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Conselho Editorial Internacional


Presidente: Professor Doutor Rodrigo Horochovski (UFPR – Brasil)
Professora Doutora Anita Leocadia Prestes (ILCP – Brasil)
Professora Doutora Claudia Maria Elisa Romero Vivas (UN – Colômbia)
Professora Doutora Fabiana Queiroz (Ufla – Brasil)
Professora Doutora Hsin-Ying Li (NTU – China)
Professor Doutor Ingo Wolfgang Sarlet (PUC/RS – Brasil)
Professor Doutor José Antonio González Lavaut (UH – Cuba)
Professor Doutor José Eduardo Souza de Miranda (UniMB – Brasil)
Professora Doutora Marilia Murata (UFPR – Brasil)
Professor Doutor Milton Luiz Horn Vieira (Ufsc – Brasil)
Professor Doutor Ruben Sílvio Varela Santos Martins (UÉ – Portugal)

Comitê Científico da área Ciências Humanas


Presidente: Professor Doutor Fabrício R. L. Tomio (UFPR – Sociologia)
Professor Doutor Nilo Ribeiro Júnior (Faje – Filosofia)
Professor Doutor Renee Volpato Viaro (PUC/PR – Psicologia)
Professor Doutor Daniel Delgado Queissada (Ages – Serviço Social)
Professor Doutor Jorge Luiz Bezerra Nóvoa (Ufba – Sociologia)
Professora Doutora Marlene Tamanini (UFPR – Sociologia)
Professora Doutora Luciana Ferreira (UFPR – Geografia)
Professora Doutora Marlucy Alves Paraíso (UFMG – Educação)
Professor Doutor Cezar Honorato (UFF – História)
Professor Doutor Clóvis Ecco (PUC/GO – Ciências da Religião)
Professor Doutor Fauston Negreiros (UFPI – Psicologia)
Professor Doutor Luiz Antônio Bogo Chies (UCPel – Sociologia)
Professor Doutor Mario Jorge da Motta Bastos (UFF – História)
Professor Doutor Israel Kujawa (Imed – Psicologia)
Professor Doutor Luiz Fernando Saraiva (UFF – História)
Professora Doutora Maristela Walker (UTFPR – Educação)
Professora Doutora Maria Paula Prates Machado (Ufcspa – Antropologia Social)
Professor Doutor Francisco José Figueiredo Coelho (UFRJ – Ensino de Biociências e Saúde)
Professora Doutora Maria de Lourdes Silva (UERJ – História)
Professora Ivonete Barreto de Amorim (Uneb – Educação, Formação de Professor e Família)
Professor César Costa Vitorino (Uneb – Educação/Linguística)
Professor Marcelo Máximo Purificação (Uneb – Educação, Religião, Matemática e Tecnologia)
Professora Elisângela Maura Catarino (Unifimes – Educação/Religião)
Professora Sandra Célia Coelho G. da Silva (Uneb – Sociologia, Gênero, Religião, Saúde, Família e Internacionalização)
Claudia Priori
Márcio José Pereira
(Organizadores)

OS ESTUDOS DE GÊNERO E SEUS PERCURSOS:


Intersecções possíveis com a História Pública
© Brazil Publishing Autores e Editores Associados Associação Brasileira de Editores Científicos
Rua Padre Germano Mayer, 407 Rua Azaleia, 399 - Edifício 3 Office, 7º Andar, Sala 75
Cristo Rei - Curitiba, PR - 80050-270 Botucatu, SP - 18603-550
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Comitê Editorial
Editora-Chefe: Sandra Heck
Editor Superintendente: Valdemir Paiva
Editor Coordenador: Everson Ciriaco
Diagramação e Projeto Gráfico: Rafael Chiarelli e Brenner Silva
Capa: Paula Zettel
Revisão de Texto: Os autores

DOI: 10.31012/978-65-5861-023-6

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária: Maria Isabel Schiavon Kinasz, CRB9 / 626
Os estudos de gênero e seus percursos: intersecções
E82 possíveis com a história pública / organização de Claudia Priori, Márcio José Pereira –
1.ed. - Curitiba: Brazil Publishing, 2020.
[recurso eletrônico]

Vários colaboradores
ISBN 978-65-5861-023-6

1. Identidade de gênero. 2. Igualdade. 3. Mulheres – Condições sociais. 4. Políticas


públicas. I. Priori, Claudia (org.). II. Pereira, Márcio José (org.).

CDD 361.3 (22.ed)


CDU 396

[1ª edição – Ano 2020]


www.aeditora.com.br
APRESENTAÇÃO

Claudia Priori1
Márcio José Pereira2

Os Estudos de Gênero, numa perspectiva interdisciplinar, têm


alcançado nas últimas décadas uma vasta produção científica, assim
como compartilhado saberes e práticas para além dos muros das univer-
sidades. Variados grupos de estudo e pesquisa que reúnem pesquisado-
ras e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento têm promovido
por meio do debate público e de ações extensionistas uma aproximação
com outros públicos e/ou audiências, seja para a difusão de conhecimen-
to, seja para a produção conjunta com esses públicos.
Atualmente, tanto em nível nacional, quanto internacionalmen-
te, as questões de gênero e seus atravessamentos, têm despertado de
uma forma ou de outra, o interesse de novos públicos e/ou audiências, e
provocado variadas narrativas históricas ao (re) produzir discursos, sa-
beres e práticas, muitas vezes amplamente veiculados nas mídias sociais,
como: blogs, canais no youtube, sites de divulgação histórica, páginas de
grupos e podcasts, por profissionais de distintas áreas, seja da história, da
educação, da comunicação social, das artes, entre outras.

1 Professora Adjunta do Curso de Licenciatura em Artes Visuais, da Universidade Estadual


do Paraná, Campus de Curitiba II/FAP. Doutora em História (UFPR/2012). Docente no
Programa de Pós-Graduação em Cinema e Artes do Vídeo, da Universidade Estadual do
Paraná, Campus de Curitiba II/FAP. Docente no Programa de Pós-Graduação em História
Pública, e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História/PROFHistória, da
Universidade Estadual do Paraná, Campus de Campo Mourão. Líder do Grupo de Estudo e
Pesquisa em Educação, Diversidade e Cultura (GEPEDIC/CNPq), da Universidade Estadual
do Paraná. E-mail: claudia.priori@unespar.edu.br
2 Professor do Colegiado de História da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Doutor
em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR/2017). Docente no Programa de
Pós-Graduação em Ensino de História/PROFHistória, da Universidade Estadual de Maringá
(UEM). Membro do Grupo de Pesquisa: Movimentos autoritários do século XX (UEM); do
Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos e Políticas de Memória (UFPR), e do Grupo de
Estudo e Pesquisa em Educação, Diversidade e Cultura (GEPEDIC/UNESPAR).

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Além disso, de um lado, as questões de gênero também têm es-
tado presente em alguns países com políticas públicas mais consistentes
e democráticas, em que a promoção de uma educação voltada para a
equidade de gênero, os direitos humanos, e ainda, para a prevenção e
combate da violência de gênero em suas variadas facetas, seja contra as
mulheres e/ou comunidade LGBT+, assumem lugares de destaque por
meio dos usos públicos de propagandas pelo Estado - com materiais vi-
suais, cartazes, frases, outdoors - espalhados pelas ruas de cidades, trans-
porte público, parques e edifícios públicos. Formas visuais e cotidianas
de se tornar público assuntos que por tanto tempo estiveram na esfera
do privado.
No entanto, de outro lado, em variados países, inclusive no Brasil,
as questões de gênero e, principalmente o tema da sexualidade, tem estado
na pauta do dia, e se tornado um “assunto público” por alguns setores mais
conservadores dos poderes legislativo e executivo, assim como de setores
religiosos de igrejas de diversas denominações, que têm se utilizado das
tribunas e dos púlpitos para a promoção de discursos contrários ao que
chamaram de “ideologia de gênero”, apoiando e/ou legislando em tor-
no das dezenas de tentativas de impedimento dos estudos e debates de
gênero e sexualidade nas escolas, e quiçá, nas universidades. Discursos e
práticas que atingiram o nível público e têm alcançado amplas audiências,
devido ao uso massivo das mídias sociais, seja canais de televisão, canais
no youtube, ou então, rede de compartilhamentos de notícias, amiúde fake
news, entre os contatos pessoais e grupos de redes sociais que engrossam
o coro. Isso nos revela como estes temas ligados a gênero e sexualidade
desperta interesse público, porém, a todo instante são reivindicados para
o âmbito do privado, do doméstico, do familiar, a exemplo de programas
como o “Escola sem partido” no Brasil, o movimento Con Mis Hijos No
Te Metas, oriundo do Peru e já espalhado em outros países da América
Latina como Argentina, Bolívia e Paraguai, que insistem em banir do
debate público e educacional toda política pública que tenha enfoque na
igualdade de gênero.
A publicização das temáticas de gênero, tendem a gerar um cam-
po de disputas rico em elementos para análise das Ciências Humanas,

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dada a complexidade dos posicionamentos do público não especializa-
do acerca das mesmas. Inúmeras são as páginas em redes sociais, como
Facebook, Twitter e Instagram, que tomam para si a responsabilidade de
divulgar, problematizar e muitas vezes fazer juízos estereotipados das
políticas públicas acima citadas.
Os conteúdos são replicados por entidades de classe, sociedade ci-
vil organizada, agremiações não vinculadas a grupos de pesquisa, coletivos
ligados ou não à defesa de pautas minoritárias que veiculam, protestam,
conscientizam e publicizam conteúdos relacionados às questões de gênero
e seus atravessamentos. Vale ressaltar, que ao mesmo tempo que as redes
sociais são utilizadas para conscientização das pautas, também o são para
resgatar comportamentos “de antigamente”, valorizar conservadorismos e
promover a violência contra grupos feministas e LGBT+.
Diante do exposto, podemos notar a inter-relação do campo dos
Estudos de Gênero com o campo da História Pública, ainda que uma
produção mais consistente integrando essas abordagens precisa ser me-
lhor viabilizada no sentido de discussão teórico-metodológica, técnicas
e formas de ampliação dos modos de se fazer história e de divulgação
científica. Nesse sentido, é importante destacarmos que não há uma
única definição do que seja História Pública, e sim que é um espaço
amplo de debate histórico, cujo grande esforço é defender uma história
que não se reduza aos meandros acadêmicos, mas que seja feita para e
com o público, tenha como foco a ampliação das audiências, e entenda
que os saberes e práticas produzidos fora do ambiente universitário são
passíveis de investigação sem prejudicar a credibilidade científica e a
responsabilidade da produção e circulação dos saberes históricos.
No Brasil, a ideia de História Pública é ainda mais recente que a
sistematização dos estudos de gênero, independentemente do “espírito
público” da história, que a mídia tenta protagonizar a todo custo no país,
deixando os/as historiadores/as à margem, ao tomar para si o direito e a
autoridade de narrar os fatos históricos do tempo presente. Acreditamos
que cabe aos/as historiadores/as gerenciar esse movimento, que dê conta
de sociabilizar a produção acadêmica especializada e os saberes produzi-
dos por outras experiências de reflexão do passado.

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Assim, os Estudos de Gênero e a História Pública já dialogam
entre si pelo próprio caráter de uso público de suas interfaces, então,
muito já se faz nesta perspectiva de diversos modos, seja pelo envolvi-
mento de profissionais de diversas áreas, quanto de outros públicos e/
ou audiências com as temáticas em pauta; seja pelos usos públicos de
gênero que se faz socialmente para sua defesa ou refutação; e ainda, pela
produção e reprodução de discursos, práticas e saberes que se espalham
por diversos cenários, veiculados por uma infinidade de ferramentas, in-
clusive pela história digital. Todavia, ainda se requer para essa inter-re-
lação a prática de abordagens teórico-metodológicas mais afinadas entre
os campos que possibilitaria maior produção e difusão de saberes tendo
como enfoque as amplas audiências.
As temáticas e abordagens que compõem esta coletânea nos
apresentam olhares ampliados acerca das narrativas históricas sobre as
relações de gênero; dos usos públicos das questões de gênero; da inser-
ção pública de mulheres; do uso das mídias sociais para a (re) produ-
ção de práticas e saberes; da utilização de canais digitais de divulgação
científica para a difusão de conhecimento dos estudos de gênero e seus
atravessamentos. Além disso, nos mostra a importância de promover o
debate público acerca de assuntos antes considerados privados, como a
violência de gênero, o racismo, por exemplo, o que possibilita mediações
do passado e reflexões do presente, e permite alcançar amplas audiências.
A presente coletânea reúne capítulos de pesquisadoras e pes-
quisadores da área da história, da educação, do direito, das letras, da
literatura e da psicologia, e abordam questões que perpassam as rela-
ções de gênero, as histórias das mulheres, as sexualidades, as políticas
públicas, as representações sociais, as narrativas, as memórias, as lutas
e resistências de sujeitos/as historicamente excluídos/as e invisibiliza-
dos/as do debate social e da escrita da história, tais como as mulheres,
a população negra, a comunidade LGBT+ e as pessoas encarceradas.
Os capítulos estão ancorados em três eixos de discussão: a) Relações de
gênero e a história pública; b) A figura pública de mulheres: na escrita e
na política; c) Assuntos públicos: grupos sociais, visibilidade e políticas
de enfrentamento.

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No primeiro eixo “Relações de gênero e a história pública” nos de-
paramos com o capítulo Gênero, sexualidade e divulgação científica: Reflexões
sobre uma experiência de História Pública, no qual Georgiane Garabely Heil
Vázquez relata sua experiência de escrever um texto ao grande público
elucidando para além dos muros da universidade, o que seriam os estudos
de gênero e quais temas a área pesquisa e analisa. A autora dialoga com a
história pública e possibilita o debate acadêmico-social sobre tais questões
diante de uma demanda social que se fazia premente naquele momento, e
com isso consegue chegar a audiências amplas.
No capítulo Homens e mulheres na Guerra de Espadas em Cruz
das Almas – BA (1980-2018), Filipe Arnaldo Cezarinho aborda o ca-
ráter público da escrita da História, ao investigar os saberes e as prá-
ticas de mulheres e homens, pela perspectiva das relações de gênero, a
partir da Guerra de Espadas na cidade de Cruz das Almas – BA. Para
isso, o autor utiliza fontes orais e digitais, buscando pela experiência
desses/as espadeiros/as com o processo de produção e com a dinâmica
geral da Guerra de Espadas. Enfatiza que com o advento de platafor-
mas digitais, muitos/as espadeiros/as têm deixado registros sobre essa
tradição, além da formação de grupos em defesa desse acontecimento,
o que lhe permitiu acessar os discursos e as práticas desses/as sujeitos/
as inseridos/as na Guerra de Espadas.
Claudete Maria Petriw e Filipe Arnaldo Cezarinho no capítulo
História oral: problemas e possibilidades de análises em (con)textos diferentes,
buscam refletir acerca de implicações encontradas na constituição dessa
tipologia de fonte histórica – a história oral - aos debates presentes sobre
memória, relações de gênero e história pública. A experiência narrada
parte de duas pesquisas históricas, desenvolvidas em lugares distintos, e
que tiveram em comum o uso do recurso metodológico. Nesse ínterim,
o intuito de ambos foi de trazer para o debate os elementos comuns que
apareceram nas pesquisas, de certo modo, interligando-as: a pertinência
das pesquisas para as comunidades, as disputas pelas memórias, as resis-
tências nos discursos e a produção colaborativa.

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O eixo “A figura pública de mulheres: na escrita e na política”
nos contempla com o capítulo Guerra e paz na obra de Maria Lacerda
de Moura, em que Patrícia Lessa e Claudia Maia se debruçam sobre
a obra da escritora brasileira para pensar seu olhar sobre a guerra e a
paz, e nos apontam como isso possibilita a visibilização da escrita e do
pensamento de uma mulher que teve sua produção silenciada por longo
tempo. Maria Lacerda de Moura deixou uma extensa bibliografia entre
livros, textos jornalísticos e conferências proferidas em diversas cidades
brasileiras, bem como em outros países, o que inscreve a escritora como
sendo uma figura pública, e também indica a potência de seus escritos,
disseminação e publicização para/por diversos públicos no tempo pas-
sado e no presente, e como seus escritos são pensados e repensados por
audiências distintas e guarda ainda estreita relação com as lutas feminis-
tas e antifascistas contemporâneas.
A autora Maiara Cristina Segato, no capítulo Gênero e resistên-
cia na narrativa de autoria feminina da pós-modernidade: a representação da
identidade feminina em Divã, de Martha Medeiros, analisa a produção de
autoria feminina a partir dos anos 1990 e aprofunda ainda a análise acerca
da representação da identidade feminina no embate entre os anseios de
liberdade de escolha e a segurança oferecida pelo pertencimento, num
contexto dilacerante do mundo pós-moderno, marcado pela frugalidade,
individualização, liquidez das relações sociais e de gênero e a fragmenta-
ção da identidade.
Por sua vez, Michele Tupich Barbosa, no capítulo Darcy Vargas:
uma trajetória feminina na formulação da Legião Brasileira de Assistência
– LBA, nos apresenta como Darcy Vargas esteve associada à crescente
participação feminina em associações caritativas filantrópicas no Brasil,
evidenciando sua participação e protagonismo na fundação da Legião
Brasileira de Assistência (LBA). Denota também como a figura pública
de Darcy Vargas é perpassada pelo silenciamento, sendo conhecida ape-
nas pelas narrativas e representações que se produziram sobre ela. Ainda
que a autora não estabeleça uma relação da trajetória da primeira dama
com as práticas da história pública, é notório perceber como outros pú-
blicos, seja a imprensa, o próprio marido e ainda sua filha produziram

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uma imagem de sua figura pública, contribuindo para uma forma com-
partilhada de como ela foi retratada pelos documentos, diários, jornais
e fotografias. Neste sentido, embora de forma implícita, percebe-se as
relações de gênero e suas ligações com a história pública, daquilo que se
projetou acerca da atuação de Darcy Vargas no país.
No eixo “Assuntos Públicos: grupos sociais, visibilidade e po-
líticas de enfrentamento”, os textos nos trazem a luta e resistência de
distintos grupos sociais por sua (re) existência, modos de ser, de viver
e de amar; grupos que buscam visibilidade, acesso a políticas públicas,
respeito à diferença e igualdade de direitos. No capítulo Fotografias his-
tóricas arcaicas da população LGBT+, os autores Iran Ferreira de Melo e
Richard Fernandes de Oliveira analisam o que chamam de “fotogra-
fias” que ao longo do tempo foram sendo reveladas, retratando quadros
historicamente disformes, expondo os corpos, as vivências, as sociabi-
lidades das pessoas de gêneros e sexualidades não-hegemônicos, como
sendo aquelas que não seguiam ou não seguem a “normalidade” das re-
lações amorosas e sexuais de cada época e de cada sociedade. Com isso,
problematizam como assuntos relegados à esfera da vida privada vão
assumindo caráter público, seja pela exposição das sexualidades e dos
corpos dissidentes pelos discursos da ciência, da medicina, da igreja, da
sociedade civil, seja na luta das pessoas LGBT+ no mundo contempo-
râneo em busca de visibilidade, combate às discriminações e violências,
ativismos e enfrentamentos sociais.
No capítulo Criminalidade feminina: análises e reflexões a par-
tir dos prontuários penitenciários e entrevistas de mulheres encarceradas no
Paraná (2000-2017), Pamela de Gracia Paiva analisa a documentação
jurídica construída na prisão sobre as mulheres reclusas e de como são
elaboradas discursivamente “verdades” sobre elas, tanto dentro quan-
to fora da vida prisional. Os crimes e violências cometidos ou sofridos
por mulheres, é um assunto público, não apenas no aspecto do direito,
mas também porque assola a vida pública de milhares de mulheres e de
outros grupos. Nesse sentido, a análise evidencia mais uma vez como
as desigualdades de gênero e as representações femininas construídas
historicamente, são constantemente reiteradas na prisão e na sociedade.
Olhar para o tema da prisão é vislumbrar, em pleno século XXI, como
se trata e se retrata a população encarcerada, especialmente as mulheres.

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No capítulo Efeitos da violência contra a mulher negra sobre suas
relações socioeconômicas e afetivas, as autoras Carmelita da Cunha Alfaia,
Silvia Canaan, e o autor Marcelo Quintino Galvão-Baptista, abordam a
dimensão étnico-racial, em intersecção com a categoria gênero, demons-
trando como a violência de gênero atinge as mulheres negras em suas
relações sociais, tanto em termos socioeconômicos como na esfera afetiva,
o que nem sempre é alvo de debate público, minimizando a importância
da questão racial no contexto brasileiro. Nos apontam ainda como são
importantes as políticas públicas de enfrentamento às violências, desi-
gualdades e de segurança pública, bem como sua materialização para a
prevenção e combate da violência contra mulheres negras, na busca de
visibilidade e espaço social que lhes têm sido negados historicamente.
No capítulo Políticas públicas para mulheres no Brasil, Gissele
Buzzatti Leal Bertagnolli trata de uma das temáticas que tem demanda-
do constantes lutas dos movimentos de mulheres, que é a reivindicação
da criação e implementação de políticas públicas por parte do Estado.
Políticas públicas voltadas ao combate das desigualdades de gênero, na
perspectiva de combater as desigualdades sociais. E na ótica da auto-
ra, para a efetivação dessas políticas públicas, é preciso estabelecer um
diálogo eficaz e permanente com a sociedade civil, em busca da disse-
minação de uma nova cultura política. Uma cultura que seja sensível
às desigualdades de gênero e opte por políticas inclusivas, almejando a
igualdade. A proposição de políticas públicas de gênero, portanto, exige
estabelecer o sentido das mudanças, num caráter emancipatório.
Por fim, é importante destacar que as temáticas discutidas nesta
coletânea demonstram pressupostos de colaboração, de inclusão e de
diálogo entre distintas áreas de conhecimento e variadas abordagens te-
órico-metodológicas, e nos apontam percursos, itinerários e intersecções
possíveis entre campos de pesquisa. Além disso, os textos problema-
tizam questões fundamentais para a construção de saberes e práticas
históricas que sejam mais democráticas, mais significativas a diversos
públicos, e sobretudo, que promovam todo tipo de emancipação.

Outono de 2020.

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SUMÁRIO

EIXO I – RELAÇÕES DE GÊNERO E A HISTÓRIA PÚBLICA . . . . . . .15


GÊNERO, SEXUALIDADE E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: REFLEXÕES
SOBRE UMA EXPERIÊNCIA DE HISTÓRIA PÚBLICA . . . . . . . . . .16
Georgiane Garabely Heil Vázquez
HOMENS E MULHERES NA GUERRA DE ESPADAS EM CRUZ DAS
ALMAS – BA (1980-2018) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .34
Filipe Arnaldo Cezarinho
HISTÓRIA ORAL: PROBLEMAS E POSSIBILIDADES DE ANÁLISES EM
(CON)TEXTOS DIFERENTES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .56
Claudete Maria Petriw e Filipe Arnaldo Cezarinho

EIXO II – A FIGURA PÚBLICA DE MULHERES: NA ESCRITA E


NA POLÍTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .78
GUERRA E PAZ NA OBRA DE MARIA LACERDA DE MOURA . . . . .79
Patrícia Lessa e Claudia Maia
GÊNERO E RESISTÊNCIA NA NARRATIVA DE AUTORIA FEMININA
DA PÓS-MODERNIDADE: A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE
FEMININA EM DIVÃ, DE MARTHA MEDEIROS . . . . . . . . . . . . . 105
Maiara Cristina Segato
DARCY VARGAS: UMA TRAJETÓRIA FEMININA NA FORMULAÇÃO
DA LEGIÃO BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA - LBA . . . . . . . . . . . 129
Michele Tupich Barbosa

EIXO III – ASSUNTOS PÚBLICOS: GRUPOS SOCIAIS, VISIBILIDADE


E POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156
FOTOGRAFIAS HISTÓRICAS ARCAICAS DA POPULAÇÃO LGBT+ . 157
Iran Ferreira de Melo e Richard Fernandes de Oliveira
CRIMINALIDADE FEMININA: ANÁLISES E REFLEXÕES A PARTIR
DOS PRONTUÁRIOS PENITENCIÁRIOS E ENTREVISTAS DE
MULHERES ENCARCERADAS NO PARANÁ (2000-2017) . . . . . . . . 176
Pamela de Gracia Paiva
EFEITOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NEGRA SOBRE SUAS
RELAÇÕES SOCIOECONÔMICAS E AFETIVAS . . . . . . . . . . . . . 197
Carmelita da Cunha Alfaia, Marcelo Quintino Galvão-Baptista e Silvia Canaan
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES NO BRASIL . . . . . . . . . 221
Gissele Buzzatti Leal Bertagnolli

SOBRE OS ORGANIZADORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235


EIXO I

RELAÇÕES DE GÊNERO
E A HISTÓRIA PÚBLICA
GÊNERO, SEXUALIDADE E DIVULGAÇÃO
CIENTÍFICA: REFLEXÕES SOBRE UMA
EXPERIÊNCIA DE HISTÓRIA PÚBLICA

Georgiane Garabely Heil Vázquez3

RESUMO
Esse capítulo resulta da reflexão sobre a experiência de publicação de um texto no site
“Café História”, no ano de 2017. O texto “Gênero não é ideologia: explicando os es-
tudos de Gênero” foi publicado por mim nesse portal de divulgação de conhecimento
científico e teve ampla repercussão. Período conturbado para os estudos de gênero, o
ano de 2017 foi marcado por ataques às investigações e até mesmo pelo debate sobre
a proibição desse campo de estudos. Desta forma, o texto aqui apresentado proble-
matiza sobre a repercussão pública e a estratégia de se usar um portal de divulgação
científica para explicar, mesmo que parcialmente, ao grande público, em que consistem
os estudos de gênero. O objetivo central deste trabalho foi de analisar a experiência
de história pública como estratégia de comunicação e os principais resultados de tal
experiência.
Palavras-chave: Estudos de Gênero; História Pública; Café História; Divulgação
Científica

ABSTRACT
This chapter is the result of reflecting on the experience of publishing a text on the
website “Café História”, in 2017. The text “Gender is not ideology: explaining gender
studies” was published by me on this portal for the dissemination of scientific knowledge
and had wide repercussions. A troubled period for gender studies, the year 2017 was
marked by attacks on investigations and even by the debate over the prohibition of this
field of studies. Thus, the text presented here questions the public repercussions and the
strategy of using a scientific dissemination portal to explain, even partially, to the general
public, what gender studies consist of. The main objective of this work was to analyze

3 *Agradeço à Bruno Leal Pastor Carvalho e Ana Paula Tavares Teixeira por me possibilitarem
a experiência com História Pública e divulgação do conhecimento científico via Café História.
Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História
(mestrado acadêmico) da Universidade Estadual de Ponta Grossa ( UEPG).

16
the experience of public history as a communication strategy and the main results of
such experience
Keywords: Gender Studies; Public History; Café História; Scientific Divulgation

NOTAS PRELIMINARES

21 de novembro de 2017. Liguei o computador em busca de


notícias sobre a política nacional e a economia, tendo em vista o recente
processo do golpe de 2016. O Brasil vivia uma abrupta mudança de di-
recionamento nas políticas sociais, concepções econômicas e, também,
uma espécie de “guerra de narrativas” sobre os rumos corretos para a
Nação. Todavia, a notícia que ressaltava em diferentes sites de internet
e principalmente nas redes sociais vinha da Bahia e se relacionava ao
ensino superior.
Num primeiro momento, pode-se pensar que tais fatos não esta-
vam diretamente ligados. Porém, faziam parte de um mesmo processo de
transformação e guerra de narrativas, como já mencionado. Em novem-
bro de 2017 diversas/os professoras/es universitárias/os e pesquisadoras/
es foram surpreendidas/os pela notícia que docentes da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) estavam sendo ameaçados/as inclusive de
morte, por pesquisas vinculadas aos estudos de gênero e sexualidade.
Além disso, a defesa de uma dissertação de mestrado na referida univer-
sidade precisou de reforço policial para que pudesse ocorrer.
Segundo Joana Maria Pedro4, a Universidade Federal da Bahia
é uma das instituições brasileiras mais relevante nas pesquisas sobre gê-
nero e sexualidade, chegando, inclusive, a possuir o único curso brasileiro
de Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade, até o momento.
Os docentes e a mestranda ameaçados estavam vinculados ao IHAC-
Instituto de Humanidades, Artes e Ciências e, além disso, possuíam pes-
quisas vinculadas ao NEIM, Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre
a Mulher ou ao CUS, grupo de pesquisa Cultura e Sexualidades. A onda
de ataques e ameaças foi motivada por estudos vinculados a divisão sexual

4 PEDRO, Joana Maria. Relações de Gênero como categoria transversal na historiografia


contemporânea. Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011, p. 270-283.

17
do trabalho e, no caso da defesa de dissertação de mestrado, a pesquisa
desenvolvida no CUS sobre sexualidade e diversidade de gênero na edu-
cação infantil.
Toda essa situação de ameaças levou ao então Reitor da UFBA,
João Carlos Salles, divulgar uma moção de repúdio contra tais ataques
ao corpo docente e discente da instituição. Além disso, os/as docentes
foram orientados/as a prestar queixa judicial referente às ameaças. Toda
a comunidade científica brasileira vinculada ao campo das humanidades
assistia atônita aos acontecimentos na UFBA. E foram tais aconteci-
mentos que me motivaram a escrever sobre estudos de gênero para um
portal/site de internet em busca de ampla divulgação. Assim, problema-
tiza-se neste texto a experiência de história pública não exatamente por
opção teórica ou metodológica, mas como uma forma de divulgação de
conhecimento científico (num primeiro momento), motivada por ata-
ques ao campo de estudos e pesquisas em gênero.
Desde fins dos anos de 1980 os estudos de gênero pareciam ga-
nhar amplo fôlego nas pesquisas brasileiras. Com a publicação do texto
de Joan Scott5 e a rápida proliferação de cursos de especialização, bem
como linhas de pesquisas em programas de pós-graduação em níveis
de mestrado e doutorado, grupos de estudos, programas de extensão e
mesmo defesas de teses e dissertações na área de história das mulheres
e estudos de gênero, parecia haver uma consolidação acadêmica e social
sobre tais pesquisas. Contudo, situações como as narradas acima de-
monstravam cada vez mais que os estudos de gênero estavam - e creio
que ainda estejam - sobre forte ataque. Esses ataques vinham princi-
palmente de setores auto-declarados “conservadores”, que poderiam ou
não estar vinculados a diversos grupos religiosos. No caso específico da
UFBA, um dos temores anunciados pelos grupos conservadores era a
imposição de mudança sexual para crianças e adolescentes, ou seja, mui-
tos acreditavam que os estudos de gênero eram responsáveis pelo in-
centivo à homossexualidade ou mesmo ao estímulo sexual precoce para
crianças e adolescentes.
5 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade.
v.l, n.2, jul./dez. 1990.

18
Esses ataques acabaram tirando as pesquisas de gênero desenvol-
vidas no interior das Universidades e as levando para o espaço público,
onde o debate é muito mais heterogêneo e, até por isso, mais complexo.
No mesmo ano de 2017, Toni Reis e Edla Eggert publicaram um artigo
na Revista Educação e Sociedade, debatendo sobre o boicote e ataques
que os estudos de gênero vinham sofrendo no campo educacional, em
especial, analisam o Plano Nacional e Planos Estaduais e Municipais
de Educação, verificando o acalorado debate contra a inclusão do termo
gênero em diferentes Planos Educacionais.6 Esse artigo já denunciava
que o campo de pesquisa em gênero estava sob ameaça. Relacionando
parte do discurso religioso com determinadas correntes de pensamento
conservador, Reis e Eggert demonstraram que esse fenômeno não era
exclusivamente brasileiro. Diferentes países do mundo estavam experi-
mentando essa perseguição aos estudos de gênero e a região da América
Latina não ficou de fora. No Brasil, diversas cidades tiveram suas câma-
ras de vereadores transformadas em palco, onde se confrontaram grupos
contrários e favoráveis ao debate sobre questões de gênero em Planos
Municipais de Educação ou mesmo a discussão sobre igualdade de gê-
nero em escolas.
Não havia mais a possibilidade de seguir com pesquisas em gê-
nero no isolamento universitário. Seguramente era necessário romper as
barreiras dos muros das universidades e dialogar com a comunidade de
maneira mais ampla. Desta forma, minhas ambições de história pública
em fins de 2017 foi possibilitar, em alguma medida, o debate acadêmi-
co-social sobre as tais questões. Foi, portanto, uma resposta à demanda
social na tentativa de se fazer compreender. Em outras palavras: uma
tentativa de divulgação de conhecimento científico e, neste ponto, deixo
claro minha concepção sobre a própria história pública.

6 REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos
de educação brasileiros. Educação e Sociedade. Campinas, v. 38, nº. 138, p.9-26, jan.-mar., 2017.

19
HISTÓRIA PÚBLICA: ALGUMAS REFLEXÕES CONCEITUAIS

A História Pública tem fomentado amplo debate na comunida-


de científica vinculada às ciências humanas e sociais. Campo ou moda-
lidade tida por alguns/mas como relativamente nova na historiografia,
essa forma de história busca construir um arcabouço de características e
metodologias se firmando como uma das muitas maneiras de se lançar
um olhar, uma abordagem analítica sobre a história e suas questões7.
Pesquisadores/as de diversas Universidades nacionais e interna-
cionais debatem sobre a História Pública e suas possíveis metodologias
e estratégias. Contudo, é necessário dizer que não há uma unanimidade
no que se refere ao conceito de História Pública.
Juniele Almeida e Marta Rovai8 argumentam que suas reflexões
sobre a conceituação e delimitação acerca da História Pública foram ini-
cialmente sistematizadas no ano de 2011 com um curso na Universidade
de São Paulo (USP) denominado de “Introdução à História Pública”,
que resultaria posteriormente na organização de um livro com o mes-
mo título ampliando tais reflexões. Para as autoras, a História Pública
deveria ser vista como uma possibilidade de se ampliar e difundir o
conhecimento histórico. Nesse sentido, a ideia de “amplas audiências”
como as possibilitadas por meio de televisão, rádio, jornais, organizações
não governamentais e a prória internet poderiam ser sistematicamente
utilizadas para o fazer histórico, bem como para a divulgação de tais
conhecimentos. Essa concepção extrapolava as tradicionais maneiras
de publicização do conhecimento histórico e historiográfico, tradicio-
nalmente feito por meio de textos acadêmicos, publicações em revistas
especializadas e com circulação mais restrita e até mesmo espaços tradi-
cionais de história como museus e centros de memória.
Ainda segundo Almeida e Rovai9 deve-se ter claro que a História
7 Vale ressaltar que até o ano de 2020 a Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), no
Campus de Campo Mourão-PR, era a única Universidade brasileira a possuir um mestrado
acadêmico com a área de concentração em História Pública no Brasil.
8 ALMEIDA. Juniele Rabêlo; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Orgs.). Introdução à
História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011
9 ___________. História pública: entre as “políticas públicas” e os “públicos da história”. IN:
XXVII Simpósio Nacional de História. Conhecimento Histórico e Diálogo social. ANPUH Natal:

20
Pública não é apenas ensinar e divulgar certo conhecimento por meio da
popularização do saber histórico, mas, também possibilitar a interdisci-
plinaridade e a integração de diversos recursos, sejam eles técnicos e ou
metodológicos. Nas palavras das autoras:

O trabalho fora da Universidade pode se expandir, se po-


pularizar, por meios dos arquivos, de museus, da fotogra-
fia, do cinema, da história oral, sem, no entanto, perder
a seriedade e o seu compromisso com a produção de sa-
beres. A pergunta que deve ser feita na realização dessas
práticas é como a academia pode, em seu interior e a par-
tir de seus pressupostos, colaborar para gerar uma história
mais humana e democrática fora dela. Ou ainda se lidar
com a história pública fora da universidade é, necessaria-
mente, uma exclusividade de historiadores10.

A partir de tais reflexões, Almeida e Rovai problematizam que


a História Pública ainda é um conceito complexo e, em certa medida,
escorregadio, pois pode abrigar variadas tendências e concepções.
Bruno Lontra Fagundes11 argumenta no que se refere às origens
da História Pública que há um certo consenso entre pesquisadores/as ao
afirmar que se localiza nos anos de 1970, vinculada com a historiografia
norte-americana e anglo-saxônica e, em alguma medida, estava vincu-
lada a necessidade de se ampliar a empregabilidade dos/as profissionais
da História. Nesse sentido, ainda segundo Fagundes, não era comum
que empresas e organizações não-governamentais mantivessem em seus
quadros de funcionários, historiadores e historiadoras. Todavia, com a
propagação do conhecimento histórico e, portanto, a disseminação da
chamada História Pública, tal fato poderia se modificado.
Já Almeida e Rovai ampliam o espaço geográfico do surgimento
da História Pública, pois, para as autoras já haviam debates em países
como Itália e África do Sul. Contudo, também destacam a preponde-
Rio Grande do Norte, 2013.
10 Idem, pg 03.
11 FAGUNDES, Bruno F. Lontra. O que é, como e por que história pública? Algumas
considerações sobre indefinições. IN: VII Congresso Internacional de História.1917-2017,
Centenários Universidade Estadual de Maringá, 2017.

21
rância dos Estados Unidos e Inglaterra nesse debate inclusive com a
fundação, em 1979, do National Council for Public History, nos Estados
Unidos.12
Para além das questões sobre o surgimento desta forma de his-
tória, o debate central travado no Brasil ainda é sobre as metodologias
utilizadas e as abordagens conceituais.
Nesse texto procuro compreender a História Pública em sua
complexidade, mas delimitando-a principalmente como uma nova for-
ma de construção do conhecimento histórico e como uma espécie de
ponte entre o saber construído na academia e a popularização de tal
conhecimento.
Seguindo os apontamentos de Thais Fonseca13, tal forma de
construção do conhecimento histórico pode ser vista como um caminho
para se pensar as diferentes mídias na divulgação do saber histórico. É
evidente que essas novas mídias precisam ser compreendidas de modo
amplo, englobando seus usos e também suas limitações. Problematizar
sobre o acesso democrático ao conhecimento, bem como a própria his-
tória das novas mídias e suas possibilidades de uso para o conhecimen-
to histórico possibilitaria, na visão de Fonseca, a construção de novas
formas de conhecimento e também com uma espécie de patrimônio
coletivo do conhecimento, sem desmerecer o rigor acadêmico e as preo-
cupações inerentes ao ofício das/os historiadoras/es.
Desta forma, buscando um debate amplo sobre os impasses
que as pesquisas na área dos estudos de gênero vinham enfrentando,
procurei inteirar-me de metodologias da História Pública e das pos-
sibilidades de uso de seus recursos para estabelecer uma comunicação
profícua com variados segmentos sociais para além da academia, para
além dos muros das universidades.

12 ALMEIDA, Juniele; ROVAI, Marta. História pública: entre as “políticas públicas” e os


“públicos da história”. IN: XXVII Simpósio Nacional de História. Conhecimento Histórico e Diálogo
social. ANPUH Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2013.
13 FONSECA, Thais. Mídias e divulgação do conhecimento histórico. Revista Aedos, n.11,
v.4, set.2012.

22
A partir das reflexões desenvolvidas por Foncesa e acreditando
na potencialidade que as novas mídias poderiam propiciar ao conheci-
mento histórico e sua divulgação, decidi procurar um veículo de divul-
gação científica, ou seja, que se dedicava à História Pública para debater
o momento pelo qual passavam as pesquisas em gênero, especialmente
no Brasil. Nesse caminho de busca procurei articular um espaço de am-
pla divulgação, mas que não se limitasse apenas a ideia de rede social
pessoal. Meu intuito foi de articular a ampla circulação ao debate acadê-
mico ao qual estava adaptada desde o início de minha formação e, por
essas questões, entrei em contato com o portal “Café História”.

CAFÉ HISTÓRIA: HISTÓRIA FEITA COM CLIQUES

O historiador Bruno Leal Pastor de Carvalho14 informa que o


site Café História surgiu em 18 de janeiro de 2008, a partir de inicia-
tiva pessoal dele. Tal historiador, atualmente professor da Universidade
de Brasília ( UNB), é também criador e editor do site Café História e
o denomina como uma “rede social para historiadores na internet”15.
Carvalho argumenta que esse projeto buscou articular sua dupla for-
mação, de um lado a história, e de outro, a comunicação. Tal empreitada
foi, portanto, uma demanda pessoal e que não contou com investimento
de terceiros ou patrocínio externo. Ainda segundo Carvalho existia no
início do século XXI uma lacuna na divulgação e popularização do saber
histórico no Brasil. Para ele, outras redes sociais, blogs, fóruns virtuais
ou mesmo grupos de e-mails que existiam no período já não davam
conta da especificidade da história e da necessidade de sua divulgação.
Ao explicar parte do processo tecnológico que sustenta o Café
História, Carvalho argumenta:

O Café História foi construído em uma plataforma nor-


te-americana chamada Ning, lançada em 2004 e desen-

14 CARVALHO, Bruno Leal Pastor. História Pública e redes sociais na internet: elementos
iniciais para um debate contemporâneo. Transversos: Revista de História. Rio de Janeiro, v. 07, n.
07, set. 2016.p 35-53.
15 Idem pg 46.

23
volvida pelo experiente Marc Andreessen, criador do
antigo navegador de Internet, Netscape Navegator (...) O
Ning permite que qualquer pessoa, independente de ter
conhecimentos de programação, crie a sua própria rede
social. Toda rede construída com a tecnologia Ning pos-
sui um pacote de ferramentas colaborativas típicas da
Web 2.0: fóruns, grupos, fotos, vídeos, eventos, chat, inbox,
mural e caixa de texto. Quem se cadastra torna-se auto-
maticamente membro da rede, adquire um perfil e obtém
permissão para publicar conteúdos e interagir com os de-
mais conteúdos publicados por outros usuários.16

É interessante destacar que Carvalho aponta uma sugestão de


trajeto para se iniciar um projeto em História Pública e divulgação do
conhecimento histórico e destaca os passos a serem seguidos por histo-
riadoras/es que desejem se aventurar. Pontua que, em primeiro lugar, é
necessário se ter muito claro a delimitação e elaboração de um projeto,
ao seja, os planos gerais que se deseja atingir. Posteriormente enumera a
formação de uma equipe e delimita que esta deve ser preferencialmen-
te interdisciplinar, formada não apenas por historiadores/as, arquivistas,
museólogos/as, sociólogos/as, antropólogos/as, mas também por jorna-
listas, comunicadores/as sociais, profissionais de tecnologia da informa-
ção, entre outros. Além disso, aponta para a necessidade de se adquirir
conhecimento técnico, pois considera necessário para maior visibilidade
do projeto em redes sociais que obrigatoriamente necessitam de novas
linguagens por parte do/a historiador/a. Ainda tratando de enumerar os
passos necessários para se iniciar na divulgação de conhecimento his-
tórico e História Pública, Carvalho aponta para a urgência de compre-
ensão de que a internet é um grande arquivo e, desta maneira, é preciso
se estabelecer uma constante pesquisa digital vinculada ao que deno-
mina de “nova arquivologia”, pois as recentes gerações de historiadores/
as estão habituadas a procurar e encontrar documentos de pesquisa na
internet, seu mais novo arquivo. E por fim, mas não menos importante,
aponta para a necessidade de projetos em História Pública possuírem a

16 Ibidem pg 47.

24
constante gestão de rede, ou seja, a capacidade da equipe interdisciplinar
em estabelecer uma mediação, uma moderação na página ou rede social
administrada. Tal atividade é fundamental para evitar ataques pessoais
ou outros tipos de agressões possíveis quando uma determinada pesqui-
sa/publicação não agrada determinado grupo social.
Com tais caminhos percorridos para a concretização do projeto de
rede social Café História, o “historiador-editor” analisa sua prórpria tra-
jetória e a necessidade de adaptar a tecnologia Ning para possibilitar um
diferencial em sua rede social Café História. Deste modo, argumenta que:

As redes sociais baseadas na plataforma Ning tendem a


não se diferenciar muito umas das outras, afinal de contas,
operam com um mesmo conjunto de ferramentas, modi-
ficando-se apenas no que diz respeito ao lugar destas na
página principal. O Café História, no entanto, tem uma
estrutura diferente e inovadora graças a uma improvisa-
ção técnica: as caixas de texto, pouco acionada em outras
redes do tipo, foram ali usadas como seções de conteúdo
autoral. Esse material é produzido pela administração da
rede e por historiadores (quase sempre professores uni-
versitários, mestrandos ou doutorandos) convidados na
qualidade de colaboradores. A propósito, a formação des-
ta equipe, que é interdisciplinar e flutuante, tem sido vital
para o controle de qualidade do Café História.17

Pelos números fornecidos por Bruno Leal Pastor de Carvalho


pode-se afirmar que o projeto de divulgação do conhecimento histórico
acertou em suas escolhas. Segundo Carvalho o Café História recebe, em
média, de 3 a 5 mil acessos únicos por dia. Possui visitantes não apenas do
Brasil, mas também de outros países da América Latina como Argentina,
Paraguai, México, Colômbia e Chile. Além disso, foi possivel verificar
acesso de países como Angola, Espanha, Portugal, Estados Unidos, entre
outros18.

17 CARVALHO, Bruno Leal Pastor. História Pública e redes sociais na internet: elementos
iniciais para um debate contemporâneo. Transversos: Revista de História. Rio de Janeiro, v. 07, n.
07, set. 2016 pg 47-48.
18 Dados fornecidos a partir de levantamento realizado por Bruno Leal Pastor Carneiro e

25
Sabendo do sucesso que Café História representava na comuni-
dade de historiadoras/es optei por iniciar um diálogo com o editor, pro-
fessor Bruno Leal Pastor Carvalho, e publicar um texto de divulgação
de conhecimento histórico sobre gênero, um texto que articulasse em
alguma medida os campos de História Pública e Estudos de Gênero.

GÊNERO NÃO É IDEOLOGIA: EXPLICANDO OS ESTUDOS DE


GÊNERO

Estabeleci contato com professor e editor Bruno Leal Pastor de


Carvalho via rede social Facebook. Desde o primeiro momento, acolheu
muito bem minha proposta de escrever um texto sobre estudos de gê-
nero naquele momento, ou seja, na mesma semana em que tomamos
conhecimento das ameaças contra pesquisadoras/es da Universidade
Federal da Bahia. Todavia, antes da entrega do texto, tivemos algumas
conversas e me foram repassadas ponderações e orientações.
Recorro aqui ao artefato da memória para, em alguma medi-
da, ressignificar aquelas conversas em fins de 2017, ora acadêmicas, ora
de amizade e preocupação. Nesse ponto, me amparo nas reflexões de
Beatriz Sarlo19quando faz significativas considerações sobre a memória
como um bem comum e a respeito do discurso narrativo que é emitido
a partir dela. Desta forma, apresento aqui a “narrativa possível” realizada
via memória sobre a conversa que resultou no texto publicado no Café
História. Como apontado por Sarlo, sabe-se que as narrativas, por mais
verdadeiras que se pretendam, são sempre permeadas de singularidades,
de lacunas e reconstruções feitas a partir da memória e acionadas de
diferentes maneiras, seja por meio de uma entrevista ou, como é o caso,
pela necessidade deliberada de rememorar para produzir uma reflexão
acadêmica sobre a conversa passada. Desta forma, e seguindo as ponde-
rações de Sarlo sobre a memória, não pretendo oferecer uma narrativa

publicado em CARVALHO, Bruno Leal Pastor. História Pública e redes sociais na internet:
elementos iniciais para um debate contemporâneo. Transversos: Revista de História. Rio de
Janeiro, v. 07, n. 07, set. 2016 pg 48.
19 SARLO, Beatriz. Tempo Passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia
das Letras, 1997.

26
com núcleo inquestionável de verdade, tendo em vista a complexidade
das teias das lembranças.
A primeira ponderação que o editor do Café História me fez foi:
“Você precisa ter clareza do impacto que seu texto pode causar, princi-
palmente num momento como esse”. E seguindo a isso, complementou:
“É possível que venham a sofrer algum tipo de ataque virtual. Você está
preparada?”. Essas questões me colocaram pela primeira vez diante da
imensidão que é a publicação de um texto num portal de divulgação
científica. Pela primeira vez em minha trajetória profissional iria pu-
blicar algo que não seria lido exclusivamente – ou predominantemen-
te- por meus pares na academia. Senti medo, não apenas pela possível
reprovação de alguns trechos de meu texto, que poderia acontecer, mas,
principalmente, pela possibilidade de ataques pessoais via rede social.
Nesse ponto, o editor me alertou para não responder comentários com
ataques e que tais comentários, se surgissem, seriam excluídos do Café
História. Também alertou que deveria ficar atenta em minhas redes so-
ciais para apagar qualquer tipo de ataque e não responde-los.
Outro ponto interessante foi a necessidade de uma adaptação me-
todológica de comunicação e de linguagem. Nas instruções passadas pelo
editor, havia uma limitação severa quanto ao número de páginas – no
máximo três ou quatro-, também havia limitação quanto ao uso de no-
tas e até quanto a quantidade de referências bibliográficas – máximo de
cinco. Era um modelo de texto sobre gênero que eu nunca havia escrito.
Como falar de Joan Scott, Judith Butler, Bell Hooks, Angela Davis e do
movimento feminista usando quatro páginas? E mais: como escrever isso
sendo uma historiadora sem cair na simplificação extrema? Senti vontade
de desistir.
Esse primeiro contato me colocou diante da complexidade da
História Pública e da imensa responsabilidade inerente a ideia de divul-
gação do conhecimento histórico. Acreditei que não seria capaz de fazer
pois precisaria de, no mínimo, cerca de quinze páginas para não “jogar
na lama” minha carreira de historiadora feminista e membro do GT
de Estudos de Gênero da Associação Nacional de História (ANPUH).
Contudo, incentivada pelo editor do Café História e tendo firme certe-

27
za que o momento exigia uma postura combativa de pesquisadoras da
área de gênero, optei por seguir em frente vencendo minhas limitações
e até preconceitos sobre os chamados “textos de divulgação”. Em 2017,
assim como em inúmeros outros momentos, a sociedade em geral pre-
cisava conhecer o que eram os “Estudos de Gênero” e não precisava de
mais um artigo teórico e denso, ao qual teriam até dificuldade de acesso.
Outra dificuldade foi estabelecer no texto um equilíbrio entre
linguagens. Era evidente que não se tratava de um texto exclusiva-
mente acadêmico, mas também não poderia ser um manifesto, ou um
texto panfletário. Esse equilíbrio entre o conhecimento universitário,
seus ritos e normas e a divulgação em larga escala de tal conhecimen-
to foram um jogo tenso no processo de redação do texto para o Café
História. Neste ponto, destaco a colaboração e revisão da pesquisadora
Ana Paula Tavares Teixeira20, que também atua no Café História e
me auxiliou muito para a manutenção deste equilíbrio linguístico. Sem
ela, a publicação não teria sido possível.
Como estratégia optou-se por usar “palavras-links”, ou seja, pa-
lavras e expressões que, ao se clicar nelas, remetiam a outros textos ou
reportagens. Já no início do texto publicado no Café História mencionei
sobre manifestações violentas contra os estudos de gênero e ao se clicar
em “manifestações violentas”, que estava destacado com outra cor de le-
tras, o/ leitor/a era direcionado/a para reportagens tratando do ocorrido
na Universidade Federal da Bahia. Maneira bastante eficaz de lidar com
interesses distintos dos/as leitores/as e desejos de aprofundamento nas
temáticas bastante variado.
Para contextualizar o movimento feminista e sua derivação –
não direta, mas relacionada-, à história das mulheres e dos estudos de
gênero foi utilizado do equilíbrio entre linguagens, mencionado acima.
Desta forma, o texto foi apresentado:

20 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da


Fundação Getúlio Vargas (PPHPBC-FGV / 2018), Bacharel em Comunicação Social com
habilitação em Jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ / 2004) e atriz
formada pela Casa das Artes das Laranjeiras (CAL / 2010). Subeditora da rede Café História.

28
No espaço universitário, os feminismos – no plural devido
à heterogeneidade do movimento – iniciaram uma traje-
tória em meados do século XX. Na História, por exem-
plo, a incorporação da categoria mulher está relacionada
a todo um movimento historiográfico de renovação no
campo de conhecimento. A história demográfica, a história
da família e a ideia de uma história “vista de baixo”, na
qual também deveriam ser contadas as vidas de pessoas
comuns, de operários e operárias, de camponeses e cam-
ponesas, entre outros, contribuíram significativamente
para a compreensão de que era necessário se escrever so-
bre Mulher – nesse primeiro momento ainda no singular,
ou seja, ainda pensada como uma categoria homogênea.
Entre o fim dos anos de 1970 e o início da década de
1980 as historiadoras feministas – principalmente ligadas
ao feminismo norte-americano – começaram a proble-
matizar as particularidades que existiam entre elas pró-
prias. A categoria Mulher já não dava conta de explicar
a multiplicidade de experiências e subjetividades. Joana
Maria Pedro argumenta que as mulheres negras, parti-
cularmente, questionaram o gesto excludente da escrita
da História das Mulheres, revelando as fraturas internas
não só da História, mas do próprio feminismo acadêmico
ao mostrar as armadilhas e ilusões da categoria Mulher.
Desde então, feministas como Angela Davis e Bell Hooks,
colocaram o dedo na ferida ao dizer que as mulheres
não viviam da mesma forma a experiência de ser mulher.
Outras variáveis precisavam ser levadas em consideração,
como classe, cor, escolaridade, dentre outros aspectos que
precisavam ser compreendidos.21

Todas as palavras grifadas na citação são “palavras-links”, que


remetem a outros textos ou páginas de internet com explicações e apro-
fundamento. Mesclando estratégias e procurando esse equilíbrio entre
conhecimento científico e divulgação em larga escala foi possível a reda-
ção e publicação do texto em poucos dias.

21 VÁZQUEZ, Georgiane Garabel Heil. Gênero não é ideologia: explicando os Estudos


de Gênero (Artigo) In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.
cafehistoria.com.br/explicando-estudos-de-genero/. Publicado em: 27 nov. 2017. Acesso: 10 de
abril de 2020.

29
A dinâmica dos acontecimentos era frenética e no meu enten-
der, o texto precisaria ser publicado já nos dias seguintes às notícias de
ameaças vindas da Bahia. Tendo em vista que o objetivo inicial dessa
experiência com História Pública era de estabelecer “uma ponte” entre
a universidade e a sociedade em geral, o texto deveria ser claro e didá-
tico, ou seja, explicar de maneira objetiva a que se dedicavam, de modo
geral, as pesquisas em gênero. Para apresentar Scott e Butler ao grande
público, o texto foi:

Scott aponta, de maneira muito interessante, para um dos


eixos mais polêmicos que os Estudos de Gênero enfren-
tam hoje no Brasil. Não se trata de negar as diferenças se-
xuais e corporais entre homens e mulheres, mas de com-
preendê-las não como naturais e determinadas, mas como
relações sociais e de poder, que produziram hierarquias e
dominação. Para Scott, gênero é a organização social das
diferenças sexuais. É um saber que estabelece significa-
dos para as diferenças corporais. (...) Para Judith Butler, a
ideia de performatividade de gênero compreende a noção
de que sexo e gênero são discursivamente criados e que,
ao se desnaturalizar o sexo, deve-se também desnaturali-
zar o gênero. Portanto, não se trata de negar a existência
de sexo ou de gênero, mas de historicizar tais diferen-
ças, procurando analisar as estratégias discursivas que as
consolidaram. Nesse ponto, a meu ver, encontra-se uma
das contribuições mais significativas da obra de Judith
Butler: dar visibilidade ao fato de que existem corpos que
“importam” – corpos enquadrados no sistema heteronor-
mativo – e corpos que “não importam” – o que a autora
chama de corpos abjetos. Esses, dentro da lógica binária,
podem ser vistos como “corpos desviantes”, culturalmen-
te inintelegíveis e que ameaçam as estruturas de poder.
Pessoas gays, lésbicas, transexuais e intersexuais acabam
por demarcar fronteiras que não deveriam ser cruzadas
dentro do sistema heteronormativo e, dentro desse siste-
ma excludente, seus corpos não são aceitos, ou melhor, a
existência dessas pessoas não é aceita. Tal exclusão acabou
por colocar em risco a vida dessas pessoas, gerando into-

30
lerância, mortes e inúmeras outras violências22 (grifos na
publicação original).

E, por fim, para ser um texto efetivamente explicativo direcio-


nado ao grande público, direcionei as considerações finais para formular
uma listagem simplificada de algumas das áreas temáticas dos Estudos de
Gênero.

Os Estudos de Gênero nunca tiveram como objetivo mo-


dificar a sexualidade de ninguém – até porque os pes-
quisadores e pesquisadoras da área não acreditam que a
orientação sexual ou a identidade de gênero das pessoas
sejam modificáveis como querem fazer crer seus detrato-
res. Nunca defenderam pedofilia ou incentivaram a eroti-
zação infantil. Nunca foram “ideologia”.(...) Pesquisas so-
bre sexualidades existem dentro dos Estudos de Gênero,
porém – e parece ser necessário repetir – não se trata de
conspirar para mudar a orientação sexual de ninguém.(...)
Também são temas dentro dos Estudos de Gênero: a ma-
ternidade, os sentimentos, a religiosidade, a assistência, a
participação política, os racismos, as interseccionalidades
e o próprio movimento feminista, isso só para citar algu-
mas poucas áreas. Não existe ideologia de gênero! E se os
Estudos de Gênero puderem impactar de forma trans-
formadora em nossa sociedade, será na construção de um
mundo mais justo e igualitário. Um mundo em que me-
ninas não sejam mortas por namorados. Um mundo sem
violência doméstica, sem exploração sexual. Um mundo
em que ninguém tenha medo da igualdade de direitos e
deveres23. ( grifo no original).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto foi publicado em 27 de novembro de 2017, ou seja, seis


dias após a vinculação pela imprensa dos acontecimentos na UFBA.

