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Internacionalização)
Pamela Staliano
Marcos Mondardo
(Orgs.)

Coleção
diálogos sobre
violências, saúde e fronteira

Violência, Gênero, Saúde e Fronteira(s):


diálogos interdisciplinares

volume ii
© Brazil Publishing Autores e Editores Associados Associação Brasileira de Editores Científicos
Rua Padre Germano Mayer, 407 Rua Azaleia, 399 - Edifício 3 Office, 7º Andar, Sala 75
Cristo Rei - Curitiba, PR - 80050-270 Botucatu, SP - 18603-550
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Comitê Editorial
Editora-Chefe: Sandra Heck
Editor Superintendente: Valdemir Paiva
Editor Coordenador: Everson Ciriaco
Diagramação e Projeto Gráfico: Rafael Chiarelli
Adaptação para E-book: Samuel Hugo
Arte da Capa: Paula Zettel
Revisão de Texto: Os autores

DOI: 10.31012/ 978-65-5861-269-8


Órgão Financiador: Recurso do Programa de Apoio à Pós Graduação da Coordenação de Aperfeiço-
amento de Pessoal de Nível Superior (PROAP/CAPES).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária: Maria Isabel Schiavon Kinasz, CRB9 / 626

Staliano, Pamela
S782v Violência, gênero, saúde e fronteira(s): diálogos interdisciplinares / Pamela
Staliano, Marcos Mondardo – 1.ed. – Curitiba: Brazil Publishing, 2020.
[recurso eletrônico]

ISBN 978-65-5861-269-8

1. Violência contra as mulheres. 2. Identidade de gênero. 3. Violência familiar.


I. Mondardo, Marcos. II. Título.

CDD 305.42 (22.ed)


CDU 392.59

[1ª edição – Ano 2020]


www.aeditora.com.br
Prefácio

A Fronteira como Recurso e como Obstáculo

O volume dois da coleção DIÁLOGOS SOBRE VIO-


LÊNCIAS, SAÚDE E FRONTEIRA, intitulado “VIOLÊNCIAS,
GÊNERO, SAÚDE E FRONTEIRA(S): Diálogos Interdisci-
plinares” traz textos com enfoques variados, reunidos por
tratarem de premências da vida fronteiriça. São iniciativas de
lançar as primeiras luzes ou aprofundar conhecimentos sobre
as experiências das mulheres, das indígenas, das migrantes,
das jovens, das trabalhadoras sociais, entre outras.
Na narrativa bíblica, a mulher é um subproduto do
homem. No patriarcado, o homem é a regra, é o padrão. Nas
visões realistas, a fronteira é vista como um subproduto do
estado-nação, assim como a nação é a regra; e as identidades
fronteiriças, como o desvio a essa regra. Dessa forma, uma
abordagem sobre as mulheres na fronteira poderia ser enten-
dida como um desvio duplo aos padrões.
Os discursos sobre a fronteira tendem a enfatizar a
segurança, a mão forte do estado a coibir os perigos vindos
do exterior. Mas, ao pesquisar a vida nas fronteiras, encon-
tramos mais relatos de violência nas relações familiares do
que preocupação com os ilícitos espetacularizados e que
justificam operações conjuntas das forças de segurança.
As relações de gênero marcam os movimentos e pro-
jetos na fronteira. A disposição dos serviços de saúde, dos
direitos dados pela nacionalidade, entre outros elementos,
são marcados pela produção dos lugares e territórios, e esse
é o caso da fronteira. Como coloca claramente Nira Yuval-
-Davis, as mulheres são as reprodutoras biológicas, culturais
e simbólicas da nação (DAVIS, 2018). Leis específicas são
pensadas para elas, seus corpos, através da reprodução, per-
mitem adquirir cidadania, seus movimentos são entendidos
como o de objetos traficados e não como projetos migrantes.
Entre tantos apagamentos e cristalizações, as mu-
lheres têm mantido as tradições dos povos originários, nas
práticas de alimentação, de cuidados familiares, de redes
solidárias, de religiosidade. Essa resistência é possível na
medida em que tais práticas estejam fora da dinâmica do tra-
balho remunerado. Porém, essa mesma exterioridade torna
as mulheres dependentes no interior das relações familiares.
Assim, a busca pela autonomia do corpo, do trabalho e do
território se entrelaçam, desenhando-se como projetos de
empoderamento necessários para as mulheres fronteiriças.

Adriana Dorfman
Doutora em Geografia. Professora associada
do Departamento de Geografia e professora
permanente do Programa de Pós-Graduação
em Geografia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.

Referência
DAVIS, Nira-Yuval. Intersectional Border(ing)s. Political Geography, v. 66, p. 139-
141, 2018.
Abstract
The volume “Violences, gender, health and frontier (s): interdisciplinary
dialogues” brings together texts by researchers who understand that
violence against women has historical roots in Brazil, anchored in
patriarchal molds, differentiating men and women by the standards of
identity. This structure points to the gender inequality in which men are
superior to women, a hierarchy demonstrated through power and male
domination. The policies to confront violence brought by the Maria da
Penha Law have a universal character of service, with the objective of
serving all Brazilian women. However, it is necessary to discuss how it
is possible to guarantee this right to women marked by their class, race
and ethnicity, specifically, in relation to indigenous women. Violence in
the border region needs to be seen as a complex phenomenon crossed by
legislation, historical, geographical, political and cultural aspects. Dealing
specifically with violence against women, Latin American women who
live in a Brazilian border region, in addition to structural machismo,
experience the socioeconomic vulnerability marked by drug trafficking,
facilitated acquisition of firearms and the late legislative recognition of the
crime of femicide, which contribute to the perpetuation of the practice of
intentional lethal crimes against these women.
Palavras-chave

O corpo das mulheres indígenas frente às violências e violações na


América Latina: o território como r-existência e como corpo-território
Tekoha; Colonialidade; Geo-história; Reserva indígena; Feminismo
decolonial

Violência doméstica e intrafamiliar contra a mulher na fronteira Brasil-


Paraguai-Bolívia em tempos de pandemia
Violência doméstica, Violência Intrafamiliar, Fronteira, COVID-19,
Cidades-gêmeas.

Exploração sexual na fronteira de Mato Grosso do Sul: espaço de


tensões e potencialidades
Fronteira, Exploração sexual, Teoria Sócio-Histórica, Desigualdade social,
Processos de subjetivação.

“Que tiro foi esse?”: Saúde, fronteira(s) (d)e gênero


Feminicídio; Saúde mental, Cartografia, Unidade básica de saúde,
Análise do discurso.

Mulheres plurais: refletindo sobre a aplicação da Lei Maria da Penha e


as mulheres indígenas
Mulheres indígenas, Violência de gênero, Lei Maria da Penha,
Interseccionalidades, Colonialidade.

Trajetórias de mulheres árabes, paraguaias e brasileiras na fronteira de


Pedro Juan Caballero (PY) e Ponta Porã (BR)
Transterritorialidade, Empoderamento, Geossímbolo, Migração,
Identidade.

Invisibilidade perversa: violência contra a mulher indígena no


município de Dourados-MS
Boletins de ocorrência, Processos discriminatórios, Mulheres indígenas,
Delegacia de atendimento à mulher, alcoolismo.

Gilead e Mato Grosso do Sul: o conto da Aia comparado ao processo


de retirada das crianças indígenas Guarani e Kaiowá de suas mães – a
distopia é logo ali
Estatuto da Criança e do Adolescente, Distopia, Confinamento,
Instituição de acolhimento, Tekoha.
Sumário

O corpo das mulheres indígenas frente às violências e violações na


América Latina: o território como r-existência e como corpo-território.10
Marcos Mondardo

Violência doméstica e intrafamiliar contra a mulher na fronteira Brasil-


Paraguai-Bolívia em tempos de pandemia. . . . . . . . . . . . . 27
Pamela Staliano; Júlia Carmo de Paula; Allana Isabella Souza

Exploração sexual na fronteira de Mato Grosso do Sul: espaço de


tensões e potencialidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
Gabriela Pereira da Silva; Krisley Amorim de Araujo; Luciane Pinho de Almeida

“Que tiro foi esse?”: Saúde, fronteira(s) (d)e gênero. . . . . . . . 79


Angelo Luiz Sorgatto; Catia Paranhos Martins

Mulheres plurais: refletindo sobre a aplicação da Lei Maria da Penha e


as mulheres indígenas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104
Claudia Regina Nichnig

Trajetórias de mulheres árabes, paraguaias e brasileiras na fronteira de


Pedro Juan Caballero (PY) e Ponta Porã (BR) . . . . . . . . . . . 115
Luana Maria Gutierres Barbosa; Marcos Mondardo

Invisibilidade perversa: violência contra a mulher indígena no


município de Dourados-MS. . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Sarah Pedrollo Machado; Paola Ferreira de Oliveira; Pamela Staliano

Gilead e Mato Grosso do Sul: o conto da Aia comparado ao processo de


retirada das crianças indígenas Guarani e Kaiowá de suas mães – a distopia é
logo ali. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
Nathaly Conceição Munarini Otero; Arthur Ramos do Nascimento

Índice remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180


Sobre os organizadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182
Sobre os autores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
O corpo das mulheres indígenas
frente às violências e violações na
América Latina: o território como
r-existência e como corpo-território

Marcos Mondardo

Introdução

O texto se propõe a compreender o corpo-território


desde às lutas contemporâneas das mulheres indígenas
latino-americanas, especialmente, defronte às violências
e violações de direitos humanos sofridos. Para isso, inicia-
-se com o debate sobre o corpo como condição/esfera da
r-existência (existir para resistir) e, a partir daí, discute-se,
em uma cosmologia geográfica de conceitos, concepções de
corpo-território a partir da perspectiva decolonial de poder
no âmbito latino-americano.
O corpo-território das mulheres indígenas é lido a
partir da multiplicidade inerente à espacialidade, proble-
matizando-se às concepções eurocêntricas e patriarcais de
território que acentuam as violências sofridas. Por tratar da
multiplicidade do espaço, é fundamental essa concepção de
território estar associada à geopolítica feminista do territó-
rio, a “geopolítica do útero” (ZARAGOCIN, 2018), dentro
das principais contribuições da leitura geográfica decolonial
latino-americana, o “território-corpo” (HAESBAERT, 2020),

10
ou, no interior de uma distinção realizada pela ótica dos
povos Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul, do tekoha
como território de existência (MONDARDO, 2019a).
Nessa composição ontológica e heterogênea de mul-
tiplicidades é possível afirmar que as mulheres indígenas
latino-americanas, e em particular, as mulheres Guarani e
Kaiowá, têm uma leitura própria do seu corpo-território. Par-
te-se para o enfoque de espaço em suas diferentes dimensões,
que incluem a abordagem da multiplicidade contemporânea
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

dos corpos das mulheres, das lutas das mulheres originárias


diálogos interdisciplinares

contra o neoextrativismo e a construção transterritorial de


identidades em áreas de fronteira.

O território como categoria de r-existência

O território como categoria de r-existência no contex-


to latino-americano inicia no próprio corpo. Frente às violên-
cias e violações de direitos humanos, as mulheres indígenas
lutam pelo espaço, o corpo, que se conforma na própria
geografia da resistência, um fenômeno de dimensões drás-
ticas nas lutas contra o “colonialismo interno” (GONZÁLEZ
CASANOVA, 2006), e o “patriarcado de alta intensidade
colonial-moderna” (SEGATO, 2016).
Na América Latina (Abya Yala) e, particularmente, no
Brasil o corpo está no centro das lutas pela existência físico-
-cultural dos povos indígenas, pois “se fere a nossa existên-
cia, seremos resistência”, afirmam movimentos de mulheres
latino-americanas. Os agenciamentos que atravessam as
resistências indígenas e que demarcam seus corpos fazem
parte de uma agenda de luta no Brasil contemporâneo.

11
Como afirma Dorronsoro (2019)

[...] resistir implica [...] exercer o direito a


partir do próprio, [...] transitar também pelo
direito alheio e procurar a melhor maneira de
poder reivindicar, obter, defender, garantir,
promover e conservar os direitos próprios
individuais e coletivos quando o direito
maioritário não os contempla ou os ignora.
(DORRONSORO, 2019, p. 382).
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Diante da recessão democrática e do ataque genocida


diálogos interdisciplinares

aos povos originários a maior estratégia política é se manter


vivo. Para lutar é preciso estar vivo.
Como foi concebido coletivamente no documento
final da 1ª Marcha das Mulheres Indígenas com o tema
“Território: nosso corpo, nosso espírito”, em que estavam
presentes 2.500 mulheres de mais de 130 diferentes povos
indígenas, representando todas as regiões do Brasil, reu-
nidas em Brasília (DF), no período de 10 a 14 de agosto de
2019, se manter viva para as mulheres indígenas diz respeito
a manter viva as suas verdades cosmológicas por meio dos
cantos, danças, pinturas, rituais, luto, ancestralidade e mani-
festações que fazem parte de seus corpos.

Somos totalmente contrárias às narrativas,


aos propósitos, e aos atos do atual governo,
que vem deixando explícita sua intenção de
extermínio dos povos indígenas, visando à
invasão e exploração genocida dos nossos
territórios pelo capital. Essa forma de
governar é como arrancar uma árvore da
terra, deixando suas raízes expostas até que
tudo seque. Nós estamos fincadas na terra,
pois é nela que buscamos nossos ancestrais

12
e por ela que alimentamos nossa vida. Por
isso, o território para nós não é um bem que
pode ser vendido, trocado, explorado. O
território é nossa própria vida, nosso corpo,
nosso espírito. Lutar pelos direitos de nossos
territórios é lutar pelo nosso direito à vida. A
vida e o território são a mesma coisa, pois a
terra nos dá nosso alimento, nossa medicina
tradicional, nossa saúde e nossa dignidade.
Perder o território é perder nossa mãe. Quem
tem território, tem mãe, tem colo. E quem
tem colo tem cura. [...] Precisamos dialogar e
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

fortalecer a potência das mulheres indígenas,


diálogos interdisciplinares

retomando nossos valores e memórias ma-


triarcais para podermos avançar nos nossos
pleitos sociais relacionados aos nossos terri-
tórios. [...] Por tudo isso, e a partir das redes
que tecemos nesse encontro, nós dizemos ao
mundo que iremos lutar incansavelmente
para: 1. Garantir a demarcação das terras
indígenas, pois violar nossa mãe terra é
violentar nosso próprio corpo e nossa vida;
(ABIP, 2019).

Esse protagonismo das mulheres indígenas está re-


lacionado às perspectivas ecofeministas, à ética do cuidado
e à mãe Terra. Isso nos leva à seguinte pergunta: como uma
aliança de corpos constrói espaços de resistência na luta
pelo reconhecimento e reivindicação de direitos territoriais?
Como essa “aliança de corpos e política das ruas” (BUTLER,
2018) pode encarnar uma mudança e demonstrar o que se
tem de conhecimento sobre os povos indígenas no Brasil?
As lutas das mulheres indígenas por direitos são
agenciadas pelo corpo-território. Lutas construídas desde
o corpo. Lutas pela pluralidade de corpos. A luta pela di-

13
ferença como multiplicidade de corpos. Na sinestesia dos
bons encontros entre corpos fica mais efetivo o exercício das
resistências. Existir enquanto corpo físico-biológico, mas,
sobretudo, enquanto subjetividade. Essas subjetividades
ameríndias em que estão presentes outras perspectivas
de mundos, cosmologias de mundos por vir a ser. Nestas
subjetividades corpóreas os múltiplos mitos e, consequente-
mente, a multiplicidade de espaços imaginados a partir dos
povos indígenas brasileiro-latino-americanos contém ideias
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

fecundas para a construção das lutas e defesa dos territórios


diálogos interdisciplinares

(MONDARDO, 2019a).
Mas o que são corpos ameríndios? Corpos indígenas
são muitos e múltiplos em suas dinâmicas, expressividades
e roupagens. São múltiplos em suas verdades, em línguas,
sons, performances, cosmopolíticas, enfim, subjetividades
que os permitem colocar ou tirar roupagens. Corpos que se
manifestam e se materializam pelos sons que demarcam a
paisagem corporal por meio da subjetividade. O território
encarnado. Os limites dos corpos como defesa e potência
da existência.
Mesmo tendo uma experiência corpórea, muitos não
indígenas não os veem e também não os ouvem. Muitas
vezes, as demandas não são escutadas pelas características
próprias de uma manifestação e/ou assembleia indígena ou
pela negação da legitimidade do povo ou comunidade. As
mesmas têm como base de suas discussões o território, a
relação com esse espaço chave envolve seus rituais e o modo
de viver. Sendo assim, ao possuir características distintas
de uma reunião realizada por pessoas não indígenas que
estão acostumadas com outra organização socioespacial, as

14
mesmas deixam de ganhar a atenção necessária. Os temas
em pauta envolvem a retomada de territórios tradicionais,
saúde, educação, sustentabilidade, moradia e a importância
de manter vivo o modo de viver indígena – como a cosmo-
logia Guarani e Kaiowá – com seus rituais compostos por
rezas e cantos.

Corpo-território: concepção geográfica decolonial


latino-americana
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

As lutas das mulheres indígenas estão o tempo todo


diálogos interdisciplinares

acionando e jogando com uma série de escalas geográficas e


de cosmopolíticas que tem essa raiz (base ancestral) dentro
do espaço, moldadas pelas cosmologias. Questões ligadas à
ancestralidade, à luta por direitos, território e territorialida-
de, são fundamentais para entendermos esse momento de
enfrentamento e descolonização que as mulheres indígenas
em suas mais variadas expressões fazem. E todas essas lutas
começam e terminam no próprio corpo das mulheres.
As lutas das mulheres indígenas contra as violências de
gênero, doméstica, e as violações de direitos humanos eviden-
ciam a importância dessa questão/escala do corpo, da defesa e
cuidado da vida, na configuração do território, seja em nível in-
dividual, seja em nível do grupo. Por outro lado, se lembrarmos
de que o espaço geográfico no sentido mais amplo, na visão de
Massey (2005) é a esfera da coexistência, da multiplicidade – e
podemos acrescentar da coexistência da diferença –, ou seja,
podemos enfatizar as dimensões da multiplicidade e da dife-
rença, é possível ler esse espaço também como a dimensão por
excelência da mudança de olhar, de perspectiva.

15
O espaço permite, carrega esse potencial de favore-
cer ou possibilitar outra perspectiva de mundo, de corpo e
de território. Por isso, as cosmologias e cosmopolíticas das
mulheres indígenas são tão importantes, não só pelo caráter
pluri-ontológico dos grupos étnicos, mas, também, pela
dimensão física (a corporeidade) que ele carrega. O espaço
concreto, da cultura material, seja por meio de uma base físi-
ca como a terra, seja por meio dos objetos, está a todo tempo
estimulando a pensar de uma maneira diferente, a encontrar
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

o diferente, e essa ideia de mudança de ponto de vista é


diálogos interdisciplinares

fundamental para a mudança de perspectiva do espaço, do


corpo, do território.
Na América Latina as mulheres indígenas também
colocam isso como um elemento muito importante, já que
cada uma, considerando obviamente a sua etnia, faixa etária,
relação de parentesco, dentre outros marcadores sociais,
configura de alguma maneira o seu próprio mundo, o seu
próprio corpo. O componente fundamental que o pensa-
mento decolonial propõe é a ideia de que esse conhecimen-
to-saber-poder é sempre localizado (QUIJANO, 2005). Esse
pensamento está situado em uma determinada perspectiva
de mundo que, no caso dos povos originários latino-ame-
ricanos, há toda uma carga geo-histórica de violência da
economia extrativista espoliadora contra o corpo-território
das mulheres indígenas.
Na América Latina, a especificidade de que o
poder patriarcal se desdobra por meio de uma economia
extrativista espoliadora, que propõem até sacrificar corpos-
territórios, como nos inúmeros assassinatos de mulheres
indígenas, mas que também nos permite redefinir o ter-

16
ritório a partir da colonialidade do poder, no qual é tão
importante as lutas contemporâneas em defesa da vida, do
(auto)cuidado, da valorização do coletivo, da demarcação
do território, da autonomia.
Atualmente, os corpos-territórios do sacrifício ocor-
rem em nome do propalado desenvolvimento, do moderno
e do progresso, que consiste em uma característica funda-
mental da América Latina, em relação a outros contextos da
própria periferia mundial. A herança escravista e patriarcal
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

tem o papel sempre subordinado da mulher de maneira


diálogos interdisciplinares

muito contundente com o uso e exercício da violência como


forma de dominação. No entanto, por outro lado, não po-
demos nos esquecer da força de resistência secular dessas
mulheres em defesa dos seus corpos-territórios de vida – da
bio e/ou etnodiversidade.
No caso latino-americano, em relação a outros
contextos da própria periferia mundial, basta observar o
próprio corpo, dependendo da posição que os grupos sociais
ocupam no espaço, seja de forma hegemônica ou subalterna,
protagonista ou coadjuvante, desde cima ou desde baixo,
que os povos terão uma visão outra. É possível ver quem
está à frente (no centro), quem está atrás (na periferia), quem
está ao lado (no meio).
Não podemos esquecer, obviamente, que há nessas
relações espaço corporais uma superposição de dimensões
da vida, a dimensão biológica, a dimensão ancestral-étnica (e
interétnica) e a dimensão subjetiva. Todas elas estão englo-
badas nessa condição corpórea que as mulheres carregam. O
espaço, então, enquanto condição corpórea tem esse poten-
cial para vivenciar o ambiente, a multiplicidade e a diferença,

17
conhecer o Outro e lutar pela vida (existir para resistir). Por
isso, no Brasil, e nos diferentes contextos regionais, há toda
uma carga geo-histórica que ajuda a explicar porque as mu-
lheres indígenas pensam o mundo de uma maneira muito
própria, a partir de seus territórios ontológicos (ESCOBAR,
2018), corpo-território.
Então é importante analisar o corpo-território das
mulheres indígenas a partir desse contexto geo-histórico, no
sentido de pensar relações de poder profundamente arrai-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

gadas pela colonialidade interna, forte, racista, do desprezo


diálogos interdisciplinares

pela vida e da concentração da terra/recursos/riqueza, por


meio do que Grosfoguel (2008) propôs denominar como
“sistema mundo-europeu-euro-norte-americano capitalista
patriarcal moderno”.
Uma das propostas fundamentais desse pensamento
decolonial que nos interessa aqui, para pensar o corpo-terri-
tório, considerando o protagonismo das mulheres indígenas
nas lutas étnico-sociais, é a condição do pensamento decolo-
nial de “dar voz”, de visibilizar o subalterno. Embora, como
sabemos, isso não seja uma prerrogativa estrita do pensa-
mento decolonial, o próprio filósofo francês Michel Foucault
(2012) já defendia isso há bastante tempo, no sentido de dar
voz e visibilidade (empoderamento) aos grupos subalternos,
enfatizando, sobretudo, as resistências desses coletivos.
A resistência desde a perspectiva de Foucault (2012),
não é vista como outro do poder, mas como seu constituinte
inerente, sempre que há poder há resistência. A resistência é,
dessa forma, condição do poder. Por isso, é possível ler des-
de as lutas concretas os corpos das mulheres indígenas como
territórios de r-existência. Essa r-existência é vista por meio

18
dos territórios que envolvem a própria ameaça à existência
desses grupos.
Nessa ontologização do território como propõe
Escobar (2018), o corpo é visto a partir dessa dimensão do
ser das mulheres indígenas e que dependem do território
para a sua própria existência. O corpo-território (e não po-
demos esquecer nesse processo do território como “corpo da
terra” proposta por Cabnal, 2010), que implica em relações
de resistência, se deve porque ele é construído como reação
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

de defesa às ameaças do poder da economia neoextrativista


espoliadora e do patriarcado de alta intensidade.
diálogos interdisciplinares

Lutas das mulheres indígenas contra o patriarcado de alta


intensidade e a violência em áreas de fronteira
O feminismo crítico na América do Sul tem um debate
sobre a existência do patriarcado nas sociedades originárias
antes da presença da colonização. Segundo a antropóloga e
feminista argentina Rita Segato (2016) a maior parte das so-
ciedades indígenas desta região eram patriarcais, não existia
a igualdade de gênero, existiam níveis de desigualdade, mas
eles configuravam um patriarcado de baixa intensidade em
que as mulheres tinham certo empoderamento e participa-
ção no espaço público.
Para Segato (2016) a colonização europeia rompeu
essa baixa intensidade do patriarcado. Uma das mudanças
que a colonização fez em diversos povos originários foi
transformam os homens indígenas nos principais interlocu-
tores com o colonizador. Esse diálogo entre masculinidades
resultou em uma violência contra as mulheres indígenas e na
destruição dos espaços políticos possíveis e das economias

19
dentro do espaço doméstico que era muito importante para
as sociedades nativas.
Assim, segundo Segato (2016), houve uma passagem
de um patriarcado de baixa intensidade para um patriarcado
de alta intensidade na América Latina. Em algumas regiões,
como na fronteira do Brasil com o Paraguai, devido às
violências e violações de direitos humanos que as mulheres
indígenas sofrem em um contexto geo-histórico da economia
do agronegócio corporativo, o patriarcado se transformou,
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

poderíamos afirmar, de ultraintensidade nas últimas


diálogos interdisciplinares

décadas, especialmente, com o governo bio/necropolítico


(FOUCAULT, 2004; MBEMBE, 2011) do agronegócio (MON-
DARDO, 2019b).
Atualmente, estamos vendo uma série de expropria-
ções de terras/territórios e de exploração da mão de obra
laboral do Sul global, expondo as mulheres indígenas à
exploração de gênero, de feminização da sobrevivência em
setores informais e formais, com altos padrões de exploração,
com mais horas de trabalho, precarização das relações de
trabalho e preconceito, sofrendo preconceitos étnico-raciais.
Por isso, o corpo-território, orientado pela ancestralidade de
cada povo, é construído como reação de defesa a essas di-
versas ameaças, acrescida à pandemia do COVID-19, em um
contexto de “acentuação da violência” (GUAJAJARA, 2020) e
de “acumulação neoliberal por espoliação” (HARVEY, 2004).
Diante deste contexto, as mulheres indígenas se
empoderam com o protagonismo comunitário. Quando
observamos as mulheres em organizações/conselhos de luta
por direitos indígenas na América Latina, é possível identi-
ficar que a maior parte destas organizações/movimentos é

20
liderada por mulheres. As organizações religiosas, políticas,
por defesa de direitos territoriais e humanos tem na maioria
delas um protagonismo de mulheres indígenas.
Atualmente, as mulheres indígenas brasileiras exer-
cem um protagonismo político na maneira como organizam
as comunidades, seja em ações contextualizadas em territó-
rios originários como também fora deles, tendo em vista a
atuação em escala nacional e até internacional das lideran-
ças. Vale mencionar, como exemplo, a Articulação dos Povos
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Indígenas do Brasil (Associação Nacional de entidades que


diálogos interdisciplinares

representam os povos indígenas do Brasil), e a Kuñangue Aty


Guasu (Grande Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá
no Mato Grosso do Sul), ambas lideradas por mulheres.
As mulheres indígenas também são protagonistas
das economias populares, em coatividades vinculadas à
agroecologia. Essas atividades têm impacto nas famílias e no
fortalecimento de bases locais para a alimentação dos povos
em seus territórios tradicionais que foram tão afetados pela
pandemia do COVID-19. Com isso, as mulheres indígenas
abrem um leque de possibilidades, de cuidado com a co-
munidade e de proteção/defesa do corpo-território, que já
estavam planteadas por elas desde as lógicas ancestrais, mas
que são atualizadas, em cada contexto geo-histórico, desde
as lutas que travam/enfrentam na contemporaneidade.
No entanto, é importante destacar algumas especifi-
cidades sobre esse processo, em que ressaltamos as relações
das mulheres indígenas em regiões de fronteira internacio-
nal, com outras lógicas de territorialidade e vínculos com as
comunidades. Em áreas de fronteira marcadas pela presença
do agronegócio e do patriarcado de alta intensidade, a mu-

21
lher indígena sempre vai sofrer mais com o colonialismo ra-
cista/etnicista, enquanto identidade subalterna e periférica.
É importante lembrar que esse colonialismo ocorre porque
o componente masculino é aquele do diálogo com o poder
hegemônico, de cima para baixo. Esse poder é colonial,
moderno e androcêntrico, e isso reforça o patriarcado e o
colonialismo nessas áreas de fronteira. Enquanto minorias
indígenas, as mulheres indígenas são minorias internas, são
os Outros internos.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, o que temos


diálogos interdisciplinares

observado é que a condição de etnicidade, seja de mulheres


indígenas Guarani em contextos urbanos e rurais, aumenta
a possibilidade de exposição à vulnerabilidade e à violência.
Geralmente, nessa fronteira, existem áreas com processos
de desterritorialização/vulneração/exclusão dos povos ori-
ginários, e na experiência de luta das mulheres reverberam
em um maior percentual de violências sofridas. Quando
comparamos, nesta fronteira, por exemplo, as mulheres de
nacionalidades indígenas e não indígenas, observamos que
a indígenas sofrem mais violência de gênero, são mais ex-
ploradas no mercado de trabalho (formal e informal), estão
mais expostas (ou são mais perseguidas) pelas autoridades
fiscalizadoras transfronteiriças, sofrem mais com o monitora-
mento policial porque, em grande medida, são identificadas
pelo fenótipo. Essa identificação, racista e etnicista, constrói
o Outro (a mulher indígena) como a territorialidade menos
desejada ainda nas áreas de fronteira.
De forma geral, os povos indígenas são construídos
no Brasil como uma alteridade negada, não desejando esse
Outro enquanto diferente etnicamente/culturalmente na so-

22
ciedade nacional, e quando se trata de uma mulher indígena,
aumenta ainda mais esse nível de negação da alteridade. Por
isso, quando essa mulher carrega elementos do fenótipo que
a associa a uma condição indígena, isso é ainda mais violento
simbólica e concretamente.
Assim, as violências que as mulheres sofrem são
mais fortes, ao mesmo tempo em que a condição indígena se
relaciona com o pouco acesso que elas tiveram (ou a dificul-
dade de acesso que tiveram) a certos elementos que poderia
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

empoderar ou ajudar na luta contra as diversas formas de


diálogos interdisciplinares

violência. Essas mulheres indígenas têm menor acesso à


educação formal do que as mulheres não indígenas, tendo
maior índice de violência de gênero.
Na fronteira do Brasil com o Paraguai, por exemplo,
no estado do Mato Grosso do Sul, em muitas famílias estão
presentes a violência de gênero, notadamente na aldeia
Bororó, que pertence a Reserva Indígena do município de
Dourados. Nessa reserva existem altos índices de violência e
muitos casos estão associados à violência pela condição de ser
mulher indígena. Por isso, é possível afirmar que existe uma
correlação de ser indígena, da privação de certos dispositivos
que empoderariam essas mulheres contra as diversas formas
de violências que sofrem, além da privação de determinados
direitos básicos do Estado, como, por exemplo, a constatação
de que algumas mulheres indígenas Guarani em áreas rurais
nos municípios brasileiros de Caarapó e Amambai, e do
município de Ipehum no Paraguai, não tinham documentos,
como a Carteira de Identidade, a Certidão de Nascimento e
a Carteira de Trabalho.

23
Considerações finais

Neste texto discutimos que, referindo-se às mulheres


indígenas latino-americanas, não há dúvida de que as amea-
ças fundamentais ou mesmo fundantes que enfrentam, foram
e são aquelas que se dirigem à própria vida, que colocam
em xeque sua própria existência. As violências e violações
de direitos humanos têm um longo histórico de ameaças à
existência desses corpos.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Lutar por corpo-território, na América Latina, é


sempre lutar por existir. E existir, em primeiro lugar, leva
diálogos interdisciplinares

em conta defender o território contra a violência de gênero,


contra a violência doméstica, contra as vulnerabilidades na
exploração do trabalho, contra a espoliação da terra, contra
a desterritorialização do território de ocupação tradicional,
dentre outros.
O corpo constitui-se, então, como uma dimensão
importante desse território. Cada mulher indígena carrega
a luta e a resistência para defender o seu corpo-território. A
r-existência das mulheres indígenas começa e termina por
meio do próprio corpo, fundamento primeiro de existência e
também da r-existência do ser.
A condição de ser mulher indígena implica reconhecer
as interseccionalidades dos fatores. As categorias de identida-
des movem as mulheres indígenas para quadros distintos de
violência. Assim, é possível afirmar que as mulheres indíge-
nas estão mais expostas às vulnerabilidades, às violências e
violações de direitos humanos do que outras mulheres.
A geógrafa equatoriana Sofia Zaragocin (2018),
citada na abertura desse texto, desdobra esse pensamento
do corpo-território e propõe uma geopolítica do útero. A

24
geopolítica do útero e o útero como território. Ver o útero
como território carrega um potencial para ser acionado pelas
mulheres para criar territorialidades. Segundo a autora,
mulheres indígenas propõe o útero como trincheira, desde
o qual confrontam a morte coletiva, uma amplitude do con-
ceito de território importante para pensar e dar visibilidade
às resistências e a própria vida. É fundamental reconhecer,
assim, que nas lutas contra as vulnerações, violências e
violações de direitos humanos, as mulheres indígenas per-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

sistem como possibilidades concretas em suas r-existências


diálogos interdisciplinares

de transformação do futuro.

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26
Violência doméstica e intrafamiliar
contra a mulher na fronteira Brasil-
Paraguai-Bolívia em tempos de pandemia

Pamela Staliano
Júlia Carmo de Paula
Allana Isabella Souza

Introdução

O estado de Mato Grosso do Sul está localizado no


arco central com conexão fronteiriça Brasil-Paraguai-Bolívia
(BRASIL, 2009). Abriga um total de cinco cidades gêmeas,
dentre elas, Corumbá é a única que faz conurbação com
município boliviano. Além disso, possui um conjunto de sete
municípios que são identificados como linha de fronteira e
32 municípios estão inseridos no limite de 150 km da faixa
de fronteira (BRASIL, 2020).
No que se refere ao território fronteiriço, é preciso
também esclarecer sua diferença com outras partes do ter-
ritório nacional. As interações diárias entre os dois países,
como o fluxo de indivíduos e de produtos podem acarretar
tanto impactos positivos quanto negativos. Carniel, Carneiro
e Preussler (2018) ao analisarem especificamente a fronteira
Brasil-Paraguai, argumentam que é possível identificar
ações de grupos criminosos que moldam as relações sociais
e a economia de ambos os países.

