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Linha de Pesquisa: Teorias da Educação e Processos Pedagógicos
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária: Maria Isabel Schiavon Kinasz, CRB9 / 626

Tiballi, Elianda Figueiredo Arantes


T552i Intelectuais da modernização: biografia dos 26 signatários do manifesto dos
pioneiros da educação nova de 1932 / Elianda Figueiredo Arantes Tiballi, João
Oliveira Ramos Neto – 1.ed. - Curitiba: Brazil Publishing, 2020.
[recurso eletrônico]

ISBN 978-65-5861-370-1

1. Intelectuais – Biografia. 2. Escola Nova. 3. Educação – História. I. Ramos


Neto, João Oliveira. II. Título.

CDD 920.9305552 (22.ed)


CDU 92:37

[1ª edição – Ano 2020]


www.aeditora.com.br
Elianda F. A. Tiballi
João Oliveira Ramos Neto

INTELECTUAIS DA MODERNIZAÇÃO:
BIOGRAFIA DOS 26 SIGNATÁRIOS DO MANIFESTO
DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA DE 1932
APRESENTAÇÃO

Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932


Eles e Elas assinaram

Elas são três. Eles são vinte e três. Vinte e seis subscritores/as que
registraram seus nomes em um dos documentos coletivos mais conhecido
na história da educação brasileira: o Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova de 1932. Ao longo dessa obra, pesquisadoras e pesquisadores apre-
sentam cada educador, e cada educadora, destacando suas participações
e atuações nos espaços educacionais, antes, e depois da produção, e da
divulgação, do Manifesto. São chamados de pioneiros e, ainda que outros
documentos tenham sido elaborados antes, podemos considerar neste
texto, que pioneiros/as foram homens e mulheres que inovaram, propu-
seram, debateram e se juntaram indicando que suas diferenças e multi-
plicidades dialogaram e sincronizaram no projeto educacional coletivo que
caracterizou este período.
Não vou priorizar o Manifesto, quero falar das histórias de homens
e mulheres aqui registradas, pois ainda que sejam fragmentos de vidas,
apresentam trajetórias relevantes e, quase um século depois, fazendo o
distanciamento necessário, muitas falas ecoam no presente. Trata-se de
um material importante para a história da educação brasileira, pois as es-
critas biográficas ainda que assinalem as diferentes posições ideológicas,
aproximam essas pessoas em um complexo movimento de renovações
propostas para o campo educacional, atreladas a crença no poder da edu-
cação para transformar o país. Trata-se de um grupo de várias formações

5
que se juntaram na primeira metade do século XX para debater acerca da
educação pública como projeto nacional.
Podemos ver nessa obra, que reune biografias de vinte e seis educa-
dores/as, um movimento que prioriza, e impõe, a narrativa histórica biográ-
fica como produção científica, sustentada pelo rigor da pesquisa, de análise
de fontes, problematização de dados e outros elementos indispensáveis na
escrita da história. São narrativas complexas, plurais que dialogam com o
contexto histórico-social igualmente múltiplo e desafiador. Em uma ação
coletiva, as histórias se misturam, ainda que alguns nomes se sobreponha
a outros.
Vale destacar a ordem alfabética nos capítulos, remetendo,
possivelmente a consideração que a história de todos/as são relevantes.
Diferente do documento que dispõe as assinaturas, ou os nomes, em outra
ordem, priorizando certamente, os espaços ocupados de poder, as relações
sociais, politicas, culturais, o gênero, a idade e outros motivos de ordem do
tempo e das relações. Isso não é o mais importante, pois o que quero des-
tacar é a leitura e o contato com textos individuais que permite reconhecer
o gigantesco esforço coletivo e, como não poderia ser diferente, as pistas
de conflitos nas relações destes que eram formadores de opiniões.
Os capítulos dialogam quando veiculam dados sobre os tempos
de atuações profissionais na primeira metade do século XX, assim como
quando anunciam as origens dessas vinte e seis pessoas. Os lugares de
nascimentos privilegiam fins do século XIX e início do século XX e con-
centram-se em três regiões: norte, nordeste e sudeste. Nascidos em área
rural ou urbana, em grandes ou pequenas cidades, em sertões ou no litoral,
o que há de comum é o berço raramente pobre das famílias que, se não
possuíam condições financeiras, carregavam algum capital cultural que fa-
vorecia o contato com livros, leituras e conhecimentos. A formação ampla,
enciclopedista, já os diferenciavam da maioria da população brasileira que
se concentrava, majoritariamente, atrás das cercas do analfabetismo.

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Se fossemos assinalar aqui os longos e diversos espaços ocupados
por este grupo, certamente a soma formaria um quadro vasto e dinâmico.
Em um tempo que a formação de quem atuava na educação não exigia
especificidades como hoje, predominava práticas em atividades exercidas
junto ao magistério por meio de outras profissões. Não vamos tabelar os
diplomas e, tampouco, as diversas atividades exercidas de cada educador
ou educadora, mas vale ressaltar que não foram poucas as pessoas que
nunca exerceram funções ditadas por diplomas de bacharéis recebidos nas
escassas faculdades da época em áreas jurídicas, medicina, engenharia,
farmácia, letras e outras. Ou seja, boa parte, entrou e aposentou atuando
no magistério.
Parte do grupo, em um tempo que se iniciava o processo de forma-
ção na graduação e na pós-graduação, diplomaram em áreas específicas
da instrução nos cursos de pedagogia, sociologia, história, filosofia etc. A
despeito das formações acadêmicas, ou não, estes se apropriaram e se
movimentaram em círculos que conciliavam outras áreas como, jornalis-
mo, literatura, política, tradução, editoração, artes, antropologia, biologia,
psicologia, folclore e outros que apontavam o domínio de um conhecimento
extenso e inconformado.
Sem abrir mão desses espaços, as trajetórias se confluíram na
educação ou na instrução. Muitos iniciaram a docência em suas juventudes
e seguiram, sem interrupção, atuando no magistério como professores/as
em distintas modalidades do ensino primário, secundário ou superior. Ocu-
param, ainda, outras estruturas de ensino como gestores/as de escolas e
cargos na administração pública educacional em ministérios, inspetorias,
secretarias, orientação escolar, organização de formação, consultorias,
produção de legislação, de reformas e outros.
Elas, ainda que em menor número, eram educadoras, intelectuais,
mulheres corajosas e distantes do mundo doméstico. Em pé de igualdade
na competência, criatividade e ousadia, estudaram, pesquisaram, escreve-
ram, viajaram e enfrentaram a sociedade masculina que, de forma quase

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soberana, dominavam os espaços de poder na educação. É de se estranhar
que, ainda que o número de mulheres no magistério, em especial nas
escolas primárias e jardins de infância era maior, os lugares de debates
na esfera pública, eram dominados por homens. Destaca-se a atuação de
enfrentamento dessas mulheres que defenderam ideias não só da edu-
cação coletiva, como também de direitos sociais de mulheres e crianças.
Vale destacar que, assim como Cecília, Noemy e Armanda, outras mulheres
atuaram na educação de forma semelhante, sem silenciar e se esquivar de
discutir e polemizar sobre diferentes exigências postas ao mundo feminino.
Elas, junto com eles, se organizaram em grupos que se faziam
subgrupos nos debates polêmicos como a defesa do Estado laico, a obri-
gatoriedade e gratuidade da educação, ensino religioso, defesa da classe
popular, assim como a orientação politica partidária. Atuavam na prática da
instrução em constante diálogo com o tempo histórico, no interior de prin-
cípios que contemplavam temas acerca de métodos e práticas de ensinar
com princípios higienistas, sanitaristas, deficiência mental, educação para
o corpo, merenda escolar, testes que mediam conhecimentos, educação
pelo rádio, pela música etc.
Na condição de fazer a provocação para a leitura desse livro,
gostaria de debater aqui vários aspectos encontrados: o protagonismo
e a sistematização de congressos, conferências públicas, seminários,
clubes, associações e outros que reuniam e projetavam os pioneiros em
seus espaços e fora deles; as viagens para o exterior, rumo aos impérios
considerados civilizados, modernos e repletos de modelos para instruir o
povo; os lugares de reconhecimentos projetados neste momento histórico,
como prêmios, condecorações e a imortalidade na Academia Brasileira de
Letras [ABL]; as disputas políticas, nada sutis e discretas, entre positivistas
e liberais; as relações complexas que cada um deles mantiveram com o
Estado; a conflituosa divisão na defesa do estado laico e muitos outros
temas. No entanto, o espaço é limitado e necessita de recortes, como nós
da história defendemos.

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Quero destacar dois movimentos que, a despeito de não ser novi-
dade na história da educação, se constituem como ações quase uniforme
neste grupo: o primeiro se refere as publicações deixadas por estes em
formato de livros, coleções, cadernos, teses, ensaios, artigos, séries para
crianças etc. A outra, que segue percurso consequente, trata do uso da
imprensa, seja na apropriação da imprensa pedagógica ou de jornais e
revistas de circulação regional e nacional. Dois aspectos que marcaram
as trajetórias aqui apresentadas que, pode não ser as mais significativas,
mas me moveu trazer aqui, ainda que corra o risco de, por não ser uma
estudiosa do tema, simplificar a obra.
Diferentes capítulos incluem um rol de publicações, fontes precio-
sas para conhecer de onde essas pessoas falavam. O que impressiona, não
é somente o número de obras em um tempo de aparente poucos livros, boa
parte patrocinado pelo poder público, mas sim a gigante extensão de te-
mas, de públicos e formatos. Não estou afirmando que o acesso da massa,
ou de gente da educação a essas obras estava garantido, possivelmente
não, mas reconheço que ao juntar as histórias dessas pessoas em uma
obra como essa, permite outros estudos e pesquisas no interior da plurali-
dade de temas em forma de impressos. Nota-se ainda, a interlocução ativa
de membros deste grupo na composição de editoras, livrarias e gráficas,
compõem uma sequência encadeada e regular que merece debate, se é
que já não foi feito.
Trata-se de impressos que são fontes para a escrita da história
da educação e que, aparentemente, facilitou as produções individuais
que compõem os capítulos deste livro. Boa parte de autoras e autores,
recorreram as essas produções para identificarem os percursos históricos
destes intelectuais. Além das próprias produções deste grupo, outras fontes
foram utilizadas, como cartas, biografias, autobiografias, documentos
oficiais, privados e fotografias, ainda que estas últimas mais ilustram do
que servem como documentos. Outras fontes, nos remetem ao segundo
recorte escolhido: artigos, opiniões, colunas, entrevistas, respostas,
conferências, discursos e outros publicados em jornais e revistas.

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A imprensa, foi um espaço privilegiado, e não ingênuo, para divul-
gar, defender, denunciar, contrapor e argumentar ideias e propostas das
renovações pretendidas no sistema educacional. Isso pode ser identificado
nas chamadas carreiras de jornalistas que muitos ocuparam, ainda que
não tivesse formação específica para essa profissão, esta se conformava
na experiência com a oratória que se fazia escrita e circulava pelo país
como referência para a educação. Jornais, de grande poder de circulação,
mantinham colunas permanentes, ou avulsas, em parceria com pessoas
deste grupo.
O uso de periódicos por intelectuais para expressar opiniões sobre
diferentes temas, entre estes, a instrução, é uma prática decorrente desde
o século XIX. Os escritos em distintos formatos, seja de críticas, elogios,
cobranças, denúncias, provocações políticas, causavam impacto e divul-
gavam imagens e posições junto ao público. A imprensa, historicamente,
exerceu [e exerce] grande influência política, econômica e social. É indis-
cutível o poder dos meios de comunicação que, neste período da história,
foi muito bem utilizado como meio de divulgação e de manutenção de
interesses políticos.
Não foi diferente com o grupo de signatários do Manifesto. Ocupar
o lugar de jornalista, era uma forma de circular as ideias que defendiam
a respeito dos problemas no ensino e as possíveis soluções. As páginas
da imprensa, em especial de jornais, serviram como meio para comunicar
ao público leitor as ações necessárias para renovar a instrução. Não
foi coincidência o extenso número de jornalistas neste grupo que se
mantinham próximos a este veículo de imprensa, preferencialmente de
jornais de grande circulação. Alguns mantinham sociedade em jornais,
outros eram proprietários conhecidos desta categoria de imprensa.
Ainda que, em menor número, a criação e circulação de Revistas
pedagógicas, foi outro instrumento aperfeiçoado por intelectuais que
atuavam no processo educativo neste período. Por intermédio destes
impressos, circulavam discursos modernos, científicos, renovadores,
dirigidos, sobretudo para profissionais da educação. Era um dos

10
instrumentos de formação, de orientação e comunicação entre quem
produzia o conhecimento e quem precisava absorver: professoras e
professores das redes públicas que atuavam, sobretudo, nos jardins
de infância, grupos escolares, escolas isoladas, escola normal e outros
espaços educativos.
Enfim, é impossível ignorar o tempo histórico vivido por este grupo.
Tempos de mudanças, como qualquer tempo histórico, no entanto os fatos
dialogaram com as necessidades promovidas e defendidas por eles e por
elas. A maioria, nasceu na monarquia e cresceu na República; vivenciaram
duas grandes guerras mundiais; acompanharam o desigual processo de
industrialização e as crises agrárias; acompanharam o polêmico rompimento
do Estado com a igreja; participaram ou elaboraram constituições; se
beneficiaram da popularização do rádio e dos primeiros anos da aviação;
experimentaram a diferença entre democracia e ditadura; viveram as
consequências de golpes; viram as ruas apinhadas de movimentos de
greves, de protestos e lutas; viveram, ou assistiram, o acirramento de órgãos
repressivos do Estado; viveram, ou viram, perseguição e prisão em função de
ideias contrárias ao Estado… Enfim, escapam outros momentos, são muitos
lugares, muitas ações, vários confrontos que não são possíveis de trazer em
uma curta apresentação. Até porque não é este o papel de uma apresentação.
Insisto em tentar problematizar a homogeneidade/heterogeneidade
deste grupo quando se trata de publicização e anonimato. Muitas biografias
presentes nessa obra podem surpreender pelo desconhecimento, pois
quando falamos em pioneiros, geralmente, identificamos quatro ou cinco
deles. No entanto, são vinte e seis signatário/as, fato que releva ainda mais
a importância desse material que dá lugar, que visibiliza, outras pessoas que
contribuíram nos debates. Isso nos faz pensar nas relações dos membros
que são relações plurais, marcadas por disputas e conflitos, pois a história
não é linear e nem harmônica. Ao ler as trajetórias, é possível perceber
confrontos que sobrepunham as puras condições de anonimato, ou seja,
relações de poder que apontam não uma opção de anonimato mas possíveis
sobreposições e imposições.

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O movimento individual de educadores, para além do Manifesto,
nas posições ocupadas, nas redes, nas famílias pertencentes e outros,
evidenciam articulações sociais e relações de poder, ou seja, as narrativas
biográficas possibilitam confrontar e problematizar as possíveis imagens
homogêneas, singulares, divulgadas sobre o passado. Ainda que os textos
biográficos sejam entrelaçados na subjetividade, é possível enfatizar a
pluralidade nas relações de sujeitos públicos com o mundo que os cercam.
Enfim, aqui estão vinte e seis trajetórias de pessoas públicas,
intelectuais, partícipes de um documento testemunha de seus engajamentos
pela renovação da instrução e da educação escolarizada. Parece simples,
mas é complexo: por se tratar de histórias individuais que compunham um
grupo. Por se tratar da impossibilidade de lutar pela educação ignorando
o contexto histórico, social, político, cultural, econômico, regional e outros.
Por se tratar de subjetividade, particularidades, prestígios, relações,
necessidades, vaidades e muitos outros aspectos que antecedem o tempo
histórico e se aproximam quando se trata de relações humanas.
Diante disso, é preciso investir em pesquisas biográficas para
confrontar outros movimentos que extrapolam o saber sobre a vida privada de
alguém. Trata-se da importância de investigar e revelar movimentos individuais
que se tornaram coletivos e nos interessam para a escrita da história, seja da
educação formal ou informal. As biografias históricas, científicas, não tem
a função de exaltar, ou criticar, pessoas ou atos singulares, muito menos
dar poder de autoridade histórica, por outro lado, não é viável o caminho de
descuidar, de ignorar a relevância do gênero biográfico na história.
Os adjetivos mais encontrados nos textos se referem a este
grupo como depositários de inteligência, intelectualidade, autodidatismo,
poliglotismo, sensibilidade, rigorosidade, investimento, e outros que
distanciam de abstrações atribuídas [ainda hoje] ao se tratar de profissionais
da educação. A adjetivação anotada afasta-se da romantização religiosa
que inspira inclinação natural ao magistério movida pela vocação, dom,
sacerdócio, dedicação, altruísmo, amor, aptidão, sacrifício, renúncia e
outros conceitos naturalizados e não problematizados.

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Como foi possível perceber neste material, a história biográfica
se constitui como um elemento que não se limita aos dados privados,
pois apreende lugares políticos, sociais, econômicos próprios de um
tempo. Universaliza as histórias privadas pelas ações vivenciadas, seja
no espaço público ou privado, sem abrir mão do lugar social que cada
indivíduo ocupa, pois uma história individual, por mais que pareça
relevante, insere-se nos contextos de tensões, contradições, conflitos e
disputas políticas, sociais e culturais.
Ainda que o conceito de profissional da educação, ou de educador/a,
não era suficientemente reconhecido, ou sofria de fragilidades próprias do
período, a atuação deste grupo em âmbitos científicos, culturais, políticos,
sociais e outros, nos faz reconhecê-los na história da educação brasileira
por seus papéis que traduzem a exigência da rigorosidade nas pesquisas e
nos debates propostos.
Passado quase um século do movimento do Manifesto, que em
seu tempo histórico reuniu um grupo de pessoas que priorizaram o saber
científico, vivemos um outro tempo na qual o Estado brasileiro persegue,
crítica e minimiza o conhecimento produzido cientificamente. A ignorância
e a brutalidade manifestada pelo governo brasileiro contra a ciência, custou
mais de trezentas mil vidas, pois a pandemia causada pelo vírus da Covid 19,
poderia, e deveria, ser combatida pela ciência, por pesquisas, por valorização
de universidades e institutos que sofreram o maior corte de verbas da
história. Deixo aqui, o registro desse tempo para que a história não esqueça
nunca o quanto o conhecimento científico é relevante, necessário e precisa
nos mover para garantir o acesso das ciências para todas as pessoas.

Diane Valdez
[Professora da Universidade Federal de Goiás e ativista de movi-
mentos de Direitos Humanos]

Goiânia, no outono triste do abril de 2021

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PREFÁCIO

Esta coletânea tem o propósito de contribuir com a produção do


conhecimento sobre a história biográfica dos intelectuais brasileiros signa-
tários do Manifesto dos pioneiros da Educação Nova, de 1932, desvelando os
nexos sociais, políticos e culturais das ideias que formularam e dos espaços
institucionais que recepcionaram e fizeram circular suas proposições.
O fato de os intelectuais, aqui biografados, não terem uma posição
política homogênea, de seus componentes pertencerem a diferentes re-
giões do país, de terem formação acadêmica diversificada e de exercerem
diferentes atividades profissionais aliadas à função docente, ampliou as
possibilidades investigativas e permitiu acrescentar, ao já sabido, novas
informações sobre um dos mais importantes movimentos pela qualifica-
ção da escola pública brasileira, o Movimento pela Escola Nova, como foi
nomeado pelos seus propositores.
Diante da diversidade identitária dos intelectuais signatários do
Manifesto dos pioneiros da Educação Nova, de 1932, um aspecto unifica seus
componentes, conduzindo a escrita dos capítulos que estruturam esta co-
letânea: todos os signatários do Manifesto de 1932 foram intelectuais1 mi-
litantes no campo educacional que, com a manifestação pública em defesa
de um ideário político, inconformados com a realidade que tinham diante
de si, marcaram presença no campo educacional brasileiro para defender
a modernização da escola e da sociedade. Não obstante, essa unidade não

1 Neste texto, usamos a expressão intelectual nos termos atribuídos por Sirinelle: “De fato,
os intelectuais são, por seu ofício, os detentores do sentido da palavra: eles as forjam e as
transmitem, e por isso mesmo se encontram nos dois lugares – chave da expressão cultural:
a formação e a transmissão. Seu papel na gênese e na circulação tanto das culturas políticas
quanto de certos processos de memória constitui, pois, uma realidade inegável (SIRINELLI,
2009, p. 45).

14
pode ser ampliada para além do que ela realmente representa, visto que,
no plano das ações políticas dos signatários do Manifesto, a sincronia se
dispersa para dar lugar a uma diversidade de trajetórias de vida que se
apresentam na “superfície social”.
Assim, concordamos com Bourdieu:

Os acontecimentos biográficos se definem como colocações


e deslocamentos no espaço social, isto é, mais precisa-
mente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da
distribuição das diferentes espécies de capital que estão em
jogo no campo considerado. O sentido dos movimentos que
conduzem de uma posição a outra (de um posto profissional
a outro, de uma editora a outra, de uma diocese a outra etc.)
evidentemente se define na relação objetiva entre o sentido
e o valor, no momento considerado, dessas posições num
espaço orientado. O que equivale a dizer que não podemos
compreender uma trajetória (isto é, o envelhecimento social
que, embora o acompanhe de forma inevitável, é indepen-
dente do envelhecimento biológico) sem que tenhamos
previamente construído os estados sucessivos do campo
no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações
objetivas que uniram o agente considerado – pelo menos
em ceno número de estados pertinentes – ao conjunto dos
outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados
com o mesmo espaço dos possíveis. Essa construção prévia
também é a condição de qualquer avaliação rigorosa do
que podemos chamar de superfície social, como descrição
rigorosa da personalidade designada pelo nome próprio,
isto é, o conjunto das posições simultaneamente ocupadas
num dado momento por uma individualidade biológica so-
cialmente instituída e que age como suporte de um conjunto
de atributos e atribuições que lhe permitem intervir como
agente eficiente em diferentes campos (BOURDIEU, 2008,
p. 190).

Essa advertência de Bourdieu orientou a organização desta coletâ-


nea que reúne, sob diferentes perspectivas de análise, as histórias biográ-
ficas dos signatários do Manifesto dos pioneiros da Educação Nova, de 1932.
O texto do documento, Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
de 1932, revela o contexto político das três primeiras décadas do século
XX no Brasil, um período de efervescência de ideias, não apenas pela crise

15
econômica que atravessava o país ou pela eclosão das ideias que culmina-
ram na Revolução de 1930, mas, também, pela ascendência das questões
sociais no debate nacional. Nesse debate, o ensino público brasileiro foi
privilegiado e a educação passou a ser considerada solução para os pro-
blemas nacionais.

Até aquele momento, a escolarização era tratada por homens


públicos e por intelectuais que eram “educadores”, num tem-
po em que assuntos educacionais não constituíam, ainda,
uma atividade suficientemente profissionalizada. Apenas
na década final da primeira república a situação vai ser al-
terada, com o aparecimento do “técnico” em escolarização,
a nova categoria profissional; este é que vai daí por diante
tratar, com quase exclusividade, dos assuntos educacionais
(NAGLE, 1974, p. 101-102).

A força política desses intelectuais residia na profissionalização téc-


nica do grupo que se colocou à frente do movimento de renovação da educa-
ção brasileira, assumindo postos de comando na organização administrativa
do Estado. Essa geração2 de intelectuais, diferentemente das anteriores,
não se manteve indiferente à realidade nacional, pois passou a analisar a
educação como problema de ordem político-social e pedagógica. Foi naquele
período que alguns intelectuais, que se autodenominavam “profissionais da
educação”, passaram a gestar uma nova estrutura de ensino público, anco-
rada na modernização, na racionalidade técnica e na investigação científica
dos problemas diretamente relacionados à organização e ao funcionamento
da escola.
É preciso considerar que, na década de 1930, existiam condições
históricas, culturais e sociais para o florescimento da profissionalização
técnica e para a implantação do trabalho racional, sustentado pelo co-
nhecimento científico, no Brasil. De acordo com Fernandes (1980, p. 15):
“O saber racional floresce em sociedades estruturalmente diferenciadas

2 O uso do termo “geração” foi suficientemente criticado no campo da História por vários
motivos, entre eles, por induzir equivocadamente a ideia de sucessão, continuidade, evolução
e substituição de uma geração por outra. Concordando com todas essas críticas, o termo
“geração” está sendo empregado neste texto apenas para a organização didática da exposição
e se referindo tão somente ao grupo de intelectuais que compartilharam o mesmo tempo
histórico.

16
e estratificadas, nas quais a divisão do trabalho e a especialização dos
papéis de produção intelectual concentram nas mãos de alguns indivíduos
toda atividade criadora”.
As condições sociais e culturais para o florescimento do saber
racional na sociedade brasileira surgiram no início do século XIX, com a
criação de escolas superiores e outras instituições de conhecimento cien-
tífico implantadas com a transferência da Corte portuguesa. No entanto,
somente na transição para o século XX – com as mudanças estruturais que
se iniciaram com os antagonismos entre cidade e campo, burguesia e aris-
tocracia rural – instaurou-se um “clima” de vida intelectual e se iniciaram
as inovações institucionais modernizadoras, propiciadas pelo pensamento
racional e pelas pesquisas científicas. Nas considerações de Fernandes:

A presente situação se concretiza pelo crescimento rápido


do sistema institucional, que geralmente apoia as atividades
intelectuais nas sociedades industriais modernas, e pela
importância que o pensamento racional está começando a
adquirir tanto na esfera da reflexão e da investigação, quanto
na da educação e da ação (FERNANDES, 1980, p. 21).

No Brasil dos anos 1930, o recrutamento de profissionais pelo Es-


tado deixou de ser realizado apenas em função do prestígio e das relações
sociais, e passou a depender cada vez mais do sucesso escolar e do mérito
profissional. A complexidade e o avanço técnico do sistema produtivo exi-
gem a profissionalização de todas as esferas da produção e as instituições
públicas sofreram essa influência da profissionalização dos serviços, cuja
tendência se acentuou na década seguinte, conforme registrou Micelli:

No que diz respeito às relações ente os intelectuais e o Es-


tado, o regime Vargas se diferencia sobretudo porque define
e constitui o domínio da cultura como “negócio oficial”, impli-
cando em orçamento próprio, a criação de uma intelligentsia
e a intervenção em todos os setores da produção, difusão
e conservação do trabalho intelectual e artístico (MICELI,
1979, p. 131).

17
Três aspectos fazem despontar os intelectuais brasileiros a partir
dos anos 1930, permitindo a transferência entre os campos intelectual
e político: (1) o sentimento geral de crise e crítica às parcas mudanças
econômicas e sociais advindas da implantação da República; (2) a crença,
assumida pelas elites políticas e militares, no positivismo como princípio
sustentador de práticas políticas, o que coadunava com a crença dos
intelectuais na construção científica da identidade brasileira; (3) o reco-
nhecimento do regime instaurado em 1930 ao papel dos intelectuais na
construção da identidade brasileira (Cf. PÉCAUT, 1989, p. 59).
As alterações na composição política do Estado, provocadas pela
Revolução de 1930, mudaram o cenário cultural do país, colocando em
cena o intelectual capaz de entrar na vida pública e também de adminis-
trar esse novo Estado. Em momento de “crise” o intelectual é visto como
figura politicamente oportuna porque é considerado capaz de superar as
contendas pela via da racionalidade. Nessa compreensão positivista, ao
intelectual, é recomendado que, pela intervenção racional, intencional e
metódica, promova o controle social dos indivíduos de modo a reordenar a
funcionalidade da sociedade e evitar as erupções contendoras das batalhas
sociais (Cf. PÉCAUT, 1989, p. 59).
Os intelectuais que entraram na cena política brasileira, a partir
dos anos 1930, influenciaram nos acontecimentos e mudanças políticas,
e criaram identidade própria, impondo-se como categoria social especí-
fica e como elite capaz de comunicar e promover um determinado tipo de
cultura política. Ainda segundo Pécaut, aqueles intelectuais não estavam
imbuídos de uma causa moral, de justiça diante das desigualdades sociais,
mas da convicção positivista que lhes autoatribuía um saber para explicar
a “realidade nacional” e, desse modo, auxiliar na construção da nação. Era
um posicionamento diante da “realidade” que lhes isentava de qualquer
compromisso político e lhes impunha uma responsabilidade para com o
conhecimento que revelava as leis reguladoras da história e a sincronia dos
fatos sociais.

Por um lado, a convivência entre conhecimento e ação sig-


nifica que nada escapa ao plano político, e que a realidade

18
é, já de início, totalmente política. Seria insuficiente falar de
politização da produção intelectual, e simplista mencionar a
interferência entre um “campo intelectual” e um “campo po-
lítico”. Ainda nesse caso, impõe-se o “realismo” que preside
à politização dos conceitos e à conceitualização do político
(PÉCAUT, 1989, p. 7).