22 Idem.
23 Ibidem.

31
Conforme alertado por Bruno Leal Pastor de Carvalho, a re-
percussão foi ampla. Foram vários compartilhamentos em diferentes
redes sociais e grupos do aplicativo para celular whatsapp. Por conta
da diversidade de compartilhamentos não é possível ter a exatidão de
quantas pessoas tiveram acesso ao texto via Facebook e whatsapp, mas,
conforme informado pelo editor do site, o texto “Gênero não é ideolo-
gia: explicando os Estudos de Gênero” teve, até abril de 2020, 34.514
acessos apenas via Café História, com tempo médio de permanência
na página de 7 minutos e 5 segundos.
Também foi possível mapear as cidades que mais acessaram o
texto, sendo elas, por ordem: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,
Salvador e Brasília.
Além disso, o texto também foi republicado por diversos outros
sites, com a condição de manter a citação original do Café História,
chegando até mesmo a ser traduzido para o espanhol.
Concluo, portanto, que, para além das dificuldades e adaptações
necessárias para se pensar a História Pública e iniciar esse processo mais
amplo de divulgação do conhecimento histórico, é fundamental esse
“exercício” historiográfico. Repensar linguagens, metodologias, impacto
e suporte de divulgação se constituem tarefas fundamentais para maior
interação entre universidade e sociedade.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA. Juniele Rabêlo; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Orgs.). Introdução à História
Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
ALMEIDA, Juniele; ROVAI, Marta. História pública: entre as “políticas públicas” e os “públi-
cos da história”. IN: XXVII Simpósio Nacional de História. Conhecimento Histórico e Diálogo social.
ANPUH Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2013.
CARVALHO, Bruno Leal Pastor. História Pública e redes sociais na internet: elementos iniciais
para um debate contemporâneo. Transversos: Revista de História. Rio de Janeiro, v. 07, n. 07, set.
2016.
FAGUNDES, Bruno F. Lontra. O que é, como e por que história pública? Algumas conside-
rações sobre indefinições. IN: VII Congresso Internacional de História.1917-2017, Centenários
Universidade Estadual de Maringá, 2017.
FONSECA, Thais. Mídias e divulgação do conhecimento histórico. Revista Aedos, n.11, v.4,
set.2012.

32
PEDRO, Joana. Relações de Gênero como categoria transversal na historiografia contemporâ-
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2020.

33
HOMENS E MULHERES NA GUERRA DE
ESPADAS EM CRUZ DAS ALMAS – BA (1980-2018)24

Filipe Arnaldo Cezarinho25

RESUMO
O objetivo foi investigar os saberes e as práticas dos homens e mulheres, no campo das
relações de gênero, por meio da tradicional Guerra de Espadas em Cruz das Almas/
BA. Foram utilizadas, principalmente, fontes orais e digitais. A seleção dos (as) entre-
vistados (as) seguiu o princípio de longa experiência com a manifestação cultural e,
ao mesmo tempo, pelo interesse em acessar a pesquisa, indicando o caráter público da
escrita da História. As fontes digitais foram extraídas a partir do recurso Print Screen.
A linha de pensamento seguiu as reflexões feitas por Durval Muniz de Albuquerque
Júnior sobre o homem nordestino e a constituição dos corpos feminino e masculino.
O principal resultado indica que a Guerra de Espadas não apenas conforma corpos em
lugares esperados e impostos como, por outro lado, permite transgressões importantes
nas relações de gênero.
Palavras-chave: História; Guerra de Espadas; Relações de Gênero; Masculinidade;
História Pública.

ABSTRACT
The purpose was to inquire the knowledges and practices of the men and women on
relations gender field through the traditional Gerra de Espadas in Cruz das Almas,
Bahia. It was used oral and digital sources. The selection of the interlocutors followed
the principle of long time in experience with the cultural manifestation and, on the
same time, for interesting to access researches, indicating the public character of History

24 A presente pesquisa é parte das investigações realizadas no mestrado em História entre os


anos de 2016 a 2018, pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). O texto aqui
apresentado foi extraído de um dos capítulos da dissertação e reelaborado. Nesse sentido, grande
parte da documentação arrolada – oral e digital – origina-se daquela pesquisa. Naquela oportunidade,
o objetivo foi o de analisar o processo de criminalização da Guerra de Espadas. Para consultar a
dissertação completa, ver: CEZARINHO, Filipe Arnaldo. A Guerra de Espadas em Cruz das Almas
(BA) – (1980-2016). 2018. 195 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação
em História, Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO, Irati, 2018.
25 Doutorando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

34
writings. The sources were extracted from the print screen resource. The approach
followed the author Durval Muniz de Albuquerque junior on the northearsten man
and the man and women bodies constitution. The main result indicates that Guerra de
Espadas doesn’t conform the bodies in expected places and obligated, but on the other
hand, it allows important transgressions in the gender relations.
Keywords: History; Guerra de Espadas; Gender Relations; Masculinity; Public
History.

APONTAMENTOS INICIAIS

Na cidade de Cruz das Almas – BA, a Guerra de Espadas sem-


pre foi vista por seus moradores e moradoras como maior expressão
cultural. Homens e mulheres saem pelas ruas do município para confra-
ternizar com suas espadas de fogo em mãos durante os dias 23 e 24 de
junho, período de comemoração dos festejos de São João. Normalmente
em grupos, os(as) espadeiros(as) adicionam o forró e o licor, estilo mu-
sical e bebida alcóolica tradicionais, fomentando a coragem e adrenalina
no momento da festa. A dinâmica é simples: em posições opostas, os
grupos jogam suas espadas de fogo em direção aos outros e a guerra tem
início. Antes de ser proibida, em 2011, a Guerra de Espadas, no dia 24
de junho, não tinha hora de começar e muito menos de acabar. Mesmo
com o advento da criminalização, vê-se pelas ruas mais afastadas do
centro, pessoas de todas as idades resistindo aos imperativos da lei no
intuito de manterem viva sua tradição e principal pilar identitário, a
Guerra de Espadas26.
Contudo, para que toda essa movimentação pelas vias da urbe
se efetive, são necessários meses de preparação e disciplinada atuação

26 Para maiores conhecimentos sobre a Guerra de Espadas, ver os trabalhos de: MELO, Luiz
Fernando Basto de. Espadas de São João, da tradição à proibição. A legalidade da manifestação
cultural na cidade de Cruz das Almas-BA. 2012. 62 f. Monografia (Direito) – Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, Vitória da Conquista, 2012; OLIVEIRA, Adriana da
Silva. Entre cruz e as espadas: práticas culturais e identidades no São João em Cruz das Almas
– BA (1950-1990). 2012. 177 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual
da Bahia – UNEB., Santo Antônio de Jesus, 2012; CARVALHO, Moacir. Brincando com
fogo: origem e transformação da Guerra de Espadas em Cruz das Almas: In: ENECULT –
Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. 5., 2009. Salvador. Anais... Salvador, 2009.
n/p. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/enecult2009/19327.pdf. Acesso em: 10 mar. 2020.

35
de espadeiros e espadeiras durante o processo de produção das espadas.
Descrever minuciosamente todo o percurso produtivo das espadas se-
ria por demasiado cansativo27. Todavia, podemos, de modo elucidativo,
indicar os principais passos para a sua elaboração. Para começo de con-
versa, todo o empreendimento pode perdurar por cerca de três meses.
As etapas são realizadas separadamente. Portanto, a apresentação abaixo
serve apenas como modelo para melhor entendimento da produção das
espadas:

• Extração do bambu, cozimento e secagem sob o sol;


• Extração do barro (argila), secagem sob o sol e pilagem;
• Enceramento do barbante (sisal) com cera feita de breu, pa-
rafina e óleo de cozinha;
• Enrolar o bambu com o barbante;
• Preparação da pólvora a partir dos seguintes materiais: sali-
tre (nitrato de potássio), enxofre e carvão de umbaúba;
• Pilagem da pólvora;
• Enchimento do bambu com barro, pólvora e barro, sucessiva-
mente, utilizando um macete (martelo de madeira) de apro-
ximadamente 2kg e um socador (cilindro de ferro). Nessa
fase, é comum que sejam atribuídas cerca de 150 macetadas
na espada para melhor fixação do material no interior do
bambu;
• Feitura da broca (perfuração na parte superior da espada)
com um pedaço de ferro similar a chave de fenda até al-
cançar a pólvora localizada no centro do bambu. (Momento
importante, pois exige perspicácia, sendo um dos elementos
definidores de uma boa ou ruim espada);
• Finalização do processo com a utilização de papel laminado
nas extremidades da espada.

27 É possível encontrar todo o processo de produção das espadas, pormenorizado, em:


PEIXOTO, Rafael Caldas Barros. A Guerra de Espadas em Cruz das Almas: cultura, turistificação
e estigmatização. 2012. 134 f. Dissertação (Ciências Sociais) – Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia – UFRB, Cachoeira, 2012.

36
As espadas, normalmente, são colocadas em dúzias para que
ganhem um aspecto estético mais apropriado e, ao mesmo tempo, se-
rem comercializadas. Cada espada pode pesar, aproximadamente, 500g
e possui 30cm de comprimento. Obviamente que muitos(as) espadei-
ros(as) reservam parte da produção para o próprio proveito, garantindo
a diversão e, mais importante, a permanência da Guerra de Espadas. A
imagem abaixo apresenta uma espada finalizada e tocada28.

Figura 1: Espadas prontas e tocadas.


Fonte 1: Disponível em: https://almanaquecruzalmense.wordpress.com/2015/09/19/
as-espadas-de-fogo-do-sao-joao-de-cruz-das-almas-e-a-sua-famosa-guerra-de-
espadas-historia-tradicao-e-polemica/. Acesso em: 11 mar. 2020.

28 A palavra “tocar”, no contexto da Guerra de Espadas, refere-se ao ato de acender e lançar


a espada. Nesse sentido, essa ação de tocar espadas está muito próximo do ato de tocar um
instrumento musical, pois as espadas liberam um tipo de som grave e muito alto que são
definidos por muitos(as) espadeiros(as) enquanto música para os ouvidos. O termo também
indica outra condição importante. Os(as) mantenedores(as) da tradição usam a palavra “tocar”,
enquanto pessoas alheias à tradição manejam, frequentemente, o termo “queimar”, como se as
espadas fossem iguais aos outros fogos de artifícios.

37
É importante salientar que há divisões das tarefas no processo
de produção das espadas. Adiantamos que essas alocações de homens
e mulheres em fases distintas da produção caracterizam os imperativos
sociais estabelecidos historicamente, socialmente e culturalmente sobre
seus corpos. Por exemplo, não temos registros de que alguma mulher
tenha realizado o enchimento das espadas com o socador e a barra de
ferro, estando esse momento reservado exclusivamente aos homens. Por
outro lado, é muito comum ver mulheres atuando no enceramento do
cordão que enrola as espadas e nos instantes finais das espadas, com o
colocar do papel laminado, por exemplo. Portanto, o objetivo proposto é
investigar os saberes e as práticas das mulheres e dos homens, pela pers-
pectiva das relações de gênero, a partir da Guerra de Espadas na cidade
de Cruz das Almas – BA.

APONTAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Se mulheres e homens são designados(as) ao exercício de ativi-


dades distintas na Guerra de Espadas, isso acontece por razão de que
seus corpos, enquanto resultado de complexas relações de poder na so-
ciedade, estão posicionados a partir de hierarquias. Os corpos, conforme
dito por Durval Muniz de Albuquerque Júnior, produzidos pelas mãos
humanas, são obrigados a estabelecerem performances. Ou seja, há pres-
crito na sociedade quais sãos as práticas a serem realizadas por cada
um(a). Nesse sentido, a carne, que se transformará em corpo, abre-se
como recipiente que acumulará múltiplos saberes. Tais saberes começam
a se cristalizar e, dessa maneira, são tidos como frutos da natureza, ele-
mentos de uma essência do ser29.
Ora, a Guerra de Espadas é uma tradição centenária que remete,
automaticamente, ao nível da estrutura social e cultural. Os saberes her-
dados e mantidos tendem a estratificar as mulheres em certos espaços e
os homens em outros. As demandas dessas estruturas acabam sendo li-

29 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. (MAIS)CULINOS: outras possibilidades


de corpo e gênero para as carnes sexuadas pela presença de um pênis. Outros Tempos, v. 17, n. 29,
p. 260-281, 2020.

38
das, inconscientemente, como biológicas ou, na pior das hipóteses, como
determinadas por seres sobrenaturais e por isso devem permanecer as-
sim. Com isso, “as categorias culturais são convenções, são acordos, são
consensos que, no entanto, são, muitas vezes, naturalizados, dado o grau
de ancestralidade, de antiguidade, de tradicionalidade que possuem”30.
Seria, então, a Guerra de Espadas uma prática tradicional que mera-
mente reproduziria as hierarquias e saberes sobre os corpos de mulheres
e homens?
Na tentativa de responder o problema suscitado foi necessário
buscar fontes que clareassem nossos caminhos. Os principais documen-
tos elegidos para este trabalho foram: os orais e digitais. Traçaremos
breves esclarecimentos sobre cada um deles.
O critério de seleção das fontes orais partiu, primeiramente, pela
experiência desses(as) espadeiros(as) com o processo de produção e com
a dinâmica geral da Guerra de Espadas. O segundo motivo priorizou o
gênero. Selecionamos uma espadeira e um espadeiro para compor o nosso
trabalho. O terceiro, e último, relaciona-se com o caráter público da pro-
dução do conhecimento histórico. Especificamente a espadeira Janaina,
deixou claro o seu interesse em obter retorno da produção histórica cons-
truída a partir de seu relato oral. Ou seja, essa dinâmica tem remodelado
o fazer histórico, pois, agora, o público tem buscado acessar os resultados
de nossas pesquisas.
Se com as fontes orais esse movimento tem sido forte, as fontes
digitais surgem como determinantes nesse processo de aproximação do
público com o(a) historiador(a). Jurandir Malerba viu nas redes sociais
digitais outra possibilidade de acessar a produção dos(as) profissionais
em História sem que necessariamente recorrer às bibliotecas. Em suas
palavras, “as plataformas digitais subverteram as bases da produção e cir-
culação das narrativas sobre o passado”31. Todavia, as mídias digitais vêm
abrindo disputas de autoridade sobre a produção da narrativa históri-
ca, sendo que o público leigo, não apenas os(as) historiadores(as), pode

30 Ibid., p. 262.
31 MALERBA, Jurandir. Os historiadores e seus discursos públicos: desafios ao conhecimento
histórico na era digital. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 37, n. 74, p. 135-154, 2017. p. 142.

39
dispor de conteúdos variados e gozar de visibilidade online: “While it
may facilitate more open, democratic history making, the internet si-
multaneously raises questions about gatekeeping, authority and who has
the right to speak for the past”32. Dessa maneira, novas problemáticas
surgem na era digital com relação à escrita da História e a autoridade
do(a) historiador(a).
Cabe frisar que os diálogos com os (as) colaboradores (as) não
se deram apenas por meio da metodologia da história oral. A utilização
constante de aplicativos em celulares – a exemplo do WhatsApp – facili-
tou a troca de mensagens de texto, imagens, arquivos e muito mais. Essa
relação não apenas contribuiu para a produção desta pesquisa como,
também, provocou certa pressão para conhecer o seu resultado.
As fontes digitais foram capturadas a partir da ferramenta Print
Screen. Com o advento da plataforma Facebook muitos(as) espadeiros(as)
têm deixado registros sobre a tradição, além da formação de grupos
em defesa da Guerra de Espadas que disseminam conteúdos pela rede.
Utilizamos para análise três imagens. Duas delas foram extraídas do
grupo “Guerra de Espadas”. A outra imagem foi retirada de uma pági-
na pessoal, com a devida permissão da proprietária. Mesmo assim, por
questões éticas, resolvemos ocultar a sua identidade, assim como nos
relatos orais. Os nomes dos(as) colaboradores(as) são fictícios. No caso
de Janaina, ela mesma que desejou por esse nome.
Em termos concretos, a articulação dessas fontes permitiu aces-
sar os discursos e as práticas desses sujeitos inseridos na Guerra de
Espadas. Concomitantemente, são os próprios espadeiros e espadeiras
que falam por esses documentos e que participam ativamente da nossa
operação historiográfica.

AS ESPADAS FÁLICAS E AS MULHERES ESPADEIRAS

São as práticas discursivas que constituem homens e mulhe-


res. Andamos nessa linha de pensamento. Segundo Durval Muniz

32 FOSTER, Meg. Online and plugged in? Public History and historians in the digital age.
Public History Review, v. 21, p. 1-19, 2014. p. 2.

40
de Albuquerque Júnior, o nordestino, desde sua invenção no começo
do século XX, seria aquele homem viril, forte, valente e corajoso: “O
nordestino é definido como um homem que se situa na contramão do
mundo moderno, que rejeita suas superficialidades, sua vida delicada,
artificial, histérica”33. Essa constituição do homem nordestino é vista
por Albuquerque Júnior como resistência às iniciativas feminilizantes
em voga. Interessa-nos, em seu texto, o seguinte: “O nordestino será
inventado como o macho por excelência, a encarnação do falo [...]”34.
Portanto, o simbolismo do falo faz-se fundamental para que entenda-
mos de que maneira os corpos masculinos vão sendo produzidos e quais
demandas são exigidas dos mesmos.
Júnior, espadeiro, atualmente com 38 anos e sem emprego for-
mal, faz “bicos” de eletricista na cidade de Cruz das Almas. Nos meses
próximos do São João, ele conseguia desviar-se de suas funções infor-
mais enquanto eletricista para adentrar no eixo da fabricação das espa-
das, trabalho também informal, mas que lhe garantia considerável renda
nesse período com a venda das mesmas. Com a proibição da Guerra
de Espadas em 2011, Júnior tem buscado novas facetas para sobreviver.
Nos dias atuais, Júnior passou a vender churrasquinhos em uma rua de
seu bairro acompanhado por sua esposa.
Ao rememorar sua infância, ele abre nossos olhares para ques-
tões relacionadas à constituição do homem espadeiro. Como de costume
na cidade, Júnior aprendeu desde cedo o ofício das espadas:

Porque aqui na cidade a gente, geralmente, começa com


o tal do besourinho, né? A gente começa a fabricar be-
sourinho de cano35 com dez, onze anos e daí que a gente
vai desenvolvendo, vai crescendo e com quinze, dezesseis
anos, já começa a produzir espadas36.

33 ALBUQUERQUE Júnior, Durval Muniz. Nordestino: invenção do “falo” – uma história do


gênero masculino (1920-1940). São Paulo: Intermeios, 2013. p. 150.
34 Ibid., p. 151.
35 São pequenas espadas feitas com canos ou tubos de PVC com 5 a 7cm de comprimento,
aproximadamente. A velocidade e risco são aumentados com esses objetos. Normalmente,
quando pequenos acidentes ocorrem com esse tipo de produto, aparecem cortes no corpo
provocados pelo cano plástico.
36 Júnior, entrevista, 5 mar. 2017.

41
Os famosos “besourinhos de cano”, como muito bem salientou
Júnior, fazem sucesso por entre aqueles jovens rapazes que querem, algum
dia, se tornar espadeiros. Obviamente que o desenvolver desses besouros
exige muito menos força e precisão do que as espadas de fogo feitas de
bambu. Porém, aqui está o primeiro indicador de formação da masculini-
dade entre os jovens na cidade de Cruz das Almas. Saber fazer besouros
de cano é dar um passo à frente em relação aos que não desenvolveram
essa habilidade. É, também, desejosamente, aproximar-se dos homens.
Apropriando-se das ideias de Beatriz Nader, esta caracterizou
a masculinidade como o principal pilar de classificação do ser homem.
Esse conceito é constituído por uma imensidão de saberes que acabam
alicerçando as existências masculinas em sociedade, além de sua postura
de dominação sobre outros homens e mulheres. Por essa linha, a mas-
culinidade é aprendida e ensinada ao longo da vida: “A palavra ‘mas-
culinidade’ é um texto organizado com diferentes conceitos, esboçado
e caracterizado por diferentes saberes”37. Portanto, um dos espaços de
produção dos homens, no município de Cruz das Almas, localiza-se na
aprendizagem da fabricação das espadas.
Júnior, ainda, indica que esse desabrochar dos iniciantes espadei-
ros não é feito solitariamente. Normalmente, estão sendo orientados por
pessoas que lhes são muito próximas:

Aqui, geralmente, a gente aprende olhando os outros faze-


rem, né? Agora, tem uns que vai explicando, vai ensinando,
é por isso que, às vezes, tem menino com treze anos que
já faz espadas. Que alguém já ensina a eles, e eles já vão
desenvolvendo, desenvolvendo e eles mesmos fazem as es-
padas deles38.

Coexistem dois níveis de aprendizagem das espadas. O primei-


ro, parte do princípio de observação da arte de confecção. O contato
cotidiano com os produtores mais experientes permite que os inician-

37 NADER, Maria Beatriz. A condição masculina na sociedade. Dimensões, v. 14, p. 461-480,


2002. p. 473.
38 Júnior, entrevista, 5 mar. 2017.

42
tes aprendam o feitio da coisa. Já o segundo, destaca Júnior, revela que
muitos aprendem sob a orientação ou tutela de alguém. Esse alguém,
provavelmente, possui mais tempo na matéria das espadas. A fala do es-
padeiro remete aos saberes que são passados aos homens dentro de uma
longa duração. Tais saberes refletem, ao mesmo tempo, códigos sociais
de pertenças masculinas, ou seja, a disciplina, a força e a coragem são
constantemente alimentadas para a sua formação.
Eles, quando ainda crianças e adolescentes, entram na dinâmi-
ca como observadores e, depois de serem ensinados, passam a produ-
zir pequenas “espadinhas”39 ou “besouros de cano”, como disse Júnior.
Confeccionar espadinhas ou besouros exige menor quantidade de força
quando comparada com a que precisariam dispor para o fabrico da tra-
dicional espada. Ora, percebemos que produzir e tocar espadas é adqui-
rir características viris que, por conseguinte, dará a condição de homem.
São os espadeiros mais experientes que normalmente abrem os
caminhos para os ritos de passagem que elevam os jovens ao ser homem.
Chamados, os jovens são levados até o centro da rua, acompanhados por
seus pais ou parentes, que ajudam no manejo da espada até o seu lança-
mento (mulheres também realizam essa função). O familiar que possibi-
litou a ocasião não será esquecido pelo novo espadeiro. Porém, se tornar
homem na Guerra de Espadas é alcançar etapas. Entre os pares mas-
culinos, o principal momento que indica a constituição de um homem/
espadeiro está no ato de bater as espadas, ou seja, a fase em que o bambu
receberá em seu interior o barro e a pólvora. Esse é o divisor de águas,
instante de separação dos homens mais fortes. A força, a agilidade e a
resistência serão testadas a partir de um macete de mais ou menos 2kg
alçado em repetições de, aproximadamente, 150 vezes até que uma única
espada esteja pronta. Isso se repetirá por dúzias e mais dúzias de espadas.
Os saberes que constituem a masculinidade são facilmente
identificáveis na Guerra de Espadas. Rafael Peixoto demonstra esse
interessante aspecto em seu trabalho: “O exibicionismo dos espadeiros
representa uma parte extrema da busca pela masculinidade. Ou seja,

39 Parecem com as espadas, porém com diâmetros e comprimentos reduzidos.

43
participar do festejo requer coragem, ultrapassar as barreiras impos-
tas pelos fogos, intensificando a adrenalina e percorrendo mais perigo
[...]”40. Alguns termos apresentados por esse autor codificam os saberes
da masculinidade, a saber: coragem, adrenalina e perigo. Queimar-se
será, obviamente, mais um “ingrediente” nessa construção masculina na
Guerra de Espadas.
Ao pesquisar a Guerra de Espadas em Senhor do Bonfim – BA,
cidade em que essa tradição marca forte presença chegando a disputar
a hegemonia de maior festejo com Cruz das Almas, Rodrigo Gomes
Wanderley também enxergou sinais de saberes que remetem à mascu-
linidade. Em sua dissertação de mestrado, o autor anunciava que “ser
guerreiro significa ter atributos como coragem, ser intrépido, e respeitar
os medos”41. E mais adiante diz: “Força, honra, coragem, são atribu-
tos associados à masculinidade sertaneja hegemônica, reproduzidos em
eventos como a Guerra de Espadas [...]”42.
Similitudes com as afirmações anteriores podem ser vistas por
meio da fala da espadeira Janaina que vê na espada uma representação
do falo masculino. Primeiramente, Janaina, 46 anos e pedagoga, possui
grande afinidade com a prática cultural da Guerra de Espadas. Nascida
em Cruz das Almas, ela teve a oportunidade, desde cedo, de fortalecer
seus laços identitários com o município a partir da tradição: “Quando
você fala cultura de Cruz das Almas, a primeira coisa que vem na cabeça
é isso, é o São João. E o São João, as espadas”.43 Isto é, Janaina é, como
demonstra, uma mulher que cresceu entre espadeiros.
Retomando a discussão anterior, a espadeira fez o seguinte re-
lato: “Às vezes, eu não sei se é a palavra certa, é a analogia da espada
com o órgão sexual masculino”44. Começamos a perceber as profícuas
relações das espadas com a produção do sujeito homem, mas, também,

40 PEIXOTO, op. cit., p. 91.


41 WANDERLEY, Rodrigo Gomes. Guerreiro do fogo: uma etnografia da “morte anunciada”.
2016. 136 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de Brasília - UNB,
Brasília, 2016. p. 45.
42 Ibid., 2016, p. 45.
43 Janaina, entrevista, 16 fev. 2018.
44 Janaina, entrevista, 16 fev. 2018.

44
da própria mulher. Janaina será uma delas, como veremos. A imagem
abaixo esclarece bastante as relações simbólicas percebidas por ela. A
expressão corporal do espadeiro remete, imediatamente, aos impulsos
sexuais masculinos e ao seu desejo permanente pela potência e ereção.

Figura 2: Print Screen retirado da plataforma Facebook.


Fonte 2: Disponível em: <https://www.facebook.com/pg/GuerraDeEspadasCruzDa-
sAlmas.R/photos/?ref=page_internal>. Acesso em: 28 abr. 2018.

A própria pujança da espada servirá como analogia ao falo


masculino. Ela representa o pênis em estado de ereção e ejaculação.
Encontramos aqui mais um artifício para a produção de espadas com
poder de fogo maior. Espadas grossas e fortes revelam entre os sujei-
tos a vontade masculina pela virilidade sexual, representando suas mas-
culinidades. Essas performances são evidentes nos dias de queima das
espadas. Não é à toa que uma espada fraca, conhecida como “mijona”,
colocará o espadeiro em condições depreciativas.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior, em texto publicado no
ano de 1999, analisava os escritos do cordelista Leandro Simões da
Costa sobre o assassinato de uma mulher por seu namorado. O conte-
údo indicava o modelo de comportamento para as mulheres, isto é, de
obediência aos pais, para que não fossem violentadas por outros homens.
Ao mesmo tempo, a narrativa de Albuquerque Júnior aludia para outra

45
dimensão: a dimensão da violência que a virilidade masculina poderia
projetar. As primeiras indicações do autor foram as seguintes:

A violência é neste discurso um componente da sociabi-


lidade no Nordeste, uma característica da própria forma
de ser do nordestino e, mais acentuadamente, um dos
elementos que comporiam os atributos da masculinida-
de nesta região. Ser “cabra macho” requer ser destemido,
forte, valente, corajoso. Nesta sociedade, o frouxo não se
mete, não há lugar para homens fracos e covardes45.

Ao continuar analisando as relações de gênero a partir da lite-


ratura de Cordel, Albuquerque Júnior enfatizava e assemelhava o dese-
jo masculino pela dominação com os elementos da natureza, assim, “a
imagética do desejo está muito ligada, aí, à própria imagética do fogo,
da terra, dos elementos primordiais. O desejo masculino, de fecundar, de
penetrar, de conquistar, de vencer, de subjugar, de dominar, parece ser o
princípio ordenador do próprio social”46.
Ora, o aumento da potência das espadas pode corroborar, obvia-
mente, com maiores chances de danos proporcionados pelas mesmas.
Adentramos na concepção da violência, pensando em suas modulações,
enquanto instrumento de produção de emergentes masculinidades. Ao
racionalizá-la, falamos da violência, o historiador ou a historiadora pode
descobrir sentidos e significados importantes, buscando interpretações
no campo das convenções sociais e culturais. Portanto, ser espadeiro é de-
safiar o medo. Ser espadeiro é demonstrar firmeza. Ser espadeiro é man-
ter o “pênis em chamas”! Os enunciados constituem sujeitos homens e a
violência está integralmente vinculada aos ritos dessa constituição, sen-
do ela simbólica ou física, como salientou Rodrigo Wanderley: “Alguns
guerreiros gostam de contabilizar as queimaduras referenciando mesmo
o ano em que cada uma delas ocorreu. Esperam que as queimaduras lhes
dêem [sic] status de guerreiros”47.

45 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. “Quem é frouxo não se mete”: violência
e a masculinidade como elementos constitutivos da imagem do nordestino. Proj. História, São
Paulo, (19), p. 173-188, nov. 1999. p. 175.
46 Ibid., 1999, p. 185.
47 WANDERLEY, op. cit., p. 69.

46
Mas, e às mulheres? A imagem abaixo nos oferece alguns indicativos:

Figura 3: Print Screen da página pessoal na plataforma Facebook48.


Fonte 3: Registro retirado do arquivo do pesquisador.

Novamente percebemos a riqueza que esses registros deixados


em contextos digitais trazem para o (a) pesquisador (a). Deixem-nos
começar as análises da imagem partindo dos elementos que aparente-
mente não possuem importância, porém, em nossa concepção, são escla-
recedores. A postagem da espadeira, que remete a uma lembrança, per-
mite acessar o índice de aceitação que tem o seu texto a partir da quan-
tidade de curtidas (uma das principais funções existentes na plataforma
Facebook) que chega a 116. São pessoas que concordam e legitimam a
sua fala e que podem, considerando a margem de erro, compartilhar
dos mesmos sentimentos e emoções como os que fulgem na postagem.
Outro detalhe fundamental é que a imagem foi postada exatamente no

48 [No original] “Por mais momentos como estes, sem medo e sem culpa, onde eu deixo de lado
toda a vaidade cansaço... Pessoas me perguntam, você não tem medo? Jamais, sou cruzalmense
amo minha terra e nossa tradição, cresci ouvindo o socador na fabricação das espadas, com
aquele frio na barriga desejando que o dia do casamento do CEAT, Toin dia 13, 23 e 24 chegasse,
costumo dizer que no lugar de sangue tem pólvora, rsrsrs... Eu amo isso, uma adrenalina sem
igual, saio cedo e só saio quando vejo a última faísca... Me desculpem as autoridades e respeito
quem não gosta, mas eu voto sim pela liberação da nossa tradição”.

47
mês de junho, próximo do momento ápice dos festejos juninos. Podemos
afirmar que a autora do registro estava completamente inserida no con-
texto de testes das espadas.
Ao analisarmos a fonte, percebemos que a espadeira se envolve
completamente na Guerra de Espadas. Essa seria aquela mulher co-
nhecida como “porreta” e “arretada”. Sua calça marcada pela vontade
descontrolada das espadas já demonstra que ela possui atributos de co-
ragem e de valentia. Ora, nota-se o distanciamento dos padrões sociais
estabelecidos às mulheres quando a mesma diz não ter medo e que mui-
to menos se importa com a vaidade quando está inserida no ambiente
das espadas. Chega a dizer que no lugar de “sangue tem pólvora”, o que
realmente predomina na cidade quando as espadas entram em ação. É
o típico cheiro do enxofre tornando a cidade um “verdadeiro inferno”.
A espadeira, na imagem, afirma que cresceu “ouvindo o socador
na fabricação das espadas, com aquele frio na barriga” o que acaba guian-
do nossa reflexão para um ponto até aqui pouco discutido. Conforme
demonstramos, os espadeiros, ainda quando jovens, não apenas ouvem o
som do “macete” em atrito com o “socador” fazendo o chão vibrar e dis-
seminar, por ondas sonoras, os efeitos de seus impactantes golpes. Eles
participam como novatos do processo de maneira ativa. Todos aprende-
ram desde cedo o ofício. No caso presente, a espadeira não participa de
todo processo de produção. São nas etapas menos dispendiosas que as
mãos femininas aparecem, principalmente no acabamento das espadas.
Significa dizer que os saberes e práticas sociais designados aos corpos
femininos e masculinos também são perceptíveis na tradicional Guerra
de Espadas em Cruz das Almas.
Achamos vestígios da constituição das mulheres e dos homens,
além das distribuições de suas funções na fabricação das espadas, na fala
de Janaina. Segundo ela, existem espaços precisamente delimitados de
atuação de espadeiros e espadeiras. Aos homens são designados os tra-
balhos que exigem maior emprego da força física e energia. As mulheres
ficam com o embelezamento das espadas e contribuem, principalmente,
nos momentos finais da feitura. Conforme Janaina:

48
Então, a parte de buscar o barro é muito pesada. Eram
os homens que iam. Eu nunca fui, por exemplo, buscar
barro. A parte de serrar, que hoje tem máquina, mas na
época não tinha, de serrar o bambu. A parte de cozinhar
o bambu, a parte de pilar a pólvora eram, geralmente, os
homens. A parte de bater o barro das espadas, a parte de
estruturar todo o bambu para receber, eram dos homens.
Agora a mulher, ela podia escovar, eu já escovei. A mulher
podia ajudar a encerar o cordão que envolve a espada, que
é um trabalho leve. A gente ficava na frente, eu e minha
cunhada X49, pegava e botava de uma árvore à outra aque-
le cordão para ir encerando e ficava tomando o licor, pro-
vando os licores para ir encerando aquele que depois ia
ser enrolado na espada que eram os homens que faziam50.

Os corpos femininos e masculinos concentram seus afazeres em


determinados estados e estágios de produção das espadas, como afir-
mou Janaina. Toda essa separação, engendrada culturalmente, mas que
ganha tons naturais, tende a reafirmar o caráter dócil das mulheres. Elas
são, dentro dessas convenções, “naturalmente” destituídas de força físi-
ca, cabendo-lhes apenas os trabalhos sensíveis e detalhados. Para não
correr os riscos de sermos interpretados equivocadamente, toda essa
montagem vista na confecção das espadas é uma construção cultural e
histórica, obviamente. Fruto de forças sociais e de instituições das mais
diversas, os corpos são circunscritos em lugares específicos no cerne so-
cial. Aos corpos das mulheres e homens são direcionadas funções e isso
aparece de forma tão impregnada que, em muitos casos, esses atores e
atrizes não se dão conta:

E aí, depois, quando finalizava, tinha o corte do papel


laminado, colar o papel e ir arrumando nas dúzias pelo
diâmetro, né? Porque era assim, arrumada por dúzia, pa-
recendo o miolo de uma flor. A gente sempre arrumava
parecendo um miolo de uma flor, né? E aí a gente arru-
mava por diâmetro, ia prendendo e colocando nos lugares.
Então, essa parte de colar o papel, de escolher as cores, da

49 Não citamos o nome da espadeira por questões éticas.


50 Janaina, entrevista, 16 fev. 2018.

49
forma de cortar. Colocou, amassou e ficou feio, a gente
trocava e colocava de novo. Mas era todo mundo traba-
lhando junto, né? Todo mundo trabalhando no mesmo
espaço, ao mesmo tempo51.

O fato de homens e mulheres trabalharem num mesmo espaço


da casa não suprime a divisão dos gêneros. Ao contrário, essas divisões se
constroem ao longo de toda a vida e são tidas como normais. É por isso
que a sua afirmação de que todos e todas faziam espadas em um mesmo
lugar parece distorcer os códigos e construções históricas das divisões dos
trabalhos. Observa-se que, na própria finalização das espadas, quando as
mulheres e crianças assumem o protagonismo para a colocação do papel
laminado, a linguagem conduz para a apreciação da natureza, “uma flor”.
A escolha “das cores” dos papéis que serão colocados nos bocais das espa-
das indica cuidado com a estética da espada.
No entanto, a Guerra de Espadas se abre às mulheres. Muitas
saem às ruas com amigos (as), companheiros (as) e familiares em busca
de adrenalina. A sensação de liberdade, assim como para o homem, exis-
te para a mulher. Não apenas isso. É, assim como no mundo masculino,
o desabrochar da mulher que deixa para trás a mocidade. Janaina é um
exemplo expressivo nesse sentido:

A primeira vez que... [latidos do cachorro]. Eu lembro


que meu irmão já era nascido, isso foi em 1985, eu já ti-
nha dez anos, onze anos e a gente tem a cultura de fazer
as espadas por geração, por tamanho, então, já tinham os
coriscos, que eram para os meninos pequenos. Tinham
as espadinhas para os maiores até chegar na espada. Era
um estágio. Então, essa época eu já tocava espadinhas e
aí meu pai [padrasto] tocava e fazia. Depois que se ma-
chucou algumas vezes ele parou de tocar, mas não deixou
de gostar. E aí ele pegou uma espada maior e eu disse
eu queria tocar. Ele disse: “Tem certeza? ”. Sim! E aí eu
toquei aquela espada. Era a sensação de que eu, agora, re-
almente fazia parte daquilo, de que eu era como um deles,
de que eu era também corajosa, de como era bonito ver
aquilo à noite, de que eu também estava amadurecendo.

51 Janaina, entrevista, 16 fev. 2018.

50
Tinha a ver com esse rito de passagem que eu estava tam-
bém deixando de ser criança para ser jovem, né?52

É como subir um degrau de cada vez para ocupar o status social


de espadeira. Foi o padrasto de Janaina que abriu o caminho para sua
entrada no mundo das mulheres espadeiras; fazendo-a uma outra pes-
soa. Agora, conforme suas palavras, ela se tornara espadeira e, finalmen-
te, poderia ser vista entre os (as) mesmos (as). A coragem é o sentimento
maior de todos (as). As espadas impõem respeito sobre os sujeitos e é
importante que esses (as) a respeitem. A força emanada e as sinuosas
movimentações realizadas tanto no chão como no ar podem derrubar
facilmente os (as) mais corajosos (as) dos (as) participantes. Janaina tem
total clareza disso. O mais importante é que o ritual de passagem foi
concretizado com sucesso. A menina Janaina obteve sua ascensão en-
quanto mulher/espadeira.
Para finalizar a discussão, trouxemos uma imagem bastante sig-
nificativa e que caracteriza a passagem de saberes da arte de tocar espa-
das por mulheres.

Figura 4: Espadeira ensinando como tocar espadas.


Fonte 4: Disponível em: <https://www.facebook.com/pg/GuerraDeEspadasCruzDa-
sAlmas.R/photos/?ref=page_internal>. Acesso em: 15 maio 2018.

52 Janaina, entrevista, 16 fev. 2018.

51
A foto retirada da plataforma Facebook tem sido considerada por
muitos (as) espadeiros e espadeiras da cidade como a mais represen-
tativa atualmente. Nela, encontram-se duas mulheres e, no fundo da
imagem, estão presentes alguns homens apenas como expectadores da
cena. A espadeira ensina a outra mulher como manejar e lançar a espada.
Vejamos que a espadeira experiente apresenta alguns adereços que são
indicadores de que ela já possui certa familiaridade com a tradicional
Guerra de Espadas. Com o seu chapéu de couro, calça jeans e calçada
com botas pretas, a espadeira inicia a provável turista na tradição. Os
homens, aparentemente perplexos, observam; um deles filma o acon-
tecido. Evidencia-se que as mulheres são ativas na Guerra de Espadas,
possuindo, tanto quanto os homens, saberes suficientes para legarem às
outras mulheres.
A coragem, como alinhavamos, é peculiar. É até motivo de co-
chichos entre homens: “Em alguns momentos que eu sinto de precon-
ceito é aquela coisa da pessoa que é preconceituosa mesmo, indepen-
dente do ambiente da espada, então, ‘essa mulher é muito ousada’, ‘olha
que mulher retada’, por estar segurando uma espada, ‘olha, ela não tem
medo’”53. Ora, estariam essas mulheres rompendo com as convenções
sociais atribuídas a elas? Assim como conforma os corpos em seus de-
vidos lugares, a Guerra de Espadas também rompe com modelos en-
gendrados. Muitas vezes serão vistas como mulheres fora da norma, que
escaparam da “genuína” beleza e docilidade de uma dama. A espadeira
Janaina ainda revela o outro lado de que “sempre fui muito acolhida e
os homens acham lindo a mulher que toca espadas, eu sentia isso tam-
bém”54. Ela percebe muito bem que seu ingresso na Guerra de Espadas
era um processo de ruptura: “E a gente começou a ir assim, ia de pou-
quinho em pouquinho até chegar na batalha da praça que era a batalha
tradicional que hoje não acontece mais e eu realmente ficava no meio e
nunca aconteceu nada demais comigo, graças a Deus”55.

53 Janaina, entrevista, 16 fev. 2018.


54 Janaina, entrevista, 16 fev. 2018.
55 Janaina, entrevista, 16 fev. 2018.

52
APONTAMENTOS FINAIS

As reflexões desenvolvidas nos levaram para os seguintes acha-


dos. No que tange aos homens, os saberes inatos à Guerra de Espadas
corroboram em sua formação. As práticas de força, a busca pela co-
ragem, a luta contra o medo e a disputa pela melhor espada colocam
esses sujeitos a constantes atritos, favorecendo, em diversas circunstân-
cias, com que tenham suas masculinidades confirmadas ou postas em
questionamentos.
De fato, a tradição da Guerra de Espadas, quando lida pelos
óculos teóricos das relações de gênero, reflete os valores, normas, regras
e imposições socioculturais que enclausuram os corpos femininos em
determinados espaços e funções e os masculinos em outros. Isso ficou
explícito no que concerne aos momentos de produção das espadas. As
etapas que exigiam menor empregabilidade de força eram atribuídas às
espadeiras. Os trabalhos que levavam à exaustão e o uso demasiado da
força eram de incumbência dos homens.
Por outro lado, vimos que não só de conservadorismos vive a
Guerra de Espadas. Os relatos de Janaina e as outras espadeiras apre-
sentadas indicaram certas aberturas nos momentos de participação na
tradição. Visualizamos condições possíveis de ruptura dos imperativos
sobre os corpos femininos quando essas sentiam-se livres para transitar
pelas ruas da cidade com suas espadas em mãos e, também, quando rom-
piam com os padrões de beleza e comportamento. Esclareceu-se, além
disso, que a situação de Janaina não foi um caso excepcional. Muitas
mulheres/espadeiras conhecem o suficiente sobre os ritos vivenciados
durante o período da festa e são capazes de legar para outras mulheres
os múltiplos saberes aprendidos nos longos anos de trajetória na Guerra
de Espadas.
Ao enveredar por linhas analíticas das relações de gênero toman-
do como complexo de investigação a tradição, cabe ao historiador ou à
historiadora identificar não apenas as visíveis demarcações que classi-
ficam os corpos femininos e masculinos em seus lugares sociais espe-
rados. Torna-se muito mais interessante e atrativo encontrar indícios,
sinais, vultos que permitam o desmantelamento dessas normas sociais

53
e culturais. Toda tradição, mesmo quando alojada no longo tempo, está
vulnerável à mão da história que age constantemente e modifica o que
parece ser eterno.
Por fim, caberia informar que Júnior continua a vender seus
churrasquinhos em uma improvisada barraca sobre o passeio público
acompanhado por sua parceira. Já Janaina, passados dois anos de sua
contribuição para nossa pesquisa, perdeu o seu companheiro com quem
se aventurava na Guerra de Espadas pelo câncer. Trazê-los até o final de
nossa narrativa revela o respeito com suas trajetórias de vida, condição
importantíssima para os historiadores e historiadoras que lidam com o
tempo presente.

REFERÊNCIAS
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corpo e gênero para as carnes sexuadas pela presença de um pênis. Outros Tempos, v. 17, n. 29, p.
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______________. Nordestino: invenção do “falo” – uma história do gênero masculino (1920-
1940). São Paulo: Intermeios, 2013. 254 p.
______________. “Quem é frouxo não se mete”: violência e a masculinidade como elementos
constitutivos da imagem do nordestino. Proj. História, São Paulo, (19), p. 173-188, nov. 1999.
CARVALHO, Moacir. Brincando com fogo: origem e transformação da Guerra de Espadas
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5., 2009. Salvador. Anais... Salvador, 2009. n/p. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/ene-
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CEZARINHO, Filipe Arnaldo. A Guerra de Espadas em Cruz das Almas (BA) – (1980-2016).
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FOSTER, Meg. Online and plugged in? Public History and historians in the digital age. Public
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MALERBA, Jurandir. Os historiadores e seus discursos públicos: desafios ao conhecimento
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MELO, Luiz Fernando Basto de. Espadas de São João, da tradição à proibição. A legalidade da
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NADER, Maria Beatriz. A condição masculina na sociedade. Dimensões, v. 14, p. 461-480, 2002.
OLIVEIRA, Adriana da Silva. Entre cruz e as espadas: práticas culturais e identidades no São
João em Cruz das Almas – BA (1950-1990). 2012. 177 f. Dissertação (Mestrado em História)
– Universidade Estadual da Bahia – UNEB., Santo Antônio de Jesus, 2012

54
PEIXOTO, Rafael Caldas Barros. A Guerra de Espadas em Cruz das Almas: cultura, turistificação
e estigmatização. 2012. 134 f. Dissertação (Ciências Sociais) – Universidade Federal do Recôn-
cavo da Bahia – UFRB, Cachoeira, 2012.
WANDERLEY, Rodrigo Gomes. Guerreiro do fogo: uma etnografia da “morte anunciada”. 2016.
136 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de Brasília - UNB, Brasília,
2016.
Fontes orais
Janaina, entrevista, 16 fev. 2018.
Júnior, entrevista, 5 mar. 2017.
Fontes digitais
BINGRE, Edisandro Barbosa. As espadas de fogo do São João de Cruz das Almas e a sua famosa
“Guerra de Espadas”: história, tradição e polêmica. In: BINGRE, Edisandro Barbosa. Almanaque
cruzalmente: história, estórias e curiosidades de Cruz das Almas. 19 set. 2015. Disponível em:
https://almanaquecruzalmense.wordpress.com/2015/09/19/as-espadas-de-fogo-do-sao-joao-de-
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13 mar. 2020.
SANTTOS, Matheus. Guerra de Espadas. Facebook. Disponível em: https://www.facebook.
com/GuerraDeEspadasCruzDasAlmas.R/. Acesso em: 12 mar. 2020.

55
HISTÓRIA ORAL: PROBLEMAS E
POSSIBILIDADES DE ANÁLISES EM
(CON)TEXTOS DIFERENTES

Claudete Maria Petriw56


Filipe Arnaldo Cezarinho57

RESUMO
O presente texto tem como objetivo refletir sobre as experiências de duas pesquisas de
mestrado em História com a utilização de fontes orais. Longe de apresentarmos os re-
sultados encontrados, intencionamos submeter implicações encontradas na constituição
dessa tipologia de fonte histórica aos debates presentes sobre memória, relações de gê-
nero e História Pública. Para isso, foram selecionadas questões comuns que surgiram
em ambas as pesquisas, a saber: pertinência das pesquisas para as comunidades, disputas
pelas memórias, resistências nos discursos e a produção colaborativa. Em suma, a história
oral permite identificar que a memória é sempre objeto de tensão e quando cruzada com
as proposições das relações de gênero e a História pública esse empreendimento tende
a se intensificar.
Palavras-chave: História Oral; Relações de Gênero; História Pública; Memória

ABSTRACT
The present text aims to reflect on the experiences of two Master’s degree researches
in History using oral sources. Far from presenting the results found, we intend to
submit implications found in the constitution of this typology of historical source to
the current debates on memory, gender relations and Public History. For this purpose,
common questions that emerged in both surveys were selected, namely: relevance
of researches to communities, disputes over memories, resistance in speeches and
collaborative production. In short, oral history allows us to identify that memory
is always the object of tension and when crossed with the propositions of gender
relations and public history this enterprise tends to intensify.
Keywords: Oral History; Gender Relations; Public History; Memory.

56 Mestre em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO).


E-mail: claudetepetriw@yahoo.com.br
57 Doutorando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Membro
do Núcleo de Pesquisas em História da Violência (NUHVI). E-mail: cezarinhohistoria@hotmail.com

56
INTRODUÇÃO

Alguns modos de vida e práticas culturais tradicionais têm


sido constantemente desarticulados na atualidade devido à lógica da
mercantilização imposta pelo modelo capitalista de produção e pelo
empenho estatal, a serviço do capital, em seu projeto civilizatório
sobre tradições consideradas “atrasadas”, “bárbaras” ou anacrônicas.
O presente texto é um diálogo entre experiências de duas pesquisas
de mestrado em História58: a primeira, desenvolvida entre os anos
de 2016-2018, buscou investigar a centenária Guerra de Espadas e
sua criminalização na cidade de Cruz das Almas/BA, e a segunda,
de 2017-2019, tinha como proposta analisar as relações de gêne-
ro no cotidiano de mulheres, além de observar os lugares de mu-
lheres e homens no Faxinal59 Barra Bonita, em Prudentópolis/PR60.

58 CEZARINHO, Filipe Arnaldo. A Guerra de Espadas em Cruz das Almas (BA) – (1980-
2016). 195 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Estadual do Centro-Oeste, Irati, PR, 2018; PETRIW, Claudete Maria. Mulher é
tudo na casa: mulheres e memórias no Faxinal Barra Bonita. 204 f. Dissertação (Mestrado em
História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual do Centro-Oeste,
Irati, PR, 2019.
59 Faxinal é um modelo camponês de utilização das terras, dividido em terras de criar (ou área de
compáscuo) e área de plantio. A área comum, destinada à criação de animais, é um cercado composto
por matas e pastagens onde estão localizadas as habitações das/os faxinalenses. No interior dessa
área comum, as/os moradoras/es criam animais de várias espécies à solta, tais como bovinos, equinos,
caprinos, ovinos e suínos, além de vários tipos de aves domésticas. Esses animais alimentam-se
da grama, pequenos arbustos existentes no cercado e frutos nativos, tais como gabiroba, cereja,
pitanga e pinhão. Para evitar que os animais destruam as plantações, a área destinada ao criadouro
é separada através de cercas e, para facilitar o trânsito, são construídos portões ou mata-burros nas
estradas, de modo que pedestres e veículos ultrapassem tais limites com praticidade e os animais
fiquem impedidos de fazê-lo. As residências também são cercadas para evitar que os animais
adentrem aos jardins e quintais, destruindo-os. Nos quintais são cultivados verduras e legumes,
usados nas refeições diárias, além de frutas e ervas medicinais. Alguns historiadores consideram
que esse modo de utilização das terras tem sido classificado como manifestação cultural dos povos
tradicionais. Ver: CAMPIGOTO, José Adilçon; SOCHODOLAK, Hélio. Os faxinais da região
das Araucárias. In: OLINTO, Beatriz Anselmo; MOTTA, Marcia Menendes; OLIVEIRA,
Oseias de (orgs). História Agrária: propriedade e conflito. Guarapuava: Editora UNICENTRO,
2008; CAMPIGOTO, José A. Os faxinais na perspectiva hermenêutica: a questão da origem.
Anais do XI Encontro Regional da Associação Nacional de História – ANPUH/PR Patrimônio histórico
no Século XXI, Jacarezinho - PR, 2007; SCHÖRNER, Ancelmo. ALMEIDA, M. L. Faxinalenses
versus agronegócio no faxinal do Marmeleiro (Rebouças/PR): o caso das sementes crioulas.
Argumentos, v. 2, p. 91-121, 2016.
60 Município localizado na região centro sul do Estado do Paraná, a 204 km da capital,

57
Distantes por mais de 2.000 km, os objetos aqui refletidos guardam
suas similitudes, principalmente no que tange ao método.
As duas pesquisas partiram da história oral enquanto recurso
metodológico principal para a produção de suas fontes. Outro ponto
semelhante está na atitude de trazer à tona vozes que estão, atualmente,
sendo silenciadas seja pelo poder repressivo do Estado ou pela com-
posição econômica vigente. Ao mesmo tempo, as duas pesquisas pers-
pectivaram sobre tradições no tempo presente que se alojam na longa
duração. Consequentemente, em ambos os casos, a memória fulgia em
absoluto nos trabalhos, evidenciando disputas e conflitos em seu defla-
grar. Foi a partir daí que surgiu a ideia de compartilhar nossas reflexões
através do presente artigo.
Cabe dizer que não apresentaremos os itinerários de toda jorna-
da heurística das pesquisas. O interesse é apreciar teoricamente as fontes
orais a partir dos campos da História pública e das relações de gêne-
ro, conforme mencionado. Todavia, torna-se fundamental uma sucinta
contextualização, em termos metodológicos, de cada uma das pesquisas
para que assim adentremos na temática proposta. Concordamos, en-
quanto estratégia narrativa, em indicar as experiências e reflexões seme-
lhantes de pesquisas sobre as fontes orais. Nesse sentido, interligamos os
pensamentos na busca de condensá-los, evitando possíveis confusões na
trajetória de escrita. Para que isso acontecesse, reunimos os problemas
e dificuldades comuns às duas dissertações, selecionamos e trouxemos
para o debate.
A pesquisa desenvolvida entre os anos de 2016-2018, sobre
a Guerra de Espadas em Cruz das Almas/BA, tratou do processo de
criminalização dos espadeiros e espadeiras moradoras/es da cidade
e da própria tradição. As fontes principais foram as orais e digitais61.

Curitiba. O Faxinal Barra Bonita dista 20 km da sede do município.


61 A utilização dessa tipologia de fonte vem sendo, apesar do preconceito de muitas/os
historiadoras/es, bastante manejada no século atual. A internet e as plataformas digitais tornaram-
se potenciais produtoras de fontes e, também, preciosos objetos de pesquisas para muitas/os.
Tal fenômeno tem modificado a interação existente entre pesquisadora/or e colaboradora/or
na própria escrita da História. Além disso, esses trabalhos têm frequentemente apresentado
questões como: origem e autoria das fontes encontradas em rede digital, a produção exacerbada

58
Foram entrevistadas sete pessoas, sendo seis homens e uma mulher.
Destacamos dois dos principais critérios para seleção das/os entrevista-
das/os: o primeiro buscava identificar aquelas/es que tiveram suas vidas
cruzadas com as forças policiais no contexto da Guerra de Espadas já
criminalizada. O segundo partiu do interesse de fala dessas personagens
históricas. Importante, pois muitas/os espadeiras/os, principalmente
aquelas/es ligadas/os à Associação dos Espadeiros, viam na produção
de nossa pesquisa a possibilidade de reunir forças em prol da tradição.
Obviamente que nem todas/os colaboradoras/es foram movimentadas/
os pelo interesse de relatar abertamente, pois a criminalização tem cor-
roborado para inibição, ou seja, alimentado o medo de sofrerem alguma
retaliação por parte do Estado. Portanto, esse foi o contexto de produção
das fontes orais.
Já na pesquisa executada entre os anos de 2017-2019, foram re-
alizadas vinte e uma entrevistas. Desse total, dezessete pessoas residiam
no Faxinal Barra Bonita e quatro mulheres tinham migrado para outras
regiões. O critério de seleção das pessoas foi, num primeiro momento,
pessoas idosas residentes no faxinal. Durante a realização das entrevis-
tas, tais pessoas indicavam outras a partir de suas redes de sociabilida-
des. No caso das mulheres migrantes, são todas conhecidas de infância
da pesquisadora e com as quais havia facilidade de estabelecer contato.
Avaliamos que por um lado, o fato de a pesquisadora ter sido moradora
do faxinal facilitou o contato, por outro, pode ter sido negativo, pois al-
de memórias, o embate sobre a “verdade” dos acontecimentos históricos, o armazenamento
de dados públicos por instituições privadas e muito mais. Muitos desses debates podem ser
encontrados em: ALMEIDA, Fábio Chang de. O historiador e as fontes digitais: uma visão
acerca da internet como fonte primária para fonte primária para pesquisas históricas, AEDOS, v.
3, n. 8, p. 9-30, jan./jun. 2011; CEZARINHO, Filipe Arnaldo. Fontes orais e digitais: apontando
possibilidades. Faces da História, v. 6, n. 1, p. 223-245, jan./jun. 2019; CEZARINHO, Filipe
Arnaldo. História e fontes da internet: uma reflexão metodológica. Temporalidades – Revista de
História, v. 10, n. 1, 320-338, jan./abr. 2018; OLIVEIRA, Nucia Alexandra Silva de. História e
Internet: conexões possíveis. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n. 12, p. 23-53, maio/
ago. 2014; TOMASI, Julia Massucheti. “Eternamente Off-line”: as práticas de luto na rede social
do Orkut no Brasil (2004-2011). 179 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
do Estado de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2013;
TOMASI, Julia Massucheti. O presentismo e a revolução documental: as páginas da internet
como documentos de pesquisa para a História – Da volatilidade à instantaneidade. Cadernos do
Tempo Presente, n. 12, n/p, jun. 2013.