27
As dinâmicas ilícitas estão diretamente ligadas ao
aumento da violência. Visto que a localização geográfica
sul matogrossense acaba beneficiando as práticas ilegais,
pois grande parte das rotas do comércio proibido ocorre por
rodovias que conectam o estado do Mato Grosso do Sul aos
principais portos e aeroportos das metrópoles brasileiras
(NUNES, 2017). Em consonância, os autores Carniel, Car-
neiro e Preussler (2018) afirmam que a criminalidade seria o
reflexo do desemprego e da pobreza, em que as organizações
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

criminosas se beneficiam da vulnerabilidade social para


diálogos interdisciplinares

atrair as pessoas ao crime.


Entretanto, o objetivo do presente texto não consiste
em reforçar os estigmas que a mídia brasileira negativamente
dissemina sobre os problemas relacionados ao narcotráfico e
ao contrabando na fronteira, mas sim, compreender como
essa realidade repercute no aumento da violência contra a
mulher. Neste sentido, entende-se fronteira como “o lugar
da descoberta do Outro, do encontro, do conflito e do de-
sencontro de territorialidades, de visões de mundo que a
tornam o limite do humano” (MONDARDO, 2012, p. 56).
De acordo com Figueiredo (2015), nos últimos vinte
e cinco anos, a realidade da fronteira brasileira vem sendo
transformada, reconhecida atualmente como um espaço de
desenvolvimento estratégico. Decorrente do avanço tecnoló-
gico, o fenômeno de globalização e os acordos entre os países
em blocos regionais que promovem políticas de integração
econômica, permitindo o livre comércio e a circulação das
pessoas. Dessa forma, os processos de hibridizações e trans-
culturações se fazem presentes nas relações desenvolvidas
no Mato Grosso do Sul com o Paraguai e a Bolívia, consti-

28
tuindo-se uma identidade “transfronteiriça” caracterizada,
por exemplo, pelo movimento de migração dos paraguaios
à região, que ao se reterritorializar no Brasil, trazem consigo
elementos de sua cultura que, por fim, se incorporam ao
atual território, resultando em uma mescla e troca cultural
(MONDARDO, 2013).
A violência contra a mulher é reflexo da sociedade
patriarcal que, por séculos, mantiveram legitimadas e insti-
tucionalizadas práticas de subjugação da mulher em esferas
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

sociais e políticas por meio de estigmas culturais (CAMPOS,


2010). Em analogia, Mondardo (2013), discorre sobre tensões
diálogos interdisciplinares

e preconceitos que os paraguaios sofriam no processo de


migração ao Brasil, ao lidar com representações pejorativas
como “desconfiança”, “indolência” e de “ser traiçoeiro”,
além disso, as mulheres paraguaias sofriam com represen-
tações da “prostituição”, dessa forma, tais estigmas podem
corroborar com a perpetuação da violência como um todo,
especialmente, a violência contra a mulher.
Este é um problema interseccional, ou seja, com-
posto por elementos culturais, de raça, gênero e classe.
Elementos do território, bem como, o momento histórico
influenciam e moldam os fenômenos estudados, neste caso
em específico, a violência contra a mulher, como qualquer
outro tipo de violência.
Carneiro e Fraga (2012) entendem que a violência de
gênero e intrafamiliar são heranças geracionais configuradas
por modelos patriarcais. Schraiber (2003, p. 2) interpreta
características da violência doméstica e familiar, tais como as
agressões físicas e psicológicas, como resquícios dessa cultura
que entendeu punições corporais e/ou humilhações morais
como “recursos de socialização e práticas educativas”.

29
Saffioti (2001) compreende a violência de gênero
como resultado da relação de dominação-exploração. Sobre
a ótica do patriarcado, o homem enquanto patriarca tem
o poder de controle sobre as mulheres e os filhos, e recebe
a autorização ou a tolerância da sociedade para castigar,
quando os dominados agem em desacordo com a vontade
do dominador. Muitas vezes a ideologia de gênero não é
suficiente para controlar sendo necessário o uso da violência
como controle.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

No Brasil, esse tipo de violência foi respaldado pelo


diálogos interdisciplinares

Estado até a publicação da Constituição Federal de 1988, cujo


artigo 5º, inciso I, prevê o direito à igualdade entre homens e
mulheres (BRASIL, 1988).
Ainda que a igualdade de gênero estivesse na Cons-
tituição, na prática, a violência doméstica e intrafamiliar
ainda denunciavam a desigualdade e a violação dos direitos
das mulheres. Diante dessa realidade, continuaram a surgir
dispositivos legislativos em favor da mulher, entre eles a
Lei 11.340/2006, ou Lei Maria da Penha, cujo artigo 5º deter-
mina que violência doméstica e familiar contra a mulher é
“qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano
moral ou patrimonial” (BRASIL, 2006).
A Lei Maria da Penha, artigo 7º postula que são for-
mas de violência doméstica e familiar contra a mulher:

I. a violência física, entendida como qual-


quer conduta que ofenda sua integrida-
de ou saúde corporal;
II. a violência psicológica, entendida como
qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da autoestima

30
ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar
ou controlar suas ações, comportamen-
tos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipula-
ção, isolamento, vigilância constante, per-
seguição contumaz, insulto, chantagem,
violação de sua intimidade, ridiculariza-
ção, exploração e limitação do direito de
ir e vir ou qualquer outro meio que lhe
cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação; (Redação dada pela
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Lei nº 13.772, de 2018)


diálogos interdisciplinares

III. a violência sexual, entendida como


qualquer conduta que a constranja a
presenciar, a manter ou a participar de
relação sexual não desejada, mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da
força; que a induza a comercializar ou a
utilizar, de qualquer modo, a sua sexu-
alidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force
ao matrimônio, à gravidez, ao aborto
ou à prostituição, mediante coação,
chantagem, suborno ou manipulação; ou
que limite ou anule o exercício de seus
direitos sexuais e reprodutivos;
IV. a violência patrimonial, entendida
como qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial
ou total de seus objetos, instrumentos
de trabalho, documentos pessoais,
bens, valores e direitos ou recursos
econômicos, incluindo os destinados a
satisfazer suas necessidades;
V. a violência moral, entendida como
qualquer conduta que configure calúnia,
difamação ou injúria. (BRASIL, 2006).

31
Na Bolívia há também amparo legislativo no combate
à violência contra a mulher, Lei nº 348/2013, prevê ações de
divulgação da legislação e redes de atendimento especializa-
do à mulher. Enquanto no Paraguai Lei Contra a Violência
Doméstica (Lei nº 1600/2000), tem como objetivo promover
a segurança possibilitando a solicitação de medida proteti-
va de urgência e responsabiliza o Estado na promoção de
políticas públicas de prevenção à violência contra a mulher
(FIGUEIREDO, 2015).
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

De acordo com o levantamento do Instituto de Pes-


diálogos interdisciplinares

quisa Econômica Aplicada (2020), no ano de 2018 o percen-


tual de homicídios por gênero, constatou uma taxa de 4,3
mulheres assassinadas entre um grupo de 100 mil mulheres,
ou seja, a cada 120 minutos uma mulher sofre homicídio no
Brasil. E ao analisar especificamente as mortes cometidas em
residências, o percentual de feminicídio é 2,7 maior do que a
violência contra homens.
Perante a declaração de pandemia do novo coronaví-
rus (SARS-CoV-2), causador da doença COVID-19, feita pela
Organização Mundial da Saúde (OMS), os países do mundo
inteiro precisaram organizar estratégias de combate e preven-
ção à transmissão comunitária do vírus, principalmente por
meio de medidas de contenção social, essenciais para “conter
o aumento exponencial dos casos da doença e a sobrecarga no
serviço de saúde” (MARQUES et al., 2020, p.1).
No Brasil, o debate sobre os efeitos negativos de tais
recomendações sobre a economia e a vida em sociedade
tornou-se intenso. Diante das incertezas sobre quais medi-
das seriam ou não tomadas, e a irrisória política pública de
suporte financeiro às populações vulneráveis, uma parcela

32
considerável da nação brasileira manteve sua rotina de tra-
balho, muitas vezes informal, impedida de beneficiar-se do
distanciamento social (MARQUES et al., 2020).
Vieira, Garcia e Maciel (2020) e Marques et al. (2020)
se preocupam com as repercussões das medidas preventivas
ao COVID-19 nas relações interpessoais e com os fatores que
ampliam a vulnerabilidade de mulheres à violência domés-
tica. Na realidade de muitas mulheres brasileiras, elas repre-
sentam o aumento do trabalho doméstico não remunerado
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

e a perda e/ou dificuldade de acesso a serviços públicos e a


diálogos interdisciplinares

instituições participantes da rede de apoio, como as igrejas,


por exemplo. Além disso, as restrições de deslocamento e
de movimentação financeira concedem ao agressor poder e
controle adicionais sobre a vítima.
Segundo o documento intitulado “Violência Do-
méstica durante a Pandemia de Covid-19”, publicado pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), entre março
e abril de 2020 os casos de feminicídio aumentaram 22,2%,
em 12 estados do país, comparado ao mesmo período do ano
anterior. Também foi registrado o aumento de denúncias fei-
tas por telefone que, em abril - mês em que todos os estados
brasileiros decretaram quarentena - cresceu 37,6% (FBSP,
2020a; FBSP, 2020b).
Considerando o aumento dos casos noticiados e regis-
trados de violência contra a mulher no período da pandemia
do COVID-19, procurou-se caracterizar, por meio de reporta-
gens de jornais on-line, a violência sofrida por mulheres em
região de fronteira brasileira, bem como, analisar o perfil dos
crimes de violência de gênero noticiados na fronteira estabele-
cendo a relação do caso com o momento da pandemia.

33
Método

Realizou-se uma pesquisa qualitativa de análise


documental das reportagens veiculadas em jornais on-line
de maior circulação local e regional. Este tipo de pesquisa
oferece ao pesquisador o contato indireto com o fenômeno
estudado, favorecendo, dessa forma, a inferência sobre o
modo de ser, viver e compreender um fato social (CECHI-
NEL et al., 2016).
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

O levantamento foi empreendido em 37 jornais digi-


tais do estado do Mato Grosso do Sul, por meio dos descrito-
diálogos interdisciplinares

res: “mulher”, “marido”, “violência doméstica”, “violência


contra mulher”, “estupro” e “feminicídio”. Dentre os sites,
apenas 24, apresentaram notícias relacionadas ao tema, per-
fazendo um total de 145 reportagens, publicadas no período
de 11 de março a 11 de agosto de 2020, os cinco primeiros
meses da pandemia imposta pelo Coronavírus. Quanto aos
critérios de exclusão, foram descartadas reportagens que
apresentassem: casos ocorridos em cidades fora da faixa de
fronteira do estado e casos e/ou notícias repetidas.
Para o tratamento dos dados foi utilizada a técnica
da análise de conteúdo temática proposta por Bardin (2004),
que inicia com a leitura flutuante e preparação do material,
seguido da categorização, descrição e interpretação. Assim, as
notícias foram agrupadas em duas categorias temáticas: casos
concretos de violência contra a mulher e reportagens informa-
tivas sobre violência contra a mulher. A primeira caracteriza-se
pelo conteúdo descritivo das ocorrências policiais relacionada
à violência perpetrada contra a mulher. Já a segunda caracte-
riza-se pelo caráter informativo sobre o aumento dos casos de
violência doméstica no estado durante pandemia.

34
Para este texto, realizou-se a discussão apenas da
primeira categoria, sobre os casos concretos, uma vez que,
estes oportunizam realizar a caracterização dos casos de vio-
lência doméstica perpetrados contra as mulheres em região
de fronteira.

Resultados e Discussão

A partir das buscas realizadas ao longo dos cinco pri-


meiros meses da pandemia foram encontradas 106 notícias de
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

casos concretos, representando 73% da amostra total. Dentre


diálogos interdisciplinares

as 44 cidades que fazem parte da zona de fronteira no Mato


Grosso do Sul, 29 tiveram casos notificados pela mídia. Entre
elas, destaca-se: Dourados com 14, Aquidauana e Bonito, am-
bas com 11, Ponta Porã com 9 e Corumbá com 8 reportagens.
O Gráfico 1 representa a distribuição dos casos ao
longo dos cinco meses do levantamento.

Gráfico 1: Relação do número de casos de violência contra a mulher,


noticiados nos cinco primeiros meses da pandemia
Fonte: dados da pesquisa

35
Como é possível observar no Gráfico 1, houve um
aumento significativo de reportagens no quarto e quinto
mês do período analisado, representando 56% do total
dos casos. Entretanto, este resultado não é compatível com
outros dados estatísticos desse período. Este dado chama
atenção, uma vez que, dados divulgados pelo FBSP (2020a,
2020b) revelam diminuição paulatina no número de denún-
cia dos casos de violência doméstica ao longo dos meses
desde o início do isolamento imposto pela pandemia. Este
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

dado pode evidenciar as inúmeras dificuldades que as


diálogos interdisciplinares

mulheres encontram para denunciar violência(s) neste pe-


ríodo, uma vez que o mesmo documento indica o aumento
dos casos de violência letal, como consequência de uma
série de agressões sofridas.
Marques et al. (2020) pontuam que o convívio forçado
com o agressor implica na redução de oportunidades e segu-
rança para denunciar. Nesse cenário, a presença de estressores
como medo de adoecer e a iminência de redução de renda, por
exemplo, podem contribuir para o agravamento da violência.
A sobrecarga feminina de tarefas domésticas e de cuidado
familiar diminui a capacidade de evitar conflitos e aumenta
a vulnerabilidade à violência psicológica e coerção sexual.
Todos esses riscos se agravam quando somados à propensão
ao maior consumo de álcool e outras drogas psicoativas.
Assim, é possível considerar a hipótese de que a
redução do acesso a canais de denúncia leva à subnotifica-
ção e à procura da força policial nos episódios de agressão,
mais comumente noticiados pela mídia, refletindo no cres-
cimento dos números de notícias relacionadas à violência
contra a mulher.

36
Para ilustrar os resultados encontrados, foram sele-
cionadas algumas notícias que descrevem tanto o momento
da pandemia quanto a ingestão de álcool ou outras subs-
tâncias psicoativas como motivadores de agressões contra
as mulheres:

“[...] Ela relatou à polícia que aconselhou o marido a não atender uma
mulher que procurava bebidas às 02h30, em razão do decreto proíbe o
funcionamento do comércio após às 20h. Entretanto o marido não deu
ouvidos à esposa e disse, “eu tenho que trabalhar” e começou agredi-la
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

fisicamente ocasionando lesão corporal em seus lábios, seios e dedos.


A mulher relatou que há meses o relacionamento com o marido vem
diálogos interdisciplinares

sendo conturbado por discussões graves e cogitações de divórcio.”


(MídiaMax, 2020, Dourados).
“[...] A mulher contou que estava na frente de casa e o marido na casa
do vizinho, ingerindo bebidas alcoólicas. O homem teria chamado a
companheira para ir até a casa do vizinho, mas ela não quis porque
estava com frio. A vítima contou que após a chegada de outra mulher
na casa do vizinho, o marido teria comentado que ela estava com
ciúme, momento em que puxou o cabelo e deu um tapa no rosto da
companheira, ordenando que entrasse em casa. A mulher então, tentou
ligar para a polícia, mas o marido pegou o celular dela. “Não adianta
você ligar na delegacia, está na época de pandemia e eu não vou ser
preso” (MídiaMax, 2020, Corumbá).
“[...] mulher estava em casa com os filhos pequenos quando o marido
chegou, por volta das 11 horas, embriagado. Ele começou a agredir
a mulher com socos e pauladas, a levou para fora da residência e
continuou agredindo a vítima. A mulher tentou se defender, falou
para eles conversarem, mas o rapaz alegou que tinha colocado alguém
para seguir a mulher e que ela estava traindo ele. A vítima negou os
fatos, mas foi trancada dentro da própria casa com os filhos e o marido
saiu. Ela conseguiu fazer um buraco na parede da casa, que é feita de
madeira de coqueiros, e fugiu para a casa de uma familiar” (MídiaMax,
2020, Eldorado).
Quadro 1: Exemplo de casos que relacionam a pandemia e o uso de álcool
ou outras substâncias como motivadores da violência contra a mulher
Fonte: dados da pesquisa.

37
Na análise de incidências por mês e localidade, três
municípios tiveram percentuais elevados nos dois últimos
meses. Dourados, Ponta Porã e Corumbá registraram um
aumento de, respectivamente, 71,4%, 88,9% e 75% dos casos
noticiados, como é possível observar no Gráfico 2:
violência, gênero, saúde e fronteira(s)
diálogos interdisciplinares

Gráfico 2: Número de casos ao longo dos cinco primeiros meses de


isolamento nas cidades de Dourados, Ponta Porã e Corumbá
Fonte: dados da pesquisa.

Ponta Porã e Corumbá são duas cidades-gêmeas de


fronteira seca. A primeira faz divisa com a cidade paraguaia
Pedro Juan Caballero, enquanto a segunda faz divisa com
Puerto Quijarro e Puerto Suárez, na Bolívia. A configuração
de famílias binacionais - quando um cônjuge é estrangeiro
- é característica desses municípios. Dessa forma, é comum
que mulheres bolivianas e paraguaias residam e/ou traba-
lhem no Brasil e que brasileiras residam e/ou trabalhem no
Paraguai ou na Bolívia. A condição de estrangeira pode ser
um acréscimo à vulnerabilidade e à violência doméstica

38
pela crença de que a mulher não teria direito a nada (guar-
da de filhos, posse e partilha de bens comuns, permanência
em emprego, entre outros), dificultando a busca por ajuda
(FIGUEIREDO, 2015).
Figueiredo (2015, p. 271) aponta que “a alternância
de domicílio, seja da mulher, do autor do fato delituoso ou
de testemunhas, dificulta a instrução tanto dos procedimen-
tos policiais quanto dos processos judiciais”. Esta é outra
característica de cidades gêmeas, pois pessoas que residem
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

em tanto em um país quanto no outro, cruzam a fronteira


diálogos interdisciplinares

por questões familiares e econômicas, como por exemplo,


oportunidades de emprego e condições de vida mais bara-
tas. Essas especificidades contribuem para a perpetuação da
violência doméstica na fronteira.
No final de março e começo de abril de 2020 foram
fechadas as fronteiras terrestres do Brasil. Considerando o
exposto acima, o aumento dos casos noticiados nos últimos
meses talvez possa se justificar pela proibição do cruzamento
do limite internacional, limitando ainda mais as possibilida-
des de mulheres em situação de violência, que além de esta-
rem confinadas com o agressor, perderam a possibilidade de
frequentar outros espaços sociais, contato com a família e,
até mesmo, seu emprego.
Das reportagens analisadas, 50% informam que
agressor e vítima mantinham algum status de relaciona-
mento amoroso; 25% das agressões foram cometidas por
ex-companheiros; 11% reportam violência cometida por
agressores de parentesco natural ou por afinidade com a ví-
tima; 8% dos casos reportam agressões de vizinhos, colegas
de trabalho, conhecidos ou não especificam a relação entre

39
vítima e agressor; por fim, os 7% restantes representam os
casos cuja vítima desconhecia o agressor, como se pode
observar no Gráfico 3.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)
diálogos interdisciplinares

*Conhecidos, vizinhos, relação de trabalho e não especificados


Gráfico 3: Relação entre agressor e vítima
Fonte: dados da pesquisa

Aqui cabe refletir sobre os motivos pelos quais as


vítimas permanecem em relacionamentos violentos ao
invés de abandonar seus agressores após as primeiras
agressões e como a vida na fronteira interfere nessa de-
cisão. Taborda (2012) elenca quatro fatores determinantes
nestes casos: fator histórico-cultural de submissão da mu-
lher pelo homem, dependência econômica, dependência
afetiva e a violência psicológica.
Na fronteira, o fator histórico-cultural é especial-
mente complexo visto que os aspectos culturais dos países
limítrofes se mesclam, sobrepondo suas legislações, que
se mostram limitadas. Para Preussler e Corrêa (2018) a Lei

40
Maria da Penha foi um avanço necessário, mas ainda in-
suficiente para atingir seu intento de erradicar a violência
doméstica. Do outro lado da fronteira, Paraguai e Bolívia
também contam com legislações específicas para tratar
violência de gênero sendo elas, respectivamente, a Lei n.
1.600/2000 e a Lei n. 348/2013. Entretanto, ainda é necessário
avançar na articulação de ações binacionais que contemplem
a realidade da fronteira. Neste aspecto o Paraguai dialoga
mais com a rede de atendimento à mulher do Brasil, uma
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

vez que já propôs a criação de um comitê binacional para o


diálogos interdisciplinares

enfrentamento da violência contra a mulher, o que ainda não


ocorreu em Corumbá (FIGUEIREDO, 2015).
Figueiredo (2015) exemplifica o desafio de romper
padrões culturais destacando uma experiência vivida por
profissionais da rede boliviana de atendimento à mulher.
Na ocasião, uma senhora se indignava com a prisão do filho
após a denúncia de violência doméstica realizada pela nora,
argumentando que “ela (sogra) havia convivido com o ma-
rido “sem reclamar” por mais de trinta anos, como se isso
fosse uma virtude sua e a busca pela rede de atendimento
uma fraqueza da nora” (p. 273).
Para Saffioti (2001), a dominação masculina sobre o
feminino implica na violência simbólica, uma presença forte
na construção da subjetividade de corpos oprimidos. Esse
tipo de violência alicerça-se na naturalização da submissão
ao dominador, ou seja, o sujeito dominado não questiona
essa hierarquia. Essa lógica transpassa o nível individual
dos relacionamentos interpessoais e se replica por meio da
cultura do patriarcado, tornando-se um problema estrutural.

41
Neste sentido, os homens estão, permanente-
mente, autorizados a realizar seu projeto de
dominação-exploração das mulheres, mesmo
que, para isto, precisem utilizar-se de sua for-
ça física. Pode-se considerar este fato como
uma contradição entre a permissão para a
prática privada da justiça e a consideração
de qualquer tipo de violência como crime.
(SAFFIOTI, 2001, p.121).

Nos casos em que vítima e agressor mantinham


violência, gênero, saúde e fronteira(s)

relacionamento estável (casados, namorados ou conviven-


diálogos interdisciplinares

tes), 26% não informaram o que teria motivado a violência.


Contudo, 60% mencionaram discussão conjugal, ciúmes
e/ou sentimento de posse do agressor para com a vítima.
Desses, 13% cometeram a violência após a mulher tentar
pôr fim ao relacionamento.
Enquanto, nos casos em que o agressor era um ex-
-companheiro da vítima (ex-marido ou ex-namorado) 54%
não informaram o motivo da agressão e 46% mencionaram
inconformismo com o fim do relacionamento, ciúmes e/ou
sentimento de posse do agressor para com a vítima.
Essa pesquisa buscou analisar também os tipos de
violência cometidos contra mulheres, de acordo com a Lei
Maria da Penha, como essas (violências) se relacionam com os
crimes, e uma investigação quantitativa dos objetos utilizados
nos casos de violência física. Para isso, em um primeiro mo-
mento, o total de caso foi classificado entre violência isolada e
violências combinadas a partir da descrição dos fatos.
Em relação à violência isolada, totalizou-se 71,5% dos
casos. E foram classificados em tipos de violências, detalha-
dos na Tabela 1.

42
Tabela 1: Tipo de violência descrita de forma isolada nas reportagens
Tipo de violência N %
Violência física 47 60
Violência psicológica 16 20
Violência moral 4 5
Violência sexual 12 15
Total 79 100
Fonte: dados da pesquisa
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Dos 47 casos de violência física, 59,5% dos crimes


diálogos interdisciplinares

foram lesões corporais, 15% foram tentativas de feminicídio,


8,5% feminicídios e 13% lesão corporal associada a outro
crime (cárcere privado, desacato à autoridade, furto, porte
ilegal de arma de fogo ou sequestro).
Nos casos de violência psicológica, 93% dos agresso-
res foram autuados por crime de ameaça, 6,5% por crime de
ameaça e furto, e 6,5% por crime de perseguição.
Todos os quatro casos de violência moral foram cri-
mes de injúria, com exceção de um, todos estavam associa-
dos a outros crimes (descumprimento de medida protetiva,
desacato à autoridade ou tráfico de drogas).
É importante destacar que tanto a violência psicoló-
gica quanto a violência moral são comumente subestimadas
no que se refere a sua gravidade. Ainda que seja difícil
generalizar um padrão evolucionário da dinâmica da vio-
lência doméstica, relacionamentos abusivos e/ou violentos
são tipicamente caracterizados por ciclos com três fases: a
primeira inicia a construção da tensão no relacionamento,
quando acontecem incidentes menores, como agressões

43
verbais, crises de ciúmes, ameaças, destruição de objeto e
violência psicológica, entre outros; na segunda, ocorrem os
incidentes mais graves, como espancamentos, estupros e
eventualmente feminicídios; logo, a terceira fase seria mar-
cada pelo arrependimento, juras de paixão e promessas de
regeneração. A última fase vem acompanhada da crença de
que o parceiro irá mudar seus comportamentos agressivos
e que as ameaças não foram reais, o que, infelizmente pode
levar a um fim trágico (SOARES, 2005).
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Por fim, nos casos de violência sexual, 66,5% caracteri-


diálogos interdisciplinares

zaram-se como crime de estupro de vulnerável, 16,5% foram


crimes de estupro, 8% tentativa de estupro, e também 8%
casos de abuso sexual. Visto que a maior parte das violências
sexuais noticiadas se referem a estrupo de vulnerável, fica
claro que crianças e adolescentes são terrivelmente afetados
pela violência doméstica e que a realidade de muitas me-
ninas não condiz com a ideia de “lar” como um ambiente
seguro. Segundo Saffioti (2001), a violência intrafamiliar se
refere aquelas que atingem membros da família nuclear ou
extensa, e ao se tratar de abuso sexual o trauma psicológico
pode ser agravado quando o agressor tem certo parentesco
com a vítima, em consonância, grande parte dos estupros e
tentativas analisadas, foi cometida pelo padrasto da vítima.
Em relação às violências combinadas, totalizaram-se 25,5%
dos casos, esquematizadas na Tabela 2.

44
Tabela 2: Tipo de violência descrita de forma combinada nas reportagens
Tipos de violências N %
Violência física e psicológica 15 55
Violência física e moral 5 19
Violência física e sexual 1 4
Violência física e patrimonial 1 4
Violência psicológica e sexual 1 4
Violência psicológica e moral 1 4
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Violência física, psicológica e moral 1 4


diálogos interdisciplinares

Violência física, psicológica e sexual 2 7


Total 27 100
Fonte: dados da pesquisa

Se tratando da violência física associada à psicológi-


ca, em 66,5% dos casos prevalecem os crimes de ameaça e
lesão corporal, 13% são crimes de ameaça e cárcere privado.
Enquanto os demais casos apresentaram três crimes cada,
sendo ameaça associada à lesão corporal e perseguição, esse
último varia entre porte ilegal de arma e cárcere privado.
No que se refere à tipologia de violência, Silva e Oli-
veira (2015) identificaram uma prevalência maior de estudos
envolvendo associação de violência física, psicológica e
sexual, mesmo que outras associações também sejam pro-
eminentes. Seus resultados revelam que relações violentas
podem se suceder de maneira transgeracional, de forma que,
durante os anos do relacionamento, as agressões verbais se
agravam progressivamente, passando para violências físicas
e/ou sexuais, podendo culminar em ameaça de morte e femi-
nicídio. As autoras destacam que diferentes tipos de abuso

45
podem coexistir em um relacionamento e que, mesmo quan-
do o ato violento não resulta em lesão física, o mesmo causa
danos psicológicos. Portanto, as consequências da violência
doméstica “não se limitam apenas a danos físicos imediatos,
mas também a efeitos em longo prazo, tais como depressão,
tentativas de suicídio, gravidez indesejada, dentre outros”
(p. 3.529).
É comum nestas reportagens em região de fronteira
a associação de crimes de violência com porte ilegal de
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

armas e tráfico de drogas, como é possível observar nas


diálogos interdisciplinares

seguintes manchetes:

Um homem de 32 anos foi preso no fim da


manhã desta sexta-feira (17/07) depois de
agredir a ex, de 30 anos, em Bela Vista. A
guarnição da polícia militar de Bela Vista re-
cebeu a denúncia pela central de atendimen-
to 190 sobre o caso de violência doméstica.
O homem ainda foi preso por posse irregular
de arma de fogo (O Pantaneiro);

Na tarde da quinta-feira (12/03), a guarnição


da Polícia Militar em Maracaju prendeu E.
A. F. (42) por violência doméstica e posse
irregular de arma de fogo. (Maracaju Speed);

Na tarde de segunda-feira (10/08), por volta


das 16h, policiais militares lotados no 3º Pelo-
tão de Polícia Militar de Mundo Novo, foram
acionados via telefone de emergência (190),
para atender uma ocorrência de violência
doméstica. Em vistoria, foram encontrados
42 (quarenta e dois) tabletes de maconha, to-
talizando 28,5Kg. Ao ser questionada sobre a
droga, a vítima alegou não ter conhecimento.
(Dourados News).

46
Este dado reforça o argumento apresentado por Nu-
nes (2017) de que as dinâmicas ilícitas estão diretamente liga-
das ao aumento da violência. Cabe ressaltar que a fronteira
em si não é uma das causas do alto índice de violência contra
mulher na região, mas sem dúvidas, as particularidades que
a permeiam influenciam na frequência e prevalência dessa
e de outras violências. Ou seja, Monteiro e Amaral (2016)
clarificam que o enfrentamento à violência contra a mulher
na fronteira impõem desafios específicos, considerando o
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

tráfico de drogas, de pessoas e a exploração sexual presentes


diálogos interdisciplinares

nesta região, além de dificuldades encontradas pela atuação


da rede de proteção que esbarra nos limites institucionais
impostos pela política pública dos países em transpor a
fronteira para o atendimento dos casos.

Considerações Finais

Diante do exposto, pode-se afirmar que a pandemia


da COVID-19 amplia e descortina as vulnerabilidades sociais
já existentes, neste caso, das mulheres em situação de violên-
cia doméstica no território fronteiriço. Como já mencionado,
as características socioeconômicas e culturais da fronteira,
por si só, corroboram com a violência doméstica, uma vez
que as dinâmicas culturais reforçam as ideologias do patriar-
cado. Por isso, diante da imposição de isolamento social das
vítimas com seus agressores, da insegurança generalizada e
da instabilidade econômica essa problemática se agrava.
Portanto, é de extrema importância a criação de
novas políticas públicas bem como, o desenvolvimento e
manutenção das já existentes, considerando a realidade do

47
estado do Mato Grosso do Sul e suas características frontei-
riças. Faz-se essencial o diálogo e articulação entre a justiça
e as redes de atendimento à mulher brasileira, paraguaia
e boliviana, para o aperfeiçoamento das medidas que con-
templem o acolhimento e cuidado das vítimas de violência
doméstica dessas nações.
No contexto de pandemia, o enfrentamento à vio-
lência contra a mulher deve ser intensificado por meio da
capacitação dos trabalhadores da saúde, da ampla divul-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

gação dos serviços disponíveis, do incentivo à expansão e


diálogos interdisciplinares

fortalecimento das redes de apoio e ampliação do número de


vagas nos abrigos para mulheres sobreviventes. Redes alter-
nativas de denúncia e suporte social devem ser encorajadas,
pois, além de ampliar as possibilidades de acesso à ajuda
da mulher também alerta os agressores de que, mesmo em
quarentena, as mulheres não estão completamente isoladas.
É notável que a imprensa apresente apenas um pe-
queno recorte da realidade, e não seria possível noticiar todos
os casos de violência contra mulher. Contudo, manchetes
sensacionalistas podem reforçar estereótipos de gênero e
naturalizar a violência. A mídia possui um papel importante
na conscientização da população, na formação de opinião e
na pressão por políticas públicas eficazes. Para que de fato,
possa contribuir e ampliar o debate sobre o tema, a imprensa
deve agir com responsabilidade social e respeito pela vítima
e/ou seus familiares, evitando expor detalhes pessoais e
divulgação de imagens que não agregam à denúncia para
informar à sociedade.

48
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violência, gênero, saúde e fronteira(s)
diálogos interdisciplinares

51
Exploração sexual na
fronteira de Mato Grosso do Sul:
espaço de tensões e potencialidades

Gabriela Pereira da Silva


Krisley Amorim de Araujo
Luciane Pinho de Almeida

Introdução

As fronteiras se apresentam essencialmente enquan-


to regiões de conflito, marcados por relações de alteridade
que constroem a identidade local. Além disso, também é
local de riquezas culturais e trocas. No entanto, no Brasil,
ainda perdura uma grande população em situação de
desigualdade social e vulnerabilidade, tendo assim seus
direitos negligenciados. O campo das desigualdades sociais
nos remete à reflexão de diversas questões, no que tange
às econômicas, educacionais, sociais, entre outras e ainda à
questão de gênero que implica situações complexas, dentre
estas a exploração sexual de crianças e mulheres, afetadas
por contextos desiguais e de direitos.
O presente capítulo tem como objetivo trabalhar a
questão da exploração sexual na fronteira do Mato Grosso
do Sul, buscando tecer uma reflexão a partir de questões de
gênero e procurando compreender fragilidades deste local.