No campo educacional, os educadores profissionais vinham sendo


convocados pela elite burocrática desde os anos 1920, em virtude da
competência e do saber que tinham em suas respectivas áreas de atuação.
Embora as relações de poder continuassem exercendo influência no recru-
tamento para os cargos de prestígio nos órgãos do Estado, o mérito pessoal
reclamado pelo princípio da racionalidade se tornou também um critério de
contratação. Nesses casos, os profissionais submetidos ao regime político
do governo se declaravam no exercício da profissão e a serviço da nação,
sem qualquer vínculo ou compromisso com o grupo que se encontrava no
comando do poder.

Pelo que diziam, o fato de serem servidores do Estado lhes


concedia melhores condições para a feitura de obras que
tomassem o pulso da nação e cuja validez se embebia dos
anseios de expressão da coletividade e não por demandas
feitas por qualquer grupo dirigente (MICELI, 1979, p. 159).

Essa geração de intelectuais conseguiu prestígio junto à sociedade


brasileira, ampliou os espaços de atuação na segunda República e implan-
tou o critério técnico nas decisões das questões educacionais. A influência
desses profissionais da educação se concretizou principalmente na IV
Conferência Nacional de Educação realizada pela ABE, em 1931, ocasião
em que o Ministro da Educação de Francisco Campos, solicitou aos educa-
dores, ali reunidos, que definissem o sentido pedagógico da “Revolução”. O
atendimento a essa solicitação foi subscrito como o Manifesto dos Pioneiros
da Educação Nova, lançado em 1932. O significado político e o alcance da
influência exercida pela geração dos signatários do Manifesto são bastante
polêmicos e tem sido objeto de inúmeras investigações. Nagle (1974),
Saviani (1983, 2008), Nunes (1991), Gandini (1995), Monarca (1990),

19
Tiballi (1998), Vidal (2013), Xavier (2004), Cunha (2008), Brandão (1999),
Carvalho (2015) estão entre os que discutiram essa questão.
Entretanto, informações sobre a história biográfica dos signatários
do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, com registros da trajetória
intelectual do conjunto desses educadores ainda não estavam disponi-
bilizadas, encontravam-se dispersas em diferentes publicações ou ainda
não localizadas. Assim, pretendeu-se com este livro apresentar histórias
biográficas dos signatários em um único compêndio, explicitando qual foi
o papel político de cada um na composição do grupo que assinou o Mani-
festo dos pioneiros da Educação Nova, em 1932, influenciando a cultura e
protagonizando o movimento pela renovação e modernização da educação
pública brasileira.

Elianda Figueiredo Arantes Tiballi


João de Oliveira Ramos Neto

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: AMADO, J.; FERREIRA, M. de M. (orgs.). Usos e


abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p. 183-191.
BRANDÃO, Z. A intelligentsia Educacional: um percurso com Pachoal Lemme por
entre histórias e memórias da Escola Nova no Brasil. Bragança Paulista: Edusp, 1999.
CARVALHO, M. M. C. O manifesto dos pioneiros da educação nova e a IV Conferência
nacional de Educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos – Rbep, [s. l.], v. 96,
p. 89-112, 2015.
CUNHA, M. V. “O Manifesto dos Pioneiros”, de 1932, a cultura universitária brasileira:
razão e paixão. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos – Rbep, [s. l.], n. 17, maio/
ago. 2008.
FERNANDES, F. A sociologia no Brasil: contribuições para o estudo de sua formação e
desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1980.
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gógicos 1944-1952, Campinas, v. 1, 1995.
MICELI, S. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel, 1979.
MONARCA, C. A reinvenção da cidade e da multidão: dimensões da modernidade
brasileira e a Escola Nova. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1990.

20
NAGLE, J. Educação e sociedade na primeira república. São Paulo: EPU; Rio de Janeiro:
Fundação Nacional do Material Escolar, 1974.
NUNES, C. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1991.
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SAVIANI, D. Escola e Democracia. São Paulo: Cortez, 1983.
SAVIANI, D. Histórias das ideias pedagógicas no Brasil. 2. ed. Campinas: Autores
Associados, 2008.
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais do final do século XX: abordagens históri-
cas e configurações historiográficas. In: BICALHO, C. A. et al. (orgs.). Cultura política,
memória e historiografia. Rio de janeiro: FGV, 2009.
TIBALLI, E. F. A. Fracasso escolar: a constituição sociológica de um discurso. 1998.
Tese (Doutorado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 1998.
VIDAL, D. G. 80 anos do manifesto dos pioneiros da Educação Nova: questões para o
debate. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 3, jul./set. 2013.
XAVIER, L. N. Para além do campo da educação: um estudo sobre o Manifesto do
Pioneiros da educação Nova. Bragança Paulista: Edusp, 2020.

21
SUMÁRIO

Capítulo I
ANÍSIO SPÍNOLA TEIXEIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
Kamila Gusatti Dias
Kênia Guimarães Furquim Camargo
Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida

Capítulo II
ANTONIO FERREIRA DE ALMEIDA JÚNIOR . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
Selma Regina Gomes

Capítulo III
ANTÔNIO DE SAMPAIO DÓRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
João Oliveira Ramos Neto

Capítulo IV
ARMANDA ÁLVARO ALBERTO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
Selma Regina Gomes

Capítulo V
ATTILIO VIVACQUA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
João Oliveira Ramos Neto

Capítulo VI
CARLOS ALBERTO NÓBREGA DA CUNHA . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
João Oliveira Ramos Neto

Capítulo VII
CARLOS MIGUEL DELGADO DE CARVALHO. . . . . . . . . . . . . . . . 100
Wilson Alves de Paiva

Capítulo VIII
CECÍLIA BENEVIDES DE CARVALHO MEIRELES . . . . . . . . . . . . . . 110
Giselle Lourenço de Sousa Silva
Capítulo IX
EDGAR ROQUETTE-PINTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
Edna Misseno Pires

Capítulo X
EDGARD SUSSEKIND DE MENDONÇA. . . . . . . . . . . . . . . . . . 138
Luiz Felipe Cândido de Oliveira

Capítulo XI
FERNANDO DE AZEVEDO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152
César Evangelista Fernandes Bressanin
Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida
José Maria Baldino

Capítulo XII
FRANCISCO VENÂNCIO FILHO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
Luiz Felipe Cândido de Oliveira

Capítulo XIII
HERMES LIMA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
João Oliveira Ramos Neto

Capítulo XIV
JOÃO PAULO DE ALBUQUERQUE MARANHÃO FILHO . . . . . . . . . . . 199
João Oliveira Ramos Neto

Capítulo XV
JOSÉ GETÚLIO DA FROTA PESSÔA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
Edna Misseno Pires

Capítulo XVI
JOSÉ PARANHOS FONTENELLE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 214
Wilson Alves de Paiva
Tamires Farias de Paiva

Capítulo XVII
JÚLIO AFRÂNIO PEIXOTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 224
Elianda Figueiredo Arantes Tiballi

Capítulo XVIII
JULIO DE MESQUITA FILHO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 242
Aldimar Jacinto Duarte
Cláudia Valente Cavalcante
Vinícius Oliveira Seabra Guimarães
Capítulo XIX
MANOEL BERGSTRÖM LOURENÇO FILHO . . . . . . . . . . . . . . . . 257
Luciana da Silva Martins

Capítulo XX
MÁRIO CASASANTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 278
Eliane Gonçalves Costa Anderi

Capítulo XXI
NOEMY SILVEIRA RUDOLFER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289
Eliane Gonçalves Costa Anderi

Capítulo XXII
PASCHOAL LEMME. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 307
Luciana da Silva Martins

Capítulo XXIII
RAUL CARLOS BRIQUET . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 326
Neide da silva Paiva
Elianda Figueiredo Arantes Tiballi

Capítulo XXIV
RAUL RODRIGUES GOMES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338
Dulce Regina Baggio Osinski

Capítulo XXV
ROLDÃO LOPES DE BARROS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .352
Marizeth Ferreira Farias
Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida

Capítulo XXVI
SEZEFREDO GARCIA DE REZENDE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359
Wilson Alves de Paiva

ANEXO - O MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA (1932) . . . 371


SOBRE OS ORGANIZADORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 402
CAPÍTULO I

ANÍSIO SPÍNOLA TEIXEIRA

Kamila Gusatti Dias1


Kênia Guimarães Furquim Camargo2
Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida3

Nosso ponto de partida neste estudo foi um trecho da carta escrita


por Anísio Teixeira para Monteiro Lobato, em janeiro de 1947, declarando
que “[...] os sonhos não se realizam sem que primeiro se armem os andai-
mes. E uma construção em andaimes pede imaginação e amor para ser
compreendida” (VIANA; FRAIZ, 1986, p. 104 apud NUNES, 1991, p. 33).
Esse trecho da carta nos chama a atenção e nos faz mergulhar de
modo despretensioso em sua biografia e trajetória marcante na contri-
buição para a educação brasileira. Ao ler esse trecho e saber que Anísio
Spínola Teixeira (1900-1971) foi um dos defensores de um movimento
de entusiasmo pela educação e de um otimismo pedagógico, liderado por
intelectuais que defendiam a expansão da escola pública, gratuita e laica,

1 Doutora em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/1219803232225424. E-mail: kamilagusatti@


hotmail.com.
2 Doutora em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/3881145107137636. E-mail: keniafurquim2@
hotmail.com.
3 Doutora em História. CV: http://lattes.cnpq.br/5736362178244406. E-mail: zeneide.cma@
gmail.com.

25
nos debruçamos nos estudos de sua biografia e também em algumas de
suas obras, a fim de perceber os “sonhos” ansiados por Anísio em todo seu
percurso em busca de uma nova educação brasileira.
Para a montagem dos andaimes, as novas ideias pedagógicas em
busca de uma modernização da escola brasileira foram seus alicerces.
Assim, indagamos: de onde vinha tanta força para o enfrentamento nos
desertos que Anísio teve que passar para realizar o sonho de um país
mais humano e solidário?
Muitos autores se inclinaram em suas obras e no estudo de sua
biografia em busca dessas respostas. Uma delas foi a autora Clarice Nunes,
estudiosa da obra anisiana publica no ano de 2010, junto ao Ministério da
Educação – MEC e à Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura – Unesco, a Coleção Educadores MEC, intitulada Anísio
Teixeira. Foi por meio dessa obra que nos aproximamos da vida desse in-
telectual brasileiro, um homem de sólida formação que, diante do “atraso”
cultural do país e da caótica situação do ensino que assolava o fim do sé-
culo XIX e início do XX, preocupou-se em reconstruir a nação, acreditando
ser pelo caminho da renovação educacional, ou uma das alternativas para
o sucesso da democracia no país.
No ano de 1924, Anísio, aos seus 24 anos, marcou sua entrada na
vida pública quando recebeu o convite para ocupar o posto de diretor da
Instrução Pública do Estado da Bahia. Nessa conjuntura, realizou a refor-
ma da Instrução Pública nesse estado, durante os anos 1924-1929, no
governo de Francisco Marques de Góes Calmon e, dali em diante, a ideia
destemida e/ou um sonho a ser construído em busca de um novo projeto
para a educação brasileira surgiu.
Simultaneamente, ao iniciar no cargo de inspetor-geral da Instru-
ção da Bahia, Anísio se lançou na carreira docente, nomeado professor de
Filosofia da Educação da Escola Normal de Salvador, o que o fez sofrer
severas críticas dos oposicionistas, principalmente porque havia eliminado
a vitaliciedade do magistério e, também, porque as ideias que buscou colo-
car em prática “representavam uma agressão àquela sociedade agrícola e
oligárquica” (VIANA FILHO, 2008, p. 47). Dessa experiência e dentre outras

26
vividas por Anísio Teixeira, sua docência foi sendo influenciada e, segundo
Gouvêa (2009, p. 432), “a centralidade da formação de professores na
vida-obra de Anísio revela, muito além de um eloquente discurso, um
compromisso”, uma preocupação constante para Anísio.
Com a morte de seu pai, Anísio buscou trabalho no Rio de Janeiro
com apoio do ministro Francisco Campos e, antes de atuar como professor
do Instituto de Educação do Rio de Janeiro4 e de assumir a Diretoria do
Departamento da Instrução Pública carioca, buscou um aprimoramento in-
telectual entre os anos 1927 e 1928 e, por dez meses, estudou no Teachers
College, da Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque. Recebeu o título de
Master of Arts, tendo sido aluno de William Heard Kilpatrick, William James,
Bertrand Russel, Wells, Thorndike, além de John Dewey. Nessa viagem de
estudos houve um maior envolvimento de Anísio com a Filosofia, o que
contribuiu profundamente para suas proposições para as reformas dos
sistemas de ensino e para a publicação dos seus livros e artigos. Esse acul-
turamento nos Estados Unidos foi imprescindível na carreira e na filosofia
de Anísio Teixeira.

A cena social dos Estados Unidos, sobretudo vista da Uni-


versidade, que foi o campo onde ele pensou e trabalhou,
reforçou-lhe a fé democrática e republicana, ampliou-lhe
as perspectivas futuras da obra educacional, ofereceu-lhe a
motivação de um pensamento organizador que se arrema-
tava por uma concepção do mundo naturalista e científico.
O ambiente vivido na América, os contatos intelectuais e
pessoais, a atmosfera antidogmática do ensino, as aberturas
de pesquisa e da especulação filosófica, tudo isto o conduziu
a conceber e interpretar o mundo fora das quatro linhas da
mística jesuítica em que se enleara. Sentiu-se realmente
libertado, não porque houvesse adquirido, em lugar das
velhas certezas definitivas, novas certezas definitivas, mas
porque aprendera um processo, um método diferente de
pensar e colocar problemas (VIANA FILHO, 2008, p. 36).

4 Constituído, em 1932, pela integração do Jardim de Infância, Escolas Primária, Secundária e


de Professores, o Instituto de Educação elevava a formação para magistério ao nível superior no
Brasil, por meio do Decreto 3.810, de 19 de março de 1932, assinado pelo próprio Anísio.

27
Nesse ínterim, o jovem preceptor pôde se aproximar de vários
sistemas públicos de educação que até então desconhecia. Durante esse
período, mergulhou em profundidade pela obra do filósofo americano John
Dewey, que, de maneira incisiva, passou a delinear toda sua trajetória como
intelectual. Nunes (2000) lança luz sobre a nova literatura pedagógica e o
novo sistema de educação conhecido por Anísio pelas suas viagens feitas
aos Estados Unidos e pela Europa.

Em oposição à cultura, à organização, à competência docente


dos colégios nos quais estudara, deparou – em sua cidade e
em seu Estado natal – com a pobreza de recursos humanos
e materiais, a dispersão e a desarticulação dos serviços
educativos, o despreparo do professor, a imoralidade, a cor-
rupção e a acomodação dos poderes públicos, alimentando a
ineficiência da máquina estatal (NUNES, 2000, p. 156).

Anísio se deslumbrava com a modernidade pedagógica que viven-


ciava em suas viagens, e, com isso, começou a planejar ideias destemidas
e/ou um sonho que precisava ser construído na educação brasileira. Des-
tarte, fez com que Anísio Teixeira se apropriasse das ideias de Dewey e
voltasse para o Brasil a fim de propor uma inovação na educação brasileira,
com base nas ideias revolucionárias daquele educador.
Ao longo de sua gestão pública, assumiu outros cargos, a saber, no
ano de 1925, a função na direção da Educação e Saúde da Bahia. Recebeu,
ainda, outros convites, como o de diretor-geral da Instrução Pública, em
1931, no Rio de Janeiro, à época, Distrito Federal. Mais tarde, em 1947,
agora no estado da Bahia, outro desafio educacional lhe foi dado: a pasta
como Secretário de Educação e Saúde da Bahia.
Ao assumir o cargo, inicialmente fez um projeto de lei – a fim de
renovar e expandir o ensino na Bahia –, muitas reformas e uma grande
revolução, o que para Viana Filho (2008, p. 29) “não se tratava, portanto,
de ‘alfabetizar em massa’, mas sim de educar maior número de crianças,
para que adquirissem o maior número de conhecimentos na melhor escola
permitida. E isso era inovação na Bahia”.

28
Nesse ponto de vista, Cavaliere evidencia que antes da viagem de
Anísio Teixeira aos Estados Unidos, no ano de 1927, duas peças legisla-
tivas foram defendidas por ele, a saber: a Reforma da Instrução Pública
da Bahia e o Decreto que aprovava o Regulamento do Ensino Primário
e Normal, ambos apresentavam em suas propostas “[...] a influência de
ideias renovadoras [...], ainda que predominasse o sentido republicano
democratizador” (CAVALIERE, 2010, p. 250).
Nesse ínterim, no estado do Rio de Janeiro, em outubro de 1924,
surge a Associação Brasileira de Educação – ABE5, por intermédio de 13
intelectuais da elite brasileira carioca. O objetivo da ABE era organizar um
“partido de ensino”, capaz de se firmar como “órgão apolítico, destinado
a congregar os interessados na causa da educação, independentemente
de doutrinas filosóficas ou religiosas ou de posições políticas” (SAVIANI,
2013, p. 229). Com o propósito do qual poder-se-ia ouvir a voz e conhecer
os interesses e ambições de um determinado grupo que estava disposto a
discutir a criação de um sistema nacional de educação, já que a educação
pública no Brasil era subvencionada e organizada por cada estado, nos
limites de suas respectivas jurisdições.
No ano de 1931, aconteceu, também no Rio de Janeiro, a IV Con-
ferência Nacional de Educação, na qual Getúlio Vargas6 e o Ministro da
Educação e Saúde Pública, Francisco Campos, incentivaram os educadores
a elaborar “as bases de uma nova política educacional para serem guiadas
as ações do governo em todo o país” (SAVIANI, 2013, p. 230). Esse grupo,
dentre eles Anísio Teixeira, líder e mentor do Manifesto, denominados de
“Pioneiros da Educação Nova”, tinham fortes razões para acreditar que a
adoção dos princípios pedagógicos professados pela Escola Nova seria o
antídoto definitivo para os problemas educacionais brasileiros.
Concomitantemente, o governo buscava uma parceria para legiti-
mar sua política educacional e o Manifesto – um documento que aliava
as novas ideias e os novos princípios educacionais – foi visto como um
instrumento de luta em prol da reconstrução da educação no país. Nesse

5 A Associação Brasileira de Educação – ABE nasceu com um claro objetivo: tirar das mãos
do congresso a discussão educacional e criar um programa de ação nacional para a educação.
6 Nesse momento, chefe do Governo Provisório instaurado a partir da Revolução de 1930.

29
Manifesto, a espinha dorsal e ideológica estava alicerçada nas ideias de
Anísio Teixeira, que estava presente, e seria a peça fundamental na sua
aplicação, diz Viana Filho (2008).
Já no governo Getúlio Vargas (1951-1954), e, posteriormente, no
governo de João Café Filho (1954 a 1955) e no de Juscelino Kubitschek de
Oliveira (1956-1961), Anísio Teixeira assumiu, como diretor, o Instituto
Nacional de Estudos Pedagógicos – Inep, órgão do Ministério da Educação
e Cultura. Com isso, percebemos, por meio dos cargos ocupados por Anísio,
sua ascensão na gestão pública da educação. Entretanto, de acordo com
Saviani (2013), Anísio teve vários ensejos para se idealizar como político,
mas sua decisão pelo magistério foi prioritária. O primordial em seu em-
preendimento na gestão pública era a reforma da sociedade pelo viés da
educação, tornando-a um fundamento desse processo de inovação e da
modernização da sociedade. A mola propulsora da obra anisiana no campo
da educação estava pautada na educação como um direito de todos e não
apenas das elites, e jamais como um privilégio para poucos.

Anísio, sua vida pessoal e intelectual

Na cidade de Caetité, no sertão baiano, nasceu o menino Anísio,


no dia 12 de julho de 1900, em um amplo sobrado localizado em frente à
Praça Central e à Igreja Católica. Filho de um dos maiores proprietários de
terra da região do estado da Bahia, Deocleciano Pires Teixeira, médico e
também político influente, e de dona Anna Spínola Teixeira, chamada de “a
alma boa da cidade baiana”.
Sua formação primária se deu inicialmente pelos cuidados da pro-
fessora Maria Teodolina das Neves Lobão e, também, da sua tia, Priscila
Spínola, sendo, posteriormente, matriculado no Instituto São Luiz Gonzaga
(no ano de 1911), escola fundada por jesuítas, na cidade de Caetité, para
cursar o Ginásio. Essa escola o fez ter uma sólida formação e induziu
seu comportamento e seus hábitos, apropriando-se dos valores morais
e éticos, segundo os pressupostos da formação jesuítica, e pautado nas
experiências de seus professores que, em sua maioria, eram padres. No
ano de 1914, foi para Salvador a fim de cursar o ensino secundário no,

30
também, católico e jesuítico Colégio Antônio Vieira, onde Anísio aprimorou
seus conhecimentos e o contato com outros professores o fez “aprender
a se vestir, comportar-se, organizar-se, a suportar privações e superar
obstáculos” (SILVA, 2015, p. 14153).
Silva (2015) ainda afirma que o corpo docente do Colégio Antônio
Vieira, em sua maioria formado por clérigos, genuinamente incitou o inte-
resse vocacional de Anísio. No entanto, entre seguir uma vocação ao sa-
cerdócio ou não, optou pela influência de seu pai, um coronel do Nordeste e
patriarca de uma família oligárquica, que desejava ver seu filho realizando
estudos jurídicos na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Rio
de Janeiro, no ano de 1922.
Sua intensa relação com os padres jesuítas fez com que os laços
se estreitassem com os padres da Companhia de Jesus, o que, para Nunes
(2010, p. 14), “Anísio poderia ser um instrumento no sentido de ampliar
a influência da Igreja dentro da estrutura estatal”, e, ao mesmo tempo, a
aproximação da Igreja Católica com a influência política da família Teixeira
ampliaria o jogo de interesses dos grupos políticos locais.
Mas, a vocação de Anísio foi permeada de muita indecisão, o que
podemos perceber nos argumentos de Nunes (2010):

[...] o catolicismo parecia uma verdade tão completa e tão


grandiosa que se disporia a dedicar sua vida por inteiro para
defendê-la. Aguardava a manifestação da vontade divina e o
consentimento dos pais para ingressar no noviciado. Dos 19
aos 22 anos, Anísio oscilou entre seguir a vida religiosa ou a
vida secular. Aguardava o consentimento dos pais para reali-
zar o que percebia como sua vocação sacerdotal, mas a graça
não veio. O pai de Anísio via nele um magistrado nato, seu
sucessor natural, futuro patriarca familiar. Padre Cabral via
nele uma vocação para o sacerdócio e, pelos seus talentos,
alguém destinado a ocupar postos importantes na hierarquia
eclesiástica. Espremido entre as aspirações da autoridade
paterna e as da autoridade religiosa acabou retardando seu
ingresso ao sacerdócio e abdicando da carreira de político
profissional (NUNES, 2010, p. 14).

Ao lançar luz sobre as evidências de que Anísio não optou pelo


sacerdócio, tampouco pela carreira na política, nos perguntamos: o que o

31
fez decidir pela carreira do magistério, haja vista que não era professor?
Apoiados no pensamento de Nunes (2000), podemos compreender melhor
a sua escolha:

[...] Anísio não nasceu educador. Tornou-se educador num


processo laboriosamente construído, lapidado no diálogo
com os diversos educadores que dentro dele transitaram,
na intensa experiência dos exercícios espirituais realizados
na juventude, nas reflexões suscitadas pelas viagens in-
ternacionais, nas fiéis amizades, como a que manteve com
Monteiro Lobato e Fernando de Azevedo, na experiência da
gestão pública da educação (NUNES, 2000, p. 155).

Um de seus biógrafos, Luís Viana Filho (2008, p. 28) atesta que


“Anísio tinha os olhos abertos para o mundo que pressentia surgir” e a
carreira docente foi a opção escolhida por Anísio, em meados dos anos
1920, período em que “a educação não estava ainda caracterizada profis-
sionalmente e, assim como hoje, gozava de muito pouco reconhecimento
social (SAVIANI, 2013, p. 218). Ainda se tinha bastante por fazer, ao passo
de que a ideia destemida e o sonho a ser construído por Anísio Teixeira o
fizesse se enveredar pelos desertos que teria que enfrentar para vencer as
rupturas.
Dessa forma, o intelectual e gestor, Anísio Teixeira, empenhava-se
na montagem dos seus andaimes, em busca da sua ideia destemida e/
ou um sonho a ser construído por ele: uma escola pública para todos os
brasileiros.
O pensamento anisiano refletia a influência dos cursos e conta-
tos no Brasil e fora do país, que apontariam um novo rumo para Anísio,
que, do ponto de vista intelectual, revelar-se-ia um “outro” Anísio. Um
Anísio que bebeu em novas fontes uma nova filosofia: o progressivismo
de Dewey (GOUVÊA, 2009). Para Nunes (2010, p. 19), “o pragmatismo
deweyano forneceu-lhe um guia teórico que combateu a improvisação e o
autodidatismo, permitiu-lhe operacionalizar uma política e criar a pesquisa
educacional no país”.
Anísio passou por uma grande transformação intelectual, adotou as
ideias pragmatistas de John Dewey como respostas ao seu inquietamento

32
diante dos valores do catolicismo jesuíta internalizados em sua infância. As
respostas que buscava sobre a ruptura de dogmas foram encontradas por
ele na filosofia deweyana:

[...] a qual propunha o permanente contato entre a teoria


e a prática e colocava a atividade do aluno como elemento
central da aprendizagem. Teixeira compreendeu que a peda-
gogia Deweyana tinha bases em uma filosofia que assumia
papel ativo na vida social e política e buscava assumir a
responsabilidade de contribuir para o desenvolvimento da
democracia e para a formação de cidadãos dotados de uma
mentalidade moderna e científica, aberta à mudança e à
cooperação (BORTOLOTI; CUNHA, 2010, p. 4).

Anísio adotou Dewey como sua viga-mestre, de quem seria o


primeiro tradutor no Brasil, e, dessa maneira, teria que sobrepor os valores
que tinha imbuídos pelo catolicismo, vivenciando, assim, sua primeira
ruptura, a qual teria que perpassar o rompimento com a fé.

A diligência contra o aniquilamento intelectual de Anísio Teixeira

Anísio apresentava um perfil de intelectual com o bojo de suas


ações voltadas para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária
e moderna, e via a educação como intercessora desse projeto.
O legado deixado por Teixeira apresentava ainda uma expressiva
contribuição para a estruturação do sistema brasileiro educacional. O sonho
idealizado por ele era a concretização de um sistema educativo de qualidade
e, acima de tudo, democrático. Dessa forma, a sociedade tornar-se-ia igua-
litária.
Bertoletti e Coelho (2013) atestam a preocupação de Anísio diante
dos problemas de ordem social e da busca de soluções para a formação
educacional das pessoas. Para os autores, Anísio “[...] Retratou, em suas
obras, a necessidade de se formar um sujeito com valores voltados para o
saber, o progresso, a liberdade e a democracia, já que, segundo ele, estas
características consistiam em uma necessidade nacional” (BERTOLETTI;
COELHO, 2013, p. 2).

33
Compreender a situação real do sistema educacional brasileiro e
equipará-lo a um “problema nacional” era, para Anísio, uma sucessão em
que todos os outros problemas do país estariam solucionados. Para tanto,
propôs-se a solucioná-los, mas os embates sofridos para a construção
desses andaimes foram muitos.
Nesse sentido, Anísio inicia uma busca por respostas para suas in-
quietações, o “baiano americanizado” já não era mais o mesmo. Voltou da
Europa e estava cada vez mais longe dos dogmas religiosos, ao ponto de se
questionar: “por que não servir a Deus no mundo?” (NUNES, 2010, p. 15).
Destarte, sua renúncia ao catolicismo foi anunciada, e iniciou “a travessia
do seu primeiro deserto: o deserto da fé” (NUNES, 2000, p. 156).
Militante do movimento católico, Anísio abdicou de toda a forma-
ção religiosa de base jesuítica para se aliar ao surgimento dos movimentos
de matriz nacionalista que, em contraposição ao regime político da oligar-
quia latifundiária e da igreja conservadora, lutavam por um novo sistema
jurídico e político.
Os apontamentos de Pereira (2014) são contundentes e exempli-
ficam essa situação, diante do benefício que as famílias da elite obtinham
no Brasil:

[...] é a questão do monopólio da Igreja na educação. Foi uma


luta incessante que o consumiu por toda vida, pois a ideia
que os bispos tinham no país era a de que: a família tinha
que optar por qual escola o seu filho seria educado, e não
uma obrigação do Estado em sua função democrática e
emancipadora, conforme proposto por Anísio. Além de cuidar
da educação dos filhos da oligarquia latifundiária, a Igreja
rezava missa para eles e reforçava sua posição em defesa
dos interesses particulares, agravando o abismo de classe
existente entre o povo ágrafo, miscigenado e escravizado, e
a elite dirigente do país (PEREIRA, 2014, p. 38-39).