59
gumas pessoas, em especial as idosas, evitaram falar sobre determinados
assuntos, especialmente questões relacionadas à intimidade para alguém
conhecida e mais jovem.
Tendo em vista o objetivo da referida pesquisa, buscamos ana-
lisar – a partir das memórias de mulheres e homens que habitam ou
habitaram na localidade – como as pessoas entrevistadas se percebem
enquanto mulheres ou homens (ou seja, como construíram suas subjeti-
vidades), como organizam seus cotidianos, como são construídas as rela-
ções de gênero, as condições e os modos de vida de mulheres que vivem/
viveram nesse meio rural e, ainda, como a comunidade foi organizada
em seus saberes e fazeres diários. Para isso, elaboramos um roteiro de
entrevista semiestruturado de modo a observar suas experiências desde
a infância até a velhice.
Entendendo que o lugar62 interfere no modo de ser/estar das
pessoas no mundo e o ser/estar no mundo são construtores do lugar,
num primeiro momento da pesquisa analisamos as memórias mais lon-
gínquas das/os entrevistadas/os sobre o Faxinal Barra Bonita. Nosso
foco não era a “origem” do faxinal, mas as percepções das/os sujeitas/
os sobre suas trajetórias de vida, experiências e verdades subjetivas, que
florescem no ato de rememorar o próprio passado63. Ao fazer tal análise,
buscamos verificar como o gênero64 influencia a construção de memó-
62 Consideramos a noção conceitual de lugar sob a ótica de Michel de Certeau, como passível de
ser praticado, e que o mesmo pode ser/estar constantemente construído a partir das rememorações de
si. CERTEAU. Michel de. A invenção do cotidiano-artes de fazer. 3ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
63 Sobre a metodologia da fonte oral ver: LOZANO, J. E. A. Práticas e estilos de pesquisa
na história oral contemporânea. In: FERREIRA, M. de M.; AMADO J. (Orgs.) Usos e abusos
da história oral. 8 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 16. O autor afirma que: “Parte central desse
método de pesquisa histórica é a consideração do âmbito subjetivo da experiência”. Precisamos
apontar, no entanto, que na percepção da historiografia contemporânea, todas as fontes
históricas são produtos da subjetividade humana. Os porquês de escrever, anotar, fotografar,
filmar, desenhar, etc. e também a preservação (ou não) desses escritos, imagens, objetos, etc.,
estão carregados de subjetividades, de modo a atender a necessidades do presente.
64 Utilizamos a categoria gênero na perspectiva de Joan Scott, como um saber sobre as
diferenças sexuais percebidas, que são hierarquizadas dentro de uma forma de pensar dual e
limitada, sempre associada ao poder. Por isso, gênero é “um elemento constitutivo das relações
sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” e é uma “forma primária de dar
significado às relações de poder”, mesmo que não absoluta ou universal, reconhecendo que estas
diferenças se desenvolvem em desigualdades a partir de significações construídas historicamente.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade.

60
rias de sujeitas/os deste meio rural, uma vez que o lugar também con-
tribui para determinar o tipo de memória que as pessoas apresentam.
É sabido que não são todas as experiências vivenciadas que per-
manecem gravadas em nossas lembranças. Somente lembramos daquilo
que foi significativo para nós, ou seja, a memória está ligada a emoções,
por isso é sempre seletiva. E História e Memória estão implicadas, nos
ditos usos políticos do passado. O conhecimento histórico tem na pró-
pria produção de memória uma de suas fontes e de seus objetos privi-
legiados. Essa questão tem sido salutar para a História, principalmente
com a utilização de fontes orais em pesquisas históricas e nos aponta
que o objeto histórico é sempre fruto de uma elaboração, que a história
é sempre uma construção. Para além disso, a análise de memórias nos
permite pensar como o indivíduo constrói e percebe suas experiências
no mundo, através da produção constante de subjetividades.
Nesse sentido, a fonte oral possibilita a pesquisadoras/es abordar o
significado do passado de pessoas não alfabetizadas, por exemplo, incluin-
do no fazer historiográfico vozes que não estão contidas em documentos
oficiais. Este tipo de metodologia e de perspectiva histórica dá conta de
mostrar, ao buscar respostas às questões postas, o sentido da própria exis-
tência para as pessoas. Ao privilegiar a análise das/os excluídas/os, das
ditas minorias, a história oral acabou por confrontar a história oficial à
medida que viu emergir “memórias subterrâneas”, nas palavras de Mario
Martins Viana Junior. Para o autor “a memória não é biologicamente se-
xuada, contudo, ela é historicamente sexuada”65. Ou seja, é o fato de viven-
ciar experiências como mulheres e homens que implica formas específicas
de memórias.
As percepções das/os sujeitas/os sobre o passado estão imbri-
cadas em lembranças de suas experiências nas relações de gênero, uma
vez que estas fazem parte do processo de construção da própria sub-
jetividade. Segundo Elizabeth Jelin, mulheres e homens desenvolvem

Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995. p. 86.


65 VIANA JUNIOR, Mario Martins. Rasuras e contingências: (entre)laços do feminismo, do
gênero, da memória e da escrita da História, In: Por linhas tortas: Gênero e interdisciplinaridade-I.
Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar, 2011. p. 79.

61
habilidades de memória diferentes e diferentes maneiras de narrar suas
memórias:

Existen algunas evidencias cualitativas que indican que las


mujeres tienden a recordar eventos com más detalles, mien-
tras que los varones tienden a ser más sintéticos em sus nar-
rativas, o que las mujeres expresan sus sentimientos mien-
tras que os hombres relatan más a menudo em uma lógica
racional y politica, que las mujeres hacen más referencias a
lo intimo y las relaciones personalizadas- sean ellas en la fa-
milia o en el activismo politico-. Las mujeres tienden a re-
cordar la vida cotidiana, la situacion económica de la familia,
lo que se suponía que debían hacer em cada momento del
dia, lo que ocurria em sus barrios y comunidades, sus miedos
y sentimientos de inseguridad. Recuerdan em el marcos de
relaciones familiares porque el tiempo subjetivo de las mu-
jeres esta organizado y ligado a los hechos reproductivos y a
los vínculos afectivos66.

Desta forma, a rememoração está entrelaçada às experiências, às


práticas que exercem e aos lugares que mulheres e homens ocupam na
vida familiar e social. Contudo, a historiadora Rosemeri Moreira, aponta
o cuidado necessário para não se perder de vista o horizonte histórico ao
se problematizar a relação entre memória, gênero e processos de iden-
tificação. A autora não nega que o gênero influencia na construção da
memória e nas rememorações, mas questiona se “as referências à ideia
de ‘memória feminina’ referem-se à leitura do corpo como binariamente
dividido?”67. E diz mais:

Postular a existência de uma memória feminina sem se


ater as mais diversas experiências de constituição dos su-
jeitos, as diversas categorias e espaços sociais existentes,
tais como raça, classe, etnia, orientação sexual, nacionali-
dade, é no mínimo a-histórico68.

66 JELIN, Elizabeth. De qué hablamos cuando hablamos de memorias? Los trabajos de la


memoria. España: Siglo Veintiuno editores, 2001. p. 108.
67 MOREIRA, Rosemeri. Sobre mulheres e polícias: polícia feminina no Brasil – a invenção
paulista (1955-1964). Guarapuava: Editora UNICENTRO, 2017. p. 97.
68 Id., 2017, p. 107.

62
Assim sendo, produzir narrativas históricas separando de ante-
mão memórias em femininas e masculinas é desconsiderar as próprias
produções em gênero, uma vez que desta forma as/os sujeitas/os são
tratadas/os de uma maneira universal e totalizante, reforçando binaris-
mos historicamente estabelecidos. Ainda assim, com o uso da catego-
ria gênero, a partir da década de 1990, como ferramenta de análise das
construções históricas do(s) masculino(s) e feminino(s), tornou-se pos-
sível pensar numa memória culturalmente educada para determinadas
atribuições. É esta a perspectiva de Ana Maria Marcon Venson e Joana
Maria Pedro:

Ao analisar a memória da experiência não há como en-


contrar uma narrativa sobre a sociedade, o público, o po-
lítico, e outra sobre a indivídua, o privado, o psicológico,
porque a experiência se dá na imbricação de todos esses
âmbitos e é na experiência que se constituem as sujeitas.
Esse entendimento coloca necessariamente em debate o
fato de que às mulheres está reservado um lugar social
específico, que lhes permite experimentar uma existência
distinta da dos homens e que lhes constitui como “dife-
rença” em relação ao sujeito masculino69.

Neste artigo adotamos, portanto, a perspectiva de que a memória


é uma elaboração do passado permeada, enquanto prática, por relações
de poder70. Assim sendo, ela é atravessada pelo gênero, onde não cabe
a ideia de uma memória exclusivamente feminina, essencializada, dico-
tomizada e colada à percepção biológica sobre os corpos/sexos. As/os
sujeitas/os não são dadas/os em essência, mas produzidas/os nas relações
de poder e saber, através de coerções de umas/uns sobre outras/os e so-
bre si mesmas/os.
69 VENSON, Ana Maria Marcon; PEDRO, Joana Maria. Memórias como fonte de pesquisa
em história e antropologia. História Oral, v. 15, n. 2, p. 125-139, jul./dez., 2012. p. 134.
70 Adotamos aqui o sentido de poder em Foucault. O tempo inteiro somos vítimas, ao mesmo
tempo em que exercemos o poder para controlar a conduta das/os outras/os. As relações sociais
estão permeadas por relações de poder, que se estabelece em micro relações em toda a sociedade:
na família, na igreja, enfim em todos os espaços. As relações entre as/os indivíduas/os são
relações de poder. FOUCAULT. Michel. Sexo, poder e indivíduo: entrevistas selecionadas. Trad.
Jason de Lima e Davi de Souza. Desterro: Nefelibata, 2003.

63
Abertas as possiblidades, podemos destacar os elementos co-
muns que apareceram constantemente em nossas empreitadas sobre as
fontes orais e que servirão como guias de nossas reflexões a partir de
agora. Assim, os temas que abrolharam no percurso de produção das
fontes foram: pertinência das pesquisas para as comunidades, disputas
pelas memórias, resistências nos discursos e a produção colaborativa.
Cada um, à sua maneira, revela debates importantes tanto na esfera das
relações de gênero quanto na História pública.

QUESTÕES COMUNS EM CONTEXTOS DIFERENTES

Ao abordar sobre a História enquanto ação e instrumento para


a vida, Amada Benevides e Sebastián Álvarez conectavam a produção
do conhecimento histórico às tônicas da interlocução e colaboração
com diversos atores e atrizes sociais, abrindo caminhos para adentrar
no âmbito da História pública. Em seu trabalho, apresentaram interes-
sante definição da História pública que, basicamente, “es um campo de
estudio de la historia que se preocupa por las producciones de sentido
sobre el pasado originadas por fuera de la academia y la historiografia
especializada. Es un área que está constantemente em contacto com la
historia oral [...]”71. Portanto, a produção dar-se-ia, sobretudo, em con-
textos distintos do tradicional, ou seja, a academia. Mas há outro ponto
que nos chamou atenção que era exatamente sobre a função da História
enquanto vida e ação:

Trabajar en una historia para la vida y para la acción, en


el actual contexto de postacuerdo, implicaría dejar de lado
tanto una pretensión erudita de monumentalización y ve-
neración del pasado como una actitud de negación o indi-
ferencia hacia el mismo, para avanzar en la comprensión
histórica de la sociedad, del conflicto y de las apuestas
de negociación y resistencia desarrolladas por diferentes
comunidades y grupos sociales. Una historia para la vida

71 BENEVIDES, Amada Carolina Pérez; ÁLVAREZ, Sebastián Vargas. História Pública


e investigación colaborativa: perspectivas y experiencias para la coyuntura actual colombiana.
Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura, v. 46, n. 1, p. 297-329, jun., 2019. p. 301.

64
y para la acción contemplaría entonces una perspectiva
crítica, que contribuya a interpretar el conflicto desde el
presente, a resignificar el presente con las nuevas posibi-
lidades que ofrece y a sentar las bases de un futuro en el
que sea posible una sociedad más incluyente, equitativa,
justa y en paz72.

A citação acima possui grande validade quando tratamos de pes-


soas vivas. Nossas investigações revelaram que a produção do conhe-
cimento histórico, quando abertamente construída em conjunto com
o público, não pode isentar-se de ação e responsabilidade social. No
caso da Guerra de Espadas, pelo fato de estar atualmente criminaliza-
da, a tensão tornou-se constante. Membros participantes da tradição
almejavam que suas vozes vibrassem e compusessem um coro capaz de
contribuir com o retorno da prática ao campo da legalidade. A partir
de então, nossa inquirição ultrapassava os limites do puro rigor teóri-
co-metodológico e de uma busca por progressão profissional na área.
Havia a necessidade de não negligenciar suas demandas e, por outro
lado, de também não as tomar em benefício de uma alma justiceira, en-
quanto “salvadoras/es da pátria”. Éramos constantemente convidadas/os
a “lutar” lado a lado.
Com relação à comunidade faxinalense em questão, pudemos per-
ceber nitidamente que havia anseio das pessoas em saber de que forma
utilizaríamos o que nos diziam, para qual finalidade queríamos saber tais
assuntos, como se vê no questionamento da Sra. Ana, 80 anos: “Mas pra
quê você quer saber isso?”73. Em alguns casos, familiares presentes solici-
taram cópia da gravação para ter como lembrança, segundo eles. Em ou-
tros, mostravam-se orgulhosos de sua mãe/pai estar sendo entrevistada/o
para uma pesquisa acadêmica. Como uma maneira de dar retorno aos
questionamentos, a defesa da dissertação foi feita na escola da localidade
e a maioria das entrevistadas esteve presente, o que demonstra a curiosi-
dade delas e o desejo de obter retorno, que acompanhavam atentamente o
debate acadêmico (traduzido numa linguagem acessível), as ponderações

72 Id., 2019, p. 300.


73 Ana Terluk Zenzeluk (1938). Entrevista concedida a Claudete Maria Petriw em 24 mar. 2018.

65
da banca e puderam ter conhecimento da produção feita a partir de suas
memórias74.
Estamos alertando, exatamente, para a primeira de nossas consta-
tações em campo: a importância da pesquisa histórica para as comunidades
com as quais nos envolvemos. A linha torna-se tênue. E faz-se de fun-
damental importância, em nossa percepção, posicionar-se. À vista disso, a
posição não deve ser a de fazer apologias indiscriminadamente aos grupos
que direcionamos nossas pesquisas, mas, sobretudo, a de conduzir um pro-
cesso de reflexibilidade teórica, com o acionamento de conceitos e ferra-
mentas analíticas, que permita atuar com criticismo e perceber as disputas
que operam nas entrelinhas daquelas/es com os quais construímos nossas
narrativas históricas. Nossas trajetórias pautam-se por princípios e métodos
científicos, sendo que, mesmo quando assumimos posições nas realidades
de pesquisas, esses postulados não podem ser negados ou omitidos75.
Ao longo das pesquisas deparamo-nos com a questão das dis-
putas pelas memórias. Em ambos os casos, vislumbramos que a proble-
mática também era horizontal. Os grupos de espadeiras/os produziam
narrativas distintas sobre a origem da tradição, as práticas de violência
e os motivos que conduziram à criminalização. É nesse momento que
percebemos as simetrias e assimetrias dos discursos, os procedimentos
de exclusão76 operando com máxima eficácia na tentativa de estigmati-
zar aquelas/es que adentraram à tradição recentemente, as/os “genuínas/
os proprietárias/os dos saberes antigos” e muito mais. Logo, a/o historia-
dora/or não escolhe a narrativa que melhor lhe conforta. Ao contrário.
Está na pluralidade de imagens, de memórias construídas no presente
com o recurso do passado, que a dinâmica investigativa torna-se com-

74 Defesas de dissertações e teses em espaços não acadêmicos têm acontecido entre


historiadoras/es e profissionais de outras áreas que se engajam nos estudos de grupos tradicionais
ou marginalizados. Recentemente, Gleysa Teixeira Siqueira defendeu sua dissertação de mestrado
em Ciências Sociais (UFRB) dentro de uma casa de prostituição, em Cachoeira/BA. SIQUEIRA,
Gleysa Teixeira. Uma história de “Cabeluda”: mulher, mãe e cafetina. 200 f. Dissertação (Mestrado) –
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cachoeira, Centro de Artes Humanidades e Letras,
2017. Com isso, observamos novas estratégias por parte de pesquisadoras/es em romper barreiras
tradicionais no intuito de retribuir, com maior afinco, suas produções às pessoas privilegiadas em
seus trabalhos.
75 RÜSEN, Jörn. Objetividade e narratividade na ciência histórica. Estudos Ibero-Americanos.
PUCRS, v. 24, n. 2, p. 311-335, dezembro 1998.
76 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

66
plexa e profícua. É trazendo as várias vozes, mesmo quando destoantes,
que o processo de se abrir para alcançar a História pública se realiza.
Esse é um dos elementos destacados por Ricardo Santhiago no que
tange ao relacionamento da história oral com a história pública:

Meu contato próximo com a história oral também ativou


muito o interesse na história pública – já que, como você
sabe, elas têm uma relação muito íntima. Primeiro, por-
que o público é uma condição para que a história oral se
realize. Segundo, porque boa parte das pesquisas no cam-
po da história oral é caracterizada por aquele impulso de
oferecer visibilidade às histórias de indivíduos e de grupos
que não fazem parte do registro histórico – o que eu acho
válido e importante, embora ache também que a pesquisa
acadêmica não pode se resumir a isso77.

No que se refere às memórias mais longínquas sobre o lugar de


entrevistadas/os do Faxinal Barra Bonita, surgiu com muita força a ques-
tão da autoridade da fala. É preciso entender as disputas e negociações
a respeito dos sentidos do passado em cenários diferentes e para grupos
diferentes. Entre grupos há disputas relativas a identidades e o núcleo
de qualquer identidade individual ou grupal está ligado a um sentido de
permanência ao longo do tempo e do espaço. A maior parte de nossas/
os entrevistadas/os são netas/os de imigrantes europeus, ucranianos, que
foram encaminhadas/os a Prudentópolis/PR no contexto da transição
da mão de obra escrava para a assalariada em nosso país.
O debate sobre a memória se relaciona com as resistências em
alguns discursos, a nossa terceira implicação. Ao consultarmos se as pes-
soas aceitariam nos conceder a entrevista, observamos que os homens,
de imediato, concordavam. As mulheres idosas, porém, se mostravam
hesitantes, diziam não saber ou queriam saber se outras mulheres acei-
taram. Pediam que retornássemos em horário em que familiares, de
preferência filhos, estivessem presentes para ajudá-las a lembrar dos fa-
tos. As entrevistas foram realizadas, em sua maioria, aos domingos, a
77 SANTHIAGO, Ricardo. A história pública no Brasil entre práticas e reflexões: a oficina
historiográfica de Ricardo Santhiago entre a história oral e a história pública. [Entrevista cedida
a] Fagno da Silva Soares. Revista Observatório, v. 3, n. 2, p. 569-585, abr./jun. 2017. p. 574.

67
pedido das/os entrevistadas/os, momento de reunião das/os familiares.
Ressaltamos que em algumas entrevistas houve interferência de familia-
res: algumas pessoas sentiam necessidade da presença de filhas/os e não
se sentiram incomodadas quando estas/es falavam por elas. Mesmo as-
sim consideramos tais entrevistas, uma vez que entendemos que é uma
demonstração da permissão de lugares que tais pessoas ocupam, ou seja,
uma demonstração de como construíram sua subjetividade.
Algumas pessoas da comunidade nos sugeriam quem devería-
mos entrevistar, quais seriam as pessoas que “sabem contar” a história
da comunidade. Além disso, observamos que a escolha do que registrar
e do que silenciar nas entrevistas também tinha relação com a diferença
geracional entre a pesquisadora e as entrevistadas e que ainda há aí uma
questão de gênero, uma possibilidade de análise sobre como o gênero
influencia no lembrar ou na crença de que suas lembranças precisam ser
atestadas, legitimadas por terceiras/os. Ou seja, a maioria das mulheres
idosas, ao que tudo indica, não se sentia autorizada a falar desacompa-
nhada, o que não ocorreu com as mulheres mais jovens.
Analisando os relatos foi possível visualizar a percepção de que
existe uma “verdadeira” história e que existe alguém que realmente sabe
a história da comunidade e possui autoridade para tratar do assunto. Ao
perguntarmos sobre os ditos tempos antigos do faxinal, notamos que
algumas mulheres não se manifestaram a respeito, em especial as que
não são nascidas na comunidade. A Sra. Paulina78, de 69 anos, se colo-
cou como uma pessoa que sabe de muita coisa, mas “nessa” não e “estou
me apurando”, numa demonstração de que não havia refletido sobre
a temática anteriormente, ou que não havia se importado com isso. A
Sra. Helena79, de 89 anos, não se manifestou porque, segundo ela, não
lembra devido à idade e porque é analfabeta. Ou seja, ela acredita não
possuir legitimidade para falar do passado da comunidade devido à falta
de escolaridade.
Destarte, a memória é uma percepção do passado guiada pelo pre-
sente, que as/os sujeitas/os ou grupos utilizam nos jogos de poder e inte-

78 Paulina Iaciuk (1949). Entrevista concedida a Claudete Maria Petriw em 17 mar. 2018.
79 Helena Schleian (1929). Entrevista concedida a Claudete Maria Petriw em 17 mar. 2018.

68
resses que permeiam as relações sociais. Ela carrega valores sobre o pas-
sado que podem ir mudando de acordo com os interesses e conveniências
atuais e pode esconder elementos do passado que não servem à narrativa
que se quer defender. Essa reconstrução do passado normalmente serve
para atender interesses do presente, os quais podem ser econômicos, polí-
ticos, culturais ou até mesmo para resguardar uma identidade de supostos
ataques externos.
Ao entrevistarmos moradoras/es do faxinal Barra Bonita pu-
demos notar um discurso comum a todas aquelas/es que possuem as-
cendência ucraniana. É possível perceber que as pessoas fundam sua
identidade sobre uma memória de um passado heroico e de sofrimen-
to compartilhado, denotando uma maneira de estar no mundo. Essa
memória organiza as representações que as pessoas entrevistadas fazem
sobre si, sobre sua história e seu destino, em uma constante construção
de subjetividades.
Há temporalidades e espacialidades manifestas nas expressões
utilizadas e nas formas de se expressar das pessoas entrevistadas: o uso
constante de termos como “antigamente”, “antes tempo”, “aqueles an-
tigos”, “sabeme” remete a um passado mítico, num tempo distante em
que havia sofrimento, em que a vida era dura, difícil. Tais memórias do
passado dão forma ao espaço. As ideias de dor e trabalho duro aparece-
ram em praticamente todas as entrevistas, numa tentativa de enaltecer
um passado heroico de antepassados desbravadores. Para Joel Candau,
esse tipo de representação do passado pode ser visto como uma busca
identitária e indicar uma função social: crítica ao presente. Segundo ele,
ao evocar a ideia de “velhos bons tempos”80, no que dizem respeito a
valores culturais e religiosos, as pessoas podem indicar medo de que as
melhorias trazidas pelo progresso contribuam para o declínio de valores
que davam a essa comunidade o sentido de sua identidade.
Notamos, também, que a religião ocupava um espaço de centralida-
de nas narrativas e que havia disputas em torno da doação da terra e cons-
trução da igreja local, advindo daí, talvez, as indicações de quem “sabe contar
a história da comunidade”. Caberia, portanto, uma reflexão sobre gênero e

80 CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução Maria Letícia Ferreira. 1 ed., 3ª reimpressão.
São Paulo: Contexto, 2016.

69
memória verificada nas discussões. As mulheres idosas não se sentiam au-
torizadas a falar desacompanhadas. Em todas as entrevistas com mulheres
idosas houve a presença de terceiras/os, a pedido delas, que buscavam anco-
ragem junto a filhos presentes e não se mostravam contrariadas quando os
filhos (homens) falavam por elas, com algumas poucas exceções. Dentre os
homens entrevistados, não houve essa insegurança de uso da fala e necessi-
dade de aprovação das narrativas deles pelas/os familiares.
Acreditar não ter o direito à fala é uma demonstração da maneira
como são construídas as relações de gênero no Faxinal Barra Bonita e de
que forma as subjetividades dessas pessoas foram construídas por meio
dessas relações. Embora os relatos tenham evidenciado o protagonismo
das mulheres na gestão da vida cotidiana e no sustento das famílias,
parece haver um silenciamento de suas vozes. Ainda, é possível perceber
que o tipo de memórias construídas por homens e mulheres possui rela-
ção com os lugares que as/os mesmas/os ocupam e práticas que realizam
em sua vida cotidiana. Nas memórias das mulheres podemos observar
as estratégias pela sobrevivência diária e criação de filhas/os pequenas/
os, num período relatado como de muita pobreza. Já nas memórias de
homens, boa parte delas está relacionada à busca por dinheiro para com-
pra/pagamento dos lotes de terra por parte de seus avôs imigrantes.
As resistências em relatar sobre a Guerra de Espadas têm estreitas
vinculações ao processo de criminalização. Pesquisar sobre a manifestação
cultural após 2011, ano de sua proibição pelo Ministério Público, através
da história oral tem sido desafiador. Todos os nossos artifícios éticos de
preservação das identidades e demonstração de que estamos trabalhando
com rigor são, em alguns casos, irrelevantes para as/os colaboradoras/es.
Ao mesmo tempo, começamos a perceber tais resistências enquanto táti-
cas desses atores e atrizes sociais. Muitas/os delas/es preferem o anonima-
to de que ainda continuam (será?) vivenciando suas tradições mesmo com
a proibição. Aqui temos nuances distintas e que devem ser dimensionadas.
A recusa em falar, pode ser em casos específicos, manobra que permite a
continuidade de algo que está sendo colocado em questionamento, no
nosso caso, a Guerra de Espadas. No campo da História pública o cuida-
do da/o historiadora/or é imprescindível nesse momento. O que vai ser

70
publicado não pode corroer as vidas dessas pessoas, muito menos posicio-
ná-las em situações de riscos. O comprometimento é importante, como
diz Santhiago:

Também para a história pública, pode‐se dizer, a história


oral tem um caráter indutor: impõe ao pesquisador a ne-
cessidade de considerar as implicações da relação com o
público na construção de um material que será utilizado
como fonte; os múltiplos comprometimentos presentes
nos atos interpretativos; a responsabilidade com a devolu-
ção da pesquisa e a publicização do conhecimento, e assim
por diante81.

Cabe, por fim, relatar sobre o processo de construção colabora-


tiva. Com isso, a História pública, como bem analisou Santhiago, não
pode ser apenas mais um guarda-chuva conceitual que opere para que
pesquisadoras/es reflitam sobre suas técnicas e metodologias de pesqui-
sas. Em seus argumentos, a História pública praticada por brasileiras/os
tende a ser um exercício reflexivo de suas práticas enquanto profissio-
nais. Considerada pela envergadura conceitual que permite, “para além
da plasticidade da expressão e da sua capacidade de abrigar um núme-
ro e uma variedade notável de práticas e reflexões, ela tem funciona-
do principalmente como uma espécie de categoria deflagradora de um
exercício de retrospecção”82. Esse viés analítico indica a simples utiliza-
ção da História pública enquanto instrumento para ajudar a solucionar
problemas de pesquisas.
De fato, precisamos assumir que isso aconteceu em vários momen-
tos em nossas pesquisas. Mas é importante salientar que é possível estabe-
lecer uma relação de colaboração na produção do conhecimento histórico,
isto é, entre a/o historiadora/or e o público. Daremos um exemplo que pa-
rece não ter qualquer importância. Ao entrevistarmos uma espadeira, com
expressiva experiência na Guerra de Espadas, algo nos chamou atenção. A
colaboradora, ao saber que o seu nome seria fictício, pediu para que ela mes-

81 SANTHIAGO, Ricardo. História pública e autorreflexibilidade: da prescrição ao processo.


Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 286-309, jan./mar. 2018. p. 297.
82 Id., 2018, p. 294.

71
ma indicasse qual deveria ser. A justificativa dada foi muito interessante.
Ao iniciarmos a entrevista, a colaboradora pediu para que fosse chamada,
no momento de redigir e publicar o texto, de Janaina. Ora, Janaina, como
foi muito bem explicado, seria a outra possibilidade de nome que sua mãe
lhe daria e que, infelizmente, não lhe deu. O sorriso cativante e o brilho nos
olhos permitiram entender o quão importante era ser reconhecida enquan-
to Janaina, isso significava muito. Obviamente que a construção de narrati-
vas históricas pautadas pelo que denominamos de colaborativa não se limita
a isso. Acreditamos que o engajamento e a ação para com os grupos que
colaboram na construção de nossas pesquisas são fundamentais. Os nossos
trabalhos precisam oferecer possibilidades de transformação da realidade
social e devem proporcionar a reflexão das/os próprias/os colaboradoras/
es. O trabalho de Denize Ramos Ferreira83 é exemplar nesse sentido. A
História pública pode e deve ser ativa, precisa ser ação.
A pesquisa sobre a Guerra de Espadas, e a sua continuidade, tem
proporcionado certos tipos de articulação entre espadeiras/os, mesmo
quando isso não fica evidente nas páginas dos jornais locais ou, até mes-
mo, nas páginas aqui presentes. As resistências cotidianas, que se desen-
rolam pelas sombras, e irrompem no dia de sua manifestação, são mui-
to mais profícuas do que podemos imaginar. Por outro lado, nem tudo
é passível de ser publicizado pela/o historiadora/or. Em alguns casos,
quando falamos em História pública, nem tudo pode se tornar “público”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões propostas através das duas dissertações de mestra-


do apontaram para problemas comuns quando a História oral é usada
como principal meio metodológico na produção de fontes históricas.
Sem dúvidas, quando tratada em relação com outros campos e catego-
rias de análises – História pública e relações de gênero – as dificuldades
tendem a intensificar. Nesse sentido, a/o historiadora/or não pode fur-
tar-se de suas obrigações éticas e sociais, revelando responsabilidade na
construção de sua pesquisa que não está limitada ao seu rigor científico.

83 FERREIRA, Denize Ramos. História oral e História pública: os caminhos para a posse da
terra na favela Vila Operária. Resgate, v. 22, n. 28, p. 23-30, jul./dez., 2014.

72
As quatro implicações abordadas neste texto podem ser visuali-
zadas em muitas outras pesquisas que objetivam trazer à luz pessoas co-
muns, indivíduos em processos de silenciamento tanto por parte do mo-
delo econômico vigente, quanto pela força coercitiva do Estado. Nessa
linha, a História pública pode contribuir ativamente na interação desses
sujeitos formulando meios para que essas mesmas pessoas se vejam en-
quanto atores e atrizes de suas vidas, além de atribuir importância aos
seus universos de vivências. Obviamente, como alertamos com relação à
Guerra de Espadas, nem tudo é passível de ser publicizado, pois sempre
há possibilidade de colocar alguém em condições de risco social.
A historiografia silenciou por muito tempo a existência dos faxi-
nais, tendo sido produzidas as primeiras pesquisas acadêmicas com a
temática somente a partir da década de 1980. Antes disso, de acordo
com Ancelmo Schörner, historiadoras/es inseridas/os no contexto do
chamado Movimento Paranista84 em suas narrativas sobre a região de
ocorrência de faxinais, teriam construído uma imagem que associava o
modo de vida faxinalense ao atraso e, para além disso, lamentavam que
as/os imigrantes eslavas/os tivessem se adaptado ao modo de vida cabo-
clo, fenômeno descrito como “caboclização do imigrante”.
Quando não há prejuízo à privacidade das pessoas entrevistadas,
tornar pública sua identidade, a nosso ver, e evidenciar sua trajetória de
vida, considerando o conhecimento, os saberes e as experiências de pes-
soas comuns, camponesas/es e lavradoras/es, vistas/os por muito tempo
como as/os de baixo, possibilita à História revestir-se de multiplicidade
e abundância de perspectivas. Faxinalenses e espadeiras/os produzem,
reproduzem e conservam práticas culturais que orientam para um pas-
sado de muitos anos de história e nossas experiências de pesquisas con-
tribuem para que as/os mesmas/os se percebam e sejam reconhecidas/os
como sujeitas/os e agentes da história.

84 Foi um movimento regionalista do qual fez parte a elite intelectual e política do final do
século XIX, de construção identitária do Paraná associada a valores eurocêntricos. Teve início
após a emancipação política do estado, em 1853, e se popularizou no final da década de 1920,
tendo como principal representante Alfredo Romário Martins. Ver: BATISTELLA, Alessandro.
O paranismo e a invenção da identidade paranaense. Revista Eletrônica História em Reflexão. Vol.
6 n. 11 – UFGD - Dourados jan/jun 2012.

73
Ao optarmos pela história oral necessariamente trabalhamos
com os sentimentos das pessoas, os quais influenciam nas suas narra-
tivas, na imagem que querem passar de si e de seu grupo. Em ambas as
experiências, pudemos notar que as disputas, hesitações e relutâncias
têm relação com esse sentimento de pertencimento a um grupo e com
a responsabilidade de produzir um tipo de discurso que interesse a esse
grupo, atendendo a uma necessidade do presente.
Deparamo-nos também com o silêncio, o não lembrar sobre
determinados assuntos. Conforme já mencionado, no que se refere à/
aos espadeira/os entrevistada/os há aí uma tentativa de se proteger de
possíveis retaliações. No que se refere às memórias sobre o passado no
faxinal Barra Bonita, esse silenciamento parece estar relacionado com o
sentir-se autorizada/o a falar sobre um tema de interesse público. Assim,
tão importante quanto aquilo de que se recorda, é analisar o que é si-
lenciado, pois é a partir de uma ação consciente do presente que se dão
os esquecimentos, as falhas de memória e “[...] se podemos dizer que a
verdade do homem é o que ele oculta, o fato de ocultar é também sua
verdade. A realidade de uma narrativa é ser real para um sujeito”85.
No caso da comunidade faxinalense, o discurso comum que co-
loca antepassados imigrantes na posição de heróis possui certa conso-
nância às narrativas oficiais. Pareceu importante às/aos nossas/os en-
trevistadas/os ressaltar esse passado heroico ao relatarem sobre os ditos
tempos antigos do faxinal. Ainda, a questão de gênero é latente, pois
o tipo de memória construída tem relação com lugares que as pessoas
ocupam e práticas que realizam na comunidade. As mulheres não se
sentiam autorizadas a falar sobre a história da comunidade, mas falavam
do sofrimento, das dificuldades de seus familiares na criação de filhas/
os pequenas/os e na busca de sobrevivência no passado do faxinal. Nas
memórias delas há menção a questões familiares, à gestão da pobreza,
enquanto que os homens se referiram ao trabalho realizado na abertura
de estradas pelos seus avôs, como forma de obter dinheiro para quitar os
lotes de terra recebidos de representantes do governo. As rememorações
do passado como um período de pobreza, como um lugar de sofrimen-

85 CANDAU, op. cit., p. 72.

74
to e associado a uma ideia de dor, parece oferecer um sentimento de
pertencimento a uma coletividade com uma memória comum às/aos
entrevistadas/os com ascendência ucraniana.
Analisar a construção da memória é salutar para historiadoras/
es interessadas/os em entender como os seres humanos se constituem
enquanto tais, fator convergente neste diálogo de pesquisas tão distantes
geograficamente e no processo de construção, mas aproximadas pelo
objeto e pelo método.

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77
EIXO II

A FIGURA PÚBLICA DE MULHERES:


NA ESCRITA E NA POLÍTICA
GUERRA E PAZ NA OBRA
DE MARIA LACERDA DE MOURA

Patrícia Lessa86
Claudia Maia87

RESUMO
A obra de Maria Lacerda de Moura é importante para a historiografia feminista e
anarquista por sua força narrativa e pungente crítica antifascista no período que en-
globa as duas Grandes Guerras. Em nossa pesquisa tivemos como meta entender sua
forma de ver e vivenciar a guerra e a paz através de sua produção escrita. A pesquisa
documental teve como recorte temporal o período entre os anos de 1927 a 1934. Nas
fontes selecionadas encontramos indícios da influência do pensamento libertário in-
dividualista pacifista internacional, sobretudo, por seu contato direto com objetores
de consciência que conviveram com ela em Guararema, ao desertarem da Primeira
Guerra Mundial.
Palavras-chave: Maria Lacerda de Moura; Guerra; Paz.

ABSTRACT
Maria Lacerda de Moura’s work is important for feminist and anarchist historiography
for her narrative and poignant anti-fascist criticism in the period that encompasses
the first and the second World Wars. In this research, we aimed to understand the
way of seeing and experiencing war and peace through her written production. The
documentary research covers the period from 1927 to 1934. In the selected sources,
we found evidence of the influence of international pacifist individualist libertarian
thought, above all, by her direct contact with conscientious objectors who lived with
her in Guararema when they desertad the First World War.
Keywords: Maria Lacerda de Moura; War; Peace.

86 Atualmente leciona no Departamento de Fundamentos da Educação, na Universidade


Estadual de Maringá (UEM/PR).
87 Professora do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de
Montes Claros (UNIMONTES/MG); Bolsista de produtividade CNPq.

79
INTRODUÇÃO

Maria Lacerda de Moura (1887 – 1945) deixou-nos um legado


libertário muito vasto. Ela foi uma profícua escritora e oradora, além
de realizar muitas ações e práticas sociais propositivas; escreveu mui-
tos livros, artigos, matérias jornalísticas, cartas, conferências, folhetos e
outros tipos de matérias que foram publicadas no Brasil e noutros paí-
ses. Nascida na Fazenda Monte Alverne, em Munhuaçu, Minas Gerais,
logo na infância mudou-se com a família para Barbacena. Formou-se
normalista e atuou na docência por muito tempo e em diferentes con-
textos. Viveu no período das duas Grandes Guerras. Sua obra, hoje é
interpretada como feminista e libertária. Destacou-se por algumas fren-
tes de batalha, em consonância com o seu tempo, das quais destacamos
duas: as reivindicações das mulheres e a luta antifascista. Maria Lacerda
não gostava de rótulos ou definições, não se autodenominava feminista
ou libertária, porém, em seus escritos emergem estas frentes de batalha.
Ela fez eco ao anarquismo individualista88 e pacifista. Fez guerra a guer-
ra e apostou na paz.
Maria Lacerda não viu o fim da segunda Guerra Mundial, ela
veio a falecer no Rio de Janeiro, em 1945, alguns meses antes do fim da
grande catástrofe que assombrou o mundo. Sobre a primeira Guerra
Mundial ela soube dos horrores pelas vozes de seus companheiros, de-
sertores de consciência, que se recusaram a participar da mesma e, com
ela, conviveram na comunidade agrícola de Guararema, onde ela viveu
entre os anos de 1928 e 1937. Nesta comunidade ela escreveu volumosa
obra sobre a guerra e sobre a paz, publicou livros e artigos em jornais,
tais como O Combate, A Lanterna, A Plebe, Estudios, da Espanha den-

88 O individualismo anarquista diferencia-se da ideia de individualismo liberal, pois, sendo uma


corrente libertária questiona as bases do capitalismo como, por exemplo, a exploração humana
para acumulo de poder ou de capital. Max Stirner (1806 – 1856) foi um dos primeiros a escrever
sobre o tópico. Roberto das Neves (1980) escreveu sobre as diferentes perspectivas libertárias e,
em consonância com Stirner, apontou dois escritores que influenciaram Maria Lacerda de Moura,
são eles: Han Ryner e Émile Armand. Sobre o último ele explicita: “sem o indivíduo não pode
existir ambiente social ou societário. O indivíduo preexistiu ao grupo [...]. A sociedade não é senão
o produto de adições individuais”. NEVES, Roberto das. Entre colunas. Rio de Janeiro: Germinal,
1980. p. 64.

80
tre outros. Dos livros escritos no período em que viveu em Guararema
selecionamos para este estudo: Civilização, tronco de escravos (1931);
Serviço militar obrigatório para mulher? Recuso-me! Denuncio!, (1933), e,
Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital (1934). Somadas a estas três
fontes escritas, utilizamos para a análise os seguintes documentos en-
contrados em jornais com o mesmo recorte temporal, ou seja, entre os
anos 1927 e 1934: Guerra a guerra, publicado em O Combate, em 19 de
novembro de 1927 e o texto Oração, publicado em A Plebe, no dia 31 de
dezembro de 1932, ambos em São Paulo. Com este recorte temporal
pretendemos abarcar o período que em sua produção antifascismo teve
maior volume. Com isso, não queremos dizer que antes ou depois deste
período a autora não tenha escrito sobre a guerra ou sobre a paz, mas,
trata-se de uma estratégia teórico-metodológica utilizada para afunilar
o tema e melhor selecionar as fontes da pesquisa, tendo em vista dois
importantes aspectos a serem lembrados sobre a obra lacerdiana: pri-
meiro é muito vasta e, em segundo lugar, o material está disperso em
muitos arquivos, alguns deles privados.
Guerra e paz é um tema que, imediatamente, nos remete a obra
monumental de Liev Tolstoi (1828 – 1910), um romance publicado,
originalmente, entre 1865 e 1869 no formato de novela. Nesta obra, o
escritor russo narra as guerras napoleônicas com grande teor de realis-
mo, sendo este um dos aspectos de sua relevância histórica e literária. O
local de fala é outro aspecto a ser destacado na leitura de uma obra, ou
seja, no caso o livro de Tolstoi retrata o olhar russo sobre as guerras do
período napoleônico. Muitos livros e filmes abordam o mesmo tema e,
portanto, interessam ao fazer historiográfico. Debruçar-nos sobre a obra
de Maria Lacerda de Moura para pensar seu olhar sobre a guerra e sobre
a paz significa visibilizar a escrita e o pensamento de uma mulher escri-
tora brasileira que teve sua produção silenciada por longo tempo. Para
mergulhar no universo lacerdiano questionamos: quais influências sobre
sua obra e, mais especificamente, qual sua perspectiva acerca da guerra
e paz no período do recorte? Viver entre libertário/a/s e objetore/a/s de
consciência possibilitou novidades em sua produção textual? Para pen-
sar estas questões dividimos nosso texto em três momentos: inicialmen-

81
te dialogamos com a narrativa libertária de Maria Lacerda para localizar
a relevância de suas memórias para a História; depois embarcamos em
sua visão e seus relatos sobre a guerra, e, por fim, analisamos o modo
como ela escreveu, viveu e sentiu o que se entende por paz.

HISTÓRIA E MEMÓRIA NAS NARRATIVAS LIBERTÁRIAS DE


MARIA LACERDA DE MOURA

Os feminismos, ao longo da história, contribuíram para dar


voz às mulheres, que, ao longo das tradições epistemológicas e dos sa-
beres academicistas tiveram suas obras apagadas do registro público.
Invisibilizadas, suas narrativas, foram aos poucos sendo publicizadas
pela historiografia feminista e pelos estudos de gênero. Este último é
um importante campo de pesquisa, que nos anos 1980 chegou ao Brasil,
e, mobilizou esforços para tirar dos escombros aquelas vidas e suas
memórias apagadas ou silenciadas na poeira do tempo. A historiado-
ra Margareth Rago na apresentação da tradução brasileira do livro A
história repensada, do historiador britânico Keith Jenkins, nos convida a
pensar na grande virada do trabalho historiográfico. A relação entre his-
tória e passado não é linear, nem tampouco a mesma coisa. Diz a autora:

Hoje, quando novas forças sociais, étnicas, sexuais e gera-


cionais ganham espaço e respeitabilidade no mundo pú-
blico, já não se pode afirmar simplesmente que a História
é o registro do que aconteceu no passado, pois se vários
acontecimentos foram lembrados e registrados, muitos
perdem seus rastros, foram esquecidos, ou deliberada-
mente apagados89.

A grande virada epistêmica está relacionada ao ato de dar voz aos


diferentes grupos sociais, como disse Rago: “as feministas reivindicam
incisivamente muito mais do que a presença das mulheres na grande
narrativa histórica”90 e, portanto, reivindicam espaço social, cultural, eco-

89 RAGO, Margareth. A História repensada com ousadia. JENKINS, Keith. A história


repensada. 4.ed. São Paulo: Contexto, 2013. P. 10.
90 Op. cit. RAGO, 2013. P. 10.

82
nômico ou político tirando o foco da exclusividade para a luta de classes
e apontando para a pluralidade da história, entendida como narrativa de
acontecimentos que são localizados em um tempo e espaço passível de
interpretação. As reivindicações das mulheres, como defende a historia-
dora, não se limitam aos registros acadêmicos. Desde o século XIX as
feministas, sejam elas, libertárias, liberais, comunistas ou socialistas rei-
vindicaram direitos sociais mais amplos. Apagadas da memória social, as
mulheres tiveram suas vidas lapidadas no solo do esquecimento.
A historiadora Diva do Couto Muniz em seu texto Professoras
de Minas e das Gerais: desenho inconcluso de suas memórias e histórias, es-
creveu a partir das análises feministas sobre as dificuldades e os avanços
das mulheres no campo educacional. Até meados do século XIX existia
um entrave para o ingresso feminino na docência, muito embora, te-
nham existido focos de luta e de reivindicação em diferentes geografias
e épocas. A pesquisadora dialoga com o texto de Teresa de Lauretis,
Tecnologias de gênero, para pensar as experiências das professoras minei-
ras em suas resistências e seus avanços. Neste diálogo a ideia de sujeitos
engendrados toma a forma de multiplicidade, ou seja, os atravessamen-
tos de gênero, são também, perpassados por questões étnicas e sociais.
As leis eram muito rigorosas e, em sua maioria, usadas como barreira ao
ingresso delas na carreira docente. Eram usadas para criar um determi-
nado modelo de “mestra”, pois, a carreira pública na docência conferia
“distinção e respeito”. A normalização da conduta docente exigia um
assujeitamento aos dispositivos disciplinares, diz ela: “quanto à postura,
gestos, atitudes, modos de vestir-se e pentear-se, compunha o desenho
esboçado para a atuação das mulheres no magistério”91.
Para Muniz, o trabalho historiográfico na perspectiva feminista
envolve recuperar as vidas, em suas experiências, vivências e através das
memórias e dos registros que ajudam a recompor suas trajetórias, sem
com isso, perdermos de vista as limitações que envolvem o trabalho hu-
mano. As memórias produzem, também, esquecimentos, apagamentos e

91 MUNIZ, Diva do Couto Gontijo. Professoras de Minas e das Gerais: desenho inconcluso
de suas memórias e histórias. MAIA, Claudia; PUGA, Vera. História das Mulheres e do Gênero
em Minas Gerais. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2015, p. 27.

83
silenciamento. Partindo desses pressupostos devemos pensar que a recu-
peração do trabalho, vida e obra da educadora e escritora mineira exige
um grande esforço, à medida que, sendo uma forte opositora da política
e, ousada em seus ideais e de luta feminista, ela teve grande oposição.
Muito de sua produção ficou desaparecida por longa data.
Maria Lacerda deixou uma extensa bibliografia entre livros, tex-
tos jornalísticos e conferências. Apesar da timidez declarada, foi uma
grande conferencista, sendo convidada a falar em diversas cidades bra-
sileiras, bem como em outros países. Seus escritos, à época, também
circularam no país e no exterior. Foi uma pacifista, antifascista, anticle-
rical, individualista, livre pensadora. Uma intelectual ávida pelo conhe-
cimento, foi autodidata, desenvolvendo estudos em vários campos entre
eles a filosofia, a astrologia e principalmente a educação. Mas sua maior
contribuição foi, sem dúvida, a tentativa de subverter os discursos de
naturalização do feminino e domesticação das mulheres, cuja única fun-
ção de existir deveria ser a procriação dentro dos limites do casamento
burguês. Assim, ela assumiu posições revolucionárias e, principalmente,
foi antecipadora de muitos temas do feminismo contemporâneo, mas
também da história política do país.92
Ao contrário de muitas feministas burguesas do período que
buscavam apenas a inclusão em certos direitos de cidadania, a intelec-
tual mineira procurava subverter esta relação ao denunciar e questionar
seus fundamentos e a própria sociedade patriarcal burguesa, propondo
um igualitarismo mais radical entre os sexos e liberdade total do in-
divíduo. No final dos anos de 1920, a produção de Maria Lacerda de
Moura direciona-se, também, para o questionamento ao autoritarismo
do Estado e aos mecanismos de poder de uma conjuntura de militariza-
ção financiada pelo fascismo italiano.
Maria Lacerda de Moura por sua vez assumiu posições singula-
res não se ligando a nenhum grupo ou ideologia política, seja de esquer-
da ou de direita. Vislumbrava transformações mais amplas visando não

92 MAIA, Claudia; LESSA, Patrícia. Maria Lacerda de Moura: crítica à família burguesa e à
exploração feminina. MAIA, Claudia; PUGA, Vera. História das Mulheres e do Gênero em Minas
Gerais. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2015, p. 97-121.

84
à mera conquista de certos direitos, mas a libertação total das mulheres,
por isso, investiu duramente contra as formas de autoritarismo expressas
na família, na igreja e, sobretudo no Estado fascista que se instalou, com
suas ideologias nacionalistas e patrióticas. Sua pena causava tempesta-
des! Sua morte não causou alarde nem motivo para, ela ou suas ideias,
serem lembradas durante um longo tempo; ela foi esquecida e silenciada
na história política e intelectual brasileira.
Foi nos anos 1980 que a pesquisadora e educadora Miriam
Lifchitz Moreira Leite (1926–2013) fez um trabalho monumental re-
compondo um acervo há muito tempo perdido ou apagado dos registros
públicos. Foram muitos anos de pesquisa, neste período ela reuniu livros,
folhetins, jornais, cartas, fotos, entrevistas etc. A redescoberta de Maria
Lacerda de Moura fez emergir uma pluralidade de fontes que rendeu à
autora dois livros: A Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura,
publicado em 1984 pela Editora Ática, e, Maria Lacerda de Moura: uma
feminista utópica, publicado em 2005 pela Editora Mulheres. Além dos
livros ela publicou artigos, palestras e um documentário sobre a anar-
quista mineira93. Seu trabalho foi certeiro como a flecha de Ártemis, al-
çou um voo mais alto e fez chegar ao público de hoje o que ontem havia
sido silenciado. Miriam doou o acervo de suas pesquisas para o Centro
de Documentação e Memória (CEDEM), da Universidade Estadual de
São Paulo (UNESP), localizado na Praça da Sé. Situado no coração de
São Paulo, onde a feminista mineira iniciou uma guerra a guerra através
de seus escritos e conferências.
Foi, justamente, no CEDEM que encontramos a matéria Guerra
a Guerra, escrita por Maria Lacerda de Moura, no dia 19 de novem-
bro de 1927, no jornal O Combate. Trata-se de um belo texto de apoio
à George Chevé, anarquista francês, objetor de consciência, recluso na
Prison de Bonne-Nouvelle, em Rouen por ter se recusado a participar da
guerra, através do serviço militar. Ela escreveu:

Parece incrível a existência de patriotas a gritar, com as


bochechas entumecidas, infladas, a necessidade de “defesa
da sagrada Patria”.

93 Disponível gratuitamente pelo site da vimeo no link: https://vimeo.com/35898796.

85
Parece impossivel que essa gente não compreenda que a
guerra é movida pelos industriaes de armas e munições
– com a cumplicidade dos paes da Patria – e que so apro-
veita aos capitalistas e aos politicos profissionaes. [...]

O jornal cheio de parvoíces inacreditáveis é o passatempo


dos domesticados.

A domesticidade de toda a gente faz duvidar de uma as-


cenção mais alta.

E é por isso que um gesto individualista vale mais que


toda a literatura de arte e de pensamento de uma época.94

Com esse texto ela marca sua posição, não faria parte de grupo al-
gum, movida pelos ideais libertários havia se inspirado no individualismo
anarquista, que tomou grande repercussão no período das duas Grandes
Guerras. Muitas pessoas a exemplo de George Chavé preferiam a cadeia
do que matar e morrer por uma causa que não fazia sentido para eles. Ele
foi encarcerado sob a pena de “insubmissão”. A atitude dele inspirou a
escritora mineira que noticiou o caso no Brasil, nomeando Chavé como
um “rebelde não vulgar”, mas, que seu gesto havia feito vibrar de entusias-
mo a imprensa livre e a intelectualidade francesa. Usou três frases curtas e
incisivas para definir sua postura heroica: “Obedecer a minha consciência:
é a minha lei. Não quero matar. Jamais consentirei em ser soldado”95. Este
era um desconforto para as políticas militarizadas, pois, era um apelo hu-
manitário e uma máxima religiosa, que o/a/s objetore/a/s de consciência
realizavam ao assumir o não matarás! Por fim, ela indicou o endereço da
cadeia onde Chavé estava preso para que as pessoas enviassem suas cartas
de apoio.

94 MOURA, Maria Lacerda de. Guerra a Guerra. O Combate. São Paulo, n. 4560, p. 3, 19 nov.
1927.
95 Op. Cit. Moura, 1927. P. 3.

86
GUERRA A GUERRA: A LUTA DE MARIA LACERDA CONTRA O
NAZIFASCISMO

As guerras tiveram entre as suas motivações as disputas territo-


riais, pelo poder e pelo capital, foram movidas, em parte, por governos
totalitários, por ditadores, foram, muitas vezes, financiadas pelo capital
advindo de grandes empresários, de banqueiros sedentos pela acumula-
ção financeira, por narcogovernantes, por ruralistas sanguinários, mas,
sobretudo, sempre tiveram forte resistência de seus opositores. Sobre
elas muito se escreveu. Histórias escritas com sangue, que giram, em sua
maioria, na órbita do poder e do dinheiro.
A pesquisadora feminista zapatista Patrícia Karina Vergara
Sánchez em conferência realizada no Brasil utilizou o termo narcogo-
vernantes para referir-se as disputas territoriais motivadas pelo tráfico
de drogas e de armas. Ela nomeou de escritura necrófila as narrativas
sobre as constantes guerras na América Latina, diz ela:

Estes anos, também, significam anos de uma escritura ne-


crófila da qual antes havia falado sobre os corpos de mu-
lheres e homens, algumas das vítimas foram combatentes
na luta por controle de território, opositore/a/s do narco-
tráfico, gente do povo, e, ao que parece, aqueles que denun-
ciaram ou desistiram dos políticos partidários aliados ao
narcotráfico, os quais os meios de comunicação nomeiam
de narcogoverno. Corpos destroçados aparecendo em lo-
cais públicos, decapitações, macabras exposições de corpos
pendurados nas pontes das avenidas. Histórias escritas li-
teralmente com sangue.96

A relação entre produção e a venda de armas e o tráfico de drogas


é um dos motores do que hoje definimos como narcogoverno, ou seja, a
promoção de milícias vinculadas ao crime organizado e promovidas pelo

96 Tradução livre realizada por Patrícia Lessa durante o período em que a pesquisadora mexicana
participou de atividades de intercâmbio na Universidade Estadual de Maringá (UEM), em outubro
de 2014. Além das atividades na UEM a intercambista foi convidada para ministrar a conferência
de abertura do IV JORESP/II CISEX. SÁNCHEZ, Patricia Karina Vergara. El cuerpo como
pedagogía del horror y de la utopía. IV JORESP/II CISEX – UENP, Jacarezinho, Paraná, 29 out.
2014. p. 2.

87
Estado, através de políticos envolvidos nestas contravenções. O termo
narcogovernantes é recente na historiografia, porém, sem nomear deste
modo, Maria Lacerda de Moura articulava a relação entre a venda de ar-
mas e o narcotráfico com o apoio do Estado para favorecer o acumulo de
riquezas gerando, em consequência, as guerras. A obra Civilização: tronco
de escravos, publicada em 1931, foi escrita durante o período que ela viveu
e conviveu com os desertores da primeira Guerra Mundial. Eram pessoas
que, fugindo da guerra, saíram da Itália, Espanha e França favorecendo
a circulação de conhecimentos, de informações e a troca de experiências.
Nesta obra ela direciona a crítica para a relação entre a indústria em ex-
pansão e o comércio internacional com as políticas patrióticas e o apoio
da igreja e da ciência. O que era considerado progresso para a burguesia
ela percebia como ganância, acúmulo de capital e, portanto, um trampo-
lim para as guerras, escreveu: “Todo o delirio de progresso da civilização
industrial tem por fim encher os cofres fortes dos reis das forjas e do po-
der, fomentar as guerras de competição comercial, aumentar os impostos
e sustentar os paes da Patria dos histriões politicos. Estamos fartos de o
saber e o repetir”.97
Sua luta era ampla. Se por um lado havia os poderosos acumu-
lando fortunas, por outro lado, as pessoas compactuavam com seu silên-
cio e com o consumismo. Ela via nas drogas, no álcool e nas festas uma
forma de “escravidão”, enquanto o povo ficava distraído com o carnaval,
o cinema, a moda ou mesmo com os esportes, o acúmulo de capital era
forjado por poderosos políticos, empresários e banqueiros, com o apoio
inconteste do clero e de cientistas. Ela perguntou: “E a morfina? E o
eter? A cocaína?”98. O capitalismo aproveitava tudo, tudo virava mer-
cadoria. Daí as conexões que ela faz, na obra citada, entre a indústria
bélica, química e a, então nascente, indústria do entretenimento.
Margareth Rago99, em sua obra Do cabaré ao lar: a utopia da cida-

97 MOURA, Maria Lacerda. Civilização, tronco de escravos. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1931. P. 226-227.
98 Op. cit. MOURA, 1931. P. 171.
99 RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista,
Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. P. 148 – 149.

