face do
Outro. É a alteridade que me faz existir. Trata-se, aqui, de uma
dessas banalidades a respeito da qual se teria algum escrúpulo
em lembrar se o conformismo lógico, a opinião intelectual, o
politicamente correto, não nos forçassem a fazê-lo.
Lugar comum de antiga memória, pois. Lugar comum de
raízes profundas e de inegável revitalização nos dias de hoje.
O “primitivo” é sempre instrutivo quando se deseja considerar,
em profundidade, aquilo que é. É por isso que, para além da
gasta “fraternidade”, convém voltar às palavras menos habi-
tuais, porém fundamentais, que permitam ressaltar as “coisas”
evidentes da vida de todos os dias, como em As palavras e as
coisas (Foucault): diálogo dos mais instrutivos. Por isso, este
termo que se encontra nas antigas formas de irmandade, o de
“affrérement”. Através dele se exprime a “philadelphie” e a
“philantropie” (optou-se pela grafia no original, com “ph”, para
salientar a mesma raiz da qual os dois termos se originam. N.T).
Na língua do meu país, o “languedocien” (relativo ao
Languedoc-Roussillon, região francesa. N.T.), se diz, para
confraternizar, “s´afreira”. Frédéric Mistral utilizou este ter-
mo tão sonoro para expressar, justamente, o laço profundo,

2 Tradução de Eduardo Portanova Barros, bolsista de Pós-doutorado (PNPD/CAPES) junto ao


Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
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“afetual”, que nos liga às raízes e aos que comungam através


delas. A obra densa e prolixa do “félibrige” (Adjetivado para
se referir ao autor, Mistral, e que deriva do Félibrige, grupo
criado no início do século passado, para “salvaguardar” a lín-
gua e a cultura francesas. N.T.), tem justamente por motor es-
sencial a preocupação de “s´afrèrer” (Irmanar. N.T), a fim de
redinamizar uma língua e, portanto, uma maneira de ser. Mas,
para apreciar bem a pura realidade, “para estar à altura do co-
tidiano”, é preciso saber sair do torpor das evidências.
Para os gregos, havia diferentes categorias de “daimons”,
como, por exemplo, “Hypnos” e “Eros”. Um deles tinha o po-
der de adormecer e o outro, respectivamente, de despertar. Bela
metáfora quando se trata de uma erótica social: basta que o ma-
licioso “Eros” nos provoque um pouco para nos lembrarmos
da essência mesma do viver-junto. É assim que, para além ou
aquém da economia da salvação individual, privilegiada pela
instituição cristã, há uma mensagem “fundante”: aquela de uma
“fraternização” constitutiva do “corpo místico”, este laço mis-
terioso que une, fortemente, os fiéis entre si.
Teólogos como Rudolf Bultmann prestaram atenção ao
“kérygme” (Mensagem, pregação. N.T.), que foi a procla-
mação inicial da mensagem cristã. A mensagem original era
original, mas, aos poucos, perdeu sua vivacidade. A institu-
cionalização é, como se sabe, sempre mortífera, daí a necessi-
dade do retorno ao “radical”: voltar às raízes, para identificar
as linhas de força que continuam a atormentar o inconsciente
coletivo. Dessa forma, reconhecer que, além da subjetividade,
mestra dela mesma e de seus atos, existe alguma coisa mais
profunda que permite apreender, para além dos egoísmos, a
permanência do laço social.
Heidegger chamou de “volte-face de la pensée”. Esta tor-
ção (Verwindung) é que permite pensar nas transformações.
Método mais do que salutar para dar conta das transmutações
em curso. Para além dos encantamentos críticos, comuns nas
análises intelectuais, a radicalidade tem seu preço: é preciso
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 15

desobstruir o caminho habitual das nossas certezas que, pro-


gressivamente, acabam se tornando dogmas dos mais esclero-
sados. Dogmatismo que não permite a apreensão da vitalidade
de numerosas práticas juvenis que, em não se reconhecendo
mais sob as formas institucionais do “social”, expressam um
ideal de comunidade em gestação do qual será cada vez mais
difícil negar sua propagação.
Porém, para captar a originalidade das novas formas de
solidariedade, das múltiplas manifestações de generosidade,
da alquimia em curso induzida pela benevolência e por ou-
tras formas de caridade, não seria inútil nos purgarmos do
nosso subjetivismo “nativo”. De fato, e é preciso dizê-lo, a
especificidade do pensamento ocidental e/ou moderno foi o
subjetivismo impenitente, isolado, mestre de si e do mundo
como um todo. O famoso “roseau pensant” pascaliano (Blaise
Pascal, filósofo, físico e matemático falecido em 1662. É uma
expressão que designa a fragilidade do homem e que, traduzi-
da literalmente, perde sua “competência” poética: “vime pen-
sante”!? N.T.). Ou, para bem apreender o que é da “confraria”
pós-moderna (retorno das comunidades, das tribos e de outros
clãs), é preciso perseguir a crítica de tal subjetivismo.
Este subjetivismo é causa e efeito do idealismo filosó-
fico. É, com efeito, o sujeito pensante que cria o mundo e os
outros. Solipsismo teórico que conduz, inevitavelmente, ao
egoísmo economicista. Atitude paranoica segundo a qual, à
imagem de um Deus criador do mundo, no momento em que
o nomeia, assume que um conceito claro molde o que deve
ser, e como isso deve ser. Contra tal subjetivismo/idealismo,
chegando a uma abstração de numerosos sistemas intelectu-
ais contemporâneos, talvez seja preciso retornar às “coisas”
concretas ou àquilo que nos enraíza neste mundo. Retornar
ao “realismo” que a modernidade tinha evacuado e que era o
fundamento dos modos de pensamento e de ser específicos da
pré-modernidade.
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Pode-se, assim, perceber que a Suma Teológica de São


Thomas de Aquino, para ficar com apenas este exemplo, mes-
mo para pensar o céu, repousava sobre um inegável realismo
terreno. Este realismo repousava, por sua vez, sobre o fato de
que a especificidade de todas as coisas e de cada um depen-
dia do Outro: “abaliété” (“ab alio”, ser pelo outro). “Abaliété”
(Existência submetida ao exterior. N.T.), para entrar no vocabu-
lário filosófico que se opõe, justamente, a essa “aséité” (Estado
do indivíduo que existe por si mesmo, independente, individu-
alista. N.T.), qualidade de um ser que encontra “nele mesmo a
razão e o princípio de sua própria existência” (Lalande). Para
além dos termos usados (aqui por pura coqueteria), pode-se
concordar sobre o fato de que eles designam, com pertinência,
numerosas atitudes empiricamente observáveis, mostrando que
são, em todos os níveis, tributárias da alteridade.
Mimetismo, fenômenos de moda e gregarismo cotidiano
são coisas que acentuam o sentimento de pertença. Não se é
jamais em Si, mas sempre pelo Outro. Sempre em relação, em
fusão, em confusão. É isso que eu chamei “orgia”, ou seja, uma
propensão em direção ao Outro, que se pode dizer erótica, lato
sensu, que é a característica essencial do mundo. Constitui-se
um clima “societal”, o que o social contratual pensou ter erra-
dicado, e que retoma força e vigor dos quais se pode, cotidia-
namente, observar os efeitos. O desenvolvimento das atitudes
coletivas, as epidemias stricto sensu ou os processos de conta-
minações políticas, sociais, ideológicas testemunham o retorno
dessa viralidade (Como um vírus que se espalha. N.T.).
Na Idade Média, estas contaminações se chamavam
“communio spiritus”, comunhões que estavam na origem das
multidões. Cruzadas, revoltas, rebeliões, fanatismos diversos
e múltiplos levantes fragilizavam os poderes estabelecidos.
Lembravam a potência fundadora do povo. É uma “atmos-
fera” dessa ordem da qual vemos os efeitos em nossos dias.
Rebelião, revoltas e efervescentes “indignações” de todo tipo,
mas também modos de vestir, posturas corporais semelhantes,
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 17

ideias comuns, conformismos teóricos, tudo isso lembra que


se está, sempre, “em relação”. Cada Um é, consciente ou in-
conscientemente, prisioneiro de uma tribo.
Basta observarmos, em relação a isso, o mimetismo tribal
em torno de um livro, de uma peça teatral, de um concerto
musical, de uma ideia da moda, de uma “indignação” bara-
ta, para rebater aqueles que consideram que o individualismo
é, ainda, o principal motor das sociedades contemporâneas.
Certamente o “eu penso” foi a marca da modernidade, mas
o “eu pensei” é a característica do momento. Há épocas nas
quais prevalecem algumas ideias-força. Os cientistas políticos
observam o retorno do que eles denominam affectio societatis.
Assim, por mais surpreendente que possa parecer, é preciso
lembrar tudo o que se deve a esse ordo amoris (Definição da
virtude, para Santo Agostinho. N.T.).
Lembremos, também, o que foi a mística “arthuriana” na
Conquista do Graal, sem esquecer a importância dos movimentos
milenaristas ao longo dos séculos, para compreender que não é,
de modo algum, surpreendente que tal eretismo, esta excitação do
coração, possa ressurgir em nossas sociedades. Lembremos que
as formas paroxísticas das quais acabamos de falar se enraízam
no substrato da cultura popular. Entre outras, a obra do pintor
Jérôme Bosch mostra bem o que a excepcionalidade do festivo
devia à banalidade da vida cotidiana. E que antes do “desencanta-
mento do mundo”, produto da modernidade, os regozijos frater-
nais eram comuns nas comunidades rurais.
O “jardim das delícias” que Bosch descreve sublinha o
que era a sabedoria da vida de todos os dias. É este hedonis-
mo cotidiano que merece atenção. Pois, de encontro a uma vi-
são “economicista”, a do individualismo, a do subjetivismo, a
do idealismo, o prazer de ser não existe senão na coletividade.
Trata-se de uma estrutura de proceder por contaminação. É uma
epidemia que as redes de contaminação, os “sites” comunitários
se encarregam de consolidar. O desenvolvimento do festivo ou
do lúdico é testemunha disso. Não há nada de individual nessas
duas áreas. A excitação e a histeria são comunitárias.
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É sob esta constatação, na qual a razão direita e o bom


senso se conjugam, que se pode compreender que, seguindo a
marcha das histórias humanas, depois de um momento de pre-
domínio racionalista, observa-se o retorno de uma época, “sen-
sualista”, em que vai predominar o que Francis Bacon chamou
“ídolos da tribo” (Aqui, Maffesoli se refere ao filósofo empiris-
ta inglês, nascido em Londres a 22 de janeiro de 1561 e faleci-
do a 9 de abril de 1626, e não ao pintor homônimo do século
XX. Segundo Bacon, era preciso ultrapassar o que chamou de
“ídolos” ou formas não empiristas de vida como da tribo, por
exemplo, para se chegar ao conhecimento verdadeiro. N.T.).
Mesmo com o prejuízo próprio das contaminações que estes
ídolos suscitam; no entanto, com o fervor fraterno que eles não
deixam de impulsionar. Há idolatria no ar. E todos os domínios
da vida social são contaminados por isso. É o que caracteriza
uma “ambiência” emocional que, da mesma forma que a lama,
invade todos os setores, quer sejam mais ou menos institucio-
nalizados, da sociedade.
É assim que para designar esta profunda transmutação
de todos os valores que, tendo regido a modernidade, se pode
considerar que o paradigma pós-moderno se enraíza em uma
espécie de “razão prática”, de “irmandade”. Esta é fundada,
claro, nestes sentimentos fundamentais altruístas que, com
maior ou menor força, estão presentes no coração de todo ho-
mem. Todo pensamento verdadeiro é uma “aposta”, dizia Pas-
cal. Sabe-se, também, que em oposição às tranquilas e obso-
letas ideias dogmáticas, toda pesquisa prospectiva se elabora
a partir de uma visão e se enriquece por um campo aberto de
hipóteses; ousadas que sejam.
Neste caso, aquela que concerne à revitalização da “lei
dos irmãos” diz respeito ao ato de reaparecimento de um
imaginário da fraternização que, frequentemente, pontua as
histórias humanas. Trata-se, aqui, de uma das intuições mais
loucas de Auguste Comte, no momento em que ele qualificava
o Grande Ser como a solidariedade, unindo, de uma maneira
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 19

orgânica, os vivos, os mortos, os humanos, os animais, em


suma, todos os elementos naturais e culturais. Ou ainda Restif
de la Bretonne, materializando o espiritual ao falar do Grande
Animal, união de tudo o que existe no universo tanto conheci-
do quanto desconhecido.
Metáforas um pouco etéreas, é verdade, mas que podem
ajudar na compreensão das formas empíricas de interações, de
reversibilidades, de ajuda mútua que constituem, em certos mo-
mentos, um elo social enraizado no que é vivido o mais próxi-
mo no dia a dia. A proximidade como causa e efeito da “razão
prática” da fraternidade. Nesse aspecto, é instrutivo observar
o curioso dinamismo, aparentemente paradoxal, do movimento
mútuo na pós-modernidade. Sociedades cooperativas, socieda-
des de pessoas que repousam, essencialmente, em um “pacto”
interativo no qual os afetos desempenham um papel inegável
e no qual as solidariedades se enraízam em uma troca que res-
taura todo seu sentido a todos os aspectos da natureza humana.
Este pacto humanista mobiliza o bom senso e a razão
concreta em uma mistura sem fim. “Mutualismo” financeiro,
pessoas e pós-modernidade, eis um conjunto que pode pare-
cer estranho, mas que é sintomático da transmutação em curso
(M. Pouzet e M. Maffesoli, em Mutualisme financier, société
de personnes et postmodernité, CNRS Éditions, Paris, 2009).
É uma expressão concreta da fraternidade que, para além de
um igualitarismo de fachada, remete a uma ordem simbólica,
ou seja, orgânica, levando em conta a pessoa como um todo
no âmbito comunitário. O lugar faz o elo! Ao encontro de uma
igualdade ideal, frequentemente verbal, a mutualidade e a co-
operação lembram que o viver-junto antropológico se constrói
na complementariedade de uns e de outros, de uns pelos outros.
O que leva ao que Joseph de Maistre chamava “emulação sem
humilhação” (“Considerações sobre a França”, capítulo X, pa-
rágrafo. I. Tradução livre).
20

No caso, o de um “culto da fraternidade”, coisa bem dife-


rente da fraternidade racional e planejada. Culto da fraternidade
que, de uma forma irrefreável, continua no mais profundo do es-
tar-junto e garante, misteriosamente, a solidariedade do conjunto.
Não se diz que o fio vermelho é aquele mesmo que, no meio do
novelo, permite a medição da solidez ou o desgaste inelutável. É
um “culto” assim que, como uma maçonaria esotérica, se encon-
tra nas tribos pós-modernas, nos cailleras (Os marginalizados.
N.T.) das cidades e outras assembleias de afinidades eletivas.
Sabendo ou não, o fio vermelho de todas estas comunidades se
encontra na prática de seus rituais, nos segredos compartilhados,
nas vibrações comuns, servindo-lhes de elo.
Permito-me, aqui, remeter à noção para descrever a for-
mação ética resultante dessa estética: “sintonia”; a saber, a
força invisível, tênue, mas não menos sólida, assegurando a
coesão dos grupos em questão. Rituais, segredo, partilha de
gostos de todas as ordens (musicais, esportivos, culturais, se-
xuais). Trata-se, na verdade, de uma verdadeira “disciplina
arcani”, essa disciplina dos arcanos de antiga memória que
consolidava a solidariedade vivenciada, exigia regras de hos-
pitalidade, especificava as “obrigações” que, através das fes-
tas e diversas bebedeiras coletivas, asseguravam a elaboração
e manutenção da comunidade primordial. Estar-junto fundan-
te no qual o cimento é mais emocional do que racional.
Esta solidariedade fraternal acontece, na verdade, mais
no plano da experiência que no da história. Com isso, é pre-
ciso entender que uma parte dela é menos consciente do que
inconsciente. Assim, o dream together é um leitmotiv recor-
rente que se encontra tanto na música (Bollock) quanto nas
produções fílmicas (saga Harry Potter). Em cada um desses
casos, é próprio da “experiência” (conforme o velho francês
“espérir”), ou seja, morrer em si para nascer o outro. Por outro
lado, essa experiência coletiva exprime a completude do ser.
Não simplesmente o branco oposto ao escuro. Um exemplo
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 21

entre mil, o da cantora “soul” Amy Winehouse: “You know


I´m bad”. Reivindicação da parte obscura, para todos, como
aceitação do Outro (sic).
O sonho coletivo e a completude do ser são as caracterís-
ticas essenciais de uma “socialidade”, quer dizer, de um viver-
-junto, que não repousa sobre o simples e racional Contrato
Social, da forma como foi elaborado a partir do século XVIII,
mas antes sobre um Pacto no qual o afetual tem um papel não
negligenciável. É isso, reforçando o traço, que se pode chamar
“lei dos irmãos”: regras, rituais, obrigações múltiplas, mas
tudo isso é reversível, interativo, em perpétuo movimento. Eis
o que funda um “ordo amoris”, restituindo uma religação an-
corada sobre o “laço” (“religar”) e engendrando “confiança”
(“religando”).

Comentário do tradutor

Neste texto, que apareceu originalmente em um livreto


no final de 2012, com uma tiragem de apenas 200 exemplares,
Maffesoli não trata diretamente de fenomenologia, mas a fe-
nomenologia está aí, bem presente em todas as expressões que
nos remetem ao aqui e agora. A “lei dos irmãos” maffesoliana
bem poderia receber, como subtítulo, uma “fenomenologia do
cotidiano”. Recentemente, este mesmo texto apareceu como
capítulo do, até então, seu último livro “Homo eroticus. Des
communions émmotionelles” (Paris, CNRS Editions, 2012).
Para quem não está familiarizado com a linguagem maffe-
soliana, cabe um pequeno esclarecimento. Para este autor, o
aprofundamento é, paradoxalmente, uma leitura da superfície,
aquilo que é (expressão da qual ele usa e abusa). Assim, Maffe-
soli é um sociólogo que fala por alusões, que utiliza metáforas
e que se apropria de um leque eclético de autores, dos consi-
derados positivistas, como Auguste Comte, até os filósofos da
pós-modernidade, como Nietzsche, passando, claro, pelo ima-
ginário em Gilbert Durand, seu mestre. O pensamento de Ma-
22

ffesoli é lateral. Ele não se trai no objetivismo acadêmico, mas


prefere antes a complexidade. Em alguns momentos Maffesoli
pode ser até direto, como nesta definição de fenomenologia:
“Abstinência de qualquer tomada de posição. Saber se purgar
das nossas convicções, de nossas opiniões, para saber apreciar
o mundo tal qual é, tal como se dá a ver e a viver” (2012, p. 28.
Tradução nossa). Mais adiante, também em Homo eroticus, o
autor fala ainda mais claramente: “Toda fenomenologia se re-
sume nesta preocupação: mostrar as coisas pelo que elas são,
para além ou aquém da nossa atitude judicativa ou normativa”
(2012, p. 38. Tradução livre). A fenomenologia, em suma, é,
para Maffesoli, uma dimensão do presente.
OS FUNDAMENTOS DA
FENOMENOLOGIA FORMISTA
DE MICHEL MAFFESOLI

Carmen Célia Barradas Correia Bastos


Fábio Lopes Alves
Tânia Maria Rechia Schroeder

O objetivo deste capítulo é apresentar a fenomenologia


formista de Michel Maffesoli. Tratar de fenomenologia implica
em adentrar em uma tradição de pesquisa das Ciências Huma-
nas com algumas ramificações teóricas muito importantes, tais
como: Merleau-Ponty (1994), Amedeo Giorgi (1978), Alfred
Schultz (1962) e Joel Martins (1989), para citar apenas alguns
expoentes cientistas fenomenólogos. Entendemos que versar
sobre fenomenologia consiste em referir-se a uma modalidade
de fazer ciência que é plural. Nossa intenção, portanto, é abor-
dar sobre os fundamentos teóricos e metodológicos da fenome-
nologia formista, propostos por Michel Maffesoli3. O autor tem
trabalhado nesta perspectiva em diversos momentos de seus es-
critos. Entretanto, a obra em que essa discussão surge de forma
mais específica é em Elogio da razão sensível (1998).
A expressão fenômeno deriva do grego fainomenon, que
vem do verbo fainestai, que quer dizer mostrar-se a si mes-
mo. (MARTINS, 1989). Assim, de acordo com o filósofo Jean
Francois Lyotard (1967), que traz importantes esclarecimen-
tos sobre o sentido da fenomenologia,

3 Sociólogo francês que ficou conhecido internacionalmente pela popularização da noção de tribos


urbanas. Professor da Sorbonne (na cadeira que pertencera a Durkheim), membro do Instituto
Universitário da França, é diretor do Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano e autor de
vários livros sobre a temática da pós-modernidade. De acordo bom Barros (2014), Maffesoli já
orientou cerca de 140 teses de doutorado (dentre elas de diversos brasileiros), publicou em torno
de 350 artigos científicos e, só no Brasil, possui mais de 20 livros traduzidos.
24

O termo significa estudo dos fenômenos, isto é, daquilo que


surge a consciência, daquilo que é ‘dado’. Trata-se de explorar
esse dado, ‘a própria coisa’ que se percebe, na qual se pensa, da
qual se fala, evitando forjar hipóteses [...] Assim se esboça no
cerne da meditação fenomenológica um momento crítico, um
‘descrédito da ciência’ (Merleau-Ponty) que consiste na recusa
de passar à explicação. (LYOTARD, 1967, p. 9)

A fenomenologia tem referenciado muitas pesquisas na
área social, educacional e da saúde nas últimas décadas. Nem
sempre bem aceita por buscar conhecer a realidade de maneira
adversa a das ciências tradicionais ou hegemônicas, a fenome-
nologia já expressa no cenário científico mundial acentuado
respeito e adeptos que a consagram como ciência, na acepção
rigorosa do termo.
Neste capítulo, a fenomenologia formista é apresenta-
da como uma alternativa para captar elementos da realidade
que, em nome da rigidez que adota, o racionalismo científico
despreza. A fenomenologia formista é considerada por Maffe-
soli como uma possibilidade de compreender a “exuberância
da aparência social” (MAFFESOLI, 1996), respeitando-se as
realidades singulares no que são, considerando tanto os fatos
anódinos, as representações populares e as situações miúdas
que marcam a vida cotidiana, quanto as grandes formas estru-
turantes do social.
A principal tarefa da fenomenologia consiste em voltar à
empiria em si mesma. O importante, retomando uma máxima
de Edmundo Husserl, é “voltar à própria coisa”. Dessa manei-
ra, o hedonismo cotidiano torna-se algo a ser apreciado pelo
fenomenólogo. Por isso é que faz sentido retomar a expressão
ruptura epistemológica quando se trata de ter uma atitude fe-
nomenológica. Nas próprias palavras de Maffesoli,

[...] é preciso saber romper com uma postura intelectual, em


última análise bem conformista, que buscava sempre uma ra-
zão (uma Razão) impositiva para além daquilo que convida a
ser visto e a ser vivido. É preciso retornar, com humildade, à
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 25

matéria humana, à vida de todos os dias, sem procurar causa


(Causa) a engendra ou a faz como é. ‘Sei o que isto pode conter
de escandaloso a primeira vista, mas trabalhos como os de Ed-
gar Morin na França, ou Howard Becker nos Estados Unidos,
Franco Ferraroti na Itália, mostram amplamente o aspecto pros-
pectivo de uma progressão tal’. (MAFFESOLI, 1998, p. 47)

Por formismo, Michel Maffesoli (1998, p. 151) designa


uma modalidade de pesquisa que se contenta em estabelecer
um quadro de análise (forma, tipo ideal, caráter essencial,
estrutura etc.) que tem por única função fazer sobressair a
complexidade de uma vivência existente. Esta é uma via de
pesquisa menos preocupada com leis e mais atenta às tendên-
cias indicadas pelo objeto empírico, livre da explicação inicial
ou final. Em outras palavras, o formismo retoma aquilo que a
cientificidade deixou de lado.
Vejamos, nas próprias palavras de seu mentor, o objetivo
do formismo:

Assim, batendo de frente com os metidos a dar lições ‘cien-


tíficas’, podemos admitir que não é o que um objeto social é,
senão a maneira pela qual se apresenta, que pode guiar nossa
investigação. a isto se resume toda a ambição do formismo.
Assim procedendo, não se está, de modo algum, renunciando
ao espírito; trata-se unicamente de ajustar da melhor forma
possível o relativismo e o pluralismo existencial à diligência
intelectual. (MAFFESOLI, 2007, p. 126)

Em outra publicação ele esclarece que a perspectiva for-


mista “é uma análise que se contenta em desenhar grandes qua-
dros que têm por função apenas fazer sobressair a efervescência
vital, e dar a isso uma aparência de ordem intelectual.” (MA-
FFESOLI, 1998, p. 128).
Portanto, por intermédio do formismo, a fenomenologia
compreensiva se preocupa em apresentar uma dada realidade
sem ficar presa a uma finalidade teórica ou explicativa, tam-
pouco a uma lógica do dever ser. Na perspectiva formista, a
26

fenomenologia toma o objeto de estudo em si mesmo, pelo que


ele é. Com base em uma descrição, não se preocupando em sus-
peitar ou criticar o que é observado ou descrito. Isso exige uma
conversão do olhar: apreciar cada coisa a partir da sua própria
lógica, da sua coerência subterrânea, e não a partir de julgamen-
tos exteriores. (MAFFESOLI, 2010a, p. 125)
Ao propor um caminho para procedimentos analíticos na
perspectiva fenomenológica formista, Maffesoli nos apresenta
os aspectos conceituais de descrição, intuição, metáfora e senso
comum como atitudes inerentes ao pesquisador que, ao optar
por esta modalidade científica de estudos, trabalha em Ciências
Sociais e Humanas.
Ao compreender no que consistem estes momentos da
análise formista, perceberemos como o método/atitude feno-
menológica se estabelece na dinâmica de pesquisa, isto é, no
movimento intelectual de compreensão do fenômeno pesquisa-
do. Trata-se de uma forma de apreender a realidade que se pes-
quisa, de enxergar os dados como se mostram e que precisam
ser objetivados na intenção do estudo.

A descrição

Afinal, de que maneira podem ser apresentados os resul-


tados de uma pesquisa baseada na atitude fenomenológica?
Ou, qual seria a maneira pela qual se torna possível compre-
ender as novas formas de sociabilidades?
Para Maffesoli, isso pode ser feito a partir de diversas ma-
neiras. Entretanto, se desejarmos dar vazão à nossa capacidade
de criação nas pesquisas, o autor chama a atenção para a ne-
cessidade de simplesmente fazer sobressair o que “está aí” por
meio da descrição, intuição e metáfora. Para este autor, pesqui-
sar, na perspectiva fenomenológica, significa levar “[...] a sério
a coisa em si mesma; e, seja ela qual for, trivial, sublime, abjeta,
respeita-a como ela é.” (MAFFESOLI, 1995, p. 95)
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 27

A partir da descrição é possível chegar à compreensão


de determinados fenômenos sociais, que é o fundamento da
fenomenologia. Ao descrever os sentidos atribuídos aos fenô-
menos, compreendem-se os elementos fundantes da vida co-
tidiana. Por isso, Maffesoli sustenta que a fenomenologia não
deve ter como preocupação o apego aos ideais impositivos dos
conceitos, pois ela deve estar o mais atenta possível ao conhe-
cimento ordinário. Nesse sentido, a fenomenologia seria “um
saber erótico que ama o mundo que descreve” (MAFFESOLI,
1998, p. 15). Assim, o resultado final de um trabalho funda-
mentado na descrição fenomenológica

[...] culmina num saber raro; um saber que, ao mesmo tem-


po, revela e oculta a própria coisa descrita por ele, um saber
que encerra, para os espíritos finos, verdades múltiplas sob os
arabescos das metáforas, um saber que deixa a cada um o cui-
dado de desvelar, isto é, de compreender por si mesmo e para
si mesmo o que convém descobrir; um saber, de certa forma,
iniciático. (MAFFESOLI, 1998, p. 20)

Portanto, com esse saber raro proporcionado pela descrição,


principal capital da fenomenologia, encontra-se uma das formas
pelas quais o conhecimento pode ser apreendido pela via de uma
razão aberta.

Ao nomear, com excessiva precisão, aquilo que se apreende,


mata-se aquilo que é nomeado. Os poetas nos tornaram aten-
tos a tal processo. É preciso, agora, que os protagonistas das
Ciências Sociais estejam igualmente conscientes desse perigo.
Do momento em que há vida, há labilidade, dinamismo. A vida
não se deixa enclausurar. Quando muito, é possível captar-lhe
os contornos, descrever-lhe a forma, levantar suas caracterís-
ticas essenciais. Assim procedendo opera-se o conhecimento.
Sem, por isso, praticar uma taxidamia que alfineta, cataloga e
põe em ordem um corpus de objetos mortos. Paradoxalmente,
tal respeito à vida movente é propriamente aquilo que, se for
bem gerido, pode culminar num conhecimento mais completo
daquilo que entende apreender. De certa forma, é acionamento
de uma ‘razão mais aberta’. (MAFFESOLI, 1998, p. 47)
28

A partir destas considerações de Maffesoli é possível


compreender que a fenomenologia é uma prática científica que
não tem preocupação com rigidez, mas sim com a coerência
em captar a manifestação do sentido atribuído ao fenômeno.
Esta é uma atitude intelectual que assume ter como preocupa-
ção principal o fenômeno e a maneira como ele se manifesta
na consciência dos sujeitos. Eis, portanto, a razão de a teoria e
os conceitos não serem as preocupações primárias.
Esse “desapego” faz da descrição o fundamento da fe-
nomenologia, uma vez que é próprio da descrição o respeito
ao dado mundano. Ela se contenta em ser acariciante e em
mais acompanhar do que subjugar uma realidade complexa e
aberta, isto é, seu interesse consiste apenas em dar conta dessa
tensão sem ter a pretensão de resolvê-la, tampouco julgá-la.
(MAFFESOLI, 1998, p. 116-119)
Michel Maffesoli chega à descrição à medida que ques-
tiona a maneira pela qual seria possível dar conta da razão
interna que percorre – por vezes de modo desordenado – os
pequenos atos criativos vividos dia a dia. Ele sugere que,
numa abordagem fenomenológica, o “eu” crítico se dissolva
numa postura descritiva para que, com essa atitude, seja pos-
sível “ouvir a sutil música nascente, para melhor dar conta da
profunda mudança que se opera sob nossos olhos”. (MAFFE-
SOLI, 1998, p. 113).
Desse modo, para a fenomenologia, aquilo que é mun-
dano – ou seja, as dimensões afetuais das sensibilidades, das
emoções, das paixões e o senso comum – não se constitui em
algo à parte, marginal, mas, antes, servirá de alavanca metodo-
lógica para a epistemologia fenomenológica, visto que “meto-
dologicamente, sabe-se que a descrição é uma boa maneira de
perceber, em profundidade, aquilo que constitui a especifici-
dade de um grupo social.” (MAFFESOLI, 1998, p. 187)
Taine (citado por MAFFESOLI, 1998), temia que, em
algumas ciências, o “período descritivo” seria rapidamente
ultrapassado pelo período de classificação. Considerando
que a sociologia ainda não havia sucumbido aos “cortes
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 29

epistemológicos”, ele aconselhava não abusar de grandes


sistemas explicativos e atentar para a descrição dos fenô-
menos sociais. No entanto,

a história da sociologia parece mostrar que o conselho de Tai-


ne não foi seguido; procedeu-se rapidamente à implementação
de teorias gerais, explicativas, impositivas, que da as costas à
prudência da observação, que não levam senão muito pouco em
conta os fenômenos tais como são, em favor daquilo que ‘deve-
riam ser’ para corresponder à concepção que o intelectual tinha
da sociedade. Será até preciso inverter a periodização propos-
ta por Taine, lembrando que, após abusar de grandes sistemas
explicativos, estamos – para falar trivialmente – despertando
com uma terrível ressaca e que, talvez, não seja útil voltar a
um ‘período descritivo’ para, justamente, purgar os excessos
cometidos pela abstração. (MAFFESOLI, 1998. p. 124)

Na perspectiva do “corte epistemológico”, o pesquisador


projeta-se como um esterilizador que limpa, recorta e analisa
seu “objeto de conhecimento”, tal como Procusto fazia com as
suas vítimas. Maffesoli (1998, p. 29) denomina de pensamento
“procústeo” aquilo que “à imagem do célebre leito, corta, fra-
ciona, segundo um modelo estabelecido a priori”. A caracterís-
tica essencial do racionalismo científico é classificar e pretender
que tudo entre em uma categoria explicativa e totalizante.
O caminho apontado por Taine para mudar essa forma
de se pesquisar seria o de permanecer na descrição com apli-
cação de exigências e sem ambições excessivas e conclusões
precipitadas para, posteriormente, entrarmos na era de classi-
ficação das coisas. Conforme expõe Maffesoli, isso requer que
se faça uso prudente dos objetos sociais, não lhes impondo
explicações a priori, não decretando sem preocupações qual
é o sentido que devem ter, mas ao contrário, é preciso saber
escutá-los. (MAFFESOLI, 1998, p. 125)
30

Essa volta às coisas mesmas é um “projeto ambicioso,


mas realizável” (MAFFESOLI, 1998, p. 54). Para isso ocor-
rer, esse autor orienta que é necessário saber superar as cate-
gorias que guiaram a modernidade.

Não que se deva negá-las, mas, em vez disso, alargá-las, con-


ferir-lhes um campo de ação mais vasto, dar-lhes os meios de
acesso a domínios que lhes eram até então vetados: por exem-
plo, os do não racional ou do não lógico. Assim fazendo, dá-se
à progressão epistemológica aquela ‘iluminação’ que pode ser,
que ainda é, apanágio do poeta, do romancista, do místico, do
homem gênio, em suas ações e seus pensamentos específicos.
‘Iluminação’ que nada tem de excepcional que não deve inquie-
tar ou ser, orçosamente, considerada, como algo anormal, de
emanações anômicas ou obscurantistas, mas uma ‘iluminação’
que leva ao seu ponto último a lógica das luzes, isto é, que
se empenha em compreender, e não em julgar todos os fenô-
menos, ações, representações humanas pelo que são e não em
função do que deveriam ser. (MAFFESOLI, 1998, p. 54)

Para colocar essa iluminação em prática, uma das alterna-


tivas é promover a abertura com vistas à compreensão daquilo
que se opera no cotidiano. Trata-se de perceber aquilo que ali-
menta a razão interna das coisas em si. Com isso, espera-se de
um trabalho fenomenológico que este seja menos dogmático
e mais receptivo, e que, ao mesmo tempo, isso seja operado
com certa dose de humildade para se perceber aquilo que nos
é oferecido pelas próprias coisas.
Por fim, a compreensão fenomenológica não busca, se-
gundo Maffesoli (1998, p. 141) “a causa e o efeito, não pos-
sui a quimera do ‘porquê’; através do ‘como’, limitando-se
à apresentação das coisas, ela se empenha em depreender a
significação interna dos fenômenos observados”.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 31

A intuição

Maffesoli chama a atenção para a necessidade da intui-


ção em uma pesquisa fenomenológica. É preciso ressaltar que
a intuição, por algum tempo, foi marginalizada e estigmatiza-
da no meio científico. Entretanto, para a fenomenologia ma-
fessoliana, esta retorna com importante vigor para a produção
de conhecimento. Com relação ao que se entende por intuição,
para não gerar nenhuma confusão com a qualidade psicológi-
ca, Maffesoli expõe que

devo precisar, de imediato, que não entendo a intuição como


simples qualidade psicológica. É até possível que ela seja tudo
menos pessoal. Com efeito, pode-se, ainda que seja a título de
hipótese, considerar que ela participa de um inconsciente co-
letivo. Que ela é oriunda de um tipo de sedimentação da ex-
periência ancestral, que ela exprime o que propus chamar de
‘saber incorporado’ que, em cada grupo social e, portanto, em
cada indivíduo, constitui-se sem que se lhe dê muita atenção.
(MAFFESOLI, 1998, p. 130)

Uma das formas de se exercer essa intuição a que o autor


se refere é “farejando o social” na tentativa de reconhecer as
lógicas simbólicas próprias do dado mundano. Conforme apon-
tado acima, somos sabedores que trabalham com algo que a ci-
ência moderna eliminou por considerar incompatível com os
princípios de objetividade.
Através da intuição,

[...] se passa a abordar os fenômenos tentando compreendê-los


enquanto tais, sem submetê-los, a priori, a uma razão abstrata e
instrumental, se não se tenta fazê-los entrar à força no leito de Pro-
custo do pensamento, fica-se obrigado a mostrar ‘sinais de cum-
plicidade intuitiva’ com o mundo, entre os fatos observados e o
observador, entre as coisas e nós. (MAFFESOLI, 1998, p. 132)
32

O recurso da intuição, isto é, compreensão do “inconscien-


te coletivo”, ao não ter a preocupação de submeter os dados à
força dos conceitos e teoria, tem a potencialidade de colocar
como visão central o sentido da própria coisa, do próprio fe-
nômeno, como este frui e como este se estrutura. Para compre-
ender essas características, utilizando como recurso a intuição,
a pesquisa fenomenológica valoriza a experiência e o senso
comum e, com isso, produz uma sociologia do cotidiano. No
entanto, para se fazer isso, é preciso ter clareza de que alguns
enfrentamentos poderão ocorrer, mas que, segundo Maffesoli, é
preciso lançar um novo olhar para as coisas do dia a dia.
Maffesoli (1998) chama a atenção para a capacidade de
se apreender os fenômenos de modo direto, sem a necessidade
de todo um aparato conceitual que anteceda a descrição

É isso que deve forçar-nos a reexaminar nossa prática intelec-


tual e deveria obrigar-nos a inverter o problema: em vez de
proceder. Dedutivamente a partir de princípios teóricos estabe-
lecidos arbitrariamente, proceder indutivamente, isto é, partir
de baixo, daquilo que existe aqui e agora, para indicar quais são
as tendências que estão animando, em profundidade, o corpo
social. É isto que constitui o próprio da intuição ativa: perceber
em toda a sua concretude os valores cotidianos que partilha-
mos, com outros, no âmbito de um ideal comunitário. É tam-
bém nesse sentido que a intuição intelectual é um instrumento
privilegiado para compreender a vita nova, fundada sobre a ex-
periência cujos contornos, pouco a pouco, vão-se configurando
sob nossos olhos. (MAFFESOLI, 1998, p. 146)

A sugestão desse autor é que, ao trabalhar com a intuição,


isto é, com esse novo olhar, a pesquisa acadêmica não precisa
se perder em rodeios, mas pode ir direto ao ponto, tomando os
fenômenos pelo que são, tais como são em si mesmos. Trata-
-se, pois, de ver as coisas de um modo direto.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 33

A arte da descrição permite epifanizar os fenômenos tais


como são, ou seja, fazer com que sobressaiam pelo que são sem
remetê-los a um longínquo além daquele sentido (MAFFESOLI,
1998, p. 134-52). É preciso ressaltar que, para compreender o
mundo visível, para perceber as formas sociais que estão sur-
gindo o tempo todo, é preciso observar a aparência. É obser-
vando a aparência que chegamos à parte subterrânea da vida,
à “ala dos fundos” (HILLMAN, 1993).
Segundo Maffesoli, “A partir do momento em que se
considera que os fenômenos bastam a si próprios, convém
aproximar-se deles diretamente, economizando as diversas
mediações que o pensamento moderno tinha, em geral, o há-
bito de utilizar (1998, p. 135)”. Para uma melhor reflexão so-
bre a diferença entre uma pesquisa fenomenológica intuitiva
e uma pesquisa conceitual, vejamos, nas próprias palavras do
autor, uma importante explicação.