Anísio se opunha a essa situação e logo após regressar de sua


viagem à Europa começou o seu processo de inquietação e estranhamento
ao ver os passos que o Brasil dava, “os problemas típicos da educação no
Brasil como a corrupção, a ausência do poder público, o despreparo do

34
professorado, começando assim uma hercúlea batalha em busca de uma
educação sem privilégios” (PEREIRA, 2014, p. 36).
A Igreja se opunha às ideias modernizantes de Anísio e, em objeção,
elabora um Manifesto idealizado por Bispos da Igreja Católica em oposição
às ideias anisianas, com veemência para tentar afastar Anísio do cargo que
ocupava no Ministério da Educação e Cultura, haja vista que o processo de
reestruturação do sistema educacional brasileiro já havia sido implantado
por Teixeira.
Naquela conjuntura, a Igreja Católica, de maneira contundente,
partiu para a disputa política aberta, pressionando o governo federal, articu-
lando-se com o Parlamento e buscando mobilizar a opinião popular acerca
da legitimidade de sua defesa da escola privada, argumentando defender
a liberdade de a família escolher a educação para os seus filhos, trazendo
o elemento dogmático de um povo católico que, supostamente, por livre
iniciativa, não confiaria a educação dos seus filhos a uma escola estatal e
laica. A reação dos defensores da escola pública foi proporcional, gerando
manifestações organizadas e levando a imprensa à discussão sobre o desti-
no da educação no país.
Um dos principais argumentos utilizados contra Anísio era o fato
de ele, supostamente, estar pregando o monopólio estatal do ensino,
querendo “abolir” do sistema educacional as escolas privadas. Contudo, ao
se falar em educação para todos, isso não significava, necessariamente,
monopólio estatal da educação, mas assegurar uma educação para todos,
fosse via Estado – este, aliás, obrigado constitucionalmente a fazê-lo – ou
por meio da iniciativa privada. Anísio desconsiderava que a escolarização
de todos os cidadãos fosse uma utopia, mas entendia-a como dever legal:

O problema da educação para todos é um problema legal, isto


é, de singelo cumprimento do preceito constitucional. Desde
que estabelecemos que a educação é um direito – e foi o que
fizemos em nossa Constituição – a expansão da educação
para todos se fez um dever do Estado no Brasil (TEIXEIRA,
1994, p. 7).

35
Outro dado interessante é o fato de Anísio julgar que a educação
não podia ser um privilégio, assim, não colaborava no desenho do novo
país que a nova sociedade necessitava. Sendo um privilégio, a educação
se tornou estéril, servindo apenas para diferenciar os educados dentro de
uma massa de “deseducados”.
Naquela ocasião, Anísio Teixeira já havia se distanciado totalmente
de suas inclinações religiosas e assumido posições renovadoras e moder-
nizantes na área educacional, contrárias, até mesmo, ao ensino religioso
em escolas públicas, e, com isso, começou a resistência entre os conserva-
dores ligados à Igreja e os liberais.
Em meados da década de 1930, Anísio e seus colaboradores, entre
eles Fernando de Azevedo e Lourenço Filho, aproximaram-se da Aliança
Nacional Libertadora – ANL7 e, com o apoio do então prefeito do Distrito
Federal, Pedro Ernesto, Anísio Teixeira foi seu Secretário de Educação e
Cultura, promovendo mudanças na estrutura educacional da cidade e im-
pulsionando a criação de novos estabelecimentos de ensino na cidade. Em
uma dessas iniciativas, criou a Universidade do Distrito Federal – UDF, da
qual também foi reitor, ocasionando uma objeção do Ministro da Educação,
Gustavo Capanema, e líderes do pensamento católico conservador, que
dirigiram campanhas contra Anísio, tachando-o severamente de populista,
ateu e estatizante.
Anísio Teixeira perdeu seus cargos de reitor e de secretário, assim
como Pedro Ernesto, a mando de uma propaganda de ação desencadeada
por Getúlio Vargas; e, como era contrário, por princípio, à utilização da
violência na luta política, foi atingido por medidas repressivas, pouco pro-
pícias às suas atividades modernizadoras no campo da educação, sendo
substituído por Francisco Campos.
Nas palavras de Nunes (2010, p. 26) “tornara-se um trabalhador
gasto e desmoralizado pelo fascismo brasileiro”. Todos esses fatos fizeram
com que Anísio atravessasse seu segundo deserto: o da solidão.

7 A ANL era uma frente política que reunia diversos setores de esquerda em torno de uma
plataforma de combate ao fascismo e ao imperialismo. Com certa frequência, Anísio escrevia
artigos em A Manhã, jornal oficioso da ANL, e, apesar de contrário às ações políticas violentas,
acabou sendo acusado de envolvimento no levante comunista promovido por essa organização,
em novembro de 1935.

36
Nesse contratempo, a ditadura se instaurava no país e trouxe com
ela o silenciamento de Anísio. Sua voz foi emudecida pela ditadura e sua
volta para a Bahia foi seu aconchego. Lamentando haver deixado a Bahia,
acrescentava: “[...] Só há um lugar, no mundo, para se envelhecer: é a nossa
Bahia. Como a Bahia, na sua admirável estagnação, evita-nos a dolorosa
impressão que tenho sentido aqui no Rio!” (VIANA FILHO, 2008, p. 146).
Entre os anos 1937-1945, período em que o pensamento democrático
brasileiro esteve sufocado, Anísio Teixeira permaneceu na Bahia e se dedi-
cou a atividades empresariais, com a exploração e exportação de manga-
nês, calcário e cimento, a comercialização de automóveis e a tradução de
livros para a Companhia Editora Nacional.
Anísio foi submetido a um silêncio que o fez refletir acerca das
questões sociais e de que “caberia ao Estado ser o principal promotor da
escolarização e difusor da cultura junto às classes populares” (NUNES,
2010, p. 27). Suas ideias foram emudecidas e “os tocos de sua obra, como
profetizara Lobato, ficaram enterrados para brotar de novo” (NUNES,
2010, p. 26).
Já no ano de 1946, vivendo em Londres e Paris, tornou-se conse-
lheiro de educação superior da recém-criada Unesco, órgão da Organização
das Nações Unidas – ONU voltado para a educação, a ciência e a cultura.
No ano seguinte, ocupou a Secretaria de Educação e Saúde do governo
baiano, de Otávio Mangabeira, e foi o autor do anteprojeto do capítulo da
Constituição Baiana, no qual organizou conselhos municipais de educação
em todo o estado e criou o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, experiên-
cia pioneira de educação integral para jovens que, mais tarde, serviu de
modelo ao sistema educacional instalado em Brasília.
Em 1951, a convite do Ministro da Educação, Ernesto Simões Filho,
Anísio Teixeira deixou a Secretaria para se tornar secretário-geral da Coor-
denação do Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes. Nesse
período, criou o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, com sedes re-
gionais em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco,
promovendo levantamentos da situação do Ensino Médio e Elementar, no
país. Inaugurou também os Centros Nacionais de Treinamento de Pós-Gra-

37
duação, vinculados à Capes, e lançou a campanha do livro didático e manuais
de ensino.
Os ataques contra o aniquilamento intelectual de Anísio continua-
vam e, mesmo assim, Teixeira continuou a receber manifestações de hos-
tilidade por parte dos setores conservadores da Igreja Católica. Iniciava-se,
nesse momento, o terceiro deserto pelo qual Anísio teve que passar: o do
ceticismo.
No ano de 1961, foi um dos principais idealizadores da Universida-
de de Brasília – UnB, da qual assumiu a reitoria, em 1962, quando o reitor,
Darcy Ribeiro, precisou se afastar para assumir a chefia do Gabinete Civil da
Presidência da República. Com a instauração do governo militar, em 1964,
Anísio Teixeira foi afastado do seu posto e aposentado compulsoriamente.
Nunes (2000) narra essa situação vivenciada, outra vez, por Anísio
frente à insólita ação policial, agora ante a UnB, visto que já havia sofrido
esse ataque dentro da UDF, no Rio de Janeiro, quando funcionários e pro-
fessores foram surpreendidos por tal anormalidade.

[...] tropas do Exército e da Polícia Militar de Minas Gerais


tomaram de assalto o campus. Era a primeira de outras
duas invasões que ocorreriam em 1965 e 1968. Os policiais
procuraram armas. Inspecionaram minuciosamente a reito-
ria, a biblioteca, todos os escritórios em todos os setores.
Prenderam professores e estudantes. [...] Essa agressão
dispara uma campanha de difamação do trabalho até então
desenvolvido com dificuldades, mas com muita dedicação e
esperança, trabalho espezinhado por setores da imprensa
que se aliaram ao regime militar sob os rótulos da irres-
ponsabilidade, da indisciplina, da subversão, do atentado
à doutrina da segurança nacional. Mais uma vez o Estado
desqualificava a obra para que a sociedade lhe retirasse o
apoio e, no enfraquecimento, a repressão pudesse agir: para
aniquilar. [...] De novo a perseguição, a prisão de intelectuais
(NUNES, 2000, p. 8).

Anísio havia sido banido, excluído e desqualificado pelo Estado, a fim


de que “a sociedade lhe retirasse o apoio e, no enfraquecimento, a repressão
pudesse agir para o aniquilar” (NUNES, 2010, p. 28). Mesmo assim, era pe-
noso atravessar mais essa prova da vida e, nessa conjuntura, embarcou para

38
os Estados Unidos e passou a lecionar como professor visitante na Columbia
University (1964), na New York University (1965) e na University of California
(1966).
Aos seus 70 anos, Anísio se encontrava saudável, inquieto e trans-
bordando energia e vicissitude. Candidato à Academia Brasileira de Letras,
trabalhava na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Porém, em 11
de março de 1971, Anísio deixou o local de trabalho para visitar o amigo
Aurélio Buarque de Holanda, e como descreve o biógrafo de Anísio Luís
Viana Filho:

Horas passaram sem que aparecesse em qualquer lugar.


Seguiu-se a preocupação, o medo, um mundo de cogitações.
Não se pensara a hipótese verdadeira – Anísio morrera no
poço do elevador do edifício para o qual se dirigia. Ninguém
vira nada. Era a tragédia sem testemunhas, e sobre ela
pairavam todas as conjecturas e todas as interrogações.
Esquecidos de haver ele próprio dito vivermos em um uni-
verso de acidente e de sorte, onde não havia lei nem justiça,
muitos não admitiam haver sido uma simples fatalidade.
[...] Concluiu-se haver sido um acidente. Uma armadilha do
destino (VIANA FILHO, 2008, p. 231).

E o silêncio assola: “Uma luz apagou no Brasil: sua inteligência mais


luminosa”, diz Darcy Ribeiro; “Agora temos de aprender a viver sem Anísio”
disse Péricles Madureira ao deixar o cemitério, após o sepultamento de
Anísio (VIANA FILHO, 2008).
Voltamos agora ao prelúdio do texto, em que Anísio, em uma carta
a Lobato, escreve que “[...] os sonhos não se realizam sem que primeiro se
armem os andaimes. E uma construção em andaimes pede imaginação e
amor para ser compreendida” (VIANA; FRAIZ, 1986, p. 104 apud NUNES,
1991, p. 33). Agora provocamos uma indagação: faltou imaginação e amor
para que toda obra de Anísio fosse compreendida? Suas ideias foram des-
temidas? Seus sonhos foram construídos? A violência repeliu suas diligên-
cias em prol de uma educação igualitária e democrática, mas não o impediu
de imaginar e acreditar que era possível construir uma escola pública com
um Ensino Básico e de boa qualidade para todos, sem privilégios.

39
Considerações finais

Neste capítulo, abordamos alguns dos aspectos mais importantes


para a compreensão da obra anisiana: sua inspiração. Esperamos que
essa inspiração – denominada, aqui, “ideia destemida” ou, talvez, “sonho
construído” – possa nos impulsionar a acreditar em uma educação pública,
de fato, igualitária, democrática e, sobretudo, de qualidade.
Retiramos do seu pensamento e de uma boa parte de toda obra
de Anísio que a escola vislumbrada por ele, tal como seus colaboradores
pensaram e objetivaram, projetava-se como uma instituição que se asse-
melhava a um sonho que seria possível vivenciar, principalmente quando
esse sonho deveria ser conduzido por uma esperança da qual a força
motriz seria as vidas que dela dependeriam. Entretanto, a essa esperança,
depositada por Anísio em nossos sonhos, ainda precisa ser empregado
muito amor e imaginação e muitos recomeços, para alcançar a educação
que Anísio sonhou. Anísio sonhou e, no seu sonho, viu uma escola eficiente
para o povo brasileiro, e é com esse propósito que ainda lutamos por ela.

REFERÊNCIAS

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JORNADA DO HISTEDBR, 11., 2013, Cascavel. Anais [...]. Cascavel: HISTEDBR, 2013.
BORTOLOTI, K. F. da S.; CUNHA, M. V. da. Anísio Teixeira: Pioneiro do Pragmatismo
no Brasil. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO – CINFE, 5.,
2010, Caxias do Sul. Anais [...]. Caxias do Sul: UCS, 2010.
CAVALIERE, A. M. Anísio Teixeira e a educação integral. Revista Paidéia, Ribeirão
Preto, v. 20, n. 46, p. 249-259, maio/ago. 2010.
GOUVÊA, F. C. F. “Dr. Anísio, ele pensava e executava”: a trajetória de Anísio Teixeira
no campo da formação de professores no Brasil (1924-1950). Revista Contemporânea
de Educação, v. 4, p. 447-467, 2009.
NUNES, C. Anísio Teixeira: a poesia da ação. 1991. Tese (Doutorado em Educação) –
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1991.
NUNES, C. Anísio Teixeira. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana,
2010. Coleção Educadores.

40
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1971). Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 81, n. 197, p. 154-165,
2000.
PEREIRA, G. G. Anísio Teixeira: o percurso de um educador destemido contra a oligar-
quia. Revista Rebela, v. 4, jan./abr. 2014.
SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4. ed. Campinas: Autores Asso-
ciados, 2013.
SILVA, S. L. da. Anísio Teixeira: pensamento, ação e contemporaneidade na busca por
uma educação democrática. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO – EDUCERE,
12., 2015, Curitiba. Anais [...]. Curitiba: Educere, 2015.
TEIXEIRA, A. Educação não é privilégio. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994.
VIANA FILHO, L. Anísio Teixeira: a polêmica da educação. 3. ed. São Paulo: Editora
Unesp; Salvador: Edufba, 2008.

41
CAPÍTULO II

ANTONIO FERREIRA
DE ALMEIDA JÚNIOR

Selma Regina Gomes1

Ao buscar retratar a rede de sociabilidade dos intelectuais que


participaram do Movimento pela Escola Nova no Brasil, em especial da-
queles que assinaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, no ano
de 1932, trazendo contribuições significativas para as transformações
políticas e educacionais do país, não se pode deixar de evidenciar o nome
e o trabalho de Antonio Ferreira de Almeida Júnior, um dos pensadores da
educação brasileira que se destacaram, nas décadas de 1920 e 1930, por
sua participação efetiva no campo educacional e da saúde.
Antonio Ferreira de Almeida Júnior nasceu em 1892, em Joanópolis,
São Paulo, e faleceu em 1971. Era filho de Antonio Ferreira de Almeida e
de Othília Caparica de Almeida. Foi criado por seus avós, Anselmo e Bruna
Caparica, após a morte de sua mãe. Se formou na Escola Normal da Praça
da República, em São Paulo, no ano de 1909, e já no ano seguinte iniciou
suas atividades como professor. No ano de 1913, aproveitando a herança
recebida da mãe, viajou para a Europa, onde, segundo ele, recebeu um
banho de civilização, “uma lavagem cerebral, que me ensejou a abertura

1 Doutora em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/0622871659133250. E-mail: psicoreg@gmail.com.

42
de novos horizontes, pesou bastante em meu espírito para fazer-me
esquecer as turras de Pirassununga. Ou para entendê-las melhor” (AL-
MEIDA JÚNIOR, 1966, p. 156). De volta ao Brasil, entra para a Faculdade
de Medicina e Cirurgia de São Paulo, graduando-se no ano de 1921. Sua
tese intitulada “O saneamento pela educação”, defendida em 1922, retrata
sua preocupação com os preceitos higiênicos necessários para uma vida
saudável e produtiva.
Assumiu a cadeira de professor em diversas instituições, partici-
pando da fundação da Universidade de São Paulo, no ano de 1934, onde
atuou como professor efetivo até se aposentar, contribuindo, além da
docência, com a elaboração do Estatuto e Regimento da Universidade, em
parceria com Fernando de Azevedo. Atuou também em estabelecimentos
particulares: no Liceu Rio Branco, na Escola Paulista de Medicina, como
professor de Medicina Legal e Escola de Sociologia e Política, inaugurando
o ensino de Fisiologia e Higiene do Trabalho. Foi membro do Instituto de
Higiene e participou em diversos momentos da administração pública em
cargos como: chefe do Serviço Médico-Escolar, diretor-geral de ensino
e membro do Conselho Médico-Legal do Estado de São Paulo, além de
assumir funções de relevância como: auxiliar de Sampaio Dória, respon-
sável pelo recenseamento escolar no Estado de São Paulo (1919); chefe
de Serviço de Saúde Escolar de São Paulo (1933); a convite de Gustavo
Capanema, compôs a comissão responsável por aplicação de questionário
base para elaboração do Plano Nacional de Educação (1935); membro da
comissão para elaboração do anteprojeto da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (1946), a convite do Ministro da Educação, Clemente
Mariano, Diretor do Ensino da Secretaria de Educação do Estado de São
Paulo, de 1936 a 1938, e Secretário de Educação e Saúde Pública, entre
1945 a 1946.
Escreveu várias obras, dentre elas: A Escola Pitoresca: e outros estu-
dos (1933) e Biologia educacional: noções fundamentais. A primeira consiste
na seleção de alguns textos por ele escritos, reunidos em uma publicação a
“título de despedida” (ALMEIDA JÚNIOR, 1966), como ele mesmo registra
no prefácio da obra; e a segunda, destinada a “candidatos ao professora-

43
do”, com objetivo de “contribuir para melhorar a formação do magistério
brasileiro” (ALMEIDA JÚNIOR, 1939).
Almeida Júnior empreendeu esforços em defesa da universaliza-
ção e democratização do Ensino Primário, considerando a necessidade de
criação de mais escolas para esse fim. Também participou da comissão
para elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB
nº 4024/61). Para o médico e educador, a escola primária deveria ser
considerada a base para a construção da cidadania e o progresso do país,
portanto, carecia de investimentos, prédios adequados, assistência mé-
dica e dentária à comunidade escolar, construção de bibliotecas, cinemas,
salões de festas destinados à comunidade em geral, prevendo com isso
atingir propósitos sociais mais amplos. A escola primária era defendida
por esse pensador como um espaço ideal para a formação de hábitos e
consciência sanitária.
Por sua reputação de intelectual atuante na defesa do Ensino Pri-
mário público e de qualidade, foi convidado por Sampaio Dória, diretor-ge-
ral da Instrução do Estado de São Paulo, em 1920, a participar da reforma
do ensino do estado, elaborando o recenseamento escolar, por meio do
qual buscou identificar os problemas existentes na educação, fornecendo
dados importantes que serviram de base para a reforma que, segundo
Carvalho (2011, p. 5), esteve comprometida com “duas metas principais: a
erradicação do analfabetismo e a difusão de um modelo escolar de educa-
ção básica capaz de promover a formação do cidadão republicano”.
Almeida Júnior acreditava que o ensino público estava ligado ao
meio social, não podendo “ser muito pior nem muito melhor do que aquilo
que esse meio normalmente comporta” (ALMEIDA JÚNIOR, 1966, p. 62), e
apostava no esforço individual de todos os brasileiros, defendendo que “O
rendimento de um sistema educacional complexo não depende do esforço
de um só homem, nem da ação apenas de um governo” (op. cit., p. 62),
portanto se expressava sobre isto de maneira bem contundente.
Consertar o governo; aumentar as rendas do Estado, para que este
possa distribuir de graça o ensino secundário; moralizar os colégios; formar
o professorado; corrigir a fiscalização; educar os pais e as mães [...]. Em

44
outros termos, refazer o País, de alto a baixo, moral e economicamente. Se
os remédios são esses, a tarefa não é para uma administração, nem para
uma geração. Os grandes problemas da higiene pública e da educação não
se resolvem por medidas parciais. Cada país tem, no momento, o aparelho
que lhe permite seu nível de cultura e de riqueza. Não seria possível dar ao
Brasil, instantaneamente, a educação secundária alemã, com todos os seus
atributos e consequências. Precisamos primeiro amadurecer. Enquanto
isso, aí está o ensino secundário que podemos ter. Vamos melhorando,
vamos atacando o inimigo por todas as frentes, cautelosamente, mas não
esperemos poder contar vitória integral só porque avançamos um pouco
num dos setores (ALMEIDA JÚNIOR, op. cit., p. 62).

A escola

Como todos os outros signatários do Manifesto dos Pioneiros da


Educação Nova, Almeida Júnior apostava na escola pública como projeto
para a “reconstrução social pela reconstrução educacional” (SAVIANI, 2004,
p. 33). Esses intelectuais vislumbravam uma educação moderna, desape-
gada dos modelos pedagógicos tradicionais, que valorizasse o indivíduo
de forma integral e com a participação efetiva do Estado. Foi uma época
de aspirações educacionais fundamentadas em princípios psicológicos –
colocando a criança no centro do processo de aquisição do conhecimento
–, mas também de reivindicação quanto à implementação de políticas de
formação de professores e organização do ensino e dos sistemas escolares
para atender à demanda da Escola Nova.
De fato, se a educação se propõe, antes de tudo, a desenvolver ao
máximo a capacidade vital do ser humano, deve ser considerada “uma só”
a função educacional, cujos diferentes graus estão destinados a servir às
diferentes fases de seu crescimento, “que são partes orgânicas de um todo
que biologicamente deve ser levado à sua completa formação”. Nenhum
outro princípio poderia oferecer ao panorama das instituições escolares
perspectivas mais largas, mais salutares e mais fecundas em consequ-
ências do que esse que decorre logicamente da finalidade biológica da
educação. A seleção dos alunos nas suas aptidões naturais, a supressão de

45
instituições criadoras de diferenças sobre base econômica, a incorporação
dos estudos do magistério à universidade, a equiparação de mestres e
professores em remuneração e trabalho, a correlação e a continuidade do
ensino em todos os seus graus e a reação contra tudo que lhe quebra a
coerência interna e a unidade vital, constituem o programa de uma política
educacional, fundada sobre a aplicação do princípio unificador que modifica
profundamente a estrutura intima e a organização dos elementos consti-
tutivos do ensino e dos sistemas escolares (AZEVEDO, 2010, p. 6).
A escola concebida pelo signatário é

uma reação contra as tendências exclusivamente passivas,


intelectualistas e verbalistas da escola tradicional, a ativida-
de que está na base de todos os seus trabalhos, é a atividade
espontânea, alegre e fecunda, dirigida à satisfação das ne-
cessidades do próprio indivíduo (AZEVEDO, op. cit., p. 6).

Como funcionário da administração pública do Estado de São Pau-


lo, no biênio de 1936 e 1937, Almeida Júnior se esforçou para colocar em
prática o pensamento de investir na escola primária em prol da construção
de uma consciência nacional, considerando positiva sua atuação nesse
sentido, como demonstra no anuário escrito por ele e sua equipe, nos anos
1936 e 1937, quando estava na Diretoria do Ensino do Estado. A figura a
seguir demonstra sua visão sobre os avanços alcançados.

46
Figura 1 – Trecho do Anuário da Diretoria de Ensino do Estado de São Paulo.2
Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Ainda no mesmo anuário, define-se como finalidades da escola


primária a conquista e manutenção da saúde, inserindo no programa es-
colar noções de puericultura; a organização de regras de conduta moral e o
despertar de sentimentos cívicos e de solidariedade humana; a qualidade
no ensino da leitura, escrita e da realização de contas; a aplicação do ato
de aprender “as boas normas da psicologia educacional”; a inserção da
brincadeira no cotidiano escolar, como recurso educativo; o ato de propiciar
a manifestação das capacidades e conduzir a criança de acordo com suas
aptidões (ANUÁRIO, 1936-1937, p. 279).
Outro aspecto abordado no anuário diz respeito à relação entre
escola primária e a nacionalização, evidenciando como objetivo fundamen-
tal da escola a integração da criança na “comunhão nacional” (ANUÁRIO,
1936-1937, p. 329), como incentivo à valorização e trabalho pelo progres-

2 Foto de um trecho do Anuário do Ensino do Estado de São Paulo, dos anos 1936 e 1937,
produzido pela Diretoria-Geral da Instrução Pública, ligada à Secretaria da Educação e Saúde
Pública, no qual são registradas as informações sobre educação “um diagnóstico da realidade
escolar da capital e das cidades do interior”. Disponível em: http://www.arquivoestado.sp.gov.
br/. Acesso em: 5 nov. 2017.

47
so do país. A figura a seguir demonstra como Almeida Júnior percebia a
ligação e necessidade de se trabalhar, na escola primária, o princípio de
nacionalidade.

Figura 2 – Trecho do Anuário da Diretoria de Ensino do Estado de São Paulo.3


Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

A concepção de escola, do ponto de vista do médico e educador


aqui retratado, também é esboçada em seu livro A Escola Pitoresca: e ou-
tros estudos (1966), obra publicada pela primeira vez no ano de 1934, e
apresentada por ele como uma “despedida” de sua vida como professor,
“uma espécie de prestação de contas, que entrego ao professorado dos
diferentes graus, aos administradores do ensino e a todos quantos como
eu, têm amor às coisas da educação” (ALMEIDA JÚNIOR, 1966, p. 8). Apesar
de considerar que não está se afastando das questões vinculadas à edu-
cação, considera importante elencar pontos essenciais para o professor.
Apresenta a escola como um espaço cuja complexidade não se aprende
nos cursos de formação, chamando a atenção para uma realidade escolar
e sobre os estudantes, que não está expressa nos tratados de pedagogia.
[…] este livro contém informações e comentários que os trata-
dos de pedagogia usualmente se esquecem de mencionar; advertências
cautelosas a respeito da escola, cuja complexidade está muito acima do
que se suspeita o educador novato. O ensino não é simples reação pre-

3 Foto de um trecho do Anuário do Ensino do Estado de São Paulo, dos anos 1936 e 1937,
produzido pela Diretoria-Geral da Instrução Pública, ligada à Secretaria da Educação e Saúde
Pública, no qual se aborda a relação entre escola primária e nacionalização. Disponível em:
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/. Acesso em: 5 nov. 2017.

48
visível e clara entre o professor de boa vontade e a criança-padrão dos
livros de psicologia. Nele se irá encontrar a criança-realidade, ondulante,
multiforme, imprevista, e que se deve, contudo, entender, suportar e
querer. Achar-se-á também a máquina escolar, com os colegas, o diretor
e as autoridades do ensino, cada qual representando um enigma que, se o
não decifrarmos, nos devora. E o pai do aluno, raramente o aliado que se
espera. E, sobretudo a mãe do aluno [...] infinito de afeição que é preciso
compreender e venerar, mas também inesgotável egoísmo que cumpre
contornar (ALMEIDA JÚNIOR, 1966, p. 9-10).
No trecho citado, Almeida Júnior evidencia sua visão sobre a escola,
com base em sua experiência como educador, abordando temas que nem
sempre eram estudados na academia, tais como: o desinteresse dos alunos
pelos conteúdos escolares; o despreparo dos profissionais da educação no
quesito da valorização das potencialidades dos alunos; a “teoria das opor-
tunidades” – cada pessoa, mesmo o “mais refratário ao esforço, tem suas
aptidões e simpatias” (ALMEIDA JÚNIOR, op. cit., p. 15); o sonho dos pais
em ter um filho diplomado com uma posição vantajosa na sociedade; as
rebeldias e transgressões dos alunos em relação às normas estabelecidas.
Sobre a infância, diz:

A infância do homem representa, como a infância da terra,


um tecido e “ensaios e erros”, levando a roteiros cada dia
melhores, mas nunca definitivos. É preciso que errem, tro-
pecem, cambaleiem na meninice, com o fim de fortalecer os
músculos e retesar o espírito para mais tarde. Cada queda
é uma lição; cada falta praticada é um ensinamento; cada
vício reprimido, uma fortalecedora vitória. O que dá encanto
à vida não é a monotonia e o cálculo da nossa maturidade.
Como seria insuportável a criança que só dissesse coisas
conceituosas, só procedesse ponderadamente, à maneira do
homem amargurado pela experiência (ALMEIDA JÚNIOR, op.
cit., p. 44).

Quanto à função do educador no processo de construção


da personalidade da criança, seria necessário “atuar sobre
o cérebro da criança, para tirar dessa máquina maravilhosa
tudo quanto ela possa fornecer” (ALMEIDA JÚNIOR, op. cit.,
p. 469).