52
Neste sentido, o desejo é que os governos locais implemen-
tem políticas públicas condizentes com a realidade local.
Para isso, a metodologia desta pesquisa foi consti-
tuída a partir de uma abordagem qualitativa, pois trabalha
com o universo dos sentidos e dos significados. Portanto,
opera-se com um nível da realidade não quantificável, um
conjunto de fenômenos humanos que não é visível, precisa
ser exposto e interpretado pelos próprios pesquisadores
(MINAYO, 2010). Neste sentido, foi realizado um estudo bi-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

bliográfico à respeito da temática, utilizando como descrito-


diálogos interdisciplinares

res “Fronteira”, “Mato Grosso do Sul” e “exploração sexual”


em bases de dados como Google Acadêmico e Scielo. Além
disso, foram utilizados documentos oficiais do Brasil e Mato
Grosso do Sul no que se refere à questão da exploração sexu-
al, sendo realizada uma análise documental dos mesmos. O
uso de documentos justifica-se por ser uma técnica decisiva
para as ciências humanas e sociais, analisando informações
objetivas que respondam à hipótese levantada pela pesquisa
(SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009).
Os dados foram analisados segundo a Teoria Sócio-
-Histórica da Psicologia, a qual tem como base o Materialis-
mo Histórico Dialético de Karl Marx, que pauta sua análise
na objetividade do mundo real e concreto. Esta perspectiva
tem por interesse conhecer a lógica de um objeto real e deter-
minado, de forma a reproduzir teoricamente sua estrutura
e dinâmica. Assim, parte-se do mundo material para que
sejam feitas considerações teóricas à respeito (NETTO, 2011).
Ao utilizar o método marxista, a Teoria Sócio-Históri-
ca pretende compreender o fenômeno psicológico a partir da
sua relação com o meio em que está inserido, considerando

53
não ser possível uma visão descolada da realidade e da his-
tória. Esta por sua vez é constituída a partir de movimentos
contraditórios do fazer humano, em uma relação dialética
em que o homem transforma o meio e a si mesmo (BOCK;
GONÇALVES; FURTADO, 2007).
Assim, o presente capítulo se estrutura a partir de
uma reflexão à respeito das regiões fronteiriças, seus signi-
ficados e formação identitária, procurando nos deter mais
especificamente na fronteira do Mato Grosso do Sul. Em
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

seguida, se tratará da questão da exploração sexual, suas


diálogos interdisciplinares

diferentes facetas e relação com as regiões fronteiriças do


estado citado, o qual faz divisa com o Paraguai e a Bolívia.
A partir disso as reflexões acerca da temática são tecidas no
decorrer do texto.

Regiões Fronteiriças: Dialéticas das Tensões e Potencialidades

As fronteiras, além de serem espaços em que se


delimitam territórios, são localidades marcadas por tensões,
conflitos, disputas e diferenças de saberes. O conflito faz com
que a fronteira seja um espaço de descoberta e desencontro
de temporalidades históricas. É um território com caracterís-
ticas advindas desde o período de ocupação e fronteiras com
o outro, frutos da relação de fronteira territorial (KLEINS-
CHMITT; AZEVEDO; CARDIN, 2013). A zona de fronteira é
constituída, portanto, através da relação com o outro, com o
diferente, em uma relação dialética, à medida, em que o su-
jeito se relaciona com quem vive do outro lado da fronteira,
constituí o outro e por ele é constituído.
Contraditoriamente, a fronteira vai além disso, se
expressa em características fundamentais como local de en-

54
contro, de potencialidades, de trocas e expressões culturais,
de integração entre dois lados, e por assim dizer pode então
se constituir espaços ricos de diálogo. Nesta dialética de
singularidades, a fronteira se faz num amplo e complexo das
dinâmicas sociais que este espaço apresenta.
Deste modo, a fronteira é vista com o elemento da
contradição no qual em um só tempo e um local de desco-
berta do outro e desencontros. Sujeitos que se constroem
mutuamente à um só tempo, territórios que se arranjam
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

através de sujeitos sociais em movimento (KLEINSCHMITT;


diálogos interdisciplinares

AZEVEDO; CARDIN, 2013), o espaço fronteiriço é um vir-


-a-ser. Ou seja, as fronteiras não são espaços estáticos, são
fenômenos sociais plurais e dinâmicos, locais em que há um
entrelaçamento dos povos no vai e vem de populações que se
intercruzam. Souza (2009) discorre sobre a relação entre os
povos localizados na fronteira:

São espaços nos quais o local e o internacio-


nal se articulam, estabelecendo vínculos e
dinâmicas próprias, construídas e reforçadas
pelos povos fronteiriços. Neles estão presentes
as identidades e as culturas nacionais de cada
um dos países envolvidos, que constroem,
reelaboram e constituem uma outra cultura
e identidade diferenciada, capaz de recriar
um novo lugar, com aspectos regionais. São
regiões que não “respeitam” as barreiras exis-
tentes, já que há ação e interação dos agentes
fronteiriços, estimulando dinâmicas fronteiri-
ças informais. (SOUZA, 2009, p. 106-107).

Regiões fronteiriças, portanto, se constituem na rela-


ção com outro, culturas e identidades ultrapassam os limites
formais de cada país, e se formam com uma dinâmica própria.

55
Diferenças como de padrão monetário, regime político, língua
nativa, religião, etnias, costumes, culinária, crenças são apenas
algumas diferenças que criam uma zona de tensão e formação
identitária da população que ali habita. A própria etimologia
da palavra fronteira afirma (SOUZA, 2009) que não há terri-
tório sem sujeitos que o instituam, assim, é através de sujeitos
sociais que o território se torna possível.
As regiões de fronteira, portanto, possuem uma
forma cultural própria, criada pelo contato de contingentes
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

populacionais vindos de uma localidade distinta. Sobre isso,


Boaventura de Souza Santos (1994 apud PEREIRA, 2009, p.
diálogos interdisciplinares

54) comenta que na contemporaneidade o “[...] regresso das


identidades, do multiculturalismo, da transnacionalização e
da localização parece oferecer oportunidades únicas a uma
forma cultural de fronteira precisamente porque esta se
alimenta dos fluxos constantes que a atravessam”.
É a partir de uma forma cultural de fronteira que a
identidade de cada divisa de municípios se torna única, com
suas características particulares resultantes da cultura de
cada lado da fronteira, formando uma identidade fronteiriça.
O olhar para o fronteiriço, no entanto, deve se dar
sem estigmatizações, visto que a ideia de que a fronteira
gera uma identidade negativa ainda é difundida. É comum
estes locais serem conhecidos a nível nacional como regiões
marcadas pela violência e contravenção, no entanto, nestas
localidades há um modus vivendi resultado de aspectos
históricos, sociais, econômicos, culturais, entre outros
(FERREIRA; SUTTANA, 2012). É nesse sentido que há a ne-
cessidade de investigações sobre esta problemática, contri-
buindo para uma concepção real de cada região fronteiriça,
com suas demandas sociais e potencialidades.

56
No Brasil, uma das principais características identi-
tárias da região de fronteira é a diferença para o restante do
país, isso porque é vista como um local distante e conside-
rado contraventor. O que a caracteriza é principalmente o
conflito social, olhando para a fronteira Brasil e Paraguai é
possível observar os processos que permeiam a construção
do ser e estar fronteiriço, com a presença de uma violência
simbólica e física, exploração econômica e conflitos durante
o processo de colonização, expansão e manutenção destas
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

terras (FERREIRA; SUTTANA, 2012).


diálogos interdisciplinares

Além de uma região identificada como palco da vio-


lência e contradições, também existe uma forte diversidade
sociocultural que identifica a fronteira a partir da absorção de
vários elementos culturais, gerando características próprias.
Pode-se, neste sentido, destacar que da fronteira do Paraguai
com Mato Grosso do Sul, por exemplo, incorpora usos e
costumes que mesclam raízes indígenas, paraguaias, gaúchas,
entre outras origens que conferem uma identidade própria
desta região de fronteira (FERREIRA; SUTTANA, 2012).
O estado do Mato Grosso do Sul está localizado
na fronteira com dois países latino-americanos, Paraguai
e Bolívia. A maior parte de sua divisa é considerada seca,
ou seja, os limites de cada país se dão por vias terrestres e
usualmente tem a presença de núcleos urbanos em ambos
os lados. Tal fato ocorre com menos frequência quando a
divisa é molhada, isto é, quando o limite de cada local é
dividido por rios. A extensão territorial de fronteira é de
1.365,4 km, sendo destes 928,5 km divisa por rios e 436,9
km de limites secos que totalizam sete municípios sul-ma-
to-grossenses ao longo da linha de fronteira, sendo eles

57
Bela Vista, Ponta Porã, Coronel Sapucaia, Mundo Novo,
Paranhos, Porto Murtinho e Corumbá, dentre os outros 44
municípios na região de fronteira.
Os municípios localizados em áreas fronteiriças
podem ser classificados a partir de três nomenclaturas, os
municípios de faixa de fronteira, aqueles dentro da faixa de
150 quilômetros da linha oficial de divisa, os municípios na
linha de fronteira, que estão próximos em poucos metros
das fronteiras, e os municípios fronteiriços, denominados de
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

cidades geminadas, são cidades que se desenvolveram nos


diálogos interdisciplinares

limites do país vizinho (PEREIRA, 2009).


Sobre as cidades geminadas em áreas secas, Pereira
(2009) comenta que a separação entre os países ocorre ape-
nas por uma “zona neutra”, isto é, a faixa pertencente aos
limites de cada um dos Estados que se encontram. No caso
do Mato Grosso do Sul, usualmente ocorre a livre circulação
de pessoas entre os lados da fronteira, bastando atravessar
uma rua, avenida ou rio, não possuem postos da alfândega
ou fiscalização e policiamento. Portanto, é uma região carac-
terizada por um fácil acesso de pessoas que podem ir e vir
de um país para o outro. Nas regiões fronteiriças do Mato
Grosso do Sul a livre circulação ocorre, entre outros motivos,
devido ao turismo com finalidades de compras ou visitação
de áreas naturais, caso do Pantanal.
Por outro lado, a região de fronteira também tem sido
palco nos quais favorece-se diversas práticas legais e ilegais.
E não raramente vemos questões sociais em invisibilidades
constantes que insistem em permanecer mesmo nos dias atu-
ais, estas são em muitas das vezes financiadas por interesses
escusos e práticas criminosas, nas quais o “dinheiro” vigora

58
como principal impulsionador e garantidor destas práticas.
Assim, ocorre com a exploração sexual atrelada à vulnera-
bilidade e risco social de camadas societárias mais pobres,
principalmente nos casos de crianças e adolescentes.

Exploração Sexual na Fronteira de Mato Grosso do Sul: a


Expressão das Desigualdades Sociais
A exploração sexual expressa uma questão social
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

permeada por fatores de gênero, raça/etnia, classe social,


idade e se configura como uma grave violação dos direitos
diálogos interdisciplinares

humanos, como o direito ao exercício de uma sexualidade


saudável. A temática se destaca como desafiadora no cenário
social do país, o que requer do Poder Público e da sociedade
ações coletivas de enfrentamento. A historicidade desse
fenômeno remonta a relações de poder e violência, em que a
infância e adolescência não eram compreendidas como fases
de amadurecimento físico, afetivo e social e as crianças não
eram reconhecidas como sujeitos que necessitam de cuidado
(LAVAREDA; MAGALHÃES, 2015).
Limberti e Andrade (2013) discutem que a explo-
ração sexual comercial de crianças e adolescentes é uma
prática inscrita culturalmente nas sociedades com nuances
políticas, sociais, econômicas e étnicas. Nessa perspectiva, a
exploração comercial expressa uma violência sexual baseada
na venda de um serviço ou produto, o qual seria, o prazer
de fazer sexo com crianças e adolescentes. A prática envolve
lucro ao explorador que tira proveito de condições de vulne-
rabilidade e desigualdade social que acometem as famílias.
Essa realidade também se associa ao tráfico de drogas
e de pessoas, atendendo a demandas do mercado do sexo,

59
alimentado por redes criminosas, envolvimento de autori-
dades e políticos. Essas redes crescem a partir das falhas nas
articulações do sistema de proteção e atendimento a crianças
e adolescentes (LIMBERTI; ANDRADE, 2013).
Também, a exploração pode se estabelecer em for-
ma de abuso sexual, o qual “ocorre quando o ‘sujeito’ se
aproveita da relação familiar, de proximidade social ou da
vantagem etária e econômica para praticar violência sexual”
(NUDECA, 2017, p. 1).
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

As relações de poder e violência também abrangem a


diálogos interdisciplinares

exploração sexual e o tráfico de mulheres, em que a conduta


se pauta pela dominação da mulher, condição assentada no
patriarcalismo, em que o corpo feminino é tomado como de
uso público e masculino (NOGUEIRA, 2014). A dominação
da sexualidade feminina já foi legitimada até mesmo por
teorias psicológicas, como nos escritos de Freud, que vê a
mulher como um ser inferior em relação aos homens pela
ausência do pênis. De acordo com o autor, a mulher seria
um ser mutilado e isso estaria na base da sua relação com
o homem. Somado a isso, está a mulher como alguém que
precisa de cuidado e proteção, sendo constantemente vigia-
da (SILVA; CAPPELLE, 2015). No tráfico, a mercadoria a ser
explorada e comercializada é a pessoa humana e sua força
de trabalho, realidade que denota uma dupla exploração e
dominação do corpo feminino, de forma a conceder lucros
para as organizações criminosas.
O tráfico de pessoas para fins de exploração sexual
assume novas dimensões nos dias atuais. Em consonância
com outros pesquisadores sobre tráfico humano, Scandola,
Ziolkowski e Sardinha (2008) afirmam que a vítima do trá-

60
fico é de baixa renda econômica, possui pouca escolaridade
e envolve questões étnico-raciais e de gênero. Portanto, o
fato de ser mulher, associada à questão da pobreza e da raça,
no que tange principalmente às mulheres negras, coloca as
mulheres em situação de desigualdade de oportunidades e
estado de vulnerabilidade, fatores que podem favorecer o
aliciamento da rede internacional de tráfico de mulheres para
fins de exploração sexual. Além deste fator, este fenômeno
pode estar relacionado à atual globalização do comércio, às
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

precárias condições de trabalho aos mais pobres, a migração


diálogos interdisciplinares

e as relações patriarcais.
Neste sentido, Leal, Teresi e Duarte (2013) afirmam
que muitas mulheres de baixas condições socioeconômicas
e sem escolarização, deixaram seus estudos ainda muito
jovens para trabalhar e decidiram prostituir-se para obter
uma maior renda. Isso demonstra o quanto mulheres, po-
bres e principalmente negras, ainda são desprotegidas pelas
políticas públicas de proteção social no Brasil, tornando-as
vulneráveis para o tráfico para fins de exploração sexual,
tendo seus direitos negados.
Scandola, Pauleti e Rodrigues (2014) realizaram um
estudo sobre tráfico de pessoas em territórios fronteiriços de
Mato Grosso do Sul, a partir de relatórios produzidos pelo
Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e
a Comissão Permanente de Investigação das Condições de
Trabalho de Mato Grosso do Sul. Os resultados apontaram
um aumento no número de meninos e meninas atendendo
demandas do mercado sexual em regiões de fronteira e
regiões de polos industriais de açúcar, álcool, carne, grãos e
trabalho rural. As autoras destacaram as relações entre essas

61
cadeias produtivas e o mercado sexual, servindo de entrete-
nimento a trabalhadores.
Portanto, a grande desigualdade socioeconômica
capitalista é um dos principais fatores que facilitam o tráfico
humano. Leal e Leal (2007, p. 98) afirmam:

[...] a própria globalização de mercado e o


neoliberalismo têm fragilizado e vulnerabili-
zado sujeitos violados sexualmente, seja pela
precarização das relações de trabalho, pela
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

baixa inclusão nas políticas sociais ou por


um discurso legal, ainda moralista e repres-
diálogos interdisciplinares

sor, que favorece a impunidade e provoca


pânicos morais.

Também se constatou a presença de mulheres mi-


grantes trabalhadoras em condição de exploração sexual e
cerceamento de sua liberdade. Os dados revelam que os con-
sumidores desse mercado são brasileiros oriundos de outras
regiões do país (SCANDOLA; PAULETI; RODRIGUES, 2014).
É observado que no processo de tentar sair de uma
situação aversiva em seu país de origem a solução encon-
trada por muitas mulheres é a migração. Ao tentar migrar
para conseguir uma oportunidade melhor de trabalho, estas
mulheres encontram barreiras, como, a falta de recursos
econômicos necessários para a migração, como também o
fechamento das fronteiras, que as impedem de chegar ao
destino desejado através de meios legais. Como resultado,
muitas se envolvem com pessoas relacionadas ao tráfico
humano. Ao chegar ao novo país, estão sujeitas a condição
de exploração sexual e não conseguem sair desta situação
visto que em muitos relatos o seu passaporte é confiscado.

62
O Mato Grosso do Sul possui características eco-
nômicas centralizadas na agropecuária, no entanto, nos
últimos anos o Estado vem passando transformações e
incorporando o processo de industrialização. Mas, de
modo contraditório, o desenvolvimento social não tem
acompanhado o desenvolvimento econômico, o cenário
apresenta alto índice de desigualdade social e nas fron-
teiras, encontram-se redes ilegais de tráfico e exploração
sexual (TEIXEIRA; ALMEIDA, 2014).
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

As fronteiras de Mato Grosso do Sul apresentam


diálogos interdisciplinares

desafios no que tange à questão social, vizinha de Bolívia


e Paraguai, além do histórico de conflitos, a proximidade
geográfica promove grande influência sociocultural, além
de ser um grande ponto de relações de comércio (TEIXEIRA;
ALMEIDA, 2014). Apesar disso, as relações sociais e o coti-
diano da população nesses espaços fronteiriços apresentam
grave precariedade e vulnerabilidade social.
Segundo dados do Mapeamento dos Pontos Vulne-
ráveis à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas
Rodovias Federais Brasileiras (MAPEAR) durante o biênio
2017/2018, o Brasil possuía 2487 pontos vulneráveis, deste
número 93 estavam em Mato Grosso do Sul, em relação ao
período de 2013/2014, o número aumentou em 20%. O levan-
tamento ainda destacou que os ambientes mais comuns para
casos de exploração sexual nas rodovias são postos de com-
bustível, bares, casas de show, pontos de hospedagem, locais
onde há prostituição de adultos, presença de caminhões ou
carretas no local (BRASIL, 2018). É possível observar que
os locais mencionados são de grande fluxo de pessoas, em
especial em locais de grande circulação, mas não de perma-

63
nência de pessoas, como rodovias. Associado à presença da
desigualdade social, ocorre um processo de oferta e deman-
da, também associado ao processo migratório.
Em razão disso, a maioria dos estudos têm destacado
a pobreza e a exclusão como indicadores sociais determi-
nantes para a entrada de crianças e adolescentes em redes
de comércio sexual. Nestas condições há na prática a busca
de meios de subsistência, acesso aos bens materiais, como
roupas, aparelhos de celular (SERPA, 2016). Por meio disso,
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

a exploração sexual pode apresentar sentimentos ambíguos,


diálogos interdisciplinares

na medida em que, por um lado, as crianças e adolescentes


vivenciam sentimentos de desqualificação por realizar uma
atividade considerada criminosa, invasiva e degradante, de
outro, a prática representa um meio de acesso à espaços e
bens de consumo não alcançados por outras vias, nesse sen-
tido, Faleiros (2004) explica que essa contradição coloca as
crianças e adolescentes na condição de aceitar um estado de
perda de dignidade em troca da sobrevivência.
Tais análises demonstram a lógica do capitalismo
internalizada na subjetividade de crianças e adolescentes
de modo a produzir uma inclusão perversa. A sociedade do
consumo vivenciada nos dias atuais produz sujeitos que as-
sumem sua liberdade através do livre direito ao consumo,
ligando-se a ideia de poder e inclusão de acordo com sua
capacidade de consumo, esta seria a lógica da sociedade
livre, de acordo com Marcuse (1964). No entanto, esta sen-
sação de inclusão é apenas ilusória, Sawaia (1999) comenta
a esse respeito:

64
A sociedade exclui para incluir e esta trans-
mutação é condição da ordem social desigual,
o que implica o caráter ilusório da inclusão.
Todos estamos inseridos de algum modo,
nem sempre decente e digno, no circuito re-
produtivo das atividades econômicas, sendo
a grande maioria da humanidade inserida
através da insuficiência e das privações, que
se desdobram para fora do econômico.
(SAWAIA, 1999, p. 8)
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Desta forma, crianças e adolescentes são aliciados ao


comércio sexual com a falsa sensação de inclusão produzida
diálogos interdisciplinares

pelo acesso aos bens de consumo e de subsistência, quando


na realidade vivenciam um estado de vulnerabilidade e
violação de direitos. Este é um exemplo das contradições do
capital, com a ideia ilusória de inclusão e possibilidades de
ascensão social, quando na verdade os processos de desi-
gualdade social são cada vez mais acirrados.
O Ministério da Justiça apresentou em 2013 um le-
vantamento de dados oficiais e nacionais de enfrentamento
ao tráfico de pessoas em áreas de fronteira. Em Mato Grosso
do Sul, as formas de exploração recorrentes foram, explo-
ração sexual e o trabalho escravo, também, foi destacado a
exploração sexual de crianças e adolescentes no que tange
à questão de fronteira. Entre os anos 2005 e 2014, o Estado
atingiu 75 vítimas de tráfico interno para fins de exploração
sexual, número superior aos demais Estados (BRASIL, 2013).
Ainda, as informações apontaram que o Estado se
constitui como ponto de origem e de trânsito do fluxo de
pessoas traficadas, sendo o destino os grandes centros ur-
banos, como São Paulo e Rio de Janeiro, Goiás e Paraná e

65
após para a Europa Ocidental, onde se tornam vítimas de
exploração sexual (BRASIL, 2013).
Com isso, observa-se que as rotas no Brasil são tran-
sitórias e acompanham formas de exploração econômica,
sendo fomentadas pelos movimentos da globalização e do
capital. Entretanto, os dados reforçam que o país também
se torna de destino do tráfico ao receber paraguaios, boli-
vianos, para finalidades de atividade sexual e de trabalho
(BRASIL, 2013).
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

As fronteiras são apontadas segundo Neves et al


diálogos interdisciplinares

(2016) como espaços vulneráveis às mulheres, crianças, ado-


lescentes e indígenas. A falta de fiscalização das fronteiras
do Estado com a Bolívia e o Peru facilita a articulação de
rede de exploração de crianças e adolescentes. Portanto, as
fronteiras terrestres e fluviais entre Bolívia e Paraguai são
relatadas como regiões propícias à prostituição de adultos
e à exploração sexual, pois se configura como de fácil trans-
posição, o que possibilita muitas rotas. O Departamento de
Operações de Fronteiras (DOF) ressaltou a relação entre a
exploração sexual de crianças e adolescentes e o tráfico de
pessoas (BRASIL, 2013).
A pesquisa mencionada também concluiu que os
aliciadores mais frequentes são os próprios pais, e os locais
para exploração são casas, espaços de prostituição, barcos,
chácaras. Além disso, fatores como a proximidade com o Rio
Paraguai, o turismo de pesca do Pantanal, a realização de
grandes festivais na cidade de Corumbá, principalmente no
distrito de Albuquerque, local de baixo acesso à serviços e
uma economia local centralizada nas atividades de turismo,
são condições que aumentam a vulnerabilidade de crianças

66
e adolescentes à exploração sexual e ao tráfico de pessoas
(BRASIL, 2013).
Em muitos dos casos, o rio é utilizado como espaço
e local nos quais as práticas de exploração são ocultadas
mais facilmente. Ainda sobre Corumbá, entre 2008 e 2009,
foram relatadas situações de encarceramento de meninas
em barcos pesqueiros para finalidade de tráfico para outras
cidades do interior do Estado. As adolescentes não se en-
contravam em posse de seus documentos e estavam sendo
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

exploradas sexualmente, além de apresentarem vício em


diálogos interdisciplinares

substâncias ilícitas (BRASIL, 2013). Nestes casos, em nome


de um turismo de pesca, o rio é utilizado como lugar onde
estas práticas se consolidam em graves formas de violência
contra os direitos humanos de crianças e adolescentes que
vivem na região de fronteira.
Assim como Corumbá, outras cidades são menciona-
das no Relatório com casos de tráfico de pessoas, em especial
crianças e adolescentes, são Porto Murtinho e Ponta Porã,
cidades que fazem fronteira com o Paraguai (BRASIL, 2013).
Esta realidade denota a fragilidade e baixa efetivi-
dade dos sistemas legislativos, judiciários, educacionais, de
assistência social e saúde em atuarem como dispositivos de
proteção à infância e à mulher. No Brasil, o marco político
que manifesta a preocupação com a temática do abuso e
exploração sexual de crianças e adolescentes é a instituição
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), organizan-
do atuações de Fóruns, Conselhos estaduais, municipais e
mecanismos de garantia de direitos.
Paixão e Deslandes (2010) realizaram uma análise de
documentos e artigos com o objetivo de analisar a política

67
brasileira de enfrentamento à violência sexual infantojuvenil
e ressaltaram o empreendimento de estratégias de preven-
ção e enfrentamento de violência sexual contra crianças e
adolescentes, avanços com a implementação do Programa
Sentinela, que ordena o atendimento e desenvolvimento de
ações no âmbito da assistência a crianças e adolescentes, ví-
timas de abuso e exploração sexual, entretanto foi pontuado
a existência de desajustes que comprometem a eficácia do
atendimento especializado, como a ausência de indicadores
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

que possibilitem um monitoramento e avaliação das ações


diálogos interdisciplinares

iniciados em nível municipal, condição que dificulta e más-


cara a identificação dos problemas locais, o que compromete
o investimento em ações que supram as atuais lacunas.
Além disso, outro fator de fragilidade destas políticas
se relaciona ao conflito de interesses existentes nas fronteiras,
apesar da proximidade do espaço geográfico entre os países,
cidades, emerge as disparidades entre as legislações locais,
realidade que indica a necessidade de cooperação regional
entre os poderes e líderes, a fim de lidar com a burocracia e
promover a proteção social à crianças, adolescentes e mulhe-
res que são inseridos em contextos de opressão e exploração
nas fronteiras sul-matogrossenses.

Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes na Fronteira:


Processos de Subjetivação e Sofrimento Ético-Político

Consideramos graves as consequências decorrentes


da exploração sexual de crianças e adolescentes resultarão
em processos de subjetivação e funcionamento psicológico
impactados pela realidade vivida de negação de direitos,

68
violações, violência e vulnerabilidade, principalmente no
que tange à infância causando danos na formação para sua
vida adulta.
Como visto anteriormente, evidências de pesquisas
apontam para situação de pobreza como um propiciador
para envolvimento de crianças e adolescentes com o co-
mércio sexual, desta forma, é possível ver no mundo real
concreto os resultados de processos de exclusão. A exclusão
é entendida como um processo sócio-histórico, sutil e dialé-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

tico, visto que apenas existe porque o seu contrário existe,


diálogos interdisciplinares

a inclusão. Esta dialética gera processos de subjetivação


específicos, envolvendo o homem em sua totalidade e com
suas relações (SAWAIA, 1999).
Assim, para Vygotsky, o funcionamento psicológico
do indivíduo será constituído a partir das relações sociais
estabelecidas entre ele e o mundo exterior. O desenvolvi-
mento do funcionamento psicológico acontece de forma
contextualizada a um momento histórico, social e cultural
(FELIPE, 2001).
A forma com que o processo de socialização passa
pelo indivíduo abrange sistemas maiores e complexos. De
forma ampla, a criança está inserida em um macrossistema
composto pelas práticas e valores societários, a posição de
classe em que se encontra. Os indivíduos sofrem influência
direta de seus pais e da escola, os microssistemas, que por
sua vez, são influenciados pelo exossistema, ou seja, as con-
dições de trabalho que vivenciam (RATNER, 2002). Isto é,
crianças e adolescentes vivenciam desde cedo os desafios da
desigualdade social e de um ambiente externo hostil, com
famílias que muitas vezes não tem condições sociopsico-

69
lógicas de fornecer o apoio e cuidado, sendo muitas vezes
os que agenciam crianças para exploração, a fim de suprir
necessidades básicas.
Como resultado, portanto, crianças e adolescentes
que são exploradas sexualmente têm a formação do seu fun-
cionamento psicológico atingido pelos modos de relação que
experienciam nas fases iniciais de formação da sua subjeti-
vidade, internalizando o mundo como um ambiente hostil.
Podem ainda apresentar formas de se relacionar baseadas no
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

sofrimento, visto que assim foram suas primeiras relações


diálogos interdisciplinares

com o outro.
Embora haja uma certa preocupação por parte dos
governos locais com o aumento de crimes e atos violentos
praticados contra mulheres, crianças e adolescentes nas re-
giões de fronteira implementando políticas que venham ao
encontro às questões sociais como estas, ainda observamos
os índices aumentarem a cada dia.
A violência vivenciada em região de fronteira é de-
terminadamente mais acentuada para mulheres e crianças/
adolescentes, ao mesmo tempo em que é naturalizada e ba-
nalizada pela população local e por aqueles que são coniven-
tes ou que obtém alguma forma de benefício a partir destas
violações. Os sujeitos deixam de ser afetados pela ocorrência
de violências devido ao seu alto índice, sendo uma forma de
defesa para não lidar com a realidade de exclusão e violação
de direitos.
O que observamos é um ciclo que se repete por gera-
ções e estas violências estão alicerçadas em ações cotidianas
que se repetem e se inviabilizam na dinâmica da região de
fronteira. Situações estas que se repetem todos os dias, as

70
quais reforçam práticas de violência de todas as formas,
sejam elas psicológicas ou físicas.
No campo das violências psicológicas pode-se tradu-
zir questões inerentes ao reforço de uma baixa autoestima às
vítimas propiciando e reforçando o sentimento de incapaci-
dade, de nulidade, de negatividade, que é antes de mais nada
a negação do próprio “conatus”1, devido à estigmatização,
rejeição e exclusão sentida, enfraquecendo e fazendo com
que a vítima coopere sistematicamente com o violador. No
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

campo das violências físicas, estas podem deixar sequelas


diálogos interdisciplinares

irreversíveis para a vida de crianças e adolescentes, dado


que seu organismo ainda não está preparado para a ativi-
dade sexual, e ainda pode-se apontar situações em que estas
violências apresentam retoques de agressividade de forma
intencional e excessiva.
Bader Sawaia denomina sofrimento ético-político
aquele que é oriundo da dor das injustiças sociais, (SAWAIA,
1999), sujeitos que em seu cotidiano passam por situações de
desvalorização, humilhação participam de dinâmicas sociais
complexas que desqualificam suas experiências por meio da
violência real e simbólica. Diferentemente do sofrimento on-
tológico, este possui um caráter amplo, é constituído a partir
da relação entre a desigualdade social e as respostas afetivas
do sujeito, o qual incorpora questões sociais dominantes em
um dado período histórico em que a pessoa está cerceada e
que a limita e impede de lutar contra a ordem social posta.

1 Conatus - conceito espinosano, descrito por Swaia (2009, p. 366) como “[...]
um grau de potência, uma força interior para se conservar, perseverar na própria
existência, um esforço de resistência”.

71
O sofrimento ético-político retrata a vivência no
cotidiano das questões sociais existentes em cada momento
histórico, especialmente a dor que surge a partir de situações
sociais de ser tratado como inferior, dominado, sem valor,
de forma inútil para a sociedade (SAWAIA, 1999). Tal fato é
comum a um contexto capitalista produtor de desigualdade
social, no qual existem sujeitos que são inúteis à produtivi-
dade dos meios de produção que visam à mais-valia.
Esta impossibilidade de escolher produzida em
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

contextos de desigualdade social, segundo Sawaia e Silva


(2019) mata, pois submete à moradia indigna, alimentação
diálogos interdisciplinares

adoecedora, exploração e este impedimento é vivenciado


pelo sujeito como sentimento de humilhação, vergonha, de-
samparo, medo, depressão, fatalismo, em suma, expressam
todas as formas da pessoa humana ser tratada como sem
importância, o que representa um estado de invisibilidade
social, mas não invisibilidade no sentido de não ser visível,
mas no sentido de não ser reconhecido no âmbito social,
político e ético. O sofrimento ético-político só é possível em
uma sociedade conflituosa, permeada por contradições, nas
vivências dos sujeitos nos processos de lutas de classes, na
interface entre subjetividade e sociedade.
Nesta linha, o fenômeno social da exploração sexual
em uma sociedade excludente e desigual, também é um
fenômeno psicossocial, pois acontece na dialética objetivi-
dade/subjetividade, assim, esta questão social se relaciona
e é produzida a partir das bases produtivas, econômicas e
políticas de uma sociedade em um dado período histórico
e essa construção irá afetar a constituição deste sujeito que
vive nesta sociedade e sente em seu corpo os efeitos da ex-
clusão e da violência.

72
Também, nestes campos a violência deixa marcas
difíceis de serem enfrentadas por crianças e adolescentes
refletindo em déficits na aprendizagem, na concentração,
no crescimento saudável, na sociabilidade e na vida adulta
de cada criança que vivencia alguma situação de exploração
sexual e para além do impacto no físico.
Deste modo, este tipo de violência só pode ser circuns-
crito no âmbito da barbárie, na qual a exploração se dá pelo
mais forte contra o mais fraco e vulnerabilizado, expressando
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

a conformação de um lado de uma relação de dominação e


diálogos interdisciplinares

poder utilizando da exploração sexual para satisfações pesso-


ais e do outro uma condição de subordinação, inferiorização.
Crianças e adolescentes que passam pela exploração
sexual podem se ver presas a cadeias de paixões tristes,
conceito trazido por Espinosa, na qual o sujeito se vê preso
em relações de servidão, constituídas enquanto ilusão de
liberdade. Nesse sentido, a alegria e a felicidade seriam a
base da liberdade. A ontologia espinosana supera a noção
de que a liberdade tem pouco valor para aqueles que têm
fome e estão em estado de pobreza, na sua concepção a falta
do direito de escolha gera tanto sofrimento quanto a falta de
moradia (SAWAIA, 2009).
Vygotsky nos diz que só será possível atingir a liber-
dade a partir da criatividade. Desta forma, viver é mais do que
a sobrevivência, a necessidade de dinheiro para sua subsis-
tência é tão necessária quanto à de relações potencializadoras
de liberdade e felicidade, esta entendida como ato político.
Pois só quando há consciência e quebra da alienação é que a
liberdade é possível, e isso só será possível quando os sujeitos
se libertarem das relações de servidão (SAWAIA, 2009).