Por essa capacidade de apreender o mundo de um modo direto,


pelo olhar novo que ela lança sobre ele, a intuição está no oposto
do sistema conceptual que se apropria das coisas a partir do exte-
rior. Do mesmo modo, enquanto o conceito racional empenha-se
em trazer de volta a unidade – reductio ad unum (Augusto Comte)
–, a intuição, aceitando o múltiplo e contentando-se em nomeá-lo,
permite pensar o diverso. Assim, enquanto o racionalismo abstrato
se contenta com uma visão mecanicista, a sensibilidade intuitiva
assenta na lógica do vivente e sua dinâmica. Orgânica. Não esque-
çamos, o próprio dessa lógica é ser movente, acariciante, pode-se
até dizer erótica, isto é, que repousa sobre a atração, sobre as afini-
dades, sobre os processos emocionais e afetuais cuja importância
pode ser vista contemporaneamente. Ela não tem o rigor da lei
causal, mas não deixa de indicar, com precisão, as grandes tendên-
cias sociais. (MAFFESOLI, 1998, p. 135).

Por fim, passemos ao terceiro fundamento epistemológi-


co da fenomenologia formista.
34

A metáfora

De acordo com Michel Maffesoli, além da descrição e da


intuição, há outro elemento fundamental para a fenomenolo-
gia formista: a metáfora; visto que esta permite captar aquilo
que, por vezes, se encontra às margens, mas que também é um
elemento importante para a pesquisa sociológica.
Sabemos que, nas pesquisas científicas, em torno da
metáfora existe certa desconfiança e, em alguns casos, ela é
associada a algo do pensamento vazio. Entretanto, Maffesoli
parte do contrário. Para ele, a metáfora “faz sobressair este ou
aquele estado das coisas, acentua-lhes esta ou aquela qualida-
de e, principalmente, põe em comunicação de sentimento com
o outro” (1998, p. 148).
Através da metáfora a pesquisa fenomenológica formista
dá ênfase àquilo que outros ramos do saber desprezaram: o
saber especulativo, pois, “diferente do conceito, ela não tem
pretensões à cientificidade. Contentando-se com descrever ela
auxilia a compreensão sem, por isso, pretender à explicação”
(MAFFESOLI, 1998, p. 149). O potencial do recurso metafó-
rico em uma pesquisa consiste em não se preocupar em indi-
car o sentido das coisas, mas em auxiliar na compreensão da
sua significação.
Em um tempo que ainda domina a quimera do saber cien-
tífico, sabemos o quanto custa caro e o risco de se propor uma
pesquisa que utilize os recursos da metáfora e das analogias.
Entretanto, para Maffesoli (1998, p. 149), “esse jogo vale a
pena, pois, assim fazendo, chega-se mais perto de uma sociali-
dade que, por sua vez, também é temerária, estocástica, e cujas
deambulações não carecem de riscos”.
Ainda sobre o sentido da metáfora numa pesquisa feno-
menológica formista, vejamos a alusão que Maffesoli faz com
a pintura. Apesar de a citação ser um tanto quanto extensa, os
argumentos e a beleza autoral justificam a necessidade para
esse recurso.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 35

Assim, para não tomar senão um exemplo dentre muitos ou-


tros, por que não aplicar à pintura social aquilo que Paul Valéry
diz da pintura stricto sensu: ‘O método mais seguro para julgar
uma pintura é nada reconhecer nela de pronto e fazer, passo a
passo, a série de induções requerida por uma presença simul-
tânea de manchas coloridas sobre um campo limitado, para as-
cender, de metáfora em metáfora, de suposição em suposição,
à inteligência do tema’ (Oeuvres, La Pleiade). Eis aí um texto
cujo conteúdo é dos mais úteis para o observador social. Com
efeito, nele se encontra a necessidade do olhar novo, que não
se embarace em ideias preconcebidas ou preconceitos norma-
tivos, um processo de análise que vem ‘de baixo’, que se apoia
na empiria e progride, ‘passo a passo’, a partir de induções, e,
por fim, a utilização de metáforas que, como peças de um que-
bra-cabeça, se ajustam, por vezes com dificuldade, até consti-
tuir, in fine, uma figura significante. Não é inútil acrescentar
que o sentido não é imposto do exterior mas, isto sim, procede
de uma verdadeira interação entre o quadro e o observador. Re-
versibilidade do sujeito e do objeto, conjunção da liberdade do
olhar e dos limites impostos pelo quadro que ‘já está aí’ e do
qual se vai, progressivamente, descobrir a estrutura, a dinâmica
e a disposição das cores. Trata-se de uma verdadeira ‘invenção’
(in-venire), uma vez que se faz vir à luz um sentido que é inter-
no ao próprio quadro. (MAFFESOLI, 1998, p. 150)

Eis, portanto, uma via de pesquisa que, sem se prender


ao jogo dos formalismos científicos das teorias e conceitos, se
enraíza no sentido atribuído à vivência e à experiência e nos
permite compreender o social. Em outras palavras, é preciso
compreender o potencial instrumental da metáfora. Trata-se
de “compreendê-la como uma alavanca metodológica, como
foi o conceito, num tempo em que reinava a razão abstrata e a
esperança em valores universais oriundos da filosofia das Lu-
zes” (MAFFESOLI, 1998, p. 157). Se tomarmos a metáfora
como algo privilegiado na fenomenologia formista, torna-se
evidente que serão trabalhados os aspectos do imaginário.
36

O senso comum

O discurso acadêmico/intelectual tem, por vezes, se man-


tido distante do senso comum. Quando este último aparece,
tem sido comum ser visto como algo a ser interpretado ou
explicado por outro discurso tido como legitimador.

Engels via no senso comum ‘a pior das metafísicas’, certos au-


tores contemporâneos o qualificavam de ‘bric-à-brac ideológi-
co’ e, de maneira geral, a opinião comum nas ciências sociais
concorda quanto ao fato de que convém pôr em ação um ‘corte
epistemológico’ caso se queira, verdadeiramente, fazer traba-
lho científico. (MAFFESOLI, 1998, p. 161)

Entretanto, é justamente essa a questão colocada em xeque


pela fenomenologia formista. Neste caso, o senso comum não
é visto como algo a ser ultrapassado ou um pré-texto, uma vez
que ele tem validade em si mesmo, sendo visto como algo que
não precisa ser carregado de outro discurso para receber cre-
dibilidade. Para Maffesoli, a intuição e o uso da metáfora são
expressões desse senso comum.
O pesquisador que faz uso desse recurso não deve ser vis-
to como um traidor da vanguarda analítica. Este se empenha
em ultrapassar as mediações conceituais para alcançar, direta-
mente, o próprio coração das coisas, do sentido atribuído ao
fenômeno em si (MAFFESOLI, 1998, p. 161).
A partir dessa contribuição do senso comum, é possível
identificar três atitudes que Maffesoli sugere: 1) o exemplo de
um saber “tipo sul”. Enquanto o saber do norte toma o sen-
so comum como algo a ser superado, o saber tipo sul faz o
contrário, abre mão da mediação teórica para chegar o mais
próximo possível do senso comum em seu fenômeno concre-
to; 2) o exemplo de uma atitude da razão sensível, o qual se
legitima a partir do senso comum; 3) um exemplo do empiris-
mo especulativo, o qual se mantém o mais próximo possível
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 37

da concretude dos fenômenos sociais tomando-os pelo que são


em si próprios, sem pretender fazer com que entrem em um
molde preestabelecido, ou sem providenciar correspondência
a um sistema teórico construído. (MAFFESOLI, 1998, p. 162)

Algumas considerações para finalizar o capítulo

A fenomenologia como modalidade de pesquisa quali-


tativa em Ciências Sociais e Humanas traz possibilidades de
uma aproximação real do fenômeno pesquisado. A pesquisa
fenomenológica está dirigida para significados (MARTINS,
1989), e o que Maffesoli aborda como caminho para obter-se
uma descrição (do fenômeno), da intuição (fonte de autorida-
de para o conhecimento), uso do recurso metafórico a partir de
situações do senso comum, são condições metodológicas para
se apreender significados diante do que se busca compreender
fenomenologicamente.
Nosso propósito neste capítulo foi o de fundamentar, a
partir de Michel Maffesoli, uma atitude fenomenológica ante
as situações de pesquisa que requerem uma tomada de ações
que possibilitem uma compreensão dos fenômenos estudados,
para além de explicações causais, como demandam as postu-
ras científicas hegemônicas advindas das Ciências Naturais.
38

REFERÊNCIAS
BARROS, Eduardo Portanova. Imagem e imaginário: as
contribuições de Michel Maffesoli, um anarquista romântico.
In: ALVES, Fábio Lopes Alves; SCHROEDER, Tânia Maria
Rechia; BARROS, Ana Taís Martins Portanova. Diálogos
com o imaginário. Curitiba, Editora CRV, 2014.
HILLMAN, James. Cidade & alma. São Paulo: Nobel, 1993.
GIORGI, Amedeo. Phenomenology and psychological re-
search. Pittsburg: Duquesne University, 1978.
LYOTARD, Jean François. A fenomenologia. São Paulo: Di-
fusão Europeia do Livro, 1967.
MAFFESOLI, Michel. O conhecimento comum: introdução
à sociologia compreensiva. Porto Alegre, Sulina, 2007.
______. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e
Ofícios, 1995.
______. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 1998.
______. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.
MARTINS, Joel. A pesquisa qualitativa em Psicologia: fun-
damentos e recursos básicos. São Paulo: Editora Moraes Ldta.
1989.
MERLEAU-PONTY, Maurice Fenomenologia da percep-
ção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
SCHUTZ, Alfred, Sobre las realidades múltiplas. In: El pro-
blema de La realidad social. Buenos Aires: Amorrortu Edi-
tores, 1962.
PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS
E FENOMENOLOGIA NO
RELATIVISMO MAFFESOLIANO:
um reencantamento do mundo pelo
viés da sociologia compreensiva

Eduardo Portanova Barros4

Introdução

O sociólogo francês Michel Maffesoli (1944-), inicial-


mente, diferencia dois elementos de pesquisa: o conceito e a
noção. O conceitualismo procura na dialética a resposta para
os fenômenos sociais, já a noção aceita o caráter dialógico
desses fenômenos, cujas características podem ser, ao mesmo
tempo, complementares e antagônicas. E também contradi-
toriais. Em relação ao contraditorial, Maffesoli se aproxima
do relativismo do teórico da ciência Paul Feyerabend, para o
qual o relativismo é uma forma de enfrentar a diversidade. En-
frentamento no sentido não de reduzi-la ao binarismo, mas de
enfraquecer a base da Razão (FEYERABEND, 1991, p. 23).
Admirador confesso de Feyerabend, Maffesoli teoriza sobre
um reencantamento do mundo, através de práticas cotidianas
tribalistas. Esta observação é fundamentada pelo viés do ima-
ginário, o equilíbrio entre pulsões e intimações do meio social.
Imaginário, para Maffesoli, é a realidade. A realidade de um

4 Université de Paris V – Sorbonne. Centro d´Etude sur l´Actuel el le Quotidien (CEAQ). Groupe
de Recherche sur l´Espace et la Socialité (GRES). Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais (PPGCS) Unisinos-RS. E-mail : <www.imaginalis.pro.br>
40

cotidiano que deve merecer, segundo ele, uma investigação


menos preconceituosa por parte da ciência. Daí a fenomeno-
logia da qual faz referência.
Maffesoli absorveu a ideia de “trajeto antropológico” do an-
tropólogo Gilbert Durand (em Maffesoli, equivale à “centralida-
de subterrânea”), que é quando se constrói uma bacia semântica,
também de Durand, inundada por uma força ao mesmo tempo
emocional e racionalizante. Em torno do termo imaginário, a par-
tir de Gilbert Durand, foi que se constituiu a chamada Escola de
Grenoble (Universidade de Grenoble III), e que é a principal refe-
rência da Teoria do Imaginário com que trabalha Maffesoli. Con-
forme Durand, o imaginário estava bloqueado pelo positivismo,
o que, mais tarde, graças ao trabalho de Sigmund Freud, acabou
mudando, pois ele começara a dar importância para conteúdos do
inconsciente pela via psicanalítica. Depois veio Jung e a psicolo-
gia profunda com a noção de arquétipo.
Durand assume sua escolha pelo imaginário como um
caminho de teor científico, mas não cartesiano (que postulava
a evidência como método universal), isto é, não conforme as
leis de uma ciência dura. De formação antropológica, Durand
vê o simbolismo ligado à hominização quando os antropoides
assumem, num certo momento, a postura ereta. A partir do
corpo, passa a acontecer uma série de descobertas e uma série
de escolhas do ponto de vista instrumental. Esse caminho do
simbolismo e da hominização, o que Durand prefere chamar
de “trajeto antropológico”, é o foco de sua pesquisa. Para ele,
a imagem é fornecida pela cultura e pela estética.
É para o Centro de Pesquisa sobre o Imaginário que
convergem os estudos de Durand e de seus colaboradores,
na segunda metade dos anos 1960. São organizados diversos
encontros (seminários, colóquios, jornadas) para discutir o
ressurgimento do imaginário social. Do ponto de vista acadê-
mico, o interesse se volta para análises temáticas e uma meto-
dologia do imaginário. O intenso intercâmbio entre o Centre
de Recherche sur l´Imaginaire (CRI), fundado em dezembro
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 41

de 1966, e outros laboratórios, além de revistas ao redor da


Europa, fomentam as discussões em torno do imaginário. Os
assuntos variam desde os sistemas simbólicos até a antropolo-
gia urbana, passando, também, por temáticas como a do mito,
a criatividade, a forma, o espaço e a transgressão, apenas para
citar algumas delas. Durand procura pensar em termos de po-
laridades, mas não dualistas. Logo, fatores mecânicos não se
separam da imagem simbólica. O simbolismo em Durand é
não arbitrário e não convencional. É quando o signo perde sua
arbitrariedade e remete às abstrações, diz Durand, sobretudo
espirituais e morais que, dificilmente, são apresentáveis em
carne e osso.
Um detalhe interessante na história do CRI é que Durand
forma o Departamento de Estética e de Poética. São dois ter-
mos-chave nesta tese, pois eles dizem respeito a uma conduta
humana que não é, necessariamente, como vimos na explica-
ção anterior, o símbolo arbitrado. Trata-se de uma religação
entre a imagem e a expressão decorrente dela. O termo ima-
gem, quando ligado ao simbólico, não se refere àquilo que
se apresenta visualmente para nós. A imagem de um pássaro
em pleno voo é a de liberdade, e não a mecânica do voo, isto
é: asas que se abrem e que se fecham (mesmo que seja dessa
mecânica que se forma a imagem abstrata). Para Bachelard
(2008), o verão é a estação do ramalhete, um ramalhete eter-
no, que não murcha. É dessa imagem que tratamos. A palavra
“imagem” confunde-se com a “imagem” icônica, aquilo que
vemos no limite da nossa visão. Já a outra é uma espécie de
sentimento e de lembrança. Aproxima-se do sonho. O poema
é a expressão de uma imagem. Portanto, com a criação desse
departamento, algo burocrático, para tratar do epifânico, algo
indizível, Durand procura um reencantamento do mundo (ex-
pressão adotada, em diversas obras, por Maffesoli).
Em uma segunda etapa, no início dos anos 1980, o CRI
procura ligar-se ao CNRS e outros grupos de pesquisa sobre
o imaginário (um processo iniciado em 1978), reunindo dez
42

laboratórios franceses especializados em imaginário, e nomes


como os de Michel Maffesoli e Edgar Morin, entre outros. Um
ano depois é criado o Greco 56 (Grupo de Pesquisas Coorde-
nadas), que passa a contar com um órgão oficial, os Cahiers
de l´Imaginaire. Um dos laboratórios ligados ao CRI-Greco
56 é o Centre d´Études sur l´Actuel et le Quotidien (CEAQ),
dirigido por Michel Maffesoli e Georges Balandier, ligado à
Sorbonne. O estudo de Maffesoli foca num novo aparato social
ou em novas formas de socialidade. É assim que Maffesoli per-
cebe um novo laço social. Esta nova perspectiva volta-se para
uma orientalização do universo.

Convergência e transdisciplinaridade

O que Maffesoli faz é observar o cotidiano para apontar


antes tendências gerais do que leis irrefutáveis, através de uma
Sociologia Compreensiva. Trata-se de buscar na pluralidade
e na convivência de fatores díspares a base de seu olhar da
sociedade contemporânea. O fato de privilegiar a visão (dos
fatos sociais) antes plural do que monocórdica faz desse mé-
todo de investigação uma proposta aparentemente anárquica
(sem ordem). Porém, é desse mesmo anarquismo, desde que
visto sob o ângulo de uma metodologia, que ela se forma e
se fundamenta. Pode parecer, como na teoria de Paul Feyera-
bend, que o anarquismo epistemológico (o “tudo vale”) seja
um modo oportunista e desorganizado de pesquisa.
Mas não é o que se constata em trabalhos que já buscam
a convergência de saberes e a transdisciplinaridade como base
do conhecimento dito científico. Aliás, o que é ciência? Só a
partir de uma reflexão sobre este ponto é que se pode começar
a falar de uma Sociologia Compreensiva, oriunda de Max We-
ber (1864-1920). Um novo teórico surge – que é Maffesoli – e,
com ele, uma nova forma de ver a sociedade, não mais com a
lente do funcionalismo, que procura respostas e contornos nítidos
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 43

para a nebulosa social, e sim com a subjetividade própria de


um pesquisador interessado antes nas práticas cotidianas do
que nos discursos politicamente corretos.
É no comportamento, muitas vezes considerado histéri-
co (“a parte do diabo”), que a sociedade se vê. É aceitar o
trágico que se instala; aquele trágico que pode ser mostra-
do (ou “monstração”, com “n” mesmo), e não demonstrado.
Segundo Maffesoli, a modernidade se preocupava em querer
concluir qualquer ideia, tese ou argumento, o que, na opinião
dele, sufocava um pensamento plural: “[...] o mundo, sua re-
tórica, seus feitos são, essencialmente, plurais, não se prestam
a uma conclusão, mas sim a uma abertura. [...] Não devem,
portanto, constituir objeto de uma demonstração, mas sim de
uma mostração” (MAFFESOLI, 1998, p. 114, itálico nosso).
Tudo é fenômeno. Não existe a coisa em si. Há, neste
momento, para Maffesoli, uma conjunção dialógica entre tri-
bo, normas, sentimentos, formas, espírito, corpo e indivíduo
(persona). E há, também, uma tensão entre esses fatores que
compõem a morfologia social. Nessa existência sincrética,
esse indivíduo se reconhece e se reencontra consigo mesmo
e com os outros, dentro de um movimento em moto-continuo.
Seguidamente, identifica-se tanto com um grupo como com
outro. Ora faz parte de uma tribo, ora faz parte de outra. As-
sim, segue costurando sua identidade que já não é mais fixa,
mas complexa, junto aos grupos sociais.
Maffesoli insiste em dar importância para o imaterial, a
aura e o não racional weberiano nas relações sociais. Outra
questão interessante na obra dele é que o Ocidente não teria se
rendido apenas ao trabalho árduo para ter, como recompensa,
um futuro melhor. Não. Maffesoli acredita em um estar-junto
societal. Ou seja, a vida que se cristaliza no instante: um ins-
tante mágico, afirmativo. Este instante é a marca da pós-mo-
dernidade. Na modernidade, porém, o mito prometeico (tra-
balhar para colher os frutos) assumia um papel de destaque,
o de um sujeito institucionalizado e racional. A modernidade
44

era fundada no individualismo: se eu trabalhar direito serei


recompensado. Hoje, na pós-modernidade, Maffesoli nos fala
de uma “erótica social” (2012b). É o estar-junto orgânico, sem
finalidade. Na direção oposta, o mito dionisíaco da pós-mo-
dernidade valoriza a exacerbação dos afetos, o orgiástico e o
tribalismo. Grupos se juntam com objetivos comuns. A tribo
é fechada, mas solidária. Na pós-modernidade, o “contradito-
rial” não procura a superação dialética de elementos opostos.
Pergunta-se: presenciamos uma mudança de paradigma
de uma sensibilidade racional para a não racionalidade, con-
forme Maffesoli? Esta é a questão que colocamos: como tratar
de uma sociedade que, segundo Maffesoli, não mais aceita,
passivamente, o ordenamento como regra e o progresso como
solução? Vive-se, apesar da política, a efemeridade do coti-
diano. Não estamos na sociedade da informação, e sim na so-
ciedade do contato. É isso o que mais funciona. É melhor o
caos do que o excesso de organização. A política, que procura
regular a sociedade, agora é vista como um mal necessário.
Os “melhoradores” do mundo existem por todos os lados, mas
não é o que, agora, prevalece.
A ambiência emocional toma lugar da argumentação, de
acordo com o sociólogo francês. Mais vale o discurso panfletário
de um político do que o seu conteúdo. Atrizes pornôs são eleitas
para o parlamento europeu e jogadores de futebol filiam-se aos
partidos políticos brasileiros, sem nenhum projeto ou plano de
trabalho. Acreditar na força da emoção é contrariar a racionalida-
de como explicação do mundo. Talvez seja esse o principal mé-
rito desse sociólogo francês, o de vislumbrar o momento de um
novo espírito, agora dionisíaco, segundo ele.
O dionisíaco que aflora de uma atitude não racional, com
seu próprio código. O que Maffesoli acentua para justificar
sua tese é a importância que os atores sociais dão para o co-
tidiano, o presente, o aqui e agora. O futuro é passado. Conta
a forma de viver, o “presenteísmo”. Pode-se abdicar de uma
tarefa para curtir o ócio. O espetáculo é uma forma de êxtase.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 45

Todos esperam pela hora do show. O particular passou a ser


visto como um atributo coletivo. É isso o que Maffesoli chama
de “socialidade”, algo que se constrói na relação com o Ou-
tro. O “eu” se fortalece no mascaramento. Ora assumo um de-
terminado papel, ora outro. E todos esses papéis são válidos.
Há quem identifique em Maffesoli um híbrido de sociólogo,
antropólogo e filósofo. Sociólogo, por causa de sua formação
específica nessa área e por sua admiração pelo trabalho de
Weber, Émile Durkheim e Georg Simmel. Antropólogo – de
caráter urbano – por sua filiação fenomenológica aos estudos
de Gilbert Durand. E filósofo por sua admiração por Friedrich
Nietzsche, que, admitiu, lhe serve como um “par de óculos”.
Todos estes autores inspiram Maffesoli a falar de uma
saturação do mundo moderno centrada no substancialismo,
isto é, o de que algo seja algo ou signifique aquele atributo
ao qual se refere. Para Maffesoli, um mito deixa de existir
ou deixa de ser. A Sociologia Compreensiva em Maffesoli é
um imperativo atmosférico, o da animalidade humana, e este
fenômeno passa a adquirir importância, neste século, porque a
sociedade contemporânea já não se reconhece na lógica carte-
siana dos três séculos anteriores, lógica essa regida pelo ideal
de um futuro seguro através da força de trabalho. Um abismo
se abre. Mas (e aí entra um dos aspectos interessantes de uma
leitura sociológica de cunho compreensivo) uma das manei-
ras de conviver com essa “perda” é se distanciando, sempre
e cada vez mais, da única certeza que temos na vida, a morte.
Passamos, então, a dar mais importância ao cotidiano, ao vi-
vido, ao presente, à festa, ao prazer. Mesmo que tudo isso – e
por isso mesmo – seja efêmero. A obra de Michel Maffesoli,
em suma, destaca que uma ambiência emocional (ou seja, as
trocas e possibilidades de contato) toma lugar da argumen-
tação. Melhor ouvir do que explicar. O projeto de vida são
identificações e não identidades.
46

Não seria exagero dizer que Maffesoli é o teórico que se


impõe como referência quando se fala de uma fenomenologia
do imaginário baseada no cotidiano. Maffesoli insiste em dar
importância para o imaterial, a aura e o não racional nas rela-
ções sociais. Outra questão interessante na obra dele é que o
Ocidente não teria se rendido apenas ao trabalho árduo para
ter, como recompensa, um futuro melhor. Não. Maffesoli acre-
dita em um estar-junto societal. Ou seja, a vida que se cristali-
za no instante: um instante mágico, afirmativo. Este instante é
a marca da pós-modernidade. Na modernidade, porém, o mito
prometeico (trabalhar para colher os frutos) assumia um papel
de destaque, o de um sujeito institucionalizado e racional. A
modernidade era fundada no individualismo: se eu trabalhar
serei recompensado.
Esta é uma das principais virtudes na Sociologia Com-
preensiva. O que aparentemente não se cruza pode, na ver-
dade, esconder uma lógica própria que caberia ao pesquisa-
dor investigar. Reconhecer estas singularidades do cotidiano
– considerado espaço-matriz – está na base do “formismo”
maffesoliano. “Formismo” é a rejeição do dualismo, da lógi-
ca da separação, do “ou” isto “ou” aquilo. Maffesoli faz um
jogo de palavras, e assinala que a forma é formante, e não
formal. Com isso, o autor procura uma categoria estruturante
para dar conta da polissemia do cotidiano. Esta reversibilida-
de é característica do pensamento maffesoliano: a beleza do
feio, o fundo das aparências, a razão sensível. E isso tudo está
interligado. Trata-se de um recurso metodológico que procura
valorizar as “formas” de socialidade, ainda que o pesquisador
se afaste dos julgamentos. “O jogo das formas permite medir
a eficácia do anódino”, afirma Maffesoli (2007, p. 34). É a par-
tir dessa ideia “formista” que Maffesoli encontra um terreno
fértil para se lançar ao estudo de uma sociedade vitalista, de
forte inspiração nietzschiana e orgiástica. Uma ética remete à
estética das emoções.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 47

Para falarmos da sociedade contemporânea, não pode-


mos negligenciar um primeiro questionamento: o que defi-
ne o saber? Maffesoli, de forma latente, faz a si mesmo esse
mesmo tipo de pergunta e, para tentar respondê-la, retrocede
no tempo para projetar o futuro: utiliza-se de pensadores que
também questionam o “ocidentalismo” (este saber do jeito
que pensamos que seja) e, por outro lado, valorizam o coti-
diano (como Simmel). Esta visão crítica do mito prometeico
e a consciência da morte configuram o embrião da ideia de
pós-modernidade na linha do imaginário. Um filósofo francês,
Jean-François Lyotard, alavancou a discussão sobre a pós-
-modernidade por tratar desse assunto como sendo o de uma
natureza epistemológica. Autor de A condição pós-moderna
(1989), Lyotard observa diversas maneiras de se ver o social.
A partir desse pressuposto, ele abre a discussão para situações
que desestruturam a dialética tese-antítese-síntese. Os metar-
relatos já não significam muita coisa. Há, na pós-modernida-
de, uma desconfiança em relação aos instrumentos do saber.
Aliás, como afirmar que um saber é verdadeiro?
Em “A condição pós-moderna”, Lyotard opina que o saber
pós-moderno “refina nossa sensibilidade para as diferenças e
reforça nossa capacidade de suportar o incomensurável” (1989,
p. 13). Com isso, os valores modernos começam a ser questio-
nados, inclusive no que diz respeito à obra de arte. Não há como
não estabelecer uma cesura entre estes dois tipos de manifesta-
ções, a que diz respeito ao utilitarismo, típico da modernidade,
e a que diz respeito ao dispêndio, típico da pós-modernidade. O
aspecto que Lyotard aborda é o de que o saber científico não é
todo o saber. Assim, a obra de arte culta não seria toda a obra de
arte. O importante, aqui, é o fato de que se estabelece uma crise
entre o conhecimento dito científico e o que Lyotard chama de
narrativo, apesar de, segundo ele, não haver pensamento por
oposições em relação ao saber pós-moderno.
48

Lyotard diz que “enquanto o saber narrativo toma o cien-


tífico como uma variedade entre as culturas narrativas, o saber
científico interroga-se sobre a validade dos enunciados nar-
rativos” (1989, p. 61), adotando um raciocínio por oposição
incongruente com a natureza da pós-modernidade. Lyotard
não é um pensador pós-moderno, e sim um pensador da pós-
-modernidade, a exemplo do italiano Gianni Vattimo. Talvez
percebamos neles um vício de origem, o da filosofia como
instrumento de esclarecimento. O que Maffesoli propõe, ao
contrário, é uma reflexão que não tem o intuito de desmascarar
o que parece, para outros pensadores, encoberto.
Abrimos parênteses para outro autor. Trata-se de Paul
Feyerabend, que escreveu Contra o método (1993) para mos-
trar como diversas descobertas científicas podem ter sido fruto
do acaso. Esta tese abala o discurso científico, que não aceita o
pressuposto do acaso para o exercício da racionalidade. Tudo
deve ser (com)provado. Mas, como comprovar o estágio em
que a sociedade se encontra? Ou melhor: como um sociólogo
pode falar de algo não comprovável estatisticamente? “Fatos,
operações e resultados que constituem as ciências não têm uma
estrutura comum” (FEYERABEND, 1993, p. 7). Com isso, o
filósofo austríaco critica o saber tradicional, aquele assentado
no reducionismo. Ao lado de Karl Popper e de Thomas Kuhn,
Paul Feyerabend é considerado um dos principais renovadores
da história das ciências no século XX. Atacou duramente a
pretensão de neutralidade das pesquisas científicas.
Maffesoli também faz o mesmo. O autor de Adeus à razão
(1987) criou o princípio do tudo vale: retirar elementos para
análise ou construção dos lugares de onde bem se entender e
que pareçam mais adequados para a exposição daquela ideia.
Mesmo admitindo-se que se trata de um anarquismo episte-
mológico, este procedimento de Feyerabend não é de todo im-
procedente. As descobertas ditas científicas não são puramente
racionais, oriundas apenas da razão. E a imaginação não tem
nada de científico. Este tipo de estudo, o de uma pluralidade de
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 49

saberes, dialoga com as percepções de Bachelard das poéticas e,


contemporaneamente, com a Sociologia Compreensiva em Mi-
chel Maffesoli. Pois a Sociologia Compreensiva maffesoliana5
procura o conhecimento como obra da imaginação.
Compreender, etimologicamente falando, ensina Ma-
ffesoli, é “nascer com”, e se somos uma individualidade que
“nasce com”, também somos o coletivo social, algo originário
do complexo (e “complexo” é um tecido, e, por ser tecido, é,
de novo, tecido “com”) organismo humano e social. Nossa
sociedade ocidental contemporânea atravessa um momento
ímpar, e é dessa singularidade que Maffesoli nos fala. Logo,
não podemos utilizar a medida cartesiana para dar conta de
uma pesquisa que clama por ser, acima de tudo, polissêmica, e
cujos sentidos não se enquadrariam neste ou naquele conceito
(o conceito da certeza). Sabemos, com Edgar Morin, que o
cientificismo é uma doutrina que reconhece como única ver-
dade a do método científico. Mas, qual é o método científico
da Sociologia Compreensiva?
Derivada de Weber (influenciado por Nietzsche, a exem-
plo de Maffesoli), a expressão procura, em Maffesoli, a con-
fluência de fatores que originam a sociedade. Estes fatores,
como apontamos antes, são plurais. Pluralidade que nos reme-
te à complexidade dos atores sociais que extrapolam uma vi-
são monocromática de indivíduos considerados idênticos, mas
que, na verdade, estão juntos em torno de uma mesma raiz
antropológica, a de viver na sociedade estruturada a partir dos
elementos constitutivos do seu ser, diferem-se, por outro lado,
uns dos outros. É o uno e o todo que, juntos, formam a base
social. Porém, para a doutrina cientificista, a verdade da exis-
tência é uma só, a que se afasta de um relativismo: pôr em re-
lação. Maffesoli, contrário ao estatuto acadêmico tradicional,

5 Maffesoli se inspirou em Max Weber, cuja proposta “compreensiva” se apoia na convicção se-
gundo a qual as pessoas não são apenas agentes portadores de estruturas, mas sim produtores
ativos, depositários de um conhecimento importante. A meta é uma explicação compreensiva do
social. O que importa é a história de vida da fonte, e não a história congelada no tempo, nostálgi-
ca, passada. O passado, o presente e o futuro misturam-se.
50

reitera a necessidade de relativizarmos. Relativizar é o tema


pós-modernidade, porque existe um jogo em questão, que é
o de valorizar um modo de ser sensível à complexidade do
instante, e, mais significativo de tudo, integrar as contradições
próprias de um sentimento antes trágico do que dramático da
existência, como assinalamos anteriormente.