49
Ações higienizadoras

A preocupação de Almeida Júnior com a qualidade do ensino pro-


movido na escola pública esteve a todo o momento em interlocução com
sua tese sobre a necessidade de conscientização referente a hábitos sau-
dáveis, portanto defendia a educação higiênica nas escolas e a formação
de professores que serviriam como disseminadores dos preceitos higiêni-
cos no meio escolar. Essa posição se justifica pelo fato de que o Brasil, à
época (final do século XIX e início do século XX), enfrentava, na visão dos
intelectuais, um período de obscuridade e ignorância, que demandava a
formação de hábitos e adoção de padrões sociais e de comportamento em
nome da saúde, e também se preocupavam, principalmente, com a educa-
ção infantil, um espaço considerado privilegiado para a divulgação de um
modelo ideal de indivíduo no aspecto físico, intelectual e moral.
Predominavam, na época, as práticas higienizadoras, que con-
duziram as políticas sanitárias, a veiculação de informações, a criação de
estratégias voltadas para a conscientização sobre a higiene no âmbito
escolar, e estiveram intimamente ligadas às demandas do crescimento
das cidades e às condutas da população, no sentido de combater e evitar
possíveis doenças, bem como disciplinar – do ponto de vista da higiene e
da moral – uma grande parcela da população.
A preocupação com as condições de vida das populações perifé-
ricas, consideradas ignorantes em relação à importância da higiene para
a saúde, levou a uma intensa vigilância, sob a chancela do conhecimento
científico, referente a esse aspecto, e teve a escola como aliada no sentido
de promover a formação da conscientização sobre o cuidado com a saúde
e a higiene.
Almeida Júnior defendia que a mudança de hábitos da população
se daria por meio da educação a partir do entendimento dos problemas
sanitários enfrentados pela população do estado de São Paulo, como os
de ordem educativa. Daí sua urgência em realizar a reforma da escola pri-
mária, apostando em sua universalidade e obrigatoriedade como elemento
positivo para atingir, em larga escala, o ideal higienizador. Além disso,

50
considerava o cérebro infantil ainda plástico e suscetível a intervenção,
portanto se propôs a elaborar um conjunto de práticas a serem vivenciadas
no cotidiano escolar, no sentido de modelar os corpos e as mentes dos
alunos, atingindo assim uma consciência sanitária a ser reproduzida em
sociedade.
O livro Biologia Educacional: noções fundamentais, escrito por Al-
meida Júnior, publicado pela primeira vez em 1939, editado 22 vezes até
o ano de 1969, revela a preocupação desse médico e educador com os
conhecimentos necessários para realização de práticas escolares direcio-
nadas à formação de um cidadão produtivo e saudável. Segundo o autor,
o livro “poderá prestar serviços não só à cultura geral como à técnica dos
candidatos ao professorado, representa mais um esforço que faço no
sentido de contribuir para melhorar a formação do magistério brasileiro”
(ALMEIDA JÚNIOR, 1939, p. 10). Nessa obra, estão incluídos temas de
programas professados no Instituto de Educação, sobre Higiene Infantil e
Higiene Escolar.
Na visão de Almeida Júnior, para higienizar a população por meio
da educação seria necessário propiciar, aos futuros professores, o en-
tendimento de como se processa o desenvolvimento e o funcionamento
daquele que aprende. Portanto, o livro citado aborda assuntos como: vida e
evolução, genética, mesologia, atividade funcional do ser humano, eugenia
e eutenia.
Define a biologia educacional como:

o estudo das causas biológicas que determinam as diferen-


ças e variações individuais na espécie humana, e dos meios
com que o educador poderá atuar sobre essas causas, a fim
de atingir, para o indivíduo, o máximo de saúde e eficiência,
quer física, quer mental (ALMEIDA JÚNIOR, op. cit., p. 20).

O autor também defende a ideia de que o papel do educador é


“suprimir certos caracteres do indivíduo” e “manter e exaltar outros carac-
teres”.

A Biologia educacional, que não é ciência pura e sim uma


ciência a serviço da educação, não se pode apartar, neste
passo, da noção de “ideal educativo”. Para ela, e dentro

51
apenas do seu domínio, o ideal educativo pode expressar-se
em duas palavras que se completam: saúde – tanto do corpo
como do espírito – e eficiência, que é um pouco mais do que
saúde, porque significa a saúde em ação. Duas palavras que
possuem, além do mais, a vantagem de não terem conceitu-
ação muito rápida (ALMEIDA JÚNIOR, op. cit., p. 20).

Segundo Rocha (2010, p. 352), o autor do livro acreditava “que as


pessoas não estão predestinadas a serem degeneradas por causa dos
genes que as constituíam, pois ele acreditava na possibilidade da mudança
individual através da educação”. Portanto, defendia a formação humana
como uma interação entre o ambiente e a hereditariedade, apostando na
capacidade educativa do indivíduo.
No ano de 1922, Almeida Júnior esteve na direção do Depar-
tamento de Higiene Escolar, ligado ao Instituto de Higiene, e procurou
implementar ações que refletiam seu pensamento sobre a importância da
higienização da população, como forma de combater os problemas sani-
tários vivenciados no estado de São Paulo. Como ele mesmo dizia em sua
tese de doutorado, “estamos na era da higiene” (ALMEIDA JÚNIOR, 1922,
p. 29), e era preciso disciplinar a população, afirmando que não bastava
sanear o ambiente, mas, também, educar, formar hábitos voltados para a
preservação da saúde individual e coletiva.

Considerações finais

Ao tentar configurar o campo de atuação de Almeida Júnior,


percebeu-se que ele manteve uma carreira de prestígio como educador
e médico-sanitarista, contribuindo de maneira incisiva nos debates que
promoveram mudanças no campo educacional e no campo da saúde. Sua
participação no movimento dos intelectuais que buscavam a renovação do
país, por meio da renovação educacional, justifica-se por sua participação
como educador, gestor, escritor, e na produção do conhecimento que
impulsionou as reformas implementadas no início do século XX no Brasil.
Manteve relações bem próximas com outros signatários do Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova, como Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e

52
esteve presente em diversas conferências com o objetivo de disseminar o
ideal em defesa de uma escola pública de qualidade.
Sua principal preocupação se concentrou na educação de crianças
às quais acreditava ser necessário propiciar conhecimentos que possibili-
tassem uma formação moral e mental que gerasse, no futuro, um adulto
consciente de sua participação como cidadão saudável e produtivo na
sociedade. Deixou como legado uma parcela do pensamento higienizador
que conduziu as políticas de formação de professores, escrevendo sobre
os tipos de conhecimentos que os educadores deveriam adquirir para a
compreensão sobre a aprendizagem e o desenvolvimento da criança, e se
propondo a elaborar programas a serem adotados na escola primária para
o ensino de higiene. Foi ardoroso defensor da escola primária, criticando
o que ele chamou de “excesso de atenção dedicado aos outros níveis de
ensino”, enfatizando que a preocupação era mais com a quantidade do que
com a qualidade das instituições de Ensino Médio e Superior, um grave
desperdício, prejudicial, sobretudo, à infância.
Sua contribuição, junto com Fernando de Azevedo, Lourenço Filho,
e os demais intelectuais da época não pode ser desconsiderada, tendo em
vista que se dedicaram a ensinar, pesquisar e publicar (GANDINI, 2010, p.
14), “contribuindo para a fundação de instituições que vieram a configurar,
delimitar e tornar autônomo, de uma determinada maneira, o espaço social
no estado de São Paulo”.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA JÚNIOR, A. F. de. A escola pitoresca e outros estudos. Rio de Janeiro: Mi-
nistério de Educação e Cultura, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, Centro
Brasileiro de Pesquisas Educacionais, 1966. v. 2.
ALMEIDA JÚNIOR, A. F. de. Biologia educacional: noções fundamentais. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1939. p. 498.
ANUÁRIO DO ENSINO DO ESTADO DE SÃO PAULO (1936-1937). Biblioteca Digital Sea-
de, s.d. Disponível em: https://bibliotecadigital.seade.gov.br/. Acesso em: 12 nov. 2020.
AZEVEDO, F. de et al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos Edu-
cadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2010. Co-
leção Educadores. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/
me4707.pdf. Acesso em: 26 mar. 2021.

53
AZEVEDO, F. de (org.). A reconstrução educacional no Brasil: ao povo e ao governo. In:
AZEVEDO, F. de et al. Manifesto dos pioneiros da educação nova. São Paulo: Nacional,
1932.
CARVALHO, M. M. C. de. A Reforma Sampaio Doria, política e pedagogia: problema-
tizando uma tradição interpretativa. In: MIGUEL, M. E. B.; VIDAL, D. G.; ARAÚJO, J. C.
S. (orgs.). Reformas Educacionais: as manifestações da Escola Nova no Brasil (1920-
1946). Campinas: Autores Associados; Uberlândia: Edufu, 2011. p. 5-30.
GANDINI, R. Almeida Júnior. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana,
2010. Coleção Educadores.
ROCHA, C. A re-significação da eugenia na educação 1946 e 1970: um estudo sobre a
construção do discurso eugênico na formação docente. 2010. Tese (Doutorado em
Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010. p. 491.
ROCHA, H. H. P. Alfabetização, saneamento e regeneração nas iniciativas de difusão
da escola primária em São Paulo. Pro-Posições, Campinas, v. 22, n. 2 [65], p. 151-172,
maio/ago. 2011.
SAVIANI, D. O legado educacional do “longo século XX” brasileiro. In: SAVIANI, D. et
al. O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2004.

54
CAPÍTULO III

ANTÔNIO DE SAMPAIO DÓRIA

João Oliveira Ramos Neto1

Antônio de Sampaio Dória, político, jurista e educador brasileiro,


nasceu em 25 de março de 1883, em Belo Monte, no estado de Alagoas.
Era filho de Cândido Dória e de Cristina Sampaio Dória. Em 1889, ano da
denominada “Proclamação da República no Brasil”, aos 6 anos de idade,
mudou-se com a família para São Paulo, onde concluiu os estudos primá-
rios e secundários. Em 1904 ele ingressou na Faculdade de Direito de São
Paulo e, 4 anos depois, aos 25 anos de idade, obteve o título de bacharel em
Ciências Jurídicas e Sociais. Antes de concluir o curso de Direito, Sampaio
Dória já era professor na Escola de Comércio Álvares Penteado (CARVA-
LHO, 2010, p. 13). Ao se formar, mudou-se para o Rio de Janeiro para atuar
como advogado, mas acabou atuando mais como jornalista, tornando-se,
então, redator-chefe do jornal O Imparcial.
Em 1914, Sampaio Dória foi aprovado no concurso para exercer o
magistério na área de Psicologia, Pedagogia e Educação Cívica na Escola
Normal Secundária de São Paulo. O termo “Escola Normal” era utilizado,
na época, para descrever as instituições que formavam professores.

1 Doutor em História. CV: http://lattes.cnpq.br/6427938680486263. E-mail: joaooliveiraramos-


neto@gmail.com.

55
Fazendo uma comparação bem simplificada, seria algo próximo do que,
hoje, é conhecido como Ensino Médio. Isto é, havia o Ensino Primário,
que era o elementar, correspondendo ao Ensino Fundamental e o Ensino
Secundário – escolas normais – que formavam professores para atuarem
no Ensino Primário. O nome “Escola Normal” vem da ideia que se tinha
de formar pessoas de acordo com a “norma”. Como professor na área da
Psicologia, Sampaio Dória se pautava no ensino pragmatista de William
James. Como professor na área de Pedagogia, em 1914, publicou o seu
primeiro livro, Princípios de Pedagogia, no qual se manifestou contrário ao
método autoritário de ensino e favorável ao método intuitivo analítico. Na
área da Educação Cívica, enquanto integrava uma comissão com o mesmo
nome, em 1919, publicou um livro sob o título O que o cidadão deve saber.
No mesmo ano, também publicou Problemas de Direito Público, e foi apro-
vado no concurso para professor substituto da Faculdade de Direito de São
Paulo para as áreas de Direito Constitucional e Direito Internacional.
Sampaio Dória, então, foi nomeado diretor-geral da Instrução
Pública do estado de São Paulo em 1920, no final do governo de Altino
Arantes – cargo que seria correspondente ao de Secretário Estadual
de Educação, nos dias atuais –, sendo o primeiro responsável pelo re-
censeamento escolar realizado no país. Foi mantido no cargo durante a
administração seguinte, chefiada por Washington Luís (1920-1924),
tendo publicado nesse período os livros: Recenseamento escolar: relatório
(1920), Questões de ensino: a reforma de 1920 em São Paulo (1923) e Como
se aprende e ensina (1923).
Foi no período do governo de Washington Luís que Sampaio
Dória realizou uma série de reformas na educação de São Paulo, as quais
ficaram conhecidas como A Reforma Sampaio Doria, que tinham como
objetivo inicial unificar as escolas normais paulistas, o que aconteceu
por meio da Lei 1.750, de 8 de dezembro de 1920, regulamentada pelo
Decreto 3.356, de 31 de maio de 1921. Segundo Tony Honorato, essa
reforma teve início na Escola Normal de Piracicaba, onde “reuniu-se pro-
fessores intelectualmente reconhecidos que produziram gradientes de
poder resultando em iniciativas pedagógicas como a autonomia didática”

56
(HONORATO, 2017, p. 1280). Assim, essa reforma também “tinha dentre
as suas proposições erradicar o analfabetismo por meio da extensão do
Ensino Primário obrigatório reduzido de quatro para dois anos gratuitos”
(ibidem) e “transformar os cursos de formação de professores em tipo
único (normalista), acentuando os elementos pedagógicos, e instituir as
delegacias regionais de ensino para melhorar e descentralizar os serviços
da instrução pública” (ibidem).
No início do século XX, a maioria da população brasileira era anal-
fabeta, ou seja, o analfabetismo alcançava 71,2% da população. Antes de
iniciar a reforma na educação paulista, em 1918, Sampaio Dória já tinha
escrito e publicado uma carta aberta em resposta ao diretor-geral, Oscar
Thompson, na qual expunha um plano para erradicação do analfabetismo.
Porém, o trabalho à frente da Direção-Geral de Instrução Pública
do estado de São Paulo não foi profícuo, pois, um ano após tomar posse,
Sampaio Dória teve desentendimentos com o governador Washington Luiz
sobre a implementação e execução do programa reformista, e, por esse
motivo, foi substituído pelo seu auxiliar, Guilherme Kuhlmann, que teria
então distorcido a proposta inicial de reforma (HILSDORF, 2003).
Depois dessa breve experiência na vida pública, em 1925, Sampaio
Dória, tendo em vista voltar a se dedicar ao magistério, fez um concurso
para a Faculdade de Direito e, aprovado, tornou-se professor livre-docente
e, no ano seguinte, professor catedrático. A carreira docente, àquela épo-
ca, era muito diferente e os termos utilizados para nomear as diferentes
categorias de professora universitários, ainda que homônimos em alguns
momentos, não expressam o mesmo significado de hoje. Em 1926, en-
quanto exercia o magistério na área do Direito, publicou o livro Princípios
Constitucionais, dedicado “à memória de Rui Barbosa, considerado por ele
‘o maior dos homens do seu tempo’” (CARVALHO, 2010, p. 14).
Enquanto atuava no magistério do Direito, Sampaio Dória assinou o
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932. Um de seus ex-alunos,
escrevendo sobre ele, afirmou que, em todas as atividades que exerceu,
Sampaio Dória sempre teve uma preocupação social, buscando realizar
reformas na educação por ver nela um importante papel social de trans-
formação (CARVALHO, 2010, p. 15). Além disso, “são as relações estabe-

57
lecidas com os colegas de curso, como aluno da Faculdade de Direito de
São Paulo, que marcarão sobremaneira a trajetória de Dória” (CARVALHO,
2010, p. 15).
Ainda na faculdade, Dória integrou a Liga Nacionalista de São Paulo,
estabelecendo relações com Oscar Thompson, diretor-geral de Instrução
Pública que Sampaio Dória iria suceder; e foi inspirado no trabalho da Liga
Nacionalista de São Paulo que ele escreveu Como se ensina e como se apren-
de a língua, em 1946 (CARVALHO, 2010, p. 16). A Liga Nacionalista de São
Paulo foi uma organização fundada em 1916, inspirada na Liga de Defesa
Nacional fundada no Rio de Janeiro dez anos antes por Olavo Bilac, e “tinha
como objetivos principais lutar pelo voto secreto e obrigatório, pela efetiva
aplicação da lei da obrigatoriedade do serviço militar e pela difusão e ins-
trução e desenvolvimento da educação em todo o país” (LEVI-MOREIRA,
1984, p. 68). A mesma autora continua: “O que confere especificamente à
LNSP é o fato de que a entidade se caracterizou essencialmente pela ação
[...]. A entidade fundou escolas de alfabetização para adultos” (ibidem).
Assim, atuando como membro da Liga Nacionalista de São Paulo, Sam-
paio Dória “como pedagogo, ele é o que teoriza e doutrina sobre a cultura
cívica do cidadão, conferindo-lhe fundamentos que pretende científicos e
definindo os procedimentos adequados a promovê-la” (CARVALHO, 2010,
p. 16).
Essa mesma autora ainda informa que as obras O que o cidadão
deve saber e Como se ensina e como se aprende a língua tiveram uma consi-
derável tiragem e circulação; tinham como objetivos a “difusão da educação
primária da Liga Nacionalista de São Paulo, espelhando as orientações dos
programas escolares aprovados e difundidos por ela” (CARVALHO, op. cit.,
p. 19).
Em 1934, Sampaio Dória foi nomeado procurador regional do
Tribunal Eleitoral de São Paulo, até deixar o cargo em 10 de novembro de
1937, quando o presidente Getúlio Vargas deu início ao regime do Estado
Novo.
Como se sabe, Getúlio Vargas deu início ao seu governo em 1930,
e, como ele havia assumido por meio de uma revolução, instalou-se um

58
Governo Provisório. Em 1932, o estado de São Paulo foi responsável por
uma revolução que exigiu uma Constituição, a qual foi finalmente entregue
em 1934.
De 1934 a 1937, Getúlio Vargas governou o país de forma cons-
titucional, no entanto, em 1937, houve o golpe que instaurou a ditadura
baseada na Constituição de 1937. Portanto, coube a Sampaio Dória voltar
ao magistério na Faculdade de Direito como professor de Direito Constitu-
cional. Como opositor que era do novo regime, recusava-se a considerar a
Constituição de 1937 como objeto de estudo. Isso atraiu para si a oposição
do governo de Getúlio, que promoveu sua aposentadoria, compulsoria-
mente, em 1939, com base no artigo 177 dessa Constituição:

Dentro do prazo de sessenta dias, a contar da data desta


Constituição, poderão ser aposentados ou reformados de
acordo com a legislação em vigor os funcionários civis e
militares cujo afastamento se impuser, a juízo exclusivo do
Governo, no interesse do serviço público ou por conveniência
do regime (BRASIL, 1937).

Essa aposentadoria foi revogada em 1941, “graças à inter-


venção do então diretor da Faculdade de Direito, Sebastião Soares de
Faria, junto a Ademar de Barros e a Gustavo Capanema, que acabaram
convencidos a interceder em favor dos [...] professores destituídos”
(CARVALHO, 2010, p. 22). Então, de volta ao magistério, em 1942,
publicou o livro Os direitos do homem, que foi reeditado em 1946, sob o
título Curso de Direito Constitucional.
O governo autoritário de Getúlio Vargas, denominado “Estado
Novo”, chegou ao fim em 1945, juntamente com o fim da Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), na qual o Brasil lutou ao lado dos aliados e contra
a Alemanha nazista e a Itália fascista. De 1945 a 1964, finalmente, o
Brasil experimentou um período de democracia, sendo governado por
Eurico Gaspar Dutra, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros
e João Goulart.
Assim, conforme o verbete em seu nome, no dicionário biográfico
da Fundação Getúlio Vargas, lemos que, em maio de 1945, Sampaio Dória

59
“foi nomeado juiz do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, e, em 29 de outubro
desse mesmo ano, com a deposição de Getúlio Vargas pelos generais Pedro
Aurélio de Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra” (SAMPAIO DÓRIA, 2009) e,
depois disso, também foi nomeado Ministro da Justiça pelo presidente da
República interino José Linhares, em substituição a Agamenon Magalhães.
José Linhares era presidente do Supremo Tribunal Federal quando Getúlio
Vargas deixou o governo e, por isso, Linhares foi presidente entre 29 de
outubro de 1945 e 31 de janeiro de 1946.
Quando foi juiz do Tribunal Superior Eleitoral, em 10 de novembro
de 1945, mesmo sendo contra a ideologia comunista, votou pela aprova-
ção do registro do Partido Comunista Brasileiro, o então Partido Comunista
do Brasil – PCB. O Partido Comunista tinha sido proibido durante o Estado
Novo, inclusive, o discurso utilizado por Getúlio Vargas para legitimar o
golpe foi justamente o plano Cohen, uma armação de que havia um plano
comunista de dominação do Brasil em curso.
Quando foi Ministro da Justiça, Sampaio Dória revogou o artigo 177
da Constituição de 1937, o mesmo que permitiu sua aposentadoria com-
pulsória, por meio da Lei nº 12, de 7 de novembro de 1945. Sampaio Dória
também fez várias outras reformas jurídicas, inclusive, chegou a elaborar um
texto a ser promulgado como Constituição Provisória, votado pela Consti-
tuinte, porém não efetivado. Então, o Brasil recebeu sua quinta Constituição,
em 1946.
Sampaio Dória, como podemos perceber, desenvolveu diversas
atividades, tanto como jurista quanto como professor e político. Além das
obras citadas aqui, ele também escreveu outros livros, além de inúmeros
artigos para jornais e revistas. Entre outras funções, também foi superin-
tendente do Banco do estado de São Paulo e membro do Instituto Histórico
e Geográfico do Brasil. Foi casado com Estefan Carvalho Sampaio Dória,
com quem teve cinco filhos e faleceu em São Paulo, no dia 26 de dezembro
de 1964, aos 81 anos de idade.

60
REFERÊNCIAS

BRASIL. [Constituição (1937)]. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de


novembro de 1937. Outorgada por Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: Diário Oficial da
União, 1937. art. 177.
CARVALHO, M. M. C. de. Sampaio Dória. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora
Massangana, 2010. Coleção Educadores.
HILSDORF, M. L. S. Lourenço Filho em Piracicaba. In: SOUSA, C. P. de. História da Edu-
cação: processos, práticas e saberes. 3. ed. São Paulo: Escrituras, 2003. p. 95-112.
HONORATO, T. A Reforma Sampaio Dória: professores, poder e figurações. Educação
& Realidade, v. 42, n. 4, p. 1279-1302, 2017.
LEVI-MOREIRA, S. Ideologia e atuação da Liga Nacionalista de São Paulo (1917-
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SAMPAIO DÓRIA. FGV Cpdoc, 2009. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/
dicionarios/verbete-biografico/sampaio-doria. Acesso em: 30 mar. 2021.

61
CAPÍTULO IV

ARMANDA ÁLVARO ALBERTO

Selma Regina Gomes1

Neste capítulo, serão evidenciados alguns aspectos da trajetória


de Armanda Álvaro Alberto, uma das três mulheres signatárias do Mani-
festo dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, um documento redigido por
Fernando de Azevedo e assinado por outros 26 intelectuais que defendiam
ideais de renovação no âmbito educacional no Brasil.
Armanda Álvaro Alberto, ao lado de Fernando de Azevedo, Anísio
Teixeira, Lourenço Filho, Cecília Meireles, entre outros, defendia a escola
única, pública, laica, obrigatória e gratuita, tendo se destacado pela autoria
de um projeto educacional inovador, levado a cabo pela criação da Escola
Proletária de Meriti, em 13 de fevereiro de 1921, que posteriormente foi
denominada “Escola Regional de Meriti”, e, na atualidade, leva o nome de
Escola Municipal Dr. Álvaro Alberto2, localizada no município de Duque de
Caxias, Rio de Janeiro.

1 Doutora em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/0622871659133250. E-mail: psicoreg@gmail.com.


2 A escola recebeu o nome de Dr. Álvaro Alberto a pedido de Armanda, em homenagem a
seu pai, médico sanitarista, no ano de 1964, quando, após tentativa frustrada da educadora
de transferir a escola para o governo do Estado, a mesma doou a escola para o Instituto
Central do Povo (ICP). No ano de 1989, a prefeitura municipal de Duque de Caxias assumiu a
responsabilidade sobre a escola.

62
Filha de Álvaro Alberto da Silva, médico sanitarista, e de Maria Tei-
xeira da Motta e Silva, Armanda nasceu em 10 de junho de 1892, no Rio de
Janeiro, falecendo na mesma cidade em 5 de fevereiro de 1974. Em 1919
acompanhou o irmão, primeiro-tenente da marinha, Álvaro Alberto, em
sua transferência para Angra dos Reis. Nessa vila de pescadores, começou
a lecionar para as crianças, procurando suprir a falta de escolas no lugarejo
(MORAES, s.d.).
Segundo Mignot (2010, p. 18), pesquisadora e biógrafa de
Armanda, apesar dessa educadora ter atuado em um dos movimentos
educacionais mais estudados pelos historiadores, o movimento da Esco-
la Nova, a produção historiográfica não deu a ela um lugar de destaque.
Armanda já atuava intensamente em prol da educação brasileira antes
de assinar o Manifesto Pioneiro da Educação Nova, chamando a atenção da
sociedade para a tarefa de, por meio da educação, ofertar à população do
interior condições de melhorias no âmbito da saúde, educação e cultura;
participando de conferências com objetivo de disseminar educação como
missão da sociedade; criando, junto à Escola Regional de Meriti, um
museu escolar e uma biblioteca direcionados à população local; fazendo
parte da Liga Brasileira Contra o Analfabetismo, apostando na educação
como promotora do desenvolvimento social e cultural; participando
da fundação da Associação Brasileira de Educação – ABE, entidade na
qual ela era presidente à época da assinatura do Manifesto Pioneiro da
Educação Nova; integrando o Conselho Nacional de Mulheres do Brasil;
presidindo a seção de Cooperação da Família da ABE, cuja finalidade
era reunir a comunidade e envolvê-la na tarefa educativa; liderando o
Memorial aos Editores Brasileiros, no qual foram estabelecidas as condi-
ções necessárias para tornar aceitável o livro para crianças; participando
de movimentos de reivindicação aos direitos das mulheres, como o I
Congresso Internacional Feminista (1931), entre outras atividades de
cunho reivindicatório em torno dos direitos das crianças e das mulheres,
principalmente aquelas pertencentes às camadas populares.
Oriunda de uma família tradicional do Rio de Janeiro, Armanda
estudou em casa sob a orientação de sua mãe e alguns professores par-

63
ticulares, e tinha seu pai como seu maior incentivador intelectual. Álvaro
Alberto da Silva, médico sanitarista, cientista, estudioso, químico, viveu na
Europa em dois períodos (LAZARONI, 2010). O primeiro, em 1889, quando
Armanda ainda não havia nascido, recebeu ajuda de custo do governo para
a manutenção da família em Paris, com responsabilidade de representar o
Brasil no Congresso Terapêutico de Paris. Ainda nesse período, foi professor
convidado na Universidade de Sorbonne. Seu objetivo era aperfeiçoar seus
estudos em relação à febre amarela, doença que atingia níveis alarmantes
de mortalidade no Rio de Janeiro. Em 1901, quando Armanda estava com
9 anos, a família partiu novamente para Europa, dessa vez foram para
Bélgica e Itália, com praticamente o mesmo objetivo: aperfeiçoamento dos
estudos do cientista brasileiro, e apresentação de tese sobre explosivos,
no curso de medicina da Universidade de Roma (LARARONI, 2010).
Na Itália, foram apresentados à Maria Montessori (ibidem), médica
e educadora italiana, responsável por um método de ensino na educação
infantil considerado revolucionário por colocar o aluno no centro do pro-
cesso de ensino e aprendizagem e defender a formação integral do jovem,
bem como o respeito às necessidades e aos interesses de cada estudante,
com base no nível de desenvolvimento correspondente à faixa etária. Ar-
manda esteve literalmente em contato com o método.

Por mais de um ano, Mandinha manteve contato com a edu-


cação através de brinquedos educativos (corpos sólidos de
tamanho e formas variadas), objetivando o aperfeiçoamento
dos sentidos; pedaços de tecidos coloridos destinavam-se à
educação de percepção visual; os exercícios rítmicos desen-
volviam a audição e o controle motor; quanto aos professores
deviam vigiar e orientar os alunos (LAZARONI, 2010, p. 39).

No ano de 1912, já no Brasil, Armanda entrou para o curso Nor-


mal na Escola Jacobina, dirigida por Laura Jacobina Lacombe3, educadora
católica, que se envolveu em causas educacionais, assumindo, como
profissional, concepções pedagógicas em circulação na Europa e Estados
Unidos, como as de Decroly, um dos precursores dos métodos ativos e

3 Armanda e Laura Jacobina foram colegas do Curso Jacobina, mas, na década de 1930,
assumiram dentro da Associação Brasileira de Educação posições antagônicas ao se
posicionarem diante do conflito entre católicos e pioneiros.