88
de disciplinar e a resistência anarquista, aborda “as práticas condenáveis”
para o/a/s anarquistas da época, ou seja, as práticas vinculadas aos praze-
res da carne, sem nenhuma relação com a revolução ou com a mudança
social. O carnaval, as festas, as drogas, o álcool, o sexo, a prostituição, os
esportes, a moda, eram algumas das práticas condenadas por serem con-
sideradas alienantes e, sobretudo, por não contribuírem em nada para o
fim do capitalismo, muito ao contrário, eram práticas vistas como um
alimento que engordava os cofres e bolsos das autoridades. E, em con-
sequência, afastavam cada vez mais a possibilidade de uma revolução
popular. O moralismo entre alguns grupos libertários foi percebido ao
longo das análises históricas como uma forma de garantir o cumpri-
mento da revolução. Portanto, não é exclusividade nos escritos de Maria
Lacerda a crítica mais severa as formas de lazer exercidas pela burguesia.
O nazifascismo para a autora foi uma forma de alavancar a indús-
tria bélica em ascensão. As grandes invenções, tais como: o avião, o sub-
marino, as descobertas da indústria química foram usadas para o acúmulo
de riquezas às custas do extermínio em massa. Com apoio do Estado, as
indústrias bélica e química tiveram um crescimento exorbitante durante
o período entre as duas Grandes Guerras. Os governos totalitários foram
se impondo através da força e, por isso, sua codependência em relação a
estas duas indústrias. Nas fontes da pesquisa selecionadas a autora mineira
deliberava que, para além do apoio do Estado, o apoio da Igreja foi fun-
damental para a imposição de poder totalitário sobre o grande “rebanho
humano”, terminologia que ela, usualmente, referia-se para criticar a apa-
tia das pessoas.
Em 1934, Maria Lacerda publicou o livro Fascismo: filho dileto
da igreja e do capital, obra na qual ela abordou de forma mais específica
a ascensão do fascismo e do nazismo na Europa, bem como, suas reper-
cussões pelo mundo. Faziam, praticamente, seis anos que ela havia saído
da cidade para viver entre objetores de consciência. Foi neste contexto,
na comunidade autogestionária rural em Guararema, interior de São
Paulo, que ela lançou uma obra, que de modo mais específico, abordava
o fascismo. Era um período em que a resistência libertária estava se
articulando e organizando-se em grupos, pois, eles eram alvo de perse-

89
guições por parte de ditadores mundo a fora. Destes encontros surgem
alguns importantes registos para a historiografia.
A obra Fascismo: definição e história, foi escrita pela anarquista
Ítalo-uruguaia, Luce Fabbri (1908 - 2000). Filha dos anarquistas Luigi
Fabbri e Blanca Sbriccoli, ela deixou um importante legado sobre os
acontecimentos da época. Em 1929, juntamente com seu pai, sua mãe
e irmãos ela se mudou para o Uruguai e passam a viver em uma comu-
nidade anarquista. Ela, assim como Maria Lacerda, escreveu sobre a as-
censão do totalitarismo na Itália. Para ela “a data que marca a legalidade
mais ou menos completa da ação fascista não é a tomada de poder; mas
a de 3 de janeiro de 1925, o dia que Mussolini fez o decisivo discurso
no qual assumiu a responsabilidade pelo assassinato de Malteotti”100.
No texto ela relatou como a violência foi tomando corpo pelas ruas e
cidades italianas, até tornarem-se algo comum. Até virar um ato heroico
bater, torturar e matar as pessoas que não pactuavam com o sistema.
O fascismo teve um crescimento rápido e ultraviolento. Em 1922
aconteceu a marcha sobre Roma, nela os adeptos usaram o poder de seus
símbolos e legendas para criarem uma propaganda difundindo as suas
metas, os seus princípios e as suas ações. Mussolini usou da violência das
milícias nomeadas de camicie nere (camisas negras) para instigar o terror
e perseguir, torturar e matar seus opositores. Em suas ações, foi inter-
ditando partidos políticos, sindicatos e agregando o apoio da burguesia
industrial e da igreja. A escritora italiana relatou como o fascismo soube
usar a publicidade, o dogma cristão e o capital da burguesia industrial para
construir o totalitarismo e fomentar o ódio e o extermínio a todo/a/s seus
opositore/a/s.
De certo modo, o nazismo alemão, banhou-se do ódio e do san-
gue jorrado da Itália. Em 1933, Hitler tomou o poder, criou o Partido
Nazista, perseguiu os opositores ao Regime e, mais especificamente,
apropriou-se de um discurso científico, tido como verdade universal,

100 FABBRI, Luce. Fascismo: definição e história. Tradução Fernanda Grigolin, Rodrigo Millán e
Aquela Mulher do Canto Esquerdo do Quarto; prefácios Elena Schembri e Geraldo Garay; epílogos
Margareth Rago, Ivanna Margarucci e Thiago Lemos; notas Dario Marroche et al. São Paulo: Tenda
de Livros: Publication Studio São Paulo, 2019; Montevideo: Microutopías, 2019. P. 17.

90
que propunha a superioridade racial dos arianos. Foi neste contexto que
os judeus foram perseguidos, torturados e mortos em uma escalada de
violência e de carnificina sem precedentes. Na Alemanha, assim como
na Itália, o apoio da burguesia industrial e do Clero foi uma força funda-
mental para a consolidação de um Estado Totalitário, baseado na força
física e no uso de pesada artilharia. Com o avançar das forças milicianas,
Maria Lacerda de Moura escreveu seus registos e deixou um legado
destas memórias das guerras:

Mussolini e Hitler são os dois braços seculares da Igreja


neste momento histórico. Representam o desespero do
Cristianismo pretendendo reorganizar os Autos da Fé e
acender outra vez as fogueiras da Inquisição. As aparências
têm outro significado. Cristo é um mito muito alto: não
cabe dentro do Cristianismo… O Cristianismo é anti-cris-
tão. É a negação absoluta das palavras de doçura e amor de
Jesus de Nazaré. O Cristianismo, para mim, é significação
mais perfeita de uma civilização voraz de déspotas e es-
cravos. Quando digo Cristianismo, eu me refiro à ordem
social burguesa capitalista. É a civilização do bezerro de
ouro. O Estado confundiu-se de novo com a Igreja, não no
sentido divino como outrora, mas, no domínio econômi-
co-político. 101

Entre os judeus perseguidos pelas milícias de Hitler estava


Einstein102 dentre outros tantos cientistas e intelectuais registrados nos es-
critos lacerdianos. O livro prossegue mostrando a colaboração da igreja, que
para a autora mineira era algo de extrema gravidade, pois, usando das pa-
lavras de Jesus Cristo, que pregou a benevolência, a compaixão e o amor, a
igreja entrava em contradição ao usar do dogma para apoiar o extermínio
em massa. Em 1933, ela já havia publicado o livro Serviço obrigatório para a
mulher? Recuso-me. Denuncio!. Nesta obra ela marcou sua posição na frente
de batalha:

101 MOURA, Maria Lacerda de. Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital. São Paulo:
Editora Paulista, 1934. P. 17-18
102 Op. Cit. MOURA, 1934. P. 22-24.

91
Sem Pátria, sem Fronteiras, sem Família e sem Religião...
“Afirmando” a Humanidade, tenho que negar a Cidade”...
Fora da Lei: recuso os direitos de Cidadania. O Estado,
como a Igreja, são de origem divina... Patriotismo, na-
cionalismo, fronteira, pavilhão nacional são corolários.
Ídolos vorazes, os Deuses dos exércitos e dos autos de fé
exigem vítimas em massa.

A minha família sou eu quem a escolhe.

A Lei impede o direito da escolha e os costumes solidi-


ficam as leis.

A Lei nada tem que ver com as minhas predileções afe-


tivas.

Uma sociedade capaz de organizar perversamente, legal-


mente, de tal modo, os costumes bárbaros de acumular
riquezas à custa da fome, é de tal requinte de crueldade
que não merece absolutamente nenhuma concessão.

Sejamos objetores de consciência agora que, no Brasil,


discutem-se os projetos de uma Constituição modernís-
sima, tocando as raias do fascismo.103

A esta altura de sua obra sua voz ecoava entre grupos libertários em
vários países, ela engrossava as fileiras da resistência pacífica, negando-se a
matar em nome de um Estado que coadunava com o extermínio em massa,
e, que assombrava parcela do mundo ao ter notícia do que se passava nos
campos de extermínio da Alemanha. Partindo da crítica ao nazifascismo ela
chegou a uma crítica mais ampla, fundada em princípios de libertação, ela
questionou os modelos de Estado, então emergentes, e afrontou, também, o
modelo comunista. Assim ela se expressa: “A concepção fascista do Estado
é de um ser com direito a tudo, de origem divina. O indivíduo é absorvido
pelo Estado: é apenas um número, elemento, material humano a nova con-
cepção do Estado não só fascista como bolchevique”104

103 MOURA, Maria Lacerda de. 1933. Serviço militar obrigatório para mulher? Recuso-me!
Denuncio!. 3. Ed, S/C: Opúsculo Libertário, 1999. P. 15-16.
104 Op. Cit. MOURA, 1999. P. 17.

92
O Estado totalitário articulava os poderes governamentais e
militares com o moralismo cristão, sobretudo, para ajudar na seleção
daquilo que poderia ser lido e, em consequência, definir os livros impró-
prios, que atentavam contra a moral, a família e aos dogmas religiosos.
Lacerda ironiza, nomeando de “cultura da santa ignorância” um decreto
papal medieval que elegeu os livros que deveriam ser queimados em
praça pública a fim de dar o exemplo ao povo e mostrar o poder “divino”.
Neste histórico ela retomou as bibliotecas que foram condenadas pelos
cristãos, que por longo tempo viam as “ciências como absurdas e tolices”,
portanto, também elas condenadas a permanecerem no silêncio. Aquilo
que foi o horror aos livros na Idade Média, ela percebia como sendo
reeditado pela polícia da ordem social incumbida de exterminar com as
bibliotecas dos revolucionários. O horror aos livros e ao conhecimento
científico na história do nazifascismo ganha um espaço nos registros da
educadora acostumada aos estudos e à disciplina da leitura e da escri-
ta.105 Algum tempo depois, no Brasil, sua voz, também, seria silenciada
pela polícia política de Vargas.
Nas obras Fascismo: filho dileto da igreja e do capital e Serviço mi-
litar obrigatório para mulher? Recuso-me! Denuncio! A autora abordou a
questão militar e bélica, suas estratégias e alianças para formar o mo-
delo de Estado autoritário, aliado à burguesia industrial e ao clero. Na
obra Civilização, tronco de escravos ela inicia discorrendo sobre as guerras
científicas, apontando alguns núcleos que serviram para consolidar de-
terminado tipo de governo, colaborar na fabricação de armas, ela escre-
veu: “Todo o genero humano prepara-se, cada vez mais rapidamente,
para o suicidio coletivo, através das guerras cientificas”.106 O Estado, a
Igreja e a Ciência foram os alvos da crítica lacerdiana no combate ao
nazifascismo. Em meio as críticas ela questionou se: “não seria preferivel
fazer desaparecer as causas das guerras?”, para ela, em sua visão de mun-
do, certamente era a forma mais adequada, mas, ela estava ciente de que
o mundo não era aquilo que se passava em seu universo particular, então,
ela mesma respondeu que “isso não é possivel...”107.

105 Op Cit. MOURA, 1999. P. 35.


106 Op Cit. MOURA, 1931. P. 62.
107 Op Cit. MOURA, 1931. P. 25.

93
PAZ, OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA E FRATERNIDADE UNIVERSAL

Maria Lacerda de Moura era anticlerical, como vimos, no tó-


pico anterior, ela criticou a aliança entre a igreja católica e o Estado
autoritário e militarizado, apontando a contradição daqueles que pre-
gam as palavras de Jesus Cristo, porém, apoiavam o extermínio hu-
mano. Mas, cumpre destacar que ela era uma mulher espiritualizada,
e, em consonância com os estudos da época, foi leitora dos textos da
Doutrina Espírita, de fundamentação cristã, bem como, dos textos ela-
borados pela Sociedade Teosófica, criada na Inglaterra, pela escritora
Helena Petrovna Blavatsky, nascida na Rússia, em 1831. Na Sociedade
Teosófica os estudos envolviam a ioga, os fenômenos paranormais, o
Budismo, o Hinduísmo e o Cristianismo. Em alguns textos de Maria
Lacerda ela cita Gandhi, Jesus Cristo, bem como, alguns anarquistas
espiritualistas108. Na primeira página do livro Civilização: tronco de es-
cravos há uma apresentação das obras na seguinte forma: “da autora”,
alguns que estavam publicados até o ano de 1931, os livros “no prelo”,
os livros “a sair” e, por fim, os livros “em preparo”. É interessante notar
que entre as obras que estavam sendo preparadas encontrava-se o se-
guinte título: Khishnamurti, Mahâtmâ Gandhi e Han Ryner. Sobre esta
obra não encontramos indícios nos achados de Miriam Leite ou nou-
tros arquivos, então fica o questionamento: ela chegou a escrever algo?
Ficaram perdidos alguns manuscritos da autora ou a autora não havia
iniciado a redação? Ainda é envolto em uma aura de mistérios seu en-
volvimento com estudo espiritualista. Nas obras selecionadas para este
estudo encontramos alguns indícios do envolvimento da anarquista com
as questões, citamos:

Já vimos que o Velho Testamento é muito novo … por-


quanto o que resta do simbolismo de Moisés é significação
esotérica. Moisés era hierofante. Iniciara-se nos mistérios
egípcios e escreveu um tratado de ocultismo que foi reajus-
tado pela Igreja aos seus fins de dominismo. A Igreja per-

108 LEITE, Miriam Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo:
Ática, 1984. p. 161-162.

94
deu a chave do simbolismo de Moisés e aferrou-se à letra
morta, ao cadáver do pensamento. A religião de Moisés era
o culto dos astros. As doze tribos de Israel simbolizavam os
doze signos do Zodíaco. Mas não propomos neste momen-
to a estudar o simbolismo esotérico do Velho Testamento,
nem as Leis do clericalismo antigo. Vejamos, antes, as ori-
gens do pendor do Clero para escravização dos seres hu-
manos. O Velho Testamento é escravocrata e a Igreja ou o
Cristianismo primitivo ilustrou o Velho Testamento … É
o circulo vicioso. Um serviu ao outro.109

Demonstrando um conhecimento sobre ocultismo ou ciên-


cia ocultas, a autora utilizou outras fontes para abalar os pilares da reli-
gião cristã, que ao longo de sua história, tratou de modificar as Antigas
Escrituras para beneficiar-se economicamente. Este sentido, utilitarista,
não vinha de encontro com os nobres ideais de paz, amor e fraternidade,
portanto, eram alvo de sua crítica. Além disso, a comparação das doze
tribos de Israel com os doze signos do zodíaco nos levam a pressupor um
estudo, mais aprofundado sobre a Astrologia. Que viria a ser seu trabalho,
alguns anos depois, quando ela se mudou para a cidade do Rio de Janeiro,
em 1938, fugindo da repressão militar do governo Vargas, e, naquele novo
contexto urbano ela foi trabalhar na Rádio Mayrinke Veiga.110
O filme Maria Lacerda de Moura: trajetória de uma rebelde, pro-
duzido por Ana Lúcia Ferraz e Miriam Moreira Leite no Laboratório
de Imagem e Som em Antropologia/Fapesp, em São Paulo, é muito
esclarecedor. Nele Miriam Leite aparece em algumas cenas falando so-
bre a sua pesquisa e mostrando algumas fontes, por ela encontradas. Na
sua primeira aparição ela explicita o motivo da saída da educadora de
Barbacena e sua mudança para a cidade de São Paulo. Segundo a pes-
quisadora, a vida de Lacerda em Barbacena estava ficando difícil graças
as suas leituras espíritas e sua orientação anticlerical, bem como, por

109 Op. Cit. MOURA, 1934. P. 37.


110 MARIA LACERDA de Moura: trajetória de uma rebelde. Produção de Ana Lúcia
Ferraz e Miriam Moreira Leite. São Paulo: Laboratório de Imagem e Som em Antropologia/
Fapesp, 2003. 1 fita de vídeo (33 min.), VHS, son., color. Disponível em: < https://vimeo.
com/35898796>. Acesso em: 13 fev. 2020.

95
suas posturas feministas muito avançadas para a época e, sobretudo, para
o contexto de uma cidade do interior. Já mais ao final do documentário
a oradora explica que, ao mudar para o Rio de Janeiro, a libertária mi-
neira envolveu-se nos estudos ocultistas e trabalhou como Astróloga na
Rádio Mayrinke Veiga. Estas são, também, algumas pistas de seus es-
tudos e práticas espiritualistas. Porém, devemos pensar que nos estudos
acadêmicos a perspectiva materialista imperou por longo tempo, tratan-
do com desprezo assuntos fora de sua alçada. Um registro publicado na
ocasião de seu falecimento ilumina a questão. No CEDEM uma ma-
téria jornalista, datilografada em três folhas, nos chama a atenção pela
riqueza de informações a respeito de Maria Lacerda. O título da matéria
anônima é: Uma escritora, publicada no jornal O Estado de São Paulo, no
dia 29 de março de 1945, citamos alguns de seus trechos:

Um jornal do Rio de Janeiro, na seção de avisos fúnebres,


publicou um convite que, com certeza, passou desaperce-
bido a muita gente. Foi o convite para o enterro da Sra.
Maria Lacerda de Moura. Em outros jornais não encontra-
mos nenhuma palavra a esse respeito, nem sequer as linhas
habituais com que se registra o falecimento das pessoas
mais modestas.

No entanto a Sra. Maria Lacerda de Moura deixou fortes


vestígios da sua passagem pela terra. [...]

Trazia na alma, cheia de idealismos e desprendimentos,


toda a inquietação do seu tempo. Daí, talvez, os obstá-
culos que encontrou na carreira, e que foram crescendo
a cada passo, a ponto de lhe impedirem a conquista de
um lugar de relevo no nosso mundo intelectual, lugar que
tinha direito. [...]

Um dia, desgostosa da multidão, retirou-se para


Guararema e lá viveu num rancho, à beira de uma estrada.
Mais tarde, lá mesmo, não encontrou a paz que desejava e
retirou-se para o Rio de Janeiro, fixando-se num daque-
les subúrbios que parecem a mil quilômetros do mundo.
Estudava, como sempre. E o seu estudo foi tão profundo

96
que acabou por perder contato com os homens. Penetrou
pela porta estreita da metafisica, libertou-se, alcançou cli-
mas tão altos e tão diferentes que quando ela falava os
homens do quarteirão sorriam. [...] Ela esqueceu-se do
mundo, e o mundo esqueceu-se dela. Há bem uns dez
anos que o seu nome não aparecia como antigamente,
no alto de um livro ou de um folheto, ou mesmo numa
coluna de jornal. Suas últimas colaborações foram para
o “Jornal do commercio”. Mas isso já faz muito tempo.
Ninguem mais se lembra daqueles artigos, uns artigos de
cultura que ela convertia em artigos de primeira necessi-
dade. [...]

Um dia, quando voltar a paz dos espíritos, quando se fi-


zer o balanço de nossa época, seu nome será lembrado.
A justiça é uma deusa velha, tão velha que anda devagar
arrastando os pés pesados de chumbo.111

A matéria que anuncia o falecimento de Maria Lacerda, em São


Paulo, é rica em detalhes sobre a sua vida e sobre suas lutas e estudos. Em
seus livros escritos em Guararema é possível perceber que, realmente, a
vida simples no campo, para ela era um encontro consigo mesma, com a
natureza, e, portanto, uma forma de buscar a paz. Mas, os governos auto-
ritários não atacam somente as pessoas na cidade. A comunidade rural foi
alvo da ditadura Vargas, dentre as pessoas que ali viviam, algumas foram
presas, outras, como ela, fugiram e buscaram refazer suas vidas longe da
guerra. O certo é que ela, até o fim resistiu, não abdicou dos estudos e
navegou por outros caminhos, estudando os textos científicos, bem como
os religiosos.
A guerra entre ciência e religião foi paradigmática na Idade
Média, e sobre esse tópico ela escreveu, como vimos na discussão da
obra Civilização: tronco de escravos. Na modernidade as diferenças entre
ciência e religião ganharam novos contornos e ficaram mais complexas
à medida que muitos textos acadêmicos começaram a lançar um olhar
questionador sobre esse perrengue histórico. No livro Entre colunas,

111 UMA ESCRITORA. Notícias diversas, O Estado de São Paulo, n. 23, a. 165, p. 6, 29 mar. 1945.

97
Roberto das Neves112 escreveu sobre os anarquismos do início do século
XX e nos apresentou um bom número de exemplos que agregavam as
lutas libertárias às questões religiosas, ao pacifismo, ao naturismo, ao
cristianismo libertário e ao neo-estoicismo.
Maria Lacerda foi uma pacifista, mas, com uma inteligência,
perspicácia e ousadia que lhe permitia travar batalhas usando a refle-
xão e a crítica pungente. Ela não deixava passar nada em branco, esta-
va sempre atenta aos acontecimentos de sua época. Em 1928, fez uma
severa e coerente crítica ao Prêmio Nobel da Paz. O famoso francês
Barão de Coubertin, mentor dos Jogos Olímpicos Modernos foi a
pessoa premiada. Era um boxeador, rico e de família nobre e influen-
te na política. Ele criou uma versão moderna e mundializada do que
havia ficado conhecido na Antiguidade como Jogos Olímpicos. Criou
o Comitê Internacional Olímpico e se elegeu seu primeiro presidente.
Não admitia que as mulheres competissem, pois, seu argumento fazia
eco aos postulados do período, acreditava na inferioridade física, fisio-
lógica e mental das mulheres.113 Era rigoroso em sua recusa com relação
a participação feminina nos esportes. Com o mesmo rigor que julgava
as mulheres de seu tempo, foi julgado e condenado pela pena severa na
anarquista brasileira: “Ninguem me convencerá de que o ‘box’ tem por
objetivo a paz”.114
Em seus principais argumentos ela questionava os motivos de
um atleta ganhar o Nobel da Paz, primeiramente, pelo fato do esporte
ser uma atividade na qual a rivalidade é central, o outro argumento é
que o boxe é um esporte que envolve uma luta física, agressiva, e tam-
bém, que os fins da política desportiva são econômicos e não pacifistas.
Muito embora, tenha existido um acordo internacional de parar a guerra
durante a realização das Olimpíadas, isso, nunca aconteceu. Exemplos
não faltam, como os Jogos realizados na Alemanha nazista, diante das
câmeras internacionais, mostraram a perseguição racista que acontecia a

112 Op. Cit. NEVES, 1980. p. 212-220.


113 LESSA, Patrícia. O sexo a quem compete. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio
de Janeiro, a. 10, n. 108, p. 52-55, set. 2014.
114 Op. Cit. MOURA, 1931. p. 56.

98
olhos nus. Os Jogos de 1968, primeira edição na América Latina, acon-
teceu no México durante a ditadura que assombrava vários países deste
continente, foi uma edição marcada pelo racismo e pelo machismo. Na
pesquisa “O sexo a quem compete” foram encontrados relatos jornalísti-
cos que noticiam um grande massacre contra estudantes que aconteceu
durante a abertura dos Jogos e que levou muitos para a cadeia e outros
tantos ao cemitério.115 Em sua crítica, Maria Lacerda foi implacável,
chamando de hipócrita a reação da imprensa, ao aplaudir a premiação,
sendo que nas seções esportistas os anúncios comerciais e empresariais
pagam para promover o esporte, tido como um negócio altamente lu-
crativo, e não, uma política pacifista nos termos dela e de suas inspira-
ções intelectuais e religiosas. Para ela, o esporte promovia a guerra sem
armas, seja nos campos, ginásios ou estádios, promovia o nacionalismo
e o patriotismo na rixa entre o “melhor do mundo”. E, como qualquer
política, promovia a concorrência.
Como um exemplo da guerra entre nações, ela citou um caso
relatado no jornal fascista, Il Piccolo, que no dia primeiro de setembro
de 1928, na matéria intitulada Aclamações vivíssimas comemorava o es-
pancamento de um atleta francês, que depois de perder a prova de saltos
e corridas para a equipe da Itália, foi agredido fisicamente. A matéria
comemorava o feito e dizia que era fruto dos corajosos homens patrió-
ticos que demonstram a força e o poder da Itália fascista. Com isso, ela
questionou: “o premio Nobel... (da pólvora?...) da paz, é um simbolo?”116
Para Maria Lacerda, a paz era uma conquista pessoal, intrans-
ferível, árdua, que iniciava através de uma jornada interior. Começando
pela subjetividade, tranquila, harmonizada com a natureza e com a le-
veza de quem sente e percebe o amor e a fraternidade como metas uni-
versais para alcançar algo a mais. Ela apostava na paz para a constru-
ção de uma Fraternidade Universal. Miriam Leite, ao palestrar sobre
o pacifismo na obra de Lacerda relata que ela escreveu, no dia dois de
novembro de 1935, no jornal A Lanterna, um apelo às mulheres brasilei-
ras pela criação do Comitê Feminino Contra a Guerra e em Defesa da
115 Op. Cit. LESSA, 2014. p. 52-55.
116 Op. Cit. MOURA, 1931. p. 62.

99
Paz Universal, da Cultura e da Humanidade. No texto ela argumentava
que a Internacional do Pensamento deveria suprimir a Internacional do
Armamento.117
Sua luta era pela vida, um sim à vida, ao pensamento, a razão. Contra
a guerra a solução era a objeção de consciência. Tal como Han Ryner, ela
acreditava que a atitude de preferir a prisão ao alistamento militar, que te-
ria como consequência a obrigatoriedade de matar aqueles considerados
os inimigos dos governantes, era um ato de amor. Assim ele escreveu: “O
desertor social, semeia amor e sabedoria”118. A guerra era o embrutecimento
da humanidade, a civilização estava escravizada pelas invenções industriais,
pelos jogos, pela moda e pelos costumes urbanos. Somente o amor, a vida
simples ligada à natureza traria a paz, assim escreveu:

Rotineiros, embrutecidos pela civilização industrial, ma-


quinas de correr, os “Laboratorios” da parabola – não te-
mos tempo para comer e amar sossegadamente...

É comer ás pressas e satisfazer a necessidade do instinto


sexual voando, pulando assustados, o cercado alheio, para
recomeçar indefinidamente a corrida vertiginosa.

Si nos deixássemos dormir cinco minutos á sombra da


arvore da lenda oriental quem sabe quanta felicidade nos
adviria desse repouso prometedor a nos confortar o cora-
ção longe do ruido surdo, monotono, hostil, diabólico das
maquinas triturantes desta civilização de idiotas a correr
ofegantes para a morte.

Pobres que não conhecem a satisfação plena de sobrieda-


de epicurista. Desgraçados que nunca souberam o que há
de divino no Amor, no puro e santo Amor desinteressado,
ingenuo, simples, virgem, no Amor que não sabe de co-
digos nem de sacerdotes ou de proclamas, no Amor que
ignora si há leis ou sociedade, que não vive do sacrificio

117 LEITE, Miriam Moreira. O Pacifismo de Maria Lacerda de Moura (1887-1945). Anais
do XXIII Simpósio Nacional de História: História Guerra e Paz – ANPUH, Londrina, 17-22 jul.
2005b. CD-ROM.
118 Op. Cit. LEITE, 2005a, p. 29

100
inaudito da prostituição, que não é exclusivista nem as-
sassino, que não tem ciúmes nem exigencias, que recebe
o que se lhe dá e devolve centuplicada a oferta de outro
coração.

Só a volta á natureza, a serenidade simples do campo, a


sobriedade, nos dão ideia de que é possivel fugir da lou-
cura coletiva da civilização industrial e sentir a alegria de
viver.119

Ela descobriu e viveu muitas coisas novas em Guararema. A ex-


periência no campo, na vida simples, no convívio com pessoas de vários
países a tornou uma cidadã do mundo. Era contra o patriotismo, pois, es-
tava ligada a uma rede bem mais ampla, universal. Dentre suas narrativas,
certamente, o texto Oração, escrito em trinta e um de dezembro de 1932,
no jornal A Plebe, relata um momento de paz, de encontro, de amizades
fraternas e de um profundo vínculo com a religião, entendida em seu sen-
tido linguístico, de re-ligação, consigo, com o mundo, com o amor e com
a espiritualidade,

[...] Gloria à Liberdade!

Não mais nos sirvamos de capazes e escravos, lacaios do


dominismo ou do servilismo da covardia do rebanho so-
cial.

A minha pátria é o meu coração.

A minha pátria é a minha Razão.

A minha pátria é o Universo.

A minha pátria não tem fronteiras: vai até o coração


imenso de todo o gênero humano e considerado nas uni-
dades individuais.

A minha Religião é a Religião do Amor e da Beleza.

119 Op. Cit. MOURA, 1931. p. 232–233.

101
A minha metafísica livre é embalada no “sorriso da dúvi-
da e na música do sonho”.

É um poema... Não tenho Religião, porque minh’alma


é profundamente religiosa... da Religião do Amor, da
Beleza, da Sabedoria.

Venham a mim, ó meus irmãos, amigos e inimigos.

A todos eu amo com Sabedoria do Coração.

Apertemo-nos as mãos no gesto altivo e nobre e gran-


de e forte de Solidariedade Individual – para a Paz entre
os humanos, para novos e mais altos destinos no seio da
Harmonia Cósmica.

Gloria à Liberdade!

Gloria à Sabedoria!

Gloria à Beleza!

Gloria ao Amor!

Gloria a suprema Beleza do Amor no coração dos seres


humanos.

Gloria a tudo que vive e soluça e canta e sonha na es-


calada magnífica – para além do Tempo e para além do
Espaço...

Gloria a todas as estupendas maravilhas do Universo


de que cada Ser livre é um Centro irradiador de Força e
Beleza, de Amor e Sabedoria.120

120 MOURA, Maria Lacerda de. Oração. 1932. PRADO, Antonio Arnoni; HARDMAN,
Francisco Foot (Org.). Contos anarquistas: antologia da Prosa Libertária no Brasil (1901-1935).
São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 33-34.

102
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Difícil agarrá-la por palavras, definições ou teorias, Maria


Lacerda de Moura foi uma das vozes mais singulares do anarquismo e
do feminismo no início do século XX. Em seu encontro com o/a/s li-
bertário/a/s de Guararema se apaixonou pela ideia de desertar da guerra
e preferir a paz. Seu ativismo antifascista era irmanado ao pacifismo.
A guerra era o resultado da aliança entre políticos profissionais, com a
burguesia industrial e o clero. Inspirada em Han Ryner, Tolstoi, Gandhi,
Jesus Cristo, Romain Rolland, Helena Blavatsky não hierarquizava os
conhecimentos, mas, bebia de várias fontes para procurar as respostas
para um mundo em chamas.
A violência revolucionária não era um método adequado para a
transformação social, que exigia a sua supressão, por isso, os desertores da
guerra, objetores de consciência, com os quais conviveu em Guararema
imprimiram nela os traços de um esforço individual como resposta co-
rajosa e nobre aos alistamentos obrigatórios. Não a guerra, não ao pa-
triotismo, não à violência são as marcas de seus textos aqui estudados. A
história do passado nos ajuda a iluminar as questões do hoje. Ao vermos
um Brasil dividido e instigado pelo ódio, pela ignorância, pelo abandono
de políticas públicas, sobretudo para a educação e para a saúde, pelas
campanhas de moralização da escola, propostas para catequizar indí-
genas, eliminar o povo negro, pela crescente onda de feminicídio e pela
barbárie estampada nos diários e redes de informação virtual, considera-
mos que reinscrever Maria Lacerda de Moura na História Pública é “um
artigo de primeira necessidade”, como escreveu-se no texto anônimo. O
balanço das ditaduras do passado está sendo feito e, com ele, as vozes
apagadas ressoam como fantasmas que nos incomodam ao percebermos
algumas continuidades. Mas, ela, certamente havia encontrado a paz,
mesmo em meio à guerra, lutou com as palavras e o título de sua última
palestra, O Silêncio diz muito sobre as consequências do autoritarismo
político e da injustiça econômica. Sua voz, ainda, ecoara mundo a fora,
porquanto, os arquivos mortos estão sendo reanimados.

103
REFERÊNCIAS
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Aquela Mulher do Canto Esquerdo do Quarto; prefácios Elena Schembri e Geraldo Garay;
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UMA ESCRITORA. Notícias diversas, O Estado de São Paulo, n. 23, a. 165, p. 6, 29 mar. 1945.

104
GÊNERO E RESISTÊNCIA NA NARRATIVA
DE AUTORIA FEMININA DA PÓS-
MODERNIDADE: A REPRESENTAÇÃO DA
IDENTIDADE FEMININA EM DIVÃ, DE
MARTHA MEDEIROS

Maiara Cristina Segato

RESUMO
Embora tenha permanecido invisível na historiografia literária, a mulher sempre pro-
duziu literatura. Contudo, foi a partir de Clarice Lispector, com a publicação de Perto
do coração selvagem, em 1944, que se deu início à tradição literária feminina, no cená-
rio brasileiro, embora anteriormente tenhamos contribuições femininas importantes,
como, por exemplo, Rachel de Queiroz. Enquanto as escritoras anteriores à década de
1990 apresentavam a figura feminina sufocada pela repressão falocêntrica e o questio-
namento dessa condição, a partir dessa década, então, começaram a apresentar uma
mulher que se insere em um novo quadro na sociedade pós-moderna, alterando o seu
lugar social, ressignificando seu curso e discurso e, de forma mais contundente, bus-
cando resgatar a identidade bloqueada pela marginalização e resignação. A produção
de autoria feminina que emerge nesse contexto, além de descentralizar a hegemonia
do discurso patriarcal, quanto à oposição homem/mulher nas relações de gênero, traz
à tona os conflitos existenciais de uma mulher que, mesmo mais “liberada”, ainda os-
cila entre o aprisionante “destino de mulher” e a ânsia pela liberdade. Nesse sentido,
este trabalho propõe a análise da representação da identidade feminina na obra Divã
(2002), da escritora Martha Medeiros, uma vez que, nesta narrativa, a protagonista
encontra-se em conflito decorrente do embate entre os anseios do mundo interior e as
exigências do mundo externo ou ainda a liberdade de escolha e a segurança oferecida
pelo pertencimento, em meio ao dilaceramento do mundo pós-moderno, marcado pela
efemeridade, extrema individualização, desestruturação das relações e fragmentação da
identidade. Diante disso, a análise respaldar-se-á, sobretudo, nas proposições da crítica
feminista recente e nos conceitos teóricos da pós-modernidade.
Palavras-chave: Gênero e resistência; Representação da identidade feminina;
Contexto pós-moderno.

105
ABSTRACT
Although it has remained invisible in literary history, women have always produced
literature. However, Clarice Lispector, with the publication “Perto do coração selvagem”
in 1944, began the female literary tradition in the Brazilian scenario. While previous
writers in the 90s had the female figure suffocated by phallogocentric repression and
questioning this condition, from that decade on they began to show a woman who is
part of a new framework in the post-modern society, changing its social place, giving
new meaning to their course and discourse and, more forcefully, trying to rescue the
identity blocked by marginalization and resignation. The female author’s production
that emerges in this context,
In addition to decentralize the patriarchal discourse hegemony, as the man / woman
opposition in gender relations, brings up the women existential conflicts even more
“released”, still swings between imprisoning the “woman’s fate” and the craving for
freedom. In this sense, this paper proposes the representation of female identity analysis in
Divan work (2002), the writer Martha Medeiros, since, in this narrative, the protagonist
is in the clash stemming conflict between the inner world desires and the external world
requirements or the freedom of choice and the security offered by membership in the
midst of tearing the postmodern world, marked by transience, extreme individualization,
breakdown of relationships and identity comminuting. Therefore, the analysis will be
endorsed, above all, the recent feminist criticism propositions and theory concepts of post
modernity.
Keywords: Gender and resistance; Representation of female identity; Post modern
context.

INTRODUÇÃO

Ao longo da história da humanidade, foram muitas as mulheres


que travaram batalhas na busca de espaço na sociedade. Elas não que-
riam o lugar que lhes era imposto pelas regras machistas, mas um em
que tivessem seus direitos preservados e, assim, pudessem ter sua con-
dição feminina respeitada para viverem livres dos estigmas a que eram
condenadas apenas por pertencerem ao gênero feminino. Na realidade,
elas queriam sair do simples papel de figurantes ou reprodutoras para se
tornarem sujeitos no processo da própria vida.
Sob um olhar retroativo, observamos que as produções literárias
femininas, historicamente, também inexistiram, por conta da suprema-

106
cia masculina e do papel, ideologicamente, preestabelecido à mulher,
isto é, esposa, mãe, dona-de-casa. O acesso à literatura significava um
ato de transgressão aos padrões culturais. Diante desse quadro, Virginia
Woolf (1990), em suas reflexões sobre mulher e ficção, afirmou que a
mulher só teria a independência necessária quando conquistasse a au-
tonomia financeira e possuísse um espaço para si, “um teto todo seu”.
Os primeiros traços da libertação feminina, em relação à produção
literária, ocorrem quando, na década de 1960, emergem os movimentos
culturais de minorias (negros, índios, homossexuais e femininos), marcan-
do, de certa forma, o declínio do patriarcado e o advento da pós-moder-
nidade. A chamada pós-modernidade é aqui tomada como um conceito
ideológico amplo, alicerçado na infraestrutura industrial e econômica oci-
dental e na globalização que descreve profundas repercussões na expressão
popular, na comunicação de massa, nas manifestações culturais, em geral,
remetendo a traços que dão ênfase na heterogeneidade, na diferença e na
fragmentação. No âmbito dos estudos de gênero, essa mobilidade cultural
tem acarretado novas configurações para as relações entre os sexos, além
de favorecer intersecções das questões de gênero com as de raça, classe,
religião, etc.
Essa abertura às diferenças contribuiu não só para promover a
ruptura do sistema falocêntrico, mas também para questionar a forma-
ção do cânone literário e dar visibilidade às vozes silenciadas ou con-
sideradas dissonantes. É nesse momento que se instaura a Crítica fe-
minista que, além de desconstruir as ideologias de gênero, entre outros
objetivos, reavalia a identidade e a representação da mulher, construída
culturalmente, no estudo das literaturas de autoria feminina.
Com efeito, a trajetória da literatura de autoria feminina, segundo
Xavier (1998), é marcada pela fase feminina, feminista e fêmea. Na fase
fêmea, as mulheres produziam textos com base nos escritos masculinos,
pois não tinham outra referência. Na fase feminista, a escrita já se con-
figurava sob uma ótica feminina, “engendrando narrativas povoadas de
personagens femininas conscientes do estado de dependência e submissão
a que a ideologia patriarcal relegou a mulher” (ZOLIN, 2009c, p. 329).
É um momento de muita contestação em relação aos valores vigentes,

107
desse modo, “as personagens femininas começam a avaliar a extensão e
as consequências de sua situação de inferioridade e ensaiam as primeiras
denúncias” (CUNHA apud RAMALHO, 1999, p. 153). Podemos per-
ceber, nessa fase, o constante dilema das personagens: cumprir o papel de
mulher inferior e submissa e, em contraponto, assumir o papel de mulher
pensante e liberta das amarras sociais. A esse respeito, na concepção de
Beauvoir (1970), o dilaceramento parece ser inevitável, dada a impossi-
bilidade de conciliar o “destino de mulher” com a “vocação de ser huma-
no”. Já na fase fêmea, contexto pós-moderno, é a fase de autodescoberta,
de construção de uma nova identidade, englobando temas existenciais e
universais, marcada por erotismo, sedução e contestação. As escritoras, de
forma mais significativa, buscam o primado da diferença em relação à
escrita masculina, sem mimetismo, sem hierarquia, focando em uma nova
representação da identidade feminina, sendo que a noção de representa-
ção, nesse sentido, “se afasta de sua concepção hegemônica, para significar
o ato de conferir representatividade à diversidade de percepções sociais,
mais especificamente, de identidades femininas antipatriarcais” (ZOLIN,
2009a, p. 106).
A literatura passou, então, a representar a mulher sob uma ótica
diferente daquela tradicional que permeava a literatura anterior. Se no
passado a literatura produzida por homens e mulheres reproduzia a ideo-
logia patriarcal, que conduzia a mulher à submissão e à marginalidade, a
literatura de autoria feminina pós-moderna propõe um questionamento
da condição feminina. Para tanto, traz em seu bojo questões como re-
presentação, identidade e diferença. E, já que a sociedade volta-se para a
individuação, é permitido também à mulher a quebra de um dos maiores
tabus femininos: o sexo como prazer, não mais como forma de reprodução
apenas. Todavia, esse novo panorama provoca um grande vazio existencial.
Com a mudança nas relações sociais, com o controle sobre o seu corpo,
tornando-se independente financeiramente, como livrar-se de todos os
estigmas há tanto tempo mantidos como verdades absolutas? O que fazer
com essa liberdade que o mundo moderno passa a oferecer? Notamos que
muitas mulheres buscaram nas drogas e na psicanálise respostas para seus
questionamentos.

108
Assim, com as fronteiras cada vez mais abertas às diversas vo-
zes, analisaremos no decorrer deste trabalho a obra Divã, publicada em
2002, primeiro romance de Martha Medeiros, uma escritora gaúcha,
colunista do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e de O Globo, do Rio de
Janeiro. Martha Medeiros, assim como Marina Colasanti e Lya Luft,
desempenha uma função tanto na imprensa quanto na literatura. A es-
critora possui várias coletâneas de crônicas e poesias publicadas, como
Strip-tease (1985), Doidas e Santas (2008) e Feliz por nada (2011). Seus
textos geralmente tratam do cotidiano, de forma geral, vivenciado por
pessoas comuns, das relações amorosas na “modernidade líquida”, dos
novos padrões familiares, das novas formas de ser mulher na sociedade
atual e, algumas vezes, das temáticas ligadas aos fenômenos midiáticos.
Divã, livro que deu origem à uma peça teatral, a um filme e à uma
série de TV, coloca em cena uma figura feminina “fluida”, independente,
de “corpo liberado” e que desempenha vários papéis no ambiente em que
vive e na sociedade, contudo, são muitas as interrogações que surgem
para (di) fundir e confundir os pensamentos da personagem Mercedes,
visto que apresenta, em essência, o perfil da mulher que, aparentemente,
se submete às normas sociais, mas deseja transgredir.
A mitologia também está repleta de personagens que usaram a
transgressão como elemento de resistência e construção de suas identi-
dades. Um dos principais ícones da transgressão feminina é Lilith, con-
siderada pelas lendas antigas como a primeira esposa mítica de Adão.
Lilith é uma figura mitológica dos povos rabínicos, judaicos e hebraicos,
cujo registro mais antigo está no manuscrito O alfabeto de Ben Sirak, da-
tado entre os séculos VIII e X a.C. Segundo Koltuv (1986), Lilith não
aceitou a submissão a Adão, então, o abandonou e foi quando surgiu a
figura de Eva. Desse modo, Martha Medeiros vem, em Divã, mostrar
essa nova mulher representante do ser fragmentado da pós-modernida-
de que, dona da sua sexualidade e livre para fazer as próprias escolhas,
transgride e resiste aos valores para o encontro com sua verdade, com
seus desejos e que, a partir das sessões de psicanálise, busca se autoco-
nhecer como sujeito feminino. Utilizando-se de erotismo e de sexuali-
dade de maneira ousada, com uma linguagem límpida e sem retoques,

109
a autora nos apresenta o legado da mulher fruto de um ambiente pa-
radoxal, com conflitos e frustrações que surgem no cenário em que as
certezas absolutas dão lugar ao questionamento e a urgência em viver
tudo aquilo quanto for possível.
Para Jair Ferreira dos Santos (2000), as palavras de ordem que
descrevem a condição pós-moderna são desencanto, descrença, desor-
dem, vazio existencial e confusão, refletindo na dificuldade de a lite-
ratura representar esse universo caótico. Demonstrar a maneira como
isso ocorre é o nosso propósito neste texto. Nossas reflexões são, aqui,
empreendidas a partir de discussões sobre o boom da literatura a partir
do multiculturalismo e, consequentemente, dos estudos culturais, dos
conceitos empreendidos por teóricos da pós-modernidade, bem como
pela Teoria Crítica Feminista, enfatizando questões relacionadas à re-
presentação das relações de gênero/resistência e de construção de iden-
tidades femininas.

MULTICULTURALISMO, CRÍTICA FEMINISTA E IDENTIDADE


NA PÓS-MODERNIDADE: TERRITÓRIOS DOS CAMINHOS QUE
CONVERGEM

Tanto na estrutura familiar quanto na sociedade, as desigualda-


des hierarquizadas, culturalmente, entre homem e mulher, garantiram
ao homem um status superior com conotações positivas e o direito ao
espaço público e à mulher um status inferior com conotações negativas,
reduzindo-a ao espaço privado. Esse papel predeterminado ao homem
e à mulher, conforme Bourdieu (2002, p. 17), parece estar “na ordem
das coisas”, como se fosse inerente à natureza feminina e masculina. No
entanto, esse caráter biológico utilizado para explicar a inferiorização
do sexo feminino é contestado quando, na década de 1940, Simone de
Beauvoir (1970), com a publicação da obra “O segundo sexo”, passou a
denunciar as raízes culturais da desigualdade sexual, contribuindo com
uma análise profunda na qual trata de questões relativas à biologia, à
psicanálise, ao materialismo histórico, aos mitos, à história, à educação,
para o desvendamento desta questão. Sendo assim, ela afirma ser neces-

110
sário estudar a forma pela qual a mulher realiza o aprendizado de sua
condição, como ela a vivencia, qual é o universo ao qual está circunscri-
ta. Ela percebe que durante o período de socialização da mulher, ela é
condicionada psicologicamente a ser treinada como mero apêndice do
homem. Como adepta do existencialismo de Jean-Paul Sartre, em que
tinha como máxima “a existência precede a essência”, a autora afirma
que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, ou seja, que os papéis sociais
atribuídos a homens e mulheres são construções ideológicas e culturais.
É em meados da década de 1960, contexto histórico-cultural de
eclosão do multiculturalismo, que emergem vários movimentos de con-
testação na busca por um espaço, por uma autonomia, por uma identi-
dade própria, questionando os valores conservadores impostos.

O multiculturalismo unifica sem homogeneizar. No lugar


da homogeneização da sociedade por meio da assimila-
ção, os defensores do multiculturalismo propõem a con-
solidação nacional quando o Estado e a Nação levam em
consideração os interesses das minorias, promovem suas
culturas e seus diferentes modos de viver. [...] Como um
princípio de política pública, o multiculturalismo requer
que a diversidade étnico-cultural e o pluralismo sejam re-
conhecidos como normas nas sociedades contemporâneas.
(BONNICI, 2011, p. 27).

Segundo Hutcheon (1991, p.86), “quando o centro começa


a dar lugar às margens, quando a universalidade totalizante começa a
desconstruir a si mesma, a complexidade das contradições que existem
dentro das convenções – como, por exemplo, as de gênero começam a
ficar visíveis”. Dessa forma, a ampla revolução cultural abre espaço aos
grupos marginalizados ou de minorias: femininos, índios, negros e ho-
mossexuais.
Nesse contexto, surgem discussões e estudos feministas dos
quais se observam um interesse pela questão da alteridade. O espaço
destinado à mulher na sociedade fez que seu papel, tanto no âmbito
social quanto no acadêmico, ficasse à margem do papel central ocupado
pelo homem, atribuindo-lhe, assim, uma alteridade, ou seja, uma ex-

111
terioridade em relação ao que é considerado centro. Então, a partir do
movimento político e social feminista, nasce a crítica feminista, com o
intuito de desconstruir os fundamentos culturais das relações de gênero,
ou melhor, a oposição homem dominador/mulher dominada.
Como sabemos, a mulher não existia como sujeito social, tam-
pouco como sujeito literário, pois se manteve por muito tempo invisível
no que se refere à produção literária, crítica e teórica, espaço tradicio-
nalmente demarcado pelo homem. Do mesmo modo, as produções li-
terárias canônicas sempre foram ocupadas por escritores masculinos, os
quais representavam a mulher sob um estereótipo negativo, por meio de
emblemáticos papéis femininos associados à passividade e à objetifica-
ção, legitimando as ligações entre sexo e poder.
É corrente entre os críticos conservadores que os estudos de
cultura sejam uma forma de excluir a alta literatura, o que um desses
críticos mais conhecidos, Harold Bloom (2001), defensor do cânone li-
terário, afirma que o valor da literatura está somente em seu conteúdo
estético, desconsiderando, assim, qualquer outro fator extraliterário, so-
cial e, consequentemente, os movimentos de minorias, os quais ele acu-
sou de participarem de uma “Escola do Ressentimento”. Em resposta,
Constância Lima Duarte (1995) considera:

Harold Bloom não deixa de ter razão quando afirma que


estamos vivendo o fim do cânone. Com certeza, parece que
chegamos ao fim do cânone estabelecido a partir da visão
limitada de um grupo ou de um único homem, ditado por
seus preconceitos e valores. Esta disputa – é evidente – é
uma disputa pelo poder. (DUARTE apud XAVIER, 1995,
p. 23).

Nota-se, de fato, que os pressupostos ideológicos da formação


do cânone são fundamentados no patriarcalismo por centrar-se em um
grupo específico: masculino, branco e burguês. Dessa forma, uma lite-
ratura escrita por mulheres pode ser entendida como um movimento
de transgressão aos cânones sociais e literários imposto pelo sistema
falocêntrico, pois “representa o avesso da ideologia patriarcal, responsá-

112
vel pelo silenciamento histórico da mulher e pela, igualmente, histórica
dominação masculina” (ZOLIN apud RAPUCCI; CARLOS, 2011, p.
226). Assim, esses grupos supramencionados, que emergiram das dis-
criminadas margens, assumiram o objetivo de questionar “fatores como
poder, valor, hierarquia, responsáveis pela canonização de uns e pela ex-
clusão de outros” (XAVIER apud RAMALHO, 1999, p. 15).
Mas será que se adotarmos uma postura crítica que admita o trân-
sito entre os estudos literários e os Estudos Culturais, necessariamen-
te estaremos decretando o derradeiro crepúsculo para o cânone literário?
Acreditamos que a abertura crítica proposta pelos Estudos Culturais pos-
sibilita um diálogo transcultural sustentado pela aceitação das diferenças,
um movimento de desterritorializar/reterritorializar linguagens, histórias,
culturas e literaturas. Esses conceitos parecem demonstrar um ponto de
abertura tanto para a pluralidade quanto para o reconhecimento das sin-
gularidades e particularidades. Conforme Cevasco (2003, p. 138), na versão
oposta a dos conservadores do cânone, os estudos culturais teriam vindo
para desestabilizar a cultura, celebrar o popular e democratizar a literatura.
Diante de toda essa efervescência cultural, a Literatura de auto-
ria feminina, com base na consciência feminista, é reconhecida e busca
inserir a mulher na historiografia literária, implicando um corte em re-
lação às ideias hegemônicas da sociedade patriarcal. A crítica feminista
tenta resgatar e reinterpretar a produção literária feminina ignorada até
então, desmascarando os princípios que têm fundamentado “o cânone
literário, seus pressupostos ideológicos, seus códigos estéticos e retóri-
cos, tão marcados por preconceitos de cor, de raça, de classe social e de
sexo, para então desestabilizá-lo, reconstruí-lo” (ZOLIN, 2009c, p. 328).
Clarice Lispector, no cenário brasileiro, é a precursora da tra-
dição literária feminina, significando “um momento de ruptura com
a reduplicação dos valores patriarcais que caracteriza a fase feminina”
(ZOLIN, 2009c, p. 332), ou seja, a escritora rompe com os valores pa-
triarcais que marcavam a fase anterior, pois, até então, as produções lite-
rárias de escritores e escritoras, internalizavam os valores vigentes, tanto
ideológicos quanto estéticos. Nesse sentido, a obra clariceana foi a di-
visora de águas, por, de modo geral, se estruturar em torno das relações

113
de gênero, trazendo nas entrelinhas uma pungente crítica ao sistema
patriarcal.
Na esteira de Clarice Lispector, as contribuições literárias fe-
mininas que estiveram por muito tempo escondidas e isoladas na his-
tória da literatura, começam a aparecer nos anos 1970 e 1980, como,
por exemplo, Lígia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Lya Luft, Marina
Colasanti, Márcia Denser, entre outras.
Enquanto as escritoras dos anos 1960, 1970 e 1980 tinham como
objetivos questionar as intransigências do sistema patriarcal e eliminar os
binarismos excludentes marcados por uma assimetria de poder, por meio
de personagens femininas insatisfeitas em um quadro opressor de hie-
rarquia social e familiar, as autoras da virada do milênio tomaram novos
rumos, em meio a novas indagações e perplexidades instauradas pelo pa-
radoxo pós-moderno, ao apresentar uma figura feminina “transgressora”,
que ignora os códigos e tabus, independente e capaz de escolher o destino
de sua vida e de seu corpo, contrapondo-se àquela figura frágil, submissa,
sem autonomia e vitimizada que, na concepção de Badinter (2005), foi,
por vezes, reforçada até mesmo pelos movimentos feministas:

Trata-se, em sínteses, de a literatura de autoria feminina


pós-moderna representar mulheres “possíveis” que refu-
tam as imagens tradicionais, historicamente, a ela impu-
tadas pelo pensamento patriarcal, como aquela marcada
pela fragilidade excessiva e/ou delicadeza, pela santidade
ou perversidade extrema, e, por fim, aquela que sinaliza a
super-mulher surgida nos anos 1960, capaz de se multi-
plicar para dar conta de tudo o que se espera dela: com-
petir no mercado de trabalho, honrar com as responsabi-
lidades de mãe, de esposa e de dona-de-casa e, além de
tudo isso, manter-se linda, magra e desejável. (ZOLIN,
2009a, p. 114).

Assim, desde então, os movimentos de mulheres no meio social


e literário tem alterado os paradigmas socioculturais, libertando certas
raízes canônicas do passado. A questão do cânone hoje pertence à arena
de debates e contradições que dificultam um posicionamento correto.

114
Para Helena Parente Cunha (2004), vivemos em um momento de in-
certezas, ao invés de certezas, devido aos caminhos e descaminhos que
se cruzam na pós-modernidade.
O processo de conquista que se iniciou lá na década de 1960
promoveu várias mudanças na sociedade como um todo. E entender
esse novo sujeito feminino é entender a categoria de resistência, como
compreendendo estratégias e dinâmicas de rejeição e de luta desencade-
adas pelas mulheres contra padrões, papéis e normas de comportamen-
tos culturais e sociais desiguais que lhes foram impostos e que hierar-
quizam os sexos. Para tanto, o questionamento das mitologias científicas
sobre sua suposta natureza, sobre a questão da maternidade, do corpo e
da sexualidade foi fundamental em termos da legitimação das transfor-
mações libertadoras em curso.
Podemos dizer que, no momento atual, as questões feministas
mostram-se distantes da margem na qual eram colocadas. A imagem
da mulher tradicional, aos poucos, foi se apagando, para dar lugar a uma
outra que começa a experienciar a igualdade de direitos e o reconheci-
mento social. Nesse sentido, Elisabeth Badinter (2005, p. 145) acredita
que a “razão principal do feminismo, consideradas todas as diferentes
tendências, é instalar a igualdade entre os sexos”. Contudo, a autora,
chamada até de antifeminista, critica a vitimização feminina a partir
de algumas discussões feministas que, de certa forma, contribuem para
manter as mulheres em uma posição secundária. Para Badinter (2005), a
crítica feminista atual não deve apontar a mulher como um ser despro-
tegido e indefeso, mas sim forte e conquistador.
Embora esse novo perfil feminino seja resultado de uma con-
quista num embate multicultural proposto pela onda feminista, não po-
demos desconsiderar o fato de que a evolução da sociedade se reflete
nos padrões de comportamento dos sujeitos e, consequentemente, nas
representações ficcionais. Nesse sentido,

falar em multiculturalismo requer uma discussão a respeito


da identidade do indivíduo que é objeto da política e de
uma cultura multicultural. Como os indivíduos possuem

115
identidade, deve haver uma convivência e negociação en-
tre a identidade e a sociedade, a qual, por si já se encontra
multicultural. [...] A identidade depende da diferença tan-
to quanto a diferença depende da identidade. (BONNICI,
2011, p. 35).

Os estudos pós-estruturais, de modo especial a Teoria Pós-


colonial e os Estudos Feministas desencadearam discussões sobre a
identidade e sobre a diferença como relações sociais e de poder. Contudo,
podemos notar que a mudança rápida e radical das últimas décadas vem
transformando a estrutura sólida da sociedade, ocasionando certa rup-
tura nos valores sociais e morais. Essas transformações têm abalado a
noção de sujeito, por muito tempo, visto como unificado, e as identida-
des pessoais, ocasionando a “crise de identidade”, pelo fato de ter de-
sestabilizado os quadros de referência que davam, de certa forma, uma
sustentação estável ao indivíduo no mundo social:

Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algu-


mas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito.
Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos
tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de
si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o
indivíduo. (HALL, 2006, p. 9).