Os pressupostos maffesolianos

Em “O conhecimento comum” (2007), Michel Maffesoli


trabalha com a ideia de cinco pressupostos, o da crítica ao
dualismo esquemático (1), o da forma (2), o da sensibilidade
relativista (3), o da pesquisa estilística (4) e o de um pensa-
mento libertário (5). Estes cinco pontos configuram uma me-
todologia “aplicável” em trabalhos científicos, cujo objetivo é
o de situar a pesquisa naquilo que o autor entende por “razão
sensível”, a ambivalência entre o dado concreto e o espírito do
tempo, sem prejuízo de um em relação ao outro. Todos estes
postulados formam um “corpus” de aplicação em diferentes
áreas do conhecimento. Poderíamos dizer, admitindo certo re-
ducionismo, que estes pressupostos são a “teoria aplicada” de
Maffesoli. Quer dizer: o pesquisador que procurasse se valer
dos estudos maffesolianos para escrever algum trabalho cien-
tífico encontraria nos cinco pressupostos uma metodologia
clara. Porém, cada pressuposto destes traz, em si, uma série de
reflexões em cascata, digamos.
Cada um deles amplia o universo de pesquisa para outras
áreas do conhecimento; para além da Sociologia. Isso porque
Maffesoli fala por aproximações. Ou seja, as respostas não es-
tão dadas de modo apriorístico, em virtude do estilo ensaístico
nos seus livros. Nem por isso, o ensaio deve ser menosprezado
como obra menor. Maffesoli elabora um pensamento orgâni-
co, que surge e se nutre de uma visão pessoal de mundo, e o
reelabora sob a forma de um trabalho acadêmico. Pensamento
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 51

orgânico é o não racional, que, para Maffesoli, estaria inserido


no campo das paixões, das emoções e dos afetos. Esta ideia
liga-se ao pensamento nietzschiano da concepção trágica da
existência. “[...] o mito trágico, a representação de tudo quan-
to há de terrível, de cruento, de fatal, no fundo de tudo quanto
é vivo. Donde viria, então, a tragédia? Talvez mesmo da ale-
gria, da força, da saúde exuberante, do excesso de vitalidade”
(NIETZSCHE, 2002, p. 24).
É em Nietzsche que Maffesoli se baseia para mostrar (e
não demonstrar – diferença mencionada acima) a distinção
entre o dramático e o trágico. No drama, há sempre uma ação
para ser resolvida, característica da concepção judaico-cristã,
encontrada, por exemplo, no marxismo. Dramático também
é o político, que hoje, na opinião de Maffesoli, se encontra
transfigurado. E o instrumento lógico do drama é a dialéti-
ca (tese, antítese e síntese). Em outras palavras, o drama é o
modo de pensar oficial. Todo o resto é trágico, o que Maffe-
soli denominou instante eterno (título de um de seus livros).
Nietzsche explica a questão ao acusar o “socratismo da moral,
da dialética, da ponderação e da serenidade do homem” como
sendo a causa da morte da tragédia e, portanto, do vitalismo.
Esse resto pode ser a consciência da morte, pois não ha-
veria mais um além, e sim um viver a morte todos os dias
(homeopatização da existência). Os países mais festivos são,
também, os mais trágicos. Para Maffesoli, o acúmulo de cor-
pos conforta a coletividade. Parece que Dioniso (ou Dioní-
sio, que também é Baco) preside o país. Nietzsche é, pois, o
grande pensador trágico. Segundo Maffesoli, o corpo social
é impregnado por um sexo difuso (vive-se, diz ele, na orgia:
etimologicamente falando, um compartilhar emoções. Esse
é, aliás, o sentido que ele dá para estética); quer dizer, um
laissez-faire antes comportamental do que princípio de teoria
econômica, não só produtivista como o da mentalidade bur-
guesa. Durante o período “moderno”, prevaleciam os termos
52

assepsia, emancipação (do mal e da desordem), unidade, indi-


víduo, dominação, poder, progresso, moralismo, verdade, ris-
co zero, racionalismo, ascetismo, utilidade, indivisibilidade,
autonomia e lógica.
Ambivalência, ambiguidade, imperfeição, tremor, sedu-
ção, duplo, sombra, holismo, pessoa e complexidade são termos
de uma fenomenologia do cotidiano na ensaística maffesoliana.
Não há uma oposição clara entre os termos6. As duas listas, apa-
rentemente contrárias entre si, têm um caráter apenas didático-
-ilustrativo. Com Nietzsche, Maffesoli descobre ainda os aspec-
tos vitalista e mágico do homem banal. Mas há outro pensador
que interessa aos estudiosos de Maffesoli: Gaston Bachelard,
um dos fundadores da noção de imaginário. O relativismo cien-
tífico em Gaston Bachelard pode ser interpretado como “idea-
lismo discursivo” segundo o qual “nenhuma ideia isolada traz
em si a marca da sua objetividade” (2008, p. 77). No entanto,
mesmo reconhecendo a importância de Bachelard, é antes com
Nietzsche que Maffesoli se identifica.
Ainda conforme Bachelard, existe uma imprecisão no pen-
samento, e, se considerarmos a natureza da pesquisa científi-
ca, é por via de uma aproximação, no início intuitiva, que se
forma o corpo daquilo que se entende por uma tese. Como o
próprio nome indica, uma “tese” é uma proposta de reflexão, e
não a verdade em si. Para Feyerabend (1991), as pesquisas têm
se preocupado mais com o conhecimento técnico do que uma
relação com a existência humana. O filósofo austríaco procura
desconstruir o conhecimento como o de uma realidade única,
verdadeira, racional e objetiva. Outras formas de conhecimento,
que resultaram ou não em uma determinada descoberta (tese),
são benéficas para qualquer tipo de pesquisa, nas mais diferen-
tes áreas. Também questiona a própria Filosofia e sua nature-
za “iluminista”. Feyerabend acredita no “método” intuitivo.
Segundo Feyerabend – cujo trabalho tem ressonâncias com a
elaboração “nocional” (aquilo que diz respeito às noções e

6 “Estes dois instintos impulsivos [os espíritos apolíneo/dramático e dionisíaco/trágico] andam lado
a lado e na maior parte do tempo em guerra aberta, mutuamente se desafiando e excitando para
darem origem a criações novas” (NIETZSCHE, 2002, p. 39).
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 53

não aos conceitos) em Maffesoli –, o anarquismo teórico (esse


“tudo vale”) é considerado mais humano e adequado para o
estímulo ao progresso do que doutrinas conceituais fechadas e
baseadas na lei e na ordem. O “tudo vale” em Feyerabend é um
princípio no qual, para “minha” análise ou construção, posso
tirar dos lugares que bem entender os elementos que pareçam
mais procedentes. Se pensarmos o “tudo vale” na pós-moderni-
dade, trata-se de um chamado ao “inclusivismo”, normalmente
aceito como sendo a sua principal característica. Feyerabend
propunha a utilização de hipóteses que até contrariassem teorias
confirmadas ou paradigmáticas. Para ele, a ciência avança por
contraindução. Ou pela intuição do pesquisador.
Para Maffesoli, é um método generoso de pesquisa. Feye-
rabend se insurge contra a “tirania da verdade”, pois aponta que
o desenvolvimento de conceitos não seria, necessariamente, o
resultado de ações conscientes. E dá vários exemplos, que não
é o caso de explorar. O relativismo, na concepção dele, é uma
forma de enfraquecer a base da razão. Segundo Feyerabend,
“o relativismo é racional, humano e se encontra mais genera-
lizado do que vulgarmente se supõe” (1991, p. 23). E antides-
pótico. De acordo com Maffesoli, a expressão “tudo vale”, em
Feyerabend, é semelhante à vida social, isto é, incoerente. O
“tudo vale” de Feyerabend é interpretado por Maffesoli como
uma forma não categórica de pesquisa, no sentido de que a
verdade não existiria em si mesma, mas naquilo que existe de
relação nos fenômenos sociais e no cotidiano. É o “tudo vale”,
em outros termos, que sustenta o relativismo maffesoliano.
Assim, o indivíduo, transportando o tema para as formas
de socialidade em Maffesoli, já não se reconhece uno, e sim
plural, pelo simples (mas não tão simples assim) fato de que
se vê, hoje, como “resultado” da relação com o Outro. Ago-
ra, vive não mais com o pensamento individualista no isola-
cionismo, mas na trágica (porque inescapável) relação a dois
(pelo menos). E o par Eu-Outro traz, sempre, novas possibili-
dades de compreensão do real, sempre complexo. Na própria
raiz do complexo, se forma o que Morin destaca como um
54

“tecido conjuntivo”. E se é “tecido”, como a sociedade, não é


tão simples separar as partes do todo, e vice-versa. Este pensa-
mento tem afinidade com o de Maffesoli. Morin tem o mérito
de abordar o caráter complexo da sociedade, e essa manifes-
tação plural do cotidiano inspirou Maffesoli na elaboração de
um estudo menos conceitual dos atores sociais. A Sociologia
Compreensiva deve à capacidade reflexiva de Edgar Morin
o fundamento da pluralidade que, na sua base, incorpora um
saber não oficial. A ideia de “tecido conjuntivo” configura-se
de modo anômico, como um todo, e não só pela presença do
indivíduo. Este também conta, mas o caráter abrangente da
Sociologia Compreensiva procura, em primeiro lugar, desfa-
zer a ideia de individualismo na sociedade pós-moderna.
O indivíduo em Maffesoli só é considerado na relação com
o Outro, e nunca de maneira isolada. Isso nos remete à comple-
xidade entre o todo e as partes de um determinando conjunto
em Morin. Só podemos conhecer as partes se conhecermos o
todo em que elas se situam. E só podemos conhecer o todo se
conhecermos as partes que o compõem. O princípio do pensa-
mento em Morin é (re)ligar, (re)unir, juntar, relacionar. A reali-
dade, para ele, é multidimensional. Porém, tem sido estudada
separadamente, e separar é “reduzir” (daí o reducionismo que
Morin tanto condena). O reducionismo ignora, segundo ele, o
saber sistêmico, que só existe por causa e através da ambivalên-
cia entre um dado conjunto e suas partes. O ser humano também
é complexo. Cada parte de seu corpo o define. Por isso, até pode
ser autônomo, mas essa autonomia é relativa. Logo, não só a
parte está no todo como o todo está na parte. A parte sou eu, um
indivíduo. O todo é a soma dessas partes.
O pensamento complexo, para Morin, é simplesmente um
caminho para compreender melhor os problemas humanos. É a
capacidade de compreender os nossos problemas fundamentais,
“enfrentando” a incerteza. A nossa constituição humana nos
leva ao choque. O planejamento jamais será unívoco. Porém,
como numa espécie de entropia pessoal, nunca seremos capazes
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 55

de experimentar o que planejamos anteriormente. Este é, em


síntese, o “contraditorial”, com o qual podemos ver aproxima-
ções com o trágico pós-moderno e a complexidade.
A complexidade, em Morin, é estrita. Ela é ao mesmo
tempo homo, sapiens, demens, ludens, mitologicus e poeticus.
São as dimensões do humano que estão interligadas, o que
faz de seu pensamento uma teia de sensações, não verificá-
veis pelo conteúdo da materialidade, apenas. O universo é
imperfeito, mas essa imperfeição de que é feito também é a
condição de sua existência, segundo Morin. Quer dizer: o sa-
ber prometeico, o de avançar para corrigir, já não corresponde
às expectativas sociais. Em Ciência com consciência, Morin
defende uma “razão aberta” e faz a crítica ao racionalismo,
aquela visão de mundo que se afirma na concordância perfei-
ta entre o racional e a realidade. A tríade humano-biológico-
-cultural é inseparável no ser humano, diz Morin (pois ela car-
regaria nossos afetos, nossas pulsões e nossa racionalidade).
Trata-se de um todo cujas partes até poderiam ser distintas,
mas nunca isoladas entre si.
Morin fez questão de organizar seu pensamento metodo-
logicamente. Os seis livros dessa fase, que se estendeu por vá-
rios anos e que foi concluída depois da virada do milênio com
a publicação de O método 6 – ética, apresentam como que
uma unidade múltipla (unitas multiplex) da sua tese. A ideia
central do último trabalho na linha das metodologias é a de
que a ética não pode escapar dos problemas da complexidade,
e o conhecimento complexo se tornou vital na sociedade con-
temporânea. É preciso praticar a complexidade, e essa prática
começa no indivíduo. Maffesoli, assim, absorveu de Morin
esse território complexo que é a socialidade. De Feyerabend,
adotou o “tudo vale” como metodologia, a fim de sustentar a
tese de uma Sociologia Compreensiva, pelo viés fenomeno-
lógico de um imaginário cotidiano. Jung é, ainda, peça-chave
para a compreensão da sociologia maffesoliana por causa da
noção de arquétipos. E Durand, por sua vez, foi o antropólogo
56

que teorizou o imaginário sob a perspectiva arquetipal de


Jung. Em suma, o ensaísmo maffesoliano se aglutina em torno
de três nomes: Nietzsche, Jung e Durand. Numa segunda ins-
tância, Morin, Feyerabend e Heidegger (para Vattimo, um dos
precursores da pós-modernidade).

Considerações finais

Maffesoli utiliza um método ensaístico de investigação


que permite um olhar atualizado da emergente sociedade pós-
-moderna. É possível considerar a Sociologia Compreensiva,
ligada ao ensaio acadêmico, uma metodologia científica? O
relativismo, que é a base da Sociologia Compreensiva, alcan-
ça algum resultado? O fato de pensarmos o relativismo como
uma forma inclusivista de pesquisa, sem menosprezar também
a objetividade, não traria um resultado mais fiel e próximo
do significado de uma Sociologia Compreensiva? A Sociolo-
gia Compreensiva, por meio do relativismo, não ampliaria o
conteúdo da pesquisa acadêmica, situando-a na lógica da plu-
ralidade do conhecimento e inserindo conteúdo proveniente
até da intuição do pesquisador? Não seria a Sociologia Com-
preensiva, enfim, uma maneira de dar conta, academicamen-
te falando, das novas tendências e sensibilidades da pesquisa
científica contemporânea? A resposta é afirmativa levando-se
em conta, como apresentamos anteriormente, os cinco pressu-
postos maffesolianos e as suas principais teses sociológicas:
tribalismo, nomadismo e orgiasmo.
Em Weber, outra influência de Maffesoli, a compreensão
pode ser empírica (direta do significado de um ato) ou ex-
plicativa, baseada na motivação. Para Weber, o princípio da
compreensão é o de uma análise interpretativa (2002, p. 16).
Weber admite que “a sociologia tenta abranger também vários
fenômenos irracionais, isto é, míticos, proféticos, espirituais,
bem como afetivos” (2002, p. 32). Pelo viés da Sociologia
Compreensiva, é possível incluirmos na análise uma forma de
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 57

raciocínio similar àquilo que estamos descrevendo, e julga-


mos ser isso extremamente necessário para que o investigador
e o “objeto” de sua investigação falem a mesma língua. Se não
fosse assim, a pesquisa se transformaria apenas em uma for-
ma vazia, porque tentaria falar de algo contrário, nos próprios
termos, ao assunto estudado. Em outras palavras: para falar de
Maffesoli de modo compreensivo, precisamos ser compreen-
sivos com o seu modo de falar.
Não esqueçamos que a superfície é o que é. Não exis-
te nada além disso, segundo Maffesoli. Não existe nada que
esteja sendo representado ali. Todos nós vivemos na ambiva-
lência entre a produção e a imaterialidade. É tudo uma coisa
só, holística, vivida. Maffesoli gosta muito de pensar no sim-
bolismo, mas do simbólico que emana de uma característica
antropológica; daquilo que nos constitui como homo eroticus.
A produção é uma necessidade tribal de distinção do mesmo.
Pela tribo, pela imaginação simbólica e pelo fundo das apa-
rências temos uma interessante leitura do universo maffesolia-
no. Maffesoli chama a pós-modernidade de uma época de “de-
subjetivação” (MAFFESOLI, 2012a, p. 12). O individualismo 
subjetivista da modernidade acabou. A pessoa plural já não
se define pela identidade, mas pela identificação com algo.
Essa identificação é que faz de nós uma pessoa plural. Plural
porque temos e assumimos, agora, diferentes e vários gostos,
opiniões e papeis. O tempo do progresso e do contrato social
acabou junto com os três séculos anteriores. O século XXI
é o tempo das tribos e das redes sociais, que se conformam
ao contato primeiro, supérfluo, intersticial e fraco contra um
temperamento apolíneo, profundo, amarrado ao futuro e forte.
Segundo Maffesoli, assiste-se ao deslizamento do con-
trato racional para o que ele chamou de pacto emocional
(2012b, p. 37). Vivemos tempos de uma erótica social ou de
comunhões emocionais. A especificidade da pós-modernidade
é a copresença, conforme Maffesoli (2012b). Rimbaud dizia:
“Eu sou o Outro”. Para Maffesoli, atualizando essa expressão,
estamos no “Eu estou com o Outro” (2012b, p. 100). É isso
a pós-modernidade. É isso a fenomenologia maffesoliana. É
58

todo um novo paradigma. São as pequenas – e não grandes –


histórias que nos interessam. São elas que, segundo Maffesoli,
têm um papel agregador. Hoje não possuímos um objeto, mas
somos possuídos por ele porque temos uma relação de afe-
to por esse mesmo objeto. A estruturação da vida social, em
suma, reside na paixão.
Maffesoli defende a tese de uma transfiguração do político.
Uma das principais noções de Maffesoli para justificar essa pos-
sível mudança de paradigma, se ficarmos com Thomas Kuhn, é
a de “religação”, para dar conta de uma forma específica e orgâ-
nica de laço social marcado pela efervescência tribalista (1997,
p. 41). Para Maffesoli, a ordenação política da modernidade não
é mais a mesma. Hoje, se há uma forma de combater o político
não é pelo sequestro de ministros estrangeiros, e sim pela “abs-
tenção, astúcia, ironia, inversão carnavalesca e ainda muitas ou-
tras modulações” (MAFFESOLI, 1997, p. 99). Maffesoli liga
a implosão do político à saturação da lógica da identidade: “O
deslizamento da identidade para a identificação é uma marca da
pós-modernidade” (1997, p. 126).
O que Maffesoli nos diz é que o sujeito político se en-
fraqueceu – e a esfera de poder que o justificou também. Em
outro livro, O tempo das tribos, Maffesoli apresenta um su-
gestivo subtítulo: o declínio do individualismo nas sociedades
de massa. Para ele, evidencia-se, ao contrário do que se pensa,
uma “imitação apaixonada” (1997, p. 140). Lembrando Sim-
mel, Maffesoli diz que se trata de um fenômeno sociológico
dos mais instrutivos. Assim, a cultura se vê entre a moder-
nidade e a expressão “pós” que procura, na sua trajetória, a
dissonância com questões relacionadas à ideia de uma história
linear pela marcha dos oprimidos. A opressão, agora, é de ou-
tra natureza, porque o humanismo está desacreditado. O sonho
de uma sociedade igualitária ruiu com a Queda do Muro, em
1989, o que não quer dizer, por outro lado, que diferenças não
deixem de existir. E essas diferenças, do ponto de vista cultu-
ral, não são menos significativas das que existiam antes.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 59

REFERÊNCIAS
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DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário.
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filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel, 1998.
FEYERABEND, P. Adeus à razão. Lisboa: Edições 70, 1991.
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LYOTARD, J-F. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva,
1989.
MAFFESOLI, M.; PERRIER. L´homme post-moderne. Pa-
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MAFFESOLI, M. O conhecimento comum. Porto Alegre:
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_________. Homo eroticus. Paris: CNRS, 2012b.
_________. O tempo das tribos – O declínio do individua-
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1998.
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_________. A parte do diabo – Resumo da subversão pós-
-moderna. Rio de Janeiro: Record, 2004.
_________. Notas sobre a pós-modernidade – O lugar faz o
elo. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Lis-
boa: Instituto Piaget, 1991.
_________. O método 6: Ética. Porto Alegre: Sulina, 2005
NIETZSCHE, F. A origem da tragédia. Lisboa: Guimarães
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WATIER, P. Uma introdução à sociologia compreensiva.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
WEBER, M. Conceitos Básicos de Sociologia. São Paulo: Centauro, 2002.
A DIDÁTICA NA PERSPECTIVA
FENOMENOLÓGICA

Carlos Cardoso Silva7

O ato de educar circunscreve a uma realidade vivenciada


pelo ser humano, seja essa realidade informal, não formal ou
formal. Falar em educação representa a abordagem de uma
fenomenologia8 que tem implícita uma série de matizes pro-
blemáticas que abrangem o desenvolvimento da sociedade, da
cultura e do indivíduo. Se o ato educativo nas diversas realida-
des se mostra como fenômeno a ser compreendido, estudado
e pesquisado pelo homem, o ato de ensinar também se carac-
teriza como fenômeno e é apreendido por uma diversidade de
concepções teóricas que merecem atenção.
Falar de ensino é abordar a fenomenologia do ato de en-
sinar. O ato de ensinar é um fenômeno presente na vida do
ser humano visando à sua melhor integração à sociedade, seja
esta informal ou formal. E, sendo um fenômeno, devemos
perceber as diversas formas de educar e ensinar presentes no
mundo. Partindo deste pressuposto, busquei compreender a
didática do ato de ensinar na perspectiva da fenomenologia.
Discutir fenomenologia é perceber uma perspectiva fi-
losófica ampla e contextualizada que se caracteriza por uma
epistemologia na concepção de seu fundador Edmund Husserl
(1859-1938), de seus continuadores, como Martin Heidegger
(1889-1976), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) e outros.
Porém, a fenomenologia é abrangente e permite uma leitura po-
lissêmica para os autores citados e aos estudiosos da filosofia

7 Doutor em Educação e Professor de Didática e Estágio da FE/UFG.


8 Estudo descritivo de um fenômeno ou de um conjunto de fenômenos em que estes se definem
quer por oposição às leis abstratas e fixas que o ordenam, quer por oposição às realidades de
que seriam à manifestação.
62

transcendental. Diante da perspectiva epistemológica da feno-


menologia a tendência da compreensão é ficar restrita ao campo
teórico do conhecimento, isto é, uma teoria do conhecimento.
Husserl teve como pressuposto básico “o retorno às coisas
mesmas”, conhecido na atualidade como o lema básico da fe-
nomenologia. Na acepção “de volta às coisas mesmas”, Husserl
buscou a superação da oposição entre o realismo e o idealismo,
romper com a dicotomia entre sujeito e objeto, bem como a sepa-
ração entre a consciência e o mundo. Para este pensador, a cons-
ciência se dá no mundo, portanto, não existe sujeito sem objeto.
Tendo a fenomenologia como um método rigoroso, e também,
como um método que possibilitasse uma técnica de apreensão da
essência dos fenômenos, Husserl a partir da fenomenologia bus-
cava solucionar o subjetivismo intelectual presente no final do sé-
culo XIX e começo do século XX. A perspectiva husserliana era
a criação de uma corrente filosófica que tivesse um embasamento
sólido para a filosofia e para as ciências, ou seja, uma solução à
crise intelectual que grassava pela Europa, a qual Husserl deno-
minou de “a crise da humanidade europeia”.
Na expectativa de ver solapada toda a instância do es-
pírito filosófico, diante do racionalismo excessivo, tecnicista
e cientificista que era uma forma de irracionalidade, Husserl
busca restaurar o sentido maior do progresso da razão, das
luzes mesmas, isto é, um retorno à razão da consciência com
base no cogito. Era à volta ao sentido originário do pensar,
contra o psicologismo, o empirismo, o naturalismo e o positi-
vismo vazio de humanidade, ou seja, correntes teóricas volta-
das somente para o progresso técnico e cientificista reinantes
na Europa e que impunham ao homem um novo tipo, uma
nova modalidade de cultura.
Husserl (2002), na conferência de 1936 – considerada o
seu verdadeiro testamento filosófico, cuja obra foi intitulada A
Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcen-
dental – afirmava:
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 63

Nesta conferência quero ousar a tentativa de suscitar um novo


interesse para o tão frequentemente tratado tema da crise euro-
peia, desenvolvendo a ideia histórico-filosófico (ou o sentido
teleológico) da humanidade europeia. Ao expor a função essen-
cial que, neste sentido, tem a exercer a filosofia e suas ramifica-
ções, que são nossas ciências, a crise europeia também ganhará
uma nova elucidação. (HUSSERL, 2002, p. 65)

Para Husserl, era inconcebível que a Europa, berço da ra-


zão desde os gregos antigos, negasse a dimensão da vida como
estava ocorrendo na modernidade. Por isso, Husserl (2002)
alertava para a importância de dirigir-se o olhar “da corpo-
reidade humana para a espiritualidade humana”. Portanto, a
crise da humanidade europeia era uma crise do pensar.

As nações europeias estão enfermas. Diz-se que a própria Eu-


ropa está em uma crise. Não faltam curandeiros. Estamos sub-
mersos num verdadeiro dilúvio de propostas ingênuas e exal-
tadas de reforma. Mas por que aqui as ciências do espírito, tão
ricamente desenvolvidas, não prestam o serviço que as ciências
da natureza cumprem excelentemente em sua esfera?
Aqueles que estão familiarizados com o espírito das ciências
modernas poderão responder sem dificuldade: a grandeza das
ciências da natureza consiste em elas não se conformarem com
uma empiria sensível porque, para elas, toda a descrição da na-
tureza só é uma passagem metódica para a explicação exata,
em último lugar, físico-química. Os mesmos opinam que as
ciências ‘meramente descritivas’ nos prendem às finitudes do
mundo circundante terreno. Mas a ciência da natureza mate-
mático-exata abrange, com seu método, as infinitudes em sua
efetividades (in ihrer Wirklichkeiten) e possibilidades reais
(und realen Möglich-keiten). (HUSSERL, 2002, p. 66)

Nesse cenário de crise e de enfermidade, como a consi-


derava, o pensador reagiu e teceu severas críticas ao modelo
e às concepções de ciências vigentes. Assim, para Husserl, a
fenomenologia aspira ao estudo das essências, isto é, recolo-
cando-as na existência, pois ela não existe separada do objeto.
O mesmo ocorre com a ciência das essências, que são formas
64

que descrevem o fenômeno, isto é, não se adquire e apreende


apenas por meio da comparação e da abstração dos objetos em
si. Por isso, é necessário o “retorno à coisa mesma”, que pro-
cura o filosofar orientado pelos problemas que estão presentes
na vivência da consciência.
O ato de enfrentamento e resistência de Husserl apre-
sentava a possibilidade de o homem resistir ao pensamento
imposto, à razão totalitária, e tornar-se sujeito da sua ação,
da sua condição de ser humano. Conforme Kelkel e Schérer
(1954) e Merleau-Ponty (1999), Husserl se preocupava com
a questão do ser e como o ser compreendia a realidade dada
pela consciência; porém, o seu pensamento apresentava um
caráter formativo, pedagógico radical (ir à origem) e rigoroso,
fundamentado pelo método fenomenológico.
A prática pedagógica é intencional, isto é, busca uma
ação de aprendizagem com objetivos e finalidades para um
determinado propósito, portanto, um ato intencional da cons-
ciência. Com base na afirmação de que a consciência é cons-
ciência de algo, Husserl inclui como ideia fundamental em
sua fenomenologia a noção de intencionalidade. Apresenta a
intencionalidade como algo inerente ao ato de conhecimento,
situando-a como a característica desse ato de sempre se referir
a algo, o que implica algum objeto de conhecimento: “Perten-
ce à essência das vivências de conhecimento (Erkentniserle-
bnisse) ter uma intentio, significar alguma coisa, referir-se a
uma objetividade.” (HUSSERL, 2006, p. 55).
Deste modo, para Husserl, o conhecimento implica uma
consciência intencional – que não é consciência em si mesma
– mas sempre consciência de alguma coisa. Entre a consciên-
cia e o objeto não há uma distância, ou seja, não existe uma se-
paração entre ambos; não há, entretanto, necessidade de uma
consciência que constitua seu objeto, ou ainda, de objeto que
constitua uma consciência, mas sim uma intencionalidade, um
movimento de interação entre a consciência que só é se aberta
para o objeto, e objeto que se mostra, que se coloca se estiver
intencionado pela consciência.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 65

Husserl, em seu método de análise da consciência – ob-


jeto de suas pesquisas –, inaugurou a possibilidade de um ca-
minho para uma filosofia rigorosa e de uma nova metafísica, a
partir de um método que conduzisse o pensamento. A dimen-
são pedagógica do pensamento de Husserl compreende que
tudo o que existe está em conexão com o humano. A inten-
cionalidade é parte da dimensão pedagógica, como também
a epoché, ou seja, é a suspensão provisória do juízo, o ato
de colocar entre parênteses. É pedagógico porque visa fun-
damentalmente à mudança de atitude, isto é, à passagem da
atitude natural em que vivemos de forma espontânea, conside-
rando os objetos como algo exterior à nossa consciência, isto
é, como objetos existentes em si, para uma atitude formativa,
consciente e crítica, portanto, fenomenológica.
Ao efetuar a passagem da atitude natural para uma ati-
tude fenomenológica por meio da redução, dá-se uma trans-
formação, uma mudança; a realidade que é aparência dos ob-
jetos – transcendente – é posta entre parênteses, é colocada
em suspenso, ou seja, é realizada a suspensão do juízo sobre
a existência real – da aparência – e, portanto, os objetos são
considerados como puramente significados, intencionados.
A dimensão pedagógica da redução eidética está no fato
de possibilitar o retorno às experiências, às vivências. Segun-
do Merleau-Ponty (1999), a redução eidética designa esse re-
torno “às coisas mesmas”, ao real, à percepção de um mundo
pré-objetivo e antepredicativo, que já existe anteriormente ao
conceito, pois é da ordem do que é vivido, e não do que é
pensado. É pedagógica porque proporciona condições de rom-
pimento com a lógica conservadora, tecnicista e fragmentada
de pensar a partir de um dado estabelecido, posto sem con-
siderar a vivência, a subjetividade e a intersubjetividade dos
sujeitos envolvidos. Neste aspecto, possibilita que a relação de
aprendizagem ultrapasse um simples fazer, porque busca uma
aprendizagem dos “conteúdos” do mundo vida.
66

Ainda, conforme Merleau-Ponty (1999, p. 10), essa redu-


ção é também transcendental, no sentido de que caminha em
direção ao mundo e vai além dele para se completar:

a reflexão não se retira do mundo em direção à unidade da


consciência enquanto fundamento do mundo; ela toma dis-
tância para ver brotar as transcendências, ela distende os fios
intencionais que nos ligam ao mundo porque o revela como
estranho e paradoxal.

Portanto, é pedagógico porque desvela o mundo da vida,


amplia, reelabora, ressignifica e revela a realidade presente,
isto é, apresenta uma nova visão de mundo, de homem e do
conhecimento. É um aprender complexo das linguagens, dos
sentidos, das mediações, da historicidade, da subjetividade,
das vivências e experiências que se entrelaçam com objetivo
de compreender e ampliar os significados dos mundos.
De acordo com Husserl (2001; 2002), do mundo vivido
parte “o que eu sei”é o mundo pré-científico – é o mundo que
fornece as possibilidades e as condições para a ciência. É no
mundo vivido que ocorrem as “formações do sentido” originá-
rias de onde são derivadas as ciências. Segundo Pizzi (2006),
com a categoria mundo da vida,

Husserl quer significar o amplo espaço de experiências mostren-


gas, certezas pré-categorias, relações intersubjetivas e valores
que nos são familiares no trato cotidiano com os homens e com
as coisas. Dessa forma, ele evidencia que o sujeito, enquanto tal
tem um mundo ao seu redor e a ele pertence – como os demais
seres –, não necessitando recorrer à ciência experimental para
afirmar certeza disso. Não se trata, portanto, do mundo da atitude
natural, na qual os interesses teóricos e práticos são dirigidos a
entes (ou fenômenos) do mundo, mas é o mundo histórico-natu-
ral concreto, das vivências cotidianas com seus usos e costumes,
saberes e valores, ante os quais se encontra a imagem do mundo
elaborada pelas ciências. (PIZZI, 2006, p. 63).

O mundo da vida é o mundo do concreto, isto é, o mundo


anterior aos conceitos metafísico e científico; é o mundo que
apresenta uma realidade complexa, porém, rica e polivalente;
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 67

não é a soma dos objetos, mas um mundo subjetivo de onde


se origina a atividade humana. Husserl compreendeu a im-
portância da matemática, porém, visualizou que o pensamen-
to lógico-matemático procurou colocar o mundo em formas
preexistentes, de forma objetiva. Retornar ao mundo da vida
é pedagógico, porque retoma a condição de subjetividade hu-
mana que não é considerada pelas ciências exatas, a exemplo
da matemática, como já foi ressaltado.
Nesse contexto, Husserl verificou que a subjetividade
era desconsiderada e distanciada do mundo subjetivo, ou seja,
retirava-se o sentido humano do mundo da vida, pois é por
meio da subjetividade que se vê o mundo, e por meio dela que
se adquire sentido. Zilles (2002), Pizzi (2006) comentam que,
para Husserl, o diálogo que mantemos, que “travamos” com o
mundo em nossa volta, constitui a realidade do ser. Portanto, o
mundo da vida é o mundo da dimensão do humano, o mundo
em que ocorrem as interfaces dos saberes que o homem viven-
cia na vida cotidiana.
Para Husserl, pensar o mundo só poderia ser feito após
ser examinado como esse mundo é: matéria no campo da
consciência. Por isso, não teria objetivo ou significado apre-
sentar ou discutir uma teoria do conhecimento sem exame; o
que realmente existia estava na consciência, isto é, o que tinha
existência verdadeira e garantida eram os fatos, os dados pos-
tos. Merleau-Ponty (1999) afirma que:

a aquisição mais importante da fenomenologia foi sem dúvi-


da ter unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo
em sua noção do mundo ou da racionalidade. A racionalida-
de é exatamente proporcional às experiências nas quais ela
se revela. Existe racionalidade, quer dizer: as perspectivas se
confrontam, as percepções se confirmam, um sentido aparece.
Mas ele não deve ser posto à parte, transformado em Espírito
absoluto ou em um mundo no sentido realista. O mundo feno-
menológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na
intersecção de minhas experiências, e na intersecção de mi-
nhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de
68

umas nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e


da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada
de minhas experiências passadas em minhas experiências pre-
sentes, da experiência do outro na minha. Pela primeira vez a
meditação do filósofo é consciente o bastante para não realizar
no mundo e antes dela os seus próprios resultados. O filósofo
tenta pensar o mundo, o outro e a si mesmo, e conceber suas
relações [...] (PONTY, 1999, p. 18).

Kelkel e Schérer (1954, p. 13) consideram que “a juven-


tude saturada de especulações do idealismo e suas construções
buscava restaurar uma filosofia da essência do objeto”; essas
indicações estavam nos estudos de Husserl. A sua fenomeno-
logia, a qual era, no fundo, mais um método do que um sis-
tema filosófico, apontava para o mundo da vida, contrário ao
ceticismo e ao relativismo então dominantes.
Cansados do idealismo que fechava o homem em si, iso-
lando-o do mundo real e dos outros homens, da noção da ver-
dade objetiva das coisas, os estudantes de filosofia viam em
Husserl alguém que, a partir da lógica e da consciência, lhes
abria caminho para nova indagação do real e, assim, apreen-
der o mundo por outra percepção. Essa é uma dimensão pe-
dagógica do pensamento de Husserl que foi percebida pela
juventude e que lhes “capturou” a atenção, ávida pela busca da
verdade que, até então, o idealismo e o ceticismo não conse-
guiram suprir. Ao partir do estudo da lógica e da consciência,
por meio de uma filosofia de rigor, Husserl iniciou uma nova
concepção de apreender a realidade e os fenômenos objetivos
e subjetivos captados pela consciência, isto é, uma perspecti-
va didática porque havia uma sistematização, um método que
possibilitaria perceber, apreender e compreender os fenôme-
nos da consciência.
Esse processo de compreensão dos fenômenos é pedagógi-
co, pois oferece ao pesquisador-educador as condições para cap-
tar essa aparência no todo. Para a fenomenologia, a ciência é um
processo de pesquisa que tem como início uma interrogação, bem
como uma metodologia própria para proceder à investigação.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 69

Conforme Zitkoski (1994, p. 11), “O método fenomeno-


lógico de Husserl apresenta-se como um caminho radical para
analisar e discutir os fundamentos epistemológicos da cultura
científico-tecnológica atual e, igualmente, para estabelecer ba-
ses científicas mais rigorosas frente às exigências do mundo
contemporâneo”. Neste aspecto, é pedagógico, pois permite
desvelar o conhecimento das ciências exatas, humanas e bio-
lógicas a partir dos seus fundamentos e significações por meio
da consciência de forma objetiva e subjetiva, tendo como re-
ferência o sujeito.
Como caminho radical, isto é, que vai às raízes da pro-
blemática pesquisada, o método fenomenológico é mais uma
possibilidade que o ser humano tem à sua disposição para en-
tender o fenômeno tal como ele aparece. Para isso, é necessá-
ria uma atitude de suspensão temporária dos juízos (epoché)
como também uma abertura da consciência para percebê-lo
[o fenômeno] sem pré-definições ou preconceitos. Portan-
to, no método fenomenológico, é fundamental a apreensão e
compreensão do fenômeno que vai ser desvelado, analisado,
estudado pelo pesquisador; é uma relação de interação do su-
jeito com o objeto até tornar-se “um envolvimento pessoal do
pesquisador no mundo-vida dos sujeitos da pesquisa” (FINI,
1997, p. 29). A interação, a compreensão e a apreensão do
fenômeno são fundamentais no campo pedagógico, uma vez
que o ensino e a aprendizagem são fenômenos humanos e a re-
lação pedagógica é mediada por saberes diversos e originada
do mundo vida dos seres envolvidos para, assim, possibilitar
uma ação docente contextualizada e significativa.
Neste contexto, a relação com o pedagógico ocorre a par-
tir da compreensão de que todo ato de estudo, ensino e apren-
dizagem é um ato intencional; é uma consciência que visa a
algo e, portanto, é um ato de pesquisa, de busca, de procu-
ra. Compreendo que o ato de uma aula em sala deve ser um
momento de investigação, de procura de significado(s) para o
objeto de estudo.
70

Devido à compreensão de que a pesquisa está afastada da


realidade cotidiana, do mundo vida dos estudantes, a noção e
a visão de pesquisa são percebidas como algo distante e acon-
tece somente nas universidades. Os próprios docentes, utili-
zando a concepção de “dar aulas”, no sentido de algo pronto e
acabado, esquecem que o momento da realização da aula em
sala é um momento de pesquisa, de reflexão e de compreensão
do fenômeno estudado.
Na perspectiva fenomenológica, como propôs Husserl, o
ato de estudar é um ato de rigor, de disciplina; em sala de aula
deveria existir um rigor acadêmico – rigor no sentido metodo-
lógico – a fim de que em cada encontro a aula se tornasse um
espaço de elaboração, apreensão, compreensão do conhecimen-
to e uma pesquisa, no sentido de captação, apreensão e desvela-
mento do fenômeno apresentado, no caso, o conteúdo estudado.
É relevante salientar que, em geral, a compreensão de
pesquisador e de professor é separada, distanciada e entendida
como funções diferentes uma da outra, ou seja, o professor é
aquele que repete o que foi pesquisado, elaborado e prepara-
do para ser transmitido; já o pesquisador não é professor e sim
cientista, isto é, aquele que estuda, pesquisa e tem até uma ima-
gem estereotipada, vista no senso comum como maluco, luná-
tico, normalmente trancado em um laboratório. Portanto, com-
preendo que a relação pedagógica da aula ou estudo deveria
partir dos estágios ou momentos como apresenta Fini (1997):
pré-reflexivo, a epoché e hermenêutica, ou seja, a apresentação
do conteúdo, a compreensão, análise e a interpretação.
Portanto, uma mediação pedagógica de apreensão, de com-
preensão e desvelamento do fenômeno (conteúdo) que se apre-
senta à consciência do pesquisador/professor ou estudioso que
intenciona vislumbrar uma nova realidade, ou seja, apreensão di-
dática do conteúdo dado a conhecer. Didática em sentido amplo
de ciência e técnica no processo de ensino e aprendizagem.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 71

Este texto discute a didática na perspectiva fenomenolo-


gia e, a partir desta compreensão, a didática volta a sua ação
para o homem em seu processo de pensar, de refletir a aqui-
sição de conhecimentos, bem como a aprendizagem como a
reflexão sobre o ato de conhecer, sobre os atos e correlatos da
consciência. Como consciência de alguma coisa, consciência
que visa algo, a educação é um projeto humano e, portanto,
visa o homem e sua humanização nas relações de ensino-
-aprendizagem. Por isso, ao pensar a Didática na perspectiva
da fenomenologia, considero importante destacar a preocupa-
ção de Husserl com o ser humano, sua humanidade e o mundo
em que ocorrem as experiências humanas (ZITKOSKI, 1994;
ZILLES, 2002; HUSSERL, 2002). Para ele, era fundamental
compreender como o homem vivencia as experiências, pois
não há possibilidade de conceber um sujeito sem mundo, da
mesma maneira que não é possível um mundo sem sujeitos.
Dessa forma, na concepção de fenomenologia desse au-
tor, a questão fundamental é o conceito de intencionalidade,
porque a consciência age intencionalmente dirigida para o
mundo, uma vez que ela não é fechada em si mesma (MO-
REIRA, 2004). O pensamento fenomenológico é uma reflexão
sobre o ato de conhecer, sobre os atos e correlatos da cons-
ciência. Como consciência de alguma coisa, consciência que
visa algo, a educação é um projeto humano visado e permeado
pela reflexão em busca de uma práxis. Severino (1990, p. 19)
“considera que na história da cultura ocidental a educação e
a filosofia sempre estiveram juntas e próximas e se formaram
unidas a uma intenção pedagógica”.
Na perspectiva da fenomenologia, a compreensão da re-
lação do sujeito com o mundo é fundamental para a aquisição
do conhecimento. O homem como sujeito é que dá sentido e
significado à existência, no entanto, com o desenvolvimento
da ciência na idade moderna, a humanidade é esquecida e o
campo científico busca responder todas as questões do espírito
humano. Para Severino (1990), a cultura contemporânea,
72

fruto dessa longa trajetória do espírito humano em busca de al-


gum esclarecimento sobre o sentido do mundo, é particularmen-
te sensível a sua significativa conquista que é a forma científica
do conhecimento. Coroamento do projeto iluminista da moder-
nidade, a ciência dominou todos os setores da existência humana
nos dias atuais impondo-se não só pela sua fecundidade expli-
cativa enquanto teoria, como também pela sua operacionalidade
técnica, possibilitando aos homens o domínio e a manipulação
do próprio mundo. Assim, também no âmbito da educação, seu
impacto foi profundo. (SEVERINO, 1990, p. 19-20)

Com a influência da operacionalidade técnica no proces-


so educacional, como ocorreu nas diversas áreas do conheci-
mento humano, a educação também passa a ser visada e de-
senvolvida na dimensão científica com objetivos de resultados
e explicações fundamentadas pela visão da ciência positivista.
Severino (1990) explica que

como qualquer outro setor da fenomenalidade humana, também


a educação pode ser reequacionada pelas ciências, particular-
mente pelas ciências humanas que, graças a seus recursos me-
todológicos, possibilitam uma nova aproximação do fenômeno
educacional. O desenvolvimento das ciências da educação, no
rastro das ciências humanas, demonstra o quanto foi profunda
a contribuição das mesmas para a elucidação desse fenômeno,
bem como para o planejamento da prática pedagógica. É por
isso mesmo que muitos perguntam se além daquilo que nos in-
formam a Biologia, a Psicologia, a Economia, a Sociologia e a
História, é cabível esperar contribuições de alguma outra fonte,
de algum outro saber que se situe fora desse patamar científico,
de um saber de natureza filosófica. Não estariam essas ciên-
cias, ao explicitar as leis que regem o fenômeno educacional,
viabilizando técnicas bastantes para a condução mais eficaz da
prática educacional? Já vimos a resposta que fica implícita nas
tendências epistemológicas inspiradas numa perspectiva neo-
positivista!... No entanto, é preciso dar-se conta de que, por
mais imprescindível é valiosa que seja a contribuição da ciên-
cia para o entendimento e para a condução da educação, ela não
dispensa a contribuição da filosofia. (SEVERINO, 1990, p. 20)
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 73

Assim como a educação foi direcionada para a concep-


ção científica, a didática também passa a ser vista como instru-
mento técnico de melhoria do processo de ensino-aprendiza-
gem. Desde o século XIX à primeira metade do século XX, o
conteúdo da didática tem como finalidade os métodos e técni-
cas de ensinar, bem como apresentar informações aos educan-
dos de maneira desvinculada sobre a intenção do processo de
ensino, ou seja, sem considerar a experiência de vida do aluno
e do professor no ato educativo. Não podemos desconsiderar
a contribuição da ciência para entender e conduzir a educação,
conforme nos assevera Severino, mas não podemos dispensar
a contribuição da filosofia no processo educacional. O homem
como sujeito da educação deve ter clareza de que alguns pro-
blemas relativos à educação são de abordagem específica do
campo da filosofia e, por isso,

pode-se dizer que cabe a filosofia da educação a construção de


uma imagem do homem, enquanto sujeito fundamental da edu-
cação. Trata-se do esforço com vista ao delineamento do senti-
do mais concreto da existência humana. Como tal, a filosofia da
educação constitui-se como antropologia filosófica, como tenta-
tiva de integração dos conteúdos das ciências humanas, na busca
de uma visão integrada do homem. (SEVERINO, 1990, p. 20)

Neste aspecto, o conhecimento é a busca constante do ser


humano interagir e se integrar no mundo. Da relação sujeito-
-mundo o homem estabelece o seu agir, as finalidades da sua
ação como ser de consciência e institui os valores do seu gru-
po e da sua sociedade, é um processo histórico que “constitui
uma tentativa de intencionalização do existir social no tempo
histórico” (SEVERINO, 1990, p. 21). Por isso, a educação es-
colar, no exercício de sua função social de educar, de preparar
para a vida, deve estar atenta para a prática pedagógica, para
as dimensões do ato educativo que permeiam o processo de
formação dos educandos enquanto sujeitos que pertencem ao
mundo no sentido mais concreto da existência humana.
74

Neste contexto, é necessária uma prática didática que


rompa com os paradigmas de instrumentalização e de tecni-
cismo da didática. Na concepção instrumental da didática o
objetivo era a construção de um modelo de planejamento de
curso, a elaboração de módulos de ensino, com características
básicas de um planejamento didático a partir da abordagem
sistêmica; na compreensão da didática tecnicista o fundamen-
tal era o estudo dos métodos e técnicas que enfocavam uma
perspectiva de neutralidade. Em ambas as vertentes, a preo-
cupação era com um conhecimento elaborado, sistematizado
e normativo que deveria ser repassado. Contrariando essas
visões, Pimenta e Anastasiou (2002) afirmam que a didática

investiga os fundamentos, as condições e os modos de realizar


a educação mediante o ensino, sendo uma ação historicamente
situada, a Didática vai constituindo-se como teoria do ensino.
Não para criar regras e métodos válidos para qualquer tempo e
lugar, mas para ampliar nossa compreensão das demandas que
a atividade de ensinar produz. (PIMENTA; ANASTASIOU,
2002, p. 67).