64
defensores de uma escola centrada no aluno, de preparação para a vida
em sociedade. No projeto pedagógico da escola, Laura incorporou a essas
concepções os conteúdos do movimento da Escola Nova e as concepções
católicas, experiência vivenciada por Armanda, primeiro como aluna e,
depois, como profissional.
Segundo Mignot (2010), Armanda dialogava com o momento
histórico mundial da educação. Um período em que se vivenciavam os
abalos provocados pela Primeira Guerra Mundial, cujos efeitos foram
desastrosos para a economia dos países envolvidos, como o Brasil, e
se buscava, na educação, novas possibilidades para a reconstrução do
país. A Educação Nova, contrária às características tradicionalista e
intelectualista da educação, buscava imprimir um sentido mais vivo e
ativo às práticas pedagógicas, defendendo a escola pública para todos,
como principal bandeira para se corrigir as desigualdades sociais e pro-
mover o desenvolvimento do país. No Brasil, vivenciavam-se os conflitos
gerados pela instalação da República, as revoltas contra as normas
arbitrárias do Estado, sendo que em uma delas, Armanda sentiu na pele
as consequências dos desmandos dos governantes, que foi a revolta da
chibata (LAZARONI, 2010), na qual seu irmão, Álvaro Alberto de Mota
e Silva, primeiro-tenente da marinha, foi ferido pelos revoltosos que
ocuparam o navio “Minas Gerais” em que ele estava a serviço. Tratou-se
de um movimento em que trabalhadores na marinha, na cidade do Rio
de Janeiro (1910), em sua maior parte composta por mulatos e negros,
revoltaram-se contra as normas estabelecidas, legalmente, que previam
castigos físicos para as faltas cometidas no trabalho.
Os intelectuais brasileiros, influenciados pelas ideias de Dewey4,
e sob o impacto de transformações econômicas, políticas e sociais, a
ampliação do pensamento liberal no Brasil, iniciaram um movimento, de
renovação do ensino, visando a formação de cidadãos atuantes e demo-
cráticos capazes de refletir sobre a sociedade e de se inserir, de forma
participativa e consciente, nessa sociedade. A educação era vista, pelos
intelectuais renovadores e modernizadores, como condição necessária e
verdadeiramente eficaz para a construção de uma sociedade democrática.

4 John Dewey (1859-1952), filósofo norte-americano, acreditava que a educação era uma
necessidade social e, por isso, defendia que a escola deveria ser organizada no sentido de
promover, por meio da experiência e da aprendizagem, o crescimento físico, emocional e
intelectual das crianças.

65
Armanda, uma pensadora de renome, mas, principalmente, uma
mulher de ação, na interlocução com educadores como Dewey, nos
Estados Unidos; Maria Montessori, na Itália; Freinet, na França; Anísio
Teixeira, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho, no Brasil (MIGNOT, 2010),
operacionalizou na prática pedagógica da Escola Regional de Meriti, o
pensamento da Escola Nova.

A luta feminina no Brasil

Já muito cedo, Armanda se posicionava contra as injustiças e fazia


leituras de intelectuais estrangeiros que defendiam a educação como ins-
trumento necessário e alavancador do progresso da humanidade. Leitora
e admiradora de Pestalozzi – antecessor de Maria Montessori e Dewey
–, apropriou-se da ideia, desse pensador, de que o afeto é fundamental
para o exercício da pedagogia. Esse princípio a acompanhou durante todo
o trajeto como educadora e administradora da escola fundada por ela, a
Escola Regional de Meriti.
Suas ações na luta pela educação e saúde a levaram a participar de
diversos movimentos e ocupar posições de destaque em associações e co-
missões de discussão sobre assuntos referentes ao processo de ensino e
aprendizagem, além de posições em entidades cujo objetivo era reivindicar
os direitos das mulheres, e de luta pela melhoria das condições de vida da
população brasileira, exigindo medidas de higiene e saúde como condição
para o progresso da nação.
A uma época em que as mulheres eram consideradas despro-
tegidas e emocionalmente vulneráveis – aos olhos de uma sociedade
masculina e autoritária –, Armanda se posicionou ativamente no combate
a essa situação, propondo a emancipação da mulher, e principalmente da
mulher operária. Armanda emergiu de suas reminiscências como uma das
mulheres que ingressou na cena política em um momento de radicalização
ideológica, exercendo a cidadania e experimentando o medo e a violência
(MIGNOT, 2010, p. 20).
Armanda foi a primeira presidente da União Feminina do Brasil,
criada em 1935, cuja bandeira de luta visava os direitos econômicos, so-

66
ciais e civis da mulher. Com ela, estavam mulheres como Maria Werneck
de Castro, Ester Xavier, Catarina Laudsberg, Eugênia Álvaro Moreira, Mary
Mércio e Norma Mormy. Com a União Feminina do Brasil, Armanda viu
seu ideal de intensificação da ação política das mulheres se concretizar e
cabe dizer que não era a primeira participação dessa educadora em um
movimento com tal objetivo, pois, na década de 1920, ela já compunha o
quadro de mulheres protestantes da Associação Cristã Feminina, além da
Federação Brasileira para o Progresso Feminino e do Conselho Nacional de
Mulheres do Brasil (LAZARONI, 2010).
Em função de estar à frente da União Feminina do Brasil e manter
relações próximas com a Aliança Nacional Libertadora – ANL, Armanda foi
alvo de denúncias, acusada e presa sob a alegação de fazer propaganda
comunista e alianças com movimentos que defendiam os ideais socialistas
no Brasil. Segundo Mignot:

Dificilmente Armanda Álvaro Alberto imaginaria que a presi-


dência da União Feminina do Brasil, criada, em meio à efer-
vescência política de 1935, visando defender os interesses
das mulheres brasileiras e romper com a discriminação que
se expressava na legislação que mantinha a mulher em situ-
ação humilhante, tivesse tão graves consequências (MIGNOT,
2010, p. 37).

Várias pessoas, homens e mulheres, foram presas, em função dos


levantes que aconteceram no ano de 1935, sob a alegação de conspirarem
contra o governo de Getúlio Vargas. A ANL, composta por comunistas,
socialistas, líderes sindicais e liberais que um dia fizeram parte do governo,
liderada por Luis Carlos Prestes, apresentou, nesse ano, um documento,
requerendo a renúncia do governador, o que rendeu a determinação de
ilegalidade da ANL. Várias revoltas ocorreram nas cidades de Natal, Recife
e Rio de Janeiro, entretanto, as tropas oficiais as combateram e finalizaram
as revoltas rapidamente. Segundo Mignot (2010, p. 39-40), em meio a
essa efervescência e clima de insatisfação, formou-se a organização da
União Feminina do Brasil.

67
Segundo Mignot, “As reivindicações da União Feminina do Brasil
versavam também contra a supressão da liberdade de pensamento, a
prisão e a deportação de cientistas, as intenções políticas de teorias que
procuravam comprovar a inferioridade das raças, a queima de livros e o
fechamento de laboratórios, que justificavam as guerras e a opressão
contra os povos” (MIGNOT, 2010, p. 40).
Em virtude do momento político de repressão, essa instituição não
pode levar adiante seus projetos e foi fechada em junho do mesmo ano
em que foi criada. Além disso, suas organizadoras foram presas, mesmo
alegando não terem envolvimento com o movimento de insurreição que se
formou naquele ano. Armanda foi presa em 1936 e liberada em junho de
1937, julgada e absolvida em julho desse mesmo ano.
Segundo Lazaroni (2010), empenhadas em combater as desigual-
dades sociais, a fome e a miséria, bem como em eliminar o analfabetismo
e a ignorância e dar visibilidade à participação feminina nas decisões
políticas do pais, as mulheres que criaram a União Feminina do Brasil man-
tinham contato e participação na ANL, mas estavam insatisfeitas com as
posições (apenas administrativas) que ocupavam nesse órgão. Portanto,
resolveram criar um espaço dentro da ANL que representasse mais que
um simples papel de espectador, e que colocasse em evidência discussões
sobre a participação da mulher na sociedade, que, para elas, não estaria
apenas relacionada aos afazeres domésticos, mas atuando, de igual para
igual, ao lado dos homens.

A Liga Brasileira Contra o Analfabetismo

A educadora aqui retratada, desde os primeiros momentos de sua


vida profissional se preocupou com a situação educacional da população
brasileira, e, atuando no Rio de Janeiro, dedicou-se a ensinar crianças e
adolescentes, acreditando que, ao saírem de sua condição de analfabetos,
poderiam participar da comunidade no sentido de melhorar as condições
de vida de todos.
No ano de 1919, acompanhando o irmão que estava se mudando
para Angra dos Reis, começou a ensinar crianças pobres da região, como fi-

68
lhos de pescadores, em uma sala de aula improvisada ao ar livre, utilizando
como material de ensino os recursos locais. Esse início de trabalho como
educadora reforçou sua ideia de que a escola regionalizada traria mais
benefícios à comunidade e, apesar de não ter durado muito tempo, serviu
de experiência para Armanda e reforçou a compreensão do papel da escola
e da mulher na tarefa de educar os menos afortunados. De volta ao Rio
de Janeiro, ambientou-se ao clima propício à participação das mulheres na
vida social e política do estado; e, nesse período, começa suas atividades
junto à Liga Brasileira Contra o Analfabetismo, defendendo as ideias de
intelectuais que viam a necessidade de promover mudanças no âmbito
da educação e saúde em prol da construção da nação e denunciando o
analfabetismo como um dos maiores problemas brasileiros.
A Liga Brasileira Contra o Analfabetismo foi uma instituição criada
no ano de 1915 e atuou junto à população e poder público no sentido de
eliminar os altos índices de analfabetismo, que consideravam o mal da
sociedade. Com o objetivo de:

reverter o abandono em que se encontrava a educação bra-


sileira, reuniu em torno desta bandeira homens e mulheres
que compartilhavam do entusiasmo pela educação e, em
particular, acreditavam que somente pela alfabetização se
poderia reverter o atraso do país (MIGNOT, 2010, p. 28).

Na compreensão dos membros da Liga Brasileira Contra o


Analfabetismo, promover a alfabetização da população adulta era uma
missão cívica que culminaria na formação intelectual do povo brasileiro e,
consequentemente, na manutenção da ordem e do progresso almejados.
Armanda, coerente com seus princípios políticos de defensora das causas
educacionais, engajou-se nessa luta e, no ano de 1923, assumiu a vice-
-presidência dessa instituição, que seria uma das colaboradoras do projeto
da Escola Regional de Meriti, criada em 1921.

69
A Associação Brasileira de Educação

A Associação Brasileira de Educação – ABE foi criada em 16 de


outubro de 1924, representando um espaço de discussão e sugestão para
elaboração de políticas educacionais no Brasil. Composta por educadores e
pessoas com interesse em melhorias na educação brasileira, promovia en-
contros e conferências para a discussão de temas específicos da educação
em diversos níveis.
No site da ABE5, um texto apresenta essa associação da seguinte
maneira

A ABE surge na década de 20, um período da história cheio


de grandes e graves apreensões, reunindo personalidades
ilustres e cultas, com o propósito de avaliar suas respon-
sabilidades e deveres em relação aos grandes problemas
nacionais. O sentimento comum ao grupo era a recusa da
apatia, indiferença e inércia diante dos fatos que estavam
ocorrendo, contrários aos legítimos direitos da pessoa hu-
mana e pondo em perigo o ideal de uma vida democrática,
aspiração de nosso povo ao longo de sua evolução histórica.
Foi com esse propósito idealista e de esperançosas expec-
tativas que se formou em torno do Professor HEITOR LYRA
DA SILVA, um numeroso grupo de intelectuais e profissionais
do ensino, inicialmente com predominância de engenheiros
vinculados à Escola Politécnica e ao então existente Insti-
tuto Politécnico de Engenharia. [...] O contingente feminino,
igualmente expressivo, se fazia representar por ISABEL
LACOMBE, ARMANDA ÁLVARO ALBERTO, ALICE CARVALHO
DE MENDONÇA, BRANCA FIALHO, BERTHA LUTZ, JERÔNIMA
MESQUITA e muitas outras professoras, mães de família,
cientistas, que emprestaram valiosa colaboração à iniciativa
(QUEM SOMOS?, 2020).

No ano de 1932, durante uma conferência, foi assinado o Manifesto


dos Pioneiros da Educação Nova em defesa da democratização da educação
escolar e modernização dos métodos pedagógicos. Armanda e Afrânio
Peixoto assumiam juntos, na época, a presidência da ABE. O respeito con-
ferido à Armanda como educadora e criadora de um projeto de escola ativa,

5 Disponível em: http://www.abe1924.org.br/quem-somos. Acesso em: 30 out. 2017.

70
que traduzia na prática os ideais dos intelectuais da época, concedeu a ela
uma participação ativa na ABE, principalmente junto à seção de Coopera-
ção da Família, por meio da qual pôde difundir suas ideias sobre o poder da
educação na construção do futuro das crianças.
Segundo Lazaroni (2010), Armanda se associou à ABE em função
de sua militância pela melhoria das condições intelectuais do povo bra-
sileiro, enaltecendo a importância da participação ativa nos debates e
nas decisões políticas e econômicas, e por acreditar na formação de uma
consciência nacional que pudesse erradicar as desigualdades sociais. Ela
e seu marido, Edgar Sussekind, compuseram o quadro de professores,
normalistas, jornalistas, médicos, advogados e engenheiros, que, influen-
ciados pelo movimento europeu “Liga Internacional pela Educação Nova”
e pelo pensamento de Comte, Durkheim e Dewey, tinham posições bem
claras em relação ao papel da ABE, defendendo a educação como único
caminho para a ordem e o progresso do país.
Ao assinar o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, Armanda
via seu ideal de educação regionalizada – pública e de responsabilidade do
Estado –, aberta para todos e com qualidade, próximo da concretização.
A experiência com a Escola Regional de Meriti dava à educadora a certeza
de ter sido uma tentativa pedagógica de sucesso apesar das dificuldades
enfrentadas, que poderia ser ampliada para todas as escolas brasileiras,
como ela mesma coloca no livro “A Escola Regional de Meriti”:

Porventura, das coisas pretendidas pelo plano inicial da es-


cola mais lentas de chegar era a sua máxima aspiração: o ser
reproduzida nas diversas regiões do país. Naquele tempo não
tínhamos ainda a experiência do México, por exemplo, hoje
tão conhecida, mas os princípios da Escola Regional, mesmo
para quem não tivesse a par da literatura pedagógica, já se
impunham aos que encarassem objetivamente, sem parti
pris, as questões da educação entre nós, aí por esse Brasil
afora. Ora, convencida de que a experiência começada em
Meriti podia ser feita noutros lugares, desde logo confessa-
mos aquela aspiração. A nosso ver, então como hoje, a escola
regionalizada é a única que resolverá o nosso problema de
quantidade porque pode funcionar em qualquer casada roça,
em galpões de sapê, com uma professora para numerosos

71
alunos, utilizando-se do material grátis, arrecadado na
redondeza, interessando no seu desenvolvimento toda a
vizinhança que nela não verá mais a inimiga que desvia os
meninos e as meninas de suas tarefas utilitárias, mas, ao
contrário disso, um centro de ensinamentos para a vida real
cá de fora, onde até eles, os adultos, às vezes vão em busca
de um esclarecimento, de um socorro. Só duas coisas são
imprescindíveis para essa escola existir de verdade: a profes-
sora preparada para o seu mister e a cooperação da Saúde
Pública. Pois bem, passados tantos anos de espera, parece
que as escolas regionais serão tentadas. Depois de visitar a
escola de Meriti, de ver a pobreza do material de que dispõe
e o realismo de sua orientação pedagógica, a Sociedade Na-
cional de Agricultura resolveu promover um curso, confiado
a vários especialistas, para professoras estaduais, sendo
a parte da pedagogia confiada à escola. Foi-me informado
que nove estados vão enviar duas professoras cada um. Que
surjam breve essas escolas regionais, algumas decerto em
condições de prosperar muito mais que a de Meriti, situadas
em localidades de população mais homogênea ou mais apta
a contribuir diretamente para o seu progresso. Nosso con-
tentamento será tanto maior (ALBERTO, 2016, p. 64).

Sua atuação na ABE estava intimamente ligada às suas aspirações


de mudar as condições de vida da população brasileira, considerada, à
época, como analfabeta, ignorante em relação à sua participação nas de-
cisões políticas e econômicas do país. A educadora levou para os debates
dessa associação, suas reflexões sobre educação e saúde, regionalização
do ensino, direito à participação das mulheres, analfabetismo no Brasil,
entre outros.
A Escola Regional de Meriti, criada no ano de 1921, por Armanda,
com a ajuda financeira de seu irmão Álvaro Alberto da Mota e Silva, seu
marido Edgard Sussekind de Mendonça e Francisco Venâncio Filho, que
a ajudaram a construir o projeto da escola, constituiu-se no que seria a
menina dos olhos da educadora, que dedicaria todos os esforços na cami-
nhada de transformar a vida social e cultural da cidade de Duque de Caxias,
por meio da educação.
Fortemente influenciada pelo pensamento de Maria Montessori,
Dewey e Pestalozzi, Armanda iniciou seu projeto de escola, que chamou de

72
tentativa pedagógica, no ano de 1919, em Angra dos Reis, quando teve a
oportunidade de lecionar para um grupo de crianças e adolescentes, filhos
de pescadores, com idade entre 3 a 16 anos, organizando turmas homo-
gêneas, separadas em um mesmo ambiente, de acordo com a faixa etária.

Aquela escola ao ar livre, à sombra dos bambus, cujo mo-


biliário constava de uma mesa, uma cadeira e esteiras pelo
chão, onde as manhãs eram consagradas à distribuição de
remédios, e muito material escolar improvisado ali mesmo,
do que pudesse ser aproveitado – se foi a escola que iniciou
alguns patriciozinhos nas coisas primordiais da vida, foi
também a nossa própria escola a que preparou essa outra
de Meriti, fundada menos de um ano depois de sua extinção
(ALBERTO, 2016, p. 46).

O objetivo da Escola Proletária de Meriti, como originalmente foi


chamada, era ser “uma escola moderna, regional, criada e mantida por
iniciativa particular” (Ibidem) com feição de um lar escola e fundamentada
nos princípios de “Saúde, Alegria, Trabalho e Solidariedade” (Ibidem).
Segundo a própria Armanda, a escola começou sem nenhuma pro-
posta escrita, com o intuito de ajudar a melhorar as condições de vida das
pessoas que moravam em Meriti, pois, em uma visita à cidade, percebeu
a precariedade em que viviam, sem nenhuma infraestrutura básica. Dessa
forma, estudiosa e preocupada com a população do interior, viu a opor-
tunidade de colocar seus conhecimentos à disposição daquelas pessoas
consideradas ignorantes em relação a questões de saúde e educação.

Não tendo sob os olhos nenhum modelo a seguir, foi inau-


gurada em 13 de fevereiro de 1921, sem um só programa
escrito; tomou desde o começo, no entanto, a feição de
um lar-escola, embora externato, com número limitado de
alunos, a quem não se dão notas, prêmios ou castigos. A
orientação geral apresentava-se resumida em quatro carta-
zes com os dizeres: Saúde, Alegria, Trabalho e Solidariedade
(ALBERTO, 2016, p. 47).

Um museu escolar organizado a partir de recursos trazidos pe-


los próprios alunos foi criado e, também, uma biblioteca com nome em

73
homenagem a Euclides da Cunha6, direcionada a alunos, professores e
moradores de Meriti, compunham os anexos da escola. Também havia
um receptor de rádio, doado por Roquette-Pinto. Os professores eram
orientados, por Francisco Venâncio e Coriolano Martins, a seguir os ensina-
mentos de Montessori e fazer registros diários sobre o desenvolvimento
das crianças. O primeiro programa escrito foi o de “hábitos de higiene”,
para o 1º grau do curso (Ibidem). As aulas previam, entre outras coisas, os
trabalhos manuais, seguindo uma característica de escola/laboratório, da
escola idealizada por Dewey.
Uma das campanhas empreendidas pela equipe da escola foi a de
saneamento básico, considerada por Armanda a mais importante, e tinha
na figura de Belisário Pena seu maior expoente, tendo em vista sua dedi-
cação na realização de conferências populares, com objetivo de esclarecer
a população sobre os cuidados com a higiene e a saúde. As crianças e
jovens, bem como a família destes, recebiam assistência médica, levando
em consideração que Armanda, sob influência, primeiramente, de seu pai,
e, depois, por ter se dedicado ao estudo sobre a situação da população que
morava no interior, era simpatizante do movimento higienista, promovido
na Baixada Fluminense pelo Dr. Belisário Penna, e acreditava que sem
saúde não era possível haver aprendizagem.
As preocupações eram pertinentes, considerando que a comunida-
de de Meriti era muito pobre, e doenças, como malária, febre amarela, eram
comuns naquela época. O cenário da cidade era preocupante, com rios e
canais destruídos, águas podres e estagnadas. Os três amigos, Venâncio
Filho, Edgard Sussekind e Armanda investiram seus esforços para mudar o
destino da população de Meriti, com educação, cultura, informação, projeto
social e de saúde (LAZARONI, 2010, p. 368).
Seguindo essa perspectiva, a intelectual inseriu em seu projeto de
escola o cuidado com a saúde e a alimentação, sendo a Escola Regional de
Meriti a primeira escola no Brasil a servir merenda escolar a seus alunos.

6 Armanda era membro do Grêmio Euclides da Cunha do Colégio Pedro II, criado por seus
amigos Carlos e Edgar Sussekind, e Murilo Araújo, que contava com as participações de Alberto
Rangel, Francisco Venâncio Filho. O objetivo desse grêmio era render homenagens a Euclides
da Cunha, bem como divulgar e promover estudos sobre sua vida e obra.

74
Essa atitude rendeu à escola o apelido, inicialmente pejorativo, de “mate
com angu”, que, posteriormente, foi incorporado pela comunidade e que,
ainda hoje, enaltece as ações de Armanda em prol da cidade de Meriti,
renomeada para Duque de Caxias. Também cinemas, festivais e docu-
mentários receberam o nome dela para exaltar essa educadora que tanto
contribuiu para a região. Além disso, pode-se citar a iniciativa pioneira de
criar o Círculo das Mães,

com programa especialmente traçado para aquelas mães,


analfabetas em sua maioria; higiene, educação familiar e
economia doméstica são as três partes do programa desti-
nado a preparar a cooperação, que sonhamos, das famílias
com a escola (ALBERTO, 2016, p. 51).

A Escola Regional de Meriti foi a primeira da América Latina a


funcionar em tempo integral, com orientação de métodos desenvolvidos
por Maria Montessori e Pestalozzi, valorizando a criança por suas carac-
terísticas e individualidades, buscando o seu desenvolvimento natural e
potencialidades com respeito à liberdade de expressão e pensamento, sem
empregar métodos tradicionais, como notas e castigos.
No livro A Escola Regional de Meriti: documentário 1921-1924,
organizado por Armanda e publicado pela Editora do Inep, em 2016, a edu-
cadora faz agradecimentos especiais aos colaboradores que contribuíram
para a existência da escola: Francisco Venâncio Filho, Edgard Sussekind de
Mendonça, Álvaro Alberto da Motta e Silva, Coriolano Martins, Belisário
Penna, Heitor Lyra da Silva, Edgar Roquette-Pinto, Corina Barreiros, Rosa
Dufrayer de Oliveira, Maria da Luz Carvalho, Marina Motta Veiga, Octávio
Ferreira Veiga, Bernardino Jorge, Maria T. da Motta e Silva, Ernesto de
Otero, Ari Parreiras, Celso Kelly, Tácito de Moraes Rêgo, Fávio Lyra da Silva,
Frederico Rêgo Neto, Luís Bustamante Castello, Brasilina Del Mugnaio,
Custódio Pires d’Aquino, Humberto Freire de Carvalho, Martha Rossi,
Albino Reixeira, Evelina Couto Borges, José Montes, Carlos Baptista dos
Santos, Moyspes Xavier de Araújo, Paschoal Lemme, Branca Perissé. Na
atualidade, a escola funciona sob a jurisdição da Prefeitura Municipal de
Duque de Caxias e já não mantém as mesmas características de ensino
preconizadas por Armanda.

75
Considerações finais

Para finalizar este texto que objetivou relatar a trajetória de Ar-


manda Álvaro Alberto, fica a consciência de que muito se deixou de falar
sobre essa educadora que, merecidamente, precisa ser evidenciada no
meio acadêmico, no sentido de retratar a lacuna deixada pela história na
divulgação de sua atuação em prol da educação no Brasil.
Para retratar com maior fidedignidade o seu pensamento, transcreve-
-se a seguir suas conclusões, a partir do trabalho desenvolvido como mentora
de um projeto educacional reflexo das necessidades sociais, localizadas em
um tempo e em um espaço específico da história da educação no Brasil.
Oito anos de ação e meditação sulcados de acertos e desacertos
que todos redundam em alguma experiência, levam-nos às seguintes
conclusões:

1. Os métodos de educação – venham eles da Suíça, dos Esta-


dos Unidos da Itália, desde que se baseiem na liberdade, que
consente a plena expansão da individualidade, e no trabalho,
que leva a criança a observar e experimentar, a descobrir e a
fazer por si – são os únicos dignos de serem adotados hoje em
dia. Em nosso meio, poucos são os professores capazes de os
empregar com segurança; faz-se necessário, portanto, antes
de tentar a escola ativa, preparar os mestres para ela.
2. A escola primária tem que ser regional, o que não impede de
ser brasileira. Tanto melhor reagirá sobre o seu meio, quanto
mais adaptada lhe estiver. Na roça é o único centro, muitas
vezes, de vida intelectual; deve sentir as necessidades de pro-
gresso da sua região e tomar a si as iniciativas em benefício da
comunidade a que pertencem os seus alunos.
3. A cooperação da família na obra da escola é indispensável. Em
cada escola, deve existir um Círculo de Mães que as prepare
convenientemente.
4. Sem a iniciativa particular, o Brasil não resolverá tão cedo o
problema da educação do seu povo, simplesmente porque

76
faltam à União e aos Estados os recursos financeiros suficien-
tes. A Escola Regional de Meriti tem por máxima aspiração ser
reproduzida em todo o país. Que os fazendeiros, os industriais,
os capitalistas fundem escolas para os filhos dos seus colonos,
sitiantes, operários, empregados. Peçam aos poderes públicos
ou aos centros de educação, como a Associação Brasileira de
Educação, os programas, mesmo as professoras, mediante
entendimento com o governo. E aqueles que só dispõem de
boa vontade fundem associações como a nossa – que o se
ocupar da criança ainda é a mais humana das funções de nossa
espécie (ALBERTO, 2016, p. 53).

REFERÊNCIAS

ALBERTO, A. A. (org.). A Escola Regional de Meriti: documentário 1921-1964. Brasília:


Inep, 2016.
LAZARONI, D. Mate com angu: a história de Armanda Álvaro Alberto. Rio de Janeiro:
Edição Europa, 2010.
MENEZES, E. T. de; SANTOS, T. H. dos. Verbete Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova. Dicionário Interativo da Educação Brasileira – Educabrasil. São Paulo: Midiamix,
2001. Disponível em: http://www.educabrasil.com.br/manifesto-dos-pioneiros-da-
-educacao-nova/. Acesso em: 13 set. 2017.
MIGNOT, A. C. V. Armanda Álvaro Alberto. Recife: Editora Massangana, 2010. Coleção
Educadores.
MIGNOT, A. C. V. Decifrando o recado do nome: uma escola em busca de sua identi-
dade pedagógica. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 74, n. 178, p.
619-638, set./dez. 1993.
MORAES, J. D. Armanda Álvaro Alberto: pensamento e ação nos anos 1930. In:
CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 4., 2006, Goiânia. Trabalhos
apresentados [...]. Goiânia: Sociedade Brasileira de História da Educação, 2006.
PLESSIM, V. K. A Escola Regional de Meriti: escolanovismo, ruralismo e o debate da
historiografia da educação. In: SEMINÁRIO DO HISTEDBR, 10., 2016, São Paulo. Anais
[...]. Campinas, SP: Secretaria de Cultura do Estado do RJ, 2016. Disponível em: http://
www.cultura.rj.gov.br/materias/mate-angu-e-revolucao. Acesso em: 25 fev. 2021.
QUEM SOMOS? ABE – Asossiação Brasileira de Educação, 2020. Disponível em: http://
www.abe1924.org.br/quem-somos. Acesso em: 10 out. 2020.
VIANNA, L. H. Mulheres revolucionárias na década de 30. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, v. 8, n. 2, 2000.

77
CAPÍTULO V

ATTILIO VIVACQUA

João Oliveira Ramos Neto1

Quem viaja pelas paisagens montanhosas ao sul do estado do


Espírito Santo, deixando a cidade de Cachoeiro do Itapemirim pela rodovia
ES-489, depara-se – após aproximadamente 30 minutos de carro – com
uma pequena cidade de 10 mil habitantes chamada Attilio Vivacqua. Mas,
afinal, quem foi essa pessoa? Attilio Vivacqua foi um dos signatários do
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, razão pela qual o bio-
grafaremos neste capítulo.
Attilio Vivacqua foi um advogado, jornalista, político e escritor
brasileiro, no início do século XX. Neto de imigrantes italianos, ele nasceu
em 11 de outubro de 1894, em Muniz Freire, no estado do Espírito Santo.
Seus pais eram José Antônio Vivacqua e Etelvina Souza Monteiro Vivacqua.
Attilio Vivacqua também era irmão de Dora Vivacqua (1917-1967), atriz,
dançarina e escritora que ficou conhecida como Luz del Fuego.
Seu pai era um importante fazendeiro no estado do Espírito Santo,
e foi no município de Cachoeiro de Itapemirim que Attilio Vivacqua come-
çou seus estudos, no Ginásio Pedro Palácios, prosseguindo, depois, para

1 Doutor em História. CV: http://lattes.cnpq.br/6427938680486263. E-mail: joaooliveiraramos-


neto@gmail.com.