A identidade fragmentada é apontada por Hall (2006) ao afir-


mar que, a partir de certos movimentos que tiveram início no final do
século XIX – como a Psicologia (com a divisão da mente em consciente
e inconsciente), o marxismo (com a divisão da sociedade em classes),
Foucault e o feminismo, que questionaram o posicionamento de poder
e de gênero – a identidade deixa de ser um todo, um “bloco” uno, com
um único centro, e passa a ter diversos centros, ou seja, a identidade vista
sob o prisma dos estudos pós-modernos vai variar de acordo com os sis-
temas culturais que a interpelam. Desse modo, o sujeito pós-moderno é
marcado pela descontinuidade, pela fragmentação e pelo deslocamento,
não possui uma identidade fixa ou permanente. As estruturas “sólidas”
estão se liquefazendo. É uma passagem da fase “sólida” à fase “fluida”.

116
E os fluidos são assim chamados porque não conseguem
manter uma forma por muito tempo e, ao menos que
sejam derramados num recipiente apertado, continuam
mudando de forma sob a influência até mesmo das me-
nores forças. (BAUMAN, 2005a, p. 57).

Diante dessa “modernidade líquida”, o ser humano tem encon-


trado grandes dificuldades em buscar pontos de referência que possam
garantir uma segurança. Conforme Bauman (2003), nesse mundo flui-
do, onde os valores e as regras são instáveis, a família deixa de ser um
pilar fundamental da sociedade. Tudo é visto sob a ótica do consumo
e as relações humanas são equiparadas ao nível de mercadoria. Então,
tudo deve ser mudado continuamente, inclusive as relações, uma vez que
a novidade vai progressivamente se desvanecendo e se apagando. Dessa
forma, as relações se tornam demasiadamente breves e superficiais, não
conseguem se transformar em laços duradouros, muitas vezes, por conta
da falta de envolvimento emocional e medo de perder a tão almejada
liberdade.
Nesse panorama, segundo Zolin (2009a), os códigos estéticos e
ideológicos do pós-modernismo121 podem ser ilustrados nos romances
de Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Ana Maria Machado, na co-
letânea de narrativas curtas da escritora paranaense Luci Collin e, além
das escritoras mencionadas, podemos citar também a escritora Martha
Medeiros, autora da obra Divã, nosso objeto de análise.

REPENSANDO O CÂNONE: MARTHA MEDEIROS E A


LITERATURA DE AUTORIA FEMININA

Atualmente, Martha Medeiros é uma das vozes feministas da


literatura brasileira por se interessar em explorar e divulgar o universo
da mulher em suas obras. O livro Divã é narrado em primeira pessoa, o
qual o leitor toma o lugar de Lopes, psicanalista que tem de escutar os

121 A partir da leitura de Pela mão de Alice: o social e o político na Pós-modernidade, de


Boaventura de Souza Santos, bem como de Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção,
de Linda Hutcheon, tratamos, aqui, de pós-modernismo enquanto tendência cultural e literária
e Pós-modernidade enquanto estágio social e político.

117
questionamentos e reflexões de Mercedes, uma mulher de meia idade,
professora, casada, com filhos, que decide fazer análise, por conta de suas
conflituosas questões existenciais, pois, conforme veremos, as forças di-
cotômicas de liberação e fragmentação estão na base de sua identidade,
visto que ainda há resquícios da mulher angustiada devido às amarras
sociais e, em contraponto, os desejos de transgressão às convenções.
É interessante notar na estrutura do romance Divã, o qual tem
um consultório de psicologia como pano de fundo, que os 49 capítulos,
curtos e condensados são sessões de terapia, à busca do autoconheci-
mento de Mercedes. Cada capítulo tem uma temática diferente, alicer-
çada nas vivências da personagem central. Assim, os capítulos podem
ser lidos estanques e/ou sequentemente, sem perda de interesse ou pro-
fundidade. Lendo-os na ordem, vemos a personagem densificar-se, ou
seja, a personagem parece começar rasa, falando de coisas superficiais,
como “Sou eu que começo?” “Não sei bem o que dizer sobre mim”. A
princípio Mercedes se mostra uma mulher liberada e independente:

Não me sinto uma mulher como as outras. Por exemplo,


odeio falar sobre crianças, empregas e liquidações. Tenho
vontade de cometer haraquiri quando me convidam para
um chá de fraldas e me sinto esquisita à beça usando
lencinho amarrado no pescoço. Mas segui todos os man-
damentos de uma boa menina: brinquei de boneca, tive
medo do escuro e fiquei nervosa com o primeiro beijo.
Quem me vê caminhando na rua, de salto alto e deline-
ador, jura que sou tão feminina quanto as outras: nin-
guém desconfia do meu hermafroditismo cerebral. Adoro
massas cinzentas, detesto cor-de-rosa. Penso como um
homem, mas sinto como mulher. Não me considero ví-
tima de nada. Sou autoritária, teimosa, impulsiva e um
verdadeiro desastre na cozinha. Peça para eu arrumar uma
cama e estrague meu dia. Vida doméstica é para os gatos.
(Medeiros, 2002, p. 9).

No entanto, logo, ainda no primeiro capítulo, num ritmo intenso


e denso, vamos penetrando no mundo íntimo de Mercedes: seus desejos,
suas angústias, suas crises, suas memórias, o fato de ser órfã de mãe, o

118
seu casamento “falido” e a morte de sua melhor amiga Mônica. A nar-
rativa traz aspectos óbvios da dependência emocional/afetiva que a mu-
lher liberada, independente, capaz de desafiar o cânone ainda apresenta.

Às vezes me sinto uma mulher mascarada, como se de-


sempenhasse um papel em sociedade só para me sentir
integrada, fazendo parte do mundo. Outras vezes acho
que não é nada disso, hospedo em mim uma natureza
contestadora [...] Sou tantas que mal consigo me distin-
guir. Sou estrategista, batalhadora, porem traída pela co-
moção. Num piscar de olhos fico terna e delicada. Acho
que sou promiscua, doutor Lopes. São muitas mulheres
numa só, e alguns homens também [...] Você me per-
gunta qual é a minha dor e isso me paralisa. Não sou
cleptomaníaca, viciada em drogas ou autodestrutiva, não
tenho pânico noturno nem diurno, não ando nem mesmo
triste. Mas a angústia existencial, se não é uma coisa triste,
tampouco é libertadora. Quero saber, entre todas aquelas
que eu sou, quem é a chefe, quem manda dentro de mim.
(MEDEIROS, 2002, p. 10-12)

Notam-se nas últimas décadas, grandes e rápidas modificações


em todos os segmentos da sociedade pós-moderna e, consequentemen-
te, um “mal-estar” nos sujeitos, ocasionado por uma “espécie de liberda-
de de procura do prazer”, de certa forma, incompatível com a “seguran-
ça individual”, bem como por não conseguir construir uma identidade
“solidamente fundamentada e resistente a interoscilações” (BAUMAN,
1998, p. 19). Assim, as mudanças nas estruturas da sociedade moderna
no final do século XX fragmentaram as paisagens culturais de classe,
gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que, no passado, nos for-
neciam sólidas localizações como indivíduos sociais.

A industrialização e modernização aceleradas promovi-


das pela ditadura militar, nos anos setenta, desestabilizou
os vínculos tradicionais estabelecidos entre indivíduos e
grupos, abalando crenças e comportamentos estrutura-
dos havia muitas décadas. A família nuclear sofreu uma
profunda transformação, à medida em que as mulheres

119
entraram massivamente no mercado de trabalho e vol-
taram a proclamar o direito à cidadania, denunciando as
múltiplas formas da dominação patriarcal. (RAGO, 1996,
p. 31)

A produção de autoria feminina que emerge nesse contexto,


além de descentralizar a hegemonia do discurso patriarcal, quanto à
oposição homem/mulher nas relações de gênero, traz a tona os confli-
tos existenciais de uma mulher de identidades múltiplas, descentradas,
deslocadas ou fragmentadas, retratando a insegurança e a angústia por
não encontrar uma base sólida, devido à diluição dos antigos valores
(HALL, 2006).
Essa reconstrução identitária feminina, decorrente da radicali-
zação da liberdade e do reconhecimento do próprio corpo, certamente,
vem alterando os paradigmas socioculturais, mas, após contínuos anos
de domesticação, a emancipação cultural, social, econômica, sobretudo,
a sexual feminina traz consigo muitas outras mudanças, “algumas vezes
tão radicais que as mulheres não se encontram preparadas para vivenciá-
-las, sentindo-se desorientadas, sem saber ao certo, o que fazer com toda
aquela conquista” (KAUSS apud CUNHA, 1999, p. 102).
De fato, houve uma liberação feminina, no entanto, parece não
ter trazido uma total libertação emocional, por falta de referência, pon-
tos de apoio e equilíbrio, proporcionados, antes, pela estrutura familiar
e pela presença do masculino. No romance em questão, a personagem,
embora mais “liberada”, ainda oscila entre o aprisionante “destino de
mulher” e a ânsia pela liberdade, pois, segundo Flax (apud HOLANDA,
1992, p. 217) “este momento na história do ocidente está marcado por
uma mudança profunda, mas ainda pouco compreendida, por incerteza
e ambivalência”.
Diante de todos os avanços tecnológicos e sociais, a construção
da identidade assumiu a forma de uma experimentação infindável. “Você
nunca saberá ao certo se a identidade que agora exibe é a melhor que
pode obter e a que provavelmente lhe trará maior satisfação” (BAUMAN,
2005a, p. 92). Mercedes é um sujeito feminino inserido nesse contexto

120
pós-moderno ou, conforme Bauman (2005b), época “líquido-moderna”,
marcada pela efemeridade, instabilidade, extrema individualização, deses-
truturação das relações, ocasionando uma fragmentação da identidade. As
inquietações, conflitos e questionamentos da protagonista em relação à
sua condição e à sua identidade, decorrentes do embate entre os anseios
do mundo interior e as exigências do mundo externo ou, ainda, “a liber-
dade de escolha e a segurança oferecida pelo pertencimento” (BAUMAN,
2005a) é o discurso predominante em Divã.
É interessante observar que a dramática situação da personagem
Mercedes faz com que ela procure um psicanalista, a fim de se descobrir,
se conhecer e se equilibrar emocionalmente. Desse modo, a figura do psi-
canalista está presente, visto que as diversas posições que ela ocupa não
estão mais alicerçadas em valores “sólidos”. Para Rago (1996, p. 32), tais
solicitações de atendimentos psicológicos, em especial, da classe média
ocorrem por conta de “viver de maneira brutal a ruptura de antigos pa-
drões de relações familiares, a quebra dos antigos modos de sociabilidade”.
Os diálogos entre Mercedes e Lopes, seu psicólogo, são indiretos.
As perguntas feitas a ela não são, em sua maioria, descritas, temos apenas
a resposta da protagonista e percebemos ser uma resposta pelo uso do
vocativo “Lopes”. Em outros momentos, Martha Medeiros faz com que
Mercedes repita as perguntas a ela feitas e, assim, somos capazes de per-
ceber o diálogo travado. A fala do psicanalista não consta do texto, porque
a identidade discutida e a individualidade buscada não podem ser, na ver-
dade, encontradas assim pela voz do outro. A atividade de psicanalise, de
certa forma, não responde a todos os questionamentos e não preenche os
espaços vazios. Assim, a figura do psicanalista é apenas a escuta, mas não
a solução.
Para Mercedes, a consulta começa como uma curiosidade e acaba
por tornar-se uma experiência envolvente. Ela, por todo o livro, percorre
uma busca em si mesma, descobrindo novas facetas, revelando outras
já conhecidas por ela, entendendo fatos da vida e procurando respostas
para outros. Lopes é apenas o que facilita a ela percorrer essa jornada,
ele é um mero instrumento que, ao ouvir o que ela tem a dizer, permite
que ela mesma tire suas próprias conclusões:

121
O consultório é a alfândega que vai me dar o visto para
passar para o lado mais oculto de mim. Não sei explicar
direito. Acho que a terapia vai servir para tirar a clan-
destinidade da coisa, preciso de um aval para fazer esta
alteração de rota. (MEDEIROS, 2002, p. 13)

Mercedes se revela uma mulher que busca no corpo e nos sen-


tidos, espaço gerador de conhecimento, o seu eu profundo. Os pensa-
mentos e atitudes da personagem são próprios de um ser humano ques-
tionador, uma mulher que não se sujeita a programações tradicionais,
distanciando-se, desta maneira, do destino pré-concebido em relação ao
sexo feminino:

Tenho medo de não conseguir manter minhas ideias,


meus pontos de vista, minhas escolhas. A minha cabeça,
Lopes, é como um guarda que não permite que eu esta-
cione em local algum. Eu fico dando voltas e voltas no
meu cérebro e quando encontro uma vaga para ocupar,
o guarda diz: circulando, circulando... Você está me en-
tendendo? [...] Não chego a temer a loucura, no fundo a
gente sabe que ninguém é muito certo. Eu tenho medo
é da lucidez. Tenho medo dessa busca desenfreada pela
verdade, pelas respostas. Eu me esgoto tentando morder
meu próprio rabo. Quando estou acostumando com uma
versão de mim mesma, surge outra, cheia de enigmas, e
vou atrás dela. Tem gente que elege uma única versão de
si próprio e não olha mais para dentro. Esses é que são
os lunáticos. Eu, ao contrário, quase não olho pra fora.
(MEDEIROS, 2002, p. 29)

Quase não existem descrições físicas da personagem ao longo


do texto, por outro lado, há uma riqueza de detalhes em relação aos seus
mais profundos sentimentos e sensações. O ritmo crescente dos seus de-
vaneios, a inquietação gerada diante do mistério irrevelado de seu pró-
prio ser, traz angústia à personagem que deseja descobrir-se por inteiro.
Mercedes é uma mulher que espera mais da vida e se recusa a aceitar a
rotina, o papel adotado por tantas mulheres que a rodeiam.

122
Segundo Touraine (2007, p. 24), “as mulheres se afirmam como
tais, se dão por objetivo principal a construção de si mesmas enquanto
sujeitos livres e pensam que é através da sexualidade que se realiza este
esforço de construção”. Dessa forma, a partir da experiência da tera-
pia psicanalítica, a personagem inicia seu processo de autodescoberta e
ruptura com o estabelecido e vai cada vez mais fundo na “transgressão”
em relação à sua sexualidade. Diferentemente de épocas anteriores, a
mulher pós-moderna é senhora dos seus desejos, dona de seu corpo e,
assim, ela usufrui dele como bem entende, como no caso da personagem
que descobre a masturbação, como bem expresso no trecho a seguir:

Eu me masturbo com alguma regularidade. Não por falta


de sexo, ao contrário: quanto mais transo, mais estimula-
da fico a me conceder uns afagos. Não uso vibradores e
nenhum brinquedinho que necessite de pilha, apenas me
massageio e a imaginação se encarrega do resto. Poucas
coisas são tão poderosas como uma fantasia erótica. Você
precisa mesmo saber ou está apenas curioso. Eu conto.
Dois homens ao mesmo tempo. Não faça esta cara de
desapontamento, eu nunca prometi ser original. Quando
me masturbo, busco o orgasmo e nada mais. É uma exci-
tação encomendada, um prazer de segunda categoria, mas
ainda assim um prazer. (MEDEIROS, 2002, p. 32)

A personagem contradiz a mulher tradicional, àquela que acha-


va que masturbação é prática pecaminosa, e passa a ser a representação
da mulher estilo Lilith, a que está aberta às novas experiências e mais
preocupada com o seu prazer do que com os ditames que a sociedade
lhe impõe. Podemos dizer que essa nova consciência feminina muito se
deve ao discurso propagado pelas novas feministas dos grupos urbanos,
intelectualizados e que defenderão, conforme as bandeiras libertárias
do “amor livre”, do “direito à maternidade voluntária”, do divórcio e do
aborto. Em outros termos, conforme Rago (1996, p. 26), “quarenta anos
depois, as feministas rejeitarão o modelo de feminilidade promovido
por suas antecessoras liberais, assumindo o discurso que as anarquistas
enunciavam então e que, aliás, foi reabilitado nos anos 70 e 80”.

123
Mercedes representa a mulher urbana, independente, profissional
liberal, com um casamento estável, filhos e amigos. A personagem não
vai ao Divã por ter um problema, vai exatamente por aparentemente não
tê-los, por ser aparentemente bem resolvida, mas insatisfeita com o papel
que lhe está destinado pela sociedade. E, nisso, reside a tensão dramática
do livro: uma personagem (bem) resolvida a procura de si mesma:

Eu disse a você que meu casamento é pacífico e que amo


Gustavo de forma irrestrita, mas você é um homem in-
teligente e sabe que estar feliz não significa exatamente
estar de acordo. Eu estou feliz, mas não sei se ainda con-
cordo que é preciso dedicar-se exclusivamente à família,
não sei se concordo que o passar dos anos exige mais freio
do que aceleração, não sei se concordo com esta lenda de
que todo amor vira amizade e que desejar mais que isso é
imaturidade. Há lógica nisso tudo, mas não há palpitação.
[...] Por mais amor que eu sinta por Gustavo e ele por
mim, a gente não flerta mais, ele me olha com olhos acos-
tumados, nem sei se me acha bonita ou feia, e isso não
faz a menor diferença pra ele. Mas pra mim faz. [...] Se a
sociedade não fosse viciada em hipocrisia, a infidelidade
seria institucionalizada, você não acha? (MEDEIROS,
2002, p. 40-49)

Nas sessões de terapia, as sensações subjetivas inundam o mundo


da personagem, levando-a a mergulhar em crise, questionando a sua exis-
tência e os padrões sociais. Os sentimentos fogem do seu controle, tudo
se desconstrói ao seu redor, no entanto, ela sente, aos poucos, esvaziar-se
do peso de sua vida pessoal, desligando-se por alguns instantes de seu
cotidiano. Desse modo, os conflitos, os dramas, o descontentamento e a
insatisfação interior da personagem, no que tange à vida matrimonial, ar-
raigada às convenções sociais, vêm à tona, fazendo-a dar-se conta de sua
realidade, levando-a a um intenso desejo de liberdade e de transgressão
aos valores impostos. Conforme Bauman (2005a), para a grande maioria
dos habitantes do líquido mundo moderno apegar-se às regras, agir de
acordo com os procedentes e manter-se fiel à lógica da continuidade não
constituem opções promissoras. A personagem, então, subverte a passivi-

124
dade do perfil feminino idealizado, rejeitando o papel de esposa, dona do
lar e mãe de família, para se tornar ativa, efetivando os seus desejos sexuais
em detrimento da estabilidade do casamento, visto que na modernidade
líquida há uma fragilidade entre os laços humanos, devido à flexibilidade
com que são substituídos, isto é, “substituímos os poucos relacionamentos
profundos por uma profusão de contatos pouco consistentes e superfi-
ciais” (BAUMAN, 2005a, p. 76), o que ocasiona um sentimento ambiva-
lente, ambíguo, de inquietação entre desejo e medo. Nesse sentido, ainda
no casamento, Mercedes tem uma relação com um homem mais jovem,
o que contribui para a sua ruptura e provoca uma sensação de liberdade,
um intenso desejo de experimentar, de transgredir, de usufruir a largueza
do mundo:

Eu apenas segui meus impulsos, por enquanto está dando


certo. Eu estava em estado de contemplação, entediada pela
monotonia dos dias, quando caiu do céu uma perspectiva
sexual. Não procurei nada, não estimulei. Cheguei a achar
que não iria passar de uma azaração sem consequência, mas
fomos adiante. Está rolando. [...] Eu apenas estreei um pa-
pel novo, depois de acreditar que todos os papeis já tinham
sidos desempenhados. [..] É uma sensação de liberdade que
não estou querendo configurar [..] (MEDEIROS, 2002, p.
54-57)

Após o caso que ela tem fora do casamento, este, de forma fu-
gaz, termina e seu casamento também se rompe. Bauman (2005a) ex-
plica que esse modo reduzido de “relacionar-se” se ajusta ao líquido
mundo moderno das identidades fluidas, o mundo em que o aspecto
mais importante é acabar depressa, seguir em frente e começar de novo.
Contudo, Mercedes se vê sem chão, sem para onde ir, para onde voltar, o
que a leva cada vez mais para a solidão, embora tenha tentado aos pou-
cos se autodescobrir, se autoconhecer, se autoafirmar: “É confuso. Tudo
que sinto é enorme e ao mesmo tempo me faz sentir pequena. A solidão
é gigantesca e me faz sentir mínima” (MEDEIROS, 2002, p. 95). Por
fim, a personagem chega à conclusão:

125
É irônico que eu tenha procurado você ansiosa por en-
contrar definições e, depois de quase três anos, tenha che-
gado a conclusão de que não há definição alguma que nos
traga a paz. A falta de definição, por si só, define a vida.
[...] “Agora entendo que nunca estarei pronta, e que tudo
que preciso é conviver bem com meu desalinho e incons-
tância, que enfim aceito. Bom trabalho, Doutor!”

Nesses encontros e desencontros, Mercedes vive um momento de


fragmentação, de oscilação, mas, também, de um incessante destruir para
reconstruir a si mesma, e assim, ela obtém a coragem de se olhar sem más-
caras e, em certo ponto, de desprezar as convenções sociais. Essas diferentes
identidades nos aproximam do discurso pós-moderno quando revelam a
incerteza e a ambiguidade como um dos métodos apropriados de interpre-
tar a experiência humana. Desse modo, as contradições vividas e sentidas
pela personagem fazem parte da paradoxal cena da pós-modernidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As estratégias narrativas tipicamente pós-modernas estão pre-


sentes em Divã a serviço da imprescindível revisão de valores que mar-
ca a época, com destaque para a representação da identidade feminina
plural e fragmentada, vivenciando o enredo, igualmente, fragmentado.
Ao terminarmos a leitura de Divã, podemos considerar que é
uma obra de grande destaque para a literatura brasileira, pois mostra
como a mulher no contexto pós-moderno está mais livre para discutir
e escrever problemas como a sexualidade, família, maternidade, perdas,
matrimônio e outros problemas que a mulher do passado sempre en-
frentou e jamais pôde comentar. Contudo, em Divã, a situação da mu-
lher no contexto da pós-modernidade é questionada. Evidencia-se que a
emancipação não levou totalmente à libertação, mas sim à fragmentação,
ou seja, a presença do masculino, de certa forma, parece ainda ser o pon-
to central de seu equilíbrio emocional. Mesmo havendo alguns traços da
problemática de gênero, por meio da voz da personagem principal, sur-
gem também traços de resistência a partir das contestações das normas
e sugestões de rompimento das mesmas, bem como um questionamento

126
do conceito de identidade. Mercedes representa um sujeito feminino
que estudou, trabalhou, conseguiu conquistar seu espaço na sociedade e
expor uma série de sentimentos confusos que toda mulher possui.
O modo diferente de ler e interpretar o mundo da personagem
Mercedes nos desafia a responder a pergunta final: quem é Mercedes?
Acreditamos que a narrativa finaliza sem conferir à personagem um
acabamento, uma vez que Mercedes exibe o traço da multiplicidade, da
divisão, do inconformismo, não se deixando definir facilmente, caracte-
rística própria dos sujeitos inseridos na pós-modernidade.
Como Lilith, esta nova mulher, tanto no âmbito social quan-
to no literário, tenta reencontrar a sua natureza livre, questionadora e
determinada, em busca não apenas de aventura de qualquer conotação,
mas para tornar-se, realmente, dona de si, de seu destino, de sua vida. E,
para tal, irá arriscar-se, sofrer, perder-se e encontrar-se.

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128
DARCY VARGAS: UMA TRAJETÓRIA
FEMININA NA FORMULAÇÃO DA LEGIÃO
BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA - LBA

Michele Tupich Barbosa

RESUMO
Em 1942, Darcy Vargas, a esposa do presidente Getúlio Vargas, fundou a Legião
Brasileira de Assistência, com o objetivo de “amparar os soldados convocados para a
guerra e seus familiares”. Este texto tem como objetivo abordar a trajetória de Darcy
Vargas na formulação da assistência social no Brasil como esforço de Guerra, assim
como o processo de fundação da Legião Brasileira de Assistência.
Palavras-chave: Protagonismo feminino; Darcy Vargas; LBA

ABSTRACT
In 1942, Darcy Vargas, the wife of President Getúlio Vargas, founded the Brazilian
Legion of Assistance, with the objective of “supporting the soldiers summoned to war
and their families.” This text aims at addressing Darcy Vargas’ role and protagonism in
the formulation of social assistance in Brazil as a war effort. To that end, the process of
founding the Brazilian Legion of Assistance will be analyzed.
Keywords: women’s protagonism; Darcy Vargas; BLA

INTRODUÇÃO

“Quando, um dia, ao escrevermos a história do esforço de


guerra do Brasil, iremos fazer justiça a uma mulher. Trata-
-se da Sra. Darcy Vargas.”

Boletim Informativo da LBA, nº 7, 15.05.1945, p. 3

Em agosto de 1942, o Presidente da República Getúlio Vargas


anunciava à nação o ingresso do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Esse

129
fato representou uma série de mudanças no cenário político, econômico,
social e assistencial do Brasil. Neste mesmo ano, Darcy Vargas, a esposa
do presidente, fundou a Legião Brasileira de Assistência, com o objetivo
de “amparar os soldados convocados para a guerra e seus familiares”.
O Boletim Informativo da LBA de 15 de maio de 1945 trazia
como destaque de sua reportagem principal intitulada Conforto Moral da
LBA, uma menção honrosa a Darcy Vargas, Primeira Dama do Brasil e
Presidente da Legião Brasileira de Assistência. Aclamada como mãe da
nação e representante das mulheres brasileiras engajadas nas práticas de
assistência que visavam amparar as famílias dos soldados brasileiros e no
seu desdobramento em redes de assistência que percorreram todo o país,
Darcy Vargas não inaugurou este tipo de prática e tão pouco foi a única
a enveredar pelos caminhos da assistência.
A participação das mulheres de elite nas obras assistenciais foi
marcada pelo conservadorismo o qual foi negligenciado pela história
das mulheres por distanciar-se de uma leitura feminista e da história
social. A história das mulheres de orientação política e teórica feminista
não teve interesse pelo que fizeram, pensaram e escreveram as mulheres
ditas conservadoras e de elite (MARTINS, 2016)122.
Portanto, o objetivo deste capítulo é analisar a participação e o
protagonismo de Darcy Vargas, na fundação da Legião Brasileira de
Assistência, LBA. Sua história se entrelaça a história de muitas mulheres,
que antes dela estiveram ligadas às associações caritativo-filantrópicas no
Brasil. Religiosas, pertencentes à elite, donas de casa, feministas, jovens
estudantes, muitas são as classificações das mulheres que estiveram en-
volvidas com as práticas de assistência brasileira, contribuindo de forma
significativa para as discussões e formulações de políticas sociais por parte
do Estado.
A LBA foi uma instituição que se baseou nas experiências de asso-
ciações femininas já existentes e, a fim de que seu projeto fosse consolidado,
as dirigentes e participantes das associações já existentes foram convidadas a
desenvolver trabalhos cooperativos com a recém fundada instituição.

122 MARTINS, Ana Paula Vosne. Uma mulher difícil de ser convencida: Eugenia Hamann e os
caminhos cruzados do feminismo e da filantropia. Relatório de estágio de Pós-Doutorado realizado
no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como
bolsista sênior do CNPq (2015/2016).

130
Desta forma faz-se necessário analisar a crescente participação fe-
minina em associações caritativas filantrópicas no Brasil por meio de ativi-
dades voluntárias. Essas mulheres “vestidas como donas de casa”123, tiveram
papel fundamental nas instituições assistenciais como a Legião Brasileira de
Assistência, fortemente marcada pelo trabalho voluntário feminino realiza-
do por mulheres de diversas faixas etárias, com diferentes graus de instrução,
oriundas das classes médias alta, mas todas supostamente unidas pelos laços
de solidariedade e pela experiência feminina dos cuidados.
O apelo sentimental fortemente permeado pela ideologia da
domesticidade serviu como estímulo para a inserção das mulheres nas
obras de assistência. Historicamente, esse processo foi construído a par-
tida das profundas transformações sociais, econômicas e culturais pro-
vocadas pelo capitalismo industrial e pela urbanização, os quais fizeram
emergir na sociedade burguesa modernas noções de privacidade, intimi-
dade e sensibilidades. No discurso ideológico de promoção da domesti-
cidade, a família passou a ser o refúgio contra as adversidades do mundo
público e foi no espaço familiar que papéis de gênero foram reafirmados
nesta contraposição moral do público e do privado. A ideologia da do-
mesticidade promoveu o lar como esfera feminina e separada do mundo
público hostil em que atuavam os homens.
Esse ideário burguês revelou uma concepção de gênero marcada
pela dicotomia dos papéis sexuais, os quais fortaleciam a ação e a auto-
ridade masculina por um lado e a passividade e subordinação feminina
por outro. Aos homens cabia as atividades públicas como o trabalho, os
negócios, a cultura e a política, enquanto às mulheres cabiam as funções
associadas ao privado como afazeres domésticos e a educação dos filhos.
O espaço privado passou a ser visto como um espaço moralmente rees-
tabelecedor e superior, no qual prevalecia a segurança e a ordem moral,
em oposição ao espaço público ameaçador e competitivo.

123 Aqui faco menção ao texto “Estudos biográficos e filantropia: uma reflexão a partir
da trajetória de vida de Pérola Byington,” In: MOTT, Maria Lúcia. Estudos biográficos e
filantropia: uma reflexão a partir da trajetória de vida de Pérola Byington. Gênero, Niterói, v. 3,
p. 21-41, 2003.

131
A ASSISTÊNCIA COMO ESFORÇO DE GUERRA: A FUNDAÇÃO
DA LBA

Até 1942 o Brasil acompanhou, mesmo que à distância, os fla-


gelos e males advindos da Segunda Guerra Mundial. O conflito, que
inicialmente compreendia uma guerra entre países europeus, atingiu o
Brasil em 1942. Com o envio de soldados para lutar na guerra, coube
às mulheres das elites brasileiras proteger as famílias dos soldados. Essa
é uma definição de papéis bastante importante para a compreensão do
processo e fundação de políticas sociais promovidas pelo governo fe-
deral naquele contexto. O objetivo de Vargas com a entrada do Brasil
na Segunda Guerra era dar apoio, sem restrições, aos países aliados. A
justificativa para a entrada do Brasil na Guerra foi o bombardeio ocor-
rido contra navios brasileiros por parte da Alemanha. Assim, o apelo
nacionalista foi respaldado pelo discurso inflamado de justiça, mas que
dependia do alistamento de soldados que estivessem dispostos a lutar e
derrotar os inimigos.
Apesar do enfoque central dessa discussão não ser os soldados,
é necessário compreender quem foram e por que passaram a ser o alvo
da assistência social organizada pela LBA. Os primeiros soldados en-
viados para o front na Itália partiram em 1944. O processo de envio das
tropas foi demorado, se comparado à urgência que a guerra demandava.
Inicialmente, em 15 de março de 1943, Vargas aprovou o envio de tro-
pas brasileiras para combater na Europa. Em 13 de agosto criou a Força
Expedicionária Brasileira através da Portaria Ministerial 47-44 e regu-
lamentou a criação da 1ª DIE - Divisão de Infantaria Expedicionária.
Um dos grandes problemas enfrentado pela FEB foi o modo de
seleção dos militares, ocorrido, sobretudo pela própria inexperiência e
falta de critérios: “(...) as juntas de Inspeção de saúde não tinham crité-
rios uniformes. Não estavam mesmo adestradas para tal atividade, nem
dispunham de material especializado” (ROSA, 2010, p. 32).
Em decorrência, grande parte do efetivo chegava ao front sem
condições, inclusive físicas, de desempenhar as funções militares. O
grande efetivo da FEB era composto por jovens pobres, advindos do

132
meio urbano ou que trabalhavam em pequenas propriedades de terra
para subsistência, geralmente colonos. A maioria do efetivo de expedi-
cionários era composta por analfabetos e da parcela jovem do efetivo a
maioria era voluntária.

Os demais seguiam a Lei do Serviço Militar de 1939, pre-


conizado como um ato de cidadania a que estavam sujei-
tos os jovens alistados no Exército Brasileiro. Esse serviço
condicionava os direitos políticos e sociais a prestação de
serviço obrigatório. Contudo, mesmo tratando-se uma
obrigação de todos os homens brasileiros, não havia um
nivelamento nesse cumprimento do dever, pois aqueles
que eram de famílias mais abastadas, acabavam utilizan-
do de artifícios para realizar suas fugas desse compromis-
so com a pátria, ocorrendo que a grande maioria atingida
por esse ato de cidadania, eram os pobres e analfabetos
(CYTRYNOWICZ, 2000, p. 41)124.

Assim, enquanto a grande massa recrutada era composta por jo-


vens voluntários, pobres e analfabetos que nunca receberam treinamento
de guerra, os que seguiam a carreira militar e estavam habilitados para
enfrentar tal situação não foram para o front (CYTRYNOWICZ, 2010).
Quando conclamou os brasileiros para se unirem no esforço de
guerra, Getúlio Vargas também contou com a colaboração de sua es-
posa, Darcy Vargas, para a criação de um órgão de assistência e ampa-
ro às famílias dos soldados alistados. Esse projeto resultou na Legião
Brasileira de Assistência, instituição que foi responsável por uma série
de serviços de assistência social no Brasil e que atrelou cooperativismo e
voluntariado em suas ações a partir de 1942, ano de sua fundação.
O cooperativismo é um conceito comum aos estudos econômi-
cos relativos aos mecanismos associativos de indivíduos ligados a uma
mesma atividade econômica e que partilham lucros e resultados obtidos
mediante um produto comercializado. Neste trabalho empregamos o
conceito para a assistência social, na qual o termo cooperativismo com-

124 CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo
durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Edusp, 2000.

133
preende a adoção de uma série de aparatos organizacionais aliados ao
sistema do trabalho colaborativo, onde empresas ou indivíduos são pro-
vedores de recursos e também indivíduos de diversas esferas profissio-
nais desenvolvem atividades fins (CBCISS, 1984)125. O cooperativismo
social não visa retorno financeiro, mas sim, o desenvolvimento de ins-
tituições que promovam assistência social e possibilitem o amparo e o
desenvolvimento social de grupos que vivem em situações de risco.
Para o desenvolvimento de seus projetos a LBA contou com o
cooperativismo social e atrelou ao projeto de assistência o trabalho vo-
luntário. O voluntariado sintetiza-se como uma atividade não remune-
rada, por motivação pessoal, de forma estruturada e durante o período
que as pessoas voluntárias desejarem ou se disporem a trabalhar. Os
voluntários agem de acordo com suas próprias escolhas e motivações,
não visando obter lucro financeiro. O voluntariado está ligado ao valor
da solidariedade e se institui como um meio dos indivíduos e das as-
sociações identificarem necessidades e problemas humanos, sociais ou
ambientais e lhes darem respostas (LANDIN, 2000)126.
Nesse sentido, o voluntariado está intrinsicamente ligado ao
apelo filantrópico/caritativo da instituição e do protagonismo de
Darcy Vargas ao convocar e liderar as mulheres da nação em defesa
das famílias dos soldados.
Ivana Guilherme Simili, ao fazer um minucioso estudo sobre
a trajetória e o protagonismo de Darcy Vargas na vida pública, afirma
que sua vida é permeada pelo silêncio. Para ela, Darcy Vargas era uma
mulher silenciosa que se deixou captar somente pelos outros, pelo que
o marido Getúlio Vargas escreveu no seu Diário, pelo que a filha Alzira
Vargas disse no livro “Getúlio, Meu Pai”, pelo que a imprensa publicou
a seu respeito, pelo que as construções biográficas falam sobre ela, pelo
que as imagens fotográficas mostram.

125 CBCISS. Teorização do Serviço Social: documentos Araxá. Belo Horizonte: Agir. 1984.
126 LANDIN, Leilah; SCALON, Maria Celi. Doações e trabalho voluntário no Brasil: uma
pesquisa. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.

134
O silêncio de uma mulher e as vozes que sobre incidem
tentando mostrar e dizer algo sobre quem ela foi e o
que fez, foram usados como materiais na construção de
uma trajetória para a personagem Darcy Vargas, para a
mulher, a esposa, a mãe e a primeira-dama que ela foi
(SIMILI, 2006, p. 01)127.

Darcy Sarmanho Vargas nasceu em 1895, em São Borja, no Rio


Grande do Sul, numa família de elite - o pai era estancieiro e comer-
ciante. Em 1911, quando tinha 15 anos, casou-se com Getúlio Vargas,
que era da mesma cidade. No ano seguinte tem início a maternidade
com o nascimento dos (as) filhos (as) – Lutero (1912), Jandira (1913),
Alzira (1914), Manuel Antonio (1916) e Getúlio Filho (1917). Darcy
Sarmanho Vargas, como uma menina de seu tempo e cultura, foi criada
e educada para o casamento e como várias meninas da época, interrom-
peu a vida escolar para casar-se aos 15 anos, com Getúlio Vargas. Após
o casamento teve sucessivas gestações (em seis anos era mãe dos cinco
filhos que o casal teve), Darcy reproduzia e reforçava, em sua trajetória,
o modelo de feminilidade predominante no início do século XX, que
transformava em “missão e destino da mulher na terra” o casamento e
a maternidade. Casando-se e procriando, cumpria-se para ela o “desti-
no” traçado para as mulheres pela cultura da época e começava aquilo
que parecia predestinado como sua missão na terra: ser esposa e mãe
(SIMILI, 2006).
No entanto, o casamento de Darcy e depois a maternidade se
deram a partir de um vínculo com um homem que tinha iniciado a car-
reira política e que a ela daria continuidade, conduzindo-o à presidência
da República em 1930. Este foi um diferencial na trajetória da esposa
e mãe Darcy, porque ela acompanhou seu marido e criou um itinerário
marcado por formas de conhecimento e de participação na política. Ela
foi a esposa do advogado e deputado estadual Getúlio Vargas (1909-
1913; 1917-1921), do deputado federal pelo Rio Grande do Sul (1922-
1926), do Ministro da Fazenda no governo Washington Luis (1926-
1927), do governador do estado do Rio Grande do Sul (1928-1930),
127 SIMILI, Ivana Guilherme. Mulher e política: a trajetória da primeira dama Darcy Vargas
(1930 – 1945). Unesp: São Paulo, 2006.

135
do chefe do governo provisório instalado em 1930 e do Presidente da
República (1934-1945 e 1951-1954). Como esposa e mãe, Darcy esteve
ao lado de Getúlio, atuando e participando dos seus jogos políticos.

Foi no desempenho das funções de esposa e mãe, que


Darcy Vargas desenvolveu formas de atuação e de parti-
cipação na política, inclusive, mediante a criação de obras
sociais e assistenciais. Os relatos da filha, Alzira, mostram
que em 1930, no Rio Grande do Sul, ela criou a Legião
da Caridade, uma associação composta por mulheres da
elite gaúcha que se organizaram para produzir roupas,
angariar e distribuir alimentos para as famílias cujos ho-
mens – pais, maridos e filhos que seguiram acompanhan-
do Getúlio Vargas na sua aventura política (SIMILI,
2006, p. 02)128.

Sua participação na Legião da Caridade evidencia como as ações


de Darcy Vargas foram guiadas, desde o início de sua trajetória pública,
pela caridade e pela filantropia, afinal era o que se esperava de uma boa
católica. Isso pode ser mais bem evidenciado por ocasião da criação da
Fundação Darcy Vargas, em 1938, no Rio de Janeiro , que tinha como
objetivo:

curar, amparar e educar a infância desvalida da cidade


do Rio de Janeiro, como também promover a difusão do
ensino profissionalizante de menores de ambos os se-
xos, com o propósito de prepará-los moral e fisicamente
para uma vida útil, modesta e feliz (ATA de reunião da
Fundação Darcy Vargas de 12/12/1939).

A Fundação Darcy Vargas foi uma associação filantrópica que


contou com a participação de senhoras da elite carioca na proteção à in-
fância pobre. Fruto do trabalho filantrópico desta Fundação foi a Casa
do Pequeno Jornaleiro, criada em 1939. Esta instituição estimulou a
ligação entre a filantropia e o corporativismo, que mais tarde foi replica-
da na criação da Legião Brasileira de Assistência. A Fundação atrelou

128 Idem

136
as suas práticas assistenciais à participação de mulheres envolvidas com
a filantropia e o voluntariado, em ação conjunta com o Estado, visando
combater o abandono e a moralizar o trabalho infantil. O empresariado
atuava como patrocinador das práticas de assistência à infância desvalida.
O corporativismo é

uma forma de representação de interesses em que o


Estado possui papel fundamental, havendo sempre as-
simetria e caráter bifronte nos arranjos institucionaliza-
dos. Tais arranjos podem envolver não só classes sociais,
como igualmente os chamados policy takers (receptores de
políticas públicas), sendo sempre fundamental observar
o tipo de regime político onde ocorrem e o grau de li-
berdade/competitividade entre os interesses organizados
(GOMES, 2005, p. 114)129.

Desta forma, alguns elementos corporativos estiveram presen-


tes na criação e regulamentação das práticas de assistência promovidas
pela Fundação. Em 12 de dezembro de 1939 foi aprovado pelo Conselho
Deliberativo o Estatuto da Fundação Darcy Vargas - Casa do Pequeno
Jornaleiro. O Estatuto era composto por 28 artigos, divididos em dois capítu-
los. De acordo com o Artigo 4º de seu Estatuto, a Fundação se destinava a:

amparar, educar e encaminhar os vendedores de jornais


e outros menores de até 18 anos de idade, cuja ocupa-
ção se exercita nas ruas, será construída e mantida pela
Fundação, para morada dos beneficiários necessitados
desse auxílio, proporcionando gratuitamente a estes,
como aos demais menores, nela matriculados, assistência
médica, educação pátria, religiosa, moral, básica e ensi-
no profissional e assistência nos seus empregos, em co-
laboração com os Sindicatos Profissionais (Estatuto da
Fundação Darcy Vargas – Casa do Pequeno Jornaleiro,
artigo 4º, 1939).

129 GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. RJ: Editora FGV, 2005.

137
Os meninos e adolescentes jornaleiros eram definidos como
menor trabalhador, dado que em sua atividade permaneciam nas ruas
correndo o risco de pender para a marginalidade. Para evitar este des-
vio que futuramente poderia ocasionar problemas sociais mais amplos
relacionados à criminalidade, a Fundação foi instituída visando cum-
prir seus propósitos de amparar, educar e encaminhar os menores. A
Casa do Pequeno Jornaleiro deveria dar suporte para que esses me-
nores não permanecessem perambulando pelas ruas, e para conseguir
atingir seus objetivos a Casa deveria ter:

um restaurante para uso exclusivo de seus beneficiários,


nela matriculados para fornecer-lhes alimentação, higie-
ne e preços ínfimos, bem como fornecerá, da mesma ma-
neira, peças de vestuário e calçados, roupa lavada e outras
utilidades, incluindo-lhes hábitos de poupança, de eco-
nomia e amor ao trabalho (Estatuto da Fundação Darcy
Vargas – Casa do Pequeno Jornaleiro, artigo 5º, 1939).

A Fundação Darcy Vargas articulou medidas da esfera estatal com


a iniciativa privada para construir um espaço que pudesse amparar os me-
ninos, atendendo o que ordenava o Decreto nº 22.024, ou seja, impedir
o trabalho para menores de 14 anos. Em novembro de 1939 a Fundação
Darcy Vargas promoveu um jantar dançante na Quinta da Boa Vista em
prol da Casa do Pequeno Jornaleiro. Na ocasião compareceram membros
da elite e a arrecadação de verbas possibilitou o início das obras da Casa.
No ano seguinte, a Fundação, mediante parceria com a filantropia e o
Governo Federal, construiu uma casa com capacidade para 200 meninos,
a qual ficou denominada Casa do Pequeno Jornaleiro. Estruturas seme-
lhantes foram criadas em diversas cidades brasileiras, sendo que o mode-
lo implantado por Darcy Vargas através de sua Fundação serviu de base
constitutiva para as demais (SIMILI, 2006)130.
A atuação de Darcy Vargas no projeto Casa do Pequeno
Jornaleiro teve repercussão nacional e através da experiência no Rio de
Janeiro instituições semelhantes foram criadas em diversas capitais bra-

130 Idem

138
sileiras. Esse foi o primeiro projeto assistencial criado por Darcy Vargas
que ganhou visibilidade nacional. Alguns fatores implantados na fun-
dação da Casa do Pequeno Jornaleiro também serviram como modelo
para a instituição da LBA, como o corporativismo e o cooperativismo,
pois a participação de proprietários e representantes da imprensa como
conselheiros na Casa do Pequeno Jornaleiro do Rio de Janeiro e de suas
obrigações financeiras previstos no Estatuto indica que este segmento
era o principal financiador das obras sociais criadas por Darcy Vargas.
Desta forma,

são reconhecidas as ligações do Governo Vargas com as


empresas de jornais na época, como a subvenção ao jor-
nalismo, a censura, o controle da informação e, principal-
mente, a utilização da imprensa para a propaganda políti-
ca do governo. Neste sentido, havia um interesse comum
entre Vargas e a imprensa, a veiculação da notícia em jor-
nais. Portanto, os empresários de jornais, ao financiarem
e apoiarem a Casa do Pequeno Jornaleiro, investiriam na
venda de jornais (PEREIRA, 2009, p. 49)131.

Assim, Darcy Vargas tornou-se responsável por um modelo de


assistência conduzido por parâmetros e características semelhantes,
que ao mesmo tempo em que teve um público de assistidos especifico,
também levou em consideração as particularidades regionais, inserindo
nesta discussão empresários e políticos que foram mantenedores e arti-
culadores na promoção de assistência.

131 PEREIRA, André Ricardo. A criança no Estado Novo: uma leitura na longa duração. Rev.
Bras. Hist. São Paulo, vol.19, n.38,1999.

139
Imagem 01: fotografia do Jantar Dançante na Quinta da Boa Vista em prol da Casa
do Pequeno Jornaleiro. Na imagem Darcy Vargas de vestido estampado tendo à sua
frente, de smoking, Henrique Dodsworth (lenço no bolso)132.

Imagem 02: Darcy Vargas e os Pequenos Jornaleiros133.

A fotografia de Darcy Vargas ladeada por pequenos jorna-


leiros, todos negros, revela-nos a dimensão racial do problema da in-

132 Arquivo CPDOC, 1939.


133 Revista Nação Brasileira, 1940.

140
fância abandonada. De acordo com Kossoy, as fotografias são resíduos
do passado, são fragmentos de uma determinada realidade registrada
fotograficamente. Esses fragmentos nos oferecem indícios quanto aos
elementos constitutivos (assunto, fotógrafo, tecnologia) e registra visual
um fragmento de espaço/tempo retratado (KOSSOY, 2001)134.
Assim, na imagem observada de Darcy Vargas com os peque-
nos jornaleiros negros a questão racial ganha relevo. Dados da Casa do
Pequeno Jornaleiro atestam que a maioria dos meninos atendidos na
Capital Federal eram negros. Ligada diretamente a questão da eugenia,
que no Brasil ganhou visibilidade e legitimidade nas primeiras décadas
do século XX, seus pressupostos forneciam uma explicação para a situ-
ação de “atraso do país” e ao mesmo tempo indicavam o caminho para
a sua superação. Divulgada especialmente pelo médico Renato Kehl a
partir de 1918 e pela Sociedade Eugênica de São Paulo, a eugenia no
Brasil “conferia modernidade ao meio científico e intelectual das pri-
meiras décadas do século XX”, sendo que médicos, higienistas, juristas
e educadores podem ser considerados os principais interessados nessa
discussão” (KOBAYASHI, FARIA, COSTA, 2009, p. 320)135.
A eugenia foi conceituada pelo médico sanitarista J. P. Fontenelle
como sendo “a parte da higiene que utiliza todos os conhecimentos
científicos que concorrem para melhoramento físico e mental das ge-
rações futuras”. O termo tem sua origem do grego eugenés, que significa
bem-nascido, e fazendo da eugenia como técnica de poder, como instru-
mento científico por excelência.
Assim, amparar os pequenos jornaleiros extrapolava os pressu-
postos básicos de caridade, intervindo numa questão direta de higiene
da raça e ruptura dos descontroles sociais que poderiam resultar em
marginalidade, violência urbana e doenças. Os meninos pobres e negros
precisavam ser cuidados e moralizados para que não representassem
uma futura ameaça ao país, e Darcy Vargas tinha um importante papel
nessa ação, através da assistência social.

134 KOSSOY, Boris. Fotografia e história. 2 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
135 KOBAYASHI, Elisabete; FARIA, Lina; COSTA, Maria Conceição da. Eugenia e
Fundação Rockefeller no Brasil: a saúde como proposta de regeneração nacional. Porto Alegre, ano 11,
n. 22, p. 317, jul./dez. 2009.

141
Ivana Simili, ao analisar a participação de Darcy Vargas na as-
sistência social no Rio de Janeiro, afirma que “a importância conquista-
da pela Fundação Darcy Vargas pode ser interpretada como efeitos do
poder de Vargas sobre os trabalhos assistenciais da esposa” (SIMILI,
2006, p. 95). Mediante a criação da Fundação Darcy Vargas e da Casa
do Pequeno Jornaleiro é possível observar o modelo de assistência em-
pregado pela Primeira Dama, que atrelava o corporativismo do Estado
e o patrocínio da iniciativa privada para promover assistência social136.
O protagonismo das primeiras damas é abordado na historiogra-
fia como tendo papel secundário, como um percurso permitido às mu-
lheres em decorrência do papel principal dos Presidentes, Governadores
e Prefeitos. O primeirodamismo refere-se à atuação de muitas mu-
lheres, que em virtude do casamento, ligaram-se ao universo político
através dos mandatos de seus cônjuges, e por consequência desse elo,
lhes foram designadas funções femininas. A função de primeira dama
no Brasil, desde Mary Sayão Pessoa e Darcy Vargas, está atrelada ao de-
sempenho de atividades benemerentes que visam o amparo e proteção
de grupos sociais que vivem em situação de risco.
Contudo, pouco se sabe sobre a atuação dessas mulheres, encon-
tramos em algumas publicações menções a elas, mas o que aparece em
primeiro plano é a atuação política dos homens, seus maridos. As pri-
meiras damas aparecem como colaboradoras das atividades políticas dos
cônjuges e como lideranças de obras benemerentes. A partir de experi-
ências como de Darcy Vargas, as primeiras damas passaram a ter mais
inserção, liderança e visibilidade a partir do terreno da assistência social.
Em 1942, Darcy Vargas empenhou-se em estabelecer um novo
projeto de assistência, o qual foi solicitado por seu marido, o Presidente
da República. De acordo com Sposati e Falcão, os esforços de guerra
estavam em pleno desenvolvimento nos países envolvidos na Segunda
Guerra, compreendendo a atuação feminina e filantrópica no auxílio e
assistência aos soldados combatentes e de suas famílias desamparadas.

136 Darcy Vargas não foi a Primeira Dama a atuar em obras assistenciais, outras como Mary
Sayão Pessoa, esposa de Epitácio Pessoa, também se destacaram na filantropia antes dela, mas
sem o mesmo apelo e propaganda.

142
De acordo com Françoise Thébaud137, desde a Primeira Guerra
as mulheres foram convocadas para atuar diretamente no front como
enfermeiras, cozinheiras e secretárias, ou então como voluntárias em as-
sociações e campanhas filantrópicas.
O modelo de atuação feminina em esforços de guerra se estabe-
leceu fortemente durante a Segunda Guerra. Alguns trabalhos138 mos-
tram a inserção das mulheres durante este período em cenários antes
ocupados somente por homens para produzir bens básicos de consumo
nas fábricas, indústrias e mesmo nos aparatos bélicos ou então exercen-
do funções de secretárias e telefonistas. Destaca-se também a atuação
feminina no trabalho filantrópico, atuando como enfermeiras das famí-
lias pobres, como educadoras, ou angariando donativos como remédios,
alimentos e calçados, confeccionando roupas e cobertores de lã, tanto
para as famílias como para os próprios soldados. A atuação feminina
manifesta-se efetivamente através da filantropia na doação das suas ho-
ras de serviço e também nas organizações de comitês que buscavam
junto às famílias abastadas os donativos necessários.
De acordo com Thébaud, algumas famílias aristocráticas inglesas
estabeleceram em suas casas de veraneio ou em suas propriedades ru-
rais, pequenos hospitais para receber os combatentes feridos. Para tanto
contavam com o auxílio de jovens mulheres que atuavam como enfer-
meiras e cuidadoras dos soldados feridos. Como indagou Thébaud, onde
estavam as mulheres durante a guerra? Em todos os lugares onde elas
pudessem estar, ocupando todos os espaços que lhes foram permitidos
(THEBAUD, 1995).
Com a entrada do Brasil na guerra, era necessário que os homens
se alistassem, pois Exército, Marinha e Aeronáutica não tinham contin-

137 THEBAUD, Françoise. A Grande Guerra: o triunfo da divisão sexual. In: DUBY, Georges
e PERROT, Michelle. História das mulheres no Ocidente (O século XX). São Paulo: Ebradil,1995.
138 Sobre isso ver: WEITZ, Margaret Collins. Behind the lines: Gender and the Two World Wars,
New Haven, Yale University Press, 1987. THEBAUD, Françoise. A Grande Guerra: o triundo
da divisão sexual, in DUBY, Georges e PERROT, Michelle (org). História das Mulheres no
Ocidente, Porto, Afrontamento, 1995. GRAYZEL, Susan R. Women’s Identities at War: Gender,
Motherhood and Politics in Britain and France during the First World War, Chapel Hill, University
of North Carolina Press, 1999. COVA, Anne Cova (org). História comparada das mulheres. Novas
abordagens, Lisboa, Livros Horizonte, 2008.

143
gente suficiente para o conflito. Era preciso então apresentar algumas
garantias que encorajassem os brasileiros a se alistar. Neste sentido, suas
famílias pobres se tornaram o alvo de proteção. Ao prometer proteção
aos familiares dos combatentes com a provisão de alimentos, tratamen-
tos de saúde, remédios e inclusive uma moradia, Vargas garantiu aos
soldados que suas famílias não ficariam desamparadas pelo Estado.
De acordo com Cytrynowicz, a entrada do Brasil na guerra ser-
viu como uma estratégia política, pois foi possível retirar componentes
ideológicos e promover ajustes políticos e militares. Os ideais de povo
unido mobilizaram a nação estabelecendo um inimigo comum e pro-
movendo a unidade ideológica amplamente defendida durante o Estado
Novo (CYTRYNOWICS, 2000).
Desta forma, a LBA desempenhou um papel político que fa-
cilitou a entrada de homens brasileiros voluntariamente na guerra e o
fortalecimento da ideologia nacionalista pelo amparo às suas famílias.
Portanto, coube à Primeira Dama um dos mais elaborados projetos de
assistência já implantados no Brasil, pois sua abrangência visava atingir
todo o território nacional. Nada mais apropriado para o momento polí-
tico e ideológico que uma mulher cuidasse das famílias dos bravos com-
batentes, ainda mais uma mulher como Darcy, a esposa do presidente.
Com intenção de cumprir com o ambicioso projeto, no dia
28 de agosto de 1942 a Primeira Dama anunciou a criação da Legião
Brasileira de Assistência, abreviadamente LBA. Porém, a instituição foi
reconhecida somente em 15 de outubro de 1942, através do Decreto-
Lei nº 4830139, sendo promulgado seu primeiro Estatuto140.
O primeiro Estatuto da LBA tinha características centralizado-
ras, com a intenção de criar uma rede de voluntárias que fosse capaz de
conduzir seus trabalhos de forma independente, mas que respeitasse a
hierarquia e a interdependência com a Comissão Central da LBA. O
governo colaborou efetivamente com a Primeira Dama na elaboração

139 Decreto arquivado no Arquivo Geral do Ministério de Desenvolvimento Social em


Brasília.
140 O Primeiro Estatuto da Legião Brasileira de Assistência está arquivado no Arquivo Geral
do Ministério de Desenvolvimento Social em Brasília.

144
do Estatuto da LBA, ao incorporar nas práticas da instituição a colabo-
ração entre ações públicas e privadas.
Ao analisar o Estatuto é possível destacar três questões acerca do
funcionamento da LBA.

Art. 1º – A Legião Brasileira de Assistência – LBA –


criada em 28 de agosto de 1942, sob a inspiração da
Exma. Senhora Darci Sarmanho Vargas e por iniciativa
da Federação das Associações Comerciais do Brasil e da
Confederação Nacional da Indústria, é uma sociedade
civil, de intuitos não econômicos, de duração ilimitada,
e reger-se-á pelos presentes estatutos, pelo regimento in-
terno e pelas instruções, deliberações dos órgãos diretores,
no âmbito da sua competência.