73
É, portanto, a partir da imaginação que a liberdade se
concretiza no homem em sua condição de vida e nas leis da
natureza, isso porque há a possibilidade de reconstrução da
realidade e domínio da própria evolução (SAWAIA; SILVA,
2015). Portanto, apesar da difícil realidade em que vivem,
crianças e adolescentes que são exploradas sexualmente po-
dem conseguir concretizar sua liberdade a partir de relações
potentes e encontros revolucionários, marcadas por afetos
positivos e criativos. Isso se dá, na concretude do mundo
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

real, através de políticas públicas que prevejam ações de


diálogos interdisciplinares

emancipação, saúde e educação.

Considerações Finais

A fronteira é local de passagem, região de conflito,


encontro com o diferente, e também de riqueza cultural e
trocas. A identidade da fronteira se configura como nenhu-
ma outra região, é resultado da dialética de duas culturas
distintas, tendo sua história marcada pela tensão gerada pe-
los limites de cada país. Apesar de toda sua potencialidade
produzida a partir dos encontros ali realizados, é local de
fragilidades e vulnerabilidades que demandam atenção.
Mato Grosso do Sul engloba em sua fronteira uma
diversidade social, histórica, cultural, além de se configurar
como região de disputa, conflito e intensas trocas. Entretanto,
destacam-se graves condições de precariedade e vulnerabi-
lidade social. Um destes casos é a exploração sexual, seja de
criança e adolescentes ou mesmo de mulheres, usualmente
atrelado ao tráfico de pessoas. Resultado de processos de
exclusão, relações de gênero e desigualdade social, o capital

74
produz contextos de tamanha vulnerabilidade em que o
comércio sexual torna-se comum, considerado até mesmo
como um meio de sobrevivência, ou ainda como uma for-
ma de ter acesso aos bens de consumo, produzindo a falsa
sensação de inclusão em uma sociedade determinada pelo
poder de compra. Esses processos resultam em sofrimento
ético-político e modos de subjetivação específicos em detri-
mento dos modos de relação que são vivenciados ao longo
da vida.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

A garantia de direitos é responsabilidade do Estado,


diálogos interdisciplinares

que deve agir nas regiões de fronteira de modo preventivo, a


fim de evitar que novos casos de exploração sexual ocorram
e mais crianças e adolescentes sejam atingidos, evitando ain-
da que mulheres sejam traficadas e tenham sua sexualidade
vendida. Ainda, a condição singular de regiões fronteiriças
exige amplo esforço e diálogo entre autoridades e lideranças
políticas a fim de promover consenso e união no desenvol-
vimento e implementação de atuações intersetoriais e inter-
nacionais integradas. As políticas de proteção social devem
agir de forma a superar desigualdades e vulnerabilidades,
para que famílias não sejam acometidas pelo comercio sexu-
al. Além disso, as políticas públicas devem atuar de forma
a retirar aqueles que passam por essa situação, fornecendo
serviços de saúde, jurídicos, de assistência e educação.
É preciso que crianças, adolescentes e mulheres as-
sumam a liberdade de seus corpos e decidam seus destinos,
nesse sentido, o acolhimento e articulação dos sistemas de
proteção se apresentam como um recurso potente que pos-
sibilite outros encontros e caminhos, para além de contextos
de violência e de exclusão social. A libertação de processos

75
de servidão de cadeias de paixões tristes é possível a partir
de afetos positivos, de criatividade e encontros potentes. O
Estado deve garantir direitos e os sujeitos devem lutar na
criação de contextos revolucionários de superação de pro-
cessos de desigualdade.

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78
“Que tiro foi esse?”:
Saúde, fronteira(s) (d)e gênero

Angelo Luiz Sorgatto


Catia Paranhos Martins

Este trabalho é um recorte da dissertação de mestrado,


intitulada “A saúde mental na fronteira: Uma cartografia da
loucura”, desenvolvida para o Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados
(PPGPsi-UFGD). A pesquisa procurou cartografar os cuida-
dos em saúde mental ofertados na Atenção Básica em Saúde
(ABS), na região de fronteira entre Ponta Porã, Mato Grosso
do Sul (MS), e Pedro Juan Caballero, Amambay, Paraguai.
O excerto aqui abordado almeja problematizar as
questões de gênero e a violência contra as mulheres, a partir
de dois episódios acompanhados durante o processo de pes-
quisa. O primeiro episódio surgiu após um pedido para a re-
alização de uma palestra sobre “autoestima feminina”, pois,
na época, estava próximo o Dia Internacional da Mulher. O
segundo versou sobre um episódio de feminicídio cometido
dentro da Unidade Básica de Saúde (UBS), que possui uma
equipe composta, majoritariamente, por mulheres. Esses
dois episódios surgiram como uma de várias marcas existen-
tes no território fronteiriço durante a composição do campo
para a cartografia.

79
De acordo com Rubin (1993) e Bourdieu (1995), o con-
ceito de gênero é um construto sociocultural. Por meio dele,
define-se as formas de ser e agir dos homens e mulheres nas
sociedades, isto é, tal concepção estabelece os papéis de gê-
nero. Estes variam de acordo com o contexto sócio-cultural
onde são produzidos. Dessa maneira, as relações sociais que
definem os papéis de gênero para homens e mulheres foram
compartilhadas e reproduzidas ao longo da história das
sociedades ocidentais. Essa reprodução acabou por ter um
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

efeito cristalizador nos papéis de gênero fazendo com que


fossem vistos como maneiras de ser “imutáveis”, “naturais”
diálogos interdisciplinares

ou “naturalizantes”.
Os papeis de gênero são resultantes do sistema pa-
triarcal, que concebe os aspectos masculinos como superio-
res aos femininos e culminam na opressão das mulheres. As
sociedades patriarcais produzem relações desiguais entre os
gêneros, produzindo e mantendo uma hierarquia social do
masculino em detrimento do feminino (RUBIN, 1993).
Para manutenção da suposta superioridade mas-
culina, utiliza-se com frequência o saber produzido pela
biologia. Este serve ao patriarcalismo quando faz uso de
explicações acerca de diferenças anatômicas, orgânicas,
fisiológicas e/ou hormonais como justificativa para a “su-
perioridade” do gênero masculino, para criar um efeito
“naturalizante” e, por fim, para definir as relações sociais
desiguais entre homens e mulheres. O efeito naturalizador,
embasado por concepções biológicas, concebe o conceito de
gênero e seus papéis como rígido e imutável. Nega-se o seu
caráter de construto social, produzido por diferentes visões
do que é ser mulher ou ser homem concebidos ao longo da
história em diferentes sociedades.

80
Bourdieu (1995) pontua existir uma dominação
simbólica exercida pelo masculino nos sistemas patriarcais.
Aquela atinge vários âmbitos da vida em sociedade, com-
partilhando a noção das diferenças entre os sexos como algo
dado de antemão e, consequentemente, as relações desiguais
existentes entre homens e mulheres como seu resultado.
Esta dominação, anterior às sociedades capitalistas, é
propagada, implicitamente, em diferentes discursos, valores
e modos de ser produzidos socialmente. É reproduzida em
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

diversas áreas do conhecimento humano, desde preceitos


diálogos interdisciplinares

transmitidos por tradições, que servem para sua manuten-


ção, até as teorias científicas, que têm como intuito elevar a
suposta dominação simbólica masculina ao caráter de “ver-
dade incontestável”. Aqui, por exemplo, encontra-se o uso
dado para as explicações biológicas com intuito de justificar
a dominação masculina. Para o autor:

O sexismo é um essencialismo. Como o ra-


cismo, de etnia ou de classe, ele visa imputar
diferenças sociais historicamente instituídas
a uma natureza biológica funcionando como
uma essência de onde se deduzem impla-
cavelmente todos os atos da existência. E
dentre todas as formas de essencialismo, ele
é sem dúvida o mais difícil de se desenraizar
(BOURDIEU, 1995, p. 145).

De acordo com Bourdieu (1995), a dominação simbó-


lica acontece de forma a não subjugar apenas as mulheres,
mas também os negros, indígenas e loucos. Naturaliza-se e
justifica-se a suposta primazia do homem, branco, europeu,
cristão, racional sobre os demais. Assim, através dos séculos,

81
a ideia de uma superioridade masculina configurou-se,
também, como um construto social, que ganhou força e
enraizou-se na cultura ocidental. Isso fez com que se disse-
minasse uma “socialização do biológico e biologização do
social” (BOURDIEU, 1995, p. 145) e erigiu as explicações
biológicas como forma de manutenção das relações entre
homens e mulheres.
Para Joan Scott (1995), a importância do conceito de
gênero reside na visibilidade dada às condições desiguais
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

e também na desnaturalização das relações de poder entre


diálogos interdisciplinares

mulheres e homens. O conceito de gênero, como uma pro-


dução sócio-histórica-cultural, permite o desmonte e a pro-
blematização da suposta hierarquia masculina que produz
sociedades opressoras.
Ao questionar o lugar social que o sistema patriarcal
atribui às mulheres, é possível combater a opressão e vio-
lência que estas sofrem cotidianamente. Faz-se necessário,
também, e com urgência, questionar o papel atribuído aos
homens em nossa sociedade, problematizar como se dá a
sua implicação nas relações de gênero; questionar a ideia de
“superioridade” e de “dominação” que lhes é dada para, em
seu lugar, produzir novos sentidos e formas de ser para as
masculinidades e para os homens.

Metodologia

Esta é uma pesquisa qualitativa e para sua produção


fizemos uso da cartografia como estratégia metodológica,
como proposto por Deleuze e Guattari (PASSOS; KASTRUP;
ESCÓSSIA; 2015; PASSOS; KASTRUP; TEDESCO, 2016).
Para Rolnik (1989), a realização de uma cartografia não deve

82
ser confundida com a construção de um mapa estático da
realidade. Em seu lugar, compreendemos o campo como um
processo, dinâmico e em constante transformação. A carto-
grafia permite ao cartógrafo acompanhar os movimentos e
paisagens psicossociais da realidade. Com isso, é possível
desmanchar mundos esvaziados de sentido e, em seu lugar,
construir novos sentidos. Por essa razão, cartografar uma
realidade consiste em acompanhar suas paisagens, proces-
sos e como, nesse lugar, são produzidas as subjetividades.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

De acordo com Passos, Kastrup e Escóssia (2015), a


diálogos interdisciplinares

cartografia constitui-se como um método de pesquisa-inter-


venção. Isso faz com o que o processo de cartografar uma
realidade não se dê aos moldes da pesquisa tradicional, ou
seja, dado por regras e etapas estabelecidas de antemão ou
com objetivos prévios a ser alcançados. A estratégia da carto-
grafia inverte a lógica tradicional de pesquisa, fazendo com
que o pesquisador se insira no campo de estudo, com intuito
de realizar uma pesquisa “em conjunto com” os sujeitos da
pesquisa, produzindo um saber com eles, não sobre eles.
A ida ao campo ocorreu entre os meses de fevereiro a
agosto de 2018. Nesse período, visitamos diferentes serviços
do Sistema Único de Saúde (SUS) de Ponta Porão e da Saúde
Pública de Pedro Juan Caballero, Paraguai, com o objetivo de
mapear os cuidados em Saúde Mental ofertados na Atenção
Básica em Saúde (ABS) da região da fronteira internacional.
O diário de campo foi utilizado para o registro das
impressões e afetos encontrados na composição com o cam-
po (BARROS; PASSOS, 2015; PEZZATO; L’ABBATE, 2011).
Realizamos também cinco entrevistas, que foram gravadas
e transcritas, com diferentes trabalhadoras de saúde da ABS

83
pontaporanense. Na cidade de Pedro Juan Caballero, reali-
zamos conversas com diferentes personagens que atuam na
saúde mental do país vizinho. Optamos por trazer as falas
literais das pessoas entrevistadas. As análises foram feitas
com inspiração na Análise do Discurso foucaultiana e em
constante diálogo com autores da Saúde Coletiva e das Ciên-
cias Sociais. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética
em Pesquisa da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD) com o número de parecer 2.362.729.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)
diálogos interdisciplinares

Fronteiras de gênero e a violência cotidiana

Ponta Porã está localizada na região sudoeste do


estado do Mato Grosso do Sul. De acordo com o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), a estimativa
populacional para o ano de 2019 era de, aproximadamente,
92.526 habitantes. O munícipio brasileiro faz fronteira com a
cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero. Esta, por sua vez,
possuía uma população de cerca de 113.872 habitantes no
ano de 2015 (KUKIEL; SILVEIRA; OLIVEIRA, 2019).
A região que engloba as cidades de Ponta Porã e
Pedro Juan Caballero é repleta de particularidades. As
duas cidades são divididas por uma fronteira seca, isto é,
geograficamente, duas avenidas paralelas, existentes em
cada país, demarcam os limites das duas nações. Por essa
razão, recebem o título de cidades-gêmeas. Por vezes, suas
paisagens se mesclam e confundem seus visitantes; de modo
que, à primeira vista, as duas cidades parecem ser somente
uma. Apenas os moradores locais conseguem delimitar os
marcos - objetivos e subjetivos - que separam os dois países

84
(uma avenida, rua, canteiro ou extensão de terra). Entretanto,
é preciso frisar que a região de fronteira não consiste apenas
em seus divisores físicos. Para Martins, a fronteira:

de modo algum se reduz e se resume à fron-


teira geográfica. Ela é fronteira de muitas e
diferentes coisas: fronteiras da civilização
(demarcada pela barbárie que nela se oculta),
fronteira espacial, fronteira de culturas e vi-
sões de mundo, fronteira de etnias, fronteira
da história e da historicidade do homem.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

E, sobretudo, fronteira do humano [grifo do


autor] (MARTINS, 2012, p. 11).
diálogos interdisciplinares

Diferentes modos de ser e estar no mundo tangen-


ciam-se e conflituam entre si nas fronteiras. Por ser um lugar
de encontros e desencontros, essa região é o espaço, por
excelência, da alteridade, de onde o estrangeiro, o diferente
desponta como o “estranho”. É o local onde os “Outros”,
os do lado de lá, emergem com seus costumes exóticos e
ameaçadores. Para Martins (2012, p. 10), o “Outro” se refere
àquele “que ainda não se confunde conosco nem é reconhe-
cido pelos diferentes grupos sociais como constitutivo do
nós [grifos do autor]”. O estrangeiro consiste naquele sujeito
que não é reconhecido como pertencente ao “nosso” grupo
social. É aquele que recebe a designação do “eles”, dos dife-
rentes de “nós”.
Foi neste território que tivemos contato com os episó-
dios relacionados às questões de gênero e com o feminicídio.
Este encontro se deu a partir da convivência possibilitada
pelo pesquisar cartográfico. Ao caminharmos pelas pai-
sagens e pelo cotidiano fronteiriço, a fim de mapear sua

85
realidade, tivemos oportunidade de entrar em contato com
o cotidiano das profissionais de saúde da Atenção Básica em
Saúde da fronteira. Tivemos acesso ao dia a dia delas, sua
atuação, falas, dilemas e desafios.
As primeiras nuances da temática de gênero e do fe-
minicídio chegaram até nós durante uma reunião de equipe
da UBS onde realizávamos a pesquisa. Na reunião, as profis-
sionais discutiam os cuidados em saúde que ofertariam no
Dia Internacional da Mulher, que recebia ares de comemo-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

ração e não de luta. As colocações feitas pelas trabalhadoras


diálogos interdisciplinares

despertavam nossa atenção, pois eram polissêmicas. Em seu


bojo, as falas pontuavam, implícita e explicitamente, sobre as
fronteiras e os papéis de gênero naquele território.
Dentre vários assuntos conversados (oferta de exa-
mes preventivos, ações voltadas para a Saúde da Mulher
etc.), as profissionais pediram para que ministrássemos
uma palestra com o tema “autoestima feminina”, pois,
segundo diziam, as suas usuárias andavam com a “estima
baixa”, já que “não se cuidavam e não se maquiavam”. O
intuito da solicitação era para que fizéssemos uma fala que
as “motivassem” a cuidar de sua aparência porque a ausên-
cia desse cuidado era sinal que as usuárias possuíam algum
“transtorno mental”. Esse pedido nos causou o primeiro es-
tranhamento com o assunto. Ou seja, elas pediam para que
nós “motivássemos” as usuárias que tinham sofrimentos
psíquicos porque estas não se maquiavam.
À medida que caminhávamos pela região da fron-
teira internacional, notávamos a recorrência desses discur-
sos. Os enunciados sobre a importância da beleza e dos
cuidados com a aparência feminina repetiram-se também

86
nas entrevistas, quando questionávamos as trabalhadoras
sobre a sua atuação. Com frequência, elas nos esclareciam
que as usuárias que não cuidavam da beleza poderiam
apresentar algum “transtorno/doença mental”, geralmente
associada à depressão.
Antes de prosseguirmos, precisamos fazer aponta-
mentos sobre o conceito de “discurso”, de extrema impor-
tância para a compreensão das análises posteriores. Para
isso, vamos nos apoiar na Análise do Discurso de Michel
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Foucault. De acordo com este autor (FOUCAULT, 2013,


diálogos interdisciplinares

p. 50), o discurso é concebido como “uma violência que


fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos”.
A sociedade é permeada por uma rede interdiscursiva que
produz constantemente as subjetividades dos indivíduos.
Nesta rede, diferentes discursos sobrepõem-se, somam-se,
excluem-se ou conflitam entre si para produzir diferentes ti-
pos de sujeitos. Os últimos só se tornam sujeitos, quando são
“assujeitados” a algum discurso que os produz. Por meio do
discurso, nos é possível nomear as coisas, objetos, conceitos,
bem como dar sentido ao mundo que nos cerca.
Assim, percebíamos haver uma conjunção de discur-
sos como origem para esses enunciados relacionados à saúde
mental das mulheres. Os cuidados em saúde prestados pela
Unidade eram provenientes dos discursos biomédicos. Já a
noção de “doença/transtorno mental”, com a qual explicavam
a “autoestima” das usuárias, tinham origem nos discursos psi-
quiátricos (AMARANTE, 1995, 2007; FREITAS; AMARANTE,
2015). Esses dois discursos, por sua vez, reproduziam uma
concepção de controle sobre os corpos das mulheres, indo
desde a aparência física até o sofrimento psíquico.

87
As falas das profissionais sobre as maquiagens e o
“arrumar-se” evidenciavam as estratégias utilizadas para
realizar os cuidados em saúde com as usuárias. A aparência
apresentada pelas últimas, de certa forma, auxiliava a atua-
ção daquelas. Sobre isso, as trabalhadoras afirmavam:

Aí eu sempre oriento assim... Aí eu, eu tenho,


eu tenho que... Eu mesma eu tenho que arru-
mar meu psicológico... Tentar, chegar, sorrir,
brincar. “Não faz isso”. “Cê tá triste?”. “Cê tá
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

linda”. “Vamo pentear o cabelo?”. “Vamo pen-


tear o cabelo?”. Ou “Vamo arruma?”. “Vamo
diálogos interdisciplinares

passa um, um batom?” se era, era... a pessoa


[que] passava batom, andava bem. Eu “vamo
lá?”. Tem uma que eu falo “vamo usa tuas,
vamo pega tuas corrente?”, “vamo coloca tuas
corrente?”, “vamo pentear teu cabelo?”, então
a gente faz isso (ENTREVISTA n. 5).

O cuidado prestado às mulheres, como pontuado no


relato anterior, era polissêmico. Trazia, principalmente, o
sentido de imposição de um modelo de feminino a ser se-
guido pelas usuárias. Isto é, quando estas estavam com “boa
saúde”, apresentavam uma “boa aparência”. O cuidar-se,
para além dos cuidados em saúde, tinha também o sentido
de “arrumar-se” e “maquiar-se”, o que evidenciavam uma
alta “autoestima” da mulher. Para as usuárias que estavam
“triste”, o cuidar da imagem vinha em conjunto com o
cuidar da saúde. Dessa maneira, era “prescrito” a elas que
“penteassem os cabelos”, “passassem um batom” ou para
que “colocassem suas correntes”.
Aquelas usuárias que não cuidavam de sua fisiono-
mia eram consideradas “desleixadas”, “descuidadas” ou

88
“desarrumadas” e, a partir do padrão de beleza imposto,
eram consideradas em sofrimento psíquico (eram “as
depressivas”, “doentes mentais”, entre outros). Esses enun-
ciados, bem como o pedido para “palestra-intervenção-psi-
cológica” marcavam e reproduziam o lugar social atribuído
às mulheres, não só da fronteira entre Ponta Porã e Pedro
Juan Caballero, mas também nas sociedades ocidentais.
Percebíamos as sutis nuances entre as relações de
poder, as questões de gênero, a saúde, as fronteiras (também
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

as de gênero) e a loucura. A última era manifestada no uso


diálogos interdisciplinares

de diagnósticos psiquiátricos para nomear as usuárias como


“depressivas”. Atribuía-se e reproduziam-se os discursos
dominantes acerca dos modos de ser e agir considerados
“naturais” de acordo com o gênero da pessoa.
Em consonância com Rubin (1993), entendíamos
as falas sobre as “maquiagens” e o pedido da palestra
“intervenção-psicológica” para as mulheres como formas
de controle do corpo feminino, operados pelo sistema pa-
triarcal. Este dita como deve ser o corpo da mulher, define
um “padrão” a ser seguido. Na lógica patiarcal, o corpo da
mulher deve possuir um peso específico, uma proporção en-
tre suas partes, que não podem estar acima ou abaixo de um
limiar considerado “normal”. Todo corpo que fugia a esse
modelo é considerado sinal e sintoma de “doença mental”,
“depressão” ou “loucura” e necessita de cuidados em saúde.
Dito de outra forma, para as trabalhadoras, a aparência (com
maquiagem ou sem) refletia, de forma linear e sem questio-
namentos, a saúde mental das usuárias.
O lugar do feminino era marcado, reproduzido e, de
certo modo, imposto às usuárias, por meio de um padrão

89
de beleza compartilhado no imaginário social. O pedido
para que nós, (psicólogo, pesquisador e homem cisgênero),
realizássemos uma palestra “motivacional” trazia, implici-
tamente, a intenção de intervir tanto na “autoestima” das
usuárias, quanto em sua “saúde mental”.
A aparência das usuárias funcionava como uma
espécie “critério diagnóstico”, aos moldes dos sinais e sin-
tomas utilizados pelos médicos psiquiátricas para se chegar
ao diagnóstico ou para identificar a existência de alguma
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

possível “doença mental”. Naquele contexto, o “critério


diálogos interdisciplinares

diagnóstico” e de avaliação da aparência das usuárias (ma-


quiagens e autoestima) definiam os “cuidados” (usar as
correntes, maquiar-se, passar batom) como uma espécie de
enfrentamento aos sofrimentos psíquicos que aquelas pos-
suíam. Parecia haver um duplo registro para o uso dessas
estratégias. Por um lado, reproduziam e impunham um mo-
delo de feminino para as usuárias; por outro, era utilizado
para produzir cuidados em saúde.
As próximas falas exemplificam a discussão feita até
aqui, além de trazerem maiores detalhes sobre as relações
de poder e gênero, bem como o seu relacionamento com a
saúde, loucura e fronteira. As profissionais de saúde nos
explicavam que, na UBS:

a maioria [dos atendimentos] é pessoas mu-


lheres acima de cinquenta anos, quarenta e...
eu acho uns trinta e poucos já... Às vezes é,
mais é mulheres e homens acima, mulheres
acima de trinta e poucos anos, e homens
aci, acima de quarenta, mas mais é do sexo
feminino, que sofrem uma depressão (EN-
TREVISTA n. 2).

90
Segundo as profissionais, o maior número de atendi-
mentos de pessoas com sofrimento psíquico, acompanhados
pela ABS, era composto de mulheres. A explicação que as
trabalhadoras nos davam versava sobre as seguintes situa-
ções: eram mais mulheres que passavam por processos de
separação ou de perdas de entes queridos ou, então, devido
a fatores biológicos, que surgiam como causadores do sofri-
mento (por exemplo, a menopausa).
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Às vezes a gente... mas é a experiência que


a gente tem aqui dessas pessoas. É isso. Tem
diálogos interdisciplinares

gente que tem tudo pra entrar na depressão e


tem gente do nada... E normalmente, é o que
eu te falei, mulheres entrando na menopausa
que começa, ou depois de uma separação, ou
duma perda, sabe? (ENTREVISTA n. 2).

A partir dessas falas, podemos perceber que, segundo


as profissionais, a maioria dos acompanhamentos é prestado
às mulheres. Assim, naquele território, temos mulheres com
“baixa autoestima”, que sofrem caladas, que se deprimem
etc. Em oposição aos homens que, para manter sua mascu-
linidade hegemônica, não demonstravam tais emoções – es-
sencialmente humanas, é preciso dizer -, mas, em seu lugar,
eram violentos, por diversas vezes contra as mulheres.
Ao pontuarem sobre os sofrimentos psíquicos dos
usuários homens, as trabalhadoras nos diziam que seu
número era menor, eles eram “mais resistentes à doença
mental”. Resistentes nos dois sentidos da palavra: primeiro,
porque as profissionais os consideravam possuidores de
maior força e isso os faziam não desenvolver sofrimentos
psíquicos; segundo, por serem mais resistentes em buscar os
cuidados em saúde ofertados pela ABS:

91
Eu acho assim que, que, que eles, eles têm
mais força. Só que a gente percebe, eu não sei
os outros, eu percebo... Eu percebo quando
eles são, assim... Eles sempre deixam alguma
coisa soltar. Eles soltam alguma coisa. Então,
eles têm vergonha por [eu] ser mulher... En-
tão, eles num, não falam (ENTREVISTA n. 5).

Para Bourdieu (1995), esses enunciados evidenciam


a inserção da dominação masculina nos discursos comparti-
lhadas socialmente e usados para “justificar”, “naturalizar”
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

a suposta superioridade masculina, por conta de sua dispo-


diálogos interdisciplinares

sição biológica.
Estas produções discursivas traziam o sentido de que
os homens são mais fortes e, consequentemente, capazes
exercer trabalhos que exigem esforço físico, além de não “ser
coisa de homem” demonstrar algum tipo de emoção ou afe-
to, já que isso seria considerado sinal de fraqueza. Por esse
motivo, eles não desenvolviam tantas “doenças mentais”
quanto as usuárias.
Diferentemente das mulheres que, para estes enun-
ciados, são concebidas como seres frágeis, aptas para tra-
balhos “delicados”, possuidoras de uma “propensão inata
à maternidade” e, por conseguinte, para desenvolverem
sofrimentos psíquicos mais facilmente. Estes traços eram
percebidos como “fraqueza” associada, principalmente, ao
lugar do feminino, pois, segundo as entrevistadas, seriam as
usuárias quem mais desenvolveriam esse tipo de sofrimento.
As trabalhadoras afirmavam:

92
Elas num tem explicação... Elas não sabem
explicar porque que ela tá chorando tanto...
Elas não sabem da onde vem. Aí, elas falam:
“eu tô depressiva”... “Eu tô com depressão”...
Eu tenho muitas [usuárias] assim... muitas
(ENTREVISTA n. 5).

De modo implícito, havia nos discursos das traba-


lhadoras uma associação entre mulheres depressivas e os
cuidados da ABS. Cuidados que passavam desde a escuta,
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

do acolhimento e da medicalização até outras estratégias,


como o uso de maquiagens e “intervenções-motivacionais”
diálogos interdisciplinares

para lidar com a “doença mental”. Tais estratégias marcavam


e reproduziam o lugar e o papel social da mulher, imposto
como “normal”. Tudo que saísse dessa “normalidade” era
considerado diferente, destoante, “transtorno mental”, uma
espécie de loucura.
Outra nuance do cotidiano fronteiriço surgiu na mes-
ma reunião citada anteriormente. Nela nos deparamos com
falas sobre um feminicídio ocorrido na UBS onde realizáva-
mos a pesquisa. Em meio as conversas sobre os preparativos
para o Dia Internacional da Mulher, e sobre histórias do
cotidiano de trabalho, as profissionais expressaram, fazendo
uso do humor como mecanismo de defesa, o acontecimento
trágico sobre as rígidas fronteiras de gênero existentes no
território fronteiriço.
Durante a animada conversa, uma das interlocutoras
relatou que “naquele lugar acontecia de tudo, inclusive tiros”, em
seguida usou uma espécie de “alívio cômico” para dar conta
da angústia do episódio. Ela prossegue e canta “que tiro foi

93
esse?”1, música que fazia sucesso no momento da cartografia.
Um breve comentário, dito em tom jocoso, mas que expres-
sava muito mais do que se pretendia dizer. Posteriormente,
segundo o relato das trabalhadoras, e de notícias divulgadas
em sites jornalísticos da fronteira internacional, soubemos
que uma médica daquela UBS foi assassinada por seu ex-
-companheiro. O crime foi classificado como feminicídio. O
motivo teria sido a não aceitação, por parte do ex-marido, do
término do relacionamento e, também, porque a profissional
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

recebia um salário maior que o dele (PAVÃO, 2016).


diálogos interdisciplinares

O feminicídio aconteceu em uma manhã de trabalho.


Enquanto tomavam café da manhã na cozinha, três profissio-
nais notaram que um homem entrou armado na Unidade de
Saúde. Este dirigiu-se rapidamente ao consultório, quando
percebeu que a médica não estava lá. Ele foi, então, na dire-
ção das mulheres. Assim que as elas compreenderam toda a
situação, tentaram trancar a porta do lugar. Contudo conse-
guiram apenas bloqueá-la com o corpo, de modo a impedir a
passagem do assassino.
O ex-marido efetuou um disparo na porta, que pas-
sou entre duas trabalhadoras que obstruíam o seu caminho.
Elas caíram no chão, liberando acesso dele ao local. Quando
entrou na cozinha, o homem disparou duas vezes na médica,
depois saiu do cômodo. Em seguida, ele retornou e atirou
mais uma vez na mulher, que já estava caída.
O episódio é marcado pelo ódio, que o ex-marido
nutria em relação a mulher. A decisão de cometer o femini-
cídio é evidenciada pela busca que faz dentro da UBS. Aos

1 Música de autoria da cantora de funk Jojo Todynho.

94
moldes de uma caçada, o homem adentra o local, procura
a companheira em diferentes cômodos, até encontrá-la e
partir em sua direção. O bloqueio da porta mostra a tentativa
das trabalhadoras de salvar a colega da intenção assassina
daquele homem.
No local restaram marcas subjetivas entre as profis-
sionais que vivenciaram o episódio, “quando ele voltou, eu
pensei: ‘pronto, vamos morrer!’. E só fechei os olhos”. Uma delas
pontuou nunca ter esquecido o olhar do assassino antes do
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

último disparo. O que aconteceu na UBS se fazia presente de


diálogos interdisciplinares

diferentes modos. As trabalhadoras sentiam-se tristes, com


raiva, culpadas por não terem conseguido ajudar a colega
de alguma maneira, ou por não a terem orientado antes da
situação chegar àquele ponto. Somada à essas emoções, ha-
via também a sensação de desamparo, pois “só quatro meses
depois as psicólogas [enviadas pela gestão municipal] vieram
aqui”. Era uma variedade de afetos intensos e difíceis de
lidar, que iam da raiva aos risos provocados pelas brincadei-
ras defensivas.
A notícia abalou profundamente as profissionais e a
fronteira de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero. Há, ainda,
diversos vestígios daquele episódio na Unidade. Ficaram os
traços carregados pelas trabalhadoras e permanecem indí-
cios no próprio local, pois um dos tiros atingiu a porta da
geladeira da cozinha. O buraco causado pelo tiro ainda era
visível, relembrando-as, implícita e cotidianamente, da trági-
ca vivência. Com o intuito de aplacar um pouco o sofrimento
vivenciado, e para esconder o buraco causado pelo disparo,
as trabalhadoras colocaram um ímã de geladeira na porta,

95
na parte exterior do eletrodoméstico, e um esparadrapo na
parte interna. “Um curativo foi feito na geladeira”, comentaram.
Percebíamos a tentativa de se “maquiar” as cicatrizes
daquele episódio. A maquiagem, utilizada como parâmetro
para os cuidados em saúde mental das usuárias da UBS, ser-
via também para maquiar o ato de violência cujas trabalha-
doras foram vítimas. Para que serve, então, a maquiagem? O
duplo registro se faz presente novamente. Ela parecia servir
para, além das questões estéticas, escamotear a profunda
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

violência cotidiana enfrentada pelas mulheres. Maqueia-se


diálogos interdisciplinares

os pequenos e os grandes atos de violência, os desrespeitos,


os abusos, as agressões para, em seu lugar, apresentar uma
sociedade “embelezada”. É preciso sobreviver à violência
diária e estrutural cometida pelo sistema patriarcal contra
as mulheres.
De acordo com Santos (2018), o patriarcado surge com
uma das três formas de dominações modernas, seguidas do
capitalismo e do colonialismo. Essas formas de dominação
atuam de modo complementar e articuladas entre si. A arti-
culação ocorre da seguinte maneira. Nos últimos anos temos
acompanhado a consolidação dos ideários neoliberais (caros
ao capitalismo) ao redor do mundo. Como consequência,
junto com a produção subjetiva consumista/mercadológica/
neoliberal, é patente atitudes e intenções neo-coloniais em
relação a diferentes grupos, povos, etnias, países etc. Con-
comitante a essas duas forças, o patriarcado também impõe
sua dominação e opressão sobre os corpos das mulheres e de
outros sujeitos dissidentes que questionam os tradicionais
papéis de gênero, impostos como modelos.