A partir desta compreensão, a Didática volta a sua ação


para o homem em seu processo de pensar, de refletir e na
aquisição de conhecimentos; trabalha com os elementos da
didática (planejamento, objetivos, estratégias, metodologias e
avaliação) de maneira contextualizada e articulada, em consi-
deração com a dimensão humana, sociocultural e técnica da
prática pedagógica. A nova perspectiva da didática não conce-
be o ato educativo neutro, não há neutralidade quando há op-
ções e visões de mundo envolvidas em situações determinadas
e, neste aspecto, os valores e as opções que orientam a escolha
de métodos, conteúdos e formas de avaliação são intencionais.
Esta ação é uma articulação da teoria e da prática que ocorre
por meio de uma interação constante na realidade da prática
escolar em busca de novas formas de conhecimentos e novas
formas de abordagem do ensino e aprendizagem.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 75

Ampliando o conceito das autoras citadas, Libâneo


(1994) esclarece que a didática é o principal ramo de estudo
da pedagogia,

ela investiga os fundamentos, condições e modos de realização


da instrução e do ensino. A ela cabe converter objetivos so-
ciopolíticos e pedagógicos em objetivos de ensino, selecionar
conteúdos e métodos em função desses objetivos, estabelecer
os vínculos entre ensino e aprendizagem, tendo em vista o de-
senvolvimento das capacidades mentais dos alunos. A didática
está intimamente ligada à Teoria da Educação e à Teoria da
Organização Escolar e, de modo muito especial, vincula-se à
Teoria do Conhecimento e à Psicologia da educação. (LIBÂ-
NEO, 1994, p. 24-28).

A didática tem uma função de clarificar o papel sociopolí-


tico da educação, da escola e do ensino, seus pressupostos são
de trabalhar numa perspectiva que ultrapasse a visão técnica
da didática e vá além, no sentido de ultrapassar os métodos e
técnicas com o objetivo de associar escola-sociedade, teoria-
-prática, conteúdo-forma, técnico-político, ensino-pesquisa e
professor-aluno. Libâneo (1994) afirma também que, em seu
âmbito pedagógico, a didática passa a auxiliar no processo de
politização do futuro professor despertando-o quanto à ideo-
logia que inspira a natureza do conhecimento. Assim, a didáti-
ca crítica, contextualizada e humana supera o intelectualismo
formal de perspectiva tradicional e recupera a sua dimensão
educativa e prestígio no campo educacional.
Por isso, a didática é uma ciência que tem objetivo fun-
damental de ocupar-se das estratégias de ensino, das questões
práticas relativas à metodologia e das estratégias de aprendi-
zagem, de modo que ela funciona como elemento transfor-
mador da teoria na prática (LIBÂNEO, 1994). É importante
ressaltar o papel da didática no campo teórico e no campo da
prática. Pura (1989) diferencia didática teórica e prática:
76

Didática teórica é aquela desenvolvida nos programas da disci-


plina, segundo pressupostos científicos que visam à ação edu-
cativa, mas distanciada desta. São pressupostos abstratos que
se acumulam sobre o processo de ensino, na busca de torná-los
mais eficientes. Didática prática é aquela vivenciada pelos pro-
fessores nas escolas a partir do trabalho prático em sala de aula,
dentro da organização escolar, em relação com as exigências
sociais. Esta não tem por compromisso comprovar os elemen-
tos teóricos estudados em livros ou experimentados em labora-
tórios, mas tem em vista o aluno, seus interesses e necessidades
práticas. (PURA, 1989, p. 21)

Quando se refere à aplicação da teoria na prática não sig-


nifica separar o campo do pensamento teórico e o campo de
prática, mas a compreensão de um pensamento elaborado, sis-
tematizado e que visa alcançar os objetivos previstos a partir
dos conteúdos selecionados. O que se percebe nas escolas é
uma separação da ação teórica (pensamento) para a execução
da ação prática (o fazer), o que caracteriza uma compreensão
aligeirada do processo de ensino e na constante afirmação por
parte dos docentes de que na teoria há uma compreensão, po-
rém, na prática a ação não se concretiza. Pura (1989) prosse-
gue afirmando que:

A prática cotidiana dos professores se contrapõe aos pressu-


postos teóricos da Didática teórica, pois o professor não parti-
cipa, na maioria das vezes, da elaboração dos objetivos que irá
perseguir. Os objetivos educacionais são previamente definidos
no plano curricular da escola, por uma equipe de especialistas,
sem a participação do professor que os recebe, em pequenas
(grandes) doses bimestrais, em forma de tarefa a ser cumprida.
(PURA, 1989, p. 21).

Na pesquisa realizada para este trabalho, as respostas apre-


sentadas pelos professores confirmam esta dicotomia em suas
práticas didáticas, pois essa concepção era presente em suas au-
las. A didática apresentava-se como uma forma ou suporte para
o ato de ensinar, estava direcionada para visões instrumental,
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 77

técnica e mesmo crítica, mas desprovida de reflexão sobre a


importância da prática docente. O dualismo resultante da se-
paração teoria e prática propicia o distanciamento entre am-
bas, ocorrendo, então, a visão simplista de que na teoria há
uma proposta a realizar, porém não sendo possível na prática a
realização da proposição teórica. Rays (1996) esclarece que a
evolução da teoria é correspondente à evolução da prática que
ocorre sempre ligada à evolução da teoria, pois

esse princípio de identidade faz com que teoria e prática sejam


dinâmicas. Às vezes pensamos, equivocadamente, que a teoria
é sempre a mesma, que a prática é sempre a mesma e que am-
bas desenvolvem-se autonomamente. Mas, se pensarmos mais
detidamente vamos concluir que, a um só tempo, teoria e práti-
ca movem-se e transforma-se continuamente. Em nenhum mo-
mento da atividade humana a teoria e a prática estão imóveis,
uma vez que a teoria não exclui a prática e a prática não exclui
a teoria na atividade social dos homens. (RAYS, 1996, p. 36)

Portanto, teoria e prática são partes integrantes de um


todo, isto é, não atuam separadas, são partes que se constituem
de forma dinâmica no processo histórico da atividade humana
na sociedade. “A onilateralidade da teoria e da prática é que
propicia ao homem conhecer corretamente a essência do mun-
do da cultura e do mundo da natureza” (RAYS, 1996, p. 37), e
consequentemente, o conhecimento do mundo vida humano.
Diante desse processo de conhecimento, o campo didático-pe-
dagógico deve conter a relação teoria-prática as características
de um ato científico contextualizado, evitando a fragmentação
do processo de ensino-aprendizagem com relações mecânicas,
técnicas e arbitrarias no processo de apreensão da realidade;
uma vez que o ato de conhecer e assimilar um conteúdo ou ob-
jeto é um fenômeno que o humano realiza numa ação prática.
Conforme Rays (1996),

o conhecer é, portanto, ação que não exclui a teoria da prática


e a prática da teoria, ao tratar de problemas concretos em suas
relações históricas. É assim que ao ato de conhecer, entendido
78

como ação, como atividade humana consciente, transforma-se


na verdadeira força motriz da evolução sociocultural e da deter-
minação de seu desenvolvimento futuro. (RAYS, 1996, p. 37)

A Didática, na perspectiva da fenomenologia, parte da


compreensão das relações do homem no mundo; define-se
como um processo de reflexão sobre a prática docente e consi-
dera todos os aspectos que fazem parte e integram a vida do ser
humano. Por isso, abrange várias dimensões: humana, político-
-social, técnica, estética, de conhecimento, do lúdico, axioló-
gica, didático-pedagógica, familiar, metodológica e avaliativa.
A abordagem da dimensão humana caracteriza-se pela
compreensão dos valores éticos, dos valores do mundo da
vida, das crenças políticas, religiosas, do afeto, da emoção e
da razão. Essa dimensão apresenta a noção de inacabamento
do ser humano, essa determinação do homem ser concebido
como “inacabado” o coloca num processo contínuo e dinâmi-
co de construção do mundo e de si mesmo. Na dimensão di-
dática é fundamental que o docente perceba o educando como
ser em processo de ampliação intelectual e vê-lo como um ser
social e integrado ao mundo ao qual pertence e ao seu desen-
volvimento cognitivo, afetivo, social e motor, ou seja, que o
educador contribua para a formação do aluno como pessoa
completa. “O inacabamento do ser ou sua inconclusão é pró-
prio da existência vital” (FREIRE, 2004, p. 50). Este processo
perpassa a vida humana individual e coletiva.
Na dimensão político-social a escola possibilita aos alu-
nos espaço para o exercício da participação em sociedade,
para proporcionar espaços de deliberação de normas e regras
em grupos, condições de decisão para que se percebam como
sujeitos históricos e com capacidade de assumir compromis-
sos e responsabilidade social que serão necessários para a vida
em sociedade e para o exercício da cidadania; portanto, é uma
ação de educação para a formação do cidadão. Esta relação
pode ser mediada pela ação didática entre professores e alunos,
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 79

proporcionando situações de aprendizagem do coletivo e da


diversidade humana para conhecer as realidades sociais, as re-
alidades política e econômica que são situações concretas da
vida dos educandos. Vasconcelos (1996) afirma que

conhecer a realidade implica, por um lado, na apreensão da


dinâmica social enquanto atravessada por contradições e con-
flitos, os quais são forjados pela luta de classes, engendrada
no interior das relações econômicas, políticas e culturais; por
outro lado, supõe entender que estas contradições e conflitos
perpassam a prática educativa como um todo. (VASCONCE-
LOS, 1996, p. 100)

Em relação à dimensão técnica é necessário o domínio do


conteúdo a ser trabalhado em sala, bem como o conhecimen-
to dos formatos eficazes para desenvolvê-los com os alunos.
Paulo (1996) esclarece que a competência técnica

se traduziria, entre outras coisas, pelo domínio extensivo do


conteúdo a ser desenvolvido (domínio este indispensável à
possibilidade de sua seleção e adequação convenientes), como
também pelo conhecimento das formas eficazes de desenvol-
vê-los com os alunos. Desta maneira é possível, explorando o
saber preexistente nos alunos, contribuir para a ultrapassagem
deste saber e mesmo do adquirido na escola, com os ‘olhos vol-
tados’ para a possibilidade de construção de um saber novo, ou
renovado. Faz-se necessário, então, buscar novos meios para
levar a efeito o ensino, visando ao encontro de práticas pedagó-
gicas alternativas ao chamado ‘modelo tradicional’ de ensino.
(PAULO, 1996, p. 105-106)

As técnicas são fundamentais e contribuem para o pro-


cesso de ensino-aprendizagem, sendo que cada uma deve ser
orientada conforme os fins educativos a que se propõe ou se
pretende alcançar. De acordo com Candau (1996), por meio
das técnicas de ensino é possível estabelecer as mediações
e intermediações entre professor e alunos, uma vez que po-
dem estar centrada no professor, como as aulas expositivas e
80

demonstrações didáticas; bem como pode estar dirigidas aos


alunos, como o estudo de texto, estudo dirigido, socialização
em grupo, estudo de meio, debate, seminários, painel integra-
do, grupo verbalização e grupo de observação (GV - GO). É
importante ressaltar que para a técnica alcançar resultados de-
pende de quem a emprega, dos objetivos pretendidos, do tipo
de alunos a que se destina, do conteúdo a ser desenvolvido, do
momento em que a técnica será utilizada e exige do professor
conhecer bem a técnica a ser aplicada, as condições e tempo
necessário de cada aula.
No campo estético, a didática pode contribuir para de-
senvolver a capacidade criadora do aluno e proporcionar para
que a escola promova espaços de cultura em que os educandos
criem e valorizem a beleza artística e a sensibilidade presente
no ser humano por meio da Arte, da poesia, do desenho, da
pintura, da música, do teatro e das atividades que despertem
para o belo e a interpretação da realidade por meio do olhar
estético. Leal (1997) assevera que este é o espaço do sujeito
cultural e

neste aspecto cabe ao educador criar e organizar ambientes


para que os alunos se sintam sujeitos de cultura, sujeitos cria-
tivos. Resgatar a capacidade dos jovens de criar, vivenciar e
expressar o potencial artístico para redescobrir e reinventar sua
forma de viver e compreender o mundo com todas as suas limi-
tações e possibilidades. (LEAL, 1997, p. 1)

Esse espaço de cultura que a escola poderá propiciar des-


pertará a possibilidade de compreensão do fenômeno criativo
do ser aprendente e a didática auxiliará para a realização de
uma nova forma de perceber a educação por meio da “imagi-
nação, fantasia, descoberta, sonho. É isso que se aprende em
qualquer atividade ou experiência humana que não se limita
a reproduzir fatos ou impressões vividas, mas que as combi-
nam produzindo novos objetos, novas imagens, novas ações”
(KRAMER, 1994, p. 39).
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 81

Na dimensão do conhecimento é fundamental perceber


e conhecer os diversos aportes epistemológicos, as várias
correntes do pensamento humano como forma de elaborar a
produção do conhecimento do aluno de forma interdisciplinar,
contextualizada e de totalidade. A didática contribuirá como
ferramenta para evitar a fragmentação do saber sistematiza-
do pela instituição escolar e, da mesma maneira, propiciar ao
aluno condições para construir a sua reflexão sobre o objeto
do conhecimento mediado pelo professor numa relação de in-
terdisciplinaridade. Perrenoud (1993) afirma:

importa assinalar que o saber, para ser ensinado, adquirido e


avaliado sofre transformações: segmentação, cortes, progres-
são, simplificação, tradução em lições, aulas e exercícios, or-
ganização a partir de materiais pré-construídos (manuais, bro-
churas, fichas). Além disso, deve inscrever-se num contrato
didático viável, que fixa o estatuto do saber, da ignorância, do
erro, do esforço, da atenção, da originalidade, das perguntas
e respostas. A transposição didática dos saberes e a epistemo-
logia que sustenta o contrato didático baseiam-se em muitos
outros aspectos para além do domínio acadêmico dos saberes.
(PERRENOUD, 1993, p. 24)

Conforme Perrenoud, os aspectos didáticos vão além


dos saberes acadêmicos, por isso é significativo compreender
que, enquanto processo de aprendizagem, há possibilidade de
segmentação e simplificação do conhecimento em lições, em
partes menores com objetivos de apreensão dos conteúdos;
mas com a finalidade de alcançar a compreensão de totalida-
de. Ou seja, o objetivo é atingir as intenções educativas, os
objetivos educacionais planejados de forma articulada e con-
textualizada porque a intencionalidade educativa é abrangente
e de natureza psicológica, epistemológica, socioantropológi-
ca, prático-pedagógica e deve envolver o ser aprendente com
os conteúdos ensinados, possibilitando uma aprendizagem
formal (escolar) sistematizada. Portanto é uma fragmentação
temporária como metodologia para conseguir a sistematização
82

do conhecimento no processo de indução e de dedução que


ora parte do particular para o geral, ora inicia do geral par o
particular. Nesta perspectiva, Lopes (1996) explica que

uma característica distintiva é que a ação de aprender na es-


cola envolve uma forma de conhecimento, o sistematizado, e
sujeitos que interagem entre si, constituindo a dinâmica ensino-
-aprendizagem. Partindo-se dessa ideia percebe-se que na ação
integradora que resulta nessa dinâmica existe a presença de um
sujeito que aprende e de um sujeito que ensina, revelando-se as
figuras do aluno e do professor. (LOPES, 1996, p. 107)

Na organização do conhecimento sistematizado o trabalho


docente é uma atividade que integra a dinâmica do processo
ensino-aprendizagem. Neste processo de mediação a didática
é a ferramenta que possibilita a apropriação desse conhecimen-
to por meio de uma relação pedagógica transformadora. Lopes
(1996) considera que esta relação se caracteriza a partir de

uma situação dialógica, como espaço de discussões, descober-


tas e transformações. Essa postura condiciona novas perspec-
tivas para a sala de aula. Discursos diversos nela se formam,
envolvendo professores e alunos e os diferentes sujeitos que
constituíram o saber sistematizado e registraram suas elabora-
ções em livros e demais recursos didáticos utilizados na escola.
Os procedimentos de ensino adotados nessa práxis caracteri-
zam-se essencialmente pela constante presença na sala de aula
da discussão, do questionamento, da curiosidade em investigar
os ‘porquês’ e os ‘comos’. (LOPES, 1996, p. 111)

A investigação, a pergunta, as interrogações são questões


que o ser humano utiliza para compreender o mundo em que
vive. São os fenômenos humanos a preocupação da fenome-
nologia. A partir desse referencial teórico-metodológico, cujo
princípio é o formato rigoroso da maneira de pensar, abre-se um
caminho para o campo da reflexão e desenvolvimento das ex-
periências pedagógicas em busca de possibilidades para superar
a crise da escolarização, das formas técnicas e instrumentais de
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 83

ensinar. Para a fenomenologia a construção do conhecimento,


das relações entre os seres humanos acontecem num processo
constante de interação e integração do mundo vivido; portanto,
é uma interação com o mundo da cultura, no qual o conheci-
mento de si e do outro é fundamental para a realização da apren-
dizagem humana. Neste aspecto, a educação escolar é essencial
e a didática é a ferramenta para direcionar a aprendizagem do
educando, numa ação pedagógica pautada pelo diálogo, pela
pergunta, numa interação permanente entre educador-educando
e educando-educando “como influência recíproca de desiguais,
em que a dinâmica ensino-aprendizagem mostra-se como uma
relação de socialização de conhecimentos e elaboração de no-
vos saberes.” (LOPES, 1996, p. 113)
A didática fenomenológica deve ser lúdica, deve estar
voltada para o desenvolvimento e promoção de aulas, de en-
contros e momentos de estudos orientados por uma metodo-
logia de rigor, de reflexão e disciplinada, porém com alegria
de ensinar e aprender. Deve direcionar a vivência do educa-
dor e dos educandos numa inter-relação com os conteúdos de
aprendizagem integrados a práticas e estratégias pedagógicas
humanizadoras. Conforme Leal (1997), é um espaço de apren-
dizagem no qual predomine

a alegria, o humor, o prazer, são elementos essenciais à pratica


docente. Aprender ‘brincando’, onde o riso se mistura com a
descoberta do saber, onde a alegria rodopia suas asas na ima-
ginação criativa, onde cantar entrelaça com a aprendizagem de
sinais, de códigos linguísticos, da linguagem corporal, onde
jogar introduz a aprendizagem de regras, de colaboração, de
parceria. O lúdico é animador, é exultante, tornando a aprendi-
zagem colorida e prazerosa. (LEAL, 1997, p. 2)

É significativo ressaltar que o lúdico deve ser adotado


conforme o nível de ensino e o professor deve ser mediador,
articulador e orientador do processo de ensino-aprendizagem,
e deverá ter clareza da metodologia e das estratégias que cada
84

conteúdo exige e permite para desenvolver suas atividades do-


centes. Portanto, o lúdico abre possibilidades para o ato peda-
gógico, ou seja, “cria um espaço fecundo, porque é trabalhando
com as possibilidades que revelamos nossa crença nas pessoas,
no potencial criativo” (LEAL, 1997, p. 02).
Em referência à dimensão axiológica, a didática deve pri-
mar pela ética, em qualquer das teorias, avaliações, análises
e estudos que abordam a questão dos valores, especialmente
os valores morais. A discussão da ética é necessária para o
desenvolvimento de princípios que direcionam a formação do
homem e, nesse sentido, a escola é um espaço no qual a ética
deve ser temática de constante reflexão, bem como exercício
permanente entre os sujeitos. Freire (1996) afirma que:

Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível


pensar os seres humanos longe, ou pior, fora da ética, entre
nós, mulheres e homens, é uma transgressão. É por isso que
transformar a experiência educativa em puro treinamento téc-
nico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano
no exercício educativo: o seu caráter formador. Se respeita-se
a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode
dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é subs-
tantivamente formar. Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou
a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar
errado. [...] Pensar certo, demanda profundidade e não superfi-
cialidade na compreensão e na interpretação dos fatos. Supõe a
disponibilidades à revisão dos achados, reconhece não apenas a
possibilidade de mudar de opção, mas o direito de fazê-lo. Mas
não há pensar certo à margem de princípios éticos, se mudar
é uma possibilidade e um direito, cabe a quem muda – exige
pensar certo – que assuma a mudança operada. Do ponto de
vista de pensar certo não é possível mudar e fazer de conta que
não mudou. É que todo pensar certo é radicalmente coerente.
(FREIRE, 1996, p. 33)

Portanto, na escola as práticas pedagógicas das diversas


áreas de conhecimento devem valorizar e proporcionar condi-
ções de discussão e vivência de atitudes éticas, de valores, de
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 85

solidariedade, de respeito mútuo, de tolerância e compreensão


da diversidade cultural, social, política, religiosa, sexual, física
e racial, ou seja, das diversidades humanas que colaborem com
a formação de sujeitos éticos.
Para que a escola consiga desenvolver um trabalho quali-
tativo é necessária a participação familiar. Acerca da dimensão
familiar – e aqui não me refiro à família de estrutura tradicio-
nal, mas à família como grupo social originário do educando
–, é essencial reconhecer o seu significado na formação dos
alunos como a primeira educação moral, ética e de valores que
o indivíduo recebe em sua formação como pessoa e que deve-
rá ser ampliada na instituição escolar. Se os valores familiares
forem desenvolvidos desde a mais tenra idade teremos desde
a escola básica à superior educandos com princípios éticos e
morais que serão partilhados no processo de escolarização;
por isso, é essencial a dimensão familiar no processo educa-
tivo, pois esta é uma perspectiva da participação na formação
do sujeito humano comprometido consigo e com o Outro para
viver em sociedade.
Na dimensão didático-pedagógica o planejamento das
atividades docentes é fundamental, pois o pensar crítico e
estratégico dependem de referencial teórico-metodológico
consistente e fundamentado em bases epistemológicas con-
textualizadas e articuladas com o propósito do que se pretende
ensinar; exige dos professores conhecimento teórico e prático
para seleção dos conteúdos relevantes, significativos e atuais
para uma programação de ensino qualitativo e quantitativo e
de metodologias didáticas que proporcionem condições de
socialização dos saberes, de experiências de pesquisas, da
utilização de tecnologias, de atividades individuais, porém
sem perder as possibilidades e dimensões coletivas do ato de
ensinar e aprender. Neste aspecto, Leal (1997) afirma que “o
sendo e o devir a ser, fazem parte das finalidades do processo
educativo” e
86

planejar o cotidiano da sala de aula relacionado aos grandes


objetivos, as diferentes estratégias, as diretrizes curriculares, à
flexibilização, a interdisciplinaridade, a relação com problemas
atuais. Planejar como os alunos tornando-os investigadores da
realidade. Planejar e sistematizar com os colegas, com os profes-
sores de outras áreas do conhecimento, provocando dúvidas so-
bre o estabelecido, transgredindo paradigmas obsoletos na busca
de modelos alternativos. Planejar para investir qualitativamente,
fazendo e refazendo a práxis pedagógica. (LEAL, 1997, p. 4).

Na dimensão metodológica a pedagogia é campo teórico


que reúne os fundamentos e os subsídios das ciências apli-
cadas à educação. Assim, pode-se compreender a pedagogia
como campo de estudos da prática educativa. Por meio dos
fundamentos pedagógicos a prática alcança o seu significado
de “práxis” mais amplo, refletido, crítico e contextualizado.
Para efetivação de uma didática que apreenda os fenômenos
humanos e educativos é necessária uma abordagem metodoló-
gica voltada para a perspectiva de humanidade.
A fenomenologia prima pelo humano e pela sua educa-
ção observando-se, especialmente, que a sua essência, a sua
substância, encontram-se nos valores de formação humana e
social. Deste modo, não se realiza a “práxis” educativa sem
valores, e não se realizam estudos pedagógicos sobre essa
“práxis” sem fundamentos que os considerem e enfatizem.
Portanto, a dimensão metodológica via fenomenologia é a
proposição constante do diálogo com o ser humano numa di-
mensão dialógica Consigo e com os Outros por meio do ques-
tionamento, no qual se estabeleça uma prática de ensino e uma
didática de confronto suscitadora da pergunta, dando vida a
uma educação que promova o ser humano. Assim, a educação
é sempre uma mediação valorativa, isto é, dirigida por valo-
res, na medida em que indica um determinado posicionamen-
to, uma determinada postura epistemológica. Não é, portanto,
neutra, e sim um ato intencional. Saviani (1989) esclarece:
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 87

Do ponto de vista da educação o que, então, significa promover


o homem? Significa tornar o homem cada vez mais capaz de
conhecer os elementos de sua situação para intervir nela trans-
formando-a no sentido de uma ampliação da liberdade, da comu-
nicação e colaboração entre os homens. Trata-se, pois, de uma
tarefa que deve ser realizada. Isto nos permite perceber a função
da valoração e dos valores na vida humana. Os valores indicam
expectativas, as aspirações que caracterizam o homem em seu
esforço de transcender-se a si mesmo e à sua situação histórica;
como tal, marcam aquilo que deve ser em contraposição àquilo
que é. A valoração é o próprio esforço do homem em transformar
o que é naquilo que deve ser. Essa distância entre o que é e o que
deve ser constitui o próprio espaço vital da existência humana;
com efeito, a coincidência, total entre o ser e o dever ser, bem
como a impossibilidade total dessa coincidência seriam igual-
mente fatais para o homem. (SAVIANI, 1989, p. 41)

Para empreender uma educação humanizadora, crítica,


rigorosa e reflexiva o elemento primordial é a compreensão
da ação pedagógica que tem um papel comprometido com o
ser humano em todas as suas diversidades e que a sua meto-
dologia de ensino contemple uma proposta de educação com a
sociedade e a humanidade. Seria esta a educação para a cida-
dania; cidadania no sentido ampliado, isto é, educar o homem
para a vida, para viver em sociedade; para perceber a sua exis-
tência e a dos outros homens como um ser político-social, do-
tado de subjetividade, haja vista que, para que a educação seja
eficaz, não deve ser individual e nem individualista. Candau
(1996, p.14) esclarece que “educar para a cidadania é educar
para uma democracia que dê provas de sua credibilidade de
intervenção na questão social e cultural”.
Educar é compreender o homem como ser que dá sentido
ao mundo e à existência. Conforme Von Zuben (1979) educar
é compreender como o sentido

do fenômeno ‘educação’ se articula com o sentido da emergên-


cia do sujeito compromissado historicamente no mundo com
o outro. É através da articulação do sentido dos conceitos em
88

questão: o significado da educação e da existência como fenô-


menos humanos. [...] simultaneamente, o homem é linguagem
transformadora (a palavra aqui é atitude, ação). É seu poder de
significar, de descobrir sentidos e revelá-los a si e aos outros que
o compromete com a realidade. O homem é ação transformadora
compromissada com o mundo (cultura) e com os outros (his-
tória), a ‘emergência do sujeito’, ou seu existir como ‘advento’
por-vir, implica, em seu seio, uma dupla exigência que denota
duas dimensões da linguagem: a linguagem como questiona-
mento radical e a palavra como diálogo atuante na transformação
do mundo com o outro. (VON ZUBEN, 1979, p. 193-194)

Portanto, é uma ação educativa voltada para o diálogo e a


existência, em que a articulação homem-mundo revela os seus
sentidos, como também não existe homem sem mundo e este
não existe e recebe seu sentido senão por meio do homem. “O
sentido não reside nem no homem, nem no mundo, mas surge
graças à relação que se estabelece entre os dois” (VON ZUBEN,
1979, p. 207). Uma das preocupações basilares da fenomenolo-
gia é explicitar as relações vividas pelo homem no mundo. Ela
se origina de um dado essencial segundo o qual o homem é um
ser no mundo; portanto, uma prática didático-pedagógica feno-
menológica preocupa-se com o sentido e a presença do homem
no mundo e atinge o seu sentido nesta presença. A prática pe-
dagógica fundamentada na fenomenologia tem como objetivo
possibilitar ao educando perceber o seu sentido, o seu significa-
do, isto é, compreender o seu sentido e a sua presença no mundo
humano, da cultura, da história e da existência.
Na dimensão avaliativa ou do processo de avaliação na
perspectiva da fenomenologia deverá ser levado em conside-
ração o desenvolvimento do aluno a partir das suas experi-
ências mediadas pelos conteúdos ensinados. É um processo
de permanente avaliação e reavaliação no qual se procura ar-
ticular e contextualizar o aprendizado conforme o ritmo de
desenvolvimento do aprendente. Neste sentido, o objeto de
discussão da avaliação na abordagem fenomenológica – cujo
enfoque desloca-se do eixo de avaliação como prova, enquanto
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 89

mecanismo voltado para a reprodução do conhecimento, para


atingir a dimensão de resultados quantitativos – ocorre en-
quanto espaço de formação e de relações entre o mundo e os
sujeitos. Como destaca Martins (1992):

Como algo a ser planejado, é preciso ter em vista que a educa-


ção é o resultado de se estar no mundo com os outros e com as
entidades, e nesta situação não há possibilidade de realizar-se
um planejamento para aqui e agora. O próprio cotidiano de sala
de aula não se restringe àquilo que o professor ensina ou pensa.
Há na sala de aula, juntamente com o ensino do professor, ope-
rando no crescimento total dos alunos que aí estão, o mundo ao
redor. (MARTINS, 1992, p. 46)

Desta forma, uma avaliação apoiada na fenomenologia


deverá pôr entre parênteses questões como aprendizagem,
objetivos, medição e avaliação, pois nada tem a ver com os
significados de ‘mundo de vida’, por meio quais as pessoas
constroem e percebem sua experiência, possibilitando, assim,
chegar à essência da educação e de avaliação (MARTINS,
1989; 1992). Portanto, não é possível conceber uma avaliação
fenomenológica a partir de uma teoria tradicional, pois o foco
principal da fenomenologia volta-se para olhar os fenômenos,
o conhecimento, na perspectiva do ‘estar no mundo’, no qual
tudo que vemos, refere-se às nossas experiências de vida.
Assim, há uma divergência com as teorias tradicionais
que primam pelo conhecimento como algo indiscutível ou
quase dogmático, uma vez que é entendido da mesma for-
ma, sem possibilidades de percebê-lo como um mundo de
significados atribuídos pelo homem por meio de sua relação
com este próprio mundo (REZENDE, 1990; MASINI, 1991;
MARTINS, 1992).
Na abordagem fenomenológica, para que haja uma ava-
liação eficaz faz-se necessárias propostas nas quais não sejam
citados fatos, conceitos elaborados e estanques, mas sim possi-
bilidades, nas quais se oportunize uma metodologia qualitativa
90

que perpasse discussões e trocas de ideias entre professor e


aluno na busca por atribuir novos significados aos fenômenos,
segundos os quais os alunos já se encontram em contato. En-
sinar, nesta perspectiva, é considerar que o aprendiz faça parte
do mundo e, portanto, detém um entendimento sobre os fatos
que necessitam ser apenas revistos e examinados sob perspec-
tivas mais subjetivas do conhecimento.
A fenomenologia aponta para uma avaliação na qual se
trocariam assuntos tradicionais dos livros textos e se proporia
um direcionamento ao estudo para temas que façam parte da
vida cotidiana dos estudantes, envolvendo situações nas quais
se fazem presentes tanto alunos como o próprio professor.
Nestas atividades a investigação é pela essência da experi-
ência de vida descrita e não pela apropriação do significado
do conceito envolvido, pelo menos não na forma de conceito
científico, mas de modo que, a partir das experiências e dos
conceitos científicos, os aprendizes elaborassem, construís-
sem os seus conceitos e o seu próprio aprendizado. Importante
ressaltar que não se trata de abandonar os conteúdos dos cur-
rículos vigentes propostos pelos órgãos de educação e pela le-
gislação educacional, mas sim de articulá-los e contextualizá-
-los conforme a perspectiva fenomenológica, ou seja, voltados
para o aprendizado e o desenvolvimento do ser humano, ser
dotado de subjetividade e mediados pela relação permanente
de intersubjetividade.
Assim, busquei subsídios para discutir uma didática que,
além do seu caráter prático e técnico, dê suporte ao trabalho
pedagógico, implique perceber que o saber didático não se re-
sume ao conhecimento dos conteúdos de ensino-aprendizagem
ministrados ou mesmo aos conteúdos das matrizes curriculares
de um curso. Priorizei o enfoque de uma didática que não se
limite a um método geral de ensino que apresenta respostas e
soluções a todas as situações pedagógicas em sala de aula, mas
um saber didático enquanto saber de mediação.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 91