Art. 2º – A LBA tem por finalidade congregar os brasilei-


ros de boa vontade e serviços de assistência social, prestados
diretamente ou em colaboração com o poder público e as
Instituições privadas, tendo em vista principalmente o se-
guinte:

- proteger a maternidade e a infância;

- amparar os velhos e desvalidos;

- prestar assistência médica, em todas as suas modalida-


des as pessoas necessitadas;

- favorecer o reajustamento das pessoas, moral ou econo-


micamente desajustadas;

- contribuir para a melhoria da saúde do povo brasileiro,


atendendo particularmente ao problema alimentar e da
habitação;

- incentivar a educação popular, inclusive cooperando na


criação e no desenvolvimento de escolas, bibliotecas e ou-
tras instituições educativas;

145
- desenvolver esforços em favor do levantamento do nível
de vida dos trabalhadores e promover o aproveitamento
racional dos lazeres do povo, principalmente estimulando
a organização de centros de recreação e cultura;

- auxiliar sempre que possível as instituições especializa-


das, cujos objetivos tenham afinidades com a LBA;

- realizar inquéritos, pesquisas e estudos sobre matérias


do serviço social, particularmente as relacionadas com as
atividades da LBA;

- organizar cursos e promover todas as formas de pro-


paganda e divulgação em favor do progresso do serviço
social no Brasil:

Parágrafo 1º – para a realização de seu programa a LBA


deverá criar serviços próprios e entrar em entendimento
com as autoridades federais, estaduais e municipais e com
as diretorias das organizações paraestatais e das institui-
ções privadas, visando a conjugação de esforços, inclusive
quanto à utilização em comum de instalações e serviços;

Parágrafo 2º – na atual emergência do estado de Guerra,


em que se encontra o país, a LBA desenvolverá a sua ação
precipuamente no sentido de:

a) prestar integral apoio e decidido concurso ao Governo,


inclusive apelando para a consciência cívica do povo bra-
sileiro, visando arregimentar e aproveitar as atividades das
pessoas não mobilizadas, habilitando-as e encaminhan-
do-as, quando for solicitado, às autoridades civis e mili-
tares, ou aplicando-as nos serviços a serem organizados
pela LBA;

b) prover sob a forma de serviço social básico às famílias


cujos chefes hajam sido mobilizados;

c) organizar serviços e promover todas as formas de ati-


vidades concernentes ao programa relativo a atual emer-
gência;

146
Art. 3º – a sede e o fôro da LBA serão no Distrito Federal,
mas a sua ação se estenderá por todo território nacional.

A primeira questão a se destacar é que a LBA entrou em funcio-


namento após seu reconhecimento em 15 de outubro de 1942, apesar de
sua criação ocorrer no mesmo momento em que o Presidente anunciava
a entrada do Brasil na guerra. Ou seja, foram dois meses para orga-
nizar e sistematizar suas ações e suas formas de parceria. Como visto
anteriormente, a filantropia no Brasil até este momento, contava com
colaborações individuais de filantropos, de grupos de industriais que
destinavam parte de seus lucros para instituições que promoviam obras
assistenciais, além da participação efetiva das associações caritativo/fi-
lantrópicas femininas. No caso da LBA, foi estabelecido um convênio
com a Confederação Nacional da Indústria e a Associação Comercial do
Brasil, ato previsto no Art. 1º da LBA. Nesse arranjo corporativo, coube
à Confederação Nacional da Indústria e à Federação das Associações
Comerciais do Brasil boa parte dos recursos financeiros que possibi-
litaram o funcionamento da LBA e a prestação dos serviços. Outra
parcela financeira ficou a cargo do Estado, que através do Decreto-Lei
nº 4830141 passou a destinar para a LBA 1% dos salários recebidos e 2%
da folha de pagamentos do Conselho Nacional do Trabalho.
Esses arranjos político e corporativo permitiram o funciona-
mento da LBA como instituição filantrópica e estabeleceu normas ope-
racionais que inseriram órgãos corporativos no funcionamento da ins-
tituição. Ocorre que concomitante com o Art. 1º que consolidou a par-
ceria entre a Legião Brasileira de Assistência, a Confederação Nacional
da Indústria e a Federação das Associações Comerciais do Brasil, o Art.
6º do Estatuto consolidou a participação do empresariado na estrutura
da instituição. Tal artigo estabelecia a Comissão Central (CC) da LBA,
que deveria ser composta por “um presidente, um secretário geral e um
tesoureiro geral”, todos homens, exceto pelo fato de um parágrafo que
determina que a “Presidência será exercida pela esposa do Presidente
da República, e na sua falta, por pessoa de relevo social”. Os próprios

141 Decreto arquivado no Arquivo Geral do Ministério de Desenvolvimento Social em Brasília.

147
arranjos corporativos delimitaram a participação feminina atrelada ao
direcionamento financeiro e administrativo de cargos masculinos re-
presentantes dos órgãos corporativos aliados a LBA. O Art. 5º, garan-
te a participação masculina em cargos de chefia, ou seja, “o tesoureiro
geral e o diretor técnico serão indicados pelas diretorias da Federação
das Associações Comerciais do Brasil e da Confederação Nacional da
Industrias”, fato que realmente foi posto em prática, pois durante o pe-
ríodo em que este Estatuto esteve vigente apenas homens ocuparam
esses cargos.
Mediante o Art. 6º, a composição da primeira Comissão
Central da LBA teve como Presidente Geral da LBA, Darcy Sarmanho
Vargas; como Secretário Geral, Rodrigo Octávio Filho (indicado pela
Confederação Nacional da Indústria); e como Tesoureiro Geral, João
Daudt de Oliveira (indicado pela Federação das Associações Comerciais
do Brasil ) e Diretor Técnico, Euvaldo Lodi. Seguindo o Art. 3º a sede
da LBA funcionou no Rio de Janeiro, numa sala cedida pela Associação
Comercial do Rio de Janeiro, na Rua da Candelária, nº 9, mudando-se
para a sede permanente no período de duração da guerra, na Rua México,
nº 158142.
A segunda questão a ser destacada refere-se ao Art. 2º, que trata
dos seguintes quesitos:

- realizar inquéritos, pesquisas e estudos sobre matérias


do serviço social, particularmente as relacionadas com as
atividades da LBA;

- organizar cursos e promover todas as formas de pro-


paganda e divulgação em favor do progresso do serviço
social no Brasil:

Parágrafo 1º – para a realização de seu programa a LBA


deverá criar serviços próprios e entrar em entendimento
com as autoridades federais, estaduais e municipais e com
as diretorias das organizações paraestatais e das institui-

142 Informações constantes no Primeiro Relatório Bienal da LBA, arquivado no Arquivo


Geral do Ministério de Desenvolvimento Social em Brasília.

148
ções privadas, visando a conjugação de esforços, inclusive
quanto à utilização em comum de instalações e serviços;

O fato da LBA objetivar promover inquéritos, pesquisas e estu-


dos sobre a matéria de serviço social e promover cursos, propagandas e
campanhas em favor do serviço social no Brasil, coincidem com a orga-
nização de escolas de serviço social no Brasil na década de 1930 e com a
institucionalização da assistência social através da criação do Conselho
Nacional de Serviço Social (CNSS) em 1938.
O CNSS foi criado em 01 de julho de 1938 através do Decreto-
lei nº 525, e representa a primeira ação governamental de regulamentação
da assistência social no país. Um de seus idealizadores foi o Ministro do
Supremo Tribunal Federal Ataulfo de Paiva, e sua militância a favor de uma
legislação que regulamentasse a assistência social vinha de mais tempo, des-
de sua participação em 1889 no Congresso Internacional de Assistência
Pública e Privada que ocorreu em Paris. Paiva era a favor da criação de
um órgão nacional de controle das ações de assistência social que associasse
iniciativas públicas e privadas. Para ele “o Estado deveria manter posição
supletiva à iniciativa privada na atenção àqueles, temporária ou definitiva-
mente impossibilitados de pelo trabalho ou pelo apoio familiar, promover as
necessidades de existência (SPOSATI, 1988, p. 108)143.
Contudo, os ideais defendidos por Paiva e pelo grupo que defen-
dia as práticas de assistência promovidas pelo poder público, só foram
levadas a cabo em 1938, com a criação do CNSS. O Conselho ficou
sob a presidência de Ataulfo de Paiva, sendo criado como um órgão
para atuar junto ao Ministério da Educação e Saúde, cujo ministro à
época era Gustavo Capanema. O CNSS era formado por um Conselho
Consultivo, que na sua primeira composição contou com a colaboração
de homens e mulheres que eram conhecidos por promover obras filan-
trópicas de assistência social. Além de Ataulfo de Paiva, foram nome-
ados Augusto de Sabóia, juiz de menores, Olinto de Oliveira, primeiro
diretor da Assistência a Maternidade e a Infância, Eugenia Hamann,

143 SPOSATI, Aldaíza; FALCÃO, Mario do Carmo (orgs.). LBA: identidade e efetividade das
ações no enfrentamento da pobreza brasileira. São Paulo, EDUC, 1988.

149
pertencente à Associação Cristã Feminina do Distrito Federal, Raphael
Levy importante filantropo católico e Ernani Agrícola, médico e filan-
tropo, ambos eram funcionários do Banco do Brasil e Stella de Faro,
fundadora da Associação de Senhoras Brasileiras e do Instituto de
Educação Familiar, primeira escola católica de educadoras familiares e
de assistentes sociais do Distrito Federal.
O objetivo do Conselho Nacional de Serviço Social era avaliar
as solicitações de subvenção ordinárias e extraordinárias submetidas ao
órgão e encaminhar aquelas que julgassem pertinentes ao Ministério da
Educação e Saúde para aprovação e designação dos recursos solicitados.
Nos primeiros meses de atuação, o CNSS recebeu cerca de 1288
processos de solicitação de subvenções, advindos em maior número de
Hospitais das Santas Casas de Misericórdia, dos Asilos de Menores e
das Associações das Damas de Caridade. Aspecto revelador no que tan-
ge a carência de instituições de assistência no Brasil, assim como a ne-
cessidade de investimentos nas mais variadas áreas de assistencial social.
O CNSS como órgão público não tinha como objetivo promover ações
de assistência social, mas sim, julgar e encaminhar as solicitações de
subvenção apresentadas por instituição mantidas por grupos caritativos
e filantrópicos, religiosos e laicos. Assim, apesar da amplitude e inovação
que representou a criação do CNSS, sua implantação criou na verdade
um incentivo de promoção da assistência social através da benemerência
privada. Desta forma, as práticas de assistência eram delimitadas em
virtude das necessidades locais e eram mantidas por associações e enti-
dades locais.
De acordo com Mestriner, as primeiras práticas assistenciais pro-
movidas em âmbito nacional foram desenvolvidas pela Legião Brasileira
de Assistência, que após 1942 se tornou responsável por coordenar as
ações voluntárias de assistência, e alguns anos após sua institucionaliza-
ção tornou-se o órgão responsável por catalisar a assistência profissiona-
lizada, mediante a inserção de assistentes sociais com formação técnica
(MESTRINER, 2008).
A profissionalização do serviço social ocorreu na mesma década
da fundação do CNSS e se desenvolveu através da criação de institui-

150
ções profissionalizantes de Serviço Social em São Paulo e no Rio de
Janeiro. É o caso do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) criado
em 1932 em São Paulo, considerado primeira instituição profissional do
serviço social no Brasil. De acordo com Iamamoto e Carvalho, o Centro
de Estudos e Ação Social, “aparece como condensação da necessidade
sentida por setores da Ação Social e da Ação Católica de tornar mais
efetiva e dar maior rendimento às iniciativas e obras promovidas pela
filantropia (IAMAMOTO e CARVALHO, 2005, p. 168)144.
A experiência da profissionalização do serviço social no Rio de
Janeiro foi marcada pela Primeira Semana de Serviço Social em 1936.
O encontro foi promovido por Dom Sebastião Leme e contou com
a participação de ativistas de movimentos da ação social, representan-
tes de instituições de assistência caritativo/filantrópicas, representantes
do movimento católico laico e de intelectuais. O objetivo central do
Encontro era dinamizar a ação social e o apostolado laico. Ressalta-
se que a patrocinadora da Comissão de Honra do Encontro foi Darcy
Vargas. Sua participação no Encontro não se limitou à atuação sole-
ne, mas foi decisiva para impulsionar iniciativas como a criação do Lar
Proletário e do Instituto de Educação Familiar e Social.
Em 1938 foram ofertados os primeiros cursos, e em 1940 ini-
ciou-se a oferta de cursos de Preparação em Trabalho Social na Escola
de Enfermagem Ana Nery, dando origem à Escola de Serviço Social da
Universidade do Brasil. Em 1944, como desdobramento masculino do
serviço social, surge a Escola de Serviço Social.

No decorrer da década de 1940 surgem diversas escolas


de serviço social nas capitais dos Estados, sendo que qua-
torze enviam representantes ao I Congresso Brasileiro de
Serviço Social, realizado em 1947. A maioria se formará
sob a influência das duas primeiras de origem católica,
tendo em sua direção ex-alunas dessas escolas formadas
sob o regime de bolsas de estudos. A implantação das
mesmas obedecerá a processo semelhante ao de suas an-

144 IAMAMOTO, Marilda Villela; CARVALHO, Raul de. Relações sociais e serviço social no
Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 18. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

151
tecessoras de São Paulo e Rio de Janeiro, contando com o
apoio financeiro da Legião Brasileira de Assistência (…)
A existência de assistentes sociais diplomadas se limitará
por um longo período quase apenas ao Rio de Janeiro e
São Paulo, sendo que mesmo aí seu número é pouco sig-
nificativo. Até 1947, as escolas católicas de serviço social
do Rio de Janeiro (masculina e feminina) haviam diplo-
mado 40 assistentes sociais. As duas escolas de São Paulo,
196 formadas, e o curso de Trabalho Social da Escola de
Enfermagem Ana Nery, 9 formadas (…) Até o fim da
década, o número de assistentes sociais diplomados será
pouco superior a 300, concentrando-se em São Paulo e
no Distrito Federal, com esmagadora maioria feminina
(IAMAMOTO e CARVALHO, 2005, p. 186).

Apesar da criação do CNSS e das escolas profissionalizantes de


serviço social, a atuação na assistência social continuou a ser desenvolvi-
da durante algumas décadas por voluntárias. Contudo, desde sua funda-
ção, a LBA contemplou a articulação entre a instituição e a profissiona-
lização do serviço social. Essa articulação será avaliada posteriormente,
quando analisarmos as práticas da LBA e sua atuação durante o período
da Segunda Guerra . Tal articulação pode ser atribuída ao efetivo envol-
vimento de Darcy Vargas nas discussões a respeito da profissionalização
do serviço social desde a criação da Fundação Darcy Vargas e por oca-
sião de sua participação na Primeira Semana de Serviço Social do Rio
de Janeiro e na criação do Lar Proletário. Apesar disso, Darcy Vargas
teve que contar como a participação voluntária não profissionalizada, e
para isso fez um forte apelo para que a Nação se unisse a ela na assis-
tência, que num primeiro momento tinha como objetivo “amparar as
famílias dos corajosos soldados brasileiros”.
Neste momento, há que se ressaltar a relação da LBA com o
esforço de guerra. Em seu comunicado de 30 de agosto de 1942, publi-
cado no Correio da Manhã145, Darcy Vargas anunciou a criação no Rio

145 Jornal carioca diário e matutino fundado em 15 de junho de 1901 por Edmundo
Bittencourt e extinto em 8 de julho de 1974. Foi durante grande parte de sua existência um dos
principais órgãos da imprensa brasileira, tendo-se sempre destacado como um jornal de opinião
e resistente as formas de censura (CPDOC, 2017).

152
de Janeiro, da Legião Brasileira de Assistência, com a missão de prote-
ger as famílias dos bravos soldados. Com este pronunciamento, Darcy
Vargas difunde a ideia inicial da LBA como parte do esforço de guerra.
Contudo, a partir da promulgação do seu Estatuto, a LBA contempla, a
partir de seu Art. 1º, os objetivos de atuação e os grupos de apoio, que
incluem maternidade, infância, idosos, desfavorecidos, doentes, e apenas
no 2º parágrafo do 1º Artigo faz menção aos esforços de guerra.
Percebe-se que apesar do pronunciamento de criação da LBA ca-
racterizá-la como parte do esforço de guerra, seu Estatuto revela aspirações
bem mais amplas, que visavam a organização de serviços de assistência so-
cial a grupos específicos, como famílias pobres, maternidade e infância. Suas
aspirações orientavam a organização do serviço social em todo território
nacional, assim, apesar do objetivo inicial condicionar sua fundação ao mo-
mento da guerra, o resultado de dois meses de sistematização dos serviços
da LBA aspiravam um trabalho mais amplo e permanente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destaca-se que as bases de assistência propostas pela LBA arti-


cularam em sua formação os modelos de assistência que vinham sendo
praticados no Brasil pelas instituições caritativo/filantrópicas. Ao fun-
dar a Legião, Darcy Vargas e o grupo de idealizadores que a acom-
panhou, incorporaram ao projeto a atuação de médicos, enfermeiras e
professoras, assim como conclamaram a participação de mulheres das
classes privilegiadas ligadas às associações filantrópicas e de voluntárias
que pudessem cumprir com os objetivos de assistência idealizados para
a LBA. Ainda no contexto de sua fundação, havia o incentivo a inserção
de profissionais especializadas , oriundas das Escolas de Serviço Social.
Além disso, o projeto da LBA contemplou a parceria com outras
instituições existentes no Brasil, a fim de promover campanhas de assis-
tência que atingissem todo o território nacional. Para promover os pro-
jetos idealizados por Darcy Vargas, ela conclamou “pessoas de boa von-
tade” para atuar de forma voluntária na assistência social. Seu projeto
preconizou a assistência voluntária que permaneceu ativa no Brasil até

153
1995, quando foi extinta pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso,
dando lugar ao Programa Federal Comunidade Solidária. Foram 53
anos de atuação. A instituição teve vários Presidentes e alterou sua es-
trutura administrativa ao longo deste tempo.
O que permaneceu foi o objetivo central da Legião: o comba-
te aos males relacionados à pobreza. Durante seus primeiros anos de
atuação a LBA foi fortemente marcada pela característica filantrópica
e por se tratar de uma instituição que contou com o apoio voluntário
de milhares de mulheres em todo o território brasileiro. A participação
feminina se deu pelo engajamento de esposas de políticos, mulheres já
atuantes nas práticas filantrópicas, jovens estudantes e donas de casa.
Essas mulheres marcaram uma geração de mulheres envolvidas pela ins-
tituição como protagonistas na promoção da assistência social ou como
beneficiadas pelas várias redes de assistência que a instituição manteve.

REFERÊNCIAS
CBCISS. Teorização do Serviço Social: documentos Araxá. Belo Horizonte: Agir. 1984.
CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a
Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Edusp, 2000.
GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. RJ: Editora FGV, 2005.
IAMAMOTO, Marilda Villela; CARVALHO, Raul de. Relações sociais e serviço social no Brasil:
esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 18. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
KOSSOY, Boris. Fotografia e história. 2 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
KOBAYASHI, Elisabete; FARIA, Lina; COSTA, Maria Conceição da. Eugenia e Fundação
Rockefeller no Brasil: a saúde como proposta de regeneração nacional. Porto Alegre, ano 11, n. 22, p.
317, jul./dez. 2009.
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155
EIXO III

ASSUNTOS PÚBLICOS:
GRUPOS SOCIAIS, VISIBILIDADE
E POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO
FOTOGRAFIAS HISTÓRICAS ARCAICAS
DA POPULAÇÃO LGBT+

Iran Ferreira de Melo


Richard Fernandes de Oliveira146

RESUMO
O alinhamento dos direitos que pessoas LGBT+ possuem como cidadãos/ãs incide so-
bre as bases da organização social e da cultura em que vivemos. Neste texto, expomos
um breve passeio pela história social – da Grécia antiga ao nascer do século XX – das
identidades periféricas de orientação sexual e de gênero e suas demandas e constituições,
a fim de apontar um pouco a sua influência nas inquisições sobre esses corpos dissidentes
até hoje.
Palavras-chave: LGBT+; direitos humanos; história

ABSTRACT
The alignment of the rights that LGBT + people have as citizens focuses on the
foundations of the social organization and culture in which we live. In this text, we
expose a brief tour through the social history – of ancient Greece at the dawn of
the 20th century – of the peripheral identities of sexual orientation and gender and
their demands and constitutions, in order to point out a little their influence on the
inquisitions on these dissident bodies until today.
Keywords: LGBT+; human rights; history

PENETRANDO O TEMA

Enquanto no reino animal irracional as funções sexuais são de-


terminadas fundamentalmente pelo instinto, a sexualidade humana se
manifesta através de padrões culturais determinados historicamente,
“não possui uma essência a ser desvelada, mas é antes um produto do
aprendizado de significados socialmente disponíveis para o exercício da

146 Ambos pesquisadores vinculados à Universidade Federal Rural de Pernambuco.

157
atividade humana”147. Isso significa que, em nosso meio, a sexualidade
é tão construto cultural quanto os outros hábitos que temos, sofrendo,
por isso, inclusive, grande variação em suas formas – de acordo com os
distintos momentos históricos e as diferentes sociedades e culturas –,
além de existir como um fenômeno, que tem uma história particular tão
inconfundível quanto a história das ideias políticas148.
Todavia, as sociedades contemporâneas ocidentais insistem que
a sexualidade seja puramente instintiva, inata e natural, relutando em
reconhecer que as atividades sexuais e eróticas são produzidas cultural-
mente149. Isso funciona como pretexto para que a cultura hegemônica
dessas sociedades eleja como natural ou normal o padrão predominan-
temente enquadrado às normas propostas por essa cultura, qual seja,
a identidade do sujeito macho de traços masculinos, cor de pele reco-
nhecida como branca e de orientação heterossexual, o que corresponde
ao mesmo dominante, isto é, “aquela instância que, por se colocar como
maioria [de direitos], se coloca também como representante do que se
acredita constituir um certo estado de normalidade. Tudo que escapa à
sua ordem é a alteridade”150. Dessa maneira, nessas sociedades, o mesmo
dominante corresponde à identidade legítima e hegemônica, e o outro,
sua alteridade – ou toda e qualquer pessoa que fuja a esse perfil –, iden-
tidade marginal, cuja percepção de si deve sempre ocorrer em referência
ao modelo de comportamento proposto pelo mesmo dominante, o com-
portamento considerado normal.
Sendo assim, sob o esteio cultural desse modo de representar a
sexualidade, quando alguém nasce nessas sociedades, cria-se uma série

147 HEILBORN, M. L. Ser ou estar homossexual; dilemas da construção da identidade social.


In: PARKER, R.; BARBOSA, M. R. (Orgs.). Sexualidades brasileiras. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1996, p. 137.
148 HIGHWATER, J. Mito e sexualidade. Tradução João Alves dos Santos. São Paulo: Saraiva,
1992.
OKITA, H. Homossexualidade da opressão à libertação. São Paulo: Sundermann, 2007. (Coleção 10).
149 FÍGARI, C.; DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. Introdução. Sexualidades que importam: entre a
perversão e a dissidência. In: DÍAZ-BENÍTEZ, M. E.; FÍGARI, C. Prazeres dissidentes. Rio de
Janeiro: Garamond, 2009. p. 21-30. (Coleção sexualidade, gênero e sociedade).
150 FERREIRA, R. Ser e não ser: eis a questão – as minorias sexuais entre a legitimidade da
diferença e o perigo da sua ontologização. In: RAJAGOPALAN, K.; FERREIRA, D. M. M.
(Orgs.) Políticas em linguagem: perspectivas identitárias. São Paulo: Mackenzie, 2005. p. 188.

158
de expectativas a respeito do comportamento social e da performance
sexual apropriados que a pessoa deve seguir no decorrer de suas vidas.
Tais expectativas são impostas por meio de vários mecanismos ideoló-
gicos, fazendo com que meninos e meninas sejam, desde cedo, subme-
tidos/as a “um tratamento diferenciado que os ensina os comportamen-
tos e emoções considerados adequados. Qualquer ‘desvio’ é reprimido
e recupera-se o ‘bom comportamento’”151. Em outros termos, significa
que nascemos machos e fêmeas e a cultura dessas sociedades nos faz
homens e mulheres. Mais ainda, torna-nos seres masculinos e femini-
nos e estabelece as fronteiras entre a identidade dominante e as outras
consideradas subversivas e, por isso, periféricas, ou seja, marginais do
lugar simbólico de poder e prestígio social que o mundo ocidental con-
temporâneo erige.
Essas identidades periféricas, em geral, transgridem a relação de
congruência sexo-gênero-prática-desejo construída culturalmente152, ma-
triz linear que corresponde à classificação de pessoas cujo sexo biológico
é coerente com a sexualidade/desejo dirigida a pessoas do sexo biológico
oposto e cujas expressões de gênero estão diretamente ligadas aos mo-
dos de viver essa sexualidade, atrelando a masculinidade à vivência sexual/
erótica de homens biológicos com mulheres biológicas e a feminilidade
à experiência contrária. É essa matriz que posiciona a sociedade a definir
esses homens biológicos e que desempenham o papel de ativos no ato
sexual (aqueles que penetram as mulheres e compõem o grupo dos mes-
mos dominantes) como verdadeiramente homens, e todos os outros, que
nasceram biologicamente homens (machos) – mas que não preenchem
esse perfil –, como “bichas” ou (trans)“viados”, identidade subversiva ao
“normal”153.
Essa hierarquia de sexualidade e de gênero, articulada a partir
da oposição macho/masculinidade/atividade sexual versus fêmea/femi-

151 FRY, P.; MACRAE, M. O que é homossexualidade. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 11.
(Coleção Primeiros Passos).
152 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
153 FRY, P. Para inglês ver. Identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro, Zahar,
1982.

159
nilidade/passividade sexual, busca englobar compulsoriamente todas as
categorias e identidades sexuais e de gênero. Quem não se enquadra é
percebido/a como uma espécie híbrida e dissidente do cânone cultural,
ainda que, em algumas sociedades, a prática sexual entre indivíduos do
mesmo sexo tenha sido considerada parte de solenidades religiosas e,
por isso, atividade ritualística sagrada154, como veremos. Entretanto, em
geral, esse referido padrão de identidade periférica vem se mostrando, ao
longo dos tempos, como agente desestabilizador da homogeneidade e
hierarquia dos comportamentos sexuais/eróticos e das performances de
gênero instituídos pelo modelo hegemônico, contrariando valores e “re-
presentando uma verdadeira revolução dos costumes, na medida em que
questiona, ameaça e pode destruir os [...] alicerces em que se escoram a
moral e a sexualidade na cultura tradicional do Ocidente”155. Por isso, tal
ideia nos obriga a repensar diversos axiomas fundantes da cultura ho-
dierna, que, de forma irrefletida e perversa, persistem em nossa ideologia
e modus vivendi. Para tanto, na seção a seguir, apontaremos um pouco
do rastro histórico de como algumas culturas lidaram com a diversidade
sexual e de gênero, pensando nas identidades periféricas como possibi-
lidades pouco ortodoxas das maneiras como as pessoas exerceram sua
sexualidade, afirmaram sua masculinidade e feminilidade e, sobretudo,
como se firmaram na posição de sujeitos políticos e agentes de resistên-
cia social no interior dessas sociedades ocidentais.

HISTÓRIA ARCAICA DA POPULAÇÃO LGBT+: DAS


SOCIEDADES FUNDACIONAIS ÀS PÓS-INDUSTRIAIS

A sexualidade e a identidade de gênero têm sido sempre parte


integrante da experiência humana, porém as atitudes sobre elas variam
de acordo com a época, a sociedade e as condições materiais. Por exem-
plo, nas sociedades primitivas, ou também chamadas fundacionais, as

154 RIBEIRO, A. S. M. et al. A homossexualidade masculina, vivências e significados. In:


ALMEIDA, A. M. O. et al. Violência, exclusão social e desenvolvimento humano. Estudos em
representações sociais. Brasília: UNB, 2006. p. 261-299.
155 MOTT, L. A revolução homossexual: o poder de um mito. Revista USP, São Paulo, n.49,
p. 41, mar./mai. 2001.

160
necessidades básicas para a sobrevivência eram repartidas igualitaria-
mente, sem divisões de classe, por isso homens e mulheres conviviam
em igualdade de condições simbólicas e materiais. A segregação entre as
pessoas a partir do reconhecimento de traços de gênero (típica nos dias
atuais) não caracterizava essas comunidades. Todas as pessoas tinham as
mesmas condições de vida e as únicas distinções giravam em torno das
necessidades funcionais, nada tendo a ver com o papel social que o mas-
culino e o feminino possuem na maior parte do mundo atualmente.156 Já
a sexualidade, nesse contexto comunal, tinha outras funções e contornos
diferentes daqueles que o mundo posterior passou a construir. Naquele
momento, havia uma relação intrínseca entre as atividades sexuais/eró-
ticas e as práticas religiosas. Atos rituais que envolviam práticas sexuais
entre indivíduos de mesmo sexo e de sexos diferentes eram, muitas ve-
zes, parte integrante das cerimônias, inclusive religiosas. O ato sexual
tinha cunho sagrado e era compreendido como um ato de comunhão
entre Deus e o/a participante.
No entanto, após esse período, o modo como concebemos as rela-
ções sexuais entre pessoas do mesmo sexo, o exercício de tornar públicas
as identidades dos indivíduos envolvidos nessas relações e as expressões
públicas de afeto desses indivíduos recebeu, no Ocidente, tratamentos de
toda sorte. Representações e categorizações variadas levaram as pessoas
envolvidas nessas práticas a lugares sociais bastante distintos das expe-
riências típicas das sociedades fundacionais. A exemplo disso, podemos

156 Nessas sociedades, os homens se responsabilizavam, porém não exclusivamente, pelos


afazeres de longa distância, como caçar, e as mulheres, por serem reprodutoras, precisavam fixar-
se mais proximamente à comunidade, embora não se isolassem no lar. Em virtude dessa relação
com a moradia, elas eram responsáveis por domesticar os animais, iniciar o cultivo das plantações
e construir as primeiras moradias, atividades que necessitavam de proximidade com o ambiente
de estada. Desse modo, esses agrupamentos sociais caracterizavam-se como sendo, lato sensu,
matriarcais, ainda que não houvesse nenhum tipo de dominação da mulher, e, por isso, podem
ser apresentados em função dos laços maternais (de gestação e criação) que conduziram a cultura
que os caracterizava. Além disso, não havia ali a concepção de paternidade, pois – ao contrário da
ideia de que a lei estaria sempre ligada à figura paterna, servindo, assim, para manter o sistema
de dominação masculina na sociedade – os pais não se apresentavam como tais e, portanto,
os agrupamentos familiares eram monoparentais (a co-habitação entre homens e mulheres só
passou a existir no fim desse período de comunismo fundacional). O cuidado da criança era
dividido entre seus irmãos e sua mãe, os pais tinham o papel apenas de visitantes do lar tribal.

161
citar inicialmente as primeiras formações sociais escravagistas gregas, que
abandonaram o primado da sexualidade ritual religiosa envolvendo prá-
ticas homossexuais, em virtude de julgamentos morais receosos de que
houvesse “uma tendência a que estes rituais evoluíssem para uma cha-
mada prostituição do templo, embora muitos ritos sexuais em vários cul-
tos não acontecessem em troca de dinheiro”157. Porém, essas sociedades
preservaram as relações sexuais entre pessoas de mesmo sexo biológico,
deslocando-as do contexto religioso para uma conjuntura de caráter peda-
gógico na iniciação da sexualidade (muitas vezes, em rituais de passagem
para a puberdade). Tratava-se de uma prática de transmissão de conheci-
mentos e virtudes morais que homens espartanos exerciam sobre efebos
por meio de atos sexuais intracurais em que estes ocupavam papel pas-
sivo, a fim de receber, simbolicamente, através da ejaculação, qualidades
oriundas da experiência que aqueles fautores possuíam em guerras, o que,
segundo essa sociedade, garantia aos jovens uma vida promissora como
homens de poder.
Nesse horizonte, as práticas sexuais entre sujeitos de mesmo sexo
biológico tornaram-se comuns na maioria das cidades-Estado, fosse entre
membros de exércitos, fosse como representação da mitologia grega, ou
ainda entre mulheres, como as lésbicas de Esparta158. Entretanto, essas
práticas sexuais estavam sempre sob o julgo de regulações morais da so-
ciedade de classes grega, que as impossibilitavam de ocorrer de qualquer
forma. Não era possível, por exemplo, que, nesses atos, houvesse inversão
de papéis sexuais, isto é, em hipótese alguma, uma pessoa mais jovem ou
de status social considerado inferior (escravo ou homem livre) poderia
penetrar sexualmente um homem mais velho ou alguém que ocupasse
lugar de poder social, assim como outro homem da mesma idade e de
mesma posição social. Isso significa que as decisões por práticas sexuais na
Grécia Antiga estavam ligadas à divisão de estratos sociais, que, já naquele

157 OKITA, H. Homossexualidade da opressão à libertação. São Paulo: Sundermann, 2007. p.


38-39. (Coleção 10).
158 Muitos exemplos de literatura, pintura e cerâmica gregas clássicas, remanescentes do século
V a.C., registram claramente a prática do amor lésbico em diversas comunidades gregas daquela
época.

162
momento, classificava os indivíduos por categorias de poder simbólico e
material.
Esse caráter regulatório sobre as práticas homoeróticas da
Antiguidade Grega, movido eminentemente por interesses políticos, le-
gou também a tradição judaico-cristã, que, sob o projeto civilizatório de
religiões pró-natalistas, estimulou a procriação, aspirou à longevidade
máxima e reprimiu o sexo não-reprodutivo, a fim de edificar uma pu-
jante nação herdeira da moral religiosa proferida por Abraão no Antigo
Testamento159. Nesse contexto, cada gota de esperma desperdiçada pas-
sou a constituir verdadeiro crime de lesa-nacionalidade, pois todo sê-
men deveria possuir apenas interesses reprodutivos, originando o mito
que serviu de base e justificativa não só à ulterior condenação do homo-
erotismo, mas também à sexofobia, que passou a caracterizar e distinguir
a cultura sexual judaico-cristã da sexualidade dos povos circundantes e
a salientar o tabu à nudez, o machismo, o patriarcado, a monogamia, a
indissolubilidade do matrimônio como alicerce da família e a virgindade
pré-nupcial como requisito para as alianças matrimoniais.
Com isso, práticas eróticas como a masturbação (“onanismo”) e o
sexo entre homens passaram a ser consideradas “pecado de sodomia”160,
porque, a partir delas, há a possibilidade de se ter prazer pelo prazer, sem
a reprodução como uma espécie de tributo a ser pago. Mais do que isso,
como restrição política, essas práticas passaram a levar os indivíduos a
julgamento pelo Tribunal Eclesiástico, onde os culpados eram entregues
ao poder civil para serem punidos desde prisão até pena de morte.
Desse modo, tais mitos fundadores, construídos na cultura ju-
daico-cristã enfileiraram uma série de práticas condenatórias contra
homossexuais, mormente a partir do império de Alexandre Severo, em
Roma, no começo do século III d.C., quando se instituiu publicamen-

159 MOTT, L. A revolução homossexual: o poder de um mito. Revista USP, São Paulo, n.49,
p. 40-59, mar./mai. 2001.
160 “Sodomia” é um termo que tem origem a partir do capítulo 19 do livro bíblico Gêneses –
onde se relatam os costumes da cidade de Sodoma –, sendo comumente usado para designar as
práticas homo ou heterossexuais anais. Essa palavra foi, por muito tempo, também utilizada, até
mesmo cientificamente, para caracterizar qualquer ato sexual não reprodutivo. Entretanto, desde
as últimas décadas do século XX, tal vocábulo tem sido considerado pejorativo.

163
te a primeira posição oficial anticristã de uma civilização inteira no
Ocidente, ocasião em que se ordenou a prisão massiva e a deportação de
homens que faziam sexo com outros homens161. Sendo assim, após esse
momento histórico, muitas práticas semelhantes continuaram, como o
apedrejamento, segundo a Lei Judaica; a decapitação, por ordem do im-
perador Constantino em 342 d.C.; enforcamentos; afogamentos; morte
na fogueira, principalmente durante o apogeu da Idade Média; dentre
outras. Tudo isso recebeu seu ápice quando o Cristianismo se tornou
uma religião dominante no final do império romano, na Idade Média,
e, assim, a chamada sodomia passou a ser considerada, em quase toda
Europa, dentre todos os crimes, como o mais hediondo, equiparado, na
sua punição, aos delitos de lesa-majestade e à traição nacional.
A tática perseguidora favorita da Igreja durante a época da Santa
Inquisição – que começou em 1233 – era acusar os nobres ricos, cujas
terras e bens lhe interessavam, de práticas de heresia religiosa ou de
sodomia, ou ainda as duas juntas162. Isso permitiu que ela passasse a
ter em suas mãos uma forte arma econômica a apoderar-se dos bens
dos acusados. Além disso, os chamados processos de bruxaria também
funcionavam como uma conhecida forma de a Igreja cercear as práticas
homoeróticas através de torturas utilizadas para forçar as vítimas a con-
fissões. Desse modo, milhares de pessoas foram torturadas, mutiladas e
mortas163, fato que indica o nível de opressão contra os indivíduos que
se declaravam homossexuais na Idade Média.164
Com o passar dos séculos e o fim do Feudalismo, o Cristianismo
medieval deu lugar ao conservadorismo absolutista monárquico, que,
embora tenha solapado as perseguições medievais (os resquícios dos
cultos religiosos sexuais pagãos foram em grande parte eliminados), o

161 TREVISAN, J. S. Devassos no paraíso. A homossexualidade no Brasil, da colônia à


atualidade. 6 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2004.
162 OKITA, H. Homossexualidade da opressão à libertação. São Paulo: Sundermann, 2007. (Coleção 10).
163 Ibidem.
164 A conhecida perseguição à Joana Dar’c (1412-1431), é muito significativa do ponto de
vista da história da opressão a pessoas consideradas de gênero e sexualidade dissidentes na Idade
Média, pois ela era acusada, na verdade, não apenas de bruxaria e crimes políticos, mas também de
travestilidade, por usar roupas masculinas, sendo, por isso, executada na fogueira pelas autoridades
eclesiais.

164
preconceito já havia se integrado na sociedade ocidental nessa época.
Em seguida, com o advento da Revolução Industrial e, depois, com a
Revolução Burguesa na França, decretou-se um novo código legal nes-
se país, chamado Código de Napoleão, para o qual os atos homoeróticos
foram excluídos da lista de ofensas e crimes – como outrora eram clas-
sificados na Idade Média.
Essa diminuição da histeria anti-homoerótica se deu em con-
sequência do reconhecimento dos direitos sexuais burgueses pela jo-
vem burguesia democrática165. No entanto, todos os países capitalistas
perpetuaram a opressão anti-homossexual, com ou sem a ajuda de lei,
assim como perpetuaram a opressão e exploração da mulher, dos po-
vos não-brancos, dos membros das nacionalidades oprimidas e da classe
operária em geral166. O comportamento homoerótico continuou a ser
visto como uma ameaça ao funcionamento da família patriarcal, de tal
maneira que teve que ser regulado, perseguido e, em alguns casos, eli-
minado. O homoerotismo foi veementemente, nessa época, acusado de
entrar em conflito com a família, instituição que, segundo a concepção
burguesa vigente, sustentava e servia de base para o sistema capitalista
de reprodução de mão-de-obra barata.
Sob essa perspectiva e, seguindo a lógica tradicional secular de
valorização do sêmen (seja como elemento de virtude ou de procriação),
nessa época, teorias médicas passaram a atribuir significados simbólicos
a esse líquido que, somados ao valor natalista e de legitimação da família,
associavam-no à masculinidade, à força, à reprodução e à vida167, por isso
o seu desperdício passou a ser tido, ao longo dos séculos, como pernicioso,
capaz de causar fraqueza, debilidade, loucura e até morte168, o que fez com
que os homens fossem severamente aconselhados a evitar a masturbação,
pois se acreditava que essa prática erótica levava a uma grande variedade
de moléstias. Em função disso, revigorou-se a ideia judaico-cristã de que

165 OKITA, op. cit.


166 Ibidem.
167 PELÚCIO, L. Gozos ilegítimos: tesão, erotismo e culpa na relação sexual entre clientes
e travestis que se prostituem. In: FÍGARI, C.; DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. Prazeres dissidentes
(Orgs.) Rio de Janeiro: Garamond, 2009. p. 71-92.
168 HIGHWATER, J. Mito e sexualidade. Tradução João Alves dos Santos. São Paulo: Saraiva, 1992.

165
as atividades homoeróticas impossibilitavam o uso adequado do sêmen
na medida em que essas práticas podiam desperdiçá-lo, impedindo, assim,
não só sua função procriativa – importante para a perpetuação da família
burguesa –, mas também o vigor considerado masculino.
A partir desse momento, eis que veio da Inglaterra – país hege-
mônico do ponto de vista cultural e militar do século XIX – a dissemi-
nação das ideias que colocaram a sexualidade como tema conflituoso
sem precedentes. Sob a lógica das sociedades burguesas vitorianas, a
sexualidade passa a ser negada e reduzida ao silêncio. Quanto às sexua-
lidades periféricas, “que vão incomodar noutro lugar: que incomodem lá
onde possam ser reinscritas, senão nos circuitos da produção, pelo me-
nos nos do lucro”169. O rendez-vous e a casa de saúde foram os únicos lu-
gares de tolerância. As palavras, os gestos, então autorizados em surdina,
trocavam-se, nesses lugares, a preço alto. Somente aí, a sexualidade que
fugia dos padrões das famílias burguesas teria direito a algumas das for-
mas do real, mas bem insularizadas, e a tipos de discurso clandestinos,
circunscritos, codificados. Fora desses lugares, o puritanismo moderno
impôs seu decreto de interdição, inexistência e mutismo.
Diante disso: “Estaríamos liberados desses dois longos séculos
onde a história da sexualidade devia ser lida inicialmente como a crônica
de uma crescente repressão?”170. Nós, em plena era pós-moderna, não
passamos ainda de vitorianos no que concerne à questão da sexualidade,
uma vez que ainda agimos e reagimos como as pessoas do século XIX171.
A sexualidade tal como na sociedade oitocentista, ainda se encontra
confinada dentro de casa, sendo somente permitida no seio da família
nuclear, perfazendo a lógica já difundida de que a sexualidade “normal”
é aquela destinada à reprodução.172 O casal heterossexual e procriador

169 FOUCAULT, M. História da sexualidade 1. A vontade se saber. 10 ed. Rio de Janeiro:


Graal, 2005, p. 10.
170 FOUCAULT, M. História da sexualidade 1. A vontade se saber. 10 ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2005, p. 11.
171 Ibidem.
172 A família nuclear ou heterossexual é aquela formada a partir de dois indivíduos que
ocupam função materna e paterna, respectivamente vivenciadas por uma mulher e por um
homem cisgêneros e monogâmicos que têm filhos advindos de uma relação consanguínea. Ela
prevaleceu na sociedade burguesa da era vitoriana e vem sendo valorizada, séculos a fio, como o

166
torna-se o modelo paradigmático; a verdade se encerra em torno dele;
por conseguinte, tudo e todos/as que não se enquadram nesse modelo
passam a ser vistos/as como “anormais”. Além desse bastião (a família), a
sexualidade em geral era administrada e reprimida com tanto rigor, nos
séculos vitorianos, “por ser incompatível com uma colocação no traba-
lho, geral e intensa, na época em que explora sistematicamente a força de
trabalho”173. Assim, não se poderia tolerar que ela fosse dissipar-se nos
prazeres. Por isso, conclui-se que, nos séculos XVIII e XIX, na Europa
Ocidental, “a causa do sexo – de sua liberdade, do seu conhecimento e
do direito de falar dele – encontra-se com toda legitimidade, ligada às
honras de uma causa política”174.
A partir desse momento histórico, formou-se a ideia de que a
saúde das nações era diretamente ligada à saúde da família e, portanto,
dependente do controle da sexualidade. Por isso, daí em diante, são os
médicos que vão reivindicar a autoridade de falar a “verdade” sobre a
sexualidade, bem como passam a ser eles os agentes da gradual trans-
formação das identidades sexuais periféricas de “crime” e “pecado” para
“doença”, ao longo dos anos que seguem. Com isso, o homoerotismo
começa a ser medicalizado e toda a concepção se transforma, passando a
haver uma batalha em torno de uma definição jurídica ou médica do que
então se chamava sodomia. Não se tratava mais de condenar LGBT+,
mas de compreender (e tratar) pessoas que se caracterizam por tipos
de desejos eróticos considerados desviantes. Surge, então, o rótulo de
pervertido ou invertido como um personagem a ser estudado e explicado
pela Medicina (e não mais condenado pela Justiça).
Todavia, a noção de homoerotismo como doença – especialmen-
te defendida pela Psiquiatria daquele momento – passa a ser revista,
ao fim do século XIX, a partir do advento da Sexologia, disciplina que
catalogou uma variedade de expressões da sexualidade humana como
determinadas a condições biológicas e a constituições corporais supos-
tamente inatas e imutáveis175. Os compêndios da Sexologia se orien-

único modelo legítimo de construção familiar.


173 FOUCAULT, op. cit., p. 11.
174 Ibidem, p. 12.
175 SIMÕES, J. A.; FACCHINI, R. Na trilha do arco-íris. Do movimento homossexual ao

167
taram por preocupações políticas e morais voltadas a identificar o que
consideravam perversões ou ameaças na esfera da sexualidade (incluin-
do a prostituição e as relações extraconjugais) que poderiam causar dano
à saúde da família e, por extensão, à saúde da nação. Pelo mapeamento
dessas “anomalias”, tratou-se de circunscrever um modelo ideal de sexu-
alidade “saudável”, na forma do heteroerotismo praticado entre adultos,
dotados da identidade de gênero tida como adequada ao seu respectivo
sexo biológico, unidos por um vínculo conjugal, monogâmico e desti-
nado à reprodução. Isso significou o reavivamento do modelo de con-
gruência sexo-gênero-prática-desejo, hegemônico por séculos, ou, em
outras palavras, a legitimação do poder dominante, que, como vimos, se
opôs ao “pecado” e ao “crime” da sodomia na Idade Média e à perversão
na modernidade burguesa.
Frente a esse quadro, a Sexologia devotou especial atenção ao
desejo orientado para pessoas do mesmo sexo, definindo sujeitos de
inclinação homoafetivo-sexual como um tipo específico de pessoa, do-
tado de constituição corporal e disposições psicológicas singulares e
à margem do modelo prescrito como saudável. Esse cenário levou os
primeiros médicos que escreveram sobre relações sexuais entre pessoas
do mesmo sexo a inventar duas palavras que passariam a ser usadas
subsequentemente como sinônimas, fazendo com que as práticas ho-
moeróticas passassem definitivamente de perversão à patologia: ura-
nista e homossexual176. A primeira surgiu do trabalho do jurista alemão
Karl Heinrich Ulrichs, intelectual engajado na lida contra a criminali-
zação prescrita pela Lei Prussiana177 e primeiro homem homossexual
declarado a falar publicamente em defesa da homossexualidade, sendo,
portanto, considerado um pioneiro das modernas práticas de afirma-
ção da diversidade sexual178.

LGBT. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008.


176 FRY, P.; MACRAE, M. O que é homossexualidade. São Paulo, Brasiliense, 1985. (Coleção
Primeiros Passos).
177 Em fins de 1860, a Federação Alemã do Norte redigiu um novo Código Penal (Lei
Prussiana) no qual declarava que os atos homossexuais (entre homens) eram delitos. Essa
disposição entrou em vigor em 1871 e ficou conhecido como Parágrafo 175 do Código Penal do
II Reich.
178 SIMÕES, J. A.; FACCHINI, R. Na trilha do arco-íris. Do movimento homossexual ao

168
Já a segunda palavra foi usada publicamente, pela primeira vez,
por um jornalista húngaro, Karl-Maria Benkert, em dois folhetos nos
quais criticava a posição do Estado e argumentava contra a tal Lei
Prussiana, que, no rastro reacionário das antigas legislações medievais,
incriminava a prática de homoerotismo179. Essa espécie de carta aberta
de Benkert refletia sua indignação contra o fanatismo, a ignorância e a
intolerância, através de uma atitude que podemos facilmente associar à
militância contemporânea do movimento LGBT+. Com isso, o estado
de Hanôver modificou sua legislação, colocando as relações homossexu-
ais no mesmo nível legal das heterossexuais, cujo esboço da lei foi feito
por Benkert, em 1840, ocasião em que assumiu o cargo de ministro da
Justiça daquele país. Ele advertia que a aplicação nacional do Parágrafo
175 era um perigoso sintoma de que o “relógio da História” começava
a retroceder. Essa preocupação se confirmou mais adiante, pois, a parir
do ano de 1860, começa um interesse científico pelo comportamento
homossexual, e, como reação, as raízes do movimento político que, no
futuro, iria instaurar os primeiros esforços para desenvolver uma com-
preensão racional da homossexualidade na Alemanha.
Não obstante a isso, cunhar os termos “homossexual” e seu opos-
to (“heterossexual”) contribuiu, inegavelmente, para a invenção de uma
minoria de direitos na medida em que possibilitou a propagação, por via
linguística, da ideia arraigada da heterossexualidade enquanto essência
normativa atemporal. O rótulo “homossexual” foi apropriado por médicos
do final do século XIX como uma forma de nomear, condenar e reivindi-
car seus direitos de propriedade sobre aquele “amor que não ousa dizer seu
nome”. O termo, naquela época, foi largamente utilizado pela Psiquiatria
– como já foi dito aqui – para designar uma patologia, ou seja, uma do-
ença, um desvio, uma perversão180. Esse estigma tem acompanhado os in-
divíduos same-sex oriented até os dias de hoje, considerando-os diferentes

LGBT. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008.


179 OKITA, H. Homossexualidade da opressão à libertação. São Paulo: Sundermann, 2007.
(Coleção 10).
180 PARKER, R. Abaixo do Equador: culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade
gay no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2002.

169
dos “normais” heterossexuais, porque, entre outras “anormalidades”, não
procriam.181
Ulrichs publicou, outrossim, ensaios que refletiam sobre a condi-
ção de homens que se sentiam atraídos afetivo-sexualmente por outros,
ou, como chamava, sobre os “uranistas”.182 Dentre esses ensaios, escreveu
uma declaração de suporte legal e moral a um homem preso por ofensas
sexuais, sob o título de Pesquisas sobre o enigma do amor entre homens,
onde defendeu que tal amor era natural e biológico e o asseverou como
uma espécie de psique de mulher aprisionada num corpo de homem e, no
caso das mulheres, o contrário. Além disso, Ulrichs também se dedicou
a estabelecer uma classificação ostensiva de tipos uranistas, publican-
do doze volumes sobre o assunto, entre 1864 e 1879, através dos quais
concebeu que aqueles a quem chamava de uranistas constituíam um ter-
ceiro sexo. Esses escritos influenciaram várias formulações médicas pos-
teriores, que desenvolveram uma concepção da sexualidade entre iguais
como uma forma de “inversão sexual”, decorrente, sobretudo, de causas
biológicas, tais como degeneração hereditária, patologia congênita e
problemas hormonais. Tais concepções foram aprofundadas no famo-
so tratado do psiquiatra alemão Richard Von Krafft-Ebing, Psychopathia
Sexualis, um marco da então emergente Sexologia, publicado pela pri-
meira vez em 1886 e sucessivamente reeditado de forma ampliada, com
a adição de dezenas de casos clínicos que investigavam uma vasta lista
de “transtornos sexuais”, da necrofilia à travestilidade183.184

181 Cabe registrar que, somente quase um século depois, em 17 de maio de 1990, a Organização
Mundial de Saúde (OMS) excluiu a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional
de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID 10), data que passou a ser lembrado como
o Dia Internacional de Combate à Homofobia.
182 O neologismo “uranista” foi inventado em homenagem à deusa Afrodite Urânia, filha
do deus Urano, que, no mito narrado por Platão em “O Banquete”, foi concebida sem mãe
num ritual onde só homens participavam. Por isso, o termo “uranista” passou a representar, no
contexto da teoria de Ulrichs, homens que sentem desejo (o que inclui afeto e prazer erótico)
por outros homens. Com o tempo, essa palavra acabou suplantada pelo termo “homossexual”
cunhado por Benkert.
183 SIMÕES, J. A.; FACCHINI, R. Na trilha do arco-íris. Do movimento homossexual ao
LGBT. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008.
184 No Brasil, o médico Afrânio Peixoto, seguindo a classificação feita em Psychopathia Sexualis
incluiu ainda esses considerados transtornos no rol das psicopatias. Somente em 1970, com
a retirada da palavra “homossexualidade” do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos

170
Entretanto, tratar a homossexualidade como doença foi a forma en-
contrada pelos ativistas políticos e estudiosos do tema na Europa do século
XIX para retirá-la do domínio da Justiça185. Medicalizar a homossexua-
lidade era uma solução para a descriminalização presente no código civil
prussiano da Alemanha unificada. Essa ideia foi sustentada pelo médico,
sexólogo e ativista político alemão Magnus Hirschfeld, um dos fundadores,
em 1897, do Comitê Científico-Humanitário da Alemanha, cujo objetivo
era defender os direitos dos “invertidos” e revogar o parágrafo 175 da Lei
Alemã. Nesse momento, nasce o germe do movimento LGBT+ europeu186.
Os objetivos do Comitê eram: “ganhar os corpos legislativos
para que apoiassem a petição de abolir o Parágrafo anti-homossexual
175; trazer a público a verdade sobre a homossexualidade; interessar os
próprios homossexuais na luta em favor de seus direitos”187. De acordo
com esses propósitos, o Comitê levou a cabo diversas atividades: organi-
zou regularmente reuniões públicas sobre a homossexualidade; mandou
seus representantes proferirem conferências, inclusive em organismos
internacionais; enviou exemplares de sua publicação e outros textos de
interesse às bibliotecas públicas e aos organismos governamentais que
estudavam as revisões dos códigos penais (Rússia e Suíça, por exemplo).
Porém, o foco ativista dessa entidade, durante mais de duas décadas, foi
a campanha em prol da abolição do Parágrafo 175.
O propósito da campanha era reunir o maior número possível de
assinaturas de personalidades políticas, artísticas, científicas e médicas
para uma petição que reivindica a abolição da condição criminal dos
atos homossexuais188. Os partidários dessa petição sublinhavam, entre
outros pontos, a injustiça da Lei, que poderia fazer com que milhares de
cidadãos caíssem nas mãos de chantagistas e que, ao invés de libertar o

Mentais pela American Psychiatric Association (APS), o afeto e o desejo pelo indivíduo do mesmo
sexo deixaram de ser considerados transtornos psicológicos.
185 SIMÕES, J. A.; FACCHINI, R. Na trilha do arco-íris. Do movimento homossexual ao
LGBT. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008.
186 OKITA, H. Homossexualidade da opressão à libertação. São Paulo: Sundermann, 2007. (Coleção 10).
SIMÕES & FACCHINI, op. cit.
187 OKITA, op. cit., p. 55.
188 Ibidem.

171
homossexual da sua inclinação erótica, os jogava nos braços do deses-
pero e frequentemente os levava ao suicídio. Essa campanha, que tinha
absoluta prioridade para o Comitê, tomou grande impulso depois da I
Guerra Mundial, quando se uniu ao Amizade Alemã e ao Comunidade
dos Especiais, grupos de liberação homossexual da mesma época. Mais de
seis mil personalidades, inclusive de renome internacional, assinaram a
lista, entre elas: Hermann Hesse, Albert Einstein, Rainer Maria Rilke,
Émile Zola e Leon Tolstoi.
Em 08 de março de 1922, a petição foi apresentada ao Reichstag
(parlamento alemão), depois de 25 anos de seu início; em dezembro
desse ano, o Reichstag devolveu-a ao governo alemão para um novo exa-
me. Aí ficou estancada, pois em 1923, o caos econômico e social do
pós-Guerra chegou a tal extremo que a existência do Comitê viu-se
seriamente ameaçada e seus esforços foram eclipsados. Somente após o
fim da II Grande Guerra, a Alemanha Oriental, em 1950, e a Alemanha
Ocidental, em 1969, revogaram alguns dispositivos do famigerado
Parágrafo, que finalmente foi extinto em 1994, com a reunificação do
país, 154 anos depois da publicação da carta de Benkert189.
Nos momentos finisseculares, argumentos também a favor do
caráter inato e, portanto, imutável da homossexualidade, foram usados
como arma contra a persistente associação entre homossexuais e doen-
ça190. Essa noção apareceria no pensamento de alguns sexólogos euro-
peus; um de seus mais notáveis defensores foi o médico britânico Henry
Hevelock Ellis191. No primeiro volume de sua série de obras reunidas sob
o título de Studies in the Psychology of sex, dedicado à “inversão sexual”,
publicado em 1897, Ellis192, em co-autoria com John Symonds, argu-

189 GREEN, J. N.; POLITO, R. Frescos Trópicos. Fontes sobre a homossexualidade masculina no
Brasil (1870-1980). Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. (Baú de Histórias).
OKITA, H. Homossexualidade da opressão à libertação. São Paulo: Sundermann, 2007. (Coleção 10).
190 SIMÕES, J. A.; FACCHINI, R. Na trilha do arco-íris. Do movimento homossexual ao
LGBT. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008.
191 FÍGARI, C.; DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. Introdução. Sexualidades que importam: entre a
perversão e a dissidência. In: DÍAZ-BENÍTEZ, M. E.; FÍGARI, C. Prazeres dissidentes. Rio de
Janeiro: Garamond, 2009. p. 21-30. (Coleção sexualidade, gênero e sociedade).
192 Havelock Ellis (como era conhecido) flertava com o determinismo biológico e, às vezes,
tinha posturas bastante moralistas, mas isso não o fez reforçar os estigmas médico-centrados

172
mentava que a homossexualidade não era uma doença, mas antes uma
variação bastante benigna (ou, pelo menos, muito pouco nociva) nas
inclinações sexuais, encontrada inclusive em muitas espécies animais193.
Segundo essa perspectiva, não haveria sentido falar em “cura”, e Ellis,
de fato, punha a palavra entre aspas no que se referia à homossexu-
alidade. Com isso, findava o século XIX, arrastando, atrás de si, uma
imensa mancha histórica sobre a criação de categorias para representar
os desejos e as identidades periféricas, e iniciavam-se novos dias, novas
esperanças para um tempo melhor a LGBT+, à aurora do século XX.