96
É importante frisar que episódio acima não faz parte
apenas das paisagens fronteiriças. Os índices de feminicídio e
de violência contra as mulheres têm aumentado anualmente
no cenário nacional. De acordo com o Cerqueira et al. (2018),
no ano de 2016 foram registrados 4.645 assassinatos contra
mulheres no Brasil. Isso equivale, em comparação com da-
dos da última década, a um aumento de 6,4% desses crimes
no País. A taxa nacional é de 4,5 feminicídios a cada 100 mil
mulheres brasileiras. Para o autor, antes de se chegar ao
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

feminicídio, há um histórico de outros tipos de violência de


diálogos interdisciplinares

gênero sofridos pelas mulheres. Dessa maneira, até o trágico


desfecho, elas são vítimas de outras formas de violências,
como a física, psicológica, sexual, entre outras.
Os dados acima computam apenas os casos de femi-
nicídios cometidos contra mulheres sem distinção de raça ou
cor. Apesar de nenhuma trabalhadora da UBS fronteiriça se
declarar como negra, entendemos ser importante assinalar
os índices de violências cometidas contra as mulheres
negras. Quando se faz este recorte, os números apontam
um aumento de 71% em comparação com as mulheres não
negras (CERQUEIRA et al., 2018).
Com relação ao Estado de Mato Grosso do Sul, os da-
dos salientam que entre 2006 e 2016 houve um aumento de
45,5% de violências cometidas contra as mulheres. Apenas
entre os anos 2015 e 2016, a taxa registrada foi de 37,9%. No
ano de 2016, os índices de assassinatos no estado foram de
6,0 a cada 100 mil mulheres (superior à taxa nacional de 4,5
homicídios a cada 100 mil mulheres). Com relação à cor/raça,
a taxa de feminicídios no MS foi de 6,3 para cada 100 mil
mulheres negras.

97
Notamos, então, que ser mulher no Brasil é algo peri-
goso, ser mulher e negra acaba por ser duplamente perigoso.
Já que, para além dos crimes motivado pelas questões de
gênero, existem também aqueles com motivações racistas,
tendo em vista a incidência de feminicídios dos quais as
mulheres negras são vítimas.
Os números trazidos por Cerqueira et al. (2018)
corroboram a posição de Santos (2018) sobre o patriarcado
como uma das três formas de dominação das sociedades mo-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

dernas. Assim, as sociedades patriarcais enfatizam a suposta


diálogos interdisciplinares

superioridade e dominação masculina ao tratar as mulheres


como suas “propriedades”. O MS convive com altos índices
de feminicídio, esses crimes são reflexos da forte ideologia
patriarcal que permeia seu território. A violência surge como
fruto desse sistema nefasto, que causa intensos sofrimentos
físicos, psíquicos e sociais para toda a população e, princi-
palmente, para as mulheres.
Após a análise das estatísticas sobre a violência
contra as mulheres, é preciso problematizar o conceito de
feminicídio. Pois, junto ao conceito de gênero, é de extrema
importância para dar visibilidade as relações de poder exis-
tentes na sociedade.
Segundo Meneghel e Lerma (2017, pp. 118-119), o ter-
mo femicídio foi utilizado pela primeira vez por Diana Russel,
no ano de 1976, “perante o Tribunal Internacional sobre Cri-
mes Contra as Mulheres em Bruxelas, para caracterizar o as-
sassinato de mulheres devido ao fato de serem mulheres”. Em
seu discurso, Russel afirmou que esses crimes são motivados
“pelo ódio, desprezo, prazer ou sentimento de propriedade
sobre a mulher” (MENEGHEL; LERMA, 2017, p. 119).

98
De acordo com Gomes (2018), a violência contra as
mulheres é calcada, principalmente, pela lógica patriarcal,
que cria as relações de poder desiguais entre homens e mu-
lheres, onde estas são relegadas a condições de inferioridade.
Para a autora:

O reconhecimento de uma sociedade


patriarcal é fundamental, para entender o
fenômeno dos feminicídios e de todas as
formas de violência e discriminação sofridas
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

pelas mulheres, mas também, para entender


determinada forma de violação aos direitos
diálogos interdisciplinares

humanos de todas as pessoas que fogem de


um padrão hegemônico, em especial, de ser
mulher e de ser homem (GOMES, 2018, p. 4).

Margarites, Meneghel e Ceccon (2017) e Meneghel e


Margarites (2017) afirmam que a discussão sobre o femini-
cídio ainda é recente e serve para delimitar os contornos de
um fenômeno social que durante muito tempo foi ocultado
na sociedade. Dessa forma, para as autoras, o feminicídio
consiste em “um conceito de cunho político e legal que
designa assassinatos pautados em gênero ou mortes femi-
ninas por agressão, cujo determinante decorre do fato de a
vítima ser mulher” (MARGARITES et al.,2017, p. 226).
Já para Gomes (2018), no feminicídio ocorre o as-
sassinato de forma violenta, não acidental e cometido por
parceiros que conviviam íntima e afetivamente com as
mulheres. Em muitos casos, a autora aponta que um dos
motivadores desses crimes seria de que a “tradicional” con-
cepção dos papéis de gênero, compartilhados pelo patriar-
cado, não foi realizado pela mulher vítima de feminicídio.

99
Por essa razão, é importante

Reconhecer a existência dos feminicídios e


identificá-los dentre as mortes de mulheres
é tarefa fundamental, no marco de um
processo em defesa dos direitos humanos,
porque apropriar-se do vocabulário “femini-
cídio” implica em apreender um conjunto de
concepções teórico-políticas que localizam a
violência de gênero, suas características e seu
contexto de produção (GOMES, 2018, p. 3).
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Dessa forma, a discussão sobre os conceitos de gênero,


diálogos interdisciplinares

violência de gênero, machismo, misoginia são imprescindí-


veis para a defesa dos direitos humanos das mulheres, como
pontuou Gomes (2018). É, acima de tudo, um ato político em
defesa da vida. Os conceitos abordados aqui servem para dar
visibilidade a um fenômeno que afeta o cotidiano de muitas
mulheres e que não fazem parte apenas das paisagens do
território fronteiriço. Por mais que haja a tentativa de “ma-
quiá-las”, por parte de alguns, essas histórias de violência
repetem-se por diferentes territórios e fazem-nos questionar
as fronteiras humanas.

Considerações finais

As andanças pela região da fronteira internacional


entre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero nos permitiram
acessar suas paisagens psicossociais. Nossa intenção era
a de produzir uma cartografia sobre a loucura na ABS,
contudo, fomos forçados a fazer algumas paradas nos
assuntos tratados aqui, pois faziam parte dos desafios co-
tidianos enfrentados pelas trabalhadoras de saúde daquele

100
território. As experiências que tivemos na composição do
campo fronteiriço nos mostraram a relação existente entre
saúde, gênero, loucura, fronteira(s) e seus desdobramentos.
Notamos os atravessamentos “modelares-hegemônicos” em
relação ao corpo e à aparência femininas, que perpassam,
simultaneamente, os papéis de gênero, a saúde, as usuárias e
as trabalhadoras da UBS.
Os modos de ser mulher em nossa sociedade eram
usados de forma ambivalente nos cuidados ofertados pela
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

ABS da fronteira internacional. Eram práticas utilizadas de


diálogos interdisciplinares

duas maneiras: como estratégias para a produção de cuida-


dos destinados as usuárias; e, também, na naturalização das
imposições de um modo específico de ser mulher, amparadas
em um padrão de beleza a ser seguido. Seu funcionamento
se dava como uma forma de “critério de diagnóstico psiqui-
átrico”. Aquelas mulheres que não cuidavam da aparência
física eram consideradas como “doentes mentais” ou, em
certo sentido, loucas.
O campo nos fez experienciar, além dos desafios
enfrentados pelas trabalhadoras para a atuação no SUS fron-
teiriço, os desafios para enfrentarem as violências as quais
mulheres são submetidas cotidianamente. Os reflexos do fe-
minicídio ainda permeiam o imaginário da UBS e da fronteira
Ponta Porã-Pedro Juan Caballero. O humor foi um mecanismo
de defesa, uma válvula de escape, para que aquelas mulheres
pudessem dar conta daquele trágico episódio. Diferentes for-
mas de enfrentamento e de solidariedade surgiram entre as
trabalhadoras e as usuárias, a fim de que pudessem suportar
a violência enlouquecedora de que são vítimas.
Por fim, este excerto é, antes de tudo, um desvio, uma
parada que o campo nos convidou a fazer para acompanhar

101
seus processos. Enquanto produzíamos uma cartografia so-
bre a loucura na ABS da fronteira internacional, deparamo-
-nos com o jogo de forças, as relações de poder e de gênero,
que permeiam a sociedade, e que oprimem as mulheres e
sujeitos dissidentes. Nesse caminhar, vários afetos e ques-
tionamentos nos tomaram. Um dos que nos acompanhou,
constantemente, pelo percurso da pesquisa foi a pergunta:
Como é possível a nossa sociedade – dita civilizada – na-
turalizar qualquer tipo de violência, principalmente aquelas
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

cometidas contra as mulheres? Esses são assuntos para


outras cartografias.
diálogos interdisciplinares

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103
Mulheres plurais: refletindo
sobre a aplicação da Lei Maria
da Penha e as mulheres indígenas

Claudia Regina Nichnig

A Lei Maria da Penha, vigente no Brasil desde o


ano de 20061, traz expressamente que todas as mulheres
atravessadas por diferentes marcadores sociais devem ser
protegidas por esse mecanismo jurídico. Para refletir como a
lei pode expressar e proteger uma pluralidade de mulheres,
para que todas tenham acesso à proteção jurídica, entendo
importante fazer algumas considerações sobre o caminho
percorrido até a publicação da Lei Maria da Penha no Brasil.
Foram os movimentos feministas brasileiros que ao
denunciarem as diferentes formas de violência familiares
e conju­gais como práticas comuns em todas as classes
sociais buscaram a promulgação de uma lei protecionista
em 2006. Já nos anos setenta do século XX, mulheres brasi-
leiras denunciam as diferentes formas de violências contra
as mulheres buscam a mídia e no noticiário brasileiro, a
partir da fala de mulheres de elite que foram violentadas
e mortas por seus companheiros, como o caso emblemá-
tico de Angela Diniz e Doca Street (NICHNIG, 2016), o

1 Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.


br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 07.10.2020.

104
estranhamento era que a violência doméstica e familiar
também acometia mulheres das elites brasileiras. O que
resulta desse estranhamento naquele momento e que levou
mulheres as passeatas e panelaços pelo Brasil nos idos dos
anos 70 era um problema de classe, pois era naturalizada
a violência sofrida por mulheres no âmbito doméstico nos
lares de camadas populares do Brasil. O estranhamento
foi que a violência também era forma de calar e impedir
que mulheres das mais diferentes classes pudessem pen-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

sar e agir livremente, ou seja, o marcador de classe foi


diálogos interdisciplinares

escancarado para demonstrar que independentemente da


classe social as mulheres são vítimas de violências. Chamar
atenção para o caso de mulheres de elite também serem
vítimas de violências domésticas e familiares da mesma
forma que as mulheres periféricas, de classes populares,
entre outras, causou espanto, porque as mulheres de elite
não comumente expunham seus maridos e familiares
expondo cenas de violência, mas simplesmente aceitavam
passivamente a ideia de que as mulheres são propriedade
dos homens a partir do casamento e das relações familiares.
A ideia de que a honra a ser preservada é a honra masculi-
na (FONSECA, 2004), sendo que é possível que os homens
exerçam sua sexualidade fora da relação monogâmica e do
casamento, sendo que a traição masculina era (ou ainda é)
naturalizada, sendo relações extraconjugais experienciadas
por homens e mulheres eram problematizada de forma
diferente pelas famílias, sendo muito mais desonrosa a
traição realizada pelas mulheres. Para Claudia Fonseca “as
mulheres constroem sua identidade em torno dos ideais
de honra familiar, castidade e pudor. Dessa forma, dá-se a

105
impressão de que os homens estabelecem as regras e as mu-
lheres se submetem tranquilamente ao jogo” (FONSECA,
2004, p. 78). E naturalmente, sem estranhamento, quem não
se submete ao jogo e às ordens familiares e sociais, está su-
jeita a violência em âmbito privado e familiar, como forma
de correção e punição.
O conceito de violência de gênero se manifesta
no âmbito doméstico e familiar, mas também no espaço
público. A promulgação da Lei Maria da Penha, fruto dos
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

movimentos sociais brasileiros, mas também da punição


diálogos interdisciplinares

imposta ao governo pela inércia no julgamento de Maria da


Penha Fernandes e diante das inúmeras denúncias de Maria
da Penha em organismos internacionais, como a Corte Inte-
ramericana de Direitos Humanos, aconteceu no ano de 2006.
Assim, diferentemente do estranhamento inicial dos anos 70
sobre o acometimento de relações violentas para mulheres
e seus diferentes marcadores sociais, a Lei Maria da Penha
traz em seu bojo a pluralidade de mulheres que podem ser
protegidas pela lei, já que independente de raça, etnia, classe,
religião as mulheres são acometidas de violências e devem
ser protegidas por esse dispositivo legal.
Quando tratamos dos direitos fundamentais, um dos
alicerces da discussão sobre a efetividade dos direitos huma-
nos se pauta no direito a viver uma vida digna. Os princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana e da pro-
teção ao direito à uma vida digna deve pautar as relações
familiares e conjugais, as quais são regradas pela Lei Maria
da Penha. Quando a legislação pauta, em seu artigo segundo,
que “toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,
orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e

106
religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana” isso quer dizer que as todas as mulheres devem
ser protegidas. Mas será que todas as mulheres merecem a
mesma proteção? Ou será que esse atravessamento faz com
que a aplicação da legislação seja diferenciada para mulheres
de classes populares e mais favorecidas, mulheres brancas,
negras e indígenas, mulheres heterossexuais, bissexuais
lésbicas, mulheres analfabetas e dos diferentes níveis educa-
cionais; meninas, adolescentes, adultas e jovens e mulheres
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

das mais diferentes religiões fazem jus a proteção legal.


diálogos interdisciplinares

Mesmo que não esteja expresso o marcador de iden-


tidade de gênero, a proteção através da Lei Maria da Penha
para as mulheres transgênero e transexuais foi determinada
através da Projeto de Lei do Senado, que reconheceu o di-
reito das mesmas a serem protegias pelo instrumento da Lei
Maria da Penha, para “assegurar à mulher as oportunidades
e facilidades para viver sem violência, independentemente
de sua identidade de gênero”.2
Assim, o direito a uma vida sem violências está em
consonância aos princípios da Dignidade a Pessoa Huma-
na, da Igualdade, o Direito à Saúde e a Vida das Mulheres,
previstos na Constituição Federal Brasileira. Desta forma,
entendo necessária a discussão sobre a implementação da lei
em todo o território nacional, acessível a todas às mulheres,
bem como a implementação de políticas públicas que visem
o enfrentamento e a eliminação das violências, em especial
em relação às mulheres indígenas, que vivem nas aldeias,
áreas de retomadas, reservas indígenas ou cidades.

2 Projeto de Lei do Senado n° 191, de 2017, Autoria do Senador Jorge Viana. Dispo-
nível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129598.
Acesso em: 07.10.2020.

107
As mulheres indígenas: e a aplicação da Lei Maria da Penha

Neste artigo, gostaria de problematizar como as


diferentes formas de violência conjugal e familiar atingem
as mulheres indígenas que fazem com que pensemos não so-
mente nas dicotômicas experiências de homens e mulheres
atravessadas por relações desiguais de poder, mas as experi-
ências conjugais e familiares marcadas pela cultura indígena
em uma relação local/global:
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

No caso das sociedades indígenas, há de se


diálogos interdisciplinares

considerar não apenas formulações sobre


“homens” e “mulheres”, mas uma reflexão
que compreenda o contexto histórico, socio-
cultural e político em que estão inseridas, na
complexa relação entre o mundo da aldeia/
local e o exterior/global (SACCHI, 2014, p. 63)

Assim, se o debate teórico sobre as violências que


atingem as mulheres indígenas são ou não um reflexo do
colonialismo e permanece no debate da decolonialidade
de gênero, por autoras como Rita Laura Segato (2012)
e Oyèrónké Oyěwùmí (2004) é importante destacar que
relações conjugais e familiares violentas são uma realidade,
denunciadas pelas mulheres indígenas Guarani e Kaiowá
do Mato Grosso do Sul, que afirmam que as mulheres que
vivem em espaços urbanos, como a Reserva Indígena de
Dourados, mas também em aldeias e áreas de retomadas
tiveram experiências de relações violentas. Se pensarmos em
relação a aplicabilidade ou não da Lei Maria da Penha em
contextos indígenas ou o acesso a políticas pública para essas
mulheres, ainda é uma universo a ser pesquisado e debatido,
já que em perspectivas locais é possível perceber que as mu-

108
lheres indígenas de fato ainda são alijadas ao sistema Policial
e de Justiça, diante da dificuldade de registro das ocorrências
policiais, no acesso às Delegacias de Policia especializada,
devido as grandes distâncias das aldeias as cidades e ainda
ao acesso as autoridades policiais e de Justiça. Em pesquisa
realizada na cidade de Dourados, Sarah Pedrollo Machado
(2020) analisou boletins de ocorrência dos anos de 2017 e
2018 registrados na Delegacia de Polícia Especializada ao
Atendimento as Mulheres, e apontou a ínfima quantidade
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

de registros de mulheres indígenas, e as dificuldades dessas


mulheres registrarem ocorrências ocorridas na Reserva In-
diálogos interdisciplinares

dígena de Dourados, considerada a segunda mais populosa


reserva indígena do Brasil. A pesquisadora concluiu que os
poucos registros de mulheres indígenas reflete a dificulda-
de do registro, diante das grandes distâncias, ausência de
preparo para o atendimento de mulheres falantes da língua
guarani, mas também refletem questões culturais, como as
resoluções de conflitos que não necessariamente buscam as
iniciativas dos brancos (karais), que levam a criminalização
e o encarceramento. A questão da dificuldade de serem com-
preendidas devido ao fato de serem falantes da língua Gua-
rani e não compreenderem a língua portuguesa reflete na
dificuldade de acesso destas mulheres as políticas públicas
de proteção. A socióloga indígena Martina Almeida em seu
trabalho de conclusão de curso de Ciências Sociais (2019) re-
lata sua experiência de tradutora da língua Guarani em uma
delegacia de polícia na cidade de Amambai (MS). Mostra a
dificuldade de serem compreendidas quando não há uma
tradução de suas falas, em que seus relatos são insuficiente-
mente ouvidos e transcritos em delegacias de polícias nessa
região, mas que por certo é realidade de muitas mulheres

109
indígenas brasileiras. Martina Almeida relata a importância
da tradução dessas vozes, já que sem compreender a língua,
a uma tentativa de compreensão pelos agentes de Polícia,
que muitas vezes não condiz com que realmente aconteceu,
o que dificulta ou impede que os casos sejam realmente
investigados e os violentadores punidos.
A grande reflexão sobre resistência de mulheres
indígenas às violências sofridas me faz pensar que o corpo
das mulheres é um corpo-território e por isso precisa ser pro-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

tegido, das violências perpetradas pelos homens (indígenas


ou não) mas também pelo Estado.
diálogos interdisciplinares

Há uma latente ideia de que discurso institucional


precisa ser descolonizado ao tratarmos de mulheres indíge-
nas e negras, pois são enormes os desafios para o enfren-
tamento da violência e do racismo institucional no Brasil
(GOMES, 2019), o que é um tema debatido pelos feminismos
negros através da discussão das interseccionalidades.
Os estudos sobre as violências acometidas contra
as meninas e mulheres indígenas, que são desumanizadas
e trazem em seus corpos as marcas de sua etnia e do seu
gênero, devem considerar as especificidades regionais e
periféricas. Se essas mulheres são vítimas de violências no
Brasil desde a chegada dos colonizadores, sendo que nossa
nação é resultado de um estupro das mulheres indígenas e
posteriormente das mulheres escravizadas, as mulheres na
atualidade querem denunciar e serem ouvidas em diferentes
espaços, como as delegacias especializadas, mas também em
espaços de denúncia como o Kuñangue Aty Guasu.3

3 Além dos meus registros durante a participação no encontro de 2019, o documen-


to final produzido pelas lideranças foi encaminhado para diferentes autoridades
brasileiras, federais, estaduais e municipais. Disponível em: https://apublica.org/

110
Assim, se a própria lei traz em seu bojo que “todas
as mulheres” devem ser atendidas pela legislação, conside-
rando o marcador da diferença da etnia, ainda são poucas
as pesquisas e estudos sobre violências contra as mulheres
no Brasil que enfatizava esse recorte étnico. A pesquisa de
Angela Sacchi (2014, 2006) e Paula Faustino Sampaio (2019)
demonstram a urgência na abordagem da temática. O que
podemos dizer é que havia (ou ainda há em alguns espaços)
uma completa invisibilidade do modo de viver da população
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

indígena, como se estes fossem sujeitos do passado colonial


diálogos interdisciplinares

e não integrassem a população brasileira, sendo que discutir


as violências acometidas contra as mulheres nestes espaços
ainda são invisibilizados ou pouco problematizados.
Se o debate teórico de que a violência nos e dos povos
indígenas é ou não um reflexo do colonialismo e permanece
no debate decolonial (SEGATO, 2012) é importante destacar
que é uma realidade nos dias atuais, enfrentadas por mulhe-
res indígenas que vivem nos meio urbanos, mas também nas
aldeias. Se pensarmos em relação a aplicabilidade ou não da
Lei Maria da Penha em contextos indígenas ou o acesso a
políticas pública para essas mulheres, ainda é uma universo
a ser pesquisado e debatido, já que em perspectivas locais é
possível perceber que as mulheres indígenas de fato ainda
são alijadas ao sistema Policial e de Justiça, diante da difi-
culdade de registro das ocorrências policiais, no acesso às
Delegacias de Policia especializada, devido as grandes dis-
tâncias das aldeias as cidades e ainda diante da dificuldade
de acesso as autoridades policiais e de Justiça.

wp-content/uploads/2019/10/relatorio-final-da-vii-kunangue-aty-guasu-2019.pdf.
Acesso em: 01.04.2020.

111
Em pesquisa realizada na cidade de Dourados, Sarah
Pedrollo Machado analisou boletins de ocorrência dos anos
de 2017 e 2018 registrados na Delegacia de Polícia Especia-
lizada ao Atendimento as Mulheres, localizada na cidade
de Dourados, e apontou a ínfima quantidade de registros
de mulheres indígenas, e as dificuldades dessas mulheres
registrarem ocorrências ocorridas na Reserva Indígena de
Dourados, reserva indígena mais populosa localizada no es-
tado com a segunda maior população indígena do Brasil. A
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

pesquisadora concluiu que os poucos registros de mulheres


diálogos interdisciplinares

indígenas reflete a dificuldade do registro, diante das gran-


des distâncias, ausência de preparo para o atendimento de
mulheres falantes da língua guarani, mas também refletem
questões culturais, como as resoluções de conflitos que não
necessariamente buscam as iniciativas dos brancos (karais),
que levam a criminalização e o encarceramento (2020). A
questão da dificuldade de serem ouvidas e compreendidas
devido a incompreensão da língua Guarani em espaços
públicos nos fazem refletir sobre a dificuldade ou não acesso
destas mulheres as políticas públicas. A socióloga indígena
Martina Almeida em seu trabalho de conclusão de curso de
Ciências Sociais (2019) relata sua experiência de tradutora
da língua Guarani em uma delegacia de polícia na cidade de
Amambai (MS). Mostra a dificuldade de serem compreendi-
das quando não há uma tradução de suas falas, em que seus
relatos são insuficientemente ouvidos e transcritos em dele-
gacias de polícias nessa região, mas que por certo é realidade
de muitas mulheres indígenas brasileiras. Martina Almeida
relata a importância da tradução dessas vozes, já que sem
compreender a língua, a uma tentativa de compreensão

112
pelos agentes de Polícia, que muitas vezes não condiz com
que realmente aconteceu, pois a incompreensão da língua
dificulta ou impede que os casos sejam realmente investiga-
dos e os violentadores punidos.

Considerações finais

Assim, ao problematizar as dificuldades de serem


atendidas pelos mecanismos de proteção da Lei Maria da
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Penha, podemos pensar como as leis e as políticas públicas


alcançam de forma diferente as mulheres que vivem em dife-
diálogos interdisciplinares

rentes espaços geográficos. Assim, ao mesmo tempo em que


estão próximas de uma cultura que naturaliza as violências
contra as mulheres, as mulheres indígenas demonstram que
a naturalização de estarem restritas ao espaço privado e ao
cuidado dos filhos, bem como a exigência de que sejam mães
e vivam em conjugalidade, pode resultar em experiências de
violências em suas relações afetivo-conjugais.
A grande reflexão sobre a resistência de mulheres
indígenas no contexto de violência tendo em vista corpo-ter-
ritório foi uma das temáticas norteadoras do Kuñangue Aty
Guasu, em 2019, e tem relação com o debate teórico sobre
a decolonialidade de gênero. As mulheres indígenas, como
as Guarani e Kaiowá, tem denunciado que seus corpos são
territórios violentados por homens (indígenas ou não) e
sofrem igualmente a violência do Estado, que permite e/ou
se omite diante de práticas racistas. Mesmo que amplamente
combativas e resistentes as opressões, pensar as questões de
violências a partir de uma perspectiva interseccional e atra-
vés da perspectiva das mulheres indígenas trata-se de uma
questão urgente.

113
Referências
ALMEIDA, Martina. A luta e os direitos das Mulheres Indígenas Guarani Kaiowá:
Kuñangue Aty Guasu (Grandes Assembleias das Mulheres Indígenas Guarani
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dos conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. Tradução para
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journals.openedition.org/eces/1533 ; DOI : 10.4000/ eces.

114
Trajetórias de mulheres árabes, paraguaias
e brasileiras na fronteira de Pedro Juan
Caballero (PY) e Ponta Porã (BR)

Luana Maria Gutierres Barbosa


Marcos Mondardo

Introdução

No trabalho de Dissertação de Mestrado “Imigrantes


árabes na fronteira de Pedro Juan Caballero (PY) e Ponta
Porã (BR): relações comerciais, casamentos e práticas reli-
giosas”, as mulheres árabes, mulheres casadas com árabes,
mulheres descendentes de árabes e brasileiras convertidas
ao islamismo se constituíram como integrantes à rede de
imigrantes pesquisada que se localiza na fronteira entre Bra-
sil e Paraguai, respectivamente, nas cidades de Ponta Porã
e Pedro Juan Caballero. O contato com estas mulheres pos-
sibilitou uma discussão sobre suas trajetórias e os conflitos
vividos. Para isso foi necessário ler o espaço como a “esfera/
condição da multiplicidade” e do heterogêneo como propõe
a geógrafa Massey (2005), reconhecendo na espacialidade o
vivido e o simbólico em práticas que envolvem a cultura e as
estórias de vida.
A condição socioeconômica dessas mulheres está
vinculada diretamente ao trabalho de seus esposos, homens
árabes imigrantes. Das doze mulheres entrevistadas, Dona

115
Nazira trabalhava na loja do esposo, fechada há muitos anos,
outra mulher árabe teve seu próprio restaurante que funcio-
nou por pouco tempo, aproximadamente dois anos, uma
mulher paraguaia fazia artesanatos e uma mulher brasileira
possuía renda de imóveis provenientes da sua herança, en-
quanto as demais se denominaram do lar.
Foram entrevistadas doze mulheres e os preceitos
éticos foram seguidos. As entrevistas foram realizadas entre
os anos de 2016 e 2017. Neste trabalho não se discute sobre
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

o que é ser mulher árabe ou muçulmana, mas sobre os seus


diálogos interdisciplinares

conflitos diários, suas lutas internas, suas frustrações e le-


vantam-se também alguns pontos de reflexão.
Devido a um contato anterior com uma família ára-
be foi possível obter informações da vida cotidiana dessas
mulheres e de suas famílias. As entrevistas normalmente
foram informais, por meio de conversas. A intenção era ter
conversas nas quais elas estivessem à vontade, priorizando
o elemento qualitativo e não a quantificação de dados. As
conversas foram registradas em diário de campo.
Para isso fizemos uso como técnica de campo e com-
promisso ontológico a etnografia como propõe Tim Ingold.
Para o antropólogo britânico (2017, p. 223) “o objetivo da et-
nografia [...] é produzir uma descrição [...] da vida como ela
é de fato vivida e experienciada pelas pessoas em dado lugar
e em dado período”. Por isso é importante “estudar com as
pessoas, não fazer estudos sobre elas; este estudo não é tanto
etnográfico como é educativo”, sendo que, por isso, o nosso
“trabalho consiste em corresponder com eles, mas não falar
por eles”. (p. 222). Assim, a etnografia “não é uma técnica de
coleta de dados, mas um compromisso ontológico” (p. 225).

116
Mulheres árabes, paraguaias e brasileiras na fronteira

Safady (1966) faz um relato da primeira caravana de


libaneses no Brasil e, dentre eles, da chegada da primeira
libanesa ao país:

[...] registra o ano de 1887 como a época de


chegada da primeira caravana de libaneses –
a maioria proveniente de Zahle – à cidade do
Rio de Janeiro. Foi nessa caravana que che-
gou a primeira mulher libanesa que emigrou
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

para o Brasil, Manni Buainain Nimer, que


diálogos interdisciplinares

veio acompanhada de seu esposo, Dib Haikal


Nimer (SAFADY, 1966, p. 45).

Mondardo (2012, p. 46) afirma que analisar o migran-


te por meio da transterritorialidade consiste em aprender a
criar e a destruir territórios em um jogo de desterritorializa-
ção e reterritorialização. Para Hall (2009) a identidade é uma
construção contínua, ela é formada pela relação dos grupos
sociais ao longo do tempo histórico.
Na cidade de Ponta Porã, Brasil, enquanto as mulhe-
res trabalham em suas casas, os imigrantes árabes homens
trabalham no lado paraguaio (na cidade de Pedro Juan
Caballero) em lojas vendendo eletroeletrônicos, perfumes,
narguilés, entre outros. Sayad (1998), afirma que o trabalho
garante ao imigrante sua estadia, a ampliação e estruturação
de sua rede de relações.
No comércio de Pedro Juan Caballero, Paraguai,
observamos apenas uma mulher árabe trabalhando em seu
restaurante, como proprietária e administradora. No dia
09/10/2017, em uma conversa, Samira relata que “tem” que

117
trabalhar pois, “tinha oito filhos e tudo é caro”, frisando que
é normal a mulher trabalhar no Líbano. Depois da conversa,
ela foi em direção à cozinha, seu irmão a interceptou e fez
perguntas em árabe sobre o que havia dito, Samira o res-
pondeu e seguiu para a cozinha, falando de forma objetiva e
ríspida com suas duas funcionárias paraguaias.
No dia 03/04/2017 foi entrevistada a Dona Nazira
Haidar em sua casa. Quando o portão eletrônico foi aberto
havia um grande pátio cheio de parreiras e a decoração da
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

casa, bem como, do restaurante de Samira, apresentavam


diálogos interdisciplinares

elementos típicos da cultura árabe, sendo possível observar


os elementos de reterritorialização que os imigrantes utili-
zam para caracterizar os seus lugares de moradia e trabalho,
fazendo destes lugares acolhedores e com características de
sua identidade cultural.
Dona Nazira em sua cozinha e acompanhada de sua
cunhada fazia um café árabe. Ela já era uma senhora de ida-
de e estava tomando medicamentos quando começou a falar
sobre sua vida e mostrou os retratos. Dona Nazira casou
com um homem árabe no interior do estado de São Paulo.
Mudou-se para a fronteira quando tinha 18 anos, logo após
o casamento, e trabalhou no comércio durante esse tempo de
vida, na antiga loja Cliper, e informou que teve apenas uma
filha por vontade própria. Esses elementos da sua trajetória
de vida mostram sua força. Normalmente as mulheres árabes
têm muitos filhos e ela frisou em nossa conversa que optou
por ter apenas uma filha e que gostava da sua independência
de trabalhar e ter tempo disponível para as suas atividades.
Dona Nazira mostrou a foto de sua filha Rosinha, era
uma foto grande de quando ela ganhou o concurso de miss

118
fronteira em 1975. Rosinha é casada e tem três filhos que são
a alegria da avó Nazira. Ela mostra também algumas selfies
que sua cunhada fez; nelas ela estava com um véu cobrindo
seus cabelos, pois fez o Hajj1.
Outra mulher entrevistada será denominada por
Maria, de nacionalidade paraguaia, e que casou com Bilal
em Cidade do Leste, lado paraguaio da Tríplice Fronteira
de Brasil, Paraguai e Argentina. O contato com Maria se deu
em várias situações ao longo dos dois anos da pesquisa. Ela
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

era funcionária do seu esposo em Cidade do Leste, teve um


diálogos interdisciplinares

enlace amoroso com ele, acabou ficando grávida, saiu da loja e


foi para a casa de seu pai no interior o Paraguai; Bilal foi atrás
dela e a pediu em casamento; Maria mencionou isto durante
a conversa com ar de tristeza, pois relata que foi a única vez
que Bilal foi à casa de sua família; ela comentou que sabe que
o sonho de Bilal era casar com uma prima dele no Líbano.
Maria precisou se converter para casar com Bilal e
educar seus filhos seguindo o padrão muçulmano. Maria
relatou em vários momentos da conversa que até mesmo na
cozinha, ela não era boa para ele, aprendeu a cozinhar os
pratos árabes vendo canais de cozinha árabe, sem conhecer
uma palavra em árabe. Colocou o véu, mudou suas vesti-
mentas e hoje ela cozinha muito bem a comida árabe, mas
falou que ao fazer um prato da culinária paraguaia o seu
esposo reclama e não come.
Seus problemas aumentaram quando os irmãos de
seu esposo decidem casar e trazer as esposas libanesas para

1 Hajj – peregrinação à cidade de Meca, onde se encontra a Caaba (casa) construída


pelo Profeta Abrão e considerada a primeira edificação da fé monoteísta. É
aconselhável a todo muçulmano que tiver disponibilidade econômica e saúde, para
visitá-la ao menos uma vez em sua vida.