Nessa perspectiva, considero que a didática deva ser pensa-


da na condição de campo de investigação científica que propicie
suporte teórico-metodológico para intervenções pedagógicas
em diferentes contextos, disciplinas e conteúdos curriculares. A
partir desse ponto de vista, nesta pesquisa desconsiderei a ideia
de didática a-histórica e universal, antes, procurei priorizar uma
concepção de didática que tenha como princípio o diálogo com
a conflitante densidade do cotidiano. Trata-se de pensar uma
proposta de didática fundada no pensamento e na experiência
vivenciada pelos sujeitos da ação (professor-aluno). Busquei
uma ideia de didática que não exista como modelo, mas sempre
em construção porque é alimentada pelo modo sempre diverso
– e não raramente sem conflitos – como mundo dos sujeitos de
ação, ou seja, pelo mundo vida.
Na perspectiva delineada, não se trata de uma didática
prática que ficaria na atitude natural, partiria do pensamento
da experiência dos sujeitos, porém, alcançaria uma atitude fe-
nomenológica. Nesse sentido, considero pertinente citar Tor-
res (1997, p. 182-183), quando esclarece que o processo de
conhecimento na perspectiva da fenomenologia, por meio da
consciência, pode ser sintetizado na seguinte ordem: primeiro,
o processo inicia com a possibilidade histórica, que é a intencio-
nalidade; no segundo momento, a possibilidade histórica, como
movimento da consciência, que é a objetividade ou o momento
de apreensão e compreensão da realidade, que ocorre ainda no
nível do senso comum, da consciência pré-reflexiva, e que, por-
tanto, necessita do rigor epistemológico; o terceiro momento,
que se relaciona diretamente aos dois anteriores, é a possibili-
dade histórica da consciência que se distingue pela criticidade.
Nessa fase, a consciência, pela sua intencionalidade, ultrapassa
o nível da objetivação, uma vez que não está mais no campo
da opinião, e que, portanto, não é uma simples identificação da
realidade; e, finalmente, a possibilidade histórica que se eviden-
cia pela transcendentalidade. Ou seja, é a possibilidade de o ho-
mem atingir o conhecimento que não despreza a técnica, o saber
92

das ciências naturais, mas, mediado por esse saber científico,


atinja o saber humano, da consciência que transcende o mundo
físico e alcance a essência, isto é, um saber do mundo físico e
humano por meio de uma consciência transcendental.
Considerando a didática como um problema da realidade
educacional em relação direta com a prática escolar, com a
ação de ensinar e aprender constrói-se numa prática cuja ação
dinâmica tem uma dimensão de humanização. Por isso, perce-
bo a importância de uma didática comprometida com a ação
de ensino-aprendizagem contextualizada no mundo da cultura
dos sujeitos envolvidos. Um processo de ensino-aprendizagem
significativo no qual os indivíduos se apropriem do sentido da
existência. Uma didática que vá além do mero instrumental
técnico de regras de ensinar a aprender.
Nesse sentido, este trabalho procurou dar centralidade a
uma abordagem científica qualitativa do fenômeno situado a
partir do referencial teórico apresentado e do mundo da cul-
tura. Trata-se, pois de trabalhar no sentido de uma abordagem
burilada permanentemente após o diálogo com os fenômenos,
ao invés de abraçar de forma ingênua uma determinada abor-
dagem. Privilegiar o ponto de vista do pesquisador e recusar a
ideia da neutralidade axiológica no processo de pesquisa sig-
nifica também, e por consequência, dar centralidade à ideia de
experiência, de mundo vivido, na produção do conhecimento.
A abordagem aqui assumida significa ainda uma forma de
chamar a atenção para as articulações entre o fazer científico e
o mundo cotidiano, isto é, a relação da ciência com o mundo
como cenário de toda e qualquer atividade humana. A aborda-
gem fenomenológica em pesquisa qualitativa aqui delineada
é uma forma privilegiada de potencializar as possibilidades
de resgatar a importância da densidade do mundo vivido; no
sentido não só de uma melhor compreensão dos fenômenos
associados ao universo da didática, tal como inicialmente con-
ceituada, mas também, e principalmente, em termos de como
esses fenômenos se apresentam e são experimentados.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 93

Nesse sentido, a educação é direcionada, especificamen-


te, para a formação de cidadãos, com capacidade de produzir
e contribuir para uma nova ordem por meio da ampliação e
utilização de técnicas e métodos específicos para cada área do
conhecimento humano.
Em meio ao contexto apresentado, a educação e a didáti-
ca são inseridas numa relação direta com as ciências naturais,
o que caracteriza a adoção do método científico vigente. No
entanto, como ação científica e pedagógica, a educação es-
colar, ao trabalhar e tratar com fenômenos complexos como
o ensino-aprendizagem, atitudes, comportamentos e relações
humanas, deve ultrapassar o modelo clássico de ciência. Não
significa abandoná-lo, mas ir além dele e considerar que o ser
humano apresenta características e particularidades específi-
cas de subjetividade que ultrapassam os fatos físicos observá-
veis, quantificáveis e controláveis por ações ou instrumentos
e técnicas objetivas.
Freire (1996) chama a atenção para a importância do ato
de ensinar. Numa compreensão do humano situado em con-
dições próprias do seu mundo-vida, ele ressalta que o ato de
ensinar é uma especificidade do humano e, portanto, não pode
ser separado da existência do ser, do mundo da cultura em que
está inserido. Entretanto, é necessário ampliar esse mundo e
dotar os sujeitos das condições necessárias para uma vida dig-
na e uma aprendizagem de significados.
O fenômeno educativo é complexo e apresenta várias di-
mensões que contribuem para o desenvolvimento do processo
de ensino e aprendizagem. Uma dessas dimensões é a relação
professor-aluno, fundamental para a expressão de um ensino
qualitativo. Essa relação se constrói pela ação, pela palavra,
pelo silêncio e por mediações diversas do confronto humano de
estar e existir no mundo, de se fazer presente nesse processo de
humanidade que permeia a prática educativa em sala de aula.
Em situação de ensino e aprendizagem essa intencionalidade
94

deve ser presença constante. Portanto, a “afinidade” entre o


professor e o aluno é fundamental para o desenvolvimento de
uma aprendizagem significativa.
A relação pedagógica não se faz de imediato, ela se cons-
trói por meio de tessituras, de silêncios subjetivos e objetivos,
da relação intencional que visa ao significado para dar senti-
dos à própria existência do ser. Por isso, compreendo que a
mediação professor-aluno se faz na doação, doação de senti-
do, de intencionalidade.
Acredito que a falta de interesse – alegada pelos profes-
sores –, o barulho da conversa e o dispersar dos alunos em
sala de aula estão relacionados à falta de sentido, de signifi-
cado para a própria existência; portanto, há possibilidade de
mudança se exercitarmos a reflexão a partir do sujeito, do sig-
nificado que cada aluno ou professor atribui a si mesmo e ao
conteúdo da aula.
Diante do que tenho vivenciado na minha prática pro-
fissional, percebo que é possível contribuir para a mudança
da prática educativa em sala de aula se partirmos do mundo
vida do aluno, se adotarmos a reflexão filosófica de rigor para
atingir a atitude científica priorizando-se uso da razão huma-
na, e não por meio de uma racionalidade técnica, instrumental
e cientificista, mas uma razão emancipadora da consciência
humana. Por isso, a didática como mediadora do processo de
ensino-aprendizagem é uma ferramenta para a articulação,
desenvolvimento e apropriação do saber. Um saber sistema-
tizado em que se considere a experiência de mundo de cada
pessoa e dos conteúdos a partir das propostas curriculares que
deverão ser trabalhadas conforme o nível de ensino.
O exposto pode parecer ingênuo diante de tantas formu-
lações teóricas que procuram compreender e solucionar os
problemas da prática educativa, porém, tenho percebido que
somente por meio de uma ação educativa humana, de refle-
xão rigorosa, poderemos contribuir para o emancipar humano
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 95

como ser de uma consciência transcendental. A fenomenolo-


gia é uma possibilidade para uma prática pedagógica intencio-
nal, humanizadora, rigorosa e emancipadora que transponha
os limites instrumental e técnico da didática e alcance, tam-
bém, a dimensão de reflexão que é própria da filosofia.
A elaboração de uma didática na perspectiva da fenome-
nologia exige uma fundamentação teórica de caráter filosófico
centrada em pressupostos emancipatórios e em todos os com-
ponentes curriculares nos quais estão inseridas as disciplinas.
Portanto, essa perspectiva é fundamental para estabelecer uma
comunicação com os múltiplos saberes da experiência dos su-
jeitos e do currículo formal na expectativa de contribuir com
o processo de emancipação humana. Por meio da mediação
dialógica e interdisciplinar que ocorre num espaço de intera-
ção social, de comunicação, de diálogo intencional e das ações
didático-metodológicas, acredito ser possível a tessitura da
aprendizagem ancorada em uma intencionalidade pedagógica
num processo que envolve ação-reflexão-ação. Pelo processo
dialógico, os conteúdos trabalhados em sala de aula ganham
uma dimensão e significados e provocam no educando um
conflito, uma tensão que retira a sua condição de passividade,
de receptor e de objeto do conhecimento, e o posiciona como
sujeito com possibilidade ativa de participação e intervenção
na elaboração do seu aprendizado. A condição de conflito pro-
voca uma atitude de posicionamento, de escolha, de ação no
processo de ensino-aprendizagem, ou seja, a tensão provocada
pela ação dialógica desestabiliza a comodidade de receptor e
desperta o aluno para uma atitude de participação, de atuação,
de sujeito no seu próprio processo de construção do conheci-
mento. Assim, nessa relação mediada pelo conhecimento do
mundo-vida do professor e dos alunos e sustentada por um
conhecimento teórico em direção à concretização de uma prá-
tica por meio de uma reflexão rigorosa e autêntica, dar-se-á a
práxis pedagógica significativa e humanizadora. Clarifica-se
96

para os sujeitos a finalidade dos conteúdos ensinados e a im-


portância de reflexão sobre os mesmos numa autêntica atitude
de intencionalidade da relação pedagógica.
Portanto, numa relação dialógica interdisciplinar e fun-
damentada, os conteúdos apresentados em aula ganham uma
dimensão de importância, de significado rumo a uma apren-
dizagem emancipadora e humana, pois apreende o ato de co-
nhecer numa dimensão fenomenológica; a consciência capta
os fenômenos físicos, os naturais e os humanos de forma in-
tencional e os compreende conforme a sua presença, relevân-
cia e importância para cada consciência, possibilitando novas
reflexões e ampliando a consciência de mundo dos sujeitos
envolvidos no processo de ensino-aprendizagem.
Nesse sentido, acredito que uma proposta didático-meto-
dológica na perspectiva do referencial fenomenológico deve
apresentar os fundamentos que estejam vinculados ao mundo-
-vida dos sujeitos, haja vista que a aprendizagem inicial se faz
pela experiência do sujeito em seu mundo da vida. Esta proposta
não desconsidera as concepções e técnicas de ensino existentes,
porém, ela visa ir além, pois busca no mundo humano e no co-
nhecimento científico os fundamentos para uma ação no sentido
de compreender os fenômenos de existência física, metafísica e
humana que são captados pela consciência dos homens.
No ato educativo devem ser consideradas também as con-
dições socioculturais, as diversidades econômicas, regionais,
humanas, objetivas e subjetivas, as competências individuais
dos grupos de trabalho em busca da autonomia dos sujeitos
para se perceberem e se constituírem como pessoas, como ci-
dadãos, como indivíduos que partilham o espaço social e que
não estão sós. São sujeitos que fazem parte de um universo
físico e humano complexo, movido por regras e normas oriun-
das da compreensão, do controle, da dominação e da cons-
ciência dos próprios homens que necessitam se compreender
como sujeitos, como seres de relações presentes no mundo.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 97

A didática na perspectiva da fenomenologia – como a concebo


– não pretende sistematizar técnicas e passos a serem seguidos
cartesianamente ou sequência articulada numa ordem deduti-
va ou indutiva rígida, mas compreenderá com rigor metódico
e metodológico o processo de ensino-aprendizagem como um
‘alargamento da consciência’ para entender o mundo, o ho-
mem em situação de aprendizagem.
Por isso, acredito no trabalho pedagógico contextualiza-
do nas situações de ensino-aprendizagem, conforme a com-
preensão e percepção do nível de conhecimento em que se en-
contram os educandos, todavia, de forma didático-pedagógica
rigorosa, como compreende a fenomenologia: a) rigor acadê-
mico, para a construção da autonomia intelectual; b) epoché,
como processo de afirmação da pessoa; c) lebenswelt, como
valorização do mundo vivido e das experiências do sujeito;
d) intencionalidade, o princípio de interação dialética sujeito/
mundo; e) relação professor-aluno, como espaço do diálogo
para expressão da autonomia humana.
Considerando a didática como um problema da realidade
educacional em relação direta com a prática escolar, com a
ação de ensinar e aprender, entendo que é possível construir
uma prática cuja ação dinâmica tenha uma dimensão de hu-
manização. Por isso, percebo a importância de uma didática
comprometida com a ação de ensino-aprendizagem contex-
tualizada no mundo da cultura dos sujeitos envolvidos, tendo
por base um processo de ensino-aprendizagem significativo
no qual os indivíduos se apropriem do sentido da existência.
Uma didática que vá além do mero instrumental técnico de
regras de ensinar a aprender.
98

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O CUIDADO NA EDUCAÇÃO NUMA
PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA:
apontamentos para uma reflexão
sobre a contemporaneidade

Crisóstomo Lima do Nascimento

A principal obra do filósofo alemão Martin Heidegger, Ser


e tempo (1927), elaborada quatro anos antes de sua publicação,
foi dedicada ao mestre e inspirador Edmund Husserl, “em tes-
temunho de admiração e amizade”. Heidegger conta que, certo
dia, no inverno de 1925-1926, foi procurado em sua sala de es-
tudos em Marburgo pelo decano da Faculdade de Filosofia. Este
lhe disse ser necessária a publicação de um trabalho e pergun-
tou se Heidegger dispunha de algum manuscrito pronto, ao que
o filósofo respondeu afirmativamente. Os primeiros cinquenta
cadernos do manuscrito de Ser e tempo foram impressos pela
Editora Max Niemeyer, com mediação de Husserl. Desde
1913, essa editora publicava o Anuário de Filosofia e Pesqui-
sa Fenomenológica, por ele editado. Dois exemplares do texto
impresso foram enviados a Berlim, sendo devolvidos algum
tempo depois com a observação “insuficiente”. Em fevereiro de
1927, finalmente, é publicado o texto completo de Ser e tempo,
no oitavo volume do Anuário de Husserl. Pouco depois, Heide-
gger assume a cátedra em Marburgo.
Nesta sua primeira grande obra, Heidegger busca ex-
plicar a fenomenologia de forma muito clara, partindo dos
seus termos originais gregos phainomenon e logía. Porém,
o que supostamente seria pensado como uma “ciência dos
fenômenos”, é formulada como um método de investigação.
Com isso, ao apresentar a fenomenologia, Heidegger já o faz
102

tendo como pano de fundo o seu principal propósito com esta


obra: reabilitar a questão que ele entende como a mais funda-
mental de todas, ou seja, a questão do Ser, na medida em que
a interpretação deste, da forma como foi objetivada pelo pen-
samento metafísico, desconsideraria a indagação sobre o Ser e
seu sentido. Esta seria, portanto, a primeira e mais fundamen-
tal dentre todas as questões filosóficas, pressuposto de todas
as outras questões. Teria sido ela motivo das investigações de
pensadores como Platão e Aristóteles, mas, ao recolocá-la na
ordem de uma problematização mais rigorosa, Heidegger não
a faria nos moldes da tradição filosófica que pergunta pelo Ser
como uma categoria entre outras, mas indagaria esta categoria
pelo seu sentido.
Conforme apontado anteriormente, a questão do Ser
anuncia-se para Heidegger como detentora de um estatuto di-
ferenciado muito antes de Ser e tempo, quando do seu primei-
ro contato com a obra de Franz Brentano, em 1907, ainda nos
primeiros semestres do efêmero curso de Teologia. A frase de
Aristóteles que diz que “o ente se manifesta, em conformi-
dade com o seu ser, de diversas maneiras”, presente na dis-
sertação de Brentano, intitulada Sobre o significado múltiplo
do ente segundo Aristóteles, o fez indagar-se sobre a singular
especificidade desta pequena palavra de compreensão obscura
e subjugada (HEIDEGGER, 1973, p. 495). Todavia, apenas
com o advento do clareamento e da perfeita compreensão da
fenomenologia do amigo e mestre Husserl, tal tarefa de re-
posicionamento da questão sobre o sentido do Ser foi reinau-
gurada em diferentes moldes da impressa pela metafísica da
subjetividade até então.
O método fenomenológico viabilizaria, portanto, a inves-
tigação do sentido do Ser a partir da análise daquele que, entre
todos os entes, seria capaz de compreendê-lo e refletir sobre
tal sentido, a saber, o ente que somos. A fenomenologia cons-
tituiria, então, um método capaz de propiciar uma analítica da
existência. Tal “analítica existencial” se põe como condição
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 103

de possibilidade para a ontologia fundamental de Heidegger.


Aquela não é menos fundamental do que esta, na medida em
que não se propõe a fazer uma apreensão integral do humano
como um ente cujas características marcantes pudessem ser
enfocadas por uma visada psicológica, como teria formulado
Kant. Diferentemente, a investigação fenomenológica heideg-
geriana visa o homem em seu ser, entendendo que esse ser tem
uma especificidade singular, é um Da-sein ou “ser-aí”.

A analítica do Dasein de Martin Heidegger


em Ser e tempo

O grande interesse de Heidegger pela questão do sentido


do Ser o motivou a deixar o curso de Teologia para ingressar
na Filosofia. Ser e tempo aborda a questão do Ser por preten-
sos caminhos ditos radicalmente diferentes daqueles percorri-
dos até então pela tradição, ou seja, sem se deter na pergun-
ta “o que é o ser”, e sim sobre o seu sentido. O objetivo da
Ontologia de determinar a quididade9 dos entes transforma-se
numa questão hermenêutica.
O método empregado nesse questionamento ontológico em
Ser e tempo é denominado por Heidegger fenomenologia herme-
nêutica. Segundo ele, a fenomenologia, herdada de Husserl, visa
dirigir-se “às coisas elas mesmas”. Esse “às coisas mesmas” nada
tem a ver com a coisa “em-si” da tradição; refere-se a um retorno
às “coisas mesmas” tal como elas aparecem e se dão à consciên-
cia. Porém, diferente de Husserl, a fenomenologia de Heidegger
não se reduz apenas à descrição das estruturas do ser-homem;
elabora, de forma radical, este ser-homem como “ser-aí”, Dasein,
abandonando qualquer determinação do homem como sujeito
psicológico ou transcendental. Para ele, o traço fundamental da
fenomenologia, “voltar-se para as coisas mesmas”, é a recupe-
ração da atitude básica dos pensadores gregos: abrir-se para a
9 Qualidade essencial. Para os escolásticos, aquilo que é fundamental ou essencial (em alguma
coisa); a essência de algo. (Etm. do latim: quidditas.atis)
104

experiência do ser dos entes em seu desvelamento e ocultação


(HEIDEGGER, 1999, p. 300). Além disso, o filósofo deixa
claro que embora a expressão “fenomenologia” refira-se a um
conceito de método, não se trata da noção corrente de método
usualmente empregada nas ciências, aquela de um artifício téc-
nico usado como meio para um fim. Para ele, fenomenologia e
ontologia não são separáveis e aquela não deve ser entendida
como mais um ponto de vista ou uma corrente filosófica. (HEI-
DEGGER, 1988, p. 57)
Para melhor compreendermos o que Heidegger visuali-
zou na obra Investigações lógicas (1901) de Husserl ‒ como
um despertar para a historicamente suprimida experiência gre-
ga sobre o pensar o Ser ‒, recorremos às suas palavras dispos-
tas em Meu caminho para a fenomenologia: “A distinção que
Husserl aí constrói entre intuição sensível e categorial reve-
lou-me seu alcance para a determinação do ‘significado múl-
tiplo do ente.’” (Heidegger, 1973, p. 497). Diferentemente da
compreensão corrente na esteira do pensamento tradicional,
que entende por intuição o abordar imediato, retilíneo e sem
intermédios de um ente qualquer, e que ganha com o neokan-
tismo uma roupagem psicologista conceitual dos elementos
a priori possibilitadores do conhecimento, Husserl realça a
originariedade da intuição em relação à conceitualidade.
No último seminário de que participa antes de sua morte,
o Seminar in Zähringen10, Heidegger o inicia respondendo a
uma pergunta formulada por Jean Beaufret sobre a possibili-
dade da identificação da questão sobre o Ser já em Husserl.
Segundo o autor de Ser e tempo, numa perspectiva mais ra-
dical não se poderia afirmar que seu relevante professor, que
o iniciou na filosofia, já havia previamente se ocupado com tal
questão. No entanto, o sexto capítulo da Sexta investigação ló-
gica, intitulado “Sensibilidade e entendimento”, teria marcado
uma significativa aproximação com a questão quando Husserl
explicita a “intuição categorial”, aspecto que Heidegger considera

10 Disponível em: <www.beyng.com/ereignis/html>. Acesso em: 22 abr. 2012.


PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 105

“[…] o ponto fundamental do pensamento husserliano para a


questão do ser”11. Husserl teria partido da intuição sensível,
fazendo-se necessário um maior clareamento das bases de sua
formulação. Para Heidegger, na determinação do que é a in-
tuição sensível, Husserl teria partido da hylé, do que afeta sen-
sivelmente, a saber, os dados sensoriais. Destarte, apareceria
o objeto, mas não como dado na impressão sensível, já que a
objetividade do objeto não pode ser percebida sensivelmente,
pois, se o objeto é notado enquanto tal, não resulta da intuição
sensível, mas da consciência que o constitui enquanto tal em
um ato intencional. Para a tradição, um objeto é uma coisa
e uma coisa é uma substância, sendo substância, na filosofia
kantiana, uma categoria do entendimento. Por conseguinte,
para Kant, o conhecimento é um trabalho empreitado pelo en-
tendimento, no qual se procede à síntese das representações e
à aplicação das categorias para obtenção do conceito.
Para Heidegger, Husserl recoloca a concepção kantiana
de modo12que a categoria seja antes de tudo uma forma. Neste
modo de conceber a intuição categorial torna-se presente em si
mesma como dada em um ato de intuição, diretamente acessível
a esta. Heidegger dá o exemplo de um tinteiro: é possível vê-lo,
mas o mesmo não acontece com a sua substancialidade; contu-
do, a substancialidade deve ser vista, sem o que não seria pos-
sível ver o tinteiro. Onde se encontra, pois, a substancialidade
do tinteiro? Ela estaria presente no “excedente” (Überschussig).
Em suas reflexões, Husserl13lança mão da noção aristo-
télica de substância (ousía) como “categoria primeira” e, no
exemplo acima dado por Heidegger, apontamos que o que este
chama de “excedente de significação”, o “ser tinteiro” do tinteiro,

11 Disponível em: <www.beyng.com/ereignis/html>. Acesso em: 22 abr. 2012.


12 Na dissertação de 1770, Kant procede à distinção entre matéria e forma: “À representação per-
tence, em primeiro lugar, alguma coisa que se pode chamar matéria, que é a sensação, e, em
segundo lugar, aquilo que se pode chamar de forma ou espécie das coisas sensíveis, que serve
para coordenar, por meio de certa lei natural da alma, as várias coisas que impressionam os sen-
tidos.” (De mundi sensibilis et intelligibilis forma et ratione. Esta distinção entre matéria e forma foi
o ponto de partida de toda a filosofia de Kant, que, não obstante, nunca alterou o significado de
forma, que continuou sendo a relação ou o conjunto de relações, ou seja, ordem.
13 Cf. HUSSERL. Investigações Lógicas. Sexta investigação. São Paulo: Abril Cultural, 1975, p. 101.
106

continua subentendido quando olhamos para o tinteiro. Nota-


mos que o “ser tinteiro” do tinteiro, em sua ousia, não tem
a mesma forma de percepção do tinteiro propriamente dito,
mas, no entanto, se faz presente, senão nada se veria. Para
tornar mais clara a distinção entre o sensível e o categorial,
diz Husserl (1975):

Posso ver a cor, mas não o ser-colorido. Posso sentir a maciez,


mas não o ser-macio. Podemos ouvir o som, mas não o ser-
sonoro. O ser não é nada dentro do objeto, nenhuma de suas
partes, nenhum momento a ele inerente, nenhuma qualidade ou
intensidade, como também nenhuma figura, nem absolutamen-
te nenhuma forma interna, nenhuma característica constitutiva,
como quer que seja concebida. Mas o ser também não é nada
de aderente ao objeto, assim como não é uma característica real
interna, não é também uma característica real externa e por isso
não é absolutamente nenhuma ‘característica’, no sentido de
uma característica real. (HUSSERL, 1975, p. 105).

Com isso, no entender de Heidegger, o categorial é dado


do mesmo modo que o sensível. Da mesma maneira que é
possível ter intuições sensíveis, também o é ter intuições ca-
tegoriais; e para que se intua algo, esse algo tem de estar ele
mesmo presente. Ora, se na intuição sensível os dados sen-
soriais se tornam presentes, analogamente, na intuição cate-
gorial, o que se torna presente e passível de ser abordado de
modo direto é o próprio ser que é dado de modo imediato. Se
em Kant as categorias são os modos pelos quais se manifes-
ta a atividade do entendimento, por meio da ordenação das
diversas representações em uma representação comum, que
é o conceito, elemento que propicia o juízo, e se o acesso às
categorias só poderia ser feito via tábua dos juízos e no nível
da sensibilidade não havia possibilidade de tal acesso, com
Husserl é possível ter acesso às categorias por uma intuição.
Se intuição significa tornar presente, no caso de Husserl, di-
ferentemente de Kant, não é ter presente algo que se situa ao
nível do entendimento, resultado de uma dedução; ao contrário, o
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 107

que se torna presente de modo imediato, sem recurso a nenhu-


ma atividade do entendimento, é a categoria. Assim, segundo
Heidegger, Husserl teria descoberto algo de decisivo: o “ver”
segundo dois tipos de visão: uma do sensível e outra do cate-
gorial, pois “[…] quando vejo este livro, vejo bem uma coisa
substancial, sem que veja a substancialidade como vejo o li-
vro. Ora é a substancialidade que, na sua inaparência, permite
ao que aparece aparecer.”14
Assim, como a questão que move Heidegger é a do ser e de
seu sentido, a análise da intuição categorial de Husserl liberta o
ser da posição à qual a tradição o confinou como dado na cópula
do juízo, e não é mais o resultado de uma operação levada a cabo
pelo entendimento, fruto somente de uma operação lógica ou de
uma predicação. Ao contrário, essa descoberta reorienta a possi-
bilidade da indagação heideggeriana, pois o ser é dado de modo
imediato e, como Heidegger tem por sua a questão fundamental
de explicitar o que seja o ser e o seu sentido, a descoberta husser-
liana possibilita proceder a essa interrogação.
O que Heidegger identificou, portanto, de ponto fundamen-
tal da fenomenologia de Husserl, consiste em nos ter colocado
na presença do ser, o qual se torna fenomenalmente presente
pela intuição categorial. Mas, se por este lado esta descoberta
foi decisiva, por outro, o filósofo da Floresta Negra sugere que
seu mestre não teria levado o pensar fenomenológico às últi-
mas consequências, na medida em que, tendo obtido o acesso
ao ser, ele não se interrogou acerca de seu sentido. Tal incom-
pletude se daria ainda por certa manutenção de uma visão en-
tificadora e objetal do ser. Para Heidegger, o ser objeto remete
para um modo de ser próprio dos entes “simplesmente dados”
(Vorhandenheit), modo de ser que não é o mais originário por-
quanto é derivado dos entes, que são “instrumentos” (Zeug) que
o Dasein usa nas suas ocupações quotidianas.

14 Cf. HEIDEGGER. Disponível em: <www.beyng.com/ereignis/html>. Acesso em: 23 abr. 2012.


108

Com isso, Heidegger, imprime um nível de maior radicali-


dade para a epoche husserliana, suspendendo a própria consci-
ência do sujeito, nomeado anteriormente por Husserl transcen-
dental. “A relação sujeito-objeto considerada a mais geral pela
tradição, é considerada por Heidegger como uma das possibi-
lidades históricas de sentido da relação do homem com a coi-
sa. O ser do homem é pura abertura de sentido, Dasein, ser-aí,
existência, ser-no-mundo [...]” (SÁ, 2004, p. 2). A intencio-
nalidade, enquanto propriedade fundamental da consciência
de estar sempre dirigida para um objeto, é substituída pelo
“cuidado”15 (Sorge), isto é, o Dasein é abertura através da qual
se desvela o sentido dos entes que lhe vêm ao encontro no
mundo. Com isso, há uma transição estrutural da fenomeno-
logia, antes transcendental com Husserl, agora hermenêutica
com Heidegger. Ao designar como Dasein (ser-aí ou ser no
mundo) o modo de ser deste ente que nós mesmos somos,
aponta como diferença radical com relação aos entes que não
têm este modo de ser o fato de que o homem é o ente que não
possui uma essência anterior à existência. Outrossim, o que
ele é, seu ser, está sempre em jogo no seu existir. O modo de
ser dos entes não humanos é denominado como “ser simples-
mente dado” (Vorhandenheit), porque o que eles são, o seu
sentido, nunca está em jogo em seu devir temporal; enquanto
o modo de ser do homem é a “existência”, o “ser-aí”, o “ser no
mundo”. Heidegger entende que o “ser-aí” é uma possibilida-
de aberta, já que é existindo que se “é-aí” como possibilida-
de de ser para as circunstâncias de um mundo e no constante
exercício de existir nele.
Diferentemente da tradição, e não facilmente perceptí-
vel, o ser-aí prescinde totalmente de um sujeito anterior que
desenvolva seu modo de ser no mundo; ao contrário, ser
sujeito, ou até mesmo a própria consciência intencional de
Husserl, tem como condição de possibilidade o “ser-aí”, que

15 Na edição brasileira de Sein und Zeit utiliza-se o termo “cura” para traduzir Sorge. Preferimos o
termo “cuidado”, amplamente utilizado pelos comentadores e tradutores de Heidegger.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 109

acaba ganhando contornos historicamente constituídos desta


ou daquela maneira, incluindo-se os citados anteriormente.
Nota-se, portanto, que ser no mundo é mais um “cultivo”
do que uma dada “condição” humana. Afinal, Heidegger põe
sob epoché, inclusive, a pressuposição de uma subjetivida-
de determinante da percepção dos fenômenos, para buscar no
sentido do ser o que faria das coisas elas mesmas sem ter que
recorrer a uma egologia16 para tanto.
O acesso ao que Heidegger (1988, p. 77) aponta como
“modo de ser deste ente que somos” torna-se mais tangível
quando se compreende que a expressão “ser no mundo” revela
a unidade estrutural ontológica da existência do Dasein, sen-
do que a análise desta unidade nos remete aos três momentos
constitutivos da totalidade deste fenômeno: a ideia de “mundo”
como estrutura de sentido; o “quem é no mundo”, que se revela
de início como “impessoalidade cotidiana”; o modo de “ser-
-em” um mundo, cuja estrutura se desdobra em “compreensão e
disposição”, noções sobre as quais discorreremos a seguir.

Impessoalidade cotidiana

Ser e tempo busca reapresentar a questão sobre o sentido


do ser, que será abordado a partir do fenômeno da linguagem.
Para o filósofo, a linguagem é a própria manifestação do ser,
haja vista que em seus diferentes modos de manifestação –
autêntico e inautêntico – o traduz nas relações que o homem
estabelece com as coisas, com os outros e consigo mesmo.
Assim, o ser se traduz e se manifesta nessa teia de relações
que Heidegger compreende como sendo mundo. Segundo o fi-
lósofo, a pré-sença (ou existência) pode dar-se de dois modos:
inautenticamente ou autenticamente.
Heidegger está interessado no modo de ser cotidiano
mais comum do Dasein. A existência é marcada, de início

16 Tomemos “egologia” como o primado do estudo do eu em sua dimensão transcendental (Nota do autor).
110

e na maior parte das vezes, pela “indiferença mediana” e o


“impessoal”. A tendência da fuga de si, esquecendo-se do seu
“ser próprio”, relacionando-se com ele como algo já dado a
priori, preestabelecido e relativamente imutável caracteriza a
maneira inautêntica com que o homem se encontra no mun-
do, revelando o próprio modo de ser cotidiano, configurando
uma existência imediata. Nesta, tendemos a caminhar em di-
reção a um horizonte que dimensiona o nosso fazer de forma
superficial. Isso porque esse horizonte abre um discurso que
previamente nos lança em uma compreensão sempre mediana
acerca do mundo pela qual temos a pretensão de que tudo já
foi compreendido. Tal medianidade pode ser percebida a partir
desse horizonte que tece o mundo de modo impessoal, pois,
comumente, deixamos que outra existência dite o modo como
devemos existir no mundo.
Heidegger diz que é por meio de um agir com rigor
que temos condições de “recriar” o mundo; é a partir de um
mergulho nesse inautêntico que podemos nos apropriar te-
maticamente desse mesmo mundo cotidiano e do “horizon-
te” de significâncias que o torna possível. Frisamos, porém,
que a existência própria não é algo superior a de-cadência da
pré-sença pelo fato de a “[...] autenticidade ser apenas uma
apreensão modificada da cotidianidade [...].” (HEIDEGGER,
1988, p. 241). Isto posto, vemos que esses modos fundamen-
tais da “existência” ‒ autêntico e inautêntico ‒ traduzem a
ação do homem e, consequentemente, tecem o mundo. Por
isso, não devemos compreender a “de-cadência” da “pré-sen-
ça” negativamente, como algo que decaiu de um estado supe-
rior para um inferior, pois essa de-cadência representa o modo
mais imediato do como “existimos” no mundo. Pré-sença que
é entendida pelo autor como

momento constitutivo que permite o ser se realizar no mundo


e, quando essa de-cai, ela se vê abrigada nos fenômenos do co-
tidiano – falatório, curiosidade e ambiguidade – e esse abrigar
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 111

faz com que o caráter de ‘impessoalidade do cotidiano’ com a


sua pretensão de nutrir toda a vida autêntica, tranquilize a pre-
-sença, assegurando que tudo esteja em ordem. (HEIDEGGER,
1988, p. 241)

Nesta “tranquilidade”, a pre-sença torna-se “alienada” e


encobre para si mesma o seu “estar mais próprio”.

A existência autêntica se vela, e, ao velar-se, acaba por funda-


mentar a pre-sença na sua de-cadência. Isso acontece porque,
atrelado a de-cadência, está o discurso que permite que acon-
teça esse modo de ser especial – de-cadência –, esse discurso é
chamado por Heidegger de ‘falatório’. (op.cit., p. 239)

Entende-se por “falatório” o fenômeno que constitui uma


espécie de “horizonte” norteador de nossa compreensão sobre
o mundo. Tal compreensão é sempre dada e mediana, isto é,
com frequência nos deixamos levar pelo discurso instituído
pelos outros, seja ele falado (“falatório”), seja ele escrito (“es-
critório”), fazendo com que nossa existência seja fundamenta-
da sempre na concepção extraída de um senso comum, que só
traz à tona um “caráter superficial” para a nossa compreensão.
Vale dizer: tendemos a nos contentar com a compreensão dita-
da sempre por outro que, nas palavras de Heidegger, é “sem-
pre mediana”. Esse caráter mediano funda-se ontologicamente
no que o filósofo chama de “compreensão prévia”. Então, é o
caráter prévio trazido pelos fenômenos do falatório e do escri-
tório que nos permite saber o que são as coisas e os outros com
os quais lidamos cotidianamente. Por sabermos previamente o
sentido das coisas é que sempre nos vemos lançados no senso
comum. No entanto, nos encontramos tão “mergulhados” nos
afazeres cotidianos que a nossa tendência é escutar e passar
adiante a fala vazia do outro. Dentro dessa tendência, estamos
tão dispersos de nós mesmos que não mais nos reconhecemos
nas coisas, ou melhor, não conseguimos perceber que só com-
preendemos previamente as coisas, porque elas fazem parte
112

da nossa possibilidade de ser. A partir dessa dispersão, a visão


que se abre é sempre mediana, pois o modo de falar e escrever
descomprometido (falatório e escritório) rechaçam o novo e as
transformações, expressando o modo de ser cotidiano do Da-
sein, “decadente” e “inautêntico”. Com isso, este modo de ser
cotidiano “mediano”, pré-reflexivo e que, quase sempre, ins-
taura tacitamente possibilidades de ser, nos “anestesia” com
muita recorrência um modo próprio e pessoal de desvelamen-
to de sentidos dos entes que nos vêm ao encontro.
Além dos fenômenos do “falatório” e do “escritório”,
também a “curiosidade” tece essa trama do cotidiano do Da-
sein. Esta última, embora com frequência “mortificada” pelos
dois primeiros, também ambiguamente “estrutura” o caráter
de impermanência do Dasein. A curiosidade se mostra, nas
palavras de Heidegger, como uma “tendência em ver”, quer
dizer, nos sentimos atraídos sempre pelo último lançamento,
seja na tecnologia seja na moda.Vemos sempre o que o outro
vê ou viu – ou o que todos viram. O “outro” sempre dá a me-
dida da nossa compreensão, e isto dá um contorno de impes-
soalidade para o modo como agimos. O impessoal é que faz
o falatório ser o que é: um discurso que, impulsionado pela
curiosidade, lança o homem na última novidade ditada pela
compreensão mediana da presença.
Assim, nos apropriamos pouco, pois nos sentimos tentados
sempre pelo que é novo, o que nos torna dispersos. Essa busca
que se ocupa em sempre mudar do que aparentemente toma-
mos como velho para o que se apresenta aos nossos olhos como
novo é própria do fenômeno da curiosidade. A dispersão vem
com a tendência em ver o novo como o que é bom. Pois bem, a
ocupação dos olhos (essa ânsia pelo novo que se revela sempre
pela visão da curiosidade) sem qualquer pretensão de se obter
uma maior apropriação e tematização mais rigorosa daquilo que
é visto, faz da nossa tarefa de sermos no mundo uma tarefa su-
perficial e inautêntica, “esquecendo-se” de sua estrutura básica
de cooriginariedade a tudo que o cerca e de que, ao não se abrir
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 113

para o mostrar-se dos fenômenos, cria uma opacidade que enco-


bre e distorce o desvelamento das possibilidades de sentido de
si mesmo e dos entes que lhe vêm ao encontro.