CONCLUSÃO

Torna-se claro que, neste momento do nosso passeio pelos re-


gistros das categorias que foram colocadas sobre as pessoas LGBT+, a
preocupação mais relevante da maioria dos grupos sociais que deter-
minavam quem eram essas pessoas e como deveriam ser chamadas não
era incluir LGBT+ na tomada de decisões, mas escolher como chamar
a margem na qual seriam depositadas. As civilizações mencionadas pin-
taram quadros historicamente disformes, muitas vezes injustos e vio-
lentos, sobre os corpos, as vivências, as sociabilidades dos/as pessoas de
gênero e sexualidade não-hegemônicos. Essa situação relegou a civili-
dade, a espiritualidade, a cultura, a humanidade para longe dos que não
seguiam a normalidade das relações amorosas e sexuais de cada época e
de cada sociedade.
Ainda que pessoas ou grupos LGBT+ se levantassem em prol
de suas existências, os aparelhos sociais determinavam as esmolas de
direito, saúde, prazer e tantas outras coisas que foram dadas a essas pes-
soas. Lançados de uma ponta a outra das estruturas de poder, os nomes
desses indivíduos marginalizados ganhavam categorias baseadas na vi-

que caracterizavam LGBT+ na época. Pelo contrário, ao modo do engajamento reflexivo de


cientistas críticos, Ellis, embora não fosse homossexual (como Ulrichs e Benkert), tinha um
interesse pessoal no assunto, tanto por ser casado com uma mulher que se reconhecia como
bissexual quanto pelo fato de, como idealista do Socialismo, entender que as tentativas de
reforma do olhar sobre LGBT+ deveriam se voltar para provocar mudanças que permitissem a
esses atores viver numa sociedade de direitos iguais.
193 ELLIS, H. F; SYMONDS, J. Sexual inversion. Londres: Wilson and MacMillan, 1897.

173
são de mundo – ou ciência, jurisprudência etc. – de quem jamais havia
se identificado com o gênero oposto ao determinado para si; ou ainda
que tivesse fugido das regras de com quem se relacionar amorosamente
ou sexualmente; ou mesmo que vivesse rompendo convenções sociais de
como e com quem se relacionar e também de como se perceber no mun-
do. Aqueles/as que viviam para não ser depositados/as em caixinhas da
normalidade, ganhavam big boxes rotuladas pela normalidade que tanto
rejeitavam; categorias que não representavam, por inteiro, o que eram e
o que desejavam ser e fazer.
Um abismo histórico, então, aos poucos – e outras vezes aos tan-
tos –, foi sendo aberto entre a humanização de LGBT+ e a validez de
que são seres humanos. Uma compensão que custa alto para ser paga e
necessita de um trabalho coletivo, ativo, reflexivo e emergente de pessoas
que vivam contra o modelo heterossexual e cisgênero foi sendo constru-
ído ao longo do tempo. As fotografias que registram injustiças, negações
e violências devem ser consideradas imagens de um passado que pode
servir de comprovação para o tanto que ainda precisa ser reparado aos/às
LGBT+. Talvez daí comece a participação das sociedades do presente:
elaborar novos cenários para que novas fotografias sejam reveladas e não
mais existam violências em seus elementos.
Nesse horizonte, surge a relevância dos ativismos LGTB+ que é
potencializar os desafios aos saberes convencionais e às estruturas de po-
der inscritos na sexualidade que alicerçam a vida institucional e cultural
de nosso tempo. Um ativismo com participação social que rompa com
o erotismo que objetifica os corpos, que acabe com a patologização das
existências, que finde com as negação de religiosidades, que lute contra
a criminalização das práticas afetivas e sexuais, que abra espaço para
direitos que validem a existência e que arranque a raiz do preconceito
que cresce e que se fortifica ao longo das eras. É possível que, com isso,
as marcas das pessoas LGBT+ na linha do tempo da História tranfor-
mem-se em marcos de igualdade social e naturalização da diversidade
dos desejos, das identidades e das tantas formas de estar no mundo.

174
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175
CRIMINALIDADE FEMININA:
ANÁLISES E REFLEXÕES A PARTIR
DOS PRONTUÁRIOS PENITENCIÁRIOS
E ENTREVISTAS DE MULHERES
ENCARCERADAS NO PARANÁ (2000-2017)

Pamela de Gracia Paiva194

RESUMO
A presente análise se debruçará sobre a mulher delinquente no Estado do Paraná.
Objetivando analisar a documentação jurídica dessas mulheres . A metodologia uti-
lizada é análise bibliográfica e o aporte teórico será por meio das reflexões de Michel
Foucault e os estudos de gênero. Demonstrado que há vários perfis de mulheres en-
carceradas e que o sistema usa o poder para reconstruir e corrigir o comportamento
dessas mulheres.
Palavras-chave: Gênero; Criminalidade; Mulher delinquente; Encarceramento femi-
nino; Subjetividades femininas.

ABSTRACT
The present analysis will focus on female offenders in the State of Paraná. Aiming
to analyze the legal documentation of these women. The methodology used is
bibliographic analysis and the theoretical contribution will be through Michel
Foucault’s reflections and gender studies. Demonstrated that there are various profiles
of women in prison and that the system uses power to reconstruct and correct the
behavior of these women.
Keywords: Gender; Crime; Delinquent woman; Female incarceration; Female
subjectivities.

194 Graduada em História pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Graduada em Pedagogia
pelo Centro Universitário Uninter. Pós-Graduada em Sociologia Política pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Pós-Graduada em metodologia do ensino da História e Geografia
pelo Centro Universitário Uninter. Graduanda em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Pedagoga da rede pública de ensino em Curitiba/PR. E-mail: phanngp@gmail.com /
profepamelapaiva@hotmail.com.

176
INTRODUÇÃO

A presente análise se debruçará sobre a mulher delinquente no


Estado do Paraná entre o período de 2000 até 2017. Por meio de alguns
fragmentos dos prontuários penitenciários dessas mulheres, documen-
tação que se encontra no Escritório Social, antiga sede do Centro de
Regime Semiaberto de Curitiba. Os documentos foram conseguidos
pela pesquisadora entre os meses de abril-maio de 2017.
Dessa forma, o questionamento que se propõe na pesquisa é:
como a documentação jurídica consegue traçar um perfil de mulher de-
linquente? O que tais documentos atestam, e se há a possibilidade de
confronto entre os documentos judiciais, que em uma história positi-
vista seriam os documentos oficiais dessa população e as demais docu-
mentações existentes, como relatórios quantitativos e qualitativos sobre
a mulher delinquente, além de entrevistas orais.
A metodologia utilizada é bibliográfica e o aporte teórico será
principalmente por meio das reflexões e análises de Michel Foucault
sobre o poder punitivo, poder e a construção das subjetividades, ressal-
tando que por mais que o filósofo não tenha estudado e escrito sobre o
sistema prisional brasileiro, ou sobre o encarceramento feminino, seus
apontamentos são de grande importância para se pensar tais problemá-
ticas, aliando seus conceitos ao de pesquisadoras brasileiras que escre-
vem sobre o tema proposto. Dessa forma, há de se citar pesquisadoras
como Rosemary de Oliveira Almeida (2001), Claudia Priori (2012) e
Nayara Moreira Lisardo Pasti (2015).
Sendo assim, na sequência serão apresentadas algumas mulheres
que fizeram parte do sistema prisional do Paraná no recorte temporal
proposto, mulheres de baixa escolaridade, de famílias em vulnerabilida-
de social, que se envolveram com o tráfico de drogas. Mulheres que se
evadiram do sistema para cuidar da família, mulheres que passam seus
dias preocupadas com companheiros que também estão em privação de
liberdade, mulheres que delinquiram, que saíram da posição confortável
de passivas e dóceis e se envolveram com a criminalidade.
Demostrando que há vários tipos e perfis de mulheres, que suas
subjetividades e motivações são diferentes, que são construídas e recons-

177
truídas dentro do sistema que confronta a delinquência delas com for-
mas de (res)socialização, um sistema que usa o poder para reconstruir e
corrigir o comportamento dessas mulheres.

CRIMINALIDADE FEMININA: REFLEXÕES E ANÁLISES A


PARTIR DE NOVAS CONSTRUÇÕES DE SUBJETIVIDADES
FEMININAS

É importante pensar que as mulheres não são apenas vítimas de


atos violentos, elas também cometem violências. Devem ser retiradas da
posição de eternas vítimas passivas e pensadas enquanto sujeitas ativas de
suas vidas e que também praticam crimes, sendo levadas para este “mundo”
da criminalidade pelas mais diferentes motivações. Sendo assim, são “for-
mas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento195”. Sujeitos
que podem ser classificados como normais ou anormais, que nasceram do
controle e da vigilância. Esses sujeitos, ou melhor sujeitas, são as mulheres
encarceradas, que foram julgadas pelos erros que cometeram, como aponta-
do por Michel Foucault (1996), em “A verdade e as formas jurídicas”.
Essa forma de identidade marginal das mulheres encarceradas
que subverteram a ordem e o tradicionalmente aceitável como com-
portamento feminino, pode ser lida como uma das formas diferentes de
produção de sua subjetividade, e mesmo dentro do sistema, de um local
que visa a homogeneização e a perda da identidade, conseguem encon-
trar formas de sobreviver no sistema sendo mulher.
Trabalhar com intersubjetividades e sentimentos é pensar os dife-
rentes atores históricos com suas ânsias, medos, preconceitos, paixões, e as
diferentes identidades que formam um ser, ou diversos seres em um grupo.
É pensar em sua consciência afetiva, podendo ser até mesmo uma consci-
ência egocêntrica que perceberá o outro em relação ao próprio eu, partindo
de sentimentos como amor, medo, ódio, indiferença, entre tantos outros.
É preciso, portanto, escutar e abrir espaços de discussão sobre
esses novos grupos, sem que haja uma tentativa de salvá-las, pois elas
têm o direito de delinquir, de irem contra as normas e leis estabelecidas.

195 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro. Nau Ed., 1996, p. 8.

178
Reconhecendo essas formas de vida marginais, pois para Foucault, essas
identidades não seriam naturais e sim desenvolvidas no meio em que es-
tão inseridas. Dessa forma, há de se pensar como elas colocam seus corpos
nos espaços e principalmente, neste estudo nos espaços penitenciários.
E também percebendo o sentimento de indiferença frente ao encarce-
ramento de mulheres, mulheres essas que transgrediram leis e normas e
foram violentas.
É importante estudar a sociedade pelos seus desvios pelas fugas
e resistências, e não apenas se debruçar em estudos sobre a disciplinari-
zação dos corpos e da normalidade que é esperada na sociedade. Não há,
portanto, um sujeito universal, não havendo um sujeito universal, a de-
linquência é também uma forma de se colocar no mundo. É importante
tecer considerações sobre alguns conceitos chave, como o de violência,
de acordo com Robert Muchembled, o termo violência teria surgido no
século XIII, que deriva do latim vis. O termo nos remete a uma relação
de força entre aquele que pratica e aquele que sofre a violência. E ainda,
“em termos legais, a violência designa os crimes contra pessoas, de que
fazem parte o homicídio, as agressões e ferimentos, as violações, etc. A
classificação destes fenômenos não é idêntica consoante aos países e
épocas, o que complica a tarefa dos historiadores196.”
Ressalta-se que a violência é normalmente descrita e quantifi-
cada em relação ao gênero masculino, e as mulheres pouco aparecem
nesses dados, para o autor haveria uma razão biológica entre a agres-
sividade e a masculinidade, sendo normalmente orientada pela socie-
dade, religião, Estado e até mesmo a cultura, “a fraca representação das
mulheres neste quadro também indica dois fatores. Elas matam-se ou
ferem-se pouco entre si e são mais agredidas com relativa moderação
pelos homens [...]”197
Em consonância com essa violência inata ao gênero masculino
há a construção de um perfil feminino dócil e avesso aos atos violentos,
sendo elas sujeitos preferencialmente normatizados e controlados em

196 MUCHEMBLED, Robert. Uma história da violência: do final da idade Média aos nossos
dias. Biblioteca Nacional de Portugal, 2014, p. 15.
197 Id. Ibid. p. 7

179
seus rompantes e em suas paixões. Ou seja, são corpos controlados den-
tro da sociedade, de acordo com Michelle Perrot “o estatuto vigente das
mulheres é o do silêncio que consente com a ordem”198.
Principalmente no período que compreende o século XIX, em
que há a construção dos papéis para cada ente familiar, isso pode ser
observado no texto “Família Triunfante”199 de Michelle Perrot, lan-
çando luz ao que se esperava das mulheres no oitocentos, para elas
havia o espaço privado, do lar, do cuidado com os filhos e do marido.
Michelle Perrot também escreve o livro “Os excluídos da história”200,
em que pese, categoriza as mulheres como excluídas, pois elas normal-
mente eram invisibilizadas e domesticadas, porém, de alguma maneira
muitas delas conseguiram resistir a esse processo de normatização do
século XIX, sendo por meio do trabalho nas fábricas, em movimentos
de emancipação feminina, ou até mesmo com a prática de violência.
Destaca-se para este ensaio o texto: A Mulher Popular Rebelde201,
o texto começa com a frase “da História, muitas vezes a mulher é ex-
cluída”202, e segue comentando que os homens teriam o monopólio do
texto e da coisa pública, sendo as mulheres sempre observadas e descri-
tas pelos homens, e questiona “mulheres enclausuradas, como chegar até
vocês?”203 Evidenciando-se o termo enclausurada, em que uma pessoa
é retirada do convívio social, sendo as mulheres de oitocentos cerradas
em suas casas, cuidando dos afazeres domésticos, ou as mulheres delin-
quentes do século XXI, privadas de sua liberdade e invisibilizadas pela
sociedade cada vez mais punitiva e indiferente em que vivemos.
Assumindo que elas tiveram suas histórias invisibilizadas por sé-
culos, é necessário lançar luz para aquela parcela de mulheres recorren-

198 PERROT, Michelle. Escrever uma história das mulheres: relato de uma experiência. In:
Dossiê: História das mulheres no Ocidente. Cadernos Pagu (4), 1995, p. 13.
199 Texto que compõe a coletânea História da Vida Privada (vol. 4) organizado por Michelle
Perrot, intitulado Os Atores, em que ela aborda a função de cada membro familiar do oitocentos.
200 O livro analisa três grupos sociais periféricos na França do século XIX, operários, mulheres
e prisioneiros. Leitura essencial, ilumina não apenas a maneira como o poder se desdobra de
modo pragmático e simbólico, mas também a beleza da resistência e da rebeldia de indivíduos e
grupos marginais. Disponível em: <https://livreopiniao.com>. Acesso em: 22 fev 2020.
201 PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 185.
202 Id. Ibid. p. 185.
203 Id. Ibid. p. 186.

180
temente oprimidas, assim como o faz Perrot acerca das operárias, e se
pretende com este ensaio com as encarceradas, sendo em ambos os casos
agentes de resistência e de transformação, auxiliando na construção de
uma história das mulheres e não em a história das mulheres204.
Às mulheres sempre couberam três tipos de espaços prisionais
que cerceavam sua liberdade, antes mesmo do aparecimento das prisões
femininas: a casa, o manicômio e o convento. Os espaços destinados a
elas eram locais passíveis de discipliná-las para que fossem subservientes
aos homens, tendo em vista que a construção de gênero feminino não
abriga a transgressão e a violência. Essa é uma questão complicada até
para as correntes feministas conceberem, pois coloca em risco a visão
que as mulheres têm delas mesmas, sendo mais fácil não tratar sobre o
assunto. Porém, é necessário pesquisar a criminalidade feminina, pois,

Isso ajuda a desmistificar o imaginário social de que a


agressividade, a violência, a crueldade, o sadismo, a hu-
milhação, entre tantos outros atributos de força e bru-
talidade também são práticas femininas, e não somente
masculinas, como nos ensinam a acreditar e incentivar
culturalmente sua produção e reprodução.205

Dessas mulheres pouco se fala, pois sempre foram silenciadas e


perseguidas no decorrer da história, hoje fazem partes das estatísticas de
violência. É necessário, portanto, “romper com o tabu, com o dualismo
mulher-vítima e homem-algoz, é compreender a complexidade que a
violência assume nas relações entre os gêneros”206. Sendo que a violência
não é inerente ao gênero masculino, a violência é inerente ao convívio
dos indivíduos em sociedade, sendo eles homens ou mulheres.
Segundo dados apresentados pelo historiador Robert
Muchembled, anteriormente citado, as mulheres sempre representaram
uma porcentagem pequena, para não dizer ínfima na autoria de crimes,

204 PERROT. Op. cit. p. 23.


205 PAIVA, Valdemir. PRIORI, Claudia. Mulheres no mundo da violência e do crime: algo
fora de lugar? (Comarca de Guarapuava/PR, 1965-1980). DILEMAS: Revista de Estudos de
Conflito e Controle Social – Rio de Janeiro – Vol. 12 – no 2 – MAI-AGO 2019, p. 430
206 Id. Ibid. p. 431

181
números que se oporiam a naturalizada doçura feminina207. Há, por-
tanto, uma masculinização do crime, “as mulheres, devem permanecer
no seu lugar para confirmar o homem enquanto tal. Esta passividade
exigida pelas normas culturais traça a mulher como um ser doce e desar-
mado, normalmente incapaz de violência homicida”208. E por esta cons-
tatação podem ser tratadas com cruel indiferença por aqueles que estão
de acordo com a norma, elas são inimigas da sociedade e “todos devem
ser indiferentes ao seu sofrimento porque eles o merecem”209.
Para Foucault no texto “Sujeito e Poder”, há o que ele chama de
objetivação do sujeito, ou seja, práticas divisoras, em que o sujeito é di-
vidido em relação ao outro, ele nos dá alguns exemplos e outros podem
sem classificados dessa mesma maneira, como: os criminosos (as) e os
“cidadãos de bem”, ou como colocado pelo autor, “bons meninos” ou “boas
meninas”, considerando a criminalidade feminina210. Indo de encontro ao
parágrafo anterior, em que a indiferença é usada contra aqueles que estão
fora da norma.
Para pensar nesta oposição entre sujeitos há de se pensar tam-
bém nas formas de poder que constroem as relações, e que mantem a
ordem social, Rachel Soihet aborda tais questões no texto “Mulheres
pobres e violência no Brasil urbano”211, a historiadora comenta que nas
camadas sociais superiores, detentoras do poder, no início do século XX,
havia de fato essa divisão de papéis de gênero, entre espaço público e
espaço privado, porém que nas camadas inferiores tais papéis não eram
tão evidentes pela necessidade das mulheres pobres em trabalhar.
Ela utiliza processos crime como fontes para evidenciar que as
mulheres das classes populares do começo do século XX cometiam cri-
mes, utiliza alguns casos em que elas assassinaram seus maridos para

207 MUCHEMBLED. Op. cit. p. 20.


208 MUCHEMBLED. Op. cit. p. 28.
209 ENRIQUEZ, Eugène. Indiferença: sua formação, seu papel nos regimes autoritários,
democráticos e na burocracia empresarial. 199?, p. 28
210 FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In.: HUNBERT, L. RABINOW, Paul. Michel
Foucault uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2009, p. 231
211 Texto que compõe o livro História das Mulheres no Brasil, organizado por Mary Del
Priore. Fazer a referência de modo completo.

182
defenderem-se de agressões, pois muitas vezes eles não detinham poder
sobre elas o que causava muitos conflitos nas relações. Tais mulheres
passavam horas de seus dias na rua, em atividades laborativas. De acor-
do com Soihet transitar no espaço público, da rua, para as mulheres do
começo do século XX era perigoso, pois, “a rua simbolizava o espaço do
desvio, das tentações, devendo as mães pobres, segundo médicos e juris-
tas, exercer vigilância constante sobre suas filhas [...]”212.
As mulheres populares não se enquadravam nas características
universais que definiam as mulheres, como a submissão, recato, deli-
cadeza; elas trabalhavam fora, e se envolviam em brigas, transgressões,
fugindo dos estereótipos da época, “em geral, trabalhavam muito, não
estabeleciam relações formais com seus companheiros e não correspon-
diam aos ideais dominantes de delicadeza e recato”213.
Tais mulheres do século XX não suportaram caladas serem sub-
jugadas por seus companheiros, como comentado anteriormente, muitas
revidavam as agressões sofridas, assassinando seus algozes, entretanto,
em diversos casos foram absolvidas pelo crime cometido ser classificado
como um crime passional, em que a violenta paixão suspenderia tem-
porariamente a percepção de certo e errado de um indivíduo, conceito
defendido pelos criminalistas Cesare Lombroso e Enrico Ferri.
Além dos criminalistas citados, há ainda Guglielmo Ferrero,
que juntamente com Lombroso escreveram o livro Criminal woman, the
prostitute, and the normal woman214 (1893), acreditavam que as mulheres
tinham traços fortes de perfídia e dissimulação, que haveriam àquelas
criminosas por paixão, mas que nem mesmo esta mulher poderia ser
mais violenta que um homem, novamente colocando a mulher como
um ser incapaz de atitudes violentas pelo seu próprio desejo, “pouco a
pouco, a mulher seria excluída da condição de agente de crimes passio-
nais”215. Há presente também nas colocações de Lombroso e Ferrero a
construção de um discurso, discurso este que pode e foi tomado como
verdadeiro por muitos anos, formando um jogo de saber-poder em rela-
212 SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In.: PRIORE, Mary
Del (org.). BASSANEZI, Carla (coord. de textos). História das mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2009, p. 365.
213 SOIHET. Op. cit. p. 371.
214 Mulher criminosa, prostituta e a mulher normal. (Tradução livre)
215 SOIHET. Op. cit. p. 381.

183
ção a delinquência feminina.
Dessa forma, após passarmos brevemente pelas mulheres do
XIX e do XX que encontraram formas de resistir ao estereótipo de gê-
nero, partimos para as mulheres encarceradas do século XXI, em que o
perfil segue sendo daquelas já criminalizadas no XX, mulheres que têm
a rua como o seu lugar no mundo, e que por vezes praticaram crimes e
violências. São mulheres que foram contra a ordem social estabelecida,
contra as relações de poder impostas, em que os homens seriam os agen-
tes violentos e transgressores da sociedade. A indiferença cruel é aplica-
da contra a massa carcerária do país, e mais ainda se feito um recorte de
gênero, classe e raça, sendo a indiferença quanto a população prisional
um adjetivo válido em ser empregado.
Atualmente o Brasil ocupa o 3º lugar entre os países com a maior
população carcerária do mundo, sendo 726.712 pessoas presas. E é o 4º
país que mais encarcera mulheres, atrás dos Estados Unidos, China e
Rússia, com cerca de 42.355 mulheres encarceradas. Sendo elas uma
população significativa para ficar invisiblizada na história carcerária do
Brasil. Não devem ser tratadas com indiferença, aquela indiferença que
resulta em desprezo, crueldade e pulsão de morte216.
Em levantamento realizado entre os meses de abril e maio de
2017 no Centro de Regime Semiaberto Feminino de Curitiba (CRAF),
atualmente Escritório Social, foram acessados 256 prontuários de mu-
lheres que passaram pelo regime semiaberto entre os anos de 2000 até
2017, oriundas na maioria das vezes do Estado do Paraná. São perfis
de mulheres bem diferentes, demonstrando a grande subjetividade que
permeia o universo prisional feminino, mulheres que tiveram as mais
diferentes motivações para a entrada na criminalidade, de famílias em
situação de vulnerabilidade social ou não.
Deste total de 256 prontuários em 173 aparecem o crime do trá-
fico de drogas e associação ao tráfico de drogas217, aliado muitas vezes

216 ENRIQUEZ. Op. cit. p.21.


217 Art. 33 do Código Penal. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir,
vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever,
ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização
ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15
(quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

184
ao porte ilegal de arma218, estelionato219, desacato220, furto221, roubo222, re-
ceptação223 e falsificação224. Aparecem também os crimes de roubo, furto,
roubo seguido de morte225, assassinato226 e ocultação de cadáver227, de-
monstrando a gama de crimes que são praticados também por mulheres.
No Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
(Infopen) de 2016, que aborda especificamente o aprisionamento de
mulheres, o tráfico de drogas aparece como o principal crime que encar-
cera mulheres no Brasil, cerca de 62% são presas por tráfico ou associa-
ção ao tráfico, artigos 33 e 35 do Código Penal Brasileiro. Em seguida
aparecem os crimes de roubo (11%), furto (8%), homicídio (6%) e outros
(13%), de um total de 42.355 de mulheres encarceradas, sendo 3.251 no
Estado do Paraná, segundo dados do Infopen de 2016228.

218 Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou
não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º , e 34 desta Lei: Pena - reclusão, de
3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa.
219 Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou
mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.
220 Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou
mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa,
221 Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro
anos, e multa. § 1º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso
noturno.
222 Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça
ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de
resistência: Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
223 Art. 180. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio,
coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou
oculte: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
224 Art. 297. Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público
verdadeiro: Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa
225 Art. 157 acrescido do agravante relativo ao óbito, descrito no parágrafo terceiro, a pena é
de reclusão de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, e multa.
226 Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
227 Art. 211. Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele: Pena - reclusão, de um a três
anos, e multa.
228 BRASIL. Departamento Penitenciário. Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias: INFOPEN mulheres, 2018, p. 20. Disponível em: < http://depen.gov.br/
DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf>. Acesso
em: 29 fev. 2020.

185
Sobre o perfil, replicando os dados quantitativos exposto no
Infopen, temos o seguinte: 68% delas têm entre 18 aos 34 anos de idade,
62% delas são negras, 65% delas têm até o ensino fundamental comple-
to, 62% são solteiras, 75% têm filhos. Sobre as mulheres encarceradas
no Estado do Paraná, temos o seguinte perfil: 64% de 18 aos 34 anos de
idade no Paraná, 66% são brancas, 68% delas têm até o ensino funda-
mental completo, 57% são solteiras. Correspondendo com os dados le-
vantados acerca da amostra de 256 mulheres, em que 134 são declaradas
brancas, 70 são negras ou pardas, e em 52 prontuários esta informação
não estava presente; 133 mulheres eram solteiras; 171 tinham baixa es-
colaridade, até o ensino fundamental completo e 174 tinham idade en-
tre 18 e 34 anos. Ou seja, a amostra de prontuários criminais coletados e
as informações levantadas correspondem ao exposto pelo Infopen sobre
as mulheres encarceradas no Paraná.
Nos prontuários criminais das 256 mulheres mencionadas ha-
viam documentos referentes ao comportamento delas no cárcere, fichas
de triagem psicológica e pedagógica, processos criminais, entre outros
documentos. Estes sendo de ordem jurídica, fazem parte do direito pe-
nal, e como tal tem uma forma de demonstrar a “verdade” sobre estas
mulheres. Em um dos prontuários há o histórico judiciário de J.A.S229
que pode ser observado a seguir:

Em 22.02.07, J.A.S ao ser submetida a revista pessoal pela


investigadora Célia Ricardo, encontrou dentro da frauda
do filho de J uma porção de substância com as caracterís-
ticas da droga conhecida como ‘maconha’. Policiais desta
unidade tinham informações que J havia comprado dro-
gas para repassar para seu companheiro, R.Z.G que se
encontrava preso na carceragem local. Presa em flagrante
por Tráfico de Drogas. Situação Processual: Denúncia re-
cebida em 27.03.07, conforme of. 2005/07. Em 10.09.07
foi proferida sentença condenando-a a pena de 01 ano e
11 meses e 10 dias de reclusão em regime fechado, por in-
fração ao Art. 33 cumulado com o § 4º e o Art. 40, inciso

229 As mulheres que aparecerão no presente texto terão suas identidades preservadas, serão
mencionadas usando apenas as iniciais de seus nomes.

186
III da Lei 11.343/2006 – Tráfico de Drogas. A sentença
transitou em julgado em 24.09.07 ao Ministério Público
e 24.09.07 à Defesa, conforme of. 3072/07. J recebe cartas
do preso R.Z.G que cumpre pena na Prisão Provisória
de Londrina. Em 05.03.2008 foi transferida ao presídio
Feminino de Piraquara. Em data de 14.06.2011 a qualifi-
cada foi presa em flagrante pela prática de crime previsto
no art. 33 da Lei 11.343/06, quando tentava passar dro-
gas ao seu amásio, M.S, quando este foi ao Fórum para
audiência. Conforme ofício expedido pelo Juízo local, a
qualificada foi denunciada pelo referido crime. Em data
de 19.04.2012, a qualificada recebeu mandado de intima-
ção, no qual informa que foi condenada há seis anos, nove
meses e 20 dias de reclusão, mais 640 dias multa. Em
27.06.2013 por volta das 23:30 horas, foi detectado pelos
agentes de cadeia de plantão que ouviram barulhos vin-
do da ala feminina, em vistoria estrutural foi encontrado
um buraco em estágio avançado na cela da referida presa
que seria usado para empreender fuga. Em 29.08.2013
em monitoramento dos agentes de cadeia, foi presencia-
do a referida presa agredindo sua companheira de cela
com tapas, socos, chutes e agarrões(sic) de cabelo. Em
09.09.2013 foi escutado discussões vindo da ala feminina,
em razão de um tapa que a referida presa desferiu em sua
companheira de cela. Indiciada pela prática de dano ao
patrimônio público e motim de presos, fatos ocorridos em
data de 23.03.2014.230

Sobre o perfil de J. A. S, foram identificadas as seguintes carac-


terísticas, mulher negra, presa a primeira vez aos 18 anos de idade, de
religião católica, ensino fundamental incompleto, doméstica, presa pelo
crime do tráfico de drogas, pena de 6 anos, 9 meses e 20 dias. Ainda
há as seguintes informações psicológicas e pessoais: “foi criada pela avó
materna, mãe e padrasto trabalhavam fora, não concluiu os estudos por-
que engravidou aos 15 anos de idade, o pai da criança foi preso e não
chegou a registrar o filho, ‘amasiou-se’ por 5 anos com o pai do segundo
filho”231.

230 PRONTUÁRIO J.A.S, 2015, p. Irreg.


231 PRONTUÁRIO J.A.S, 2015, p. Irreg.

187
Tais informações denotam que J.A.S esteve em vulnerabilidade
social, e pode ser um fator que a tenha levado à criminalidade, sendo o
corpo de J. importante na mecânica da prisão, além dela havia outros
familiares na mesma situação, irmãos e cunhada também estavam presos
pelo mesmo delito. Os documentos encontrados nos levam a crer que
o seu histórico familiar desestruturado pode ter contribuído para a en-
trada dela e dos irmãos na criminalidade. Há ainda outras informações
sobre sua situação penal:

Foi levar 3 g de maconha para um ficante que estava pre-


so em Santo Antônio da Platina. Relatou que no delito
da primeira condenação a história é (sic) mesma ‘tam-
bém foi por levar droga a um preso’ [...] Na manhã de
12.11.06, J. A. S participou de uma tentativa de homi-
cídio contra P.F.S, vulgo [*] após este ter efetuado vários
disparos em frente da casa de G. na Vila Ribeiro. J.A.S
confessou sua participação, sendo indiciada por Tentativa
de Homicídio.232

Sobre seu comportamento prisional estavam descritos os se-


guintes: presa em Santo Antônio da Platina, local de origem, recebia
visitas regularmente, ao ser transferida para a Penitenciária Feminina do
Paraná ela perdeu este vínculo e se comunicava com a família por carta.
Esta separação dos apenados de suas famílias rompe com os vínculos de
afetividade, e em se tratando de mulheres encarceradas acontecem de
forma mais recorrente por existirem menos espaços prisionais destina-
dos às mulheres, elas saem de seus locais de origem e são transferidas
para outros, impossibilitando as visitas, pois muitas vezes são de famílias
sem recursos financeiros para arcar com tantas viagens.
Para afirmar este ponto, há o trecho de uma entrevista realizada
no mesmo período em que em houve a coleta de informações nos pron-
tuários, com outra mulher que estava usando o monitoramento eletrô-
nico e que havia sido presa por tráfico de drogas. Perguntada se já havia
se sentido invisível e abandonada pela família no sistema prisional ela
respondeu da seguinte maneira:

232 Id. Ibid.

188
Sim, muitas vezes, pela minha própria família. Que agora,
agora na minha segunda mão (segunda prisão), me sen-
ti muito, vamos dizer assim, meio que esquecida de vez
em quando, que eu fui pra PG (Ponta Grossa), minha
mãe me fortaleceu lá, chegou a ir, mas assim, minha irmã
(não), as coisas que eu mais precisava e não tinha, porque
eles se cansam, entende, e isso pra mim já é uma questão
de esquecimento, e é uma coisa que machuca né, uma coi-
sinha mínima, deixou de levar ali alguma coisa você já se
sente esquecida, as vezes não é as melhores coisas, você se
sente que tá meio que sendo tirada da vida, porque né...
porque não trouxe o que eu pedi, porque que não pôde, tá
tão difícil assim? Eu não acredito que tá tão difícil, então
assim são pensamentos que debatem com você, mas já me
senti já dessa forma, não sei te explicar exatamente o por-
quê, como foi a forma, mas já me senti invisível. De você
reclamar pra sua família de como tá lá dentro e tipo você
saber que a pessoa podia ir lá e sei lá, fazer alguma coisa
ou simplesmente falar com a chefe de segurança. E não
fazem nada, porque? Porque tá lá dentro e tem que pagar
por aquilo que fez e pá e não é bem assim. Nessa questão
já me senti invisível.233

Ao final ela comenta: “tá lá dentro e tem que pagar por aquilo que
fez”, sendo um pensamento corrente na sociedade e também para as pró-
prias pessoas que estão em privação de liberdade, justificando toda a mi-
séria e violência que possa ocorrer dentro do sistema prisional. Às mulhe-
res recai não apenas as consequências do delito praticado, mas também a
quebra do status quo de que mulheres não são violentas, elas vão contra o
socialmente aceitável ao papel feminino e por isso pagam pelo erro co-
metido duas vezes. Desse modo, elas se tornam invisíveis, são silenciadas
como uma forma de castigo, “elas devem pagar por sua falta num silêncio
eterno.”234. Elas devem permanecer em silêncio pois são inferiores, são
cruéis, porém fracas, menos inteligentes se comparadas aos homens, ha-
vendo ainda a dicotomia entre a mulher normal e a mulher criminosa nos
moldes lombrosianos.

233 ENTREVISTA, C.S.P, 2017, p. Irreg.


234 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2013, p. 17

189
Em outra entrevista realizada no mesmo período, a encarcerada
L.F., afirma que depois de um tempo deixou de esperar que alguém fos-
se lhe visitar, sendo ela de Santa Catarina e estando presa em Curitiba, o
deslocamento interestadual da família era ainda mais difícil, presa tam-
bém por tráfico de drogas, com ensino fundamental incompleto, autô-
noma, condenada há 31 anos e 4 meses, em decorrência do crime de trá-
fico e associação ao tráfico, teve conversas interceptadas, pois fazia parte
de um esquema grande de venda de drogas entre Porto União (SC) e
Curitiba (PR). No processo de L.F há exposto o seguinte:

A ré registra péssimos antecedentes consoante certidão


de fls. Nº (não será identificado). A culpabilidade está
evidenciada nos autos pela manifestação inequívoca de
vontade de cometer o delito, ciente de reprovação de sua
conduta. Revela personalidade voltada à prática de cri-
mes. Não há elementos para avaliar sua conduta social
[...] Considerando que a réu é reincidente e responde a
outras ações penais, demonstrando sua periculosidade e
sua personalidade voltada à prática de delitos, entenden-
do ser cabível a manutenção de sua prisão preventiva a
fim de acautelar a sociedade contra a prática de novos
crimes já que a liberdade poderá representar um estímulo
à sua personalidade delinquente235.

O discurso que está posto é o da incapacidade desta mulher vi-


ver em sociedade, dentro das normas, pois teria uma personalidade vol-
tada à prática de crimes, tal afirmação demonstra um discurso jurídico e
polêmico, um discurso que constitui a subjetividade desta mulher. Para
Foucault (1996), haveria duas formas de se constituir a história, uma
história interna da verdade, e também na sociedade uma verdade que é
formada a partir de jogos em que são postas certas formas de subjetivi-
dade, e tipos de saberes, sendo esta a história externa.
Partindo das análises lombrosianas, em que haveriam dois tipos de
mulheres transgressoras, as prostitutas e as criminosas, a mulher citada aci-
ma é colocada como uma criminosa, mais perversa que os homens, uma

235 PRONTUÁRIO L.F, 2012, p. irreg

190
degenerada que vai contra as normas sociais estabelecidas. Uma mulher que
ao fugir de seu papel de gênero causa estranheza, espanto, repulsa e ódio,
sendo objeto de indiferença com qualquer violação que lhe possa ocorrer.
No que tange à criminalidade feminina, a disciplina e o poder
andam de mãos dadas, pois é neste espaço de reclusão que se tentará
disciplinar esta “mulher delinquente”, para que, após cumprida a sua
pena de reclusão ela possa voltar a conviver em sociedade mais dócil,
sociável e cumpridora das leis. Sendo utilizada como uma forma de or-
ganização daquelas consideradas confusas e perigosas, pois “a detenção
penal deve(ria) então ter por função essencial a transformação do com-
portamento do indivíduo”236. Essa disciplinarização poderia ser coloca-
da da seguinte maneira: “o corpo humano (feminino) entra(ria) numa
maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe”237.
Compreendendo que essa recomposição permitiria a volta da mulher
domesticada à sociedade. Há também o isolamento e a perda de víncu-
los. Foucault aponta que

Enfim, e talvez principalmente, o isolamento dos con-


denados garante que se possa exercer sobre eles, com o
máximo de intensidade, um poder que não será abalado
por nenhuma outra influência; a solidão é a condição pri-
meira da submissão total[...]238

Pois, o criminoso se tornaria o inimigo dessa sociedade, como co-


locado por Foucault, “constitui-se assim um formidável direito de punir,
pois o infrator se torna o inimigo comum. Até mesmo pior que um ini-
migo, é um traidor, pois ele desfere seus golpes dentro da sociedade”239.
E ainda, “o criminoso é aquele que danifica, perturba a sociedade. O cri-
minoso é o inimigo social. [...] é aquele que rompeu o pacto social240”.
Há para essas mulheres, além da pena jurídica, as penas sociais que lhes
cortam os laços de afetividade e o seu desenvolvimento enquanto ser hu-

236 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2014, p. 264
237 Id. Ibid. p. 135
238 Id. Ibid. p. 230
239 Id. Ibid. p. 89
240 FOUCAULT, 1996. Op. cit. p. 81

191
mano. Privadas do ir e vir, da convivência familiar, do desenvolvimento
profissional.
O sistema jurídico regulamenta a guerra contra a criminalidade,
contra as camadas mais vulneráveis da sociedade, e que visa corrigir as
virtualidades de um comportamento criminoso, as subjetividades des-
sas mulheres transgressoras, fazendo-as se moldarem em uma sociedade
disciplinar. Elas que muito tempo foram colocadas como o sexo frá-
gil, incapazes de cuidarem de si, subverteram a ordem pré-estabelecida,
delinquiram, venderam drogas, assaltaram, mataram, por influência de
outros, por seu próprio desejo, tiveram papel ativo em suas histórias.
São mulheres que cometeram crimes, que não são frágeis, foram cons-
truídas socialmente pelas mais diversas situações, que enfrentaram os
infortúnios de suas vidas, os homens, a sociedade, o patriarcado, a fome,
o medo e neste caso a privação de liberdade. Pensando na violência e na
transgressão feminina, Rosemary de Oliveira Almeida atesta que

“Violência não é assunto para mulher”, especialmente


“mulher donzela”. Pode não ser um dos assuntos mais
discutidos, mas no que consta na história das mulheres,
desde os registros da população feminina indígena até
pesquisas sobre a mulher moderna, a violência tem sido
objeto da fala, da ação e de todo um universo simbólico
utilizado pela mulher com o fim de viver/sobreviver, de
resistir às mudanças e de sentir prazer, mesmo que para
isso tivesse que transgredir a ordem estabelecida241.

É necessário reconhecer que as mulheres também cometem


crimes, visto que o crescimento de mulheres em estabelecimentos pe-
nais tem sido maior que o masculino. Segundo dados do Relatório de
Informações Penitenciárias242, no ano 2000 a população prisional femi-
nina era de 10.112, no ano de 2014 era de 37.380, e em 2019 são mais de
42 mil. Demonstrando o crescimento dessa população, principalmente
241 ALMEIDA, Rosemary de Oliveira. Mulheres que matam – Universo imaginário do crime
no feminino. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001, p. 90-91.
242 BRASIL. Departamento Penitenciário. Levantamento Nacional de Informações Peniten-
ciárias: INFOPEN mulheres, 2014, p. 8. Disponível em: < http://depen.gov.br/DEPEN/depen/
sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf>. Acesso em: 29 fev. 2020.

192
de mulheres negras, pobres, sem escolarização e envolvidas com o tráfico
de drogas. De acordo com Nayara Pasti,

Diante desse quadro, mostra-se relevante o estudo das par-


ticularidades da prisão feminina, para a compreensão da
atuação das representações sociais de gênero na reconstru-
ção da identidade das presas para obtenção daquela mu-
lher recuperada e ressocializada, idealizada pela legislação
brasileira243.

Cumprindo assim sua pena, voltando ao seu papel social de mu-


lher dócil, sem levar em conta suas subjetividades, como se todas fossem
iguais. Para Claudia Priori, em sua tese sobre a criminalidade feminina,
ela expõe o seguinte, “as mulheres que cometem violência e praticam
crimes, transgredindo, infringindo as leis e as normas parecem estar in-
vadindo um espaço que não é delas244”. E qual seria o espaço destinado
para elas? O da vida privada, da maternidade e do bom casamento. Em
pleno século XXI é isso que ainda se espera de uma mulher.
Porém, há outras formas de ser mulher e outros espaços que
também são ocupados pelas mulheres, e elas também trilham pelo ca-
minho da criminalidade e delinquência. Segundo Priori, “a violência não
é inerente apenas à masculinidade, ela também é um atributo da femi-
nilidade, e o que se tem ao longo da história é um discurso naturalizado
que insiste na impossibilidade de mulheres violentas”245. E ainda, con-
cordando com Priori, “as feminilidades são múltiplas, várias são as faces
femininas, e se manifestam, portanto, de formas diversas. A moldura de
gênero é estreita demais, e muitas são as mulheres que não se encaixam
nesse molde discursivo, normalizado”246.

243 PASTI, Nayara Moreira Lisardo. A reconstrução da identidade das mulheres presas em es-
tabelecimentos prisionais que aplicam o Método APAC (Associação de Proteção e Assistência
aos Condenados). Anais XXVIII Simpósio Nacional de História. Lugares dos historiadores: ve-
lhos e novos desafios. Florianópolis, julho de 2015, p. 6. Disponível em:< http://www.snh2015.
anpuh.org>. Acesso em: 03. fev. 2020.
244 PRIORI, Claudia. Mulheres Fora da Lei e da Norma: controle e cotidiano na penitenci-
ária feminina do Paraná (1970-1995). Tese (Doutorado em História) – Faculdade de História,
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012, p. 28.
245 Id. Ibid. p. 30.
246 Id. Ibid. p. 30.

193
Além de ser importante dar visibilidade para as mulheres en-
carceradas, ditas criminosas, também é importante não coloca-las como
eternas vítimas, seja da sociedade, da família, ou dos companheiros, e
sim torna-las sujeitas ativas de suas histórias, que delinquiram por sua
vontade, assim como expressado por Priori e Paiva, “no caso de autoria
e envolvimento em violências e crimes, as mulheres agem sozinhas e/ou
em parcerias, são mentoras de crimes, mandantes, executoras, premedi-
tam, matam por suas próprias mãos, comandam quadrilhas, trapaceiam,
enganam, furtam, roubam, traficam247”.
Dessa forma, elas compõem uma parcela da massa carcerária do
país, têm as mais diversas construções sociais, não havendo um perfil úni-
co, mas vários perfis, entretanto, as ações mais punitivas recaem sobre um
perfil já marginalizado de mulheres pobres, negras e com pouca escola-
ridade, mas há também mulheres brancas, de nível superior, católicas, de
classe média/alta que entram na criminalidade pelos mais variados moti-
vos. Sendo esta uma análise breve de suas subjetividades e da construção
de suas subjetividades que o próprio sistema prisional corrobora.
Dessa forma , é importante não negar a violência e a transgressão
de normas e regras às mulheres, pois elas conseguem exercer diferen-
tes papéis, sendo mães, esposas, organizadas politicamente, feministas
e também violentas e transgressoras. Se envolvem em crimes, vendem
drogas, como nos casos mencionados no texto, e também matam, visto
os prontuários de mulheres homicidas que foram encontrados, porém
que não são comtemplados neste momento. É importante não negar os
diferentes papéis que formam as subjetividades femininas e nem pensar
que um papel pode anular o outro, mas sim que eles podem coexistir.
Há, portanto, várias formas de se colocar e de formar as subjetividades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente texto buscou se debruçar em uma análise sobre a


mulher delinquente do século XXI no Estado do Paraná, por meio de
documentos que foram coletados no espaço temporal de 2000 até 2017,

247 PAIVA, PRIORI, 2019. Op. cit. p. 436.

194
sendo selecionados alguns fragmentos para subsidiar as reflexões acer-
ca das novas construções de subjetividades femininas. Mulheres também
entram para a criminalidade pelos mais diferentes motivos, não sendo a
passividade, docilidade, o cuidado com a casa e com os filhos os únicos e
imutáveis atributos femininos. As razões pelas quais elas enveredam pelo
caminho da criminalidade não foram exploradas neste texto, e nem tantas
outras questões pertinentes ao aprisionamento de mulheres, sendo uma
temática abrangente.
Atualmente a população de mulheres encarceradas no Brasil
cresce mais que a população masculina, elas exercem diferentes ativida-
de dentro do tráfico de drogas, crime que mais encarcera mulheres, mas
elas também matam, roubam, sequestram, são presas, julgadas e perdem
sua liberdade, podem ficar anos atrás das grades e o tratamento desti-
nado a elas deve ir ao encontro a Lei de Execução Penal, devendo ter
sua humanidade e dignidade respeitadas. Porém, há diversas e diferentes
violações de direitos presentes no sistema carcerário, e a sociedade de
maneira geral está indiferente ao que ocorre dentro das prisões do país,
pois são pessoas que foram contra as leis, pessoas que não são passíveis
de choro e de luto.
Dessa forma, o objetivo foi alcançado, pensando, analisando e
refletindo sobre o encarceramento de mulheres, suas subjetividades.
Aliando tais reflexões com as de outras/os pesquisadoras/es, construin-
do este breve texto que poderá ser utilizado para levantar outros ques-
tionamentos, ou até mesmo trazendo novas respostas e considerações
sobre o aqui exposto.

REFERÊNCIAS
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feminino. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001.
BRASIL. Departamento Penitenciário. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias:
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pen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf>. Acesso em: 29 fev. 2020.
_________. Departamento Penitenciário. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias:
INFOPEN mulheres, 2018, p. 20. Disponível em: < http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisde-
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195
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196
EFEITOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A
MULHER NEGRA SOBRE SUAS RELAÇÕES
SOCIOECONÔMICAS E AFETIVAS

Carmelita da Cunha Alfaia248


Marcelo Quintino Galvão-Baptista249
Silvia Canaan250

RESUMO
Estudos voltados para a violência contra a mulher, no Brasil, geralmente consideram
apenas a categoria gênero, entre outras, em detrimento da dimensão étnico-racial, o
que tem demonstrado a invisibilidade à mulher negra. Esta pesquisa teve como obje-
tivo analisar, no contexto brasileiro, os efeitos gerados pela violência contra mulheres
negras sobre suas relações tanto em termos socioeconômicos como também na esfera
afetiva. Por meio da utilização de entrevistas semiestruturadas, realizadas com 12 mu-
lheres autodeclaradas negras e alvo de violência ocorrida no âmbito de suas relações
com o parceiro afetivo, foi possível a coleta de dados cuja análise permitiu identificar
a violência moral e a psicológica como os tipos que se apresentaram de forma mais
incidente sobre as participantes, no conjunto das demais – violência física, patrimonial
e social. A pesquisa apontou, ainda, que as relações socioeconômicas e afetivas das
participantes foram afetadas pela violência e marcadas pelo racismo, impedindo-as de
transitar em lugares desejados e de consumir bens e serviços nesses lugares, e que essas
relações não apresentaram conexão com a dependência financeira do parceiro afetivo.
Também, os resultados sinalizaram indícios de dependência afetiva em todas as en-
trevistadas. Conclui-se serem relevantes políticas estatais, em segurança pública, e sua
materialização, para haver reversão e prevenção da violência contra mulheres negras,
tendo em vista suas peculiaridades, e lhes propiciando a visibilidade que lhes tem sido
negada historicamente.
Palavras-chave: Violência de Gênero; Mulheres Negras; Racismo; Dependência
Socioeconômica e Afetiva; Segurança Pública.

248 Mestra em Segurança Pública pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública da


Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: ccalfaia@yahoo.com.br
249 Professor de Psicologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade
Federal do Pará (UFPA). E-mail: marcelogalvao1980@gmail.com
250 Professora de Psicologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade
Federal do Pará (UFPA). E-mail: silviacanaan@gmail.com

197
ABSTRACT
Studies focused on violence against women in Brazil usually considering only the category
of gender, among others, omitting the ethnic-racial dimension, which has shown the
invisibility of the black woman. This study aimed to analyze the effects generated by
violence against black women, in the Brazilian context, on their relationships both in
socioeconomic terms as well as in the affective sphere. Data were collected through the use
of semi-structured interviews with 12 self-declared black women who had been victims
of violence situations in the context of their relationships with the affective partner. It was
found that moral and psychological violence were the most prevalent types reported by
the participants among others types of violence such as physical, patrimonial and social
violence. The research study also pointed out that participants’ socioeconomic, affective
relationships were affected by violence and marked by racism, not allowing them to attend
desired places, and that these relations did not have a connection with dependence on the
affective partner.The results also indicated signs of affective dependence in all interviewees.
It is concluded that it is relevant to design state policies, particularly in the field of public
security, and mechanisms that materialize them in order to provide a favorable context
for the reversion and prevention of the effects found in this research study related to the
violence targeted to black women, thus considering their peculiarities and allowing the
visibility that has been denied them historically.
Key-words: Gender Violence; Black Woman; Racism; Socioeconomic and Affective
Dependence; Public Security.

INTRODUÇÃO

O termo “violência contra a mulher” tem sido utilizado na lite-


ratura brasileira como similar a outros termos, a exemplo de “violência
de gênero”, indicando suas múltiplas dimensões e em referência a um
mesmo fenômeno (CANAAN, et al., 2018). Este fato requer evidência
dos sentidos de cada termo, evitando-se, assim, confusão terminológica
em estudos voltados para a violência envolvendo a mulher na área de
segurança pública.
Safiotti (2001) tece discussões sobre a violência de gênero numa
perspectiva que abrange não somente as mulheres, mas também as
crianças e os adolescentes de ambos os sexos, bem como os homens, os
quais, no exercício da função patriarcal, detêm o poder, que lhes é garan-
tido socialmente, de determinar a conduta feminina.

198
A Declaração das Nações Unidas, de 1949, que foi aprovada pela
Conferência de Viena em 1993, apresenta, segundo Adeodato (2006, p.
2), o entendimento de violência envolvendo relações de gênero, como
sendo “[...] todo e qualquer ato [...], na vida pública ou privada, que
tenha como resultado dano de natureza física, sexual ou psicológica, in-
cluindo ameaças, coerção ou a privação arbitrária da liberdade”.
Para Garbin CAS et al. (2006), a percepção social da violência
contra a mulher é histórica, vem-se transformando ao longo dos séculos
em função da luta política travada pelas mulheres, o que desnaturalizou
esse fenômeno, deu-lhe visibilidade e o qualificou, mais recentemente,
como uma violação dos direitos humanos. Para a autora, a violência contra
a mulher é tipificada como um comportamento criminoso, devendo ser
encarada justamente desta maneira pelos/as profissionais que lidam com
as vítimas desse crime, não sendo essas vítimas apenas as mulheres envol-
vidas, mas também os seus/suas filhos/as, os parentes e os/as amigos/as.
No Brasil, estudos sobre a violência contra a mulher têm omitido
tratar de questões relacionadas à raça, classe e gênero para a compreen-
são do fenômeno. Daí entender-se a invisibilidade à mulher negra, nes-
ses estudos, no que tange à violência a que tem sido submetida. No sen-
tido de serem consideradas essas questões, por sua pertinência, Almeida
(2012) discute que o cruzamento de gênero e raça nas relações sociais,
no país – como objeto de estudo e de políticas públicas – não tem tido a
devida visibilidade na longa tradição cultural brasileira.
Quando as mulheres negras são consideradas, nos estudos sobre
violência, entre as várias representações sociais acerca delas, no Brasil,
conforme White (2002), aquelas que as enquadram como vítimas sofre-
doras servem para mantê-las passivas e confusas em relação à violência.
Este estereótipo não influencia apenas as relações íntimas, mas também o
dia a dia dessas mulheres. Ainda, segundo o mesmo autor, as mulheres, em
geral, alvo de violência, tendem a colocar as suas necessidades em segun-
do plano, e esta é uma das características fortes e presentes nas mulheres
negras, em virtude de sua condição histórica, se for levado em conta o
longo processo de escravagismo, com suas diversas consequências nos/nas
afrodescendentes.

199
Também, estudos como o de Werneck (2010) apontam que o
maior desafio, para a mulher negra agredida, é reconhecer, de fato, o
comportamento violento do seu (sua) companheiro (a) nas diversas for-
mas e expressões e o que isso lhe poderá causar, ou seja, danos físicos e
emocionais, por exemplo, além da privação da possibilidade de manter a
sua mobilidade social e privação de sua visibilidade. Para Hooks (2017),
os problemas que incidem sobre as mulheres negras decorrem da viola-
ção de seus direitos, o que dificulta a sua mobilidade social e acesso aos
serviços sociais, em condições dignas, a exemplo dos serviços de saúde.
Mizuno et al. (2010) mostram que a compreensão da violência,
intrínseca nas relações vivenciadas pelas mulheres e a reconstrução, não
só de sua vida, mas também de outras pessoas na mesma situação, é
importante, assim como o é caracterizar essas relações e essas mulheres.
Isso porque, como referido, as relações das mulheres negras são carre-
gadas de subjetividade, sendo o afeto um sentimento quase inexistente
em seus parceiros, por estes objetificarem e hipersexualizarem os corpos
delas, considerados mais robustos em relação aos das mulheres brancas.
Além das considerações dos estudos referidos, há que se levar
em conta, no que respeita à compreensão da etiologia da violência con-
tra a mulher negra, o papel de fatores socioeconômicos e afetivos. Isso,
pelo fato de que esses fatores parecem destacar-se aos demais, quando
relacionados a esse fenômeno, em virtude da forte dependência da mu-
lher negra ao parceiro (a), tanto em termos financeiros e das relações
sociais implicadas, como também em termos afetivos (ou emocionais),
em função de sua vulnerabilidade social que se vem apresentando his-
toricamente, no Brasil. A dependência emocional é descrita por Canaan
(2014) como pertinente para a compreensão da relação homem-mulher
no contexto de violência. Especificamente, a dependência da mulher
negra é resultado de uma relação conflituosa, gerando perdas para ela,
refletidas no fato de não conseguir sua mobilidade social via inserção
no mercado de trabalho formal, restando-lhe a busca de ocupações in-
formais ou o exercício de profissões socialmente menos prestigiadas e
altamente precárias, ou mesmo ocupações eventuais.

200
A análise da dependência afetiva parece implicar o entendimento
da afetividade em termos do que a constitui. Amaral (2007) argumenta
que a afetividade compreende um conjunto de sentimentos, emoções,
humores, paixões “positivos” ou “negativos”. Também, argumenta que,
graças à afetividade, as pessoas conseguem criar laços de amizade entre
si, não baseados somente em sentimentos, mas também em atitudes,
além de considerar que as atitudes são diversas em um relacionamento
cujo progresso demanda ser cultivado. Assim, conforme Amaral, quan-
do um dos parceiros projeta no outro expectativas, sentimentos e emo-
ções correspondidos de forma inesperada ou insatisfatória, ou mesmo
não correspondidos, pode ocorrer a chamada dependência afetiva.
A afetividade, segundo Fonseca (2006) está associada à coação
por parte do parceiro, à constituição do conceito de família tradicional
e ao medo da solidão. Neste entendimento, a afetividade constitui os
motivos que contribuem para a permanência da mulher em uma relação
violenta. Fonseca aponta, como consequências disso na mulher, o sen-
timento de tristeza, o consumo excessivo de álcool, o estresse, a agres-
sividade, a ansiedade, a insegurança, a culpa, o sentimento de pena, etc.
Pelo exposto, é preciso frisar que as políticas de enfrentamento
à violência contra a mulher são necessárias para que esta primeiramen-
te tome conhecimento de que é alvo desse crime e, em seguida, o de-
nuncie e busque tratamento adequado para os problemas decorrentes.
O conceito de enfrentamento à violência contra a mulher, segundo o
Ministério da Saúde (BRASIL, 2011, p. 25), compreende a implemen-
tação de políticas amplas e articuladas, que procurem dar conta da com-
plexidade do fenômeno, demandando parceria entre os diversos setores
envolvidos: saúde, segurança pública, justiça, educação, assistência social,
entre outros, no sentido de propor ações que desconstruam as desigual-
dades e combatam as discriminações de gênero e a violência contra as
mulheres; interfiram nos padrões sexistas/machistas ainda presentes na
sociedade brasileira; promovam o empoderamento das mulheres e ga-
rantam às que se encontrem em situação de violência um atendimento
qualificado e humanizado.