119
morarem com eles. As árabes riam e debochavam de Maria
em sua própria casa; ela se sentia cada vez mais sozinha em
seu lar, considerava que não era boa o bastante e, por mais
que tentasse se “arabizar”, não era o suficiente; ela não se re-
conhecia e nem sabia qual era o seu valor. Observamos que ela
lutava contra esse sentimento, mas ao mesmo tempo nutria
resistência e ressentimento entre ser a Maria paraguaia ou a
Maria esposa do Bilal.
Essa mudança de comportamento e/ou “mescla cul-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

tural” de Maria nesse “migrar” pode ser definido na Geogra-


diálogos interdisciplinares

fia como transterritorialidade. Haesbaert (2014) e Mondardo


(2012) argumentam que a cultura e os costumes se alteram,
as fronteiras íntimas são modificadas. Peters (2007) trabalha
com essa concepção, considerando a mulher brasileira, em
que a mulher paraguaia “migra” para os costumes da família
do marido sendo que a cultura da família do marido torna-se
a referência e o padrão a ser seguido.
Maria relatou que continua se adequando às necessi-
dades familiares, dividindo-se entre seu “lado” paraguaio,
seus filhos brasileiros, o esposo e sua família árabe. Hall
(2009) ressalta a diversidade entre as culturas e o fato de
não existir uma cultura “pura” e sim a mescla de culturas
que estão sempre em movimento. Haesbaert (2004) reitera
a importância de considerar nestas situações o hibridismo
cultural e de que sempre existiram mesclas de identidades.
Maria relata que seus problemas também estão
relacionados com a infidelidade do esposo; ela já teve a
infelicidade de ver seu esposo a traindo com uma secretária
paraguaia que trabalhava na mesma loja em Pedro Juan Ca-
ballero. O fato de Bilal ser muçulmano xiita, a cultura permite

120
que ele possua até três esposas, sendo esse um dos maiores
temores de Maria. Além do casamento formal Bilal pode
casar temporariamente com outras mulheres e na fronteira o
homem árabe muçulmano xiita utiliza-se deste recurso para
namorar com mulheres brasileiras e paraguaias, e fazer um
casamento temporário.
As famílias estudadas demostrarem um modelo
patriarcal, em que o homem trabalha e é o provedor, e tem
a decisão sobre o futuro dos demais membros da família.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Assim quando os filhos entram na adolescência começa a


diálogos interdisciplinares

haver conflitos, por espaço, independência e até questiona-


mento nas decisões. Sawaia (2001) discorre sobre os choques
de identidades, a necessidade de hierarquização e regulação
de poder. No casamento interétnico as negociações e hierar-
quizações se mostram fundamentais para a manutenção da
família e para felicidade dos envolvidos.
No dia 24/11/2017, em visita à Mesquita em Ponta
Porã, lado brasileiro da fronteira, a conversa informal se deu
com Faruk, homem árabe que esperava sua filha de onze
anos sair da aula de religião; ele informou que sua esposa
é evangélica e se chama Beatriz; comentou também que sua
filha está fazendo um curso de graduação na Universidade
Estadual do Mato Grosso do Sul e falou que a escolha da
religião de suas filhas é livre, “elas vão escolher no tempo
certo”, afirmou.
Faruk comentou que quando conheceu Beatriz,
a família dela não permitiu a amizade entre eles, por isso
eles fugiram e se casaram em Cidade do Leste, Paraguai, e
sua esposa era virgem. Ao conversar com Beatriz a mesma
demostrou viver com fronteiras rígidas. Ela tem contato

121
com sua família todos os domingos e seu esposo vai para o
almoço na casa de sua mãe; ela gosta de sua religião e não se
relaciona e muito menos quer proximidade com a família do
esposo. Ela casou virgem, olha para as libanesas no mesmo
nível de pureza religiosa e fica muito ofendida quando falam
que “não existe mulher brasileira virgem”. Beatriz tem três
meninas e todas são brasileiras. Faruk, por sua vez, demos-
trou muito orgulho de sua esposa e afirmou “minha esposa
é maravilhosa!”.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Essa questão da virgindade é recorrente nas traje-


diálogos interdisciplinares

tórias das mulheres árabes que entrevistamos. Em outra


conversa, Estela falou sobre o fato de ter casado virgem com
seu esposo libanês; ela comentou que seu cunhado fala que
duvida sobre o fato de ela ter casado virgem e que isto a
incomoda muito.
No dia 10/01/2017, na casa de Beatriz estava presente
Ana, outra paraguaia casada com um libanês. Ela comentou
sobre sua cunhada de nome Laila:

O marido de Laila, sempre foi louco apaixo-


nado por ela, fez de tudo para trazer ela do
Líbano, desde que ele tinha onze anos queria
casar com ela. A Samira é muito difícil, nunca
está contente, sempre reclama, é muito
invejosa, não pode ver ninguém ganhando
alguma coisa que quer também, pede para
o marido na hora, se ele não dá, ela fica em
cima. Esses dias ela estava com o olho roxo,
porque queria uma geladeira nova, você
acha? Ela não dá tempo para o marido dela,
apanhou! Ela é muito chata! (ANA, entrevista
realizada em 10/01/2017).

122
Beatriz também comentou sobre sua cunhada libane-
sa chamada Nádia:

[...] ela é louca pra fazer filho, está fazendo


tratamento, o marido traiu ela um monte
falando que ela era seca, ele foi fazer o exame,
o problema era com ele, dava dó dela, você
acredita que ela era cheia de doença, corri-
mento, vivia no ginecologista, até menina
no banheiro da loja ele pegou, como vive
assim? (BEATRIZ, entrevista realizada em
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

10/01/2017).
diálogos interdisciplinares

Beatriz comenta sobre uma tarde que um Sheikh


decidiu fazer uma conversa entre as mulheres árabes,
paraguaias e brasileiras, pois havia muita fofoca e um des-
conforto na comunidade.
Sentaram as mulheres libanesas, de um lado, e as
paraguaias e brasileiras, do outro, no meio ficavam as que
tinham algum grau de parentesco fazendo a ponte. Uma
mulher libanesa perguntou em árabe e as mulheres para-
guaias e brasileiras não sabiam o que estava acontecendo, a
pergunta era sobre o sexo anal, se era permitido na religião
ou se era pecado.
As mulheres paraguaias achavam que isto era um
absurdo, pois, o corpo era delas e não eram obrigadas a fa-
zerem algo que não é bom para elas em função do prazer do
esposo. Por outro lado, a posição do Sheikh em sua resposta
era a de que as mulheres deveriam fazer o que seus maridos
desejassem demostrando à concepção masculina e religiosa.
Esse entendimento da mulher como objeto, que existe para
suprir a necessidade do homem, está presente tanto no

123
Oriente como no Ocidente, por isso a luta é global para qual-
quer mulher, pois essa visão deve ser desconstruída.
Além disso, dentro da comunidade árabe da fron-
teira, especialmente sobre as filhas, existem vários relatos
de quando as meninas estão na idade púbere às mesmas
são enviadas para o Líbano, para retornarem casadas com
libaneses. Por outro lado, os filhos nascidos no Brasil, de
homens árabes, facilitam a legalização do documento para
os pais árabes.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Peters (2007) em pesquisa sobre palestinos no Brasil


diálogos interdisciplinares

aborda a “importação de esposas”, quando o homem árabe


já estabelecido retorna para seu país para procurar uma
esposa adequada. Entre as conversas com as paraguaias,
elas comentaram sobre um caso de uma libanesa que casou
pensando que o marido possuía bens no Brasil e não tinha
nada, trabalhava como empregado para outro árabe e que a
mesma se viu em um casamento sem amor e sem dinheiro.
Irene, brasileira casada com um libanês e amiga das
mulheres paraguaias, afirmou em diálogo informal que
quando o irmão do seu esposo voltou do Líbano com sua
“esposa importada”, sentiu-se incomodada com sua presença;
a cunhada chegou em sua casa e na sua cozinha e colocou em
todos os potes papéis em árabe descrevendo os nomes dos
alimentos. Ela roubou a única amiga árabe que Irene possuía,
aquela que se casou acreditando na riqueza do esposo.
Normalmente nas reuniões familiares de Irene se
faz presente às duas mulheres libanesas. Irene relatou que
as duas a ridicularizam e que o vínculo de amizade existe
apenas entre os homens árabes, pois elas se tratam com uma
falsa cortesia e ironia. Irene atualmente está usando o lenço

124
na cabeça, incorporando a cultura religiosa do esposo, mas
acha que é uma tolice; ela incorpora esses elementos para
não ter problemas a mais em seu casamento. Irene falou que
sua cunhada é espaçosa e se deixar “ela será a patroa e eu
a empregada”. É perceptível que existe uma disputa por
território na casa, e para sanar esse problema, ela informou
que sua cunhada iria se mudar em breve.
Muitas mulheres brasileiras e paraguaias se conver-
tem ao islamismo mesmo sem casar com árabes, mas procu-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

ram esposos árabes para construírem uma família mais perto


diálogos interdisciplinares

da fé que escolheram. Uma moça brasileira, Joana, de Ponta


Porã, falou que decidiu se tornar muçulmana, pois, seu pai
trabalhava para um árabe e ela sempre observava a mulher
e suas filhas com o véu e achava lindo. Sem falar na riqueza
que tudo parecia ser mais fácil para os árabes.
Joana se envolveu com alguns homens muçulmanos
xiitas fazendo casamentos temporários e ganhando presentes
desses homens. Esse casamento temporário é chamado de
“muttah” em árabe, e para os árabes sunitas muçulmanos é
um erro, não deveria existir. Em alguns casos é um processo
de prostituição, em que por meio de um presente pode haver
relação sexual entre o homem e a mulher e depois cada um
segue sua vida. O homem em muitos casos não trata essa
mulher como deveria, só aproveita e depois a descarta.
Esse casamento temporário é um problema para
todas as mulheres casadas com árabes xiitas, pois, além de
duas esposas oficiais perante a religião, esses homens podem
fazer esses casamentos com outras mulheres por dias, sema-
nas, meses e com o tempo, pode se tornar um casamento
oficial e permanente.

125
Um fator que parece recorrente é sobre usar o véu,
as mulheres muçulmanas tendem a cobrir os cabelos em
diversos países e culturas, em cada cultura existe uma forma
ou modelo de hijab ou véu.
No Brasil o que é comum é usar lenços que cobrem
todo o cabelo, a face fica descoberta, devido aos imigrantes
serem predominantemente libaneses, sírios e palestinos. Em
países como o Irã se utiliza o Shador, um lençol preto que
cobre o corpo inteiro, mas pode aparecer uns fios de cabelo;
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

no Afeganistão as mulheres usam a burka que cobre o rosto


diálogos interdisciplinares

inteiro e elas conseguem ver por meio de uma tela de tecido


toda furadinha; na Arábia Saudita as mulheres usam o niqab
em que é possível ver apenas os olhos.
Espinola (2005) discorre que o uso do véu é uma for-
ma de identidade, de mostrar a comunidade que eles estão
lá, que fazem parte de uma comunidade de pertencimento.
Mesmo compartilhando de uma cultura árabe, o véu é uma
forma de visibilidade para comunidade muçulmana em
países não muçulmanos.
Arroyo (2017, p. 91) afirma que o uso do hijab é uma
construção de sua territorialidade por meio do geossímbolo
religioso, auxiliando na desconstrução negativa do que é ser
árabe no Ocidente.
As mulheres brasileiras e paraguaias quando optam
em seguir a religião dos maridos e incorporam o uso do
véu, o fazem para satisfazer a vontade de seus esposos,
sendo uma referência positiva para suas filhas. As descen-
dentes árabes que optaram em colocar o véu, colocaram
por outro motivo, por buscar suas raízes e sua identidade.
Os conflitos no Oriente Médio e a xenofobia fizeram com

126
que aumentasse o número de jovens usando o véu, utili-
zando-o como um símbolo contra a perseguição, buscando
a aceitação do diferente.
A mulher árabe e muçulmana não procura seu espaço
e seus direitos apenas na sociedade ocidental, em seus países
árabes, asiáticos e africanos elas também lutam. Podemos
citar Ayann Hirsi Ali (2007), em seu livro biográfico “Infiel:
a história de uma mulher que desafiou o islã”, ao se des-
vencilhar de seu clã muçulmano, ela sofreu mutilação como
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

a retirada do clítoris, xingamentos, perseguições e teve o


diálogos interdisciplinares

crânio fraturado por um pregador religioso em sua trajetória


de refugiada e imigrante.
Azar Nafisi, professora Universitária de Teerã, que
depois da Revolução de Khomeini (1979), começou a restri-
ção com obras literárias estrangeiras, escreveu “Lendo Lolita
em Teerã: memórias de uma resistência literária”.
Shirin Ebadi em 2003 ganhou o Nobel da Paz com seu
trabalho de juíza; Malala Yousafzai, paquistanesa em 2014,
sofreu agressões e foi baleada na rua e continua lutando
pelos direitos das mulheres.
O Islamismo surge com o Profeta Mohamed.
Muitas mulheres fizeram parte de sua vida, sua mãe teve
Mohamed viajando pelo deserto somente com uma dama
de companhia; Mohamed foi casado com uma mulher mais
velha, Khadija, sábia e detentora de bens; teve uma esposa
mais jovem, Aisha, que sabia ler e era professora de religião.
Mohamed divulgou que os homens não deveriam matar as
suas filhas, pois elas eram tão preciosas quanto os filhos.
Na religião muçulmana eles possuem o livro sagra-
do o Alcorão, usam os hadiths que são ditos do profeta, ou

127
histórias do profeta em certas situações que moldam como o
muçulmano deve se portar nestas situações, mas estas ade-
quações se tornam leis em alguns países e influenciam dire-
tamente na jurisprudência do país. A religião não se torna
opcional e sim a regra de como viver na sociedade, se torna a
lei, que são administradas e manuseadas por homens.
Dentro da Mesquita os lugares são separados, as mu-
lheres ficam em um canto e os homens em outro. Em várias
mesquitas que conhecemos sempre os lugares dos homens
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

são mais centralizados, lembrando que não é obrigação da


diálogos interdisciplinares

mulher ir à Mesquita, elas podem e devem orar em casa,


enquanto que para o homem é obrigação ir à Mesquita ao
menos para a oração de Sexta-Feira.
As mulheres não devem fazer orações no período
menstrual, pois, todo muçulmano deve estar “limpo”, sem
exalar secreções, gases ou má higiene pessoal. Todos devem
se limpar adequadamente, existe um ritual de limpeza, cha-
mada de ablução.

É o sangue que aparece todo mês, e que ao


vê-lo ou senti-lo enquanto estiver orando, a
mulher deve interromper a oração. Quando
a menstruação termina, ela deverá banhar-se.
O período da menstruação varia de 3 dias no
mínimo, até no máximo 10 dias. Caso este
período ultrapassar os dez dias, ela deverá
tomar banho, fazer a ablução e rezar (AL-
-KHAZRAJl, 2004, p. 45).

Motahari (2008) caracteriza padrões de como uma boa


mulher muçulmana deve ser, seus deveres, suas obrigações,
como rezar, se limpar e como se vestir. O autor relata que as

128
mulheres e homens são diferentes fisicamente, organicamente
e psicologicamente. Considera também que muitos trabalhos
são inapropriados para as mulheres, justificando pela sua
estrutura frágil, e ratifica que as mesmas dependem da força
do homem (macho) em sua visão androcêntrica e patriarcal:

Além disso, o seu período menstrual, os


inconvenientes durante a gravidez, as
dificuldades do parto e a criação dos filhos,
tudo isto a colocou numa situação em que
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

está sob a proteção do homem, com menos


responsabilidades e mais direitos. Isto não
diálogos interdisciplinares

se restringe só aos seres humanos: todos os


animais que vivem aos pares procedem desse
modo. Em Todas essas espécies o macho se
ergue em defesa de sua companheira. Se a
disposição natural e inata de ambos os sexos
for tida em vista, e se nos lembrarmos da
sua igualdade no fato de serem humanos e
de partilharem dos direitos da humanidade,
então, a mulher encontrar-se-á numa posição
muito favorável: nem a sua individualidade
nem a sua personalidade serão esmagadas.
(MOTAHARI, 2008, p. 25).

Considerações finais

Na fronteira de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero,


as mulheres casadas com árabes possuem uma grande
dependência econômica dos maridos, da mesma forma que
seus filhos e filhas. Até mesmo as mulheres brasileiras e
paraguaias não trabalham ou exercem qualquer atividade
econômica que seja fora do lar. Dentre as entrevistadas, so-
mente Irene, mulher brasileira, detinha renda proveniente
da herança dos pais.

129
Não foi possível entrevistar as mulheres árabes,
com exceção da Dona Nazira, pelo fato delas não falarem
português ou espanhol, mas suas cunhadas brasileiras e
paraguaias, sempre as mencionaram nas conversas. Foi
perceptível que para elas a vida tem suas dificuldades, tais
como: adequação/reterritorialização em outro país, pro-
blemas financeiros, dependência econômica e, em muitos
casos, infidelidade de seus esposos. Para Castells (1999), a
construção da identidade é gradual, o imigrante está em ou-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

tro lugar, mas continua sendo a mesma pessoa, ele necessita


se adequar, ser aceito, sua jornada deve ser pensada, com
diálogos interdisciplinares

muito sacrifício e empenho.


O “ideal” para uma sociedade igualitária entre ho-
mens e mulheres é escutar quem não pode ser escutado no
momento, quem está em uma minoria, quem não sabe falar o
idioma do país que vive. Por isso, para as mulheres árabes, pa-
raguaias e brasileiras a casa se torna uma prisão, uma barreira,
uma fronteira. Spivak (2010), nesse sentido, discute sobre a
necessidade do “subalterno falar”, ou de ver sua imagem
subalterna, a necessidade de mulheres se posicionarem em
uma situação melhor, visibilizar o discurso e construir empo-
deramento feminino para quem não consegue ser escutada
em determinado espaço e tempo.
As descendentes de árabes estudam em geral em
escolas particulares, muitas têm acesso às universidades.
Para essa geração o casamento não é uma prioridade, elas
sabem sobre o empoderamento feminino e tem a ambição de
ter outro futuro, diferente das gerações anteriores. Para essas
mulheres residentes na fronteira entre Brasil e Paraguai exis-
te esta consciência de não serem dependentes dos homens
como são suas mães.

130
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131
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gualdade social, Editora Vozes, Petrópolis, 2001.

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SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Editora UFMG, Belo


Horizonte, 2010.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)
diálogos interdisciplinares

132
Invisibilidade perversa: violência
contra a mulher indígena no município
de Dourados-MS

Sarah Pedrollo Machado


Paola Ferreira de Oliveira
Pamela Staliano

Introdução

As mulheres indígenas são imensamente respon-


sáveis pela reprodução de sua cultura e cumprem papéis
fundamentais dentro de suas famílias e comunidades. Elas
enfrentam processos de discriminação histórica e estru-
tural, resultando em violações de seus direitos humanos,
passando por obstáculos frente ao mercado de trabalho,
consequentemente dificuldades econômicas, bem como
dificuldades geográficas. Essa exclusão reforça os proces-
sos discriminatórios que as tornam mais vulneráveis às
variadas formas de violência.
O relatório da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) de 2017 adota a definição de violência
contra a mulher da Convenção de Belém do Pará, nela a vio-
lência contra a mulher é qualquer ato ou conduta baseada no
gênero, que cause dano ou sofrimento físico, psicológico ou
sexual à mulher, bem como a morte. A Comissão considera
ainda as formas de violência espiritual – dano a identidade

133
coletiva e cultural das mulheres indígenas; e obstétrica – situ-
ações de tratamento abusivo ou negligente com as mulheres
durante a gravidez até o pós-parto.
Segato (2014) afirma, respaldada em evidências his-
tóricas e relatos etnográficos, a existência da nomenclatura
de gênero nas sociedades indígenas, ainda que vinculado a
um patriarcado de baixa intensidade, ou seja, uma organiza-
ção patriarcal com ressalvas do gênero ocidental, que com a
modernidade tornou o gênero mais hierárquico.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

O gênero é compreendido como papéis sociais


diálogos interdisciplinares

desempenhados por homens e mulheres dentro ou fora do


âmbito doméstico. Essa associação faz parte de um processo
cultural que fundamenta e orienta os padrões de comporta-
mento de uma sociedade (SEGATO, 2003).
Embora a usurpação do corpo feminino aconteça de
variadas formas em diferentes culturas, e seja diferente em
várias leis e normas sociais, todas as sociedades conhecem a
sua prática. Os povos indígenas não saem da norma, alguns
deles são considerados mais igualitários e outros mais hie-
rárquicos, do ponto de vista do gênero (SEGATO, 2003).
Segato (2014) afirma que sempre houve hierarquia
e relações de gênero como relações de poder e desigualda-
de, e com a intervenção do Estado colonial a opressão se
amplia. A conjunção entre homens brancos e não brancos
tornou-se um processo que inferiorizou sistematicamente
as mulheres indígenas.
A posição masculina ancestral foi supervalorizada
e promovida com o auxílio dos agentes produtores e re-
produtores da colonialidade. Com a colonização e o ideal
de igualdade, a hierarquia tornou-se binária – gênero clas-

134
sificado como masculino ou feminino – e os desiguais que
antes podiam funcionar complementarmente, a partir da
intervenção colonial, o diferente para a ser marginalizado
(SEGATO, 2014).
Frente à perspectiva de relações de gênero, buscaram-
-se dados de violência relacionados às mulheres indígenas.
Dourados, segunda maior cidade do estado de Mato Grosso
do Sul, ocupa a posição de segundo lugar como município
brasileiro com os maiores registros de todos os tipos de
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

violência contra as mulheres indígenas. E lidera o ranking


diálogos interdisciplinares

quando se trata de abuso sexual contra as mulheres, com 31


casos em 2017, com o dobro de registros de qualquer estado
da Amazônia brasileira (PEREIRA, 2007).
Dourados comporta a maior TI do país, em que três
povos indígenas (Guarani, Kaiowá e Terena) residem em
3,5 mil hectares de terra. Ao comparar o tamanho da área
e da população com a cidade de Dourados, percebe-se que
há uma superlotação na TI. As casas que, antigamente, eram
distantes, atualmente se encontram muito próximas. O ter-
ritório é determinante para a dinâmica da vida na reserva,
e a limitação das organizações indígenas afetam em vários
fatores, incluindo o fator da violência (PEREIRA, 2007).
Utiliza-se aqui o conceito de confinamento, que Pe-
reira (2007) traz em respeito à biografia guarani, com a ideia
de que os Guarani já não ocupam mais áreas extensas, mas
estão confinados à pequenas reservas em forma do chamado
confinamento. Diante da negação ao território para os povos
indígenas, desde a década de 1970 ocorreram movimentos
de luta para a reterritorialização. A partir da década de
2000, a regularização fundiária e o avanço do agronegócio

135
sobre terras antes pertencentes aos povos tradicionais têm
demonstrado forte influência nas formas de organização
social (STALIANO; MONDARDO; LOPES, 2019).
É notório que com o tamanho das áreas de terras
limita-se a capacidade desses coletivos étnicos (o termo se
refere a um modo de ser social e culturalmente específico)
manterem seus modos tradicionais de existência. Desse pro-
cesso originaram-se conflitos antes inexistentes, políticos,
sociais, religiosos, econômicos e de gênero, em que desse
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

processo faz parte a violência (ZIMMERMANN; SERAGU-


diálogos interdisciplinares

ZA; VIANA, 2015).


Esse processo de confinamento, provocado pelo
contato com não indígenas propõe a diminuição dos rituais
culturais, a degradação da paisagem cultural, a inserção dos
e das indígenas no mercado de trabalho, consequentemente
introduzindo-os ao álcool e drogas, isso tudo redefine as
relações de gênero e as tornam mais conflitivas e violentas
(ZIMMERMANN; SERAGUZA; VIANA, 2015).
Portanto, para compreender as relações de gênero
nas aldeias de Mato Grosso do Sul, é preciso associar a perda
dos territórios originários, que resultou em novas estruturas
de existência para esses povos, logo, se não há terra para
plantar, tiveram que buscar vender a força de trabalho em
subempregos nas cidades, o que leva esses homens indíge-
nas a reproduzir o machismo dos karaí (não indígenas), e ter
relações diferentes com as mulheres (ANZOATEGUI, 2019).
Zimmermann, Seraguza e Viana (2015) afirmam que
historicamente a violência era pequena, e geralmente contida
pelos próprios módulos organizacionais, mas as mudanças

136
sociais causadas contribuem para os aumentos dos índices
de violência contra a mulher indígena.
A CIDH (2017) propõe alguns princípios a serem se-
guidos a fim de guiar a ação do Estado brasileiro, visando ga-
rantir às mulheres indígenas o acesso aos direitos humanos.
Devem-se abordar os processos discriminatórios de forma
ampla, compreender as mulheres indígenas como sujeitos
de direito e não apenas vítimas, considerar a intersecciona-
lidade da discriminação – a sobreposição de camadas como
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

a raça, etnia, classe, orientação sexual, identidade de gênero


diálogos interdisciplinares

etc. Acima dos direitos das mulheres de uma vida livre de


violência, deve-lhes ser assegurado o direito aos seus territó-
rios e recursos naturais.
Para contextualizar, é necessário o conhecimento
sobre os movimentos sociais das mulheres indígenas. Nas
décadas de 1970 e 1980 no Brasil, as questões indígenas de
gênero eram tratadas majoritariamente por lideranças femi-
ninas. Ao mesmo tempo em que essas lideranças pensam
em questões gerais dos povos indígenas brasileiros como
segurança, educação de qualidade, direito à saúde, direito ao
ambiente saudável, elas também agregam ao espaço coletivo
as discussões voltadas às causas das mulheres (CIDH, 2017).
A violência familiar e interétnica – entre não in-
dígenas com indígenas, acesso aos meios para geração
de renda, saúde reprodutiva, participação das mulheres
nas decisões políticas e outras questões que as mulheres
indígenas incluem nos debates do movimento indígena.
Desde os anos 1980 as mulheres estão participando cada
vez mais ativamente de reuniões nacionais e internacionais.
Nessa década surgiram as duas primeiras organizações das

137
mulheres indígenas, a Associação de Mulheres Indígenas
do Alto Rio Negro (AMARN) e Associação das Mulheres
Indígenas do Distrito de Taracuá, Rio Uaupés e Tiquié
(AMITRUT). A partir da década de 1990 as demandas por
igualdade de gênero começaram a ser institucionalizadas
(ANJOS; FONSECA, 2019).
Por muitos anos as mulheres indígenas da Ama-
zônia Brasileira acompanharam as reivindicações pelas
demarcações de seus territórios. Quando em 2000, na
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Assembleia Ordinária da Coordenação das Organizações


diálogos interdisciplinares

Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), foi reivindicado


um espaço destinado às demandas das mulheres indígenas,
fruto dessa reivindicação, em 2002 aconteceu o I Encontro
de Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira, onde foi
criado um Departamento de Mulheres Indígenas (DMI/
Coiab), a fim de defender os direitos das mulheres indíge-
nas (VERDUM, 2008).
Conforme Verdum (2008), tal departamento voltou
a atenção para a discussão com lideranças de todas as re-
giões brasileiras, quando em 2006 realizou-se o I Encontro
Nacional de Mulheres Indígenas, destinado a debater sobre
o movimento de mulheres indígenas no país. Cabe destacar
que nesse evento houve um direcionamento ao tema da vio-
lência doméstica contra as mulheres indígenas e acontece-
ram oficinas de conscientização sobre a violência doméstica
nas comunidades, palestras sobre violência contra a mulher,
alcoolismo, drogas, dentre outros e incentivo à denúncia das
violências sofridas.
Com esses eventos, gerou-se uma série de demandas,
e a partir dos encontros foram propostas ações para todas as

138
regiões brasileiras. Dentre elas: a criação de uma Vigilância
Social de Gênero, proporcionar a formação de agentes para
sua execução, com base no modelo de vigilância ambiental e
adaptado a esta finalidade. Bem como, palestras de elucida-
ção sobre relações de gênero nas sociedades indígenas, tendo
como meta a redução progressiva de frequência dos casos
de violência contra as mulheres indígenas. Ações essas com
direcionamento aos povos indígenas que se encontram em
situação de emergência, como é o caso das aldeias de Doura-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

dos-MS, bem como de Amambai-MS (VERDUM, 2008).


diálogos interdisciplinares

Existe ainda, uma Assembleia das mulheres Guarani


e Kaiowá do estado do Mato Grosso do Sul, a Kuñangue Aty
Guasu. Evento que acontece uma vez ao ano em alguma terra
indígena habitada pelos povos do estado, em que os homens
são convidados a participar como ouvintes, não obstante
o protagonismo fica para as mulheres, espaço no qual elas
fazem os relatos sobre problemas que as envolvem direta-
mente (ANJOS; FONSECA, 2019).
Dentre os debates da Kuñangue Aty Guasu de 2017,
estava a questão da luta pelo território. Nos últimos anos as
iniciativas anti-indígenas têm se intensificado no Brasil e se
rendido aos interesses do agronegócio (OLIVEIRA, 2017).
Nesse espaço as mulheres indígenas se sentem segu-
ras para dar voz às suas histórias, muitas delas afirmam que
esse é o único espaço em que conseguem falar sobre o que
as atinge, seus filhos e a famílias (ANJOS; FONSECA, 2019).
No último encontro, em 2019, foram três dias de discussões
voltadas à violência contra a mulher indígena, momento em
que homens indígenas e também as autoridades karai – como
são chamados os não indígenas – ouviram essas mulheres.

139
Stavenhagen (2007) no seu informe apresentado ao
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em 2007
pontua sobre a situação das mulheres indígenas que, dentre
tantas missões em que ele participou, muito recebeu denún-
cias de mulheres indígenas sobre práticas discriminatórias
dentro de suas próprias comunidades tais como a violência
doméstica, o acesso limitado das mulheres à propriedade da
terra e outras formas de supremacia e patriarcalismo. Essas
mulheres não têm muitas chances de denunciar esses abusos
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

ante a lei, e quando o fazem sofrem forte discriminação no


diálogos interdisciplinares

meio familiar e comunitário.


Rita Laura Segato (2003) participou do processo
de implementação da Oficina de Capacitação e Discussão
sobre Direitos Humanos, Gênero e Políticas Públicas para
Mulheres Indígenas em 2002 e observa que o direito das
mulheres indígenas encontra amplas dificuldades, pois
depois que essas mulheres iniciaram o contato com a socie-
dade, elas passaram a padecer de todos os problemas das
mulheres brasileiras.
As mulheres indígenas que atuaram e refletiram
entre a lealdade às suas comunidades e povos e a luta contra
a opressão que sofrem dentro de suas comunidades por seus
povos, denunciam ameaças sofridas pelas autoridades indí-
genas, que questionam essas mulheres argumentando que ao
trazerem suas demandas colaboram para o enfraquecimento
das comunidades, tornando essas mais vulneráveis às lutas
por recursos e direitos (SEGATO, 2012). Existe, portanto,
a questão sobre como as mulheres indígenas podem lutar
pelos direitos das mulheres sem que afete as reivindicações
de direitos coletivos dos povos.

140
Método

A presente pesquisa busca por meio da análise


de documentos existentes, discutir dados (e a falta deles)
sobre a violência contra as mulheres indígenas em boletins
de ocorrência (BO) e inquéritos policiais (IP) registrados na
Delegacia de Atendimento à Mulher de Dourados, Mato
Grosso do Sul.
Formalizou-se a autorização para realizar a pesquisa
na delegacia, foi corporificada a coleta de dados em BOs e
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

IPs registrados em 2017 e 2018. Isso faz com que os objetivos


diálogos interdisciplinares

da pesquisa se tornem mais específicos e o material para a


coleta se torne mais alcançável.
Dentre uma amostra por conveniência, visando da-
dos acessíveis, coletada em formato de planilha previamente
construída pela pesquisadora, foram coletados: data e horá-
rio de registro, data e horário em que ocorreu o fato, bairro
da comunicante, grau de relação entre a vítima e o autor,
idade e profissão da vítima, idade e profissão do autor, qual
o tipo de violência cometida dentro do crime de violência
doméstica, regulado pela Lei Maria da Penha Nº 11.340/06,
precedentes do agressor, local do evento, estado emocional
do autor, motivo, confissão e breve descrição do caso relata-
do pela mulher.
Nos documentos não constam a etnia da mulher vítima
de violência, mas com o registro do bairro pode-se identificar.
Aqui parte-se do pressuposto de que todas as mulheres que
vivem nas aldeias Jaguapiru ou Bororó são indígenas.
Foram constituídas amostras dos anos de 2017 e
2018 pelo fato dos registros destes anos estarem disponíveis
fisicamente na delegacia. Os registros de outros anos não

141
estavam presentes fisicamente na delegacia e o processo
de coleta dos dados digitalizados era impossibilitado pela
logística de acesso ao sistema.
Referente a 2017 foram coletadas informações de 119
inquéritos, enquanto que, do ano de 2018 foram coletados da-
dos de 146 inquéritos, perfazendo um total de 265 inquéritos
físicos da Delegacia de Atendimento à Mulher de Dourados,
compondo, aproximadamente, 10 a 12 documentos mensais.
Os 265 registros foram utilizados em outro estudo,
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

e no percurso percebeu-se que desse total, nove registros


diálogos interdisciplinares

eram de mulheres indígenas. A partir disso, realizou-se o


presente recorte étnico, construindo esse estudo que busca
tratar apenas dos casos registrados por mulheres indígenas.
Em uma abordagem qualitativa, utilizou-se da técni-
ca da análise de conteúdo, onde para além da informação
expressa no documento, buscou-se interpretar e descrever o
conteúdo das mensagens e assim encontrar respostas para
discutir o que motiva a pesquisa a ser realizada.
A técnica aqui proposta visa sistematizar o conteúdo
das mensagens e indicadores que possam retratar os conhe-
cimentos advindos da produção dessas mensagens. As fases
dessa análise se dividem em etapas.
A pré-análise que propõe a escolha dos documentos
a serem analisados, a definição dos objetivos, e a elaboração
de indicadores que fundamentem a discussão, onde se esta-
belece contatos com os documentos a serem analisados.
Após isso, a fase da exploração do material, consiste
em codificar, decompor ou enumerar as mensagens, em
função de regras previamente formuladas, para que possa
atingir a uma representação do conteúdo.