Compreensão e disposição

“Ser-em” não tem uma conotação espacial, mas herme-


nêutica. Não diz respeito a uma relação entre dois entes exten-
sos nem à relação entre sujeito e objeto. O “em” significa que o
Dasein e o mundo são coexistentes. Em outras palavras, como
dito anteriormente, uma unidade estrutural cooriginária: um ja-
mais antecede o outro, são cooriginários. O Dasein é abertura
de sentido e as dimensões essenciais dessa abertura são deno-
minadas por Heidegger como “compreensão” (Verstehen) e
“disposição” (Befindlichkeit). Tal abertura compreensiva não é
algo afetivamente neutro, que se restringe ao âmbito intelectual.
Toda compreensão é sempre dotada de uma “coloração” afeti-
va, de um “humor” ou “disposição”. Disposição e compreensão
constituem o modo de ser dessa abertura. Assim como a dispo-
sição, a compreensão é uma estrutura ontológica da abertura.
Heidegger tematiza a compreensão nos parágrafos 31 e 32 de
ST. Indicaremos aqui, em linhas gerais, a compreensão existen-
cial da relação recíproca entre compreensão e disposição.
O Dasein é poder ser, que são possibilidades de ser. A
compreensão é a articulação do poder ser, a articulação das
possibilidades que se abrem no mundo. A existencialidade, tra-
ço ontológico do Dasein, se funda na compreensão. O Dasein
só é poder ser porque compreende a si mesmo como possi-
bilidade. Por esse motivo, Heidegger diz que a compreensão
abre o mundo como possibilidade. Compreender é apreender
não conceitualmente a significância articulada em virtude do
Dasein enquanto abertura de possibilidades. A compreensão,
portanto, tem um caráter “positivo” que contrasta com a “ne-
gatividade” da disposição, que condiciona e restringe as pos-
sibilidades do ser no mundo.
114

Compreensão e disposição são estruturas ontológicas do


Dasein reunidas no cuidado17 e, enquanto tais, são equipri-
mordiais. A disposição sempre compreende e a compreensão
está sempre disposta: o Dasein afinado com o mundo já dado
sempre apreende as possibilidades desse mundo, e toda com-
preensão de mundo é sempre afinada com o estado de humor.
Em outras palavras, isso significa que a facticidade e a exis-
tencialidade são traços ontológicos do Dasein igualmente ori-
ginários. Tudo o que o Dasein faz ou deixa de fazer se articula
a partir da compreensão afinada com o humor, isto é, enquanto
abertura de possibilidades condicionadas pela facticidade de
um mundo específico. A disposição não é um aprisionamento
na facticidade porque a compreensão articula possibilidades.
O Dasein não está completamente à mercê da facticidade por-
que a compreensão, ainda que seja “obediente”, não é subser-
viente à facticidade.
Disposição18 traduz Befindlichkeit, uma palavra construída
a partir da expressão alemã “Wie befinden Sie sich?”, que signi-
fica o mesmo que as expressões em português e inglês “Como
você vai indo?” e “How are you doing?”. Traduzida ao pé da
letra, Wie befinden Sie sich? significa “Como se encontra você
mesmo?”. Befindlichkeit diz o caráter de encontrar-se em um
mundo determinado e, consequentemente, de um modo deter-
minado, isto é, conforme um “estado de humor compartilhado”
que perpassa o mundo e condiciona todo o comportamento no
seu interior. A palavra “disposição” procura expressar, ontolo-
gicamente, esse “estado de humor compartilhado” que sinto-
niza o Dasein e o seu mundo. As estruturações ônticas da dis-
posição, ou seja, os estados de humor específicos, Heidegger
denomina Stimmung. “O que indicamos ontologicamente com
o termo disposição é, onticamente, o mais conhecido, a saber,

17 Esta estrutura ontológica (Sorge), que pode ser traduzida como “cura” ou cuidado, será mais
apropriadamente tematizada no subitem a seguir.
18 Befindlichkeit é um dos termos de ST de mais difícil tradução. Optamos aqui por disposição
seguindo a tradução da edição em português. Talvez predisposição fosse uma boa opção por
ressaltar o caráter a priori da disposição.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 115

o humor (Stimmung), o estado de humor (Gestimmtsein) [...].”


(HEIDEGGER, 1988, p. 288). O humor é algo como um estado
de espírito ou uma “tonalidade afetiva” que perpassa o mundo.
Os modos de ser do Dasein são sempre “afinados” com a tona-
lidade afetiva específica do seu mundo. Enquanto a disposição
é uma estrutura ontológica do Dasein constitutiva da abertura
do mundo, um estado de humor específico é uma determinada
tonalidade afetiva que afina, isto é, “dá o tom” que “regula” o
comportamento em geral do Dasein.
Com isso, Heidegger sugere que, em tudo o que o Dasein
empreende, pensa e sonha a disposição está a priori presente. A
abertura de sentido já está sempre “sintonizada afetivamente”,
não havendo espaço para o “neutro” neste âmbito. A disposição
abre o mundo desta ou daquela forma antes de qualquer possi-
bilidade de reflexão. Mais uma vez, aqui, apontamos questões
as quais acreditamos ser pertinentes e que, portanto, devem ser
pensadas e debatidas no âmbito educacional. Se toda compre-
ensão já carrega consigo uma “tonalidade afetiva”, se todos os
nossos atos já se dão dentro de uma abertura prévia de sentidos,
pré-reflexiva e comumente não tematizada, como devemos en-
carar os “pigmentos semânticos estruturais” que constituem
tacitamente nossos atos pedagógicos? Seria tal questionamen-
to legítimo de ser levado a cabo permanentemente pelo edu-
cador na sua prática educacional, impulsionando movimentos
de apropriações temáticas “mais densas”? Retornaremos a tais
questionamentos mais à frente, quando nos deteremos mais
pormenorizadamente sobre possíveis encontros entre o pensa-
mento heideggeriano e a educação. Tenhamos em mente agora
que a análise dos constitutivos do ser no mundo revela as es-
truturas existenciais do ser do Dasein, que para Heidegger pre-
cisam ser abarcadas em sua unidade ontológica estrutural. O
termo que cumpre tal exigência refere-se à acepção de cuidado.
Nosso próximo passo será, por conseguinte, o esclarecimento
da referida acepção, nodal para esta investida epistêmica, con-
forme expressa em seu título.
116

A unidade das determinações ontológicas do


Dasein: o “cuidado” (Sorge)

Os modos de ser do Dasein são articulados no “cuida-


do”. Este termo denomina a unidade das determinações on-
tológicas do Dasein porque toda compreensão é decadente e
disposta, toda disposição compreende e é decadente, e a deca-
dência compreende e é disposta. Existencialidade, facticida-
de e decadência, enquanto caracteres ontológicos do Dasein,
correspondem, respectivamente, à compreensão, à disposição
e à decadência. Não são, entretanto, determinações indepen-
dentes, mas compõem um fenômeno unitário, justamente por-
que são apenas diferentes aspectos de um único fenômeno, o
ser no mundo, que correspondem a cada uma das ekstases19do
tempo. Heidegger lança mão do conceito de “cuidado” para
obter uma perspectiva da totalidade estrutural referente a essas
noções; perspectiva que possibilite demonstrar a plena unida-
de dessas estruturas. Cuidado é, assim, o termo escolhido pelo
filósofo para designar a apreensão formal da totalidade estru-
tural do ser-aí enquanto ser no mundo que existe facticamente.
A segunda seção de ST mostra a temporalidade do cuidado,
isto é, mostra a relação dos existenciais disposição, decadên-
cia e compreensão com as ekstases passado, presente e futuro.

Os caracteres ontológicos fundamentais desse ente são existen-


cialidade, facticidade e decadência. Essas determinações exis-
tenciais, no entanto, não são partes integrantes de um composto
que se pudesse ou não prescindir de alguma. Ao contrário, ne-
las se tece um nexo originário que constitui a totalidade procu-
rada do todo estrutural. (HEIDEGGER, 1999, p. 255)

Disposição é articulada com compreensão porque passado


é articulado com futuro. Dito de outro modo, a existencialidade
é determinada pela facticidade porque as possibilidades que se

19 À abertura e ao horizonte do tempo no qual o ser se mani­festa e acontece, Heidegger denominou


de “ekstases” da tempo­ralidade, que são o porvir, vigor de ter sido e atualidade (Nota do autor).
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 117

abrem dependem do passado. Toda abertura de possibilidades,


além de ser vinculada a um passado, é sempre em função de
um conjunto de utensílios e de técnicas disponíveis, ou seja,
é inserida na totalidade referencial da significância. Em outras
palavras, o “preceder a si mesmo por já ser no mundo” é sempre
um “ser junto a” alguma atividade e com um instrumento.

E, por conseguinte, o existir de fato do Dasein não está apenas


lançado indiferentemente num poder-ser-nomundo, mas já está
sempre empenhado no mundo das ocupações. [...] Na decadên-
cia, o ser junto ao manual intramundano da ocupação acha-se
essencialmente incluído no preceder a si mesmo por já ser e
estar em um mundo. (HEIDEGGER, 1999, p. 257)

Em outras palavras, podemos dizer que o ser-aí, enquan-


to ser no mundo é sempre e a cada vez sua existencialidade
própria, estando sempre já lançado em um mundo junto com
outros. Nessa existencialidade fáctica, ele encontra-se sempre
em relações com os entes. O ser do ser-aí é a possibilidade exis-
tencial para a qual ele se remete na atividade – pensamentos e
atitudes – em que se encontra lançado.
Na segunda seção de Ser e tempo (1988), no parágrafo 68,
o filósofo tematiza mais detidamente a temporalidade de cada
um dos modos de ser-em que são constitutivos do cuidado. Isso
significa relacionar cada um deles com uma ekstase do tempo:
“A compreensão funda-se, primariamente, no porvir (futuro)
ao passo que a disposição se temporaliza, primariamente, no
vigor de ter sido (passado)” (HEIDEGGER, 1988, p. 137, itá-
lico nosso) enquanto “[...] o terceiro momento estrutural da
cura, a de-cadência, encontra seu sentido existencial na atua-
lidade (presente)” (op. cit., p. 144). Note-se o uso da palavra
“primariamente”, que indica que muito embora cada modo de
ser-em corresponda a uma ekstase determinada, tendo em vis-
ta que cada uma delas contém também as outras duas, cada
modo de ser-em está também em alguma medida vinculado a
todas as ekstases.
118

A totalidade existencial de toda estrutura ontológica do Dasein


deve ser, pois, apreendida formalmente na seguinte estrutura: o
ser do Dasein diz preceder a si mesmo por já ser em (no mun-
do) como ser junto a (os entes que vêm ao encontro dentro do
mundo). Esse ser preenche o significado do termo cura que é
aqui utilizado do ponto de vista puramente ontológico-existen-
cial. (HEIDEGGER, 1999, p. 257)

Como vemos, o conceito de cuidado não pode ser enten-


dido na acepção comum do termo, que o remeta a um com-
portamento, a uma relação de zelo e preocupada com este ou
aquele ente no mundo. Ele é o conceito ontológico-existencial
que unifica os caracteres ontológicos do ser do ser-aí. Por ser
fundamentalmente cuidado (Sorge), o ser do ser-aí pode ser
compreendido nas relações que sempre e a cada vez estabele-
ce com os entes e, desta forma, também as de cunho protetivo.
Ao lidar com um ente que não possui o caráter de ser-aí, o
existente está em uma relação de ocupação (Besorgen), isto é,
ocupa-se com o ente, tomando-o em termos de um utensílio
(HEIDEGGER, 1988, p.114-115). Por outro lado, ao compor-
tar-se como entes igualmente existentes, o ser-aí está em uma
relação de preocupação (Fürsorge)20.
No entanto, conforme apresentado anteriormente quan-
do da “impessoalidade cotidiana”, o modo mais imediato do
Dasein se relacionar com os outros entes, quaisquer que sejam
estes, se dá, na maioria das vezes, pela ocupação, manuseio e
uso, num horizonte de instrumentalidade sempre referido a um
contexto de significância, num mundo em que predomina o uso
ou utilidade. Acreditamos, inclusive, não ser nada incongruente
visualizar tal perspectiva de instrumentalidade, manuseio e uso
prevalecente nas próprias relações do Dasein com os outros en-
tes dotados de seu modo de ser, oscilando modulações do cuida-
do originariamente pensado como preocupação (Fürsorge) para
manifestações ônticas de natureza de ocupação (Besorgen).

20 A própria cunhagem dos termos Besorgen e Fürsorge traz o termo Sorge como radical, explici-
tando o caráter fundamental deste último.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 119

Por estar sempre nesse ou naquele modo de ser no mun-


do com os entes que lhes vêm ao encontro, o ser do ser-aí
é fundamentalmente cuidado21. Em Ser e tempo, Heidegger
nos apresenta uma das fábulas de Higino, na qual localiza um
testemunho pré-ontológico da interpretação do ser do Dasein
como cuidado. Eis o texto tal qual se encontra na obra:

Certa vez, atravessando um rio, ‘cura’ (cuidado) viu um pedaço


de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a
lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio
Júpiter. A cura pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o
que ele fez de bom grado. Como a cura quis então dar seu nome
ao que tinha dado forma, Júpiter a proibiu e exigiu que fosse
dado o nome. Enquanto ‘Cura’ e Júpiter disputavam sobre o
nome, surgiu também a terra (tellus) querendo dar o seu nome,
uma vez que havia fornecido um pedaço do seu corpo. Os dis-
putantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou
a seguinte decisão, aparentemente equitativa: ‘Tu, Júpiter, por
teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu,
terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como,
porém, a ‘cura’ quem primeiro o formou, ele deve pertencer
à ‘cura’ enquanto viver. Como, no entanto, sobre o nome há
disputa, ele deve se chamar ‘homo’, pois foi feito de húmus
(terra). (HEIDEGGER, 1999, p. 263-264)

Para Heidegger, o significado especial desta fábula não


está somente no fato de o texto apontar o cuidado como “âm-
bito” ao qual o homem pertence enquanto vive. É igualmente
primordial que a primazia do cuidado surja no contexto da con-
cepção tradicional do ser do homem como “composto de corpo
e espírito” e que o nome dado ao ente que “pertence” ao cuida-
do (homem) não lhe tenha sido atribuído em consideração ao
seu ser, mas por remeter ao elemento de que consiste (húmus).

21 Porque, em sua essência, o ser no mundo é cuidado, pode-se compreender, nas análises prece-
dentes, o ser junto ao utensílio como ocupação e o ser como coseraí dos outros nos encontros
dentro do mundo como preocupação. (HEIDEGGER, 1988, p. 260)
120

Outro elemento de destaque na fábula latina é o fato de


que quem decide em relação à “disputa” em torno do homem
é Saturno, que dentro das divindades representa o “tempo”.
Com isso, o testemunho pré-ontológico expresso pela fábula
“[...] visualizou, desde o início, o modo de ser em que predo-
mina seu ‘percurso temporal no mundo’ [...]” (op. cit., p. 262).
Com isso, Heidegger destaca o sentido ontológico do termo,
que designa a constituição fundamental do existir humano
como uma abertura originária de sentido que ilumina tudo o
que lhe vem ao encontro, desde sempre cooriginária ao mundo
e ao outro. Ser é “ser-no-mundo-com-o-outro”.
Diferentemente, a concepção de relação, profundamente
marcada pela tradição dualista metafísica, pressupõe um apar-
tamento do outro, o que implicaria uma interioridade da qual é
preciso sair para aproximar-se. Cuidado é a condição de possi-
bilidade de tudo que entendemos por relacionar-se, e também
do não relacionar-se. “Apenas pode sentir-se só aquele que é
originariamente com-o-outro”22. Com essa afirmativa, Medard
Boss, psiquiatra suíço que estabeleceu profícuas produções a
partir do pensamento de Heidegger, nos dá a entender que mes-
mo a solidão, em geral percebida como isolamento, não exclui
a comunidade, mas, ao contrário, a pressupõe.
Como dito anteriormente, o quadro de referência instru-
mental, que permeia recorrentemente o modo de ser cotidiano,
pode sofrer abalos que anunciam a imprevisibilidade do por-
-vir existencial.Tal abalo, por vezes, promove estranhamentos
que quase sempre são experienciados como um angustiante
vazio de sentido e não como liberdade de possibilidades. “Daí
o fato de que o Dasein tende, em seu modo cotidiano e me-
diano, a desviar-se dele, aferrando-se, na medida em que lhe
é possível, às interpretações ‘já dadas’ e impessoais sobre
si mesmo e sobre outros entes.” (SÁ, 2004, p. 3) No caso
da convivência cotidiana (e aqui apontamos a convivência

22 BOSS, M. Solidão e comunidade. Revista de Daseinsanalyse, n. 2. São Paulo: Associação Bra-


sileira de Análise e Terapia Existencial, 1976, p. 21.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 121

pedagógica escolar como parte dela), este “desviar-se” signi-


fica, antes de tudo e na maior parte das vezes, reduzir o “ser-
-com-o-outro” ao mundo das ocupações, empenhando-se no
controle, na certeza e na segurança. Nesse modo mediano de
“cuidado”, imperam a dependência, a dominação, as relações
de uso etc., ainda que não apropriadas tematicamente, e que,
acreditamos, outorgam práticas correntes em nosso cotidiano,
dentre as quais nos propomos a destacar aquelas que, eventu-
almente, possam se circunscrever ao âmbito da educação.

A dimensão ontológica da educação

Apesar de serem poucos os momentos em que Martin Hei-


degger trata de assuntos diretamente ligados à educação, não só
em Ser e Tempo, mas em toda a sua produção filosófica – insu-
ficientes, pois, para compor uma filosofia da educação –, en-
tendemos que a empreitada de pensarmos intersecções entre a
fenomenologia hermenêutica e a educação se justifica por pos-
sibilitar a aproximação do pensamento de um autor de inegável
influência aos diversos pensadores do seu século e na história
contemporânea do pensamento. Além disso, nos possibilita
pensar filosoficamente o educar, aprofundando suas questões,
encaminhando a reflexão que põe a educação no centro de um
diálogo possível com o pensamento filosófico heideggeriano.
Tornar-se-ia, assim, muito possivelmente, infrutífera e in-
consistente, além de parcialmente conduzida sob o inapelável
risco de uma incongruência proximal, a tentativa de enquadrar
Heidegger no perfil de um educador, pelo menos se tal com-
preensão deixar reger-se por uma compreensão prévia usual
que o associe a um teórico da educação, portanto, num senti-
do mais estrito do termo. Ademais, como filósofo e professor
universitário que foi por muitos anos na academia alemã, a
explícita preocupação do filósofo em utilizar uma linguagem
didática e esquemas cuidadosamente escolhidos para ilustrar
122

suas mais herméticas e abstratas ideias23 não nos outorgariam


efetuar uma imediata inclusão do “filósofo do cuidado” num
elenco de magnos educadores da história. Contudo, ao levar
a cabo, em seu labor filosófico, a tarefa de implementar uma
vigorosa investigação ontológica sobre o sentido do ser e da
existência humana, Heidegger acaba tangenciando conceitos
e noções visceralmente entranhadas nas ciências humanas, e,
por conseguinte, na educação. Para Kneller24 (apud KAHL-
MEYER-MERTENS, 2008, p. 12), seu trabalho fez com que
tais conceitos fundamentais ao pensamento ocidental pudes-
sem ser revistos relativamente a outros paradigmas, cunhando
originais compreensões sobre noções tradicionais como sujei-
to, indivíduo, razão e existência, temas estes indiscutivelmen-
te caros à educação.
Como tarefa preliminar à apresentação da noção, fenome-
nologicamente fundamentada, do que aqui defendemos como
impossibilidade de desconexão entre a unidade ontológica es-
trutural do Dasein denominada “cuidado” e as perspectivas e
práticas educacionais, seja nas suas vertentes tradicionais, ou
nas mais progressistas, cremos ser importante apontar e de-
marcar alguns dos elementos estruturantes mais fundamentais
e recorrentes ao campo educacional, bem como nos determos
mais a fundo num exercício reflexivo sobre a aparentemente
simples pergunta: “O que é educação?”, com fins de nos possi-
bilitar colhê-los sob o prisma da fenomenologia hermenêutica
de Heidegger, à luz do “cuidado”.
Como de hábito, nós educadores, envolvidos com as ta-
refas do cotidiano e imbuídos em nossos fazeres laborais, não
nos voltamos aos preceitos organizadores do nosso agir, ao
pensar na especificidade do nosso ramo de atuação em bases

23 H. G. Gadamer conta que as preleções de Heidegger atraíam à sala do jovem professor es-
tudiosos como Werner Jaeger e Max Weber, fazendo com que estes “[...] que representavam
certamente o que havia na época de maior nas cátedras da universidade alemã, parecessem
colegiais [...]” (GADAMER, 1976, apud KAHLMEYER-MERTENS, 2008, p. 12).
24 KNELLER, 1996, apud KAHLMEYER-MERTENS, S. Heidegger e a educação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008, p. 13.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 123

ontológicas. Esse fenômeno se manifesta em todas as áreas de


atuação da humanidade, não apenas na educação, o que nos
remete a uma possível aproximação com a noção de “impes-
soalidade cotidiana”.
Na grande maioria das vezes, compreende-se educação
como o trabalho que se desenvolve nas escolas, unidades edu-
cacionais por excelência. Normalmente, tal trabalho se desen-
volve de uma forma estruturada, numa dinâmica (pelo menos
do ponto de vista do que cada um concebe como o “ser” da
educação) que pouco ou nada se modifica com o passar do
tempo mediante a utilização de alguns elementos principais:
aula expositiva, quadro negro (ou lousa), livros didáticos e
pesquisas. Nos moldes originais, podemos sintetizar como
objetivo geral da educação, conforme sedimentado no imagi-
nário comum, a capacitação de crianças, jovens e mesmo in-
divíduos adultos que, por alguma razão, não puderam concluir
seus estudos nos períodos devidos, com conhecimentos supos-
tamente fundamentais para a sua sobrevivência e inserção nos
contextos em que vivem (profissionais, sociais etc.). Determi-
nados conteúdos tidos como suplementares como filosofia, ar-
tes e educação física são comumente considerados supérfluos
e não determinantes para a formação em curso, desnecessários
quanto à inserção destes educandos na sociedade e no merca-
do. Resumindo, a compreensão mais usual de educação obe-
dece a uma tônica mais restrita: como processo ensino-apren-
dizagem emoldurado num enfoque convencional, tradicional
e clássico, e que, numa perspectiva fenomenológica, pouco se
altera em seus elementos estruturantes mesmo com o advento
das compreensões tidas como progressistas ou críticas.
Tal compreensão comum de educação – e, por extensão, do
ato educativo – utiliza, de forma usualmente tácita, quatro pre-
ceitos fundamentais que, silenciosamente, homologam o histó-
rico “fazer” educativo: a acumulação, a escultura, a fabricação,
124

a construção.25 A acumulação se caracteriza por uma perspectiva


de formação humana determinada pelo “empilhamento” dos di-
ferentes e progressivos saberes acumulados (quanto maior o nú-
mero de saberes, melhor a formação).
Em Pedagogia do oprimido (1983), Paulo Freire, um dos
expoentes da educação brasileira, metaforizou sabiamente tal
prerrogativa com a ideologia da “mais-valia” capitalista, ao
batizar esta perspectiva educacional como “educação bancá-
ria”. A relevância dada à formação de pensamentos, hábitos e
comportamentos, associados ao recorrente caráter narcisista26
que acompanha boa parte dos educadores na busca de formar
o educando à sua imagem e semelhança, esculpindo-se no ou-
tro, além da dimensão municiadora para o mercado de traba-
lho que a escola adquiriu, exemplificam os velados preceitos
da “escultura” e da “fabricação”.
Finalizando, a apropriação quase que geral da teoria pia-
getiana dos estágios do desenvolvimento27 numa perspectiva
de edificação que se arquiteta, desde sua origem, numa cadeia
lógica e progressiva, obedecendo a uma dinâmica universali-
zável que pode ser antevista e construída a priori, fecha com
o último preceito da “construção”, estabelecendo, assim, uma
lógica deste “tetraedro” manipulatório, que se dissemina como
uma “metástase natural” que não sofre maiores enfrentamen-
tos reflexivos e cuja roupagem habitualmente tecnicista lhe for-
nece uma “aura” racionalista dificilmente passível de questio-
namento. Mesmo hoje, no início do século XXI, continuamos
25 Tais preceitos estruturantes são tratados por Oliveira (2000, p. 14) em Mestiçagem e formação
existencial com o auxílio de metáforas como “constituição de solo”, “modelagem de barro”, “en-
genharia lógica de educação” e “unificação dos elementos anteriores.”
26 Freud já fazia uso do conceito de narcisismo antes de introduzi-lo em 1914 em Sobre o narcisis-
mo: uma introdução, onde o articula mais profundamente na teoria psicanalítica. O termo narci-
sismo aparece em sua obra pela primeira vez em 1910 (Três Ensaios), para explicar a escolha
de objeto nos homossexuais. Freud afirmou que estes tomam a si mesmos como objeto sexual,
já que procuram jovens que se pareçam com eles, e a quem possam amar como suas mães o
amaram. Vide LAPLANCHE. Vocabulário da Psicanálise, 1997, p. 126. Transpomos, assim, o
uso do termo com referência ao que, aqui, chamaremos de um culto a si próprio, remetendo este
educador a estabelecer discursos e práticas com fins de ver o outro, neste caso o educando, à
sua imagem e semelhança.
27 Cf. nota 134.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 125

a ouvir falar da escola como esta entidade quase mítica que


pode abrir as portas do conhecimento e, como tal, colocar as
pessoas e os países no caminho do progresso, e sobre a qual
todo o futuro civilizacional repousa.
Esta acentuação de importância da escola, que se materia-
lizou, dentre outras formas, na determinação da escolaridade
como obrigatória, consolidou um discurso tão especialmente
favorável a sua generalização, associando-a à promoção pes-
soal e ao desenvolvimento da qualidade de vida que, de algum
modo, a despojou dum rigor analítico capaz de melhor expli-
citar a reflexão sobre o seu sentido, partindo não de epifenô-
menos supostamente mais elaborados, mas, como Heidegger
se propôs em Ser e tempo, na elaboração de sua analítica da
existência, de sua cotidianidade.

Considerações finais

Na contemporaneidade, a retórica sobre a escola é, quase


sempre, bastante generosa para com o alcance educativo e o
que efetivamente está em jogo nos atos educativos desta ins-
tituição. O pensamento pedagógico, repartido em tendências
mais ou menos conservadoras ou progressistas, com pouca
frequência encara suas conformações análogas no que con-
cerne aos quatro elementos estruturantes apresentados acima,
a saber, acumulação, escultura, fabricação, construção. O
imaginário subjacente às práticas educacionais, em sua grande
maioria, continua a ser o da persuasão racional. Como conse-
quência não menos pragmática e nada surpreendente, a eficá-
cia dessa perspectiva de concepção educacional, em todas as
suas esferas de atuação, se mensura, naturalmente, em mudan-
ças comportamentais verificáveis por critérios ditos objetivos.
No entanto, não raramente, do brilho, do arredondamento,
da consistência, do encadeamento lógico perfeito e da hermeti-
cidade persuasiva do discurso estruturado do educador, brota na
126

sua frente, personificado no educando, o caráter ontológico de


imprevisibilidade vital que nos engendra enquanto humanos: o
resultado final lhe escapa.
Mas será que educação se restringe apenas a isso? Pro-
fessores e educadores, em geral, concordam com essa com-
preensão simplista de seu universo de atuação? Ou há espaço
para que se pense a educação de outra forma, mais complexa,
provocante e, porque não dizer, inclusiva?
Entendemos que nem sempre o narcisismo e a persuasão
são os únicos elementos constitutivos da espinha dorsal do ato
educativo. Ganham cada vez mais força as práticas de forma-
ção que se esforçam em levar em consideração os saberes que
os educandos construíram ao longo de sua vida e a maneira
como eles se construíram, suscitando espaço para experiên-
cias de apropriação da formação (institucional, cultural, expe-
riencial ) recebida ao longo da vida e que ainda se dá. Neste
sentido, se ainda não se deixa de falar de um horizonte ainda
intentado, por outro, eclodem novos horizontes vivenciais nos
quais ampliam-se as possibilidades de construção de cami-
nhos e descobertas, ambivalentemente, próprias e coletivas,
e que os educadores começam a perceber, numa dimensão de
positividade ‒ e não mais como vestígios de um passado des-
tinado a desaparecer sob os assaltos da razão “iluminadora”
‒, certos aspectos da vida prática que a formação tinha como
fim modificar.
Reconhece-se, mesmo que lentamente, e em alguns mo-
mentos, que na prática docente nem tudo é feito de raciona-
lidade e que existem importantes “regiões” guiadas pela in-
tuição, pelo insólito e pelo inapreensível – e, neste sentido,
destacamos a importância da experiência da arte, da poesia e
do religioso; e que estas faculdades desempenham um papel
muito poderoso quando não são, previamente, subalternizadas
pela égide da razão, trazendo aberturas interessantes para as
vivências coletivas denominadas aulas. Se, por um lado, prá-
ticas como a promoção de dinâmicas que tornam o ambiente
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 127

de aprendizagem mais profícuo, no sentido de minimizar ou


diluir os elementos discrepantes caracterizadores de diferen-
ças de visões, comportamentos e perspectivas no ambiente
coletivo de sala de aula e de promover, em tese, um clima
mais amistoso e horizontal nas relações dadas neste espaço,
por outro, o desejo do “passar mensagens”, no sentido estrito
do termo, não necessariamente é afetado mesmo quando se fa-
zem presentes alguns desses aspectos, que diríamos de ordem
menos racional, mantendo, com frequência, pouco abalada a
dinâmica “de fundo” de busca de mudança de comportamen-
to ou de pensamento para uma direção, no mínimo, razoavel-
mente preestabelecida.
Entendemos que a edificação da verdade de que formar é
possível, e que o ato educativo comporta em seu bojo, funda-
mentalmente, a tarefa de apresentação de “insumos” atestada-
mente significativos e metodologicamente consistentes, cons-
titui o aspecto estrutural determinante de muitas das habituais
práticas educativas não podem prescindir da visualização de
algumas das aliadas matizes que a educação historicamente
lançou mão para homologar suas práticas, como a psicologia
da educação e do desenvolvimento, filosofia da educação, en-
tre outras e as teorias que daí decorrem. Porém, a complexi-
dade dos campos de conhecimento que aqui se entrecruzaram,
educação, psicologia e filosofia, aponta para a inesgotabilida-
de das possibilidades de discussão da temática em questão. É
nesta direção que se coloca este artigo, como mais um instru-
mento potencializador das múltiplas reflexões sobre o fenô-
meno educacional.
128

REFERÊNCIAS
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se, n. 2. São Paulo: Associação Brasileira de Análise e Terapia
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______. Introdução à metafísica. Rio de janeiro: Tempo
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KAHLMEYER-MERTENS, R. S. Heidegger e a educação.
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SÁ, R. N. As influências da fenomenologia e do existencia-
lismo na psicologia. Rio de Janeiro: texto inédito cedido pelo
autor, 2004.
INGRESSO E INÍCIO DA DOCÊNCIA
NA ÁREA DA SAÚDE:
análise existencial fenomenológica

Alberto Durán González


Mara Lúcia Garanhani
Maira Sayuri Sakay Bortoletto

Este capítulo baseia-se em uma pesquisa desenvolvida


junto ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da
Universidade Estadual de Londrina (UEL). A pesquisa “Ser
docente na área da saúde: uma abordagem à luz da fenomeno-
logia heideggeriana” (GONZALEZ, 2012) foi realizada com
professores do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da UEL,
a qual, em 2011, contava com cinco cursos da área da saúde
(enfermagem, farmácia, fisioterapia, medicina e odontologia),
diversas residências, três mestrados e dois programas de pós-
-graduação com mestrado e doutorado. Em 2011, havia 334
docentes lotados nos 11 departamentos do CCS.
O plano de carreira docente da UEL contempla quatro
níveis, além da inserção como docente temporário: auxiliares
(docentes com graduação e docentes com especialização), as-
sistentes (docentes com titulação de mestre), adjuntos (docen-
tes com titulação de doutor) e associados (docentes com titu-
lação de doutor após dois anos de interstício no nível adjunto
D, ou seja, com mais de oito anos de atividade docente com a
titulação de doutor).
Destaca-se que o CCS da UEL foi criado em 1971 com três
cursos de graduação, os quais já existiam: odontologia (1962);
medicina (1967) e farmácia (1969). Em 1972, foi implantado o
curso de enfermagem e, em 1979, o curso de fisioterapia. A partir
130

dos anos 90, o referido centro foi palco de importantes processos


de mudança na formação, com foco na adoção de métodos ativos
de ensino-aprendizagem.
Os resultados apresentados se referem às entrevistas rea-
lizadas com 15 docentes – 11 mulheres e quatro homens – dos
cinco cursos da área da saúde vinculados ao CCS. Os docentes
entrevistados – quatro médicos, três fisioterapeutas, três enfer-
meiras, duas farmacêuticas, dois dentistas e uma biomédica
– desempenhavam atividades diversas e estavam vinculados a
nove diferentes departamentos do CCS. O tempo de atuação
docente variou entre seis e 41 anos. Os docentes entrevistados
atuavam no ensino de graduação e pós-graduação, na admi-
nistração de departamentos, colegiados e do centro, em ativi-
dades de pesquisa e coordenação de grupos de pesquisa, além
de atuar em projetos de extensão. Alguns também atuavam
em outros serviços de saúde como profissionais técnicos em
instituições públicas e privadas.
Este ensaio busca analisar, à luz da fenomenologia hei-
deggeriana, o ingresso na docência e o início da atuação do-
cente no ensino superior na área da saúde. Destaca-se que este
estudo se trata de uma contribuição de natureza exploratória,
não conclusiva, aberta à crítica e que visa contribuir para a
reflexão do ser-docente na área da saúde. Entender que a com-
preensão não se esgota é importante para todos os que existem
no mundo da educação.
Assim como todos os ensaios, este também se debruçará
em alguns aspectos mais do que em outros. Mais do que isso,
essa limitação ainda se estende ao referencial teórico que sub-
sidia a análise dos resultados. Essa afirmação garante a real
compreensão do papel do pesquisador e de sua obra na com-
preensão dos fenômenos do mundo da educação.
Heidegger (1997) destaca que a educação não deve se
basear no acúmulo de conhecimentos; ao contrário, deve focar
no deixar aprender, ou seja, permitir-se estar imerso no des-
conhecido e construir seu próprio caminho na elaboração de
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 131

um saber. A investigação por esse caminho próprio frente às


incertezas evidencia a necessidade de empenho do estudante
e do docente no mundo da educação. O docente que priva o
estudante dessa construção, saltando com este em ilhas de cer-
teza, “cega” o estudante do desconhecido e das possibilidades
de criação de novos conhecimentos.
O campo da docência universitária vem sofrendo im-
portantes mudanças e ampliações de suas demandas frente às
novas necessidades de formação e de resgate do papel social
da universidade. A atuação docente ultrapassa as tarefas de
ministrar aulas. Zabalza (2003) elenca três funções: o ensino,
a pesquisa e a administração; entretanto, incorpora a perspec-
tiva de busca por financiamentos e a parte gerencial de proje-
tos contemplados. Soma-se, também, a extensão universitária,
além da orientação acadêmica e, sem muitos esforços, pode-
mos listar outras funções que passam a ser exercidas pelos
docentes por falta de estrutura e de pessoal das instituições de
ensino superior. Não menos importante, a docência exige tam-
bém conhecimentos específicos sobre a área de concentração
e conhecimentos e habilidades vinculadas à atividade docente.
O desafio da universidade e, por conseguinte, de seu cor-
po docente, está no desenvolvimento de uma autonomia indi-
vidual em íntima coalizão com o coletivo. A educação deve ter
interdependência e ser transdisciplinar, buscando a expansão
da consciência individual e coletiva. A crescente tendência
de uso de métodos inovadores que fundamentem uma práti-
ca pedagógica ética, crítica, reflexiva e transformadora vai ao
encontro dos objetivos da atual universidade (MITRE et al.,
2008). Entretanto, a integração entre o ensino, a assistência e
a comunidade assistida é um dos desafios que devem permear
as reflexões sobre a docência na área da saúde.
Tradicionalmente, assumia-se que ser especialista em um
conteúdo garantiria a condição para um desempenho docen-
te efetivo (CAMPOS et al., 2007). Progressivamente, ensinar
passou a traduzir uma habilidade distinta, embora associada à
especialidade no conhecimento da disciplina.
132

Quando há alguma formação para a docência, esta se reduz


à disciplina de Metodologia do Ensino Superior que, em geral,
tem pequena carga horária, é superficial e não acompanha a cons-
trução de um sentido para a docência (ANASTASIOU, 2002).
Programas de capacitação pedagógica são importantes
para aprendizagem individual de docentes para a atuação na
docência e para facilitar mudanças e adequações educacionais
nas instituições por meio de um núcleo de docentes críticos,
reflexivos e com habilidade de liderança (SEARLE et al.,
2006). No entanto, destaca-se que, em geral, não são prioriza-
dos os aspectos reflexivos nos programas de desenvolvimento
docente. Na maioria das vezes, os programas são focados na
divulgação de novos instrumentos que podem ser usados em
sua ‘manualidade’ (Zuhandenheit); entretanto, os novos ins-
trumentos não garantem mudanças na relação entre docente e
estudantes. Possuir conhecimentos e habilidades não garante
que o docente irá exercer a docência com qualidade. A percep-
ção de ‘si-mesmo’ (Selbst) e a reflexão sobre modo de ‘ser-no-
-mundo’ (in der Welt sein) junto aos outros como ‘ser-com’
(mitsein) são situações também desejadas frente à dinâmica
do mundo da educação.
O ser-docente é forjado em espaços de lutas e conflitos,
em que o docente constrói maneiras de ser docente e estar no
mundo da educação (KRAMER; SOUZA, 1996). As formas
de ser docente dependem de como nos projetamos e das expe-
riências que já tivemos.
Heidegger (2010) destaca que é mais difícil ensinar do
que aprender. A relação entre docente e estudante não pode
passar pela autoridade do domínio sobre o conhecimento e
nem pelo autoritarismo da posição ocupada pelo docente nesta
relação. Em geral, o docente está menos seguro de sua ocupa-
ção do que o estudante. É mais difícil ensinar do que aprender
porque ensinar compreende a liberdade do deixar aprender as-
sociada ao estímulo do aprender.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 133

Torna-se premente destacar que o docente recorre a sabe-


res da prática e da teoria na construção do seu ser-docente. A
fonte de sabedoria da prática está em sua reflexão prático-teó-
rica (CUNHA, 2000). Gimeno Sacristán (1993) destaca que é
a diversidade das experiências vivenciadas que possibilita, ao
docente, construir-se a si mesmo e o seu entorno.
A complexidade da área da saúde se agrega ao inóspi-
to mundo da educação. Os cenários de ensino-aprendizagem,
abertos e pouco controláveis, característicos do mundo da
educação na área da saúde, dificultam a atuação docente. Tal-
vez, essa complexidade seja um dos motivos que fez com que
surgissem as inúmeras tentativas de mudança e incorporação
de métodos ativos de ensino-aprendizagem no mundo da edu-
cação na área da saúde.
A compreensão sobre algumas das especificidades da
educação na área da saúde ajudam a compreender a importân-
cia do papel do docente e dos estudantes. Recai, ainda mais,
sobre os ombros destes a responsabilidade ética e educacio-
nal, que se torna complexa com a compreensão de que cada
estudante deverá trilhar seu próprio caminho na construção de
seus conhecimentos.
Por fim, ressalta-se que, para compreender o trabalho do do-
cente universitário ingressante na área da saúde, devem ser pon-
derados aspectos que fazem parte do mundo da educação, sem
se esquecer de que o mundo cotidiano de cada docente está em-
bebido de dimensões pessoais e coletivas, institucionais ou não.
Dessa forma, não podemos pensar o ser-docente destacado do
mundo que habita e sua temporalidade.
Neste ensaio, optamos por refletir sobre o início da do-
cência na área da saúde por meio de três seções. A primeira
seção explicita a possibilidade do ser-docente na área da saúde
sob a perspectiva de uma análise ônticoontológica. A segunda
aborda o ingresso e o início do ser-docente no mundo da edu-
cação na área da saúde. E, por fim, a terceira seção explora o
ser-docente em um ‘mundo compartilhado’ (Mitwelt) com os
outros; outros que, neste ensaio, estão focados nos estudantes
e nos outros docentes.
134

A possibilidade do ser-docente na área da saúde:


uma análise ônticoontológica

Fazer e pensar são possibilidades existenciais do homem.