201
O Instituto de Pesquisa DataSenado, em parceria com o
Observatório da Mulher contra a Violência (BRASIL, 2013), realizou
pesquisa para ouvir mulheres brasileiras acerca da violência de que são
alvo, entre 29 de março e 11 de abril de 2017. Ficou evidenciado que
mulheres mães são as mais expostas à violência e problemas associados,
como baixa autoestima, má qualidade de vida, desestruturação pessoal,
familiar e social, aumento dos gastos com cuidados de saúde, o absente-
ísmo na escola e no trabalho.
Além do subsídio da literatura elucidando os aspectos envol-
vidos nos diversos tipos de violência contra a mulher, já apresentados,
a problematização relativamente à ausência de visibilidade da mulher
negra e a pertinência de serem analisados os efeitos gerados sobre suas
relações socioeconômicas e afetivas estiveram na base do delineamento
da presente pesquisa. A perspectiva do estudo foi a de que essa análise
pudesse apontar contribuições para o estabelecimento de políticas pú-
blicas a terem em conta as mulheres negras para as quais a atenção e os
cuidados ficam diluídos em função dessa invisibilidade.

METODOLOGIA

PARTICIPANTES

Participaram na pesquisa 12 mulheres que se autodeclaram ne-


gras, de um total de 64 pessoas que frequentavam dois ambientes acadê-
micos – 5 mulheres, com o status de alunas (de um total de 35 mulheres
na turma); 1 mulher, como professora, e 6 mulheres de um grupo de
estudo sobre gênero, raça, classe e sexualidade.

AMBIENTE

A coleta de dados ocorreu em uma sala de aula de uma institui-


ção de ensino superior particular, em Belém/PA; também, em uma sala
de uma instituição de ensino superior pública.

202
MATERIAIS E INSTRUMENTOS

Foi elaborado um roteiro para a realização de entrevistas semies-


truturadas com as participantes, composto de três partes: a primeira
envolvia os dados sociodemográficos das participantes; a segunda, os
dados sobre as formas de violência exercida pelo (a) parceiro (a) afetivo
(a); a terceira parte era constituída de dados sobre o relacionamento so-
cial das participantes, bem como suas relações no contexto do trabalho.
Houve a utilização de 1 gravador de áudio; 1 caneta esferográfica preta
e/ou azul; 1 bloco de anotações; 1 computador note book.

PROCEDIMENTO

As entrevistas foram realizadas por uma pessoa treinada pela


primeira autora da pesquisa. Ocorreram de forma individual e com to-
das as participantes, tendo a duração mínima de 45 minutos e a máxi-
ma de 90 minutos. Embora o quesito tempo não fosse imposto para as
entrevistadas, muitas delas se emocionaram ao contarem suas histórias
e responderem às perguntas, e esse momento foi respeitado pela en-
trevistadora que aguardava a melhor ocasião para retomar a entrevista,
sinalizada pela entrevistada. Todas as entrevistas foram realizadas com
base no roteiro referido cuja aplicação visava verificar a efetividade desse
instrumento em coletar os dados conforme os objetivos da pesquisa. Foi
programado o retorno às entrevistadas sempre que a análise das respos-
tas mostrasse a necessidade de algum esclarecimento ou que alguma
pergunta precisasse de reformulação.
O procedimento de análise dos dados envolveu a transcrição das
entrevistas, a organização de tabelas para a interpretação das respostas
à luz dos objetivos da pesquisa e do referencial teórico, e a apresentação
de propostas de pesquisas futuras sobre o tema.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados da pesquisa estão apresentados em quadros sob a


forma descritiva.

203
O Quadro 1 mostra os dados sociodemográficos das participan-
tes, em referência à sua idade, tempo de relação afetiva, número de fi-
lhos, escolaridade, ocupação, religião, e orientação sexual.

Tempo de
Idade Nº de Orientação
Participante relação Escolaridade Ocupação Religião
(anos) filhos/as sexual
afetiva
Superior
P1 25 1 ano 0 --- Não Bissexual
completo
Superior
P2 27 5 anos 0 --- Não Bissexual
completo
Servidora
Superior
P3 42 5 anos 0 Pública/ Evangélica Heterossexual
completo
Professora

Superior
P4 43 6 anos 2 --- Evangélica Heterossexual
(cursando)

Superior
P5 34 7 anos 1 --- Umbanda Heterossexual
(cursando)
Superior
P6 19 1 ano 0 --- Não Bissexual
(cursando)
Superior
P7 25 1 ano 0 --- Umbanda Bissexual
(cursando)

Espirita/
Superior
P8 33 10 anos 1 --- Candom- Heterossexual
(cursando)
blé

Pós-
P9 30 6 anos 0 --- Não Bissexual
graduação
1 ano e 6
P10 29 0 Mestrado --- Não Heterossexual
meses
Superior Assistente
P11 22 1 ano 1 Evangélica Heterossexual
(cursando) administrativo
1 ano e 6 Superior
P12 20 0 Recepcionista Não Heterossexual
meses (cursando)
Quadro 1: Dados sociodemográficos das participantes da pesquisa.
Legenda: As participantes são referidas alfanumericamente, a exemplo de P1.
Fonte: Entrevista realizada com as participantes.

Como mostra o Quadro 1, a idade das participantes varia entre


19 e 43 anos, o que indica que a violência não atinge somente as mulhe-
res tidas como “imaturas”, tão pouco aquelas “experientes demais para
serem alvo”, como o senso comum assim as rotula. O tempo de relacio-
namento afetivo com o parceiro também é variável, de 1 a 7 anos.
Apenas quatro participantes, P4, P5, P8 e P11 – 33,33% – disse-

204
ram ter filhos/as, de 1 a 2 no máximo. A maioria, P1, P2, P3, P6, P7, P9,
P10 e P12, ou seja, 66,66%, expressou não ter nenhum/a filho/a, o que
descontrói a ideia de que só é alvo de violência a mulher que mantém
o relacionamento devido à presença de filho/a para que o/a parceiro/a
afetivo exerça o papel de figura paterna perante esse filho e/ou mulher
que possui alguma dependência financeira em relação ao parceiro.
Os resultados apontam também que todas as participantes, 100%,
têm escolaridade no nível superior completo ou em curso, inclusive quatro
delas no âmbito da pós-graduação. O que pode explicar este resultado é o
fato de que a coleta de dados se deu em ambiente acadêmico. A escolari-
dade, nesse nível, não tem sido demonstrada em pesquisas sobre violência
contra a mulher, em geral, no Brasil (a exemplo do estudo de GOMES,
2018) e muito menos envolvendo a mulher negra. O nível de escolaridade
encontrada na presente pesquisa corrobora os relatos das participantes
em termos do esclarecimento demonstrado sobre seus direitos, inclusive
tendo a academia como espaço gerador de aprendizado nesse sentido, de
solidariedade e de resistências aos tipos de violência de que essas mulheres
foram alvo.
Somente três participantes, P3, P11 e P12 – 25% – responderam
ter emprego formal, enquanto que a maioria, 75%, respondeu que não
o tem. Das participantes sem emprego formal, algumas auferem renda
decorrente de trabalhos informais e de bolsas de pesquisa, além do apoio
financeiro familiar. Este resultado indica ausência de dependência econô-
mica das mulheres participantes da pesquisa em relação ao (à) parceiro
(a), o que corrobora os achados de Gomes (2018), sobre violência contra a
mulher, e contraria a avaliação do senso comum de que essas participantes,
por serem mulheres expostas à violência e ainda negras, dependem eco-
nomicamente do(a) parceiro(a) para a sua sobrevivência. É provável que
a situação verificada nesta pesquisa de não dependência das participantes
relativamente ao parceiro agressor esteja relacionada com a alta escolari-
dade delas, o que, por conseguinte, pode ser fator de seu engajamento na
luta contra a ideologia dominante de submissão feminina, na relação afe-
tiva, imposta à condição de gênero e, sobretudo, à condição étnico/racial
que apresentam.

205
Quanto à religião, metade das participantes, 50%, disse não pro-
fessar nenhuma, e metade respondeu afirmativamente. As religiões de
expressão evangélica, umbandista, espírita e candomblé, foram as apon-
tadas. As que se declararam evangélicas disseram sentir desconforto pe-
rante alguns conceitos difundidos no âmbito religioso, dentre os quais,
a defesa da submissão da mulher ao marido e a proibição “moral” para a
mulher que engravida, na condição de solteira, contrair o matrimônio.
As participantes praticantes de religiões de matriz africana revelaram
a importância dessa vivência para que denunciassem a violência a que
foram submetidas. As que responderam não professar nenhuma religião
não relacionaram essa condição com a violência.
As participantes, na maioria, P3, P4, P5, P8, P10, P11 e P12,
isto é, 58,33%, declararam-se heterossexuais, porém, com alguma expe-
riência homossexual durante a vida ou ainda durante a própria relação
com o parceiro afetivo que as violentou. A bissexualidade foi apontada
por cinco participantes, P1, P2, P6, P7 e P9 – 41,66% – mas nenhuma
relacionou essa experiência sexual com a violência.
O Quadro 2 mostra o histórico e os tipos de violência envol-
vendo as participantes no âmbito de sua relação afetiva com o parceiro.

Histórico de Tipo de Violência


Participante
Violência Física Moral Psicológica Patrimonial Sexual
P1 Sim --- X X --- ---

P2 Não X X X X ---

P3 Não --- X X --- ---

P4 Não --- X X --- ---

P5 Sim X X X X X

P6 Não X X X --- ---

P7 Sim --- X X --- ---

P8 Sim X X X --- X

P9 Sim X X X X ---

P10 Sim X X X X ---

P11 Sim --- X X --- ---

206
Histórico de Tipo de Violência
Participante
Violência Física Moral Psicológica Patrimonial Sexual
P12 Sim X X X --- ---
Quadro 2: Histórico e tipos de violência de que as participantes foram alvo.
Fonte: Entrevista realizada com as participantes.

Conforme o Quadro 2, os resultados revelam que, do total, oito


participantes – P1, P5, P7, P8, P9, P10, P11 e P12, ou seja, 66,66% –
apresentaram histórico de violência, apesar de todas terem respondido
que foram alvo de mais de um tipo de violência. E três participantes, P2,
P3 e P4, 25%, responderam negativamente.
Dos cinco tipos de violência, sobressaem a moral e a psicológica,
referidas por todas as participantes (100%). Em seguida, a violência físi-
ca, relatada por P1, P5, P6, P8, P9, P10 e P12 (58,33%). Segato (2003)
aborda a violência moral como um conjunto de mecanismos legitimados
pelos costumes para garantir a manutenção das diferenças de gênero.
Esses mecanismos de preservação do sistema vigente ou, status quo, tam-
bém controlam a permanência de outras opressões como o racismo, o
classismo e a homofobia. Neste sentido, o homem considera como sen-
do seu papel humilhar, ofender, caluniar uma mulher sem o considerar
uma ação violenta, mas sim como um ato normal e que faz parte do co-
tidiano de brigas de casal. Os relatos das participantes indicaram que a
violência moral e a psicológica foram constantes do início ao término do
relacionamento com o respectivo parceiro afetivo. Segundo o Ministério
da Saúde (BRASIL, 2011, p. 7), violência psicológica é:

toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano à au-


toestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa.
Inclui: ameaças, humilhações, chantagem, cobranças de
comportamento, discriminação, exploração, crítica pelo
desempenho sexual, não deixar a pessoa sair de casa, pro-
vocando o isolamento de amigos e familiares, ou impedir
que ela utilize o seu próprio dinheiro.

Dentre as modalidades de violência, a mais difícil de ser iden-


tificada é a psicológica, que pode gerar na pessoa alvo o sentimento de

207
desvalorização, a ansiedade e o adoecimento com facilidade. Estas situ-
ações podem persistir por muito tempo e, se agravadas, levar ao suicídio.
Para Dias (2015, p. 96), a violência física é entendida, segundo
o Art.7.º do código penal, como “qualquer conduta” agressiva que gere
ofensa à “integridade” ou à “saúde corporal” da pessoa alvo, neste caso, a
mulher, o que constitui uso da força física, mesmo sem marcas aparentes.
Assim, no entendimento da autora, caracteriza-se como violência física,
do ponto de vista jurídico, o fato de a mulher alegar ter sido submetida
à mesma, ainda que não existam sinais aparentes da agressão.
Dias ainda ressalta, no quesito jurídico, que não só a integridade
física, mas também a saúde corporal é protegida pela lei penal brasileira
(CP, art.129). O estresse crônico gerado em razão da violência pode de-
sencadear sintomas físicos, como dores de cabeça, fadiga crônica, dores
nas costas e até distúrbios do sono. É o que se chama de transtorno de
estresse pós-traumático, que é identificado pela ansiedade e a depressão,
a ponto de baixar ou reduzir a capacidade de a vítima suportar os efeitos
de um trauma severo (DIAS, 2015 apud ROVINSKI, 2004, p.77).
A violência patrimonial e a sexual foram as menos relatadas, por
P2, P9 e P10 (25,00%) e por P5 e P8 (16,66%), respectivamente. No
Código Penal brasileiro, Art.7.º, IV, segundo Dias (2015, p. 97),

a violência patrimonial é entendida como qualquer con-


duta que configure retenção, subtração, destruição parcial
ou total dos objetos da vítima, instrumentos de trabalho,
documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos
econômicos, incluindo os destinados a satisfazes suas ne-
cessidades.

Para esta autora, a violência sexual, à luz do Art.7.º, III, do refe-


rido Código, é:

qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar,


manter ou participar de relação sexual não desejada, me-
diante intimidação, ameaça, coação ou uso da força: que
a induz a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo,
a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método

208
contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez,
ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem,
suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exer-
cício de seus direitos sexuais e reprodutivos (DIAS, 2015,
p. 99).

RELAÇÕES SOCIOECONÔMICAS

Relações socioeconômicas estabelecidas por uma pessoa se refe-


rem a algum aspecto que afeta tanto a ordem econômica como social e
passíveis de mensuração com base na renda auferida e análise dos ambien-
tes frequentados, além da análise da possibilidade de mobilidade social.
Quanto às suas relações socioeconômicas, a participante P1 re-
latou não possuir emprego formal, mas acreditar que se estivesse traba-
lhando, a violência de que foi alvo na relação com o parceiro afetaria seu
lado profissional, podendo até levar à demissão. Disse que a violência
comprometeu de forma direta e indireta as suas relações sociais e eco-
nômicas. “Eu tinha vergonha se sair na rua depois de ter sido humilhada
por ele [parceiro]. A sensação que eu tinha era de que as pessoas iriam
saber e me julgar”.
A participante P2 considerou como inexistentes as suas relações
sociais. Disse que não tinha qualquer vínculo social com amigos e pa-
rentes; que vivia trancada em casa sob o poder do então parceiro agres-
sor. “Eu não saía de casa pra nada e quando eu queria alguma coisa, ele
[parceiro] dizia que ia comprar pra mim, isso me agoniava”. Assim, a
violência privava-a de ter relacionamentos sociais e, por ela ser susten-
tada pelo parceiro, era também privada de consumir. A violência servia
para demonstrar o poder físico dele e tentar fazer com que a vítima
acreditasse ser sua prisioneira economicamente.
P3 revelou que suas relações socioeconômicas eram afetadas pelo
machismo: “Saímos pra jantar e obrigatoriamente ele [parceiro] tem que
pagar a conta”. Também, eram afetadas pelo racismo, conforme revelou:

Chamamos atenção aonde chegamos pelo fato dele [o


parceiro] ser um homem branco e eu uma mulher negra.
Socialmente, eu sofro mais pelo fato de ele não possuir

209
nenhuma formação superior do que pelo racismo das pes-
soas. É como se me cobrassem que ele vá também aos es-
paços que eu vou e saiba conversar. Já até evito sair tanto.

Para Gonzalez (1984, p. 232), o racismo constitui-se “como a ci-


ência da superioridade eurocristã branca e patriarcal”. Sendo o racismo
um sistema opressor que privilegia uma classe em detrimento de outra, as
mulheres negras sofrem dupla opressão: pela condição de gênero – mulher,
e pela condição étnico-racial – negra. Todas as entrevistadas (100%) men-
cionaram esse sistema de opressão como um tipo de violência.
Ribeiro (2017, p. 79) argumenta que é constrangedor falar de ra-
cismo como opressão de gênero. Afirma: “A tomada de consciência sobre
o que significa desestabilizar a norma hegemônica é vista como inapro-
priada ou agressiva porque aí se está confrontando o poder”. Segundo
Almeida (2018, p. 23), o racismo é sempre estrutural, na medida em que
se caracterizar como um elemento integrador da organização econômi-
ca e política da sociedade e “fornece o sentido, a lógica e a tecnologia
para as formas de desigualdade e violência que moldam a vida contem-
porânea”. Isso fica demonstrado na verbalização da participante P3, em
termos de que ela, ainda que tenha conseguido alcançar um patamar
relativamente alto para uma mulher negra, sofre por conta do racismo
enraizado nas instituições nas quais trabalha, sentindo profunda tristeza
e ao mesmo tempo indignação. Ainda, segundo Almeida (2018, p. 25),
o racismo é “uma forma sistemática de discriminação” fundamentada na
raça e manifestada por meio de “práticas conscientes ou inconscientes
que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depen-
der do grupo racial ao qual pertençam”.
A participante P4 expressou conformar-se com o seu isolamento
social e sua dependência econômica do parceiro, colocando o foco nas rea-
lizações de suas filhas. Esse comportamento pode estar relacionado com o
status social do parceiro [militar] e o conservadorismo familiar e religioso.
O relato de P5 evidencia forte conexão entre a violência que a
atingia e a dependência econômica relativa ao padrasto. Um fato que já
se evidenciava desde a infância. Ela expressou:

210
Ele abusava de mim e eu contava a minha avó que me dizia:
se você contar, além de sua mãe não acreditar, vamos ficar
sem o dinheiro dele pra nos sustentar. É ele que paga tudo
aqui, sua mãe não trabalha e nem eu. Convivi como esse
trauma até os 19 anos quando conheci meu companhei-
ro e vi nele a possibilidade de sair daquele inferno. Até os
19 anos, ele me controlava. Tinha ciúmes, implicava com
os meus namorados e regulava minha vida. Eu não achava
possível que minha mãe achasse aquilo normal.

O relacionamento social de P5 ficou prejudicado pela privação


de contato com amigos/as desde a infância, retirando-lhe o hábito de
estabelecer amizades. Também, o histórico dessa privação afetou o seu
comportamento de consumir.
P6, apesar de muito jovem, não permitiu que as violências (física,
moral e patrimonial) prejudicassem as suas relações sociais. Inclusive,
ela via nos espaços acadêmicos frequentados uma oportunidade de tro-
ca de experiências, empatia e solidariedade entre mulheres. Conforme
expressou, isso foi de extrema importância para lutar contra as agressões
vividas. Economicamente falando, não possui trabalho formal, é depen-
dente diretamente da família, que é composta por tio e tia, os quais
constataram o seu sofrimento e a acolheram, sustentando seus estudos e
sua vida de um modo geral.
A esfera das relações sociais e econômicas de P7 foi aponta-
da como tendo limitações. A participante relatou frequentar sempre o
mesmo espaço social – um terreiro de umbanda e um barzinho. Aquele
ambiente dá sustentação à maneira como ela enfrenta a violência, con-
forme disse.

Me sinto em paz comigo mesma agora e isso foi graças


a minha religião. A religião me ensina a lidar com essas
pessoas, a ser calma, tranquila pra resolver os problemas.
Acabo que, minhas relações sociais acontecem todas lá.
Lá a gente faz os cultos, se diverte, ri, se solidariza. É uma
segunda casa e uma segunda família, me ajuda muito.

211
O segundo ambiente (o barzinho) pouco lhe permite de diversão e
coaduna com o seu limitado poder de consumo, sendo frequentado por P7,
somente por ter a companhia de amigos/as que gostam do referido local.
Não aparece no relato de P8 que a violência exercida pelo par-
ceiro tenha afetado as suas relações socioeconômicas. Disse frequentar
pubs, cinemas, shopping centers e shows, dado o seu poder de consumo.
Ela apontou a academia como um espaço de luta e de resistência, e im-
portante para lhe propiciar conhecer direitos e lutar por eles.
P9 respondeu possuir relações sociais intensas, o que deve im-
pedir o efeito da violência sobre essas relações. “A gente compra uma
bebida e fazemos nossos churrascos por lá mesmo”. Quando questiona-
da sobre a etnia das pessoas de sua esfera de amizade, ela foi categórica:
“Tenho todos os tipos de amigos e amigas. Tem negro, índio, branco,
gay, lésbica, transexual. Não tenho porque fazer distinção. Também sou
bissexual e nem passa pela minha cabeça discriminar alguém”. Ficou
evidente que as relações socioeconômicas de P9 não sofrem interferên-
cia da violência do parceiro, mas sim da violência urbana.
No caso de P10, o desprestígio com que ela era tratada por uma
família de brancos, à qual servia como empregada doméstica, foi uma vio-
lência que deve ter comprometido as suas relações no campo social e econô-
mico, apesar de ela não ter explicitado isso em entrevista. Disse que naque-
la família havia referências à sua pessoa nestes termos: “Olha, você precisa
aprender a cozinhar porque você nunca passará de empregada doméstica”.
P11 descreveu ganhar bem menos do que os homens na em-
presa onde trabalha, mesmo com o dobro de esforço. Apesar de não
ter verbalizado isso de forma clara, é muito provável que essa discrimi-
nação a impeça de frequentar espaços sociais e/ou consumir produtos
e serviços. O fato de ela ganhar menos do que os homens na mesma
empresa, exercendo a mesma função, é um aspecto relevante que remete
à discussão sobre raça, classe e gênero – dimensões com as quais a vio-
lência tem relação. Segundo pesquisa desenvolvida pelo Ministério do
Trabalho e Previdência Social, em parceria com o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), de 2016, 39,6% de mulheres negras es-
tão inseridas em relações precárias de trabalho, seguidas pelos homens

212
negros (31,6%), mulheres brancas (26,9%) e homens brancos (20,6%).
Ainda, conforme a pesquisa, mulheres negras eram o maior contingente
de pessoas desempregadas e exercendo o trabalho doméstico. Isso só
corrobora a discussão de que as relações de trabalho também são marca-
das pelo racismo, classismo e machismo.
P12 verbalizou ser alvo de discriminação racial no local de trabalho.

As pessoas chegam até a recepção e se dirigem a qualquer


outra pessoa que não seja eu, por acharem que eu não sou
a recepcionista. Acaba que eu que tenho que correr atrás
das pessoas e chamá-las pra explicar que eu trabalho ali e
que sou eu a recepcionista.

Ela é enfática em considerar essa discriminação como sendo o


motivo de auferir um salário inferior ao das outras mulheres, principal-
mente não negras. “Também descobri recentemente que eu ganho um
pouco menos que as outras meninas que exercem a mesma função que eu.
Não sei se isso está ligado diretamente a minha cor, mas creio que sim”.
P12 expressou valorizar mais os locais onde possa conviver com
pessoas negras com as quais se identifica. “Prefiro frequentar os reggaes
porque tem vários pretos lá, iguais a mim e eu me sinto melhor, sem os
olhares como se eu não fosse para estar ali”.
Pelo exposto, ficou patente que as relações socioeconômicas das
participantes também são marcadas pelo racismo e isso é para elas obs-
táculo para transitar nos lugares desejados e de consumir bens e serviços
nesses lugares, procurando ser seletivas quanto ao ambiente, preferindo
estar em casas de amigos ou amigas onde não são discriminadas.
Nota-se também que essas relações socioeconômicas são carac-
terizadas, conforme informaram 83% das participantes, pela ausência da
dependência financeira e afetiva do parceiro. As participantes possuem
uma vida social ativa. É o racismo, citado por 100% delas, o condicio-
nante de sua vida social e de consumo nos ambientes frequentados por
pessoas não negras, muito mais de que as limitações de renda. Isso ficou
evidenciado na fala de uma participante, P5: “Quando entro no sho-
pping com minha filha e a levo pra brincar no parque fechado, lá dentro

213
percebo o monitor dando atenção à criança branca e nenhuma à minha
filha. Isso dói”.
Dentre as participantes, destaca-se P3, por ser a única que possui
dois empregos formais. É servidora pública durante o dia, e à noite é pro-
fessora de uma Instituição de Ensino Superior. A única filha formada e
concursada da família. Ela relatou que às vezes se livra da barreira de cor,
mas não da barreira de gênero. Disse precisar, em casa, preparar o jantar para
o marido porque, segundo ele e a própria mãe dela, “esse é o papel da mulher
casada”. Também relatou sentir, nas relações de trabalho, certo racismo e
discriminação, por ser a única negra do corpo docente de um curso.

As pessoas parecem não aceitar o fato de uma negra ser


professora universitária. Eu entro na sala dos professores
e ainda me olham como se eu não merecesse estar ali ou
como se eu não pertencesse àquele lugar.

Ribeiro (2017) questiona a abrangência das políticas públicas para


as mulheres quando, de fato, envolvem as mulheres negras, as quais são as
mais vulneráveis socialmente, devendo elas, por esta razão, ser alvo de uma
atenção maior dessas políticas. A autora argumenta, com isso, a necessidade
de se dar visibilidade às mulheres negras nas políticas públicas, para que se-
jam reduzidas as desigualdades que pesam sobre elas em relação às mulheres
não negras, a exemplo dos altos índices de violência a que são submetidas.
A insistência do discurso que toma as mulheres como universais,
além de fomentar a falácia da democracia racial e maquiar a violência
interseccionalizada que atinge a mulher negra, faz com que somente
parte das mulheres seja contemplada e, na verdade, beneficiada pelas
políticas públicas, por exemplo em termos de segurança (RIBEIRO,
2018). O Mapa da Violência, de 2015, mostra aumento, em 54,8%, do
assassinato de mulheres negras, no Brasil, ao passo que o assassinato de
mulheres brancas apresenta diminuição em 9,6%. Esta estatística indi-
ca, segundo Ribeiro (2017, p. 42), ausência de um olhar para a questão
étnico-racial “no momento de se pensar políticas de enfrentamento à
violência contra as mulheres, já que essas políticas não estão alcançando
as mulheres negras”.

214
RELAÇÕES AFETIVAS

Gomes (2018) apontou que as relações afetivas de mulheres alvo


de violência pelo parceiro, participantes de um estudo que a autora re-
alizou, apresentaram os indicadores de dependência afetiva no âmbito
conjugal. Segundo Canaan (2014), a dependência afetiva constitui um
conjunto de comportamentos cuja incidência é maior em mulheres do
que em homens. A dependência afetiva é entendida como patológica
na relação da mulher com o seu parceiro e é caracterizada por Canaan
(2014, p. 78), nestes termos:

as pessoas em situação de dependência afetiva tendem


a apresentar algumas características peculiares, como a-
serem exclusivas em seus relacionamentos interpessoais,
possuindo um número pequeno de pessoas com as quais
se relacionam; b- necessitam de um acesso constante, à
pessoa da qual depende emocionalmente, ou seja, o outro
precisa estar sempre disponível; c- necessitam excessiva-
mente da aprovação dos demais; estão na maior parte das
vezes tentando agradar às pessoas ao seu redor ao invés de
si próprio; d- subordinação nas relações com os parceiros,
já que tentam a todo custo, preservar a relação; e- idea-
lização de seus parceiros escolhendo-os com característi-
cas definidas como egoístas, com grande segurança em si
mesmo e frio emocionalmente; f- pânico diante da rup-
tura do relacionamento e grande possibilidade de padecer
de transtornos mentais, tais como vazio emocional, sinto-
mas de abstinência na ausência do parceiro, dentre outras.

As relações afetivas das entrevistadas deste estudo foram explici-


tadas como existindo na esfera conjugal e nas interações com as demais
pessoas do meio da sua convivência, tais como os membros da família,
amigos e pessoas do ambiente de trabalho. Todas as entrevistadas (100%)
apresentaram indícios de dependência afetiva, o que ficou evidente nos
seus relatos. Disseram não precisar economicamente do parceiro, mas
que consentiam permanecer com ele, por amor. Além disso, os relatos
permitem atrelar esse relacionamento, mesmo sendo em contexto de

215
violência, à concepção de família que as participantes expressaram ter.
As seguintes falas ilustram isso:

Eu gostava dele, gostava mais de cuidar dele do que cuidar


de mim, sentia que ele precisava de mim, que era minha
obrigação, como mulher dele, cuidar dele, lavar a roupa,
limpar a casa, cozinhar. Ainda que eu soubesse que eu
queria mais, queria estudar, queria trabalhar fora, eu sabia
que algo estava errado, mas eu, de certa forma, gostava do
que fazia, como fazia e para quem eu fazia (P9).

Eu vivia pra ele, se fores ver meu desempenho na facul-


dade...era tudo E (excelente), veio decair quando eu me
envolvi com ele, comecei a faltar muito, só tem conceito
R (regular) no meu histórico após essa relação louca. Eu
deixava de ir a universidade para ir pra casa dele, cozinhar
pra ele, arrumar a casa dele que mais parecia um chiquei-
ro, lavar as roupas. Ele nunca me pediu, mas eu achava
que era minha obrigação porque eu achava que ele era
muito bom pra mim (P10).

Ao mesmo tempo em que ele queria me prover tudo, que-


ria me tirar tudo e eu me via sem saída. Ele me levava na
escola, me buscava, pagava as pessoas pra me vigiarem
lá dentro, ele sabia de todos os meus passos e eu achava
aquilo o máximo, ter alguém me controlando. Eu permi-
tia isso porque, de certa forma, gostava dele” (P11).

Nenhuma das entrevistadas relatou queixa em relação ao trato


afetivo com o seu meio social. Todas demonstraram gostar do relaciona-
mento com os/as colegas de trabalho, amigos/as e familiares.
A dependência afetiva, cujos indícios são apontados nesta pes-
quisa, reafirma os achados de Gomes (2018), não obstante na pesquisa
desta autora, as mulheres participantes tivessem uma escolaridade infe-
rior. O grau de escolaridade das participantes do presente estudo é um
fator que se demonstrou como um aliado ao grau de sua consciência
para que elas resistam aos efeitos socioeconômicos da violência do par-
ceiro, mas não à dependência afetiva em relação a ele.

216
Mesmo na sociedade atual, com o avanço da tecnologia e a glo-
balização no que diz respeito à efetivação de direitos e vivência da cida-
dania, a situação das mulheres negras ainda precisa alcançar alterações
significativas, pois na sociedade de classes, como trabalhadoras assa-
lariadas ou não, ainda elas se deparam com inúmeras barreiras sociais
como reflexo das desigualdades sociais e raciais.
Segundo o IBGE (2010), a população negra feminina é com-
posta por mulheres pretas e pardas que são, em grande maioria, chefes
de família e que ainda exercem cargos de menor prestigio social. Essa
estrutura, sustentada pela cor, pelos baixos rendimentos e algumas vezes
pela origem regional, revela que, historicamente, no Brasil, as desigual-
dades afetam de forma diferenciada a vida social e profissional das mu-
lheres negras e que essas desigualdades se manifestam no mercado de
trabalho, afetam suas relações socioeconômicas e estão interligadas dire-
tamente à estratificação social, à questão racial e às questões de gênero.
Considerando o exposto, é necessário o investimento em políti-
cas públicas que contemplem as mulheres e, mais especificamente, para
as mulheres negras, como forma de fomento à erradicação das discri-
minações múltiplas de que elas são alvo. Estimular o ensino, a inserção
de mulheres negras na produção acadêmico-cientifica, evidenciando os
casos de sucesso neste sentido, promover o empreendedorismo femini-
no negro nas artes e em outras esferas, constituem formas de contribuir
para que essa pirâmide social, onde as mulheres negras ainda são a base,
seja transformada e possa sustentar outras narrativas.

CONCLUSÃO

A importância desta pesquisa não é atestada apenas pelo fato de


apontar e caracterizar os tipos de violência de que as mulheres negras
participantes foram alvo, nem de identificar e problematizar seus efeitos
sobre as relações socioeconômicas e afetivas dessas mulheres. Também,
deve ser entendida por permitir reavaliar a situação atual da mulher ne-
gra, resignificando a sua condição de mulher e de negra sob o prisma de
participação na estrutura social.

217
Foi possível compreender, na pesquisa, que a dependência afetiva
relatada pelas participantes é quase unânime, entre os casos de violência
na relação conjugal. Ainda, a pesquisa aponta que o importante não é o
quanto independente financeiramente a mulher seja do parceiro afetivo,
mas sim levar em conta que a dependência afetiva é uma patologia e,
como tal, precisa ser tratada. Na pesquisa, abordou-se também o racis-
mo, o qual, como uma das formas de opressão proeminentes nas relações
socioeconômicas das participantes, independe do seu nível social e da
sua religião, dentre outros aspectos.
A pesquisa revelou que a mulher negra, no Brasil, ainda não está
totalmente inserida no processo de descolonização e de valorização da
condição da mulher, em geral, que a legislação sobre a violência en-
volvendo a mulher (violência de gênero) permitiu vislumbrar. Revelou
também que, embora já tenha sido iniciada a discussão relativamente
ao quesito violência doméstica, violência de gênero e racismo, a mulher
ainda permanece preterida na base da hierarquia social, em função de
sua condição étnica/racial e no que tange à sua afetividade e oportuni-
dade de mobilidade na estrutura socioeconômica e política do país.
A pesquisa indica ser relevante que o poder público, em particu-
lar no campo da segurança pública, assegure a devida atenção aos fatores
que estão na origem da violência de que as mulheres negras participan-
tes deste estudo são alvo, bem como aos efeitos apontados sobre suas
relações socioeconômicas e afetivas, por meio do desenho de políticas e
de mecanismos capazes de as materializar, como forma de considerar as
peculiaridades dessas mulheres no contexto brasileiro.

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220
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA
MULHERES NO BRASIL

Gissele Buzzatti Leal Bertagnolli251

RESUMO
As políticas públicas voltadas à mulher não são excludentes das políticas públicas de
gênero, embora se diferenciem. A solidificação de uma perspectiva crítica pode vir a
fundamentar a formulação de políticas públicas de gênero, e em longo prazo, as polí-
ticas para as mulheres devem se transformar em política de gênero. No final dos anos
1970, o campo de estudos de gênero consolidou-se no Brasil, conjuntamente com
ascensão do movimento feminista, que contribuíram para implantação das primei-
ras políticas públicas com recorte de gênero. Como exemplos, a criação da primeira
Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, em 1985, no Estado de São Paulo e o
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão do Ministério da Justiça. Demais
políticas públicas foram criadas, principalmente com o alargamento da cidadania em
relação à mulher após a Constituição Federal de 1988.
Palavras-Chave: Politicas Publicas, Gênero, Violencia.

ABSTRACT
Public policies aimed at women are not exclusive to public gender policies, although
they differ. The solidification of a critical perspective may come to support the
formulation of public gender policies, and in the long run, policies for women
must become gender policies. At the end of the 1970s, the field of gender studies
was consolidated in Brazil, together with the rise of the feminist movement, which
contributed to the implementation of the first public policies with a gender focus. As
examples, the creation of the first Police Station for the Defense of Women, in 1985,
in the State of São Paulo and the National Council for the Rights of Women, an
organ of the Ministry of Justice. Other public policies were created, mainly with the
extension of citizenship in relation to women after the Federal Constitution of 1988.
Keywords: Public Policies, Gender, Violence.

251 Doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social Feevale, Mestre em


Desenvolvimento Regional, Especialista em Mediação de conflitos ,Bolsista Fapergs/Capes
E-mail: adv.gissele@gmail.com.

221
INTRODUÇÃO

Desde o final da década de 1970, a temática da violência contra


mulheres é uma das prioridades dos movimentos feministas e de mulhe-
res no Brasil. O processo de institucionalização das demandas feminis-
tas nesta área pode ser identificado com três momentos institucionais:
primeiro, o da criação das delegacias da mulher, em meados dos anos
1980; segundo, o do surgimento dos Juizados Especiais Criminais, em
meados dos anos 1990; terceiro, o do advento da Lei 11.340, de 7 de
agosto de 2006, a chamada Lei “Maria da Penha”.
As feministas brasileiras desempenharam, e ainda desempe-
nham, um papel de destaque no processo de democratização, contri-
buindo para a politização de diversas temáticas relativas à mulher e para
a ampliação de seus direitos (Alvarez, 1990; Costa, 2005).
Ainda segundo Alvarez (1990), desde o início dos anos 1980,
as feministas têm lutado por “serviços integrados” de atenção à mulher
em situação de violência: serviços psicológicos, de assistência social, de
saúde e de orientação jurídica; serviços policiais capacitados para esta
questão; casas de abrigo; e medidas preventivas sobretudo no campo
da educação, sendo que até hoje, as delegacias da mulher constituem a
principal política pública de enfrentamento à violência contra mulheres
no Brasil.
No início dos anos 1990, os movimentos feministas e de mu-
lheres de vários países da América Latina, incluindo o Brasil, lutavam
pela adoção de leis específicas e abrangentes sobre a violência doméstica
contra a mulher (Pimentel, 1993).
Vem se registrando, nas últimas décadas, o ressurgimento da vi-
sibilidade dos estudos de políticas públicas, assim como das instituições,
regras, estratégias e modelos que regem decisões, formulações, imple-
mentações, monitoramentos e avaliações (Souza, 2003).
Propor políticas públicas de gênero exige estabelecer o sentido
das mudanças, uma vez que as pretendemos com um caráter emancipa-
tório (Souza Santos, 1994). Para que as desigualdades de gênero sejam
combatidas no contexto do conjunto das desigualdades sociais, e para

222
tornar efetiva as políticas públicas para mulheres, precisamos, além de
um diálogo efetivo e constante com a sociedade civil, disseminar uma
nova cultura política no Brasil. Uma cultura sensível às desigualdades
de gênero para um modelo inclusivo nas políticas públicas em relação à
mulher e com vistas a garantir a sua proteção e também a eliminação das
desigualdades entre homens e mulheres.
Contudo, ainda nos deparamos com frases desrespeitosas e que
materializa o caráter misógino, inclusive por parte de pessoas públicas.
Um dos comentários polêmicos, foi proferido por Jair Messias Bolsonaro
na manhã do dia 25 de abril de 2019, se referia às mulheres brasileiras
como mercadorias sexuais: “O Brasil não é paraíso gay, mas quem quiser
fazer sexo com mulher, fique à vontade”. (TERRA, 2019).
No ano de 2014, Jair Messias Bolsonaro, então Deputado
Federal, agrediu a Deputada Maria do Rosário, com a seguinte fra-
se Misógina: “Jamais iria estuprar você porque você não merece” (G1,
2016; YOUTUBE, 2014). Além disso, ele a empurrou e a xingou de
“vagabunda”. Estas declarações de caráter misógino só vêm a confirmar
que há um desmonte das políticas públicas no combate a violência contra
mulher, o que é censurável e preocupante visto que já tivemos grandes
conquistas em relação aos direitos das mulheres, como a Constituição
Federal de 1988 e a Lei Maria da Penha de 2006.
A omissão do Estado, que deixa de cumprir, o dever de imple-
mentar políticas públicas conforme definidas no texto constitucional,
traduz inaceitável gesto de desrespeito e desprezo pela constituição fe-
deral. A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de
políticas públicas previstas no texto constitucional, objetiva neutralizar
os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal traz
descumprimentos aos direitos humanos básicos.
Em algumas circunstâncias, o poder público se abstém de reali-
zar certas ações que se constituem encargos sociais do Estado para com
a sociedade, essa situação de abstenção estatal produz um conflito de
interesses, pois, de um lado está o poder público que não consegue con-
cretizar suas obrigações, e de outro, particulares que com seus direitos
lesados, busca o judiciário para obter seus direitos. Com essa abstenção

223
do Estado e com o aumento da busca da sociedade pela efetividade de
políticas públicas sociais, surge debates acerca do fenômeno, conhecido
como judicialização das políticas públicas, que significa última alterna-
tiva para buscar uma política pública de necessidades sociais.
A toda essa estrutura, a judicialização de políticas públicas edifi-
ca-se e torna-se sustentável na medida em que se modifica e adequa-se
às necessidades sociais por prestações estatais. Isto quer dizer que certas
questões de cunho político e social, de grande repercussão, geralmente
decididas pelo Poder Executivo e pelo Legislativo, agora, ganham des-
taque na arena judicial. BARROSO (2008).
A judicialização das políticas públicas ocorre quando na existên-
cia de uma norma constitucional presume-se uma pretensão objetiva e/
ou subjetiva que é pleiteada, e que cabe ao juiz decidir. A judicialização,
nada mais é do que a transferência de poder do executivo e legislativo
para juízes ou tribunais, é a necessidade de autorregulação realizada pelo
judiciário nos demais poderes, em especial o poder executivo.
Com a nova constituição federal, o Judiciário deixou de ser um
departamento técnico-especializado e se transformou em um verdadeiro
poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em
confronto com os outros Poderes. O ambiente democrático que se insta-
lou reavivou a cidadania, dando maior nível de informação e de consci-
ência de direitos aos vários seguimentos sociais, que passaram a buscar a
proteção de seus interesses junto aos órgãos judiciais. (Barroso, 2008).
Ao se defender a possibilidade do Judiciário intervir em políti-
cas públicas, não se quer colocar o primeiro como salvador da pátria ou
como protagonista de um processo de transformação e de redução de
desigualdades em nossa sociedade, e sim que ele atue junto com os ou-
tros poderes e possa, por meio da efetivação dos direitos fundamentais
sociais, melhorar o processo democrático existente. (Barbosa, 2012).
O Brasil, não conseguiu se consolidar sob vários aspectos sociais,
fazendo com que o judiciário aja em prol da sociedade com decisões
motivadas e de total interesse publico.

224
ORDENAMENTO JURÍDICO: AVANÇOS LEGAIS NA PROTEÇÃO
DAS MULHERES NO BRASIL

A discriminação contra a mulher está solidificada devido a uma


construção cultural de pensamentos submissos, na qual a discriminação
e a violência são traços marcantes e presentes no cotidiano das mulheres,
estando a violência perpetrada contra os diferentes segmentos de mu-
lheres brasileiras como um exemplo disso.
Em todas as formas de violência contra a mulher, é revelada a
existência de mecanismos de legitimação da sujeição das mulheres aos
homens, sendo o uso do poder e da força sua principal característica como
ação. Além disso, há o descaso e a naturalização por parte do Estado e dos
poderes públicos, em geral, como omissão. (SOARES, 2004).
A violência contra a mulher tem se mostrado a violência mais
comum, com o qual o ser humano mantém contato, fazendo com que
seja parte do cotidiano das mulheres. Frequentemente, essa situação é
tratada como corriqueira ou normal e muitas vezes é marcada pela desi-
gualdade, discriminação e dominação do masculino sobre o feminino. A
mulher era acusada de copular com o demônio e, em razão do sexo, con-
siderado impuro e maléfico, transformava-se em bruxa. “Daquele mun-
do e daquele tempo, sabe-se que qualquer mulher que vivesse sozinha ou
que não se submetesse aos padrões impostos, era acusada de feiticeira e
queimada na fogueira”. (MONTEIRO; LEAL, 1998, p. 10)
Segundo Beauvoir (1970), não houve um momento ou aconteci-
mento histórico que determinou a submissão da mulher, como ocorreu
com os negros e judeus, numericamente inferiores à categoria que os
dominou. Somente é possível compreender a hierarquia entre os sexos,
reforça a autora, à luz da filosofia existencial, revendo os dados da pré-
-história e da etnografia. Para buscar proteção da dignidade da mulher e
conter o avanço da discriminação do gênero feminino foi construindo-
-se um ordenamento específico.
Com o aumento da discussão acerca da temática, diversas leis
foram criadas ou foram alteradas nos últimos anos, podendo citar além
da Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, a Lei 12.527

225
de 2011, Lei de acesso à informação, que prevê que o tratamento das
informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respei-
to à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (BRASIL,
2011); Lei 12.965 de 2014 como marco civil da internet, que defi-
ne regras clássicas de proteção de dados pessoais (BRASIL, 2014); Lei
12.737/2012 - Lei Carolina Dieckmann, que tipifica atos como inva-
dir computadores (hacking), roubar senhas, violar dados de usuários e
divulgar informações privadas (BRASIL, 2012b); Lei 12.735/12 que
determina a instalação de delegacias especializadas para o combate de
crimes digitais (BRASIL, 2012a); Lei 10.446, de 8 de maio de 2002,
que dispõe sobre infrações penais de repercussão interestadual ou in-
ternacional que exigem repressão uniforme como quaisquer crimes
praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam
conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a
aversão às mulheres (artigo VII) (BRASIL, 2002); e ainda a Lei 13642,
de 03 de abril de 2018, que altera a Lei 10.446, de 8 de maio de 2002,
para acrescentar atribuição à Polícia Federal no que concerne à investi-
gação de crimes praticados por meio da rede mundial de computadores
que difundam conteúdo misógino (BRASIL, 2018). Ademais, existem
vários Projetos de Lei (PL) e ainda o Código Penal.
A primeira conceituação normativa de violência contra a mulher
foi trazida pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do
Pará, por ter sido realizada naquela capital brasileira, pela Organização dos
Estados Americanos - OEA, no ano de 1994. Em seu artigo 1º dispôs:
“Art. 1º. Violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta, baseada no
gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à
mulher, tanto no âmbito público como no privado”.
A compreensão da violência contra a mulher como violação dos
direitos humanos se impõe devido à dificuldade de homogeneização na
conceituação da violência contra a mulher, tendo em vista que “são mui-
to tênues os limites entre a quebra de integridade e obrigação de supor-
tar o destino de gênero traçado para as mulheres: sujeição aos homens
sejam pais ou marido”. (SAFFIOTI, 2004, p. 74).

226
Após 1988, a legislação brasileira vem sendo alterada com a in-
tenção de banir possíveis dispositivos discriminatórios em relação ao
gênero feminino, tendo como basilar a Lei Maria da Penha, que foi
um grande avanço na legislação brasileira na busca pela erradicação
da violência contra a mulher. (BRASIL, 2006). Campos (2010 apud
CARNEIRO; FRAGA, 2012) explica que compreender a difícil tare-
fa pretendida pela Lei 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha,
significa observar que o mundo manteve, secularmente, a legitimidade
da violência de gênero, tornando esta, portanto, institucionalizada, com
enfoques estigmatizados da cultura e da religião, impondo à mulher,
consequentemente, uma vida de subjugação.
A partir da conceituação de violência contra a mulher pela
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra a Mulher (ONU-1979), ratificada pelo Brasil em 1984, foi
possível criar institutos jurídicos de proteção e erradicação desse tipo
de violência. Segundo Beauvoir (1970, p. 13), essa dominação muito
se deve à passividade feminina diante da história. A mulher jamais se
enxergou como essencial e como sujeito de direitos, pois sempre se con-
tentou em receber o que os homens concordaram em lhe oferecer: “não
têm passado, não têm história, nem religião própria, não têm, como os
proletários, uma solidariedade de trabalho e interesses”.
A desigualdade da mulher observada na família primitiva repe-
te-se ainda hoje nas famílias contemporâneas. Antes do início dos mo-
vimentos feministas no Brasil, a mulher estava umbilicalmente ligada à
maternidade e ao lar. O termo família deriva do latim famulus e signi-
fica escravo doméstico, assim considerados as mulheres, as crianças e os
agregados. Esse termo foi criado na Roma antiga para designar um novo
grupo social que surgiu entre as tribos latinas, ao serem introduzidas a
agricultura e também a escravidão legalizada.
A partir da década de 1990, o Estado já não mais conseguiu cum-
prir com seu papel de desenvolver e promover a dignidade, a liberdade, a
autonomia e a condição de sujeito de direitos dos indivíduos, descumprin-
do sua função social de promover o bem-estar da coletividade.

227
Já o século XX, mais precisamente o ano de 1968, foi marcado
por manifestações e protestos. As mulheres, mesmo diante de inúme-
ras conquistas, como o direito ao voto e à educação, ainda continuam
sendo desvalorizadas, e a desigualdade em relação ao gênero masculino
persiste. As mulheres passam, então, a defender reformas na legislação
e o combate à violência sobre a mulher. Nos anos 1980, depois de mui-
tos assassinatos, as feministas foram novamente para as ruas e passa-
ram a exigir a criação de Delegacias Especializadas no Atendimento
às Mulheres (DEAMS ou DDM - Delegacias de Defesa da Mulher),
sendo que, a partir daí, começaram a ser criados centros de estudos sobre
a mulher, e o movimento feminista tomou força em busca de igualdade,
com a participação de mulheres negras, prostitutas, lésbicas e trabalha-
doras. A ONU, por sua vez, acredita que essa igualdade será alcançada
apenas no ano de 2490. (TELES, 2006).
De acordo com a Lei 11.340/06, a Lei Maria da Penha, são for-
mas de violência doméstica e familiar contra a mulher as que ocorre-
rem dentro da unidade da família ou unidade doméstica, nas relações
interpessoais, inclusive homoafetivas, em que o(a) agressor(a) conviva
ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher, e compreende a
violência física, sexual, moral, psicológica, patrimonial, etc. A violência
física, entendida como qualquer conduta que ofenda à integridade física
ou saúde corporal da mulher que viole ou ameace sua integridade física,
ou que lhe imponha risco de morte, caracteriza-se pela agressão com
socos, tapas, empurrões, pontapés, beliscões, bofetadas, puxões de cabelo,
mordidas e chutes ou por meio de queimaduras, cortes e perfurações
feitas com armas brancas (facas, canivetes, estiletes), armas de fogo ou
objetos que machuquem o corpo e prejudicam a saúde da mulher, além
de tentativas de asfixia ou de homicídio. Na correspondência legal, con-
figuram crimes como o de lesão corporal grave, seguida ou não de morte,
violência doméstica, injúria real, tentativa de homicídio e homicídio. As
formas mais recorrentes de violência física são a ameaça e a lesão corpo-
ral. Por lesão corporal entende-se a ofensa à integridade corporal ou à
saúde de alguém. (BRASIL, 2006)

228
Figura 4: Caracterização dos tipos de violência contra a mulher. São caracterizadas
as violências de gênero, doméstica, familiar, física, institucional, intrafamiliar/
doméstica, moral, patrimonial, psicológica e sexual.
Fonte: CNJ (2019).

Em 1996, surge a Lei 9.099/95, o Juizado Especial Criminal


– JECRIM, que foi previsto no artigo 98, I, da Constituição Federal,
trazendo a possibilidade de realização da transação penal, em relação
à reparação dos danos sofridos pelas vítimas de lesão corporal dolo-
sa de natureza leve e culposa, ameaça, rixa e constrangimento ilegal.
(BRASIL, 1995)

229
Conforme artigo 14 da Lei 11.340/2006, os Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com
competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito
Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento
e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e
familiar contra a mulher. (BRASIL, 2006).
A criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar figura
entre as recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), visan-
do a implementação integral da Lei Maria da Penha. Apesar destas ini-
ciativas e dos esforços políticos realizados junto aos Tribunais de Justiça
Estaduais, existem poucos Juizados Especializados em funcionamento
nos estados. No RS, Porto Alegre conta com dois Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra mulher, sendo que sete municípios do
interior do RS, atendem casos de violência doméstica e familiar através
da adequação dos Juizados Especiais Criminais.
Dias (2007, p. 21) explana que:

A criação de juízos especiais para o julgamento de delitos


menores foi determinada pela Constituição Federal. A
Lei dos Juizados Especiais veio a dar efetividade ao co-
mando constitucional e significou a verdadeira revolução
no sistema processual penal brasileiro. A criação de me-
didas despenalizadoras, a adoção de um rito sumaríssimo,
a possibilidade de aplicação da pena mesmo antes do ofe-
recimento da acusação e sem discussão de culpabilidade,
agilizaram o julgamento dos crimes considerados de me-
nor potencial ofensivo. Com isso a Justiça desafogou-se,
ganhou celeridade e diminuiu a ocorrência de prescrição,
emprestando a credibilidade ao Poder Judiciário.

No Rio Grande do Sul, Estado onde esta pesquisa se dá, há 2


varas especializadas de violência doméstica e 7 varas no interior do Rio
Grande do Sul. Porém, esse número além de não ser suficiente, a rea-
lidade nos mostra que apesar das medidas integrativas de proteção, as
diretrizes não impedem que a cada dia, mais mulheres se tornem vítimas
de violência.

230
Ensina Dias (2007, p. 134-135) que:

Claro que diante da realidade brasileira não há condições


de promover o imediato funcionamento dos JVDFM em
todos os cantos do País, até porque eles devem contar
com suporte imprescindível ao seu funcionamento: equi-
pe de atendimento multidisciplinar integrada por profis-
sionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de
saúde (art.29), além de curadorias e serviço de assistência
judiciária (art. 34).

Em abril de 2018, foi publicada lei que adicionou mais uma


atribuição à Polícia Federal: investigar os crimes praticados na inter-
net que tenham conteúdo misógino. De acordo com o dispositivo le-
gal, define-se o conteúdo misógino como sendo aquele que “propagam
o ódio ou a aversão às mulheres”. Deve ser observado um conjunto de
requisitos cumulativos para que a investigação possa ser efetuada pela
Polícia Federal: a prática de um ou mais crimes; repercussão inte-
restadual ou internacional que exija repressão uniforme; o espaço de
ocorrência do crime se deu pela rede mundial de computadores; e por
último, que propague conteúdo misógino.
Segundo o Conselho da Europa, o discurso de ódio sexista possui
expressões que divulguem, incitem, promovam ou justificam o ódio, com
base no sexo. Assim, ele apresenta-se de diversas maneiras, como: culpa-
bilização da vítima, propagação de ofensas, divulgação de fotos íntimas
sem consentimento (revenge porn), ameaças de morte, comentários ofen-
sivos à aparência, sexualidade, orientação sexual, utilização do humor para
humilhar ou ridicularizar as mulheres, entre outros (COE, 2016).
Na continuidade, acrescentamos um gráfico no qual visualiza-se
todas as leis de proteção às mulheres do Brasil.

231
Figura 6: Fluxograma demonstrando cronologicamente as leis criadas para proteção
da mulher. Estão incluídas no fluxograma leis desde a Constituição Federal de 1988
com o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres (Art. 226, §5º) até,
mais recentemente, a Lei 13.642.18 que trata de crimes cibernéticos e misoginia em
redes sociais.
Fonte: Elaborado pela autora (2019).

CONSIDERAÇOES FINAIS
Em 1945, com a Carta da ONU, o direito internacional contem-
plava a igualdade entre homens e mulheres, surgindo posteriormente a

232
Declaração Universal de Direitos Humanos e o Pacto de Direitos Civis e
Políticos, instrumentos internacionais que vedaram a discriminação sexista.
A partir de 1988, com a vigência da nova Constituição Federal,
no seu artigo 226, §5°, reconheceu-se a igualdade entre homens e mu-
lheres, significando um importante marco para a transição democrática
brasileira que permitiu avanços no tocante ao reconhecimento dos di-
reitos individuais e sociais das mulheres (BRASIL, 1988). Além disso,
a Constituição Federal de 1988 adotou, em seu artigo 1º, como um de
seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana, tendo como um dos
seus objetivos fundamentais, constantes no art. 3º, a promoção do bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação. Em seu art. 5º, título II, trata dos di-
reitos e garantias fundamentais, estabelecendo no Art. 5º que todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obri-
gações, nos termos desta constituição. (BRASIL, 1988).
Neste sentido, em termos de direito, o Brasil é visto como um
país de leis modernas, desenvolvidas e avançadas. Mesmo assim, suas
leis nem sempre são efetivas, gerando descrédito, pois ao mesmo tempo
em que as políticas públicas são expressas em leis, não aponta para suas
garantias.

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YOUTUBE. Revista ISTOÉ. “Não estupro porque você não merece, diz Bolsonaro a Maria do Ro-
sário”. 2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=LD8-b4wvIjc>. Acesso em: 4
de setembro de 2019.

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SOBRE OS ORGANIZADORES

Claudia Priori
Professora Adjunta do Curso de Licenciatura em Artes Visuais, da Universidade
Estadual do Paraná, Campus de Curitiba II/FAP. Doutora em História (UFPR/2012).
Docente no Programa de Pós-Graduação em Cinema e Artes do Vídeo, da
Universidade Estadual do Paraná, Campus de Curitiba II/FAP. Docente no Programa
de Pós-Graduação em História Pública, e do Programa de Pós-Graduação em Ensino
de História/PROFHistória, da Universidade Estadual do Paraná, Campus de Campo
Mourão. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Diversidade e Cultura
(GEPEDIC/CNPq), da Universidade Estadual do Paraná.

Márcio José Pereira


Professor do Colegiado de História da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR/2017). Docente no
Programa de Pós-Graduação em Ensino de História/PROFHistória, da Universidade
Estadual de Maringá (UEM). Membro do Grupo de Pesquisa: Movimentos autori-
tários do século XX (UEM); do Grupo de Pesquisa: Direitos Humanos e Políticas
de Memória (UFPR), e do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Diversidade e
Cultura (GEPEDIC/UNESPAR).

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