142
E, por fim, o tratamento dos resultados obtidos e
interpretação, fase em que operações estatísticas simples
permitem estabelecer quadros de resultados, diagramas e
figuras, que esquematizam as informações resultantes da
análise (BARDIN, 2016).
Tratou-se da subnotificação dos casos de violência
contra as mulheres indígenas, bem como a temática muito
debatida do alcoolismo e associação entre a violência e al-
coolismo. Indissociavelmente, o tema das demarcações das
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

terras indígenas também surgirá nas discussões propostas.


diálogos interdisciplinares

Resultados e Discussão

Dentre os dados obtidos, observou-se que, de um


total de 265 documentos analisados, apenas nove deles
tratava-se de casos registrados por mulheres indígenas. Em
uma TI que está entre as primeiras colocações para casos de
violência contra as mulheres do país, há a necessidade de se
pensar sobre o porquê dessas mulheres não realizarem as
denúncias na Delegacia de Atendimento à Mulher.
A Lei Maria da Penha é uma conquista para os Direi-
tos Humanos das mulheres no Brasil, que prega igualdade
de direitos para todas as mulheres, independente de raça,
etnia, classe social, religião etc. Não obstante, a mesma ainda
é muito recente e se reconhece como falha para atender todas
as especificidades de violência contra as mulheres urbanas e
do campo, e principalmente, as indígenas.
Entretanto, na prática as mulheres encontram difi-
culdades em exercer seus direitos, e recorrer à lei. No Mato
Grosso do Sul apenas algumas cidades possuem Delegacias

143
Especializadas em Atendimento à Mulher, portanto essas
mulheres encontram dificuldades em acessar esses lugares
para fazer denúncias, seja por grandes distâncias e andar
quilômetros torna tudo mais difícil, seja por dificuldades
em se fazer entender, como é o caso de algumas mulheres
indígenas que não falam a língua portuguesa. Como em um
relato de uma mulher indígena em seu registro de ocorrência,
a vítima alega ter sofrido outras violências anteriormente ao
registro e se justifica por não ter registrado antes pelo fato de
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

não ter ninguém para levar ela até a delegacia, e ela sequer
diálogos interdisciplinares

sabia onde ficava a DAM.


Outras dificuldades que também são colocadas às
mulheres é o fato de, por vezes, morarem com os agressores,
pelos laços afetivos que mantém e também pela dificuldade
financeira de manterem a si e a seus filhos (SILVESTRE, 2019).
As mulheres indígenas afirmam que a LMP em seu formato,
não foi elaborada para contemplá-las, já que no momento
em que essas mulheres saem das aldeias para buscarem o
apoio que lhes é de direito, não recebem os atendimentos
adequados, pois lhes é afirmado ser uma competência da
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), afirmando que elas
devem procurar suas lideranças (ANZOATEGUI, 2019).
Em entrevista a um meio de comunicação, uma
mulher indígena diz que a polícia não chega na aldeia, e se
a polícia não vem existem dificuldades em ir até ela – con-
tando a ida e a volta, a distância da aldeia até a DAM soma
aproximadamente 20km. Diz ainda que o principal meio de
proteção às mulheres, a LMP, não funciona para elas, não se
aplicando à realidade das mulheres indígenas.

144
Em um dos registros, a vítima relata que o autor des-
cumpriu a medida protetiva de urgência vindo até a janela
de sua casa ameaçá-la de morte portando uma faca. Dentro
desses territórios a medida protetiva não funciona e não
se busca elaborar políticas que resolvam os problemas das
indígenas (SANCHEZ, 2019).
De acordo com o Portal do Governo de Mato Grosso
do Sul (2017), em Dourados, ações foram propostas para a re-
solução da violência contra a mulher indígena. De acordo com
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

a subsecretária de Políticas Públicas para Mulheres, Luciana


diálogos interdisciplinares

Azambuja, a comunidade solicitou o projeto em um evento


relacionado ao Dia Internacional da Mulher em Dourados, em
que uma indígena convidou para irem até a aldeia escutá-las.
Luciana levou o pedido até a DAM, a delegada Paula Ribeiro
dos Santos Oruê inicialmente foi até a aldeia, ouviu essas
mulheres, que expuseram impedimentos em denunciar, pela
dificuldade em irem até a cidade, do entendimento da língua
e que, por isso, muitas deixam de registrar.
Com isso, avaliou-se a possiblidade de levar os servi-
ços da delegacia uma vez por mês até a reserva, disponibili-
zando atendimento, orientação, registros de BOs, pedidos de
medidas protetivas de urgência e tudo que estiver ao alcance
do serviço, afirmou a delegada. Com as políticas públicas
alinhadas, as conquistas das mulheres virão ao longo dos
anos, mas os movimentos de luta das mulheres não para,
é preciso continuar trabalhando para que as mulheres se
conscientizem dos seus direitos.
De acordo com a matéria publicada pelo site Campo
Grande News, dados da Casa da Mulher Brasileira (CMB)
mostram que os atendimentos às mulheres indígenas repre-

145
sentam menos de 1% do total de atendimentos. De 23.157
mulheres atendidas na Casa, entre 15 de fevereiro de 2015
e 21 de junho de 2019, apenas 144 eram indígenas, o que
representa menos de 2% do total de denúncias de mulheres
brancas (SANCHEZ, 2019).
Segundo informações da CMB, em 2019 foram três
casos enquadrados como feminicídio de mulheres indígenas
(em 2015 foram três, 2016 foram seis, 2017 foram três, e 2018
um caso). Índices de violência contra a mulher, produzidos
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

pelo IPEA e pelo Atlas da Violência (FÓRUM BRASILEIRO


diálogos interdisciplinares

DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019) apontam que a taxa de


homicídios contra mulheres negras aumentou entre 2007 e
2017, 29,9%, enquanto a taxa das não negras teve um aumen-
to de apenas 1,6%, não existem dados voltados aos índices
sobre as mulheres indígenas. Pode-se perceber que a todo
tempo as mulheres indígenas passam pela invisibilidade,
como não constituintes dessa história.
Dados fornecidos pela DAM de Dourados deram
acesso aos números de registros de ocorrência na cidade,
desde os registros na DAM, até os registros feitos no DEPAC,
configurando o número total de registros de ocorrência de
Violência Doméstica. Abaixo, na Tabela 1, os registros totais
e os registros de mulheres indígenas nos últimos cinco anos
estão discriminados, bem como as porcentagens, mostrando
os baixos índices de registros de mulheres indígenas.

146
Tabela 1 Registros de boletins de ocorrência de Violência Doméstica
Ano DAM Total Indígena (Total)
2015 720 1331 74 – 5,5%
2016 688 1176 43 – 3,6%
2017 755 1423 73 – 5,1%
2018 682 1384 82 – 5,9%
2019 752 1210 76 – 6,2%
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Os dados revelam que nos últimos cinco anos a mé-


dia de registros de ocorrência de mulheres indígenas man-
diálogos interdisciplinares

tém uma média de 5% dos registros totais, corroborando


outros estudos realizados sobre a temática, frente a esses
baixos índices, contra a grande violência que as mulheres
indígenas sofrem.
Para além das dificuldades partilhadas por algumas
mulheres indígenas, o Estado brasileiro por meio de seus
operadores do Direito sobrepõe suas dificuldades: como
entrar na reserva indígena, como lidar com as lideranças
da aldeia e relações de poder internas, como localizar as
mulheres dentro da TI, como lidar com o momento que essa
mulher irá retornar para a aldeia.
Todavia as dificuldades não são aceitas como justifi-
cativas plausíveis, uma vez que existe uma lei que resguarda
todas as mulheres independente de etnia, e essa lei precisa
ser mantida e cumprida pelos meios de controle do Estado
(SILVESTRE, 2019).
Representadas pela Tabela 2, as idades das vítimas e
agressores.

147
Tabela 2 Idade das vítimas e agressores
Idade Mínima Máxima Média
Vítima 19 51 32,1
Agressor 20 55 35,1

Não houve diferenças significativas na média de


idade das vítimas e agressores, quando comparadas às
pesquisas realizadas anteriormente. Dentre a profissão dos
autores encontram-se: agricultor, pedreiro, trabalhador ru-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

ral, cortador de cana de açúcar e auxiliar de serviços gerais.


diálogos interdisciplinares

Dentre os tipos de violência, cinco casos (55,5%) inclu-


íam violência física entre lesão corporal dolosa e vias de fato,
enquanto os outros casos eram compostos por violência psi-
cológica em forma de ameaça ou injúria. Um caso de violência
física em específico o autor utilizou como arma um ferro de
passar roupa, a vítima desmaiou com a agressão e relata que
nesse mesmo evento o seu agressor também tentou agredir a
mãe da vítima correndo atrás dela com um facão. No registro
da ocorrência essa vítima requereu a medida protetiva de
urgência, relatando ainda que o autor estava desaparecido.
Conforme relatado, o uso de ferro de passar roupa,
por exemplo, não possuem função cortante ou dilacerante,
demonstra a precariedade vivida por estes povos até nos
momentos de prática de violências. Staliano, Mondardo e
Lopes (2019) também sinalizaram esta precariedade no es-
tudo conduzido sobre a prática de suicídio entre indígenas
no estado de Mato Grosso do Sul, identificando a utilização
de instrumentos, como: corda, pano, cadarço, cordão, cinto,
fio, alça de bolsa, revelando, além da precariedade, certo
desespero na realização do ato.

148
Em 55,5% dos casos, as vítimas relataram que o autor
faz uso de bebida alcoólica e quando está sob o efeito da
droga torna-se mais agressivo, favorecendo os momentos de
violência entre no casal.
Anzoategui (2019) expõe que uso de álcool é um
hábito comum entre os povos indígenas, muitos deles não
possuem mais condições materiais adequadas para man-
terem-se física e culturalmente, devido à expulsão de suas
terras tradicionais. Com isso, grande parcela da população
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

indígena precisou buscar trabalho fora das aldeias e vive


diálogos interdisciplinares

atualmente nos espaços urbanos, assalariados em condições


precárias de trabalho. O contato externo às aldeias causou
mudanças estruturais, sendo o álcool o elemento principal
no caso da violência doméstica.
Guimarães e Grubits (2007) corroboram ao observa-
rem que quanto maior o contato dos povos indígenas com a
sociedade brasileira, maior o risco de exposição ao alcoolis-
mo e outras doenças, e como a falta de estudos sobre o tema
propicia espaços para a criação de pré-conceitos ao tratar da
relação entre indígenas e consumo abusivo de álcool.
Além disso, tem o alcoolismo como manutenção da
colonização (ANZOATEGUI, 2019). Do início do processo de
colonização do território brasileiro até a atualidade, os povos
tradicionais foram drasticamente reduzidos, havendo formas
de extermínio dessa população, sendo a bebida alcoólica um
instrumento de dominação dessas populações, causando a
fragilização de um sistema que tem aumento exponencial da
prevalência de transtornos mentais, alcoolismo e violência
interpessoal (GUIMARÃES; GRUBITS, 2007). Castilho (2008)
expõe uma experiência:

149
Em 2007, como membro do Conselho de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CD-
DPH), participei de uma visita a São Gabriel
da Cachoeira, conduzida pelo Secretário Es-
pecial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi,
ocasião em que houve a entrega de um abaixo
assinado contra a impunidade. Os depoimen-
tos na audiência pública evidenciaram, que
o maior problema era a violência contra as
mulheres indígenas, pratica por não-índios
e por índios, esses em geral em um contexto
de abuso de álcool. (CASTILHO, 2008, p. 25).
violência, gênero, saúde e fronteira(s)
diálogos interdisciplinares

Na reunião da CIDH (2017), em entrevista com a


indígena Dona Adelaide Jorge João, ela afirma que a resis-
tência das mulheres existe há muito tempo, pois as leis que
deveriam dar o respaldo à vida desses povos não são res-
peitadas, e assim, ocorre a violação dos direitos. Ela explica
ainda que as mulheres resistem, principalmente, por seus
filhos e pelas práticas religiosas tradicionais, que as fazem
mais fortes na luta.
Segato (2012) traz sua reflexão sobre como seria
possível recorrer ao amparo dos direitos do Estado sem que
esses povos tradicionais dependam do Estado colonizador
que não pretende dar autonomia e restaurar o tecido co-
munitário desse povo. Pontua ainda, que é papel do Estado
restituir aos povos a sua história, outrora expropriada pela
ordem colonial/modernidade, contribuindo para a reorgani-
zação do tecido comunitário rasgado pelo colonialismo.
A principal luta das mulheres se mantém pela de-
marcação de suas terras tradicionais, pois só concretizando
o direito a essas terras, o direito fundamental a esses povos,
que serão consolidados o direito à dignidade, segurança, li-

150
berdade e igualdade (CASTILHO, 2008). Ainda sob o mesmo
referencial teórico:

A II Assembléia de Mulheres Indígenas de


Pernambuco, realizada em 2007, discutiu
bastante a referida lei. As participantes
concluíram que, apesar de não atender às
especificidades dos povos indígenas, as
mulheres quiseram se inteirar para melhor
compreendê-la e acionar quando necessário,
visto que fica a critério da mulher indígena
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

usá-la ou não. Foi proposto que cada povo


pense a melhor maneira de punição contra
diálogos interdisciplinares

as violências que as mulheres enfrentam.


(CASTILHO, 2008, p. 27).

Sobre a aplicação da LMP a mulheres indígenas,


Segato (2012) contribui:

Da mesma forma, a colaboração com a


Coordenação de Mulheres Indígenas da
Fundação Nacional do Índio (FUNAI) na
divulgação da Lei Maria da Penha contra
a Violência Doméstica, levou-me à neces-
sidade de pensar na defesa das mulheres
indígenas perante a violência crescente que
as vítimas em número e grau de crueldade,
não só a partir do mundo branco, mas tam-
bém dentro de seus lares e sob as mãos de
homens também indígenas. Apresenta-se aí
um dilema semelhante, pois como seria pos-
sível recorrer ao amparo dos direitos estatais
sem propor a progressiva dependência de
um Estado permanentemente colonizador
cujo projeto histórico não coincide com o
projeto das autonomias e da restauração do
tecido comunitário? É contraditório afirmar
o direito à autonomia e, simultaneamente

151
afirmar que deve-se esperar que o Estado
crie as leis que deverão defender os frágeis
e prejudicados dentro dessas autonomias.
(SEGATO, 2012, p. 110).

Cada povo deveria ter as condições necessárias de


autonomia para deliberar como mudar ou contornar os cos-
tumes que levam ao sofrimento de alguns dos seus membros.
Os agentes colonizadores debilitam a autonomia, rasgam o
tecido comunitário, geram dependência e reproduzem um
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

discurso crítico igualitário de um lado, enquanto por outro


diálogos interdisciplinares

lado mantém princípios individualistas e a modernidade de


razão liberal e capitalista, juntamente ao racismo que sub-
mete os homens não brancos ao estresse e à emasculação.
Conforme Segato (2012):

O Estado entrega aqui com uma mão aquilo


que já retirou com a outra: cria uma lei que
defende as mulheres da violência à qual
estão expostas porque esse mesmo Estado
já destruiu as instituições e o tecido comu-
nitário que as protegia. O advento moderno
tenta desenvolver e introduzir seu próprio
antídoto para o veneno que inocula. (SEGA-
TO, 2012, p. 110).

Portanto, o Estado cria uma lei que defende as mu-


lheres da violência à qual estão expostas devido as próprias
ações. Com isso, defender o direito à autonomia dos povos
é um desafio, ainda que no contexto da colonialidade, essa
autonomia permita práticas que vão contra o discurso oci-
dental e moderno dos Direitos Humanos.

152
Para Segato (2014) não deve se usar a dimensão de
buscar a igualdade, promovida pelo ativismo moderno
liberal, mas uma concepção de desiguais que são distintos,
assim se aproximando das referências de dualidade das co-
munidades existentes ante a colonialidade e que não exclui
o diferente.

Considerações finais
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Os dados do presente estudo corroboram com


dados e estudos semelhantes a esse, onde se conclui que a
diálogos interdisciplinares

violência contra a mulher indígena não é menos recorrente,


e sim menos registrada. Os registros da cidade de Dou-
rados mostram pequenos índices, assim como pesquisas
relacionadas a nível nacional.
Algumas explicações pelas quais fazem as mulheres
indígenas não buscarem registrar as violências sofridas são
as questões culturais, bem como de trânsito, distância da
reserva indígena à delegacia, dificuldades de comunicação
e compreensão, falta de treinamento para os funcionários
dos serviços especializados de atendimento à mulher,
que faz com que as mulheres que conseguem chegar até
a delegacia, muitas vezes, acabem desistindo do registro
por sofrerem outra forma de violência nesses espaços, a
violência institucional.
Existe uma luta cravada de resistência das mulheres
indígenas que movem as estruturas do meio social em
que existem e reexistem. Problemas associados à violência
corroboram outros estudos, com a perda de suas terras, os
indígenas tiveram que, cada vez mais, estarem em contato

153
com os não-indígenas, isso fez com que várias formas de
violência passassem a ter mais frequência dentro das re-
servas indígenas. A perda de suas terras também associa
os indígenas aos subempregos, aumentando o contato com
álcool, drogas e violência.
Compreende-se a importância de historicizar o alco-
olismo entre os povos tradicionais, demonstrando o presente
trabalho a necessidade de ações direcionadas, pois a relação
entre alcoolismo e violência pode ter significados diferentes
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

dependendo do grupo étnico.


diálogos interdisciplinares

Buscou-se ainda pontuar o debate sobre a coloni-


zação e as dificuldades implicadas pela modernidade, em
que o Estado busca regular um fenômeno que ele mesmo
tem responsabilidade por criar. E a partir disso pensar nos
desafios para isso e de que forma esse Estado pode devolver
a autonomia desses povos para que decidam como resolver
seus conflitos.
Esse estudo busca contribuir para estudos futuros
voltados às mulheres indígenas que são invisibilizadas,
com o intuito de fomentar essa discussão. Bem como fo-
mentar o interesse por estudos que investiguem as causas
dessa violência.
A mobilização que vem acontecendo dentre os povos
indígenas existe há décadas e há uma demanda populacional
que anseia por processos locais e regionais de capacitação de
agentes indígenas envolvendo todos os direitos humanos às
populações indígenas. Bem como a necessidade de um olhar
voltado especificamente às mulheres indígenas vítimas de
violência doméstica silenciadas pela falta de aparatos legais
do Estado que cumpram com a LMP em sua integralidade.

154
Referências
ANJOS, A. B.; FONSECA, B. A luta das Guarani e Kaiowá na região mais perigosa
para mulheres indígenas no país. Agência de jornalismo Pública. Brasil, 2019.
Recuperado de: https://apublica.org/2019/10/a-luta-das-guarani-e-kaiowa-na-re-
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156
Gilead e Mato Grosso do Sul:
o conto da Aia comparado ao processo
de retirada das crianças indígenas Guarani
e Kaiowá de suas mães – a distopia é logo ali

Nathaly Conceição Munarini Otero


Arthur Ramos do Nascimento

Introdução

Éramos as pessoas que não estavam nos


jornais. Vivíamos nos espaços em branco não
preenchidos nas margens da matéria impressa.
(...) Vivíamos nas lacunas entre as matérias.

Margaret Atwood, em O Conto da Aia (2017, p. 71).

Fruto de uma determinada cultura e formado a partir


de elementos sociais, econômicos e políticos, entre outros, o
Direito se destaca como produção humana que arroga para
si a racionalidade de um pensar científico. A Ciência Jurídica
é um saber (que busca ser um máximo) ético, um saber técni-
co e também formatado com um aporte estético (que associa
o belo ao justo). O Direito é passível de interpretação, diriam
alguns, traço capaz de dotá-lo de dinamismo e flexibilidade
para acompanhar as mudanças sociais. A Arte (seja ela Literá-
ria, Teatral, Cinematográfica, entre outras) é também, assim
como o Direito, fruto da cultura, de processos econômicos,

157
políticos e sociais. Assim como o Direito, a Arte é passível de
interpretação e pode-se mesmo afirmar que é um processo
que envolve tanto a participação do “artista” (que possuía
algum pretexto e intenção em sua criação) quanto daquele
que “contempla” a obra, visto que essa contemplação está
carregada de saberes, experiências e expectativas. Direito e
Arte não podem se confundir, mas é admirável o quanto eles
podem dialogar.
A análise comparativa entre o romance distópico O
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Conto da Aia da autora canadense Margaret Atwood (origi-


diálogos interdisciplinares

nalmente lançado em 1985) que se passa em uma realidade


“inventada” para demonstrar as violações e violências
que o Estado de Gilead comete, sobretudo contra as mães
e mulheres no geral e a realidade vivida pelas mães indí-
genas Guarani e Kaiowá no sul do Mato Grosso do Sul é
necessária e urgente. Essa urgência envolve, entre outras
coisas, perceber que os traços de autoritarismo e violência
presentes no universo fictício tiveram por base situações e
fatos equivalentes no plano da realidade. Assim, é possível
perceber que a distopia não é simplesmente uma especula-
ção sobre o futuro, mas uma análise crítica de experiências
passadas e presentes.
Para que se possa expor e comparar esses universos é
imprescindível que exista um ponto em comum entre ambas
as realidades, seja a distópica propriamente dita, Gilead
e a distópica que se confunde com a realidade, que é a de
Mato Grosso do Sul, na qual, tal ponto é a dor incalculável
de uma mãe que tem seu filho retirado de si logo ao nascer.
No romance de Margaret Atwood um Estado autoritário
estabelecia quem deveria viver e quem deveria morrer,

158
procedendo com a separação das mulheres de seus filhos,
entendendo que outras famílias seriam melhor preparadas
para tanto. Ademais, a contextualização e o processo histó-
rico da situação em que vivem as mães indígenas no sul do
Mato Grosso do Sul e a retirada de seus filhos é de extrema
relevância social e jurídica.
A partir da criação do Estatuto da Criança e do Ado-
lescente (ECA) é possível analisar, sob a ótica do recorte
étnico que, quando se trata de crianças e adolescentes in-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

dígenas, existe uma tremenda dificuldade e um distancia-


diálogos interdisciplinares

mento considerável da compreensão dos Órgãos Públicos


responsáveis pela atuação do ECA, por assim dizer em
relação a famílias indígenas.
O presente trabalho propõe uma reflexão acerca de
como o processo de acolhimento institucional de crianças
e adolescentes indígenas na região sul do estado de Mato
Grosso do Sul muito se aproxima da retirada de crianças de
suas mães no romance O Conto da Aia e tem como objetivo
trazer a reflexão de que talvez a distopia abordada pelo
romance não seja algo tão distante da realidade em que vi-
vemos. Para tanto, o artigo é resultado da adoção do método
empírico de análise textual discursiva (permitindo a extração
de discursos e conceitos a partir da literatura distópica e das
reportagens que denunciaram as violências contra mulheres
indígenas e suas crianças) e com isso dialeticamente traçar
abordagens críticas quanto ao real papel do Estado e da
necessidade de uma maior atenção para a questão.
Além disso, o trabalho tem como objetivo demonstrar
as violações aos dispositivos constitucionais e internacionais
acerca da temática indigenista no trato do Judiciário sul-ma-

159
to-grossense para com as famílias das crianças e dos adoles-
centes indígenas acolhidos e traçar um paralelo a República
de Gilead no que tange a estas violações.
Em ambas as realidades aqui tratadas, existem uma
mão invisível que opera para que haja uma manutenção
dessa situação de violência silenciosa que mantém intacta as
estruturas edificantes desse modo violento de tratar vidas
humanas. Essa mão invisível é o Estado e, tanto em Gilead,
quanto no Mato Grosso do Sul, possuem requintes de au-
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

toritarismo que exclui e faz perpetuar a ideia de que nada


diálogos interdisciplinares

de errado está acontecendo, de que esse tipo de situação é


sempre uma mentira inventada por grupos externos que
querem atrapalhar o progresso da sociedade em questão.
O recorte local se faz necessário, pois na região da
cidade de Dourados existem inúmeros acampamentos indí-
genas, comunidades que possuem um modo de vida pró-
prio que difere daquele até mesmo percebido nas reservas
indígenas já demarcadas. Há uma enorme necessidade em
reconhecer, dentro do processo judicial, a subjetividade e
modelo de vida das famílias em situação de retomada, sendo
imprescindível a figura do antropólogo nestes processos e a
elaboração dos laudos antropológicos e de lideranças indíge-
nas que consigam melhor traduzir o direito negado do texto
constitucional.
Neste sentido, é de extrema valia considerar que em
ambas realidades demonstradas, a dor e o silenciamento por
parte das estruturas que auxiliam a perpetuação da violência
institucional e estatal são pontos em comum entre as mães,
tanto do Mato Grosso do Sul, quanto de Gilead.

160
A função da distopia na cultura

As distopias se apresentam como poderosos instru-


mentos de reflexão da realidade. Aldous Huxley, ao analisar
os textos distópicos, afirma que as proposições de como será
o futuro distópico pode parecer absurdo e até mesmo fazer
“sorri” se retratar um futuro distante, pois “tudo isso suce-
derá num futuro ainda bastante remoto”. Entretanto, quanto
mais o futuro estiver próximo “parecerá, possivelmente, um
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

pouco menos divertido”. Destaca o autor, que “o que é agora


mera ficção científica, tornar-se-á um fato político de todos
diálogos interdisciplinares

os dias” (HUXLEY, 2000, p. 141). As distopias, assim, não se


propõem como exercícios de “adivinhação” do futuro, mas
tratados “lúdicos” sobre as sociedades e história humanas.
É possível destacar que “distopia” se apresenta como
uma oposição à noção de “utopia”, entendendo-se a utopia
como a ideia de um lugar ideal, perfeito, harmônico e (por
isso mesmo) irreais. A distopia, a partir dessa questão, repre-
senta uma realidade ruim, maligna, violenta, doentia, além
de outras características negativas. Para as análises que se
desenvolvem nessa proposta, é relevante destacar que, con-
forme afirmado por Andityas Soares de Moura Costa Matos,
o Direito tem uma função importante e estratégicas nas
distopias, em razão de sua função de perpetuar a dominação
social. Para Matos “as sociedades distópicas se caracterizam
pela inexistência de direitos e garantias fundamentais, sendo
altamente autoritárias, quando não totalitárias”, acrescen-
tando ainda que “[a] principal vítima sacrificada no altar dos
ainda fictícios Estados distópicos é, sem dúvida alguma, a
liberdade” (MATOS, 2013, p. 353).

161
As distopias são críticas a respeito da realidade. Os
autores de universos distópicos olham para a realidade e
projetam a intensificação dos problemas identificados, não
raro envolvendo tecnologia, totalitarismo, apatia social entre
outros. Não são raras as análises que demonstram como as
distopias produzidas no Séc. XX se mostram “prelúdios” de
problemas enfrentados na atualidade. É certo afirmar que
não se tratam de fenômenos abruptos, mas de um projeto.
Como apontado por Atwood, “[a]cidentes não existem. Tudo
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

acontece intencionalmente” (ATWOOD, 2017, p. 31).


diálogos interdisciplinares

Contexto histórico local – O processo de confinamento dos


Guarani e Kaiowá na cidade de Dourados, Mato Grosso do
Sul e a consequência negativa nos processos de acolhimento

O processo histórico, sobretudo dos Kaiowá, em Mato


Grosso do Sul, é marcado pela ausência do poder estatal na
vida dos povos originários e, principalmente, pelos violentos
e conturbados processos de confinamento1 no estado, como
bem explicou a antropóloga Silvana Nascimento em sua dis-
sertação de mestrado, que serviu de base para este trabalho.
Silvana2 explica que com a chegada das frentes
de expansão, sobretudo da Companhia Matte Laranjeira,
entre os anos de 1915-1928, tentaram com que os Kaiowá
e os Guarani fossem confinados em oito reservas de terras

1 “Quando chegou esses que são nossos contrários” – A ocupação espacial e o


processo de confinamento dos Kaiowá/Guarani no Mato Grosso do Sul. Disponí-
vel em: http://www.multitemas.ucdb.br/article/viewFile/1235/1151
2 Crianças indígenas Kaiowá abrigadas e em situação de reinserção familiar:
uma análise em torno da rede de proteção à criança e ao adolescente. Disponível
em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoCon-
clusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=93501

162
demarcadas pelo Serviço de Proteção dos Índios (SPI), com
intuito de liberarem os espaços territoriais para as frentes
coloniais. Por conta disto, é possível afirmar que o espaço
para que esses índios pudessem reproduzir seu modo de
viver foi reduzido de maneira considerável.
Como em Gilead, a estrutura criada em torno da reti-
rada de direitos humanos básicos se perpetua e é tida como
normal, dentro de um contexto na qual fere e desrespeita o
modo de ser, viver e existir. A diminuição do indivíduo para
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

uma experiência de segregação e negação da identidade e da


diálogos interdisciplinares

individualidade busca docilizar corpos e domesticar condu-


tas, bem como “legitimar” a negação de direitos ou mesmo
atos de violência.
Nas cidades do sul do Mato Grosso do Sul, prin-
cipalmente a cidade de Dourados, a população como um
todo têm bastante receio e resistência em compreender este
processo de confinamento como um dos fatores dos pro-
blemas encontrados nas aldeias e acampamentos indígenas
na cidade, como o alcoolismo, violência, marginalidade e
consumo de drogas.
A respeito deste modo como a própria sociedade
douradense trata os povos originários que ali também habi-
tam, Silvana aduz:

De outro modo, a sociedade douradense,


quando questionada sobre a proximidade
dos índios, tende a afirmar que não percebe
diferenças: “são como outra pessoa qual-
quer”; contudo, quando há reivindicações
de terras ou outras manifestações dos índios
em torno de seus direitos, como na parali-

163
zação de rodovias, estes são vistos através
de rótulos, como preguiçosos, vagabundos,
bêbados, etc.3

Em que pese a relevância da temática, em o Procu-


rador da República Marco Antonio Delfino de Almeida,
autoridade com expressiva atuação na temática indigenista
no estado de Mato Grosso do Sul, em entrevista para o jornal
Correio do Estado, afirmou que:
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

É impossível a dissociação dos suicídios e do


diálogos interdisciplinares

alcoolismo do quadro histórico de violência


sofrida pelas populações indígenas que
vivem em reservas. O quadro é muito seme-
lhante ao existente nos campos de refugiados
existentes na África e no Oriente Médio. A
semelhança não é fortuita. A rigor as reservas
indígenas são campos de deslocados inter-
nos (conceituação jurídica para refugiados
dentro do próprio país de origem). Estas
pessoas foram removidas de forma forçada
de suas áreas tradicionais de ocupação com
intuito claro de utilização como mão de
obra barata. A base da economia do estado
se calcou nesta mão de obra, inicialmente
com o trabalho escravo nos Ervais, poste-
riormente o trabalho igualmente escravo de
“formações de fazendas” e, por último, o
trabalho escravo/degradante na colheita da
cana, especialmente até a década passada. A
correção das mazelas decorrentes dos deslo-
camentos forçados necessita de uma atuação
interdisciplinar com envolvimento das áreas

3 Crianças indígenas Kaiowá abrigadas e em situação de reinserção familiar:


uma análise em torno da rede de proteção à criança e ao adolescente, pag. 34.
Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/
trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=93501

164
da educação, da saúde, da assistência social,
do diálogo com as lideranças indígenas e
líderes religiosos com o consequente aporte
de recursos para que possamos ter resultados
que sejam expressivos.4

As Aias, no romance de Margareth Atwood, são tidas


e tratadas como escravas sexuais (sob pretexto fundamen-
talista e fora de contexto de trechos do Antigo Testamento
judaico-cristão) e desde o momento da chegada na casa da
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

família de seus “donos”, por assim dizer, são violentadas


diálogos interdisciplinares

moral, psicológica e fisicamente pelas esposas e sexualmente


pelos Comandantes da casa (de quem recebiam um nome
provisório lhe atribuindo a ideia de ser propriedade deles5).
O mais irônico no comparativo de ambas realidades,
seja a distópica, seja a real, é que, conforme mencionado
acima pelo Procurador da República, a vida das aias e a
vida das mães indígenas que têm seus filhos retirados com
aval do Judiciário se parecem com a vida de pessoas que
sobrevivem ao que foi chamado de campos de deslocados
internos, que conceitua juridicamente pessoas refugiadas dentro
do próprio país de origem6.

4 “Para procurador, indígenas que vivem em MS são cidadãos apenas no papel”.