O vigor do pensamento pode abrir o fazer. Com isso, exis-
te a possibilidade de interrogar o já-dado e criar a ‘abertura’
(Erschlossenheit), a liberdade do vir a ser sem determinações
(CRITELLI, 1981).
Os fenômenos da área da educação poderiam ser explora-
dos à luz de muitos pressupostos, com base nos pensamentos
de muitos filósofos da educação. Entretanto, optou-se, neste
ensaio, pela fenomenologia heideggeriana, em especial por
sua obra Ser e Tempo (2007), porque Heidegger trabalha com
uma ontologia fundamental que tem por preocupação ofere-
cer as bases primeiras para se iniciar o estudo sobre qualquer
tema, inclusive a docência. Um dos objetivos prioritários da
fenomenologia heideggeriana é fazer deixar que as coisas se
mostrem, primeiramente, tal como elas são, para então se po-
der interpretar aquilo que se mostrou. Isso é precisamente o
que se pretende realizar neste ensaio. Mostrar o ser-docente
no início da docência tal como ele é, para poder interpretar o
que isto pode significar.
Foram poucos os momentos em que Heidegger se deteve
sobre temas da educação e, assim, seus pensamentos são in-
suficientes para compor uma filosofia da educação. Heidegger
focou suas reflexões sobre a questão do ser, mais precisamen-
te, o sentido de ser, elaborando uma ontologia fundamental.
Busca-se estabelecer uma aproximação entre a fenome-
nologia heideggeriana e os fenômenos da educação, e não a
elaboração de uma filosofia fenomenológica da educação. O
uso da ontologia fundamental de Heidegger na reflexão de fe-
nômenos do mundo da educação direciona a análise ontoló-
gica para uma análise ôntica, limitada aos entes que habitam
o mundo da educação (CRITELLI, 1981; KAHLMEYER-
-MERTENS, 2008). Embora as análises se deem em nível
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 135

ôntico, é sempre necessário o conhecimento e a exploração


do nível ontológico, pois é a parte fundamental de qualquer
análise ou teoria.
Este ensaio se deterá na possibilidade de estudos de fenôme-
nos da educação em saúde pelo modo de ‘ser-com’, oportunidade
do ensino-aprendizagem e pela ‘propriedade’ (Eigentlichkeit),
ao contrário ‘impropridade’ (Uneigentlichkeit), empenho em
buscar a compreensão de seu ‘si-mesmo’ tendo a finitude à
sua frente.
Heidegger (2007) descreve duas possibilidades de ex-
pressão do ‘ser-com-os-outros’. Sendo com o outro, o ser-
-docente pode retirar do outro a responsabilidade do cuidado
de ‘si-mesmo’. Dessa forma, o ser-docente torna o outro de-
pendente e dominado, sendo, neste ensaio, apresentado como
modo impróprio de ser docente.
O outro modo de ser docente no mundo da educação é
o modo próprio ou libertador. A ‘propriedade’ será o modo
de ser docente que busca ‘ser-com-os-outros’ no cuidado
de ‘si-mesmo’ e ajudando o outro em suas potencialidades
para vir a ser, ajudando-o a cuidar de si próprio.
Desta forma, de modo aplicado, optou-se por definir o
modo próprio de ser docente como o modo libertário da pre-
ocupação com estudantes e com os outros docentes como
ser-docente-com-os-estudantes e ser-docente-com-os-outros-
-docentes. O modo libertário de ser docente, a propriedade
aplicada, focará neste ensaio a percepção de cuidado com seu
‘si-mesmo’ e a preocupação com os demais entes nos proces-
sos de ensino-aprendizagem, não valorizando exclusivamen-
te o que é prescrito pelo ‘impessoal’ (das Man) cotidiano do
mundo da educação em saúde.
No mundo da educação na área da saúde a circularidade
entre os modos próprios e impróprios é constante e não car-
rega em si qualquer juízo de valor. Modos próprios não são
melhores ou mais corretos que modos impróprios de ser, são
apenas modos de existir. É na ‘abertura’ que o ser-docente pode
136

ou não assumir modos próprios de ser docente. Habitar o mun-


do da educação traz em si a influência das estruturas existen-
ciais denominadas ‘disposição’ (Befintlichkeit), ‘compreensão’
(Verständnis) e ‘linguagem’ (Sprache) que constituem a ‘aber-
tura’ do ‘ser-no-mundo’ (GONZALEZ et al., 2012).
A ‘disposição’ revela a abertura do ‘ser-aí’ (Dasein) à sua
própria existência. Ressalta-se que se mantém a possibilidade
existencial de o ‘ser-aí’ se abandonar ao mundo, esquivando-
-se de seu ‘si-mesmo’, a ‘decadência’ (Verfallen). A ‘disposi-
ção’ é uma abertura de sentimentos ao mundo. A satisfação e
a frustração são afetos que o ser-docente pode experimentar
sendo no mundo e possibilitam a abertura para novos modos
de ser docente no mundo da educação.
A ‘compreensão’ é a possibilidade de projetar-se do ‘ser-
-aí’. Essa elaboração Heidegger (2007) chama de ‘interpretação’
(Auslegung). Nesse caso, interpretar é elaborar as possibilidades
projetadas na ‘compreensão’. Frente à abertura possibilitada pe-
los sentimentos de satisfação ou frustração, o ser-docente pode
compreender-se e, pela ‘de-cisão’ (Entschlossenheit), projetar-se.
É na ‘linguagem’, mais explicitamente pela ‘fala’ (Rede),
que o ‘ser-aí’ tem a possibilidade de se explicitar e revelar/
velar um sentido de ser (HEIDEGGER, 2007).
A decisão de voltar-se para si mesmo abre possibilidades
de o ‘ser-aí’ existir na ‘propriedade’. Somente o antecipar da
morte é capaz de eliminar as possibilidades impróprias de ser
do ‘ser-aí’. Compreender ser livre para a morte propicia ao
‘ser-aí´ colocar-se frente à sua finitude. A finitude do ‘ser-aí’
retira as possibilidades de fuga de seu ‘si-mesmo’ colocando
o ‘ser-aí’ em seu destino. Destino, para Heidegger, é o aconte-
cer originário do ‘ser-aí’ na ‘propriedade’; livre para a morte,
escolhe e se destina (HEIDEGGER, 2007).
Muito pode ser compreendido com a reflexão dos docentes
sobre o modo como se lançaram no mundo da educação e sobre
a relação na qual a preocupação pelo estudante não o exclui da
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 137

necessidade de cuidar de si mesmo e de sua própria educação.


Essa reflexão também poderá transformar os olhares sobre a
preocupação e o cuidado em saúde, não excluindo o usuário ou
o paciente e sua família do exercício do autocuidado.
A intersecção do mundo da saúde com o mundo da edu-
cação cria um mundo próprio, o mundo da educação na área
da saúde. O docente, profissional de saúde de formação, atua
na formação dos novos profissionais de saúde e constrói seu
ser-docente de forma integrada ao seu ser-profissional-de-saú-
de já construído, ou, em certos casos, também em construção.
A experiência associada à reflexão e à busca por com-
preender a si mesmo enquanto docente da área da saúde pode
subsidiar o docente na abertura a assumir modos próprios de
ser docente. A constante busca pela compreensão de si en-
quanto ser-docente fará com que ele apresente um constante
movimento entre a impropriedade e a propriedade. Cabe des-
tacar que a propriedade e a impropriedade referida são base-
adas nos modos próprios e impróprios de Heidegger (2007);
entretanto, aqui são apresentadas de modo aplicado, como já
destacado anteriormente.

Ser-docente ingressante no mundo da educação


na área da saúde

O ser-docente é uma possibilidade de ser do ‘ser-aí’. Abor-


dar-se-ão aqui aspectos referentes à abertura para a ‘de-cisão’,
o projetar-se/ser-lançado no mundo docente e o início da ocu-
pação como docente.
Heidegger (2007) destaca que o ser habita o mundo,
‘ser-em’ (In-sein), e se relaciona com outros entes, sendo um
‘ser-com’. A essência do ‘ser-aí’ é a existência. O sentido de
ser acontece na transcendência, ‘ser-em’, e na alteridade, ‘ser-
-com’. O ente destina-se a ser em direção à sua própria exis-
tência à medida que existe. A existência é repleta de possibili-
dade e de escolhas.
138

O ser lançado no mundo é sempre projeto e, portanto,


sempre possibilidade de ser de modo próprio ou impróprio.
Neste estudo, utilizaremos o ‘destinar-se’ de forma aplicada,
sem considerar a compreensão do finar do ser-docente, ou
seja, o destinar-se será considerado como escolha e destino na
propriedade. Difere, portanto, de ser lançado, que se restringi-
rá a decair no mundo da educação sem que o docente tenha se
projetado ou refletido sobre si mesmo.
Os docentes são questionados acerca da possibilidade de
ser docente antes mesmo de habitarem o mundo da docência.
É nessa possibilidade disparada pelo questionamento que se dá
a abertura que demanda uma escolha do profissional de saúde,
possibilidade essa de projetar-se no mundo da educação.
A perspectiva de habitar o mundo da educação, para alguns
docentes, representou um destinar-se consciente como resposta
a um destino já pré-ocupado. O docente na área da saúde pode
se interessar em atuar no ensino e, ao mesmo tempo, exercer sua
profissão no hospital de ensino: escolha inicial pela profissão da
área da saúde e depois despertada para a docência.
O desejo pela docência pode surgir ainda na graduação,
em especial no espelhamento em outro docente. Muitas vezes,
as semelhanças e a admiração fazem com que o ser-docente
busque imitar os passos do outro, imaginando chegar ao mes-
mo resultado obtido pelo outro sem refletir sobre seu ‘si-mes-
mo’. O espelhamento pode ser um sinal da impropriedade e do
‘impessoal’; entretanto, quando lançado no mundo da educa-
ção, o novo docente busca referências do mundo na apropria-
ção de seu mundo cotidiano e de sua ocupação. Assim, a partir
desse modo impróprio de ser docente, o docente tem a possi-
bilidade de destinar-se no mundo da educação criando suas
próprias referências e podendo situar-se de maneira própria.
Esse movimento acontecerá de acordo com a abertura que o
docente se colocar no mundo da educação, podendo perma-
necer de modo impróprio, na impessoalidade, na repetição ou
buscar modos próprios de ser docente.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 139

Ainda na graduação, o despertar para a docência pode


ocorrer após outros identificarem e ressaltarem habilidades
potenciais para uma provável atuação no ensino. Neste caso, é
a percepção do outro que habita o mundo cotidiano que gera a
reflexão e a possibilidade do destinar-se ao mundo da educa-
ção. A decisão em ser-docente, assim como todas as aberturas
no cotidiano, evidencia o movimento de propriedade e impro-
priedade intrínseca do ‘ser-aí’.
O estudante vivencia o mundo cotidiano da educação em
uma perspectiva diferente da do docente. Entretanto, pode ocu-
par posições dentro do espaço do ensino por meio da interpre-
tação que realiza a partir do mundo da aprendizagem. Assim,
projeta-se existencialmente no seu tempo e no seu espaço, bus-
cando suas verdades que possibilitam a construção de um ser-
-docente enquanto ‘projeto’ (Entwurf).
O ser-docente projetado representa a abertura diante do
mundo pré-ocupado em que desde o presente projeta-se. Essa
reflexão do estudante potencializa, também, modos próprios
de responsabilização pelo seu aprendizado. Compreender-se
“eterno aprendiz” é projetar-se no mundo da educação assu-
mindo a sua aprendizagem. O ensino e a aprendizagem são
imbricados, e não polarizados, e estão dados à mão no mundo
da educação. A abertura promove a liberdade para o desvela-
mento do ser-docente e do ser-estudante.
Na área da saúde, é bastante habitual também encontrar-
mos docentes que destacam que não se interessavam pela área
do ensino. Frente a uma proposta de atuação na docência, os
profissionais de saúde veem uma oportunidade de continuar
sua qualificação, de obter status e de complementar sua renda.
Enquanto projeto, o ‘ser-aí’ habita o mundo e tem liber-
dade, frente à abertura, para inúmeras possibilidades de esco-
lha limitadas apenas pela própria temporalidade do ‘ser-aí’.
Uma dessas possibilidades é o ser-docente. A possibilidade de
responder à demanda impessoal de forma a valorizar o que é
valorizado pelo ‘impessoal’, e não o refletido e compreendido,
acarreta modos impróprios de ser.
140

Destacado como um dos motivos da escolha pela docência


no ensino superior, o desejo por se manter atualizado tecnica-
mente em sua profissão é possível, e também aconselhável na
atuação como profissional de saúde. Em alguns casos, dá-se a
entender que a docência é secundária e surge como status. Isso
remete à resposta de valor do ‘impessoal’, aquilo que “todos”
pensam e em que acreditam.
Ao projetar-se para o ser-docente e no início da atuação,
o ser-docente busca referências e modos de se referir no mun-
do com os outros. Começa a construção do sentido de ser do-
cente, que sofrerá influência da impessoalidade do mundo da
educação, mas, frente à abertura, poderá estabelecer modos de
ser docente próprios e coerentes com os diferentes sentidos de
ser docente construídos. Essa construção não se fecha como
definitiva em nenhum momento. É na percepção constante da
mutabilidade dos sentidos e nos diferentes modos de ser do-
cente no mundo da educação que se valorizam as aberturas e
a busca constante de compreender-se a ‘si-mesmo’ e ser no
mundo da educação de forma coerente com essa compreensão.
O despreparo para a nova ocupação e o conforto com a
atividade profissional na área da saúde convivem com a com-
preensão de que o conhecimento técnico e prático é suficiente
para a atuação docente.
Isso revela modos diferentes de os docentes ingressarem
na docência. Alguns docentes consideram suas dificuldades
para atuação no mundo da educação. Outros demonstram a
falta de abertura para se perceber em suas limitações enquanto
estiverem ocupando-se no mundo da educação.
Assumir atividades de ensino sem preparo algum se mos-
tra bastante comum na área da saúde. Com isso, a atuação
docente se dá fortemente baseada em intuição e espelhamen-
to em outros. Entretanto, os docentes se sentiam confortáveis
porque consideravam ser mais importante o domínio do con-
teúdo prático do que as ferramentas de ensino-aprendizagem.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 141

Por estarem lançados no mundo sem se apropriarem do


mesmo, os modos impróprios são recorrentes frente às deman-
das do mundo da educação. Do fechamento frente às interpela-
ções do impessoal podem surgir respostas já conhecidas e usu-
ais, afastando o ser-docente de seu ‘si-mesmo’. Mas é a partir
deste afastamento que o docente tem a possibilidade de perma-
necer nesta condição ou abrir-se para novos modos de referir-se
em busca do sentido de ser docente.
O mundo da educação assusta os novos docentes que re-
lataram sentirem-se mais confortáveis no mundo profissional.
Já eram conhecidos os outros com quem os docentes comparti-
lhavam o mundo do cuidado, mais familiar, que ocupava ante-
riormente como profissional de saúde. Entretanto, mesmo nesse
mundo, o docente profissional de saúde também pode assumir
modos de ser próprios e impróprios. A entrada do estudante no
mundo do cuidado deve estar atrelada à ressignificação do pró-
prio mundo da educação pelo docente.
Valorizar em excesso a prática profissional em detrimento
da prática docente pode limitar a educação à sua dimensão de
instruir, restringindo a tarefa da educação. Outro possível equívo-
co pode ser o foco na ação e não no pensar. Leão (2002) destaca
que ser-docente-com-o-outro, nesse caso, deixa de ser oportuni-
dade para desvelar os sentidos mais próprios de ser e passa a ser
insumo para instrução técnica. Esse risco pode ser acentuado na
área da saúde, que possui uma construção histórica fortemente
baseada na formação biológica e técnica com ênfase na execução
de protocolos e procedimentos padronizados.
Ser-docente e ser-profissional-de-saúde são modos de
‘ser-no-mundo’ do ‘ser-aí’. Além desses modos de ser, o ‘ser-
-aí’ possui inúmeras possibilidades de existir no mundo. Esses
diferentes modos de ser acabam por limitar um mundo ôntico
e uma cotidianidade, como é o caso do ser-docente no mundo
da educação e o ser-profissional-da-saúde no mundo da saúde.
142

Ainda persiste a ideia de que na universidade se trabalha


com o mundo ideal e que só a prática possibilita a oportunidade
do ajuste ao mundo real. Com isso, destaca-se que a universi-
dade deveria oportunizar espaços de atuação profissional para
o docente com o objetivo de oportunizar novos momentos de
aprendizado para os estudantes e ampliar a interação com a co-
munidade e aprimoramento do docente em sua especialidade.
Separar a universidade como mundo ideal do mundo do
trabalho, mundo real, é revelar o descompasso entre o mundo
da educação e as necessidades da sociedade que demandam o
mundo do trabalho em saúde. Destaca-se que o mundo da edu-
cação deve ir além da instrumentalização; deve potencializar
a reflexão e a análise crítica dos novos profissionais de saúde.
Se a universidade deve se inserir social e historicamente com
base na pesquisa, no ensino e na extensão, não deve se limitar
ao “mundo real” atual e nem ao “mundo ideal” teórico, mas
ajudar na construção do mundo real, que é possível de ser mo-
dificado. Apesar disso, sabe-se que o impessoal do mundo do
trabalho em saúde é tão imponente quanto o de outros mundos
ônticos, sempre existindo a possibilidade, frente à abertura, da
propriedade. Imbricado nisso, a universidade possui o com-
promisso de que os novos conhecimentos produzidos sejam
uma demanda social, e não algo totalmente descolado da so-
ciedade em que a instituição está inserida.
Por mais que o docente opte por não atuar profissional-
mente, ele deve estar atento para sua profissão de saúde, pois
corre o risco de se distanciar das necessidades do mercado de
trabalho. Refletir sobre ele e não sobre a sociedade pode abrir
possibilidades para uma interpretação e uma compreensão de
necessidades coerentes com o sentido de ser docente do pró-
prio docente, que está carregado do sentido de ser-profissio-
nal-de-saúde; entretanto, podem-se intensificar as possibilida-
des impróprias de ser docente. O desligamento entre mundo
do ensino e mundo do trabalho pode levar a um isolamento
da instituição de ensino e à esterilidade de sua produção. Uma
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 143

das responsabilidades intrínsecas da universidade é a for-


mação de novos profissionais com competência técnica e de
forma oportuna à sociedade em que a universidade se insere.
Por sua vez, a universidade também tem o papel de estimular
mudanças sociais e, portanto, também demanda a sociedade.
Existe uma complementação mútua na relação entre pro-
fissional de saúde e docente. Ninguém ensina alguém, talvez o
que se possa ser ensinado é o aprender. No ensino, trabalha-se
não apenas com informações, mas, sim, com condições e indi-
cações para se tomar e aprender por si mesmo o que já se tem
(LEÃO, 2002). A compreensão do que é mais íntimo e próxi-
mo é, em geral, difícil e ignorado pelos docentes no cotidiano
do mundo da educação.
Entretanto, é perceptível a satisfação que parte dos docen-
tes expressa por poder continuar atuando na profissão da saúde
escolhida. O encanto com o mundo da educação pode trazer
em si uma ‘familiaridade’ (Vertrautheit), em que o sentido de
ser docente e as referências já estão bem construídos. Essa si-
tuação pode potencializar um movimento em ser-docente e ser-
-profissional-da-saúde, que acaba por fortalecer sua ocupação
como docente e o seu ser-docente-com-os-estudantes.

Ser-docente em um mundo compartilhado


com outros

O modo de ser do docente possibilita mudanças para


a propriedade no modo de ser de outros docentes. ‘Ser-no-
-mundo’ ocorre em um ‘mundo compartilhado’; assim, nesta
seção, focaremos o ser-docente-com-os-estudantes e o ser-
-docente-com-os-outros-docentes. Entretanto, destaca-se que,
no mundo da educação na área da saúde, o ser-docente pode
se relacionar com o ser-enfermo sendo-profissional-de-saúde
e, ao mesmo tempo, sendo-docente-com-os-estudantes. Na
intersecção dos dois mundos está o ser-docente ocupando-se
144

e preocupando-se ora com o ser-enfermo, ora com ser-estu-


dante, e, muitas vezes, o ser-docente-com-o-enfermo está sob
olhos atentos do ser-estudante. Ou seja, o ser-docente preocu-
pa-se com o ser-enfermo e se relaciona com ele, mas continua
sendo-com-os-estudantes.
A limitação de uma ocupação docente focada na exibição
e na transferência de sentidos é eminente. A ocupação docente
não pode ser reduzida à ocupação profissional por mais que esta
seja exemplar e rica em significado para o docente. Sentidos
e significados não são transferidos ao estudante, ao qual cabe,
com apoio do docente, construir seu próprio sentido de ser pro-
fissional de saúde com base em suas experiências. Não serão
trabalhados em profundidade esses modos de ‘ser-com’ por
entender que outros estudos poderão ser desenhados com esse
foco e, com isso, possibilitar uma melhor compreensão acerca
dos diferentes cenários de atuação do docente na área da saúde.
Os docentes buscam dominar o conteúdo e, por ele, vin-
cular-se ao estudante. Aparentemente, o conhecimento passa
a ser usado em sua ocupação, em sua ‘manualidade’ distorci-
da de vinculação. Neste caso, sempre existirá o risco do ‘ser-
-com’ na perspectiva da transmissão de conteúdo. O docente
se impõe enquanto autoridade e passa a dominar o estudante
por meio do domínio do conhecimento. Heidegger (2010) des-
taca que a autoridade não deve fazer parte dessa relação e que
o ser-docente, quando na propriedade, não ensina nada que
não seja aprender. Com isso, os docentes têm mais a aprender
do que os estudantes, devem aprender a convidar a aprender.
Neste cenário de domínio do conhecimento, para a vincu-
lação com os estudantes pode ser criada uma arena de disputa
em que o estudante desafia os conhecimentos do docente. O
docente passa a responder aos estudantes, perde a sua ocu-
pação de indagador e assume o papel de aquietador do pen-
samento do estudante e dele próprio. Acabam-se restringin-
do as possibilidades de o estudante investigar e se projetar
por não ser permitido na relação conjunta de construção de
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 145

conhecimentos. O docente é realmente professor enquanto e


na medida em que for mais radicalmente estudante. Aquele
que já sabe tudo não pode nem aprender nem ensinar. Também
não pode ensinar ou aprender quem não assumir o saber de
sua ignorância, quem não reconhecer que sabe alguma coisa
(LEÃO, 2002).
Ocorre o aprendizado quando a compreensão do que se
tem for um dar-se a si mesmo na propriedade. Para aprender
não podemos receber tudo, mas devemos trazer algo conosco
para o encontro (LEÃO, 2002).
O homem é essencialmente livre. Em alguns momentos
essa liberdade pode estar restrita, mas, a princípio, os docen-
tes e estudantes são livres. O ‘ser-aí’ sempre transcendeu ao
mundo na liberdade. Cabe destacar que a liberdade envolve
o ‘obrigatório’ (das verbindliche) e que o obrigatório não é
imposto ao ‘ser-aí’ externamente. As leis e os valores são de-
pendentes do ‘ser-aí’. Na prática, a liberdade é a lei que legisla
o ‘ser-aí’ (LEÃO, 2002). O mundo é formado pelo ‘ser-aí’, e,
por sua vez, o ‘ser-aí’ também é formado pelo mundo cotidia-
no. Estar lançado no mundo é existir nas inúmeras possibili-
dades de ser sem determinações.
Com base no pressuposto de que o conhecimento é cons-
truído pelo docente e pelo estudante conjuntamente, alguns
docentes ressaltaram que cabe ao docente conhecer o perfil dos
estudantes com quem irá trabalhar. Destacaram também que,
por mais que os docentes e estudantes se relacionem de forma
próxima, ambos possuem papéis diferentes nessa relação. É
importante ter clareza de que, existencialmente, ambos ocu-
pam posições diferentes, coexistindo no mundo da educação.
Na perspectiva de ‘ser-com’, as modos próprios de ser-
-com-os-estudantes se dão na liberdade de deixar-se ser. Os
docentes revelam, também, momentos de fechamento e aber-
tura que fazem parte do movimento propriedade e improprie-
dade na cotidianidade do mundo da educação.
146

Ser-com-o-outro-docente revela uma complexidade dife-


rente da relação com o estudante. Outros entes e afetos influen-
ciam esta relação sinalizando possíveis fragilidades diante do
compromisso com a formação dos estudantes e não há garantia
de uma interação adequada.
O fechamento frente ao sofrimento do relacionamento
com os outros no início da docência é uma resposta à deman-
da e aplaca, provisoriamente, o sofrimento de acordo com o
esperado pelo mundo impessoal do ensino-aprendizagem na
área da saúde. O fechamento não deve ser entendido como
algo errado ou menor. O modo impróprio prescrito, em inú-
meros momentos, pelo impessoal é um modo constitutivo de
existir do docente.
A relação entre os docentes pode ser distante quando
a atuação docente ocorre em disciplinas, e não em módulos
integrados ou interdisciplinares. O mundo da educação sofre
constantes mudanças, e adaptar-se a elas é uma exigência dos
docentes. Uma das mudanças mais recorrentes é a alteração
das pessoas no trabalho coletivo.
Ser-docente-com-os-outros-docentes pode despertar uma
relação em que poder e competição podem superar a coo-
peração e a potência do trabalho coletivo. A “liberdade” do
trabalho individual pode velar o poder e a relação desigual
entre docente e estudantes. Aparentemente, o ser-docente
não percebe que a disciplina, mesmo quando ministrada por
apenas um docente, é do curso e de todos. Destaque para a
negociação entre docentes que, a posteriori, pode influenciar
no modo de ser-docente-com-os-estudantes. Estas reflexões
podem possibilitar a construção da cooperação, do partilhar
e da troca, que não se restringem somente para ações entre
os docentes, mas que se ampliam também para os estudantes.
O processo ensino-aprendizagem se dá com os estudantes e,
portanto, também deveria ser negociado com eles. O conhe-
cimento construído nesta relação deveria ser apropriado tanto
pelo estudante quanto pelo docente.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 147

No relacionamento com o outro, podem existir sentimen-


tos de competição e ciúmes, gerando concorrências predató-
rias que prejudicam o grupo como um todo. Para os docentes
mais experientes, os docentes mais novos são muito centrados
em si e não ligam para o coletivo ou para o curso. Os docentes
que vivenciaram a construção do curso e suas reformulações
percebem a historicidade do curso de forma diferente dos no-
vos docentes que iniciaram suas experiências e ainda buscam
a construção do sentido de ser docente naquele curso e com
aquele grupo de docentes. Heidegger (2007) comenta que não
existe transferência de sentidos de ser. Cabe a cada ‘ser-aí’
construir o seu próprio sentido de ser no mundo-circundante
e na temporalidade. Os novos docentes deverão ter suas pró-
prias vivências para elaborar suas próprias compreensões so-
bre o curso. Destaca-se que os docentes que já possuem um
sentido de ser docente naquele curso/currículo também devem
ressignificar o que é ser docente, pois, com a entrada dos no-
vos docentes, o curso sofre mudanças, mesmo que não sejam
mudanças formais (GARANHANI; VALLE, 2010).
Em contraponto, pela perspectiva dos docentes mais no-
vos, o grupo de docentes mais experientes pode vê-los como
alunos, e não como colegas de trabalho. Por conta disso, mui-
tos podem se calar para serem aceitos. Talvez o possível fe-
chamento aqui relatado seja mal compreendido pelo grupo de
docentes, que o percebe como não valorização do coletivo. O
movimento constante entre abertura e fechamento não é ex-
clusivo dos novos docentes. Perceber a si mesmo e ao outro
em sua singularidade apresenta-se como modo aplicado de se
‘preocupar’ com o outro no mundo da educação.
A tentativa de compreender os modos de ser docente no
mundo da educação carrega em si a compreensão da impesso-
alidade do cotidiano do mundo da educação. Na cotidianidade,
os docentes tendem a responder às demandas de acordo com o
que “todos” esperam. A impropriedade, em muitos casos, vela
os docentes que não refletem sobre suas atividades ou mesmo
148

sobre seu ‘si-mesmo’. O movimento entre propriedade e im-


propriedade demonstra as possibilidades de os docentes, deca-
ídos no cotidiano do mundo da educação, resgatarem a busca
pela compreensão de seu ‘si-mesmo’ no mundo da educação.

Apontamentos provisórios

A finalização deste ensaio leva-nos a refletir, novamente,


sobre suas próprias intenções. Talvez a poesia possa ser mais
esclarecedora que o método científico.

Eros e Psique

Conta a Lenda que dormia


Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,


Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,


Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino –


Ela dormindo encantada
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 149

Ele buscando-a sem tino


Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro


Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,


À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

Ricardo Reis (Fernando Pessoa, 2006)

Busca-se, aqui, romper com qualquer conclusão que não


seja a de estimular a reflexão. Não se quer tomar a armadura
reluzente do cavaleiro que irá orientar a compreensão do ser-
-docente tendo, numa das mãos, o escudo da fenomenologia
existencial heideggeriana e, na outra, a certeza da generali-
zação. Talvez possamos afirmar que a fenomenologia hei-
deggeriana possa, sim, servir de farol a guiar a cada um dos
envolvidos nos cenários de ensino-aprendizagem na reflexão
pelo seu ‘ser si-mesmo’ (Selbstsein) e pelo modo de existir no
mundo da educação na área da saúde. Ao perceber a “hera”
em sua própria fronte e a possibilidade de ser o cavaleiro de
seu próprio libertar-se, o docente pode refletir sobre si e sobre
a necessidade de se instrumentalizar para o ensino. Saltar a
etapa da reflexão pode colocar em risco a própria educação.
Esclarecemos, portanto, que os próximos parágrafos sinteti-
zarão um pensamento enviesado pelo que acreditamos e car-
regamos em nós, seja isso nosso mesmo ou emprestado dos
outros. Acreditamos que essas ponderações não inviabilizam
as considerações, mas as posicionam em seu devido lugar, na
relatividade do que é provisório e temporal.
150

Em suma, o projetar-se para a docência enquanto estudan-


te parece ser um interessante processo de compreensão sobre
a apropriação do aprender e do ensinar. O relato do despertar
para a docência, proporcionado pela percepção de outros em
atividades de graduação, fortalece a necessidade de atividades
de comunicação e de apresentação nos cursos universitários.
Em geral, essas atividades não são valorizadas pelos estudan-
tes, mas são essas e outras diferentes experiências por eles
vivenciadas que os ajudarão na escolha, ou não, em qual área
atuarão no porvir.
Interessante perceber como a docência foi vista, em al-
guns casos, como uma segunda profissão frente à profissão da
área da saúde. Nessa perspectiva, o docente tende a se apro-
fundar os conhecimentos em sua área de atuação profissional,
e não na docência. Ainda existe a valorização da experiência
profissional em detrimento da experiência docente. Talvez
isso também ocorra em outras áreas, pois o ser-docente no
ensino superior, geralmente, está atrelado ao ser-profissional
de uma determinada área.
Os docentes lançados ou mesmo os que se projetaram no
mundo da educação apresentaram modos impróprios no início da
atuação, mas buscaram referências para a construção do sentido
de ser docente. Os modos próprios e impróprios de ser docente
compuseram um movimento que se relacionou às ‘disposições’ e
à impessoalidade do mundo da educação na área da saúde.
Os docentes mais envolvidos com o mundo da educação
apresentaram modos libertários de expressar sua preocupação
sendo-com-os-estudantes. Diferentemente, os menos envolvi-
dos com o mundo da educação apresentaram modos de ser
docente que retiravam do ser-estudante a responsabilidade do
cuidado de si mesmo.
Quando o docente se preocupa com a construção do seu
ser-docente sem se esquecer da busca pelo seu ser ‘si-mesmo’
e do modo de ser-docente-com-os-outros, ele existe no mun-
do da educação na propriedade e apresenta modos libertários
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 151

de ‘ser-com’. Nesse caso, o movimento entre propriedade e


impropriedade também existirá; entretanto, quando na impro-
priedade, o ser-docente pode perceber-se mais rapidamente
impróprio e resgatar a contínua jornada pela compreensão de
seu ser ‘si-mesmo’.
A importância da busca pela compreensão de ‘si-mesmo’
fica mais evidente se refletirmos sobre o finar da docência. A
impessoalidade da cotidianidade do mundo da docência des-
personaliza os docentes. A familiaridade com o cotidiano do
mundo da educação também dificulta o cuidado que cada do-
cente tem de ter consigo mesmo no finar da docência.
A possibilidade do ser-docente e o início da carreira ten-
dem a suscitar perguntas com um perfil instrumentalizador
que pouco auxilia ao docente em sua reflexão e em sua exis-
tência. Este cenário não se restringe ao mundo da educação
em saúde ou ao ensino superior. Entretanto, em alguns casos,
a construção do ser-docente ocorreu de forma tão intensa que
superou a construção do ser-profissional-de-saúde.
A formação de professores é uma ação contínua, progres-
siva e envolve uma perspectiva individual e uma perspectiva
institucional. Individual porque está sempre atrelada ao modo
de ser docente. Institucional porque deve ser interesse da uni-
versidade resgatar seu papel socio-histórico e, portanto, as
instituições devem criar espaços de apoio ao desenvolvimento
docente que garantam reflexões existenciais e como os ins-
trumentos podem ser usados em sua ‘manualidade’. Além da
formação continuada e permanente dos docentes, as institui-
ções de ensino superior também devem apoiar os programas
de pós-graduação no desenvolvimento de suas atividades, es-
timulando a implantação de ações de formação docente.
A instituição deveria acompanhar/apoiar/avaliar seus do-
centes ao longo de toda a vida docente: apoiá-los na inser-
ção docente, garantir espaços de desenvolvimento docente e
oportunizar um desligamento gradual de suas atividades no
final da carreira docente. A instituição de ensino não pode se
152

isentar do compromisso de proporcionar condições de traba-


lho necessárias para a boa atuação docente e uma aposenta-
doria digna. Entretanto, muitas vezes o docente atribui exclu-
sivamente o cuidado de si à instituição de ensino. Qual seria,
então, a medida desta relação? Cabe ao docente cuidar de seu
próprio destino. O medo da saída de um mundo cotidiano fa-
miliar e a necessidade de projetar-se ou ser lançado em outro
mundo ôntico pode influenciar o docente a desviar-se de seu
‘si-mesmo’. Nesse desviar-se, o docente foge de ‘si mesmo’ e
da possibilidade de antecipar-se para outros modos de ‘ser-aí’.
A busca pela compreensão do ser-docente jamais se reve-
lará em sua totalidade, pois a compreensão do fenômeno sem-
pre se dará pela perspectiva dos pesquisadores que a elaboram.
Com isso, a pesquisa sempre poderá prosseguir e os resultados
obtidos serão sempre relativos. Talvez mais importante que as
respostas alcançadas sejam as perguntas que serão disparadas
em cada um com a leitura deste ensaio.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 153

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CENA/DIÁLOGO DE FAMÍLIA:
o encontro do interacionismo simbólico
com as dimensões da cultura e do poder

Carlos A. Gadea

Numa cena familiar extraída de uma publicidade dos


anos 70 da revista espanhola Hola, e cuja estética kitsch se
apresenta análoga à explorada pelo diretor de cinema Pedro
Almodóvar, encontra-se comodamente sentada num sofá uma
sorridente e jovem mulher de sóbria indumentária. Enquanto
ao seu lado seu pequeno filho a abraçava calidamente, ambos
olhavam para “o pai de família” que, vestindo impecável terno
e gravata borboleta, permanecia em pé a um lado. A cena pare-
cia sugerir um diálogo em clara cumplicidade com os olhares
explícitos dos personagens, tornando verossímeis palavras e
gestos que deixavam transparecer certas conjunturais “regras
da cultura”: olhando para seu pequeno filho, o pai parecia di-
zer: — Filho, cuida bem da tua mãe porque o pai vai traba-
lhar! Imediatamente, e como efeito próprio da velocidade do
pensamento, a criança parecia refletir: — O pai vai trabalhar,
e minha mãe fica em casa!