78
o Ginásio Estadual do Espírito Santo, em Vitória e, então, matriculou-se
no curso de Direito da Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro. É im-
portante lembrar que, no período em que Attilio Vivacqua viveu, o Rio de
Janeiro era a capital do Brasil.

Figura 1 – Antiga estação ferroviária do município de Attilio Vivacqua.


Fonte: Site ESBrasil, 2020.

Ainda enquanto era estudante do curso de Direito, Attilio Vivac-


qua integrou a delegação brasileira em dois congressos internacionais
de estudantes realizados no Uruguai, em 1913 e 1915. Nesse último ano
(1915), tornou-se solicitador no fórum de Cachoeiro do Itapemirim (ES) e
colaborador do jornal capixaba “O Espírito Santo”, atividade que exerceu
até 1917. Em 1916, depois de concluir o curso de Direito, passou também
a atuar como advogado em Colatina, no Espírito Santo. Além disso, fundou
e dirigiu por vários anos o jornal “O Município” da cidade de Cachoeiro de
Itapemirim. Casou-se com Jenny Silva Vivacqua e tiveram três filhos: Antô-
nio Carlos, Jussara e Attilio Geraldo.

79
Figura 2 – Collegio Pedro Palacios, em Cachoeiro de Itapemirim, onde Attilio Vivacqua
estudou.
Fonte: Blog Vitrine Capixaba.

Vida política

Attilio Vivacqua se destacou principalmente como político pro-


gressista, tornando-se um importante ativista da educação durante a sua
carreira, por isso, assinou o Manifesto da Escola Nova, razão pela qual o
biografamos neste livro e, entre outras atividades, destacamos essa atua-
ção de forma mais específica.
Attilio Vivacqua iniciou sua carreira política ainda no período que
costuma ser chamado de “Primeira República”, ou “República Velha”, entre
a “proclamação” em 1889 e a ascensão de Getúlio em 1930. Esse período
ficou conhecido principalmente pelas constantes fraudes eleitorais, além
do voto de cabresto. As decisões políticas dos rumos do país estavam con-
centradas nas mãos das elites, principalmente dos fazendeiros produtores
de café e leite, por isso o nome “República do Café com Leite”.

80
Essas elites disputavam entre si o controle dos estados e, uma vez
eleitas, faziam acordos com o presidente, a chamada “Política dos Gover-
nadores”. Essa situação não era diferente no estado do Espírito Santo, pois,
segundo Achiamé, devido à restrita expressão socioeconômica e pouca
representatividade nas esferas de poder nacionais, a política do estado do
Espírito Santo “gravitava em torno dos interesses das oligarquias estadu-
ais de outras unidades mais poderosas da Federação” (ACHIAMÉ, 2010, p.
87). Os vínculos, segundo esse autor, concentravam-se especialmente nos
estados de São Paulo e Minas Gerais.
As principais famílias produtoras de café dominavam as regiões do
estado: ao norte, a família Cunha; na região de Vitória, a família Monjardim;
e, ao sul do estado, a oligarquia era composta pelas famílias Souza Mon-
teiro, Marcondes de Souza e Vivacqua: “Esta última expandiu-se a partir do
atual município de Muniz Freire e se enriqueceu com o comércio do café”
(ACHIAMÉ, op. cit., p. 89).
Em 1920, Attilio Vivacqua foi eleito vereador do município de Cacho-
eiro do Itapemirim, pelo Partido da Lavoura. Eleito presidente da Câmara,
assumiu interinamente a prefeitura de Cachoeiro do Itapemirim, de 1920
a 1921. Ainda em 1920, tornou-se colaborador do jornal “O Município”, da
mesma cidade, atividade que exerceu por quatro anos. No pleito de 1921,
foi eleito deputado da Assembleia Legislativa do Espírito Santo na legenda
do Partido da Lavoura, deixando então a Câmara Municipal de Cachoeiro
do Itapemirim. Reeleito em 1924, tornou-se, no mesmo ano, presidente de
seu partido. A partir dessa data, ele também exerceu os cargos de diretor-
-presidente da Companhia Territorial – empresa estatal responsável pela
colonização do Vale do Rio Doce, no Espírito Santo –, de 1924 a 1928, e foi
reeleito deputado ao Legislativo capixaba no pleito de 1927.
É importante destacar que, no período da Primeira República
(1889-1930), os partidos políticos eram estaduais, ainda que diferentes
estados tivessem partidos com os mesmos nomes. Era comum haver par-
tidos cujo nome remetia à ocupação profissional de seus membros, como
Partido Construtor, Partido Operário e, no caso de Attilio Vivacqua, Partido
da Lavoura (partido que agregava principalmente políticos ligados ao cam-

81
po). Nesse sentido, destaca-se a singularidade de Attilio Vivacqua ser um
político de ideia progressista em um partido conservador que defendia os
interesses dos grandes produtores.
No Espírito Santo, o Partido da Lavoura foi fundado em 1900 pelo
coronel Ramiro de Barros Conceição e por Jerônimo Monteiro, com alguns
dissidentes do Partido Construtor. Naquela época, os partidos tinham
seus jornais que eram responsáveis, principalmente, por difundir os ideais
defendidos, por isso, era muito comum que uma mesma pessoa desenvol-
vesse a função de político e jornalista, ao mesmo tempo.
O Partido da Lavoura, depois de ficar um tempo inativo, foi revigora-
do em 1933, para, além de disputar as eleições para a Assembleia Nacional
Constituinte, reunir aqueles que tinham sido afastados do cargo, como o
governador Aristeu Borges de Aguiar (1892-1951) – por causa da Revolução
de 1930 –, que nomeou Attilio Vivacqua como secretário de instrução.
Em julho de 1926, o então governador do Espírito Santo, Florentino
Ávidos (1870-1956) criou a Secretaria de Instrução Pública, nomeando para
titular da pasta o seu afiliado político, Aristeu Borges de Aguiar (1892-1951).
Em 30 de junho de 1928, dois anos antes da revolução que colocaria fim à
Primeira República, Aristeu Borges de Aguiar (1892-1951) assumiu o cargo
de governador do Espírito Santo, pelo Partido Republicano – Pres, suceden-
do seu padrinho político, Florentino Ávidos. Naquela época, os governadores
eram chamados de presidente do estado. Aristeu, então, escolheu Vivacqua
para ocupar seu cargo antes de ser governador: “Attilio Vivacqua, amigo pes-
soal de Aristeu, de família de grandes fazendeiros e exportadores de café,
recebeu a Secretaria de Instrução” (SALETTO, 2018, p. 93).
Apesar de Aristeu Borges de Aguiar ter recebido várias críticas por
ter formado um secretariado às bases de um substancial nepotismo, ele
deixou algumas marcas em seu governo, dentre elas: “A iniciativa mais
arrojada de sua gestão coube ao secretário de instrução, Attilio Vivacqua:
promover uma profunda reforma da educação pública” (SALETTO, op. cit.,
p. 95). A autora continua: “Foi iniciada uma verdadeira revolução nos méto-
dos e nos objetivos de ensino, inspirada nas novas diretrizes pedagógicas
que condenavam o ensino livresco e elitista então praticado e propunha
uma Escola Nova” (SALETTO, op. cit., p. 96).

82
Sobre a Escola Nova, a autora explica que Attilio Vivacqua propu-
nha uma escola que “preparasse os alunos para a vida, mobilizando-os
com a utilização dos mais variados meios: o jornal, o cinema, o rádio, o
jogo de xadrez, a música, etc.” (Ibidem, p. 95). Além disso, “pretendia tam-
bém desenvolver o ensino profissionalizante, sob as mesmas diretrizes,
visando levar educação a todas as camadas da população” (Ibidem, p. 95).
Para promover tamanha reforma, Attilio Vivacqua “havia viajado para São
Paulo com o objetivo de estudar a reforma paulista e adequá-la à realidade
do seu estado” (SOBRAL, 2017, p. 45). E, na volta, levou consigo Gomes
Cardim, “orientador da reforma promovida por Jerônimo Monteiro, que fez
várias conferências e deixou o filho, Paulo, encarregado de implantar o tra-
balho pedagógico musical nas escolas” (SALETTO, 2018, p. 96). A reforma
educacional implementada por Attilio Vivacqua no Espírito Santo teve uma
repercussão bastante positiva no restante do país, “sendo adotada como
padrão para todo o país, onde as discussões e experiências multiplicavam”
(SALETTO, op. cit., p. 46).
Em 1930, Attilio Vivacqua deixou a Secretaria de Instrução Pública
e assumiu interinamente a Secretaria do Interior. Em março do mesmo
ano, elegeu-se deputado federal pelo Espírito Santo, mas não chegou a
assumir o mandato, devido a mudanças que ocorreram como consequên-
cia da Revolução de 1930 que suprimiu todos os órgãos legislativos do país
ao implementar o Governo Provisório, liderado por Getúlio Vargas (1882-
1954), e que daria início ao período que a historiografia chama de “Era Var-
gas” (1930-1945). Attilio Vivacqua apoiou o presidente Washington Luís
(1869-1957) e, consequentemente, a posse de Júlio Prestes (1882-1946),
o que fez com que perdesse protagonismo político para a implementação
das reformas que defendia. Porém, como o ideal da Escola Nova fervilhava
naquele momento, as reformas acabaram acontecendo no Espírito Santo.
Em março de 1933, porém, Attilio Vivacqua voltou para a carreira
pública quando foi eleito secretário-geral da Ordem dos Advogados do
Brasil – OAB, cargo que ocupou até 1944. Ainda em 1933, participou da
fundação do novo Partido da Lavoura do Espírito Santo, organizado para
concorrer às eleições para a Assembleia Nacional Constituinte de maio
daquele ano. Foi eleito deputado, mas não chegou a ser empossado em

83
virtude do ato baixado pelo governo federal decretando a inelegibilidade
de ex-secretários de estado. Em 1934, tornou-se membro da Academia
de Ciências da Educação e, no pleito de outubro, foi eleito deputado à
Assembleia Constituinte capixaba. Participou dos trabalhos constituintes,
exercendo o mandato, após a promulgação da nova carta estadual, até 10
de novembro de 1937, quando, com o advento do Estado Novo, os órgãos
legislativos do país foram mais uma vez suprimidos.
A Assembleia Constituinte do estado do Espírito Santo foi instituída
em 11 de abril de 1935, no edifício do Congresso Legislativo, em Vitória, e
estava, basicamente, dividida entre dois grupos: os apoiadores do governo
getulista e os seus opositores, deste último Attilio Vivacqua fazia parte.
Sobre isso, Achiamé, em seu livro, informa que “O Partido da Lavoura [...]
foi fundado com intenção de representar os interesses dos proprietários
de terra” (ACHIAMÉ, 2010, p. 309). Nesse período, portanto, Attilio Viva-
cqua estava politicamente alinhado com a oposição a Getúlio Vargas. Era
um grupo que reunia os grandes proprietários rurais produtores de café
que temiam perder os privilégios oligárquicos, porém, não era um grupo
homogêneo e, entre outros problemas, continha políticos bacharéis “que
não tinham direta ligação com os problemas do campo, ou nem mesmo
moravam permanentemente no estado, como [...] Attilio Vivacqua [...]
Ou seja, tais políticos não tinham condições de cumprir direito as tarefas
partidárias” (Ibidem).
Em 1940, Attilio Vivacqua também se tornou professor da Faculda-
de Nacional de Direito da Universidade do Brasil e, em 1941, procurador da
Justiça do Trabalho e consultor jurídico interino do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio. Ele também foi presidente do Clube dos Advogados,
vice-presidente do Instituto dos Advogados do Espírito Santo e da União
Brasileira dos Escoteiros e membro do Conselho Diretor do Congresso de
Brasilidade, do Instituto Brasileiro de Cultura, do Instituto Brasil-Estados
Unidos – Ibeu, da Associação Brasileira de Imprensa – ABI, da Associação
Brasileira de Ciências e do Instituto Nacional de Ciências Políticas.
Com o fim da Era Vargas (1939-1945) e a desagregação da dita-
dura do Estado Novo, em 1937-1945, Attilio Vivacqua foi um dos funda-
dores do Partido Social Democrático – PSD, no Espírito Santo. No período
chamado de “República Democrática” (1945-1964), os partidos já eram

84
nacionais. O PSD foi fundado em 17 de julho de 1945 e era de orientação
centro-esquerda, alinhando-se ao Partido Trabalhista Brasileiro – PTB de
Getúlio, em oposição à União Democrática Nacional – UDN, de direita. O
PSD foi o partido dos presidentes Eurico Dutra (1883-1974) e Juscelino
Kubitscheck (1902-1976), e foi por esse partido que Attilio Vivacqua foi
eleito senador pelo Espírito Santo à Assembleia Nacional Constituinte, no
pleito de dezembro de 1945.
Após a posse, em fevereiro de 1946, Attilio Vivacqua participou
dos trabalhos constituintes, tendo integrado a subcomissão sobre o Poder
Judiciário da Comissão Constitucional. Ainda em 1946, desligou-se do PSD,
filiando-se ao Partido Republicano – PR, de cuja fundação no Espírito Santo
Vivacqua também participou. Por volta dessa época, o Jornal do Brasil infor-
ma, em sua edição de 9 de fevereiro de 1950, que Attilio Vivacqua residia à
rua Visconde de Pirajá, número 438, em Ipanema, edifício Nobre de Sagres.

Figura 3 – Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, em 1963. Nesse endereço, Attilio


Vivacqua morava enquanto estava no Rio de Janeiro para o exercício de seus
mandatos eletivos.
Fonte: Pinterest.

85
Com a promulgação da Constituição de 1946 – quinta Constituição
da história brasileira –, Attilio passou a exercer o mandato ordinário no
Senado, destacando-se – entre outros projetos – na defesa da economia
do café, como autor do projeto que instituiu o Fundo de Economia Cafeeira,
aprovado em 1947, e do projeto que criou o Serviço Nacional de Irrigação e
de Solos Agrícolas. Em outubro de 1947, votou contra o projeto do senador
Ivo d’Aquino que dispunha sobre a cassação dos mandatos dos parlamen-
tares comunistas, medida decorrente do cancelamento do registro do
Partido Comunista Brasileiro, então Partido Comunista do Brasil – PCB,
no início desse mesmo ano. A cassação dos mandatos seria finalmente
aplicada em janeiro de 1948, e o presidente da Comissão de Constituição
e Justiça do Senado, de 1947 a 1951, foi um dos principais defensores do
enquadramento da Justiça do Trabalho como órgão do Poder Judiciário.
Ainda segundo dados do Cpdoc da Fundação Getúlio Vargas, em
1948, Attilio Vivacqua deu parecer contrário à proposta de intervenção fede-
ral em São Paulo, durante o governo de Adhemar de Barros (1947-1951), e
defendeu a permanência daquele político na chefia do Poder Executivo pau-
lista, parecer que contribuiu decisivamente para o voto do Senado, evitando
a intervenção. Ainda nesse ano, tornou-se membro das comissões especial
e mista de Leis Complementares da Constituição, e da Comissão Especial
de Regimento Comum. Ainda durante o governo de Eurico Gaspar Dutra
(1946-1951), colaborou no Plano Salte e foi relator do projeto de emenda
constitucional que regulou a autonomia do Distrito Federal.
O Partido Republicano era de orientação política de direita e se
alinhava com a UDN na maioria das vezes. Attilio Vivacqua se tornou líder
do PR no Senado em 1952, defendendo a autonomia dos municípios e a
imunidade dos vereadores, e, também, foi autor de substitutivos aos pro-
jetos, aprovados pelo Senado, que criaram o Laboratório Central de Drogas
e Medicamentos e o Instituto Brasileiro do Café – IBC.
Em 1953, obteve o reconhecimento, pela União, do direito do Es-
pírito Santo sobre a Ilha de Trindade, que passou a integrar o estado. No
mesmo ano, participou da Conferência Econômica de Nova Orleans, nos
Estados Unidos. Foi o autor da Lei Vivacqua sobre seguro agrário, do projeto

86
que criou o Serviço de Assistência à Velhice, do projeto que regulamentou a
prestação de alimentos provisionais às vítimas de acidentes em transpor-
tes e aos seus beneficiários, e dos projetos de valorização econômica dos
vales dos Rios São Mateus e Periqui-Açu e das Ilhas Trindade e Martim Vaz,
no Espírito Santo.
Em outubro de 1954, foi reeleito senador pelo Espírito Santo, na
legenda da coligação integrada pelo – PTB, o Partido Republicano Traba-
lhista – PRT, o Partido Social Progressista – PSP e o PR. Iniciando novo
mandato em fevereiro de 1955, foi líder do PR no Senado em 1959.
Em 1955, quando Juscelino Kubitschek foi eleito presidente da
República pelo PSD, o Senado tinha 23 senadores do PSD, 16 petebistas,
13 udenistas, 4 republicanos, 1 petenista e 1 socialista. Attilio Vivacqua se
destacou, entre outros motivos, pela sua brilhante oratória. O jornal Cor-
reio Lageano, fazendo uma retrospectiva política, em sua edição de 31 de
dezembro de 1955, informou que, naquele ano, Attilio Vivacqua foi o ter-
ceiro senador que mais fez discursos na tribuna, totalizando 60 discursos.
O jornal Diário da Manhã, 19 anos antes, na edição de 15 de setembro de
1926, informando sobre uma viagem que o governador Florentino Ávidos
fez para inspecionar obras em Colatina, relatou que ele foi saudado “em
vibrante discurso pelo talentoso deputado Attilio Vivacqua. Sua excelência
salientou com palavras eloquentes o quanto de benéfica tem sido para o
Espírito Santo a administração de sua excelência”.
Foi consultor jurídico da Companhia Siderúrgica Nacional – CSN,
professor da Faculdade de Direito de Vitória e diretor da Imprensa Oficial.
Escritor e jornalista, colaborou nos jornais “Alcantil” e “Cachoeirano”, de
Cachoeiro do Itapemirim; no “Diário da Manhã”, de Vitória; e nos jornais
cariocas “O Jornal”, “Diário de Notícias” e “Jornal do Comércio”; além de
ter publicado estudos jurídicos, políticos e sociais nas revistas cariocas
“Revista de Direito” e “Revista de Jurisprudência” e na “Resenha Judiciária”,
do Espírito Santo.
Deixou grande contribuição para a literatura jurídica nacional e
numerosos trabalhos como secretário da educação, tais como: A moral e o
direito (1914), O escotismo (1916), Separação de corpos no direito brasileiro

87
(1917), Motivos do Brasil moderno (1929), A escola ativa brasileira (1930),
Educação brasileira (1930), A questão do imposto em espécie sobre o café
(1932), A inamovibilidade da magistratura e o habeas-corpus (1932), A nova
política do subsolo e o regime legal das minas (1942), Questões jurídicas, O
ensino público no Espírito Santo, Direito ferroviário, O direito do Espírito Santo,
Unidade econômica e financeira, A cobrança da taxa de dez shillings, Poder de
polícia dos chefes de repartições públicas, Dissolução da sociedade comercial
por motivo de falência, Direito de superfície e A propriedade mineral.
Attilio Vivacqua faleceu em 21 de janeiro de 1961, no Rio de Ja-
neiro, em pleno exercício do mandato, sendo substituído no Senado pelo
suplente Silvério del Caro.

REFERÊNCIAS

ACHIAMÉ, F. A. M. O Espírito Santo na Era Vargas (1930-1937). Rio de Janeiro: FGV,


2010.
ATÍLIO VIVACQUA. FGV Cpdoc, 2009. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acer-
vo/dicionarios/verbete-biografico/vivacqua-atilio. Acesso em: 30 mar. 2021.
CORREIO LAGEANO. Apolonio Sales e Kerginaldo Cavalcanti: os campeões de oratória
do senado de 1955. Jornal Correio Lageano, Lages, ano 16, 31 dez. 1955. Disponível
em: http://hemeroteca.ciasc.sc.gov.br/correiolageano/1955/ED90_31_12_1955_
ANO16.pdf. Acesso em: 17 jul. 2020.
DIÁRIO DA MANHÃ. A excursão presidencial. Jornal Diário da manhã, Goiânia, 15 set.
1926.
JORNAL DO BRASIL. Acometido de um mal súbito o senador Attilio Vivacqua. Jornal
do Brasil, Rio de Janeiro, 9 fev. 1950. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/
hemeroteca-digital/. Acesso em: 17 jul. 2020.
SALETTO, Nara. Sobre política capixaba na Primeira República. Vitória: Arquivo Públi-
co, 2018.
SOBRAL, M. N. Mercedes Dantas e sua viagem aos estados do norte: difusão do
ideário escolanovista (1930). In: MAYNARD, D. C. S.; SOUZA, J. E. (orgs.). História, so-
ciedade, pensamento educacional: experiência e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora
Autografia, 2017.

88
CAPÍTULO VI

CARLOS ALBERTO
NÓBREGA DA CUNHA

João Oliveira Ramos Neto1

No começo da pesquisa sobre a biografia de Nóbrega da Cunha,


o primeiro resultado encontrado foi o nome de uma escola estadual na
cidade de Bandeirantes, no interior do estado do Paraná. Por esse motivo,
confesso que isso me deixou ainda mais inspirado, afinal, em um país com
tantas escolas cujos nomes rememoram personagens do passado que,
pelos seus atos, não mereciam ser homenageados, é sempre estimulante,
para um professor, ver reconhecido um colega que lutou pela educação;
principalmente quando ele é relembrando dando nome a uma instituição
de ensino. Além da importância de ter sido um dos signatários do Manifes-
to dos Pioneiros, de 1932, pretende-se, com esta biografia, expor o motivo
pelo qual Carlos Alberto Nóbrega da Cunha merece ser rememorado.
Em uma pesquisa bibliográfica, apesar de encontrar uma infinida-
de de textos sobre o Manifesto dos Pioneiros, há poucos resultados de
pesquisa sobre Nóbrega da Cunha. Entre esses resultados, também há os
trabalhos do professor Marlos Bessa Mendes da Rocha, que escreveu Nó-

1 Doutor em História. CV: http://lattes.cnpq.br/6427938680486263. E-mail: joaooliveiraramos-


neto@gmail.com.

89
brega da Cunha: denúncia e anunciação na introdução da obra A Revolução e
a Educação (2003) e, também, o verbete Carlos Alberto Nóbrega da Cunha no
Dicionário de Educadores no Brasil (2002). O trabalho de Marcus Vinicius
da Cunha O Manifesto dos Pioneiros de 1932 e a cultura universitária brasileira
é uma importante fonte sobre a atuação de Nóbrega da Cunha na IV Confe-
rência Nacional de Educação, que deu origem ao manifesto. O objeto deste
capítulo, porém, é investigar a vida de Nóbrega da Cunha, principalmente,
nos seus primeiros 35 anos, a fim de entender suas relações e experiências,
bem como a sua trajetória intelectual, que o levaram a assinar o manifesto.

O início

Carlos Alberto Nóbrega da Cunha nasceu em Dores do Pirahy,


atual Dorândia, distrito do município de Barra do Piraí, no estado do Rio de
Janeiro, em 4 de novembro de 1897. Filho de Celestino Gomes da Cunha e
Leocádia Nóbrega da Cunha, juntamente com sete irmãos. Naquela época,
Barra do Piraí estava no eixo da produção cafeeira. As fazendas da região
eram pertencentes ao cafeicultor José Gonçalves de Morais, conhecido
como Barão do Piraí. A família Nóbrega da Cunha era uma família rica e
tradicional de fazendeiros de café, e uma das fontes que comprova isso
é o convite para missa de sétimo dia do irmão de Carlos Alberto, Flávio
Nóbrega da Cunha, publicado no jornal A Noite, informando, ainda, que a
missa seria celebrada na igreja São Francisco de Paula, no Rio de Janeiro.
Mesmo Flávio tendo falecido em um distrito de Barra do Piraí, a missa foi
celebrada em uma importante igreja da capital, o que mostra a importância
daquela família naquela sociedade.
Além disso, Nóbrega da Cunha era sobrinho-neto do comendador
José Teixeira de Barros Nóbrega Sobrinho, vereador da primeira gestão da
Câmara Municipal de Barra do Piraí, de 1890 a 1892, e grande fazendeiro
da região naquela época.

90
Figura 1 – Fragmento do jornal Diário de Notícias, com o nome de Nóbrega da Cunha
como diretor.
Fonte: Biblioteca Nacional.

Jornalista profissional, Nóbrega da Cunha trabalhou em diversos


periódicos, como O Boa Noite (periódico da Real Sociedade Clube de Ginásti-
ca Português, do Rio de Janeiro), A Noite, Vanguarda, Rebate, O Brasil, Diários
Associados (Paraná), Diário de Notícias e A Nação. Ele também foi diretor e
fundador do Diário de Notícias, juntamente com Orlando Ribeiro Dantas.
Suas atividades tiveram início em junho de 1930, a partir da motivação por
conta da revolução tenentista que colocou Getúlio Vargas na presidência.
As publicações desse jornal finalizaram em 1974. Carlos Alberto também
atuou nas revistas O Cruzeiro e o Observador Econômico e Financeiro. Em

91
1932, trabalhou para a Agência Brasileira de Notícias, na França. Em 1933,
a serviço do jornal A Nação, acompanhou o presidente Getúlio Vargas em
sua viagem para o Nordeste. Além disso, trabalhou para a imprensa es-
trangeira como redator da “Associated Press” e da agência Reuter, e como
correspondente da Latin American Information – órgão autorizado pelo De-
partamento de Imprensa e Propaganda. Aos 33 anos, desenvolveu atuação
política na imprensa, fazendo a campanha da Revolução de 1930 (de 5 de
julho de 1922 até outubro de 1930), realizando também ação partidária no
estado do Rio de Janeiro.

Figura 2 – Nóbrega da Cunha (terceiro da esquerda para a direita) na redação do


jornal Diário de Notícias. Foto de 1930.
Fonte: acervo histórico do jornal Diário de Notícias.

Cunha foi um jornalista extremamente atuante e se interessava


pelos mais diversos assuntos: educação, religião, relações internacionais
e artes. Na área da religião, além de escrever uma série de reportagens
sobre a macumba, era membro atuante do espiritismo: “Orientado pelo
jornalista Nóbrega da Cunha, o professor Michailowsky criou a ‘Macum-
ba’, como uma obra de arte” (A NOITE, 11 de outubro de 1933, p. 5). Pelas

92
fontes, é possível notar que Nóbrega da Cunha tinha uma alma ecumênica,
já que, mesmo sendo de origem católica, participava de outras religiões:
“a assembleia [espírita] elegeu ainda o Corpo de Consultores composto
de [...] quinze espíritas brasileiros, aprovando parecer [...] de Nóbrega da
Cunha” (A NOITE, 4 de maio de 1927, p. 4). Além de diretor do Serviço
Nacional de Teatro e outros, sua atuação na área das artes se dava pela
organização da festa “Batuque e Samba”, que oferecia exposições e
danças, inclusive para convidados internacionais que iam, a convite dele,
prestigiar a festa. Foi também professor do Conservatório Nacional de
Teatro e, como estudioso do folclore nacional, articulou a aprovação da
proposta de criação dos museus de arte popular.
No dia 6 de julho de 1922, estourou a Revolução dos 18, do Forte
de Copacabana, e Carlos Alberto foi preso enquanto cobria o evento para o
jornal Vanguarda. O jornal A Noite, na edição do dia 7 de julho, que relata o
evento, faz um destaque para informar a situação do jornalista: “O senhor
Nóbrega da Cunha, redator da ‘Vanguarda’, preso hontem (sic) e recolhido
ao Campo de Segurança, foi posto em liberdade hoje, ao meio-dia” (A NOI-
TE, 7 de julho de 1922, p. 2).
A serviço da imprensa, esteve nos Estados Unidos para viver um
dos momentos mais marcantes da sua carreira como jornalista, cobrindo
o concurso internacional de beleza de 1929, uma espécie de antecessor
do atual concurso Miss Universo – que teve início em 1926 e aconteceu
até 1932 – na cidade de Galveston, no Texas. A participante brasileira (que
não levou o prêmio mundial), foi Olga Bergamini de Sá, eleita Miss Brasil
naquele ano e viajou na companhia de Nóbrega da Cunha: “Nóbrega da
Cunha voltou ligeiramente enfermo, pelo excesso, talvez, de suas ativida-
des jornalísticas em Galveston” (A NOITE, 19 de junho de 1929, p. 2).