Disponível em https://www.correiodoestado.com.br/cidades/para-procurador-in-
digenas-de-ms-sao-cidadaos-apenas-no-papel/244558/
5 As aias, em Gilead, perdiam o direito ao próprio nome, sendo identificadas
pelo prefixo “of” (significando “de” ou “propriedade do”) seguido pelo nome do
Comandante a quem deviam servir como geradoras de filhos. A protagonista em O
Conto da Aia, durante todo o livro, não tem o nome expressamente revelado, mas
é chamada de Offred, visto que o Comandante a quem servia era Fred (Of+Fred).
6 As aias, no regime de Gilead, são consideradas culpadas de “crimes” e o
“trabalho” como aia é tido como uma atividade de “expiação de pecados”. As aias
são mulheres férteis “culpadas” por serem adúlteras (viverem como se casadas
fossem, ou mesmo tivessem contraído um segundo matrimônio após um divórcio

165
Ao afirmar que “estas pessoas foram removidas de forma
forçada de suas áreas tradicionais de ocupação com intuito claro
de utilização como mão de obra barata”, muito podemos extrair
de que, o que ocorre em Gilead (escravidão sexual, domínio
e comando da vida pessoal por parte de um sistema de go-
verno criado com cunho autoritário e violento) se aproxima
da violência enfrentada pelas famílias, sobretudo as mães,
indígenas no estado de Mato Grosso do Sul.
Neste sentido, no que tange a criação das Reservas
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

indígenas, estas foram instituídas pelo Estado brasileiro,


diálogos interdisciplinares

no começo do século XX, no intuito de retirar os Guarani e


Kaiowá dos seus territórios tradicionais, para que essas terras
fossem liberadas para as frentes de colonização, na premissa
do “progresso” chegar as terras que “nada produziam”.
Contudo, após a mecanização da força de traba-
lho no campo, foram expulsos definitivamente dos seus
tekoha7, tendo que viver então nas oito reservas espalhadas
pelo cone sul, quando não, montando acampamentos em
beira de rodovias.
E são nessas reservas que existem os maiores índices
de violência entre os povos Guarani e Kaiowá, tendo em
vista a proporção da população em detrimento do território
delimitado, na qual a sociedade não indígena acaba por se
abster de quaisquer tipo de solidariedade e empatia pelo

– delas ou dos cônjuges), traidoras do gênero (termo usado para designar mulheres
lésbicas), traidoras da fé dos Filhos de Jacó (o que incluiu transformarem freiras
católicas e outras mulheres que professassem religiões destoantes da fé dominante)
ou traidoras da nação (mulheres tidas como terroristas, que auxiliassem fugitivos
ou se voltassem contra o regime).
7 Tekoha- se constitui numa categoria nativa que expressa o sentido de
comunidade ou aldeia territorializada em determinado espaço, reunindo em média
de três a cinco parentelas.

166
que acontece tão próxima dela, nas reservas e acampa-
mentos indígenas há poucos quilômetros, muitas vezes há
poucos metros.
Deste modo, repassando ligeiramente o processo
histórico, adentraremos a seguir na problemática abordada
neste trabalho.

Realidade das mães indígenas no Mato Grosso do Sul – A


retirada forçada de seus filhos ao nascer sob a tutela Estatal
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

A situação, sobretudo no estado de Mato Grosso do


diálogos interdisciplinares

Sul, no que tange a retirada das crianças indígenas e colocadas


em situação de abrigamento é caótica. Neste sentido, se faz
necessário fazer o recorte local para melhor expor a situação,
haja vista que a cidade de Dourados concentra o maior percen-
tual de crianças e adolescentes em situação de acolhimento.
Segundo o Relatório da Funai – Mapeamento quali-
ficado de todos os casos de crianças e jovens indígenas em
situação de acolhimento institucional e familiar da região de
Dourados/MS de novembro de 20178, o número de crianças
e jovens acolhidos em novembro de 2017 era de 50, estima-se
que até a presente data esse número aumentou para 80.
O Município de Dourados recebeu atenção especial
por conta do número de crianças e jovens, e, pelo fato concen-
trar no seu território 4 instituições de acolhimento, a saber:
Lar Rita de Cássia, Lar de Ebenezer Hilda Maria Correa, Lar
Renascer e Instituto Agrícola do Menor – IAME.

8 http://www.suas.sedhast.ms.gov.br/wp-content/uploads/2019/09/3.2-
RELAT%C3%93RIO-Mapeamento-Qualitativo-dos-casos-de-acolhimento-
institucional-de-crian%C3%A7as-e-jovens-ind%C3%ADgenas-CR-Dourados-1.pdf

167
É público e notório que o que ocorre neste estado, há
muito tempo vem chamando a atenção, inclusive dos me-
canismos internacionais9 de proteção. Em 2017 os indígenas
reuniram-se com o comissário da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos (CIDH) da OEA, James Cavallaro, no
intuito de denunciar os abusos do poder público na retirada
das crianças de suas famílias, a Aty Guasu evidenciou que
a forma como são feitas as intervenções pelos “órgãos de
proteção” desrespeita o modo de vida física e cultural do
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

povo Guarani e Kaiowá e são fundamentadas em “conceitos


diálogos interdisciplinares

e interpretações racistas, preconceituosas, primárias, igno-


rantes à diversidade dos povos indígenas.”10
Desta forma, há demasiada importância em ser de-
monstrado os principais motivos, que de formas equivocadas,
essas crianças e jovens estão sendo retirados de suas famílias.
Conforme Relatório da Funai mencionado acima, as
atuações que mais violam do que promovem o direito das
crianças indígenas à convivência familiar e comunitária, estão
baseadas em senso comum, como o entendimento preconcei-
tuoso e discriminatório com relação a etnia de cada indígena,
se tornando um fator de inferiorização da condição de ser
humano e cidadão, o que resulta, como é possível observar
nas denúncias realizadas nos canais de mídias jornalísticos,
em processos desiguais de acesso às políticas públicas de
distribuição de renda, do poder e do prestígio nos territórios,
a questão do entendimento equivocado do uso do álcool e

9 https://cimi.org.br/2017/11/indigenas-denunciam-a-comissionario-da-oea-cres-
cente-violencia-contra-suas-comunidades-e-exigem-do-governo-andamento-nas-
-demarcacoes/
10 https://cimi.org.br/2018/03/racismo-institucional-justificando-pobreza-estado-
retira-criancas-de-suas-familias-guarani-e-kaiowa/

168
de drogas, que ocasiona no errôneo entendimento de ser um
problema individual e não de saúde pública, a pobreza vista
como impedimento de uma família manter o vínculo com a
criança, dentre outros.
A respeito desse último item, com relação a “pobreza”,
o termo negligência11 tem sido usado em muitos dos processos
judiciais envolvendo crianças e jovens indígenas em situação
de acolhimento como referência a pobreza das famílias, é
possível perceber uma banalização da palavra negligência.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Há completa omissão do Estado nessas áreas ten-


diálogos interdisciplinares

tando justificar a pobreza como algo que fosse culpa exclu-


sivamente dos indígenas. Ademais, conforme matéria do
Estadão12 no ano em que o presente Relatório foi publicado,
em uma das diversas Audiências Públicas realizadas pela
Aty Guassu, um dos casos mais emblemáticos de retirada
foi exposto e evidenciado pelos meios de comunicação como
forma de denunciar a situação. Vejamos:

DOURADOS (MS) - Indígena da etnia Gua-


rani-Kaiowá e moradora de uma aldeia em
Dourados, no interior de Mato Grosso do
Sul, Élida de Oliveira, de 48 anos, tinha dado
à luz havia apenas oito dias quando teve o
bebê levado por agentes de saúde e membros
do Conselho Tutelar. Foi acusada de não
ser mãe do próprio filho porque ninguém
a havia visto grávida na aldeia. Segundo
esses órgãos, uma das violações é a remoção

11 Negligência: (do termo latino negligentia) é o termo que designa falta de


cuidado ou de aplicação numa determinada situação, tarefa ou ocorrência. É,
frequentemente, utilizado como sinónimo dos termos descuido, incúria, deslei-
xo, desmazelo ou preguiça.https://pt.wikipedia.org/wiki/Neglig%C3%AAncia
12 https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,guarda-de-indios-faz-justica-ser-
questionada,70002387313

169
de crianças das famílias sob alegação de
negligência dos pais quando o problema é a
pobreza, condição que, segundo o artigo 23
do ECA, não pode ser usada para suspender
o poder familiar. Outras condutas atribuídas
à Justiça e que contrariam o ECA, segundo a
Defensoria e a Funai, é encaminhar os meno-
res a um abrigo sem que a busca de parentes
próximos seja feita e a conclusão de proces-
sos de adoção sem consulta à Funai. Um
teste de DNA feito um ano depois provou o
laço sanguíneo entre a indígena e a criança,
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

mas ela não recuperou a guarda do menino.


diálogos interdisciplinares

Desta vez, a alegação era de que Élida não


tinha condições de cuidar dele, segundo
relatórios de assistentes sociais e psicólogos
que trabalham para a Judiciário. O menino,
então, seguiu longe da família graças a uma
medida protetiva concedida pela Justiça. [...]
Enquanto isso, o filho da indígena completou
seu terceiro ano de vida em um abrigo, sem
nunca ter pisado na Reserva Indígena Dou-
rados, onde a mãe e os seis irmãos vivem,
nem ter aprendido Guarani. Entre as poucas
palavras em português que Élida consegue
pronunciar, repete, aos prantos: “Eu amo
ele”, referindo-se ao menino.

O caso em tela trouxe comoção internacional, uma


vez que Élida de Oliveira, a mãe indígena que pelo estado e
pelo Poder Judiciário foi praticamente condenada a não ter
seu filho. Em nota ao Jornal Estadão, houve, por parte do Tri-
bunal de Justiça do Mato Grosso do Sul a seguinte resposta:

Questionado, o Tribunal de Justiça do Mato


Grosso do Sul (TJ-MS) disse não poder se
manifestar sobre os processos específicos
pois, por envolver crianças, eles tramitam em

170
segredo de Justiça. Destacou que, em março,
a Corregedoria-Geral de Justiça do Estado
se reuniu com representantes dos povos
indígenas para tratar da adoção de crianças
indígenas. Ficou decidido que a Coordenação
de Infância e Juventude do TJ-MS montaria
estratégia de ação sobre o tema, repassando
ao poder público as necessidades de melho-
rias nas condições dos indígenas. O TJ-MS
não informou se a estratégia já foi elaborada.
O juiz da Vara da Infância e Adolescência de
Dourados, Zaloar Martins Murat de Souza,
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

nega preconceito ou desconhecimento na


diálogos interdisciplinares

conduta da Justiça e diz que suas decisões


são baseadas nos relatórios técnicos de
assistentes sociais e psicólogos. Ele destaca
que esses profissionais trabalham há anos
com população indígena e entendem sua
realidade. “Tenho de zelar pela preservação
da melhor situação para a criança. Nessa
questão indígena, estou sempre acionando o
poder público para dar a assistência devida,
alimentos, vestuário, habitação razoável, mas
isso tudo é muito difícil porque depende de
recursos e da boa vontade do poder público.”

Ainda, por parte do Ministério Público Estadual de


Mato Grosso do Sul, apesar de ter prerrogativa de fiscal
da lei por parte da Constituição Federal, nos casos de
retiradas das crianças indígenas, demonstra uma postura
distante da esperada por parte da Instituição e reverbera
o preconceito demonstrado:

No caso de Élida, parecer do MP considerou


“retrocesso” a possibilidade de o garoto ser
reintegrado à família. [...]“Por toda a sua vida,
(a criança) conviveu em uma entidade de

171
acolhimento, com costumes muito diferentes
aos da cultura indígena, já estando adaptado
a uma realidade, de modo que o retorno às
origens, no presente caso, seria um verdadeiro
retrocesso”, aponta o documento, que susten-
ta abandono do filho pela mãe. Procurado
pelo Estadão, o MP não se manifestou.

Nesta perspectiva, Silvana Nascimento ainda afirma que:

E, nessa acepção, parece haver uma comu-


violência, gênero, saúde e fronteira(s)

nhão entre os entendimentos de Lima (2009)


com os de Rubens Thomas de Almeida de
diálogos interdisciplinares

que a prática do abrigamento e da adoção é


etnocida e de que os conselheiros tutelares,
os abrigos, a Justiça Estadual e o MP estariam
contribuindo para isso.

As crianças indígenas que moram nas reservas ou


áreas de retomada, residem muitas vezes em barracos, sem
acesso a saneamento básico, alimentação adequada, etc. Essa
situação de extrema pobreza é fomentada pelo próprio Estado
brasileiro, a partir do momento que expulsou as comunidades
Guarani e Kaiowá dos seus tekoha e colocou-os em reservas
e não encontra solução para os conflitos instalados há anos.
Desse modo, apesar de toda omissão do Estado, as
famílias educam seus filhos da maneira tradicional. Em volta
do fogo, a educação é socializada entre os irmãos, tios e avós.
Quando um agente do Estado retira essa criança sem ouvir
anteriormente a própria comunidade, sem mapear a família
extensa, deixando-a à mercê da própria sorte dentro da ins-
tituição de acolhimento “de brancos” age sem respeitar essa
sociedade pluriétnica que a Carta Cidadã assegura.

172
Ademais, o termo negligência, que aparece inúmeras
vezes nos processos judiciais de Medida de Proteção, muitas
vezes como justificativa da manutenção da criança na casa
de acolhimento, além de não ser um requisito legal para essa
manutenção, é carregado de um peso genocida e etnocida, à
medida que se refere a um modo de vida e cultural de uma
comunidade com costumes diferentes.
Enquanto o Poder Judiciário do estado do Mato
Grosso do Sul não olhar para as questões indígenas com
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

uma visão menos etnocêntrica, levando em conta a ausência


do Estado em atender os povos originários e suas demandas
diálogos interdisciplinares

de maneira justa e igualitária, não será possível a garantia


e manutenção dos direitos fundamentais assegurados na
Carta Magna a esta população.
A lógica apontada pelo Judiciário que supostamente
estaria fazendo pelo “melhor” remete imediatamente à um
diálogo presente em O Conto da Aia, quando o Comandante
diz para sua aia que o mundo (com Gilead) está melhor.
“Melhor?” questiona a aia, “Como ele pode pensar que isto
é melhor?”, ao que responde “Melhor nunca significa me-
lhor para todo mundo, diz ele. Sempre significa pior, para
alguns” (ATWOOD, 2017, p. 251).

A dor – O ponto em comum das duas realidades – Gilead e


Mato Grosso do Sul

Como em Gilead, a guerra silenciosa travada pela co-


munidade indígena e seus representantes contra um Estado
que se demonstra cada dia mais autoritário e com requintes
de crueldade, se mantém há anos e mantém uma estrutura
na qual mães são silenciadas.

173
A matéria jornalística feita pelo canal de mídia The
Intercept13 em julho de 2019, trouxe o seguinte título para a
publicação “esquece do seu filho’: o brasil está tirando crianças
indígenas de suas mães e colocando para adoção - sem terra e na
miséria extrema, indígenas têm seus filhos retirados e colocados
para adoção.”
Em um dos trechos no livro O Conto da Aia, a perso-
nagem June afirma:
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Este é o coração de Gilead, onde a guerra não


pode penetrar nem se intrometer, exceto pela
diálogos interdisciplinares

televisão. Onde ficam os limites não sabemos


ao certo, eles variam, de acordo com os ata-
ques e contra-ataques; mas este é o centro,
onde nada se move. A República de Gilead,
dizia Tia Lydia, não conhece fronteiras. Gilead
está dentro de você. (ATWOOD, 2017, p.34)

Qual a relação entre June, a personagem do romance


O Conto da Aia e Élida, a mãe indígena tratada nas matérias
jornalísticas de cunho denunciativo? Ambas tiveram seus fi-
lhos retirados de si com poucos dias de vida. Não é possível
aqui, calcular tal dor.
Em ambas situações, existe uma legitimidade no
Estado em permitir tais retiradas. June, pare sua filha sob
“os olhos de Deus” e é obrigada a conviver com a dor de
saber que ele será criado por outra família. Não há escolha,
nem contraditório.
Na realidade de Élida, aqui representando inúmeras
mães Guarani e Kaiowá no estado de Mato Grosso do Sul,
existe uma retirada sem explicações. Sob justificativas frívo-

13 https://theintercept.com/2018/07/28/kaiowaa-maes-filhos/

174
las, frias e desprendidas de humanidade. Conforme matéria
acima supramencionada14, dezenas de mães se reuniram em
uma Assembléia15, que ocorre periodicamente, para ouvirem
a denúncia de Élida, que demonstra a forma sistêmica como
o Estado e o Poder Judiciário têm atuado:

Duzentas mulheres ouviram em silêncio seu


depoimento em guarani durante um encontro.
A responsável por traduzir as palavras às au-
toridades presentes, Wanda Kuña Rendy, pode
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

verter apenas algumas frases para o português;


foi impedida pelo choro: “a criança, retiraram
diálogos interdisciplinares

dela com oito dias de vida… Ela pede para


não retirarem novamente a criança dela”. Élida
reagiu sorrindo ao meu pedido de entrevista,
mas hesitou em permitir que o filho mais novo
deixasse seu colo durante a gravação. Prepa-
rada para acompanhar como pesquisadora a
sexta edição da Kuñangue Aty, a grande as-
sembleia das mulheres kaiowá e guarani, eu
queria prestar atenção às rezas e cantos que
marcavam as noites e dias do encontro, da
recepção dos convidados às mesas de debate.
Como etnógrafa ou como repórter, no entanto,
é preciso dar atenção ao que aflige as pessoas.
“Por que o número de crianças indígenas em
situação de acolhimento institucional aumen-
tou tanto no último ano?”, eu me perguntava.
“Está virando lei agora tirar os indígenas e dar
para os brancos?”, questionou Janete Alegre,
anfitriã da assembleia em Amambai. Só no mu-
nicípio de Dourados (MS), 50 crianças viviam
em abrigos até 2017, segundo um relatório da
Coordenação Regional da Funai. Em julho de
2018, ainda restam 34. Descobri que o caso de

14 IDEM 14
15 Kuñangue Aty, uma grande assembleia das mulheres kaiowá e guarani - https://
nacoesunidas.org/onu-participa-do-aty-kuna-grande-assembleia-das-mulheres-indi-
genas-em-mato-grosso-do-sul/22048110_1449133945136028_4525281566736604781_o/

175
Oliveira e de outras mães de Dourados era a
ponta de um problema complexo, presente em
inúmeras outras comunidades, com indícios de
irregularidades ainda mais graves – acompa-
nhadas desde 2010 pela Funai, pela Defensoria
Pública e pelo Ministério Público Federal. “A
instituição defende que ela é pobre, que ela
mora em retomada. A instituições precisam
nos respeitar. Isso é genocídio dos povos indí-
genas”, ouvi gritar Jaqueline Gonçalves, uma
jovem liderança kaiowá, lembrando o histórico
de violências a que os Kaiowá e Guarani têm
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

sido submetidos desde o início do século 20. A


Vara da Infância alega maus tratos, abandono
diálogos interdisciplinares

e problemas com álcool e drogas para justificar


a separação de mães e filhos. “Reclamam que
nossos filhos são sujos; mas claro, vivemos na
terra, cozinhamos no fogo”, dizem as mulheres
na carta final da assembleia. Exigindo que
sejam encontradas alternativas dentro das pró-
prias aldeias, como manda o Estatuto da Crian-
ça e do Adolescente, essas mulheres querem
ter o direito de continuar seguindo as lições
de cuidado deixadas por seus antepassados.
É preciso comer os alimentos da origem, é
preciso cantar para os recém-nascidos, elas
me ensinaram.

Talvez não exista resposta para o questionamento re-


alizado pela autora da reportagem acima transcrita na ínte-
gra, haja vista a urgente necessidade em se relatar a situação
pela qual as mães indígenas são expostas. “Por que o número
de crianças indígenas em situação de acolhimento institucional
aumentou tanto no último ano?”
É possível compreender que com relação a problemá-
tica trazida neste breve trabalho, muito mais que respostas, o
objetivo em si é trazer inquietação. Uma realidade distópica

176
tratada de forma irreal é abordada no romance de Atwood.
Uma realidade à duras penas é exposta e denunciada dia-
riamente por grupos formados por comunidades indígenas,
criado por mulheres que vivem isso de forma real.

Considerações Finais

A análise dos pontos de convergência entre a reali-


dade distopia de Mato Grosso do Sul e a distopia tão assus-
tadoramente real de O Conto da Aia não se limita ou exaure
violência, gênero, saúde e fronteira(s)

nas reflexões ora desenvolvidas. Há diversos paralelos que


diálogos interdisciplinares

demandam ser considerados, não apenas na órbita aqui des-


tacada, mas diversos aspectos que servem como potencial
alerta para os rumos autoritários e violentos que o Estado
tem assumido em face das populações indígenas.
A violência da retirada de crianças de suas famílias,
representando uma ruptura cultural, social, familiar e
identitária não se apresenta como fato isolado no contexto
sul-matogrossense. É necessário, dessa forma, partindo das
reflexões que foram iniciadas na abordagem aqui apresen-
tada, desenvolver uma teoria jurídica que possa enfrentar o
problema e chamar o Estado brasileiro à sua responsabili-
dade, inclusive apontando as violações de direitos humanos
internacionalmente previstos.
Os universos distópicos na Literatura podem ser
interrompidos quando se fecha o livro ou termina a história,
mas os horrores, violências e desumanidades perpetradas
contra mães e crianças indígenas não se encerram quando a
reportagem termina ou se deita o jornal ao lado. São pessoas
reais, com dores reais. O fim dessa história depende de como
enfrentaremos, enquanto sociedade, esse problema.

177
Referências
ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. Tradução de Ana Deiró. Rio de Janeiro:
Rocco, 2017.

BRAND, Antonio. Quando chegou esses que são nossos contrários” – A ocupação
espacial e o processo de confinamento dos Kaiowá/Guarani no Mato Grosso
do Sul. Revista Multitemas, Campo Grande, n. 12. Disponível em: http://www.
multitemas.ucdb.br/article/viewFile/1235/1151. Aesso em 04 Out. 2020. https://doi.
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CAVALLI, Guilherme. Indígenas denunciam a comissionário da OEA crescente


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violência, gênero, saúde e fronteira(s)

Disponível em: https://cimi.org.br/2017/11/indigenas-denunciam-a-comissionario-


-da-oea-crescente-violencia-contra-suas-comunidades-e-exigem-do-governo-anda-
diálogos interdisciplinares

mento-nas-demarcacoes/. Acesso em 04 Out. 2020.

CAVALLI, Guilherme. Racismo institucional: justificando pobreza, Estado retira


crianças de suas famílias Guarani e Kaiowá. Conselho Indigenista Missionário
(CIMI), 01 de março de 2018. Disponível em: https://cimi.org.br/2018/03/racismo-
-institucional-justificando-pobreza-estado-retira-criancas-de-suas-familias-guara-
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CAMBRICOLLI, Fabiana. Defensoria Pública do MS e Funai questionam proces-


sos de retirada de crianças indígenas das famílias. Estadão, São Paulo, 05 de julho
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tucional e familiar da região de Dourados/MS de novembro de 2017. Disponível
em: http://www.suas.sedhast.ms.gov.br/wp-content/uploads/2019/09/3.2-RELA-
T%C3%93RIO-Mapeamento-Qualitativo-dos-casos-de-acolhimento-institucional-
-de-crian%C3%A7as-e-jovens-ind%C3%ADgenas-CR-Dourados-1.pdf. Acesso em
04 Out. 2020.

HUXLEY, Aldous. Regresso ao admirável mundo novo. Trad. Eduardo Nunes


Fonseca. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000.

KLEIN, Tatiane. Esquece do seu filho’: o Brasil está tirando crianças indígenas
de suas mães e colocando para adoção. The Intercept Brasil, 28 de Julho de 2018.
Disponível em: https://tecnoblog.net/247956/referencia-site-abnt-artigos/. Acesso
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crítica. Revista Direito GV, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 345-366, Junho 2013. Disponível

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em: https://www.scielo.br/pdf/rdgv/v9n1/a13v9n1.pdf. Acesso em 27 Ago. 2020.
https://doi.org/10.1590/S1808-24322013000100013.

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Federal da Grande Dourados. 2013.
violência, gênero, saúde e fronteira(s)
diálogos interdisciplinares

179
Índice remissivo

Cartografia 8, 103
confinamento 135, 136, 162, 163, 178
COVID-19 8, 20, 21, 32, 33, 47, 50

decolonial 8, 10, 15, 16, 18, 26, 111, 114


desterritorialização 22, 24, 117, 131

empoderamento 18, 19, 130, 131


Exploração sexual 8, 52, 76

Feminicídio 8, 50
fronteira 11, 19, 20, 21, 22, 23, 27, 28, 33, 34, 35, 38, 39, 40, 41, 46, 47, 49, 50,
52, 54, 55, 56, 57, 58, 61, 65, 67, 70, 74, 75, 76, 78, 79, 83, 84, 85, 86, 89,
90, 94, 95, 100, 101, 102, 103, 115, 117, 118, 119, 121, 124, 129, 130,
131, 182, 186

Geo-história 8
Guarani 11, 15, 21, 22, 23, 26, 108, 109, 112, 113, 114, 135, 139, 155, 156, 157,
158, 162, 166, 168, 169, 170, 172, 174, 176, 178

interseccionalidade 137

Kaiowá 11, 15, 21, 26, 108, 113, 114, 135, 139, 155, 156, 157, 158, 162, 164,
166, 168, 169, 172, 174, 176, 178, 179
Kuñangue Aty Guasu 21, 110, 113, 114, 139, 155

180
L

Lei Maria da Penha 8, 30, 40, 42, 49, 104, 106, 107, 108, 111, 113, 114, 141,
143, 151, 155

migração 29, 50, 61, 62, 77, 182, 186


mulheres indígenas 10, 11, 12, 13, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 104,
107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 133, 134, 135, 137, 138, 139, 140,
141, 142, 143, 144, 145, 146, 147, 150, 151, 153, 154, 155, 156, 159, 184

pandemia 20, 21, 27, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 47, 48, 49, 50
políticas públicas 32, 47, 48, 53, 61, 74, 75, 77, 107, 109, 112, 113, 131, 145,
155, 168

Reserva Indígena 23, 108, 109, 112, 170


resistência 11, 13, 17, 18, 19, 24, 71, 110, 113, 114, 120, 131, 150, 153, 163
reterritorialização 117, 118, 130, 135

Saúde Mental 83, 183, 184

Tekoha 8, 26, 156, 166


Teoria Sócio-Histórica 8, 53, 184, 185
Território 182, 186
Transterritorialidade 8

violência de gênero 22, 23, 24, 29, 30, 33, 41, 50, 97, 100, 106
violência doméstica 24, 29, 30, 33, 34, 35, 36, 38, 39, 41, 43, 44, 46, 47, 48, 50,
51, 105, 138, 140, 141, 149, 154
violência intrafamiliar 44

181
Sobre os organizadores

Pamela Staliano
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco
(UCDB/2004), mestrado em Psicologia pela UCDB (2007) e doutorado em
Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde pela Universidade de
Brasília (UnB/2012). Atualmente é professora adjunta da Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD) do Curso de Graduação e Pós-Gra-
duação em Psicologia. Tutora do Programa de Educação Tutorial (PET),
Grupo PET – Conexão de Saberes Psicologia/Geografia/Ciências Sociais da
UFGD. Possui experiência na área de Psicologia, com ênfase em avaliação
psicológica, saúde comunitária, intervenção breve, comunicação e fron-
teira. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Avaliação e Intervenção
Psicológica/UFGD/CNPq.

Marcos Mondardo
Possui graduação em Geografia (Bacharelado e Licenciatura) pela Uni-
versidade Estadual do Oeste do Paraná (2006), mestrado em Geografia
pela Universidade Federal da Grande Dourados (2009) e doutorado
(2012) e pós-doutorado (2020) em Geografia pela Universidade Federal
Fluminense. Atualmente é professor Adjunto do Curso de Graduação e do
Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da
Grande Dourados. Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em
Geografia Regional, Geografia Política, Geografia Agrária e Geografia da
América Latina, atuando e pesquisando principalmente com os seguintes
conceitos e/ou temas: território e territorialidade; fronteira e migração; re-
gionalização e globalização; povos indígenas e comunidades tradicionais,
com livros, capítulos e artigos publicados nessas áreas. Integra o Núcleo
de Pesquisa sobre Território e Fronteira (NUTEF/UFGD).

182
Sobre os autores

Allana Isabella Souza


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Doura-
dos-UFGD. Bolsista do grupo PET – Conexão de Saberes Psicologia/Ciên-
cias Sociais/Geografia da UFGD. Membro do grupo de pesquisa Estudos e
Pesquisas em Avaliação e Intervenção Psicológica.

Angelo Luiz Sorgatto


Possui mestrado em psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psi-
cologia da Universidade Federal da Grande Dourados (PPGPsi-UFGD),
especialização em Saúde Mental pela Universidade Católica Dom Bosco
(UCDB), graduação em psicologia pela Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Atualmente é docente do curso de Psicologia da
Faculdade Anhanguera de Dourados, MS; psicólogo clínico e psicólogo
no Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) do
município de Dourados.

Arthur Ramos do Nascimento


Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de Goiás (atual
PUC-GO). Mestrado em Direito Agrário (UFGD) é doutorando em Ciência
Jurídica (UENP), bolsista CAPES e da Fundação Araucária e especializan-
do em Vivências Pedagógicas Ativas no Ensino Superior (UEMS). Líder do
Grupo de Pesquisa (CNPq) “Democracia, Constituição e Direitos Huma-
no-fundamentais”. Professor efetivo na Faculdade de Direito e Relações
Internacionais da UFG.

183
Catia Paranhos Martins
Possui doutorado e mestrado em psicologia pela UNESP/Assis, especia-
lista em Saúde Mental pela UNICAMP e em Saúde do Trabalhador pela
FIOCRUZ. É docente do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências
Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), do Pro-
grama de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPsi-UFGD) e do Programa de
Residência Multiprofissional em Saúde do Hospital Universitário da UFGD.

Claudia Regina Nichnig


Possui graduação em História pela Universidade Federal de Santa Ca-
tarina (2003), graduação em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí
(1999), mestrado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina
(2008) e doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de
Santa Catarina (2013). Realizou estágio doutoral na École des Hautes
Etudes en Sciences Sociales, no Centre d’Anthropologie Sociale - L.I.S.S.T,
em Toulouse-França e em História, na UFSC. Sua pesquisa está voltada
para os seguintes temas: estudos de gênero e suas relações com o direito,
violências de gênero, família e conjugalidade, mulheres indígenas.

Gabriela Pereira da Silva


Mestranda em Psicologia com área de concentração em Psicologia da
Saúde pela Universidade Católica Dom Bosco. Graduada em Psicologia
pela Universidade Católica Dom Bosco. Membro do Grupo de Estudos
e Pesquisas em Teoria Sócio-Histórica, Migrações e Gênero do Programa
de Mestrado e Doutorado em Psicologia da Universidade Católica Dom
Bosco. Técnica Regional do Centro de Referência Técnica em Psicologia e
Políticas Públicas (CREPOP/CRP14MS)

Júlia Carmo de Paula


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Doura-
dos-UFGD. Bolsista do grupo PET – Conexão de Saberes Psicologia/Ciên-
cias Sociais/Geografia da UFGD. Membro do grupo de pesquisa Estudos e
Pesquisas em Avaliação e Intervenção Psicológica.

184
Krisley Amorim de Araujo
Mestranda em Psicologia com área de concentração em Psicologia da
Saúde pela Universidade Católica Dom Bosco. Graduada em Psicologia
pela Universidade Católica Dom Bosco. Membro do Grupo de Estudos
e Pesquisas em Teoria Sócio-Histórica, Migrações e Gênero do Programa
de Mestrado e Doutorado em Psicologia da Universidade Católica Dom
Bosco. Técnica Regional do Centro de Referência Técnica em Psicologia e
Políticas Públicas (CREPOP/CRP14MS)

Luana Maria Gutierres Barbosa


Possui graduação em Geografia pela Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Mestre em Geografia pelo Programa de Pós-gradua-
ção em Geografia da UFGD.

Luciane Pinho de Almeida


Possui graduação em Serviço Social (1989) e Pedagogia (1996), Mestrado
(2000) e Doutorado (2004) em Serviço Social pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho. Docente da Graduação e Pós-graduação da
Universidade Católica Dom Bosco. É líder do Grupo de Estudos e Pesquisas
em Teoria Sócio-Histórica, Migrações e Gênero e do Laboratório de Estudos
Psicossociais em saúde frente a contextos de desigualdade social. É membro:
da Rede Réseau Internacional América Latina, Europa, Caraibes (ALEC)
com sede na Universidade de Limoges, França; da Rede de Acolhimento
ao Migrante; e, da Rede Universitária de Integração Latino-Americana
(UniRila) Territórios, Populações Vulneráveis, Políticas Públicas.

Marcos Mondardo
Possui graduação em Geografia (Bacharelado e Licenciatura) pela Uni-
versidade Estadual do Oeste do Paraná (2006), mestrado em Geografia
pela Universidade Federal da Grande Dourados (2009) e doutorado
(2012) e pós-doutorado (2020) em Geografia pela Universidade Federal
Fluminense. Atualmente é professor Adjunto do Curso de Graduação e do
Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da
Grande Dourados. Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em
Geografia Regional, Geografia Política, Geografia Agrária e Geografia da

185
América Latina, atuando e pesquisando principalmente com os seguintes
conceitos e/ou temas: território e territorialidade; fronteira e migração; re-
gionalização e globalização; povos indígenas e comunidades tradicionais,
com livros, capítulos e artigos publicados nessas áreas. Integra o Núcleo
de Pesquisa sobre Território e Fronteira (NUTEF/UFGD).

Nathaly Conceição Munarini Otero


Bacharel em Direito pela UFGD, Pós graduanda em Processo Penal pela
Damásio Educacional, Advogada inscrita na OAB/MS 22.451, Assessora
jurídica na APIB - Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

Pamela Staliano
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco
(2004), mestrado em Psicologia da Saúde pela Universidade Católica Dom
Bosco (2007) e doutorado em Processos de Desenvolvimento Humano e
Saúde pela Universidade de Brasília (2012). É professora adjunta da Univer-
sidade Federal da Grande Dourados do curso de graduação em Psicologia e
da Pós-graduação Stricto Sensu. Suas áreas principais são: avaliação psico-
lógica, saúde comunitária, intervenção breve, comunicação e fronteira.

Paola Ferreira de Oliveira


Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Grande
Dourados (2019), foi bolsista de iniciação científica (UFGD) e do Programa
de Educação Tutorial (PET) Psicologia – Conexão de Saberes da UFGD.

Sarah Pedrollo Machado


Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Grande
Dourados (2017), mestrado em Psicologia pela Universidade Federal da
Grande Dourados (2020), com ênfase em Processos Psicossociais.

186

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