II

Não se trata, unicamente, de evidenciar, neste hipotéti-


co diálogo, as possibilidades dos dispositivos de poder/saber
(FOUCAULT, 1992 [1979]) que se estabelecem através da
linguagem e, consequentemente, as dimensões analíticas que
sugerem definir “posições de sujeito” (HALL, 2003) como
156

decorrentes do exercício de “nomear”, descrever e institucio-


nalizar formas sociais concretas. Quando a criança “reflete” a
partir do “dito” pelo pai, admite-se que a compreensão da sua
situação vivida é textual28, na medida em que esse conheci-
mento não está integrado só de conceitos, mas sim de palavras,
e que essas palavras podem sugerir múltiplos significados29. A
criança, por exemplo, também poderia (e sem ressalvas) estar
se perguntando: — E se eu não fosse um menino, e sim uma
menina, meu pai teria me sugerido cuidar bem da minha mãe
durante a sua ausência? O espaço doméstico (ficar em casa)
se relaciona com o universo privado da minha mãe tal qual
um bunker de proteções propiciadas pelo universo público e
do trabalho ocupado pelo meu pai? A figura do pai, na con-
juntura vivida por essa criança, pareceria instituir-se na “ideia
central” que garantiria toda eventual significação acerca dos
pensamentos e ações, plasmando-se uma série de “regras da
cultura” em que a figura dominante recairia na masculina, en-
quanto a feminina se apresentaria como um “outro margina-
do”, reprimido, enclausurado nas fronteiras da linguagem.
Esta cena, no entanto, permite o desenho de outra estratégia
de observação: os olhares, as palavras e os pensamentos se en-
contram numa sequencialidade de interações e “símbolos” que
constituem universos fechados de realidade, analogia que se po-
deria estabelecer com o conceito de “províncias de significados”

28 A “textualidade” consiste em indicar como significa um texto e não o que significa; compreender
que um texto está integrado por palavras que podem ter distintos significados. “Texto” no sentido
semiológico de discurso extenso, ou seja, de “todas” as práticas de interpretação, que incluem a
linguagem, mas que não se limitam a ela. Ver Derrida (2008 [1967]).
29 Contra a noção essencialista da certeza de sentido, apela-se ao conceito central do estruturalis-
mo: o sentido não é inerente aos signos nem àquilo referido, senão que resulta das relações entre
eles. A consequência pós-estruturalista deste argumento, em termos derrideanos, relaciona-se a
considerar as estruturas de sentido incluindo e implicando ao observador. Nesse sentido, afirma-
-se que “observar é interagir”. Isto não supõe, como muitos podem pensar, que existe um recha-
ço à “razão” como fonte explicativa da realidade, mas sim à representação dogmática sobre si
mesma como certeza atemporal. Igualmente, não supõe admitir que, conseguintemente, nada,
de fato, seja “real”, já que tudo se limitaria a uma construção cultural, linguística ou histórica, mas
sim em admitir que nada é menos real por ser cultural, linguístico ou histórico, sobretudo se não
existe “uma realidade universal” ou atemporal contra a qual se possa comparar. Como manifesta
Derrida, isto não significa dizer, tão simplesmente, que existe um número infinito de sentidos,
senão que significa dizer que “nunca há um só” sentido (DERRIDA, 2008 [1967]).
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 157

de William James (SCHÜTZ; LUCKMANN, 1973). Esses


olhares, palavras e pensamentos fazem parte de uma realidade
social nomeada e classificada, em que as ações das pessoas
e as classificações têm algum significado. Algo assim pare-
ceria experimentar essa criança ao aprender, através da inte-
ração com seus pais, a maneira de classificar o mundo30 e a
maneira que se espera que se comporte nele: a capacidade de
pensamento parece estar moldada pela interação social, sendo
através dela que as pessoas aprendem os significados e os sím-
bolos que permitem atuar e interagir.
Palavras mais, palavras menos, Herbert Blumer (1969),
ao propor uma metodologia para o estudo da vida de grupo,
diria que o meio de toda interação é, necessariamente, um
meio definido simbolicamente, na medida em que as pessoas
interpretam e “definem” as ações alheias, dando-lhe respostas
baseadas nos significados que outorgam às mesmas.
E o que mais dizer sobre aquela cena extraída dessa publi-
cidade, dos seus protagonistas e do próprio diálogo hipotetica-
mente estabelecido? Que a linguagem e as conjunturais “regras
da cultura” não são derivadas, necessariamente, de “estruturas
sociais subjacentes” ou de “sistemas de significados estáveis”,
senão de interações sociais em que as pessoas definem as si-
tuações vividas, atribuindo-lhe nomes e significados. Mas isso
não estaria supondo que as “variáveis estruturais”, tais como
classe, status e poder, estejam sendo negligenciadas por esta
perspectiva textual da leitura da realidade social? Em absoluto
se trata de negligenciar aspectos considerados “importantes”
para a análise da realidade. Torna-se imprescindível recordar
que as variáveis classe, status e poder não significam nada em
si mesmas, já que, como categorias explicativas do social, não
possuem significados universalmente válidos. Por seu caráter
abstrato, não são mais do que representações derivadas de um

30 Torna-se oportuno o esclarecimento realizado por Goffman (2006 [1975], p. 3): “El recurso crucial
de James fue, desde luego, un juego bastante escandaloso con la palabra mundo (o realidad). Lo
que él quería significar no era el mundo, sino el mundo actual de una determinada persona”.
158

tipo de ordenamento do mundo. Um modelo sociológico que


torna essas categorias como um “dado” objetivo da realida-
de, e cujas atividades e produções culturais sejam lidas como
expressões de “posições” de classe, status ou poder (ou de gê-
nero, raça etc.), revela-se, fundamentalmente, determinista e
teoricamente ingênua. As variáveis classe, status e poder se
materializam, cabalmente, numa teoria do poder e da realidade
social que interage em campos de experiências sociais e cul-
turais, linguísticas e históricas que se apresentam só ligadas
a uma “ideia de estrutura”31, e não a uma “objetiva” estrutu-
ra social determinada. É a forma da relação social que atri-
bui o caráter interpretativo às próprias categorias (classe, sta-
tus e poder) advindas de um suposto “sistema de significados
estável”32. Uma possível reflexão acerca do hipotético diálogo
dessa particular família se relaciona ao rechaço de percebê-
-lo, tão simplesmente, como emanado de uma teoria do poder
construída sobre bases estruturalistas. Não se pode perder de
vista que, aparentemente, aquela criança pareceria “saber” que
um si mesmo (MEAD, 1982 [1934]) está presente na interpre-
tação dessa situação vivida tal qual um texto a ser desvendado.

III

O hipotético diálogo naquela cena familiar permite um “giro


hermenêutico” só possível dentro dos limites da má reputação
que tem a análise da realidade social. A interpretação realizada
por aquela criança acerca daquilo que foi eventualmente “dito”

31 No sentido de um a priori sobre o social que permite às pessoas definir um-mundo-em-comum-


-com as outras pessoas. Se, por motivos explicativos, a “ideia de estrutura” a que se faz menção
se associa, de certa forma, com a “ideia de ordem” extraída da tradição pragmática, pode-se
considerar a teoria bergsoniana das ordens concorrentes como uma analogia válida. A “ideia de
estrutura” se assemelha a um tipo particular de ordem que se espera ver e com respeito ao qual
toda outra ordem se apresenta como um ordenamento contingente (SCHÜTZ, 1962, p. 270).
32 De forma análoga, pode-se considerar a “polivalência tática dos discursos” a que se refere Foucault
(1988, p. 122), argumentando que “[...] no hay que imaginar un universo del discurso dividido entre
el discurso aceptado y el discurso excluido o entre el discurso dominante y el dominado, sino como
una multiplicidad de elementos discursivos que pueden actuar en estrategias diferentes”.
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 159

pelo pai sustenta-se numa virada fenomenológica subversiva,


em que o importante daquela situação vivida era a “sensação
de seu ser real” (JAMES, 1961 [1907]) e, fundamentalmente,
os seus desdobramentos acerca de uma estrutura do conheci-
mento que sugere um marco binário de ordenamento do mun-
do: neste caso, encontrando-se em jogo questões sobre gênero
e sobre os papeis sociais e culturais.
Acontece que o gesto por “conhecer” a partir desse marco
binário de ordenamento do mundo não pode sugerir, como ques-
tão central, um instrumental conceitual que, a prioristicamente,
não assuma seu caráter contingente. Não se trata de outra coisa
senão tornar visível como as formas diversas de “determinis-
mo sociológico” podem, ainda, tornar-se armadilhas difíceis de
contornar em momentos de confrontar interação social com as
tensões próprias dos subuniversos da cultura e do poder. Pode
resultar curioso que foi o próprio Herbert Blumer (1969), her-
deiro do pragmatismo à la William James (1961 [1907]) e dos
enfoques interacionistas de George H. Mead (1982 [1934]),
quem se dedicou, em extensas linhas, a tentar “afastar-se” desse
“determinismo sociológico” que não admitia que as sociedades
humanas estejam compostas de indivíduos dotados de si mes-
mo. Contrariamente, veriam as pessoas como simples organis-
mos, com certo tipo de organização que respondem às “forças”
que atuam sobre elas. Ditas forças estariam incluídas na “estru-
tura da sociedade”, como é o caso da cultura, o status, o papel
social, os costumes, as instituições, a representação coletiva,
os valores e as normas. A suposição consiste em admitir que a
conduta das pessoas, enquanto membros de uma sociedade, é a
simples expressão da influência que, sobre elas, exercem ditas
forças (BLUMER, 1969).
A crítica a estas perspectivas desenvolvida por Blumer
está em sintonia com a possibilidade de pretender explicar o
entorno social e cultural a partir de conceitos “relacionais”,
sem ignorar-se um olhar arquetípico de toda uma tradição
sociológica que adquire forma em George Simmel (1977
160

[1908]). O que está praticamente explícito no Interacionis-


mo Simbólico de Blumer é uma concepção da realidade que
pressupõe que “todos nós somos fragmentos” e, então, que o
conhecimento que adquirimos é, necessariamente, fragmentá-
rio no seio de situações vividas. Tanto Simmel como Blumer
parecem partir de um princípio quase-regulador da realidade
social, em que “tudo interage com tudo”, em que o que exis-
tem são permanentes relações de movimentos. Na sociologia
de ambos, os conceitos como “estrutura social” e “instituição
social” desempenham papéis secundários. Assim, a socieda-
de não parece ser uma entidade completamente fechada em si
mesma, absoluta, uma simples totalidade. Comparada com a
interação entre as partes que a compõem, é só seu resultado. A
sociologia, então, não tem nada a ver com uma noção reificada
da sociedade, mas sim, com a interação social e as formas de
sociabilidade consequentes.
Trata-se, em consequência, de uma perspectiva analítica,
e sobre a própria realidade social, que se preocupa por aquilo
que pode ser vital para um indivíduo num momento determi-
nado, implicando a “presença” do “outro”. Seja na preocupa-
ção simmeliana nos modernos processos de individualização e
diferenciação social, como na ênfase metodológica de Blumer
sobre os significados dos “símbolos” decorrentes da relação so-
cial, trata-se de uma perspectiva em que a “lógica situacional”
(THOMAS, 2005 [1923]) de qualquer relação ou interação ad-
quire dimensão precisa. Esta perspectiva situacional pode ser
muito próxima ao que Goffman (2006 [1975], p. 10) se refere
com os “marcos de referência” que se encontram disponíveis
para os indivíduos na sociedade, “marcos” que são básicos
para a compreensão e explicação do sentido dos acontecimen-
tos. Não obstante, e tal qual o próprio Goffman adverte, na
maioria das “situações” sociais acontecem uma multiplicidade
de coisas diferentes de maneira simultânea. A caracterização
do mesmo acontecimento pode ser diferente entre as pessoas
envolvidas, ao depender do papel desempenhado numa tarefa
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 161

que pode lhe proporcionar um julgamento de valores especí-


fico e diferente à de outra pessoa. Uma “situação”, entendida
também como uma maneira de organização da experiência,
se relaciona não só com um indivíduo que, isoladamente, ou-
torga significados a um acontecimento (por exemplo, aquela
criança naquela experiência frente ao seu pai), senão também
a um repertório cultural (SCHÜTZ, 1962) que, apesar de
possibilitar um consenso aparente sobre o que estaria acon-
tecendo nesse momento, traz consigo o questionamento que
estabelece a base analítica do Interacionismo Simbólico: que
os “símbolos” decorrentes de toda interação social não são
universais nem objetivos; que os significados são individuais
e subjetivos, no sentido de que é o próprio receptor quem os
“outorga” aos símbolos de acordo com a maneira em que os
“interpreta”. Algo como considerar que quando os papéis que
participam numa determinada situação são diferentes, muito
provavelmente a visão que tem uma pessoa do que está acon-
tecendo é bastante diferente à de outra pessoa.
Para aquela criança, as palavras do seu pai abriram uma
multiplicidade de interrogantes. Através delas se pode con-
siderar que existe uma necessidade por aceitar a limitação
epistemológica do “dito” pelo seu pai, do seu “marco de re-
ferência” e, por que não, dos “condicionantes” sociais e ins-
titucionais que permitiram aquela “situação” naquela circuns-
tância específica. Uma “ordem simbólica” decorrente daquela
interação com seus pais emergiu na forma de um sistema de
significações sociais preexistentes. A criança “compreendeu”
que também ela estava inserida, por exemplo, em formas
institucionais históricas, como ser a família e o patriarcado,
tornando-o um sujeito em absoluto ingênuo naquele ordena-
mento do mundo. Ele aparece “conduzido” a partir de um ex-
terior, perdendo-se a eventual autonomia de todo pensamento
sobre aquela situação vivida. Estaria, consequentemente, em
questionamento aquele si mesmo que a criança experimenta-
ria tal qual um texto a ser desvendado? Frente a este impasse
162

analítico, chega-se a estabelecer um “giro hermenêutico” de


vital importância para a perspectiva do Interacionismo Simbó-
lico, para a sua teoria subjetivista do significado e para a sua
prioridade de entender o meio de toda interação como, neces-
sariamente, um meio definido simbolicamente: trata-se de um
“giro” decorrente da eventual aproximação epistêmica e analí-
tica com os denominados Estudos Culturais e as preocupações
da denominada crítica pós-moderna sobre a cultura e o poder.

IV

Talvez não se trate, de fato, de uma aproximação do Inte-


racionismo Simbólico aos Estudos Culturais e às perspectivas
mais recentes sobre a crítica pós-moderna. Talvez, contraria-
mente, se trate de um gesto que procura “dar forma” aos estu-
dos sobre a cultura e à epísteme pós-moderna a partir de uma
“reutilização” das perspectivas teóricas e analíticas advindas
do Interacionismo Simbólico e, de certa maneira, da própria
pragmática da realidade social que a nutre. Daquele si mesmo
eventualmente ferido ou inviabilizado para o possível “desven-
damento” da situação vivida, surge uma virada analítica em que
aspectos que ligam cultura e poder se tornam incontornáveis.
Fora as possibilidades que o Interacionismo Simbólico sugere
enquanto espaço para a análise desse mundo vivenciado por
aquela criança quando “se vê condicionado” por um a priori da
realidade social, por um mundo que precede a “seu estar nele”,
apresenta-se fundamental um olhar que permita compreender
em que consiste esse espaço analítico que considera o mundo
relacional inserido em complexas redes de relações de poder,
instituições de saber e formas de articulação política.
Ao respeito, proeminentes críticas emergiram no contex-
to dos eventuais “desvios” que o Interacionismo Simbólico
teria experimentado. Apesar de considerar que suas premis-
sas podem ser até úteis como guia para o trabalho de campo,
enfatiza-se a sua insuficiência na hora da elaboração teórica
(GONZÁLEZ DE LA FE, 2003). Por isso, afirma-se que
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 163

favorecidos por la moda de la integración conceptual de los


años 80, se realizaron intentos de síntesis del Interaccionismo
Simbólico blumeriano con prácticamente todas las microsocio-
logías y enfoques teóricos y metateóricos: la teoría del inter-
cambio, la fenomenología y la etnometodología, los estudios
culturales y literarios de los semióticos posestructuralistas y
posmodernos, la teoría feminista o las aportaciones de Goff-
man. (Idem, p. 210).

Esta “síntese” teria ocasionado certa perda de identidade


para o interacionismo de Blumer, ao desdobrar-se, aparente-
mente, em enfoques que o reduziram às questões básicas das
ciências sociais. A apontada “fragmentação” decorrente da sua
fragilidade nos anos 80, assim como os intercâmbios episte-
mológicos e conceituais com o denominado “giro pós-moder-
no” teria gerado, na opinião de alguns, que o Interacionismo
Simbólico se dissolvesse no mosaico policromo e caótico da
sociologia do fim do século (Idem, p. 211). Esta sentença, in-
serida num compêndio de diversas conjeturas, fez parte de um
inconfundível gesto, por parte de muitos intelectuais, de mate-
rializar uma atitude militante contra enfoques que reintroduzi-
ram a “questão pós”33 no debate acadêmico dos anos 90, logo
após o evidente desgaste e dispersão das temáticas vinculadas
à globalização (GADEA, 2007).
Um exemplo sintomático desse gesto pode estar nas apre-
ciações formuladas por Reynoso (2000), ao destacar as tímidas
tentativas que alguns intelectuais empreenderam para fusionar
os elementos analíticos próprios do Interacionismo Simbólico
com os dos chamados Estudos Culturais. Compilações como as
realizadas por Becker & McCall nos anos 90, sob o sugestivo
título de Symbolic Interaction and Cultural Studies, possibili-
taram o exercício de uma crítica férrea por parte de Reynoso.
Na sua perspectiva, a compilação não era mais do que

33 Em alusão concreta à diversa nomenclatura recorrente para caracterizar fenômenos políticos,


culturais e filosóficos, por exemplo, a pós-vanguarda, o pós-estruturalismo, o pós-industrialismo,
o pós-modernismo, etc.
164

una cantidad de ensayos sin casi ningún tipo de marca política


o pragmática, (mencionando) a los estudios (culturais) sola-
mente en el prólogo en el cual aparece esa definición tortuosa y
equivocada […]. Ninguno de los diez autores que luego hacen
uso de la palabra se detuvo a averiguar en qué consisten los
estudios culturales, ni mencionan una sola idea característica
de los mismos […]. (p. 200).

No entanto, o problema mais evidente dessa compila-


ção não recairia nessa “ausência” dos temas representativos
dos denominados Estudos Culturais, mas sim naquilo que
Mattelart & Neveu (2004) diagnosticam quando caracterizam
as consequências da “internacionalização e da crise dos Estu-
dos Culturais”: a sua despolitização. A compilação referida, a
exemplo das tentativas por uma fusão do Interacionismo Sim-
bólico com os Estudos Culturais, evidencia o que arquetipica-
mente representou, para muitos, o encontro dos Estudos Culturais
com o pós-estruturalismo e a crítica pós-moderna. Nesta preocu-
pação, e na atualização do Interacionismo Simbólico, “hay algo
de política, elaborada como si se estuviera conteniendo el asco, y
como si lo político estuviera restringido apenas al ejercicio de una
crítica contra no se sabe qué, con la que siempre se amaga pero
que nunca se materializa.” (REYNOSO, 2000, p. 200).
“A evolução dos estudos culturais desde os anos 1980
não pode ser dissociada de um processo de despolitização”,
admitem Mattelart & Neveu (2004, p. 152-153), algo seme-
lhante ao diagnóstico que Reynoso (2000) realiza quando ana-
lisa a suposta aproximação do Interacionismo Simbólico com
as preocupações analíticas dos Estudos Culturais. O “afasta-
mento” de muitas das pesquisas recentes da “vontade de unir
questões existenciais e desafios científicos” (atitude própria
daquela “nova esquerda” que tinha dado origem aos Cultural
Studies na Grã Bretanha) reflete o argumento central da crítica
ao desinteresse com a política e ao descompromisso com as
questões ligadas a um trabalho acadêmico crítico. Com o de-
saparecimento dos “pais fundadores”, os Estudos Culturais se
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 165

apresentariam órfãos da militância (MATTELART; NEVEU,


2004, p. 153). Não obstante, seria o seu processo de legitima-
ção e institucionalização o que, ao reduzir a marginalidade de
seus pesquisadores e abrir a possibilidade de ocupar espaços
acadêmicos importantes, teria condenado aos Estudos Cultu-
rais a um simples “giro lúdico”, “excesso de estilo”, “celebra-
ção do artifício”, “evasão da responsabilidade social” e a um
“afastamento da realidade” (REYNOSO, 2000, p. 146)34.
Talvez tenham sido pouco condescendentes os argumen-
tos de Reynoso e Mattelart & Neveu com o espaço acadêmico
ocupado pelos Estudos Culturais mais recentes e os desdobra-
mentos analíticos protagonizados pelo Interacionismo Simbó-
lico. Por um lado, considera-se “el movimiento intaraccionista
(como) ser una de las prácticas más inclinadas al idealismo y
más prolijamente consonantes con el pensamiento de la dere-
cha neoliberal norteamericana” (REYNOSO, 2000, p. 201).
Ao mesmo tempo em que a “penetração” do pós-modernismo
nos Estudos Culturais provocou a perda dos referentes clás-
sicos dos estudos que ligaram cultura com política e poder,
supondo que a epísteme pós-moderna se reduz a um “giro
literário” e a “metáforas textualistas” (Ibid. p. 145), em ou-
tro sentido, admite-se que os Estudos Culturais atuais teriam
“pactuado” seu desenvolvimento com o liberalismo econômi-
co e o conservadorismo político triunfante dos anos 80 e 90,
seduzidos pelas

lógicas econômicas de rentabilidade em curto prazo (que) ad-


quirem um peso crescente até no funcionamento das institui-
ções e editoras universitárias, no acesso ao espaço midiático.
Em tais condições, o sucesso do teoricismo, a solicitação de
conceitos e de autores dotados do impressionante poder de ‘re-
lativizar’ e de ‘desconstruir’ tudo, a fascinação pelos simulacros

34 Para complementar, Reynoso (2000, p. 146) dirá: “Una vez dentro de esta estrategia, el estudian-
te puede pasar toda su carrera debatiendo interpretaciones, desarrollando lecturas más matiza-
das y provocativas, descubriendo nuevos textos marginados y significados no advertidos antes,
sin encontrar, en todo su camino, a ningún miembro de la audiencia que le pregunte si alguna de
esas cosas tiene algún interés para la vida de alguien”.
166

[...], a redução do mundo social a um caleidoscópio de textos e de


discursos exprimem um humor intelectual cujo sentido é profun-
damente político. (MATTELART; NEVEU, 2004, p. 157-158).

Mas, seria possível admitir, sem ressalvas, essa associa-


ção do movimento interacionista com um determinado pen-
samento político de direita? E reduzir a influência da crítica
pós-moderna e do pós-estruturalismo sobre os Estudos Cul-
turais a um mero “giro literário”? De início, e no campo das
possibilidades da interpretação, pode-se perceber, ao menos, a
manifestação de certos incômodos de uma geração de intelec-
tuais um tanto “presa” a uma sociologia crítica que lê a cultura
e o poder sob o halo dos ensinamentos da clássica “crítica ne-
gativa” da Escola de Frankfurt e de uma pontual teoria crítica
da sociedade35.
Tanto no trabalho de Reynoso como no de Mattelart &
Neveu existe pouca discussão “ao interior” dos próprios Estu-
dos Culturais e do Interacionismo Simbólico. O de Mattelart
& Neveu se apresenta como um interessante relato do nas-
cimento e das posteriores vicissitudes dos Estudos Culturais,
desde sua gênese na Grã Bretanha até a sua posterior migração
ao contexto acadêmico latino-americano e aos denominados
Latin-American Studies. Embora existam reflexões acerca das
suas influências teóricas e das suas preocupações, evidencia-
-se como um projeto disciplinar e político que teria sucum-
bido a seu próprio peso na academia. Por sua parte, Reynoso
optou por realizar uma crítica aos Estudos Culturais desde a
produção acadêmica de diversos intelectuais, criticando seus
postulados, advertindo as nuances pouco estimulantes ao beber
35 “O que em definitivo parece evidenciar-se no intelectual crítico é uma vocação moralista e disci-
plinadora própria de quem se atribui a capacidade de decidir sobre o que é correto e o que não
é. [...] O que em definitivo parece materializar a posição política e acadêmica de um intelectual
crítico é a de uma espécie de guardião da metaestabilidade da crítica. [...] Na atualidade, um
intelectual crítico insistirá em convencer a todos sobre ‘a verdade dos acontecimentos’. Ten-
tará explicar que, por trás do imediato e intransitivo, existem estruturas, forças, poderes que
determinam os fenômenos. As ‘estruturas objetivas do mundo’ são as que devem desvelar-se, o
que exigiria uma sensibilidade e posição política que tem tomado consciência do seu lugar [...]”
(GADEA, 2004, p. 196).
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 167

do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, e, inclusive, se


lamentando do escasso êxito da sua suposta aliança com o In-
teracionismo Simbólico. Não obstante, ainda permanece em
aberto a possibilidade de espaços analíticos que considerem
o mundo relacional inserido em relações de poder, institui-
ções de saber e formas de articulação política. Reynoso, por
exemplo, parece apelar a uma espécie de pós-marxismo aliado
a uma clara desconfiança com toda uma tradição sociológica
crítica do estruturalismo. Apresenta observações muito próxi-
mas de “desabafos” cientes de uma estratégia por desmistifi-
car, a partir de algumas obras selecionadas, as contribuições
tanto dos Estudos Culturais como do Interacionismo Simbóli-
co. Fora a qualidade ou não daquilo que foi produzido na ten-
tativa por fusionar Interacionismo Simbólico com os Estudos
Culturais, e a estes com a crítica pós-moderna e o pós-estrutu-
ralismo, há uma forma que o social assume enquanto espaço
a ser pensado que, sem dúvida, diz respeito a um interessante
“giro hermenêutico”. Desta forma, é possível considerar ao
Interacionismo Simbólico e aos estudos sobre cultura e poder
perspectivas de análise que negligenciam assuntos ligados ao
poder e à política?

Aquela criança da publicidade da revista espanhola Hola


“parece descobrir” que, na sua leitura “desconstrutiva” da cena
familiar, aquilo que existe e que se autoproclama como “ver-
dadeiro”, não é mais do que uma mera “figura da linguagem”;
mas que tem “o poder” de inseri-lo em uma complexa rede de
relações sociais. Certas “regras da cultura” se materializam
neste mundo de significações realizadas pelos protagonistas
desse hipotético diálogo, inclusive, e até fundamentalmente,
pela mãe daquela criança que permaneceu, no seu silêncio,
“aparentemente” ausente. De fato, a mãe se fez presente silen-
ciando o lugar atribuído pela fala do “pai de família”, numa
168

“figura da linguagem” que pareceria “ocultar” a sua especifi-


cidade enquanto sujeito autorreferenciado. Mas, seria até pos-
sível considerar o argumento de que o próprio “pai de família”
se apresenta autorreferenciado? Dos três personagens, talvez
resida na criança a possibilidade de um sujeito per excellence,
ao ter a “capacidade” de questionar e desestabilizar, com seu
pensamento e “posição”, “regras da cultura” conjunturalmen-
te expostas como sendo o mundo a ser/estar sendo vivido e
desvendado. Quando o pai fala, não é só ele quem o faz; assim
como quando a sua mãe assiste silenciosa não é só ela quem
se silencia. A “cultura”, neste sentido, deixa de ser represen-
tada com a “ingenuidade” que muitos a supõem, já que não é
entendível como uma mera prática social, nem como uma des-
crição da suma dos hábitos e costumes de uma sociedade. Ela
“se apresenta” nas interações sociais, tal qual começou a en-
tender-se desde a tradição sociológica simmeliana e da Escola
de Chicago. Sendo assim, o “giro hermenêutico” aludido toma
como valor inestimável dirigir a atenção para alguns aspectos
críticos na “produção de cultura”, no sentido de entendê-la
como própria de uma realidade social nomeada e classificada,
em que as ações das pessoas têm algum significado.
E que significados são esses que estabelecem no diálo-
go daquela cena familiar uma forma de articulação política?
Que interação, simbolicamente mediada, tem sido aquela entre
a criança e o seu entorno familiar, traduzível num universo
fechado de realidade? Quando Blumer (1969) admitia que os
enfoques classicamente considerados sociológicos supunham
que as ações das pessoas seriam o resultado de forças particu-
lares que as produziriam, ironicamente sentenciava que, neste
sentido, não haveria nenhuma necessidade por se preocupar
pelo significado dessas ações. Paulatinamente, com as teori-
zações foucaultianas, percebeu-se que nas situações em que
são constituídas (e se constituem) as relações sociais se evi-
denciam formas particulares de “opressão” estreitamente liga-
das às maneiras de como se atribuem os significados às ações
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 169

empreendidas. Se bem no Interacionismo Simbólico aparece


pouco clara a importância que supostamente teria a análise das
formas de inscrição através das quais as pessoas são represen-
tadas, seria com a virada pós-estruturalista que a análise das
interações sociais assumiria como de grande importância a te-
mática do poder, da cultura e da sua representação. Diferentes
situações sociais permitiriam que múltiplas relações de poder
entrassem em jogo, sem esquecer, inclusive, que, nessas dife-
rentes situações, acontece uma multiplicidade de coisas dife-
rentes de maneira simultânea (GOFFMAN, 2006). Assim, a
articulação política derivada dos significados atribuídos àquela
situação vivida por aquela criança se vincula com tornar evi-
dente, de maneira crítica, uma específica “forma da relação”
que, antes de tudo, pretende colocar entre parêntese o marco
binário de ordenamento do mundo. Analogamente ao realiza-
do por Spivak (2010 [1999], p. 285) quando trata o “projeto
feminista”, a criança parece se perguntar: por que a palavra “fi-
lho” se converte numa classificação apropriada da alteridade,
da “outredade”, sempre e quando se entenda, também, como
uma “posição de sujeito” inserida numa instituição como a
família? Por que naquele texto (realidade) e maneira de clas-
sificar o mundo, “ser” equivale a “ser filho”? Isto parece ter
a sua equivalência de “ser” com desempenhar uma atividade
simbolicamente manifestada nos “cuidados” à mãe, com um
papel que veio acompanhado de atributos acerca de uma re-
presentação sobre o que seria “ser pai”, “ser mãe” e “ser filho”.
Tal qual uma simples metáfora, as múltiplas interrogan-
tes daquela criança, o seu “instável” si mesmo e a “figura da
linguagem” constitutiva da realidade do seu mundo, permi-
tem estabelecer uma relação conceitual entre o Interacionismo
Simbólico e os estudos sobre cultura e poder. Quando aquela
criança “reflete” a partir do “dito” pelo seu pai, introduz ques-
tões sobre o saber e a sua institucionalização, sobre política
e poder, que pareceria “desdobrar” aquilo que foi próprio da
ideia de sociedade e indivíduo das perspectivas interacionistas
170

na sociologia. A mediação simbólica de toda interação social


é reconsiderada à luz das preocupações que, desde o pós-
-estruturalismo e a crítica pós-moderna, vêm se colocando há
bastante tempo: com aquela situação vivida por aquela criança
pareceria se enterrar sentenças como as que consideram o In-
teracionismo Simbólico como “una teoria enfáticamente mi-
cro, una ortodoxia ancestral e inelástica, que contemplaba los
‘significados’ como algo que surge de cada negociación oca-
sional entre iguales” (REYNOSO, 2000, p. 201). O “giro her-
menêutico” que os Estudos Culturais e a crítica pós-moderna
protagonizam sob os auspícios do Interacionismo Simbólico
evidenciam que a aproximação analítica que experimentam
não denota “despolitização” nem desinteresse pelos assuntos
ligados ao poder e à política. Muito pelo contrário, o poder e a
política entram num processo de ressemantização interessan-
te, abandonando uma imagem que a tem “colonizado” através
de uma particular teoria crítica. Ressemantização da crítica
como principal tarefa deste “giro hermenêutico”: trata-se de
questionar a defesa do papel do intelectual crítico tradicional,
ao autoconsiderar-se que só desde a perspectiva universaliza-
dora do intelectual, dos valores que elabora (éticos, estéticos,
epistemológicos) e representa, é possível formular uma pers-
pectiva crítica sobre as “ilusões da ideologia dominante” e “o
poder” subjacente em toda relação social. Não se trata, e é
importante esclarecer, de uma suposta defesa de um projeto
acadêmico e da sua institucionalização, mas sim de uma espé-
cie de reterritorialização da figura da crítica e do intelectual li-
gada, isso sim, à tradição do Interacionismo Simbólico, os Es-
tudos Culturais, o pós-estruturalismo e a crítica pós-moderna.
Há um interesse por “ampliar” o espectro analítico da in-
teração simbólica quando se consideram as relações sociais
em absoluto vazias (ou esvaziadas) de componentes políticos,
estéticos ou epistemológicos. A tarefa “desconstrutiva” se
torna inseparável de uma perspectiva analítica que observa os
significados das interações simbolicamente mediadas inseridas
PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS NA CONTEMPORANEIDADE 171

em incontornáveis nexos entre cultura e poder. Contrariamente


ao que alguns consideram, o “giro pós-moderno” não só trouxe
a ironia como estratégia expressiva para uma crítica ao univer-
so da modernidade, senão que estabeleceu a possibilidade de
problematizar aquilo que não aparecia, tão visivelmente, nas
perspectivas interacionistas. Por isso, a partir do pragmatis-
mo filosófico, a crítica pós-moderna parece se visualizar em
uma espécie de reutilização daqueles elementos analíticos que
tinham sido negligenciados pela hegemonia de perspectivas
mais enraizadas no determinismo estrutural. No Interacionis-
mo Simbólico, na fenomenologia de Schütz, nos estudos so-
bre cultura e em toda a tradição sociológica que considera o
social próprio daquilo que se constitui “em relação” radica,
em grande maneira, o suporte teórico que a crítica pós-moder-
na estabelece ao se referir à desestabilização ou decomposição
dos “grandes relatos explicativos da realidade” (LYOTARD,
1989 [1979]). Não há muita novidade ao respeito: quando a
importância à “lógica situacional” das ações e aos seus signi-
ficados, aos fragmentos e à fluidez, e à pluralidade de mundos
(ou as “múltiplas realidades”), materializa-se nos contempo-
râneos estudos sobre cultura e poder, é possível considerar
que se torna claro o fio condutor que entrelaça preocupações
análogas entre as perspectivas interacionistas, os Estudos Cul-
turais e a crítica pós-moderna. Por isso, mais do que um exer-
cício de “aproximação” deliberada por parte de alguns inte-
lectuais, trata-se de uma espécie de “processo” protagonizado
por um espaço teórico e analítico, o que permite estabelecer
esse eventual contato entre o Interacionismo Simbólico com
os contemporâneos estudos sobre cultura e poder. Esse é o
“giro hermenêutico” que, “ao interior” das perspectivas inte-
racionistas, permitiu que aquela criança “se apresente” como
um significante que traduz uma “ordem simbólica” decorrente
daquela interação com seus pais, naquela publicidade da re-
vista espanhola Hola dos anos 70.
172

REFERÊNCIAS
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THOMAS, William I. La definición de la situación. IN: Cuader-
nos de Información y comunicación, n. 10, s/l, 2005, [1923].
SOBRE OS AUTORES

Alberto Durán González


Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de
Londrina e professor do Programa de Pós-Graduação (nível
mestrado e doutorado) em Saúde Coletiva da Universidade Es-
tadual de Londrina.

Carlos A. Gadea
Pós-doutor pelo Center for Latin American Studies da
Universidade de Miami. Bolsista Produtividade em Pesquisa
pelo CNPq, professor e coordenador do Programa de Pós-Gra-
duação (nível mestrado e doutorado) em Ciências Sociais da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Carlos Cardoso Silva


Doutor em Educação pela Universidade Federal de Goi-
ás (2009), Mestre em Educação pela Universidade Federal de
Goiás (2001); especialização Latu Senso em Gestão da Escola
Pública pela Universidade Federal de Goiás (1995); especiali-
zação Latu Senso em Administração Escolar pelas Faculdades
Integradas de São Gonçalo (1991); graduação em Pedagogia
pela Universidade Católica de Goiás (1990); tem experiência
na área de Educação, com ênfase em Educação, atuando prin-
cipalmente nos seguintes temas: formação de professores, Di-
dática, Prática de Ensino e Estágio Supervisionado. Membro
do NEPEFE (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e
Fenomenologia). E-mail: carlos.cardoso27@gmail.com

Carmen Célia Barradas Correia Bastos


Doutora em Educação pela Universidade Estadual de
Campinas e professora do Programa de Pós-Graduação em
Educação (nível mestrado) e do Programa  de Pós-Graduação
em Odontologia (nível mestrado) da Universidade Estadual
do Oeste do Paraná. 
176

Crisóstomo Lima do Nascimento


Doutor em Educação pela Universidade Federal Flumi-
nense e professor do Departamento de Psicologia da Universi-
dade Federal Fluminense.

Eduardo Portanova Barros


Pós-doutor em Sociologia pela Université de Paris V
(Sorbonne) e pós-doutorando (PNPD/CAPES) em Ciências
Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Fábio Lopes Alves


Doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Vale
do Rio dos Sinos e professor do Programa de Pós-Graduação
(nível mestrado) em Sociedade, Cultura e Fronteiras da Uni-
versidade Estadual do Oeste do Paraná.

Kátia Cristina Nascimento Figueira


Doutora em Educação pela Universidade Federal de São
Carlos. Professora do Programa de Pós-Graduação (nível mes-
trado profissional) em Educação da Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul (UEMS).

Léia Teixeira Lacerda


Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo.
Professora do Programa de Pós-Graduação (nível mestrado)
em Educação e do Programa de Pós-Graduação (nível mes-
trado profissional) em Educação da Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul.

Maira Sayuri Sakay Bortoletto


Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de
Londrina e professora na Universidade Estadual de Londrina.
Mara Lúcia Garanhani
Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Bolsista Produ-
tividade em Pesquisa pelo CNPq e professora do Programa de
Pós-Graduação (nível mestrado e doutorado) em Saúde Co-
letiva e do Programa de Pós-Graduação (nível mestrado) em
Enfermagem da Universidade Estadual de Londrina.

Maria Leda Pinto


Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Pro-
fessora do Programa de Pós-Graduação (nível mestrado) em
Letras e do Programa de Pós-Graduação (nível mestrado pro-
fissional) em Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso
do Sul.

Michel Maffesoli
Sociólogo e professor da Université de Paris V Sorbonne,
onde dirige o CEAQ - Centro de Estudos sobre o Atual e o
Cotidiano. Autor de diversos livros sobre a pós-modernidade.

Tânia Maria Rechia Schroeder


Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Cam-
pinas e professora do Programa de Pós-Graduação (nível mestra-
do) em Educação da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
SOBRE O LIVRO
Tiragem: 1000
Formato: 14 x 21 cm
Mancha: 10 X 17 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5/12/16/18
Arial 7,5/8/9
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

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