Jornalista, político e educador

Nóbrega da Cunha começou sua carreira profissional muito jovem,


trabalhando como jornalista durante o dia e como professor no período
noturno, além de participar da política como membro do Partido Socialista

93
Fluminense. O jornalista também foi uma figura muito importante no ce-
nário político. Em uma publicação no jornal Diário do Paraná, em 4 de julho
de 1959, há uma reportagem informando sua chegada a Curitiba, naquela
data, por via aérea, a fim de ministrar um curso de extensão universitá-
ria sobre a Organização das Nações Unidas – ONU. A reportagem ainda
expressa: “o professor Nóbrega da Cunha concederá entrevista coletiva
hoje, às 11h30, no salão do Grande Hotel Moderno” (DIÁRIO DO PARANÁ,
4 de julho de 1959, p. 2). Nos dias seguintes, o jornal apresentou mais
reportagens sobre o curso que tinha como motivação o problema interna-
cional de refugiados. É importante ressaltar que, nessa época, a ONU havia
acabado de ser criada como consequência da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945): “O jornalista e educador Carlos Alberto Nóbrega da Cunha
foi nomeado para o cargo de vice-diretor do Centro das Nações Unidas no
Brasil” (A NOITE, 14 de junho de 1949, p. 6). Carlos Alberto também foi
eleito deputado federal em uma sociedade extremamente conservadora,
mesmo tendo ligações com religiões de matriz africana que, geralmente, é
alvo do preconceito dos praticantes do cristianismo, maioria esmagadora
daquela época. Ainda sobre a ONU, Marlos Rocha informa que em 1956,
Nóbrega da Cunha “recebeu o prêmio ‘24 de outubro’, distinção concedida
aos dedicados lutadores pelos ideais da ONU” (ROCHA, 2002, p. 213).

94
Figura 3 – Visita de Temístocles Cavalcanti e Carlos Nóbrega da Cunha à sede das
Nações Unidas, recebidos pelo senhor V. J. C. Stavridi em 22 de maio de 1951.
Fonte: Acervo do Cpdoc-FGV.

É natural questionar o motivo que levou cada autor a assinar o


Manifesto dos Pioneiros da Educação, e ainda questionar o que levou um
jornalista a fazê-lo, tendo a educação como sua bandeira de luta. Uma das
respostas que as fontes fornecem é a da experiência de Carlos Alberto com
viagens ao exterior que, provavelmente, o fizeram perceber a necessidade
de uma reformulação na educação brasileira.
Nóbrega da Cunha fazia muitas viagens: “Chegará hoje a esta capi-
tal, de regresso a Paris, onde se encontra como membro da Conferência de
Paz, o senhor Nóbrega da Cunha, diretor do Serviço Nacional de Teatro” (A
NOITE, 9 de setembro de 1940, p. 4). Sobre a Convenção Internacional do
Magistério Americano, realizada em 1930 no Uruguai: “Nóbrega da Cunha,
cuja presença na convenção já se considera resolvida, há informações de
que deverá vir pelos ares, em um dos aviões de passageiros da Aeropostale,

95
visto não dispor de tempo para viagem marítima” (A NOITE, 3 de fevereiro
de 1930, p. 3); ou “A bordo do paquete francez ‘Alsina’, partiu hoje, às 12
horas, para Gênova, o jornalista Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, no de-
sempenho de uma missão jornalística” (A NOITE, 15 de julho de 1932, p. 2).

Figura 4 – Reunião da Comissão Nacional de Ensino Primário. 18 de abril de 1939.


Rio de Janeiro. Carlos Alberto Nóbrega da Cunha é o segundo, em pé, da esquerda
para a direita.
Fonte: Acervo do Cpdoc-FGV.

96
Figura 5 – Reportagem do jornal A Noite com foto de Nóbrega da Cunha, de 2 de
setembro de 1949.
Fonte: Hermanoteca da Biblioteca Nacional.

Acreditamos que essas viagens ajudaram a moldar substancial-


mente a concepção de educação ideal para Nóbrega da Cunha. Em sua obra,
A Revolução e a Educação, o autor deixa evidente sua convicção de que, nos
processos educativos, deve haver abdicação de qualquer autoritarismo,
pois o ato educacional não se faz por imposição de modelos, mas pela con-
vivência dos diferentes. Dessa forma, imbuído de tais ideais, o jornalista

97
foi um ativista na área da educação, participando de várias conferências
nacionais e congressos internacionais. Na educação, talvez sua principal
atuação tenha sido durante o período da gestão de Fernando de Azevedo,
na direção-geral da Instrução Pública do Distrito Federal (1927-1930).
Segundo Marlos Rocha, “como jornalista, apoiou com entusiasmo
as reformas de Educação propostas por aquele educador, ali se iniciando
a amizade e colaboração entre eles” (ROCHA, 2002, p. 213). Na época que
assinou o Manifesto dos Pioneiros (1932), era diretor de Instrução Pública
do estado do Rio de Janeiro, permanecendo nessa função até 1933. Nóbre-
ga da Cunha também foi diretor do Departamento de Educação do estado
do Rio de Janeiro; superintendente-geral do Ensino Secundário do Minis-
tério da Educação (criado em 1931); diretor da Divisão do Ensino Primário
do Ministério da Educação – quando Gustavo Capanema era Ministro da
Educação e membro da Comissão Nacional do Ensino Primário. Além do
Manifesto dos Pioneiros, em 1959, também subscreveu o Manifesto dos
Educadores Democratas em Defesa do Ensino Público.
Para o professor Marlos Rocha, o fato mais significativo da mili-
tância de Nóbrega da Cunha talvez tenha sido sua intervenção durante a
IV Conferência de Educação, realizada no Rio de Janeiro, no final de 1931,
em que fez severas críticas ao discurso de abertura feito por Francisco
Campos e outras autoridades ali presentes. Com sua atuação, Carlos
Alberto conseguiu adiar para a próxima conferência o debate que defini-
ria o conceito de educação que nortearia a política governamental. Com
isso, conseguiu desfazer uma articulação que pretendia impor antigas
concepções católicas que manteria o dualismo entre escolas para o povo
e escolas para a elite.

Considerações finais

Segundo Marlos Rocha, o quadro propositivo apontado por Nóbre-


ga foi inovador, pois “expressou um ideário alternativo, em diálogo com a
diversidade, que contrariou políticas e ideologias modernizantes de impo-
sição cultural, que vicejaram em nossa história” (ROCHA, 2002, p. 2016).

98
Carlos Alberto Nóbrega da Cunha era um homem culto e, por isso,
sabia da importância da educação, principalmente para desenvolvimento
do país. Sua formação intelectual o fez se interessar por diferentes ma-
nifestações religiosas que, provavelmente, foi um dos motivos de lutar
por uma educação pública que se visse autônoma da igreja. Além disso,
conhecia a diversidade da cultura brasileira e sabia que era preciso uma
educação que valorizasse isso; e, com suas constantes viagens ao exterior,
teve contato com modelos que o fez perceber que a educação brasileira
precisava ser urgentemente revista.
Após todo trabalho desenvolvido, o escritor João Antônio, em en-
trevistas concedidas a jornais da época, informou que, em maio de 1970,
esteve com Carlos Alberto Nóbrega da Cunha no sanatório da Muda da
Tijuca, no Rio de Janeiro, onde Nóbrega da Cunha, aos 72 anos, era tido
como caduco e esclerosado. O jornalista faleceu em 11 de agosto de 1974,
no Rio de Janeiro, aos 77 anos.

REFERÊNCIAS

A NOITE. Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, RJ: Hemeroteca Digital; Publicações Seriadas, s.d.
Disponível em: https://www.bn.gov.br/acervo/periodicos. Acesso em: 30 mar. 2021.

CAMARA, S.; ROBERTO, J. de C. Entre o “sonho” e a “ação”: a infância e sua educação nas crôni-
cas de Cecília Meireles no jornal Diário de Notícias, de 1930 a 1932. Educação em Foco, ano 20,
n. 30, p. 39-58, jan./abr. 2017.

CUNHA, M. V. da. O Manifesto dos Pioneiros de 1932 e a cultura universitária brasileira. Revista
Brasileira de História da Educação, v. 8, n. 2 [17], 2008.

CUNHA, N. da. A revolução e a educação. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Diário de Notícias,
1932.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, RJ: Hemeroteca Digital; Publicações
Seriadas, s.d. Disponível em: https://www.bn.gov.br/acervo/periodicos. Acesso em: 30 mar. 2021.

DIÁRIO DO PARANÁ. Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, RJ: Hemeroteca Digital; Publicações
Seriadas, s.d. Disponível em: https://www.bn.gov.br/acervo/periodicos. Acesso em: 30 mar.
2021.

ROCHA, M. B. M. da. Carlos Alberto Nóbrega da Cunha. In: FÁVERO, L. de A.; BRITTO, J. de M.
Dicionário de educadores do Brasil: da colônia aos dias atuais. 2. ed. aum. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ; MEC/Inep/Comped, 2002.

XAVIER, L. N. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova como divisor de águas na História
da Educação Brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.

99
CAPÍTULO VII

CARLOS MIGUEL
DELGADO DE CARVALHO

Wilson Alves de Paiva1

Carlos Miguel Delgado de Carvalho, embora tenha nascido fora


do Brasil e antes da República, veio a ser um dos maiores estudiosos
do país e um defensor dos princípios republicanos. Seu pai, Carlos Dias
Delgado de Carvalho (1854-1915), encontrava-se na França a serviço da
Coroa brasileira, como secretário da delegação consular do Império, em
Paris, quando sua esposa, Lydia Tourinho Delgado de Carvalho (1856-
1884), deu à luz em 10 de abril de 1884 e faleceu poucos dias depois,
em 8 de maio. Batizado na Igreja de Saint Philipe de Roulle, em Paris, o
pequeno Carlos foi entregue à avó materna – Maria da Conceição Sobá-
ran, a Viscondessa de Tourinho (1831-1894) – e criado por ela até os 7
anos de idade, na Inglaterra, e, depois, foi criado pelos tios maternos, os
quais não tinham filhos. Após o segundo casamento de seu pai, em 1891,
voltou ao continente para residir na Suíça e na França, onde cursou a
educação básica no Colégio São Tomás de Aquino (dominicano), em Lyon,
e lá permaneceu dos 11 aos 18 anos. Foi também em Lyon que Delgado

1 Doutor em Filosofia da Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/7384413996427337. E-mail:


scriswap@ufg.br.

100
de Carvalho concluiu, em 1905, seu Bachelier de l’Enseignement Secondaire
Classique e fez o curso de Direito na Universidade de Lousanne, na Suíça,
para logo completar, em 1908, sua formação acadêmica em Diplomacia e
Science Politique, pela École Libre des Sciences Politiques de Paris e pela
London School of Economics, de Londres.
No colégio, foi chefe do partido bonapartista, demonstrando sua
capacidade de se relacionar bem no mundo social. Com esse cargo, é óbvio
que compartilhava certas ideias imperialistas, mas talvez foi mesmo a
figura carismática e popular de Bonaparte que chamou sua atenção, o que
o levou a intentar uma vida militar, a qual logo abandonou por causa da
contração de tifo, em Marselha, em 1904. O desenvolvimento da rebeldia,
própria do adolescente, colocou-o contra o espírito de nobreza e, assim,
passou a namorar o republicanismo, aprofundando suas leituras em obras
do estilo de Os Miseráveis, de Victor Hugo, chegando mesmo a cotejar o
socialismo2, embora sempre defendendo os valores democráticos, o
progresso e a utilidade dos conhecimentos científicos, em uma mistura de
liberalismo, utilitarismo e positivismo. Foi essa rota, portanto, que consti-
tuiu sua base intelectual e sua forma de ver o mundo.
Também pode ser classificada, nesses moldes, a perspectiva da
educação reservada às boas famílias da belle époque, sobretudo com a
valorização do domínio dos conhecimentos clássicos nos três principais
idiomas extremamente valorizados desde o século XIX: o francês, o inglês e
o alemão. Delgado de Carvalho dominava essas línguas, além do português
o qual começou a aprender a partir de 1903, quando veio ao Brasil pela
primeira vez, a fim de estudar o país para concluir sua tese de doutorado
e obter seu diploma. A pesquisa que empreendeu levou o título de: Une
centre economique du Brésil – L’État de Minas, aprovada em 1905. O contexto
europeu possibilitou ao jovem um intenso contato com as ideias liberais e
democráticas, discutidas ardorosamente pelos intelectuais desse período,
tendo evidentemente Paris como seu epicentro. A partir desse contato, re-

2 Castro (2009, p. 25) diz que: “Em contrapartida se dizia socialista, pois nesse mesmo ano de
1894 uma lei permitia a formação de Sindicatos exigidos pelos comunistas, que daria, no ano
seguinte, origem à Confederação Geral do Trabalho – CGT à qual caberia a imposição das leis
trabalhistas”.

101
alizado não apenas nos meios acadêmicos, mas até nos cafés parisienses,
Delgado de Carvalho começou a defender, tanto em seus discursos como
em suas obras, a crença no espírito do progresso e da liberdade do homem.
Tais ideias estavam em voga não somente no continente europeu, tendo
em vista o franco desenvolvimento técnico e da produção industrial, mas
se espalhava por todo o mundo.
Mesmo vivendo no “centro do mundo” – Paris e, por extensão, as
demais capitais europeias – o Brasil foi sua paixão. Aliás, foi por esse motivo
que seu pai, um defensor ardoroso da monarquia e do Império brasileiro, que
tinha inclusive o apresentado ao D. Pedro II e à princesa Isabel, em Paris,
acabou por romper as relações com o filho. Isso se deu porque ignorou o
aviso de que, se pusesse os pés no Brasil, seria deserdado e cortadas para
sempre as relações familiares. Porém, como ele veio ao Brasil, mesmo
assim, o rompimento aconteceu e lhe foi solicitado que não usasse mais o
mesmo nome que era praticamente igual ao de seu pai. Assim, o “Miguel”,
que complementa seu nome, passou a ser um diferenciador e a figurar em
diversos documentos, sobretudo a partir de 1906, quando se transferiu
definitivamente para este país. A paixão não foi apenas pelo país e sua cul-
tura, mas por Maria Vera de Oliveira Roxo (1884-1962), com quem se casou
logo depois, em 1908. Ela, também nascida em Paris, era irmã de Mathias
Gonçalves de Oliveira Roxo (1881-1909), ex-colega de escola, de Delgado de
Carvalho, na capital francesa. Como relata Coelho (2007, p. 19), “Delgado fez
o caminho inverso de muitos intelectuais brasileiros que sonhavam estudar
na França”.
Delgado de Carvalho iniciou sua vida profissional no jornalismo, es-
crevendo sobre política e relações internacionais para os jornais da Suíça e
França, e logo que chegou, passou a trabalhar no Jornal do Comércio, no Rio
de Janeiro, e na Revista Americana, periódico lançado pelo mesmo jornal,
em 1909, o que o possibilitou ampliar suas relações com os intelectuais
brasileiros, os quais já tivera contato em antes, em Paris. O jornalismo
sempre foi sua paixão e foi, inclusive, correspondente de guerra na Europa,
durante a Primeira Guerra Mundial. No entanto, como não se contentava
em apenas observar e relatar os fatos, passou a pensá-los e, dessa forma,

102
a experiência da guerra o ajudou a escrever um livro sobre as relações
internacionais, no qual demonstra um bom conhecimento sobre questões
políticas, sociológicas e filosóficas. Inclusive, nessa obra, Delgado de Car-
valho condena o colonialismo e defende o uso das ciências para a formação
das novas gerações, dentre elas a “ciência da educação” (CARVALHO,
1971). Essas ideias defendidas por ele, certamente, o aproximaram dos
demais pioneiros com os quais já tinha tido algum contato.
A educação é, portanto, um outro capítulo de sua vida. Iniciou sua
carreira de professor ainda na Europa, no colégio de Chapitet, em Lausan-
ne, na Suíça, onde lecionou História Moderna. Porém, foi no Brasil que o
magistério passou a fazer parte de sua vida de forma intensa e, por meio
dele, chegou a conhecer, com mais profundidade, a Escola Nova e, assim,
defender os princípios dela. Aprovado no concurso, lecionou inglês e socio-
logia no prestigiado Colégio Pedro II, a partir de 1920, chegando inclusive a
exercer também o cargo de diretor, nos anos de 1930 e 1931, nomeado pelo
presidente Getúlio Vargas e pelo Ministro da Educação, Francisco Campos,
com os quais tinha um bom relacionamento. Atuou também no Instituto de
Educação, na cadeira de sociologia (1923), além de ter lecionado História
Contemporânea no Colégio Bennet (1925), na Universidade do Distrito
Federal (1936), entre outras instituições, como a Faculdade de Filosofia e
o Instituto Rio Branco (Itamaraty). Tudo isso nos revela a dimensão de sua
intelectualidade, composta por uma formação geral e humanística sólida,
característica dos demais signatários. Entretanto, em alguns aspectos,
Delgado de Carvalho sobrepujava a muitos, tendo em vista sua vivência
na Europa, o fato de ter sido poliglota e a profícua atuação no magistério.
Fernando Segismundo, seu aluno no Colégio Pedro II, retrata seu
admirado mestre no livro Memória de estudante, dizendo que o mesmo
ensinava “sempre de guarda-pó branco e cachimbo na boca, deslocava-se
rápido e bem-humorado. Suas aulas divertiam-nos” (SEGISMUNDO, 1987,
p. 67).
Como diretor, tentou aplicar algumas ideais escolanovistas e mu-
dou os ânimos do colégio, tentando quebrar um pouco a rígida doutrina
tradicional. Por exemplo, afastou os inspetores e implantou o autogoverno

103
dos alunos, isto é, uma ideia que vem dos princípios libertários presentes
na obra do catalão Francisco Ferrer Guardia (1859-1909), cuja vida e obra
eram, certamente, do conhecimento de Delgado de Carvalho. Também,
incentivou as atividades extracurriculares culturais e recreativas; estabe-
leceu um conjunto teatral, além de ter providenciado farta merenda aos
alunos e permitido a criação de seus clubes. Uma pequena gestão, mas
que ficou marcada pelas melhorias até nos componentes curriculares e na
didática, como a implantação de salas/laboratórios de geografia e História
Universal (bem no espírito do pragmatismo). Com o domínio do inglês, a
obra do filósofo John Dewey (1859-1952) fazia parte da lista de suas lei-
turas. O autor relata que todas essas medidas renovadoras mexeram com
os ânimos dos letárgicos e conservadores: “foi como se o lobo assaltasse o
curral” (SEGISMUNDO, 1987, p. 68), o que levou a ser caluniado, perseguido
e deposto da direção.
Sua produção bibliográfica não foi diferente. Em 1908, publicou
sua tese, Un centre économique au Brésil – Minas Gerais; em 1910, publicou,
também em francês, o livro Le Brésil Meridional: Étude économique sur les
États du Sud – São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, assinando ainda com o
“Miguel” para diferenciar do nome de seu pai que ainda estava vivo.
Em 1913, publicou seu primeiro livro em português: Geografia do
Brasil, dedicado ao Imperador D. Pedro II, o que foi um marco de uma nova
geografia, fundada no discurso regional e na doutrina científica de foco
no empírico, tal como foi defendida pelo catedrático de Oxford, Halford
Mackinder (1861-1947), um de seus inspiradores. Nessa obra, Delgado de
Carvalho volta o olhar para o interior do Brasil, para os sertões, mas sem
se afastar da perspectiva global. Em 1914, quando seu pai faleceu, deixou
de usar o acréscimo do nome.
Em 1916, lança o Méteorologie du Brésil, além de diversos outros
escritos, totalizando quase 50 obras nos campos da geografia, das letras,
das relações internacionais, da sociologia, da história, da economia e da
didática. Ou seja, um verdadeiro intelectual do pleno sentido do termo, ca-
paz de pensar os problemas brasileiros, bem como a cultura e a educação
do país. Como se pode ver nas biografias dos signatários, os “intelectuais”,

104
ou ainda, os “pioneiros” eram homens de letras, entendendo, por isso, o
domínio não apenas da letra vernácula, mas da literatura, da cultura, dos
problemas sociais, da política e da filosofia, embora tivessem formações
acadêmicas diversas, como direito, medicina, jornalismo, entre outras.
No campo educacional, destacam-se as obras que buscaram focar
a geografia, a didática e os problemas sociais brasileiros, como Metodologia
do ensino de geografia, publicada em 1925; Geografia ginasial (para as quatro
primeiras séries), de 1943; Didática das ciências sociais, de 1950; Elementos
de sociologia educacional, de 1951, para ser utilizada no Curso Normal; e
Introdução metodológica aos estudos sociais, de 1955.
No campo da geografia, seu nome foi extremamente significativo,
tanto que foi considerado o “pai da moderna geografia brasileira” (IBGE,
2009). Pode-se, também, classificá-lo como um dos “pais da educação
brasileira”, por sua vasta produção e pela atuação nas instituições científi-
cas, as quais ajudou a fundar, além de ter contribuído com os estudos em
história e, junto com Fernando de Azevedo, com a consolidação da sociolo-
gia no Brasil. Seu livro de 1913, Geografia do Brasil, traz, por exemplo, o país
dividido em cinco regiões – setentrional, nordestino, oriental, meridional
e central – algo muito inovador. Em 1916, atuou como “professor extra-
ordinário de altos estudos”, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
e, também, participou do Conselho Nacional de Geografia e da Sociedade
Geográfica do Rio de Janeiro, em 1920. Com essa experiência, redigiu ma-
nuais de ensino de geografia e de história, considerados como referência
para as escolas de educação básica de várias regiões do Brasil, nas décadas
de 1940 a 1960, como o livro História Geral que fazia parte da Campanha
do Livro Didático e Manuais de Ensino (Caldeme), criada por Anísio Teixeira
ao assumir, em 1952, o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – Inep.
Mesmo que tenha sido amigo de Anísio Teixeira e Fernando de
Azevedo, e tenha estado presente no momento da assinatura do manifes-
to, a relação com os demais membros e com o movimento dos educadores
novos como um todo foi discreta. Tanto que na obra Introdução ao estudo da
Escola Nova, de Lourenço Filho, seu nome não foi mencionado. Igualmente,

105
mesmo com sua formação política e diplomática, seu relacionamento com
o movimento de progresso da Segunda República também foi discreto.
Entretanto, sua contribuição na educação foi significativa, pois,
como estava ligado às escolas normais, pôde conhecer a realidade delas,
bem como seus problemas reais, e passou a defender, tal como todos os
signatários do manifesto, que o ideal de uma escola “nova”, isto é, renovada
em relação à escola tradicional, é que melhor respondia à necessidade das
normalistas aplicarem na prática pedagógica o gosto pelas ciências nas-
centes e despertar nos educandos o prazer pelos estudos, sobretudo com
experimentos práticos e não com a simples transmissão do conhecimento
e a memorização.
Na introdução do livro Geografia do Brasil, há a informação de que era
preciso apresentar a disciplina não de forma austera e ingrata ao estudo,
mas com bons mapas, gráficos, diagramas e figuras. Porém, mesmo que
defendesse uma pedagogia nova, sua narração do Brasil, quando escrevia
suas cartas ou seus discursos, não era vanguardista e entusiasmada, tal
como se davam as narrações dos franceses que aportaram no Brasil, no
início do século, como Darius Millaud (1892-1974), por exemplo.
Millaud (escreve-se também Milhaud), o conhecido compositor e
professor, de Marselha, passou um período no Brasil, como adido cultural
da França, e se apaixonou pela cultura deste país de tal modo que, depois
de regressar para sua terra, reunia-se com amigos intelectuais para cantar
a “saudade do Brasil” (BOPP, 1966, p. 15). As conversas do grupo eram
de entusiasmo geográfico sobre um Brasil imaginário, cordial e utópico.
Portanto, não é esse “Brasil de Paris” que vamos encontrar na produção
de Delgado de Carvalho, embora fosse um francês de nascimento, pois não
gostava da imagem fantasiada do Brasil. Tanto que, em uma viagem aos
Estados Unidos, em 1940, quando entrevistado por um jornalista ame-
ricano que o indagou sobre o que achava de Carmem Miranda, Carvalho
perguntou: “Quem é Carmem Miranda”? (MENEZES, 1980, p. 113).
Um outro ponto em comum que tinha com grande parte dos cole-
gas signatários era a defesa da escola pública e da existência de institui-
ções para o fomento da ciência. Por esse motivo, participou ativamente da

106
criação da Associação Brasileira de Educação – ABE, em 1924, tendo sido
o primeiro presidente desse órgão. Além disso, foi membro do Conselho
Nacional de Educação, atuando como representante do Ensino Secundário
Federal (nomeado pelo Decreto 19.850, de 11 de abril de 1931). Também,
foi membro da Comissão do Livro Didático, nomeado em 1939 por Getúlio
Vargas, quando ajudou a produzir os compêndios escolares que davam
ênfase à aplicação prática dos conhecimentos geográficos, históricos e so-
ciológicos em geral, com vistas a resolver os problemas brasileiros, o que
deveria ser feito pela metodologia da pesquisa-ação (proposta por Dewey),
a partir do levantamento de dados e da análise autônoma do aluno.
Convidado por Anísio Teixeira, assumiu em 1932 a cátedra de
Sociologia Educacional, disciplina criada em 1927. Uma amizade que se
solidificou ao longo dos anos. Sobre isso, Delgado de Carvalho escreveu:
“Quando penso na obra de Anísio Teixeira convenço-me cada vez mais de
que não é nos congressos de centenas de delegados, nem nos conselhos
de dezenas de membros, nem mesmo nas comissões de três ou quatro
técnicos que são delineados os grandes planos”, e continua: “É nas dis-
cussões em que o ascendente espiritual de um só, ouvindo e escolhendo
as opiniões autorizadas, determinam as medidas decisivas” (CARVALHO,
1960, p. 227).
A convite de cientistas norte-americanos, em 1928, Delgado de
Carvalho participou de uma viagem de intercâmbio cultural ao Summer
School for American Teachers. Sua destacada atuação no programa de
intercâmbio, em 1929, levou doze educadores brasileiros aos Estados
Unidos, fato que lhe valeu o convite do Carnegie Endowement para o cargo
de visiting professor nas universidades americanas de Washington and Lee,
na Virgínia; na Rice Institute, do Texas; e na Universidade de Michigan, em
1940, ampliando seu reconhecimento internacional. Deu cursos de Ciên-
cias Políticas nos Estados Unidos durante as décadas de 1940 e 1950, e foi
convidado pela Unesco para organizar e dirigir o Seminário de Geografia de
Montreal, o que lhe proporcionou maior projeção fora do país.
Contudo, sua realização pessoal foi no magistério. Deu aula até
1960, quando suas cordas vocais o impediram de continuar. Assim,

107
certamente, foi professor de figuras importantes do cenário brasileiro e,
no anedotário de sua vida, consta que não costumava reconhecer seus
ex-alunos quando os reencontrava. Em certa ocasião, uma dessas figuras
foi visitá-lo no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o reconheceu
efusivamente, dizendo: “Olá, professor, como vai? Sabe, eu fui seu alu-
no”. A resposta do mestre foi humorada: “Meus pêsames, meu filho”; e,
consultando sua colaboradora, Therezinha de Castro (1930-2000), per-
guntou: “Quem é esse aí?”, e a resposta mais hilária foi: “É o presidente
da República, Castello Branco!”.
Sobre ele, a professora Therezinha de Castro, do Colégio D. Pedro II
e funcionária do IBGE, diz:

Toda essa História por ele presenciada era contada e revivida,


nos mínimos detalhes, em nossas conversas para descanso
do almoço em seu apartamento na Siqueira Campos, n° 7.
Sentado na sua bergère predileta, num ângulo entre duas es-
tantes de livros, coincidentemente, relativos ao Brasil, entre
baforadas do seu cachimbo, alimentado pelo fumo Half and
Half, ele me transportava para esse passado tão remoto para
mim, mas sempre presente para ele (CASTRO, 2009, p. 78).

Agraciado com prêmios e condecorações por diversas instituições,


como a American Geographical Society, com a medalha David Livingstone
(1952) e a condecoração francesa Legion d’Honneur, faleceu em 4 de
outubro 1980, no Rio de Janeiro, com 96 anos, deixando dois filhos: Lidia
Maria Teresa Delgado de Carvalho e Carlos Alberto Raimundo Delgado de
Carvalho, ambos falecidos. Lidia não deixou descendentes, mas Carlos
Alberto, quando faleceu, em 1966, deixou uma numerosa família que até
hoje honra o nome de Delgado de Carvalho, não se esquecendo do vovô
“Bread” (pão), como era chamado por seus familiares.
Créditos da foto: Maria Célia Delgado de Carvalho
Agradecimentos: Agradecemos aos membros da família Delgado de
Carvalho e da família Tourinho que nos forneceram valiosas informações,
em especial: Caio César Tourinho, Maria Célia Delgado de Carvalho, Ro-
berto Delgado de Carvalho, Paulo Delgado de Carvalho e Luisa Delgado
de Carvalho.

108
REFERÊNCIAS

ANDRADE, V. L. C. Delgado de Carvalho e a opção pela educação brasileira. In: Sim-


pósio Nacional de História, 27., 2013, Natal. Anais [...]. Natal: Anpuh, 2013. p. 1-9.
Disponível em: http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364407608_
ARQUIVO_DELGADODECARVALHO_VERA.pdf. Acesso em: 10 set. 2017.
BOPP, R. Movimentos modernistas no Brasil: 1922-1928. Rio de Janeiro: Livraria São
José, 1966.
BRITO, S. H. A. de. Os compêndios produzidos por Carlos Miguel Delgado de Carvalho
para o ensino de sociologia no Colégio Pedro II (1931-1938). In: SEMINÁRIO NACIO-
NAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”,
9., 2012, João Pessoa. Anais [...]. João Pessoa, 2012. p. 9.
CARVALHO, C. M. D. de. Anísio, Vulcão de Idéias. In: AZEVEDO, F. de. Anísio Teixeira:
pensamento e ação. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1960.
CARVALHO, C. M. D. de. Geographia do Brasil. Rio de Janeiro: Emp. Photo-Machanic
do Brasil, 1913.
CARVALHO, C. M. D. de. Relações internacionais. São Paulo: Biblioteca do Exército
Editora, 1971.
CASTRO, T. Delgado de Carvalho. Geografia e Geopolítica: a contribuição de Delgado
de Carvalho e Therezinha de Castro. Rio de Janeiro: IBGE, 2009.
COELHO, P. A voz do mestre: trajetória intelectual de Carlos Delgado de Carvalho.
2007. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em
Educação, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
FILHO, L. Introdução ao Estudo da Escola Nova. 14. ed. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002.
IBGE. Geografia e Geopolítica: a contribuição de Delgado de Carvalho e Therezinha de
Castro. Rio de Janeiro: IBGE, 2009.
MENEZES, E. C. de. Carlos Delgado de Carvalho: idéias e ideais. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Brasília; Rio de Janeiro, v. 329, p. 105-118, 1980.
SEGISMUNDO, F. Memória de estudante (Colégio D. Pedro II). Rio de Janeiro: Ebal,
1987. Edição comemorativa do sesquicentenário 1837-1987.

109
CAPÍTULO VIII

CECÍLIA BENEVIDES
DE CARVALHO MEIRELES

Giselle Lourenço de Sousa Silva1

Cecília Meireles é reconhecida pela crítica especializada como sen-


do uma das mais importantes poetisas do país. Entretanto, este texto não
aborda essa Cecília, mas a mulher, intelectual, educadora, formadora de
opinião, jornalista combatente, corajosa e preocupada com os problemas
educacionais do povo brasileiro, que lutava e defendia suas ideias, e ideais
acerca da educação.
Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu em 7 de novembro
de 1901, no Rio Comprido. Filha do funcionário do Banco do Brasil, Carlos
Alberto de Carvalho Meireles, e da professora de Ensino Primário da escola
pública do Distrito Federal (Rio de Janeiro), Mathilde Benevides Meireles.
Cecília ficou órfã de pai três meses antes de nascer e perdeu a mãe aos três
anos de idade, e outros três filhos que os pais de Cecília tiveram morreram
antes que ela nascesse. Em função da morte dos pais, Cecília foi criada
pela avó materna, Jacintha Garcia Benevides, de origem açoriana. Além
da avó, conviveu durante toda a infância com a babá Pedrina, responsável

1 Mestre em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/9449490396806436. E-mail: helolauargi@


hotamail.com.

110
por narrar histórias e lendas que encantavam a infância da autora. Quando
adulta, segundo Lamego (1996, p. 57), Cecília “[...] levava uma vida modes-
ta. Morava no Estácio e não tinha riqueza de família, uma vez que esta, se
reduzia a sua avó”.
Aos 21 anos, Cecília Meireles se casou com o pintor e desenhista
português Fernando Correia Dias, com quem teve três filhas. Em 1934,
após a morte do marido, teve que assumir sozinha a criação das crianças.
Como dito anteriormente, a autora não possuía riquezas de família, depen-
dendo, portanto, do seu trabalho para sobreviver. Nessa luta constante,
empreendeu diferentes formas de subsistência, como atividades no ma-
gistério, traduções e trabalhos realizados em diferentes jornais, servindo
como uma forma de aumentar a renda e manter o sustento da família. Em
1940, casou-se com o professor e engenheiro Heitor Vinícius da Silveira
Grillo, com quem permaneceu até sua morte em 9 de novembro de 1964.

A Cecília educadora

Cecília viveu em uma época em que, à mulher, estava reservado o


papel de cuidadora do lar e dos filhos. Uma das possibilidades de atuação
para as raras mulheres, que conseguiam se libertar desse papel, único e
predefinido, era o trabalho como professora (na maioria das vezes, primá-
ria). Foi por esse caminho que a autora iniciou a trajetória que a levaria
a participar do tão masculino mundo intelectual da primeira metade do
século XX.
O caminho trilhado por Cecília, no magistério, foi longo e diverso.
Segundo Azevedo Filho (2007), ela lecionou em todos os níveis de Ensino
(Fundamental, Médio e Superior), e era muito querida por seus alunos.
Além de atuar como professora, também foi diretora de escola, função que
exerceu antes de se aposentar.
No Brasil, além das aulas em escolas públicas primárias e na Es-
cola Normal, foi professora de Literatura Brasileira e de Técnica e Ciência
Literária na Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro. A partir
de 1940, a autora se tornou educadora itinerante graças a um convite da
Universidade do Texas para lecionar Literatura e Cultura Brasileira. Então,

111
percorreu vários países, proferindo conferências e palestras sobre varia-
dos temas da cultura e literatura brasileira. Antes, em 1934, havia viajado
para Portugal pela primeira vez, em companhia de Correia Dias, onde foi
recebida com reconhecimento e prestígio ainda não alcançados no Brasil.
Também proferiu, nas Universidades de Lisboa e Coimbra, conferências
sobre folclore brasileiro, literatura e poesia no Brasil e sobre as reformas
educacionais em curso em seu país.
Ligando suas atividades do magistério e da literatura, encontra-se
um enorme acervo de textos sobre temas variados, enfocando educação,
arte e cultura, elaborados para serem proferidos em palestras e confe-
rências no Brasil e em diferentes países, como Portugal, Estados Unidos,
México, Uruguai, Argentina, França, Índia, Goa, Porto Rico e outros.
Ao longo de sua trajetória como poeta e educadora, a preocupação
com a infância sempre esteve presente nas obras de Cecília. Logo nos
primeiros anos da carreira de educadora, ela percebeu, entre as muitas
fragilidades do sistema educacional, a falta de material didático e literário
adequados à infância. Buscando amenizar tal problema, dedicou-se a pro-
duzir e publicar obras voltadas ao público infantil, iniciando, em 1924, com
o livro Criança, meu amor, que contava com ilustrações de Correia Dias2,
e, nas décadas seguintes, os livros A festa das Letras (em parceria com o
médico Josué de Castro3), Rute e Alberto resolveram ser turistas, Olhinhos de
gato (há controvérsias sobre a classificação como infantojuvenil); Giroflê,
Giroflá; e Ou Isto ou Aquilo considerado um clássico da literatura infantil,
presente em bibliotecas de todo o país, e frequentemente citado nas listas
de obras infantis mais apreciadas por muitos educadores.
Definida por si mesma como a “inúmera”, a “múltipla”, Cecília não
poderia ter usado adjetivos mais adequados. Ao longo de toda a vida, a

2 O livro foi adotado pela Diretoria-Geral de Instrução Pública do Distrito Federal e aprovado
pelo Conselho Superior de Ensino dos Estados de Minas Gerais e Pernambuco (MEIRELES, 1994,
p. 97 apud ZILBERMAN, 2001).
3 Josué de Castro (1908-1973) foi um reconhecido médico, professor, escritor e ativista,
que deu especial atenção à nutrição e às mazelas decorrentes da má alimentação, moradia
e higiene. Além disso, destacou-se no cenário brasileiro e internacional, não só pelos seus
trabalhos ecológicos sobre o problema da fome no mundo, mas, também, no plano político, em
vários organismos internacionais.

112
autora deu várias provas de sua multiplicidade. Ela teve importante e ativa
atuação no magistério; extensa e reconhecida produção literária no gênero
poético destinado ao público adulto e infantil; preocupação e ação no
sentido de produzir obras que suprissem a deficiência de material didático
adequado ao público infantil; atuou ainda como folclorista, tradutora e
cronista de diferentes jornais.
Em 1934, Cecília foi designada a atuar no Instituto de Pesquisas
Educacionais e, no mesmo ano, recebeu do diretor da Instrução Pública
do Distrito Federal, Dr. Anísio Teixeira, a missão de organizar e dirigir a
primeira biblioteca infantil pública brasileira. Cecília se dedicou com afinco
a essa missão, visto que, há muito, vinha tratando, em suas crônicas, da
importância da literatura para a formação das crianças, da necessidade
de se melhorar o acesso destas às boas obras, e da escassez de bons e
adequados livros dedicados à infância.
Podemos classificar o Pavilhão Mourisco, como ficou conhecida a
biblioteca, como um dos grandes projetos educacionais que teve a parti-
cipação direta de Cecília Meireles. A partir dele, muitas outras bibliotecas
infantis foram empreendidas por todo o país. Mesmo assim, o espaço foi
invadido e fechado pela polícia do Estado Novo, sob a alegação de abrigar,
em seu acervo, um livro com conotações comunistas. Esse foi um duro
golpe na trajetória da autora, que sempre lutou e acreditou na construção
de um mundo melhor por meio das obras de educação; e a literatura, como
fica evidente em suas crônicas, enquadrava-se perfeitamente entre estas.
Na primeira década de sua longa trajetória profissional, Cecília se
candidatou, em 1929, a uma vaga de professora de literatura da Escola
Normal do Distrito Federal. O concurso aconteceu em 1930 e consistia,
inicialmente, na apresentação e defesa de uma tese. Cecília apresentou a
tese O espírito victorioso, na qual abordava muitos dos princípios da Escola
Moderna que vinham sendo difundidos pelo mundo na última década, e,
ainda, destacou no texto princípios de liberdade, inteligência, estímulo à
observação e à experimentação.
Roberto (2013) defendeu que a participação da educadora nesse
concurso foi o pontapé inicial para a inserção dela nos debates e embates

113
educacionais e políticos em torno dos princípios escolanovistas, em cres-
cente expansão naquele momento.

Depois da defesa da Tese, somente dois postulantes ao


cargo prosseguiram: Cecília Meireles e o professor Clóvis
do Rego Monteiro, que havia defendido a Tese Traços do
Romantismo na Poesia Brasileira [...]. Este episódio marcou a
entrada de Cecília Meireles em cena, uma vez que o concurso
não foi feito, segundo ela, com a lisura necessária, colocando
Clóvis do Rego Monteiro, em primeiro lugar, com notas pouco
justificáveis (ROBERTO, 2013, p. 27).

O concurso contou com grande repercussão na imprensa e des-


pertou bastante interesse no público que acompanhou as notícias do
julgamento dia a dia. A fase final do concurso coincidiu com o início da
atuação de Cecília na Página de Educação do Diário de Notícias. No espaço
intitulado “Comentários”, a autora apontou o perigo de a renovação educa-
cional não ocorrer caso os processos de escolha e avaliação de professores
continuassem a cargo de membros declaradamente conservadores e
contrários aos princípios da Escola Nova. Cecília indicava, como um dos
pontos principais na reforma educacional, a formação de professores que
deveriam estar expostos aos conhecimentos sobre as novas e modernas
teorias educacionais (LÔBO, 2010).

Engajamento político

Cecília teve intensa participação no cenário político de sua época,


especialmente, no que se referia a questões educacionais. Em um ambiente
predominantemente masculino e em uma época em que não era reservado
às mulheres nem mesmo o direito ao voto, Cecília conseguiu se fazer ouvir
e promoveu um relevante debate público em torno de questões acerca
da educação, utilizando como veículo a imprensa escrita, instrumento ao
qual a autora creditava grande responsabilidade educativa e alto poder de
alcance e repercussão.
Segundo a própria Cecília, em uma de suas crônicas4, o jornal vinha,
com o tempo, substituindo as bibliotecas e era, portanto, o veículo de co-

4 Crônica A responsabilidade da imprensa (MEIRELES, 2001, v. 4, p. 169-170).

114
municação mais utilizado para aquisição de informações e conhecimentos
por parte da população letrada. A autora defendia, com frequência, a grande
importância da imprensa na formação – e não apenas na informação – da
população. Justamente em função dessa importância, Cecília chamava os
jornalistas para assumirem a responsabilidade moral e ética por tudo o que
divulgavam; e não defendia censura por meio das autoridades, mas acre-
ditava ser necessária uma autocensura a ser realizada por cada jornalista a
partir de sua própria consciência.
Nos primeiros anos da década de 1930 (1930-1933), a escritora
dirigiu A Página de Educação do “Diário de Notícias”, onde se propunha
a comentar, discutir e julgar diferentes experiências e propostas que
vinham sendo experimentadas em escolas do Distrito Federal (Rio de
Janeiro, naquela época) e de outros estados. A autora também abria
espaços para debates e reflexões sobre diferentes temas relacionados
à educação, e dialogava com educadores da época, como Anísio Teixeira,
Fernando de Azevedo, Frota Pessôa, entre outros. Além das crônicas,
Cecília também publicava entrevistas e artigos escritos por especialistas
da área educacional.
Cecília se utilizou da imprensa (jornais, revistas) como um dos ca-
minhos para construir o seu perfil intelectual. Como jornalista, foi além da
divulgação de acontecimentos, “queria mediar o debate, interferir no jogo
político, produzir fatos, mudar o rumo, indicar caminhos, colocar em cena o
ponto de vista de um grupo cujos interesses julgava representar” (MIGNOT,
2001, p. 161). Serviu-se da imprensa também para divulgar seus trabalhos
literários, como poesias e crônicas variadas.
A Página de Educação foi criada com o objetivo inicial de servir como
veículo de difusão e defesa das ideias do grupo dos renovadores da escola
brasileira. Nesse espaço, os propositores do jornal se valeram de entrevis-
tas, artigos e crônicas diárias, abordando assuntos relacionados ao sistema
educacional do país. Em decorrência da Revolução de 1930, da instalação
do Governo Provisório e de todas as alterações vividas na sociedade, em
função desses acontecimentos, Cecília passou a utilizar o espaço, também,
para promover a Revolução de 30 em determinados momentos e criticá-la

115
em outros; elogiar ações do novo governo, que considerava acertadas, e
combater de forma vigorosa as ideias e ações com as quais não concorda-
va e que iam contra os princípios do escolanovismo. Nesse espaço, Cecília
atuou, diariamente, de 12 de junho de 1930 a 12 de janeiro de 1933.
Nos embates ocorridos principalmente por meio da imprensa,
muitas vezes, Cecília se mostrou otimista e confiante nas intenções do
governo de realizar uma verdadeira revolução por meio de um grandioso
projeto educacional. Porém, muitos foram, também, os momentos em
que a autora divergiu e não se calou diante de fatos que julgava nocivos
ao projeto modernizador que acreditava estar em curso no país. Nos três
anos em que esteve à frente da Página de Educação, a educadora nunca
se esquivou de informar, aplaudir, divergir e polemizar sobre os diferentes
fatos que eram postos diariamente ao exame dela.
A crença no poder da educação para transformar o Brasil em um
país melhor e no modelo da Escola Nova como sendo o mais apropriado
para este fim nunca foi abalada nos ânimos de Cecília. Porém, foram
muitos os momentos de desânimo da educadora em relação à efetivação
dessa renovação educacional pela qual o país precisava passar. A autora
era adepta do grupo dos renovadores e acreditava que, com a implantação
do governo revolucionário, as propostas de renovação educacional, defen-
didas pelo grupo do qual ela fazia parte, seriam prontamente efetivadas, o
que não aconteceu.
Nos primeiros momentos após a Revolução de 1930, Cecília se
apresenta aos leitores extremamente idealista, otimista e até ingênua,
acreditando que, a partir daquele período, tudo seria transformado, todas
as promessas seriam prontamente cumpridas e as mazelas que assolavam
o país teriam fim diante da grandiosa obra de educação que seria cumprida.

A Revolução, que neste momento acaba de transformar o


Brasil numa formidável esperança para o mundo inteiro, traz,
no programa dos grandes nomes que a encarnam, todas as
características de um movimento significativamente edu-
cativo. Nela encontramos todas as qualidades de coragem
superior, iniciativa, justiça, pureza, desinteresse e fraternida-

116
de que são os pontos essenciais de qualquer grande plano
educacional5 (MEIRELES, 2001, v. 2, p. 119-120).

Tamanho otimismo se deve, em parte, à grande convergência entre


as ideias dos idealizadores da Escola Nova no Brasil e as do grupo político
formado em torno da Aliança Liberal. Ambos buscavam promover a Revo-
lução que colocaria, à frente da presidência da República, um governante
com o pensamento alinhado aos princípios renovadores e modernizadores
que estavam sendo difundidos em diferentes países. Antes da revolução,
as propostas apresentadas pelos revolucionários atendiam aos anseios
dos renovadores educacionais, mas, somente após o início do governo e
a tomada das primeiras medidas é que se pôde ter uma dimensão do que
realmente aconteceria com o sistema educacional do país.
A crença e a confiança no sucesso dos empreendimentos educa-
cionais transpareciam no pensamento de Cecília sempre que ela saía em
defesa dos ideais da Escola Nova, como na crônica Escola velha e Escola
Nova, de 19 de julho de 1932, em que diz achar graça das pessoas que
faziam críticas à Escola Nova sem a conhecerem, pensando ser possível
evitá-la. A autora tinha a renovação educacional como algo certo e seguro,
imune às forças contrárias que queiram impedi-la.

Não a podem evitar, não porque ela se queira impor, dogmati-


camente, mas porque, pelo fato de corresponder à verdadeira
necessidade da fase atual da vida, por não desejar mais nada
que estar ao serviço da própria vida, por se resumir em dar
às criaturas aquilo de que possam carecer para a elementar
função de existir, a Escola Nova é uma coisa invencível. É
um acontecimento humano. A escola resultante do tempo,
ligada ao tempo: indestrutível, por variar com ele, e ir sendo
sempre o que ele determinar que seja, ao contrário da escola
velha, paralisada e inútil no ambiente móvel e inexorável da
vida (MEIRELES, 2001, v. 3, p. 243).

Encantava-se com o grandioso projeto educacional que se


desenrolava em alguns locais e se desencantava, logo em seguida, ao
testemunhar fatos que em nada contribuíam para a efetiva e verdadeira

5 Crônica “Educação e Revolução”, de 31 de outubro de 1930.

117
implantação de tal projeto. Logo nos primeiros meses da Revolução, ficou
bastante entusiasmada e confiante com o fato de, rapidamente, o Governo
Provisório criar um ministério para a Educação e se decepcionou com o
escolhido para ocupar o cargo de Ministro da Educação6:

[…] quando nós falávamos em Ministério da Educação


estávamos esperando, realmente, uma coisa dessa espécie.
Puseram lá o sr. Francisco Campos. Olhávamos para o nome,
e perguntávamos: “Como agirá o autor da precária Reforma
de Ensino mineira, à frente de um ministério de tamanha
responsabilidade? Que pedagogo, afinal, seria o sr. Francisco
Campos?”. E ficamos em observação. Infelizmente, ficamos
[…]7 (MEIRELES, 2001, v. 2, p. 161).

Cecília Meireles, em muitos momentos, chegou a acreditar real-


mente na possibilidade de realização da grandiosa obra educacional, po-
rém, muitos foram os fatos que inscreveram nela um profundo desencanto
e descrença em relação à tal aspiração. A nomeação de Francisco Campos
para o Ministério da Educação foi, na opinião dela, um dos primeiros e gran-
des equívocos da Revolução, que apresentava a questão educacional como
prioritária em seus planos. A autora não via no ministro as características
consideradas por ela necessárias para ocupar um cargo tão importante.
Apesar de reconhecer alguns avanços na Reforma instituída por Francisco
Campos, em Minas Gerais, Cecília constatava nessa mudança uma série
de defeitos que desqualificavam o seu executor para assumir um projeto,
muitas vezes, mais grandioso: a educação de todo o país.
Cecília sentia urgência em ver os assuntos que considerava dema-
siadamente sérios serem resolvidos ou tratados de forma mais prioritária
por técnicos entendidos nas questões pedagógicas, comprometidos com
a renovação educacional e alheios às politicagens tão comuns até então.
Aplaudia e se entusiasmava quando considerava as situações dignas de
um país que verdadeiramente trabalha por uma escola e uma educação

6 Foram notórios os embates empreendidos por Cecília Meireles com o Ministro da Educação,
Francisco Campos. Ela não confiava nos conhecimentos pedagógicos do ministro e acusava as
ações dele de serem desconectadas, não comporem um plano que buscasse uma verdadeira
unidade nacional e julgava que essas ações tinham motivações apenas políticas.
7 Crônica Pedagogia de ministro, de 30 de abril de 1930.

118
realmente novas. Porém, quando não via as respostas e ações serem
dadas a tempo, não se eximia de se expor publicamente e criticar aberta-
mente quem julgasse necessário. Na crônica Perguntas para o ar, a autora
questiona uma série de coisas e defende o fato de já ter passado da hora
de muitos temas serem tratados com seriedade:

Mas é tempo de se lançar um golpe de vista a esses es-


quecidos, para ver em que ponto vão as suas realizações, e
se já mudaram de lugar, depois das aventuras do ministro
da Saúde Pública. Primeiramente, – que é feito daquelas
circulares que todo o mundo ficou esperando, para saber
qual é aproximadamente a situação do ensino, através
das declarações, possivelmente fidedignas, dos senhores
inspetores escolares? Que é feito de um boletim de educa-
ção, que tivemos, noutros tempos [...]? Que é feito de um
famoso Conselho de Educação, que se reunia, para tratar dos
problemas da sua alçada? Não existe mais o Conselho? Ou
não existirão mais os problemas? Que é feito da Subdiretoria
Técnica de Instrução, que, como o nome indica, foi criada para
cuidar de assuntos técnicos – e esses assuntos ninguém vê?
[...] Que é feito, também, da Reforma Fernando de Azevedo,
que, segundo me disseram, vai vigorar, “em todos os pontos
úteis”? Eu, evidentemente, estou fazendo estas perguntas
para o ar [...]. Faço-as para o ar mesmo de propósito, porque,
neste tempo de milagres, é mais fácil vir daí alguma resposta
[...]8 (MEIRELES, 2001, v. 2, p. 165-166).

A obra educacional almejada por Cecília Meireles, nos anos em que


ela atuou no Diário de Notícias, não foi plenamente concretizada. Tanto a
regulamentação quanto a implantação do sistema educacional seguiram
por caminhos diversos, atendendo, em alguns aspectos, aos anseios do
grupo de escolanovistas, e, em outros aspectos, contemplando os interes-
ses católicos; porém, acima de tudo, legitimando interesses da hegemonia
burguesa da época.
Entre os aspectos positivos que podem ser apontados, o fato de o
tema “educação” ter sido colocado em evidência foi, sem dúvida, o maior
ganho. O reconhecimento da educação como “questão nacional” represen-

8 Crônica Perguntas para o ar, de 8 de maio de 1931.

119
tou, em muitos aspectos, uma grande evolução para o sistema educacional
brasileiro, mas ficou, naquele período (1930-1945), como permanece
ainda hoje, longe de atingir os níveis necessários para a consolidação de
um Sistema Educacional verdadeiramente democrático, de qualidade,
eficiente e promotor da elevação dos índices de equalização de direitos e
oportunidades no país.

O Manifesto dos Pioneiros

Cecília Meireles fez parte, ao lado de outros 25 intelectuais, do


chamado grupo de signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova.
O documento, datado de 1932, foi redigido por Fernando de Azevedo e
representava a visão e os anseios de um grupo de pensadores que, apesar
de possuírem posições ideológicas diferentes, acreditavam que mudanças
no campo educacional poderiam interferir e influenciar de forma positiva
na organização da sociedade. O Manifesto é considerado um marco no
movimento de busca pela renovação educacional brasileira.
A condição de signatária do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova
é de fundamental relevância para a definição do perfil de Cecília Meireles
enquanto educadora e intelectual, atuante na constituição do pensamento
educacional brasileiro. Cecília fazia parte do grupo de intelectuais e educa-
dores que, desde a década de 1920, vinha se formando, no Brasil, em torno
dos ideais renovadores da chamada “Escola Nova”9. Esse era o nome dado
a um modelo de sistema educacional difundido em muitos países e que
tinha como mentor e inspirador principal o educador norte-americano John

9 A Escola Nova representa o mais vigoroso movimento de renovação da educação depois da


criação da escola pública burguesa. [...]. A teoria e a prática escolanovistas se disseminaram
em muitas partes do mundo, fruto certamente de uma renovação geral que valorizava a
autoformação e a atividade espontânea da criança. A teoria da Escola Nova propunha que a
educação fosse instigadora da mudança social e, ao mesmo tempo, se transformasse porque a
sociedade estava em mudança. O desenvolvimento da sociologia da educação e da psicologia
educacional também contribuiu para essa renovação (GADOTTI, 1996, p. 142). Entre os pioneiros
dos movimentos de renovação educacional que contribuíram para elaboração e difusão dos
conceitos da Escola Nova, podemos citar os norte-americanos Jonh Dewey e William Heard
Kilpatrick, os suíços Adolphe Ferrière, Édouard Claparède e Jean Piaget, o belga Ovide Decroly, a
italiana Maria Montessori, o francês Roger Cousinet, entre outros.

120
Dewey10, de quem Anísio Teixeira fora aluno durante o curso de mestrado
nos Estados Unidos e por quem nutria grande admiração. No Brasil, Anísio
era um dos principais defensores e divulgadores dessa nova filosofia edu-
cacional, que conquistou muitos adeptos, admiradores e defensores, como
Cecília Meireles.
Em meio a um grande conflito de interesses vivenciado pelo grupo
de renovadores da Escola Nova e o grupo conservador católico, muitos fo-
ram os embates empreendidos, em especial por meio da imprensa. Cecília
se colocou na batalha, defendendo, a partir da Página de Educação do Diário
de Notícias, as ideias de renovação da educação nacional. Durante essas
campanhas pró e contra a Escola Nova, aconteceu a IV Conferência Nacional
de Educação, em 1931. No referido evento, o chefe do Governo Provisório,
presidente Getúlio Vargas, solicitou aos participantes que elaborassem um
documento que servisse como base para a construção de um plano reno-
vador para a educação do país, “uma fórmula feliz”. O grupo católico quis
apresentar, durante a conferência, a tal fórmula, mas foi impedido pelo
grupo dos renovadores, que, na pessoa de Nóbrega da Cunha11, interferiu e
solicitou que a resposta ao chefe do governo fosse dada em uma próxima
conferência, a qual aconteceria no ano seguinte. Ao final do congresso, o

10 John Dewey (1859-1952), filósofo, psicólogo e pedagogo liberal norte-americano, exerceu


grande influência sobre toda a pedagogia contemporânea. Ele foi o defensor da Escola Ativa,
que propunha a aprendizagem por meio da atividade pessoal do aluno. Sua filosofia de
educação foi determinante para que a Escola Nova se propagasse por quase todo o mundo.
Dewey praticou uma crítica contundente à obediência e submissão cultivadas nas escolas,
pois as considerava verdadeiros obstáculos para a educação. Por intermédio dos princípios da
iniciativa, originalidade e cooperação, pretendia liberar as potencialidades do indivíduo rumo
a uma ordem social que, em vez de ser mudada, deveria ser progressivamente aperfeiçoada.
Assim, traduzia para o campo da educação o liberalismo político econômico dos Estados
Unidos. [...] Apesar de suas posições político-ideológicas, Dewey construiu ideias de caráter
progressista, como o autogoverno dos estudantes, a discussão sobre a legitimidade do poder
político, além da defesa da escola pública e ativa (GADOTTI, 1996, p. 148-149).
11 Carlos Alberto Nóbrega da Cunha (1897-1974) atuou como redator dos jornais A Noite e O
Jornal até 1930, ano em que fundou o Diário de Notícias. Nessa condição de jornalista, emprestou
apoio entusiástico à Reforma Fernando de Azevedo (1927-1930), no Distrito Federal. Em 1932
e 1933, foi diretor de Instrução Pública do Estado do Rio de Janeiro; também integrou o quadro
de associados da Associação Brasileira de Educação desde 1928, e, a partir de 1930, tornou-
se membro da Associação Brasileira de Imprensa. [...] teve papel decisivo na articulação do
processo que desembocou na redação e divulgação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova
(SAVIANI, 2013, p. 239).

121
grupo de renovadores elaborou uma “declaração de princípios” baseada
nos debates da IV Conferência Nacional de Educação (LÔBO, 2010, p. 46).
A partir dessa declaração, Fernando de Azevedo produziu O Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova, de 1932, assinado por ele e outras 25 pessoas,
entre elas Cecília Meireles.
Por questões estratégicas, Fernando de Azevedo considerou
oportuno não esperar a V Conferência, que aconteceria no fim do ano, para
divulgar o Manifesto, e o fez dois meses após a elaboração do documento,
que chamou a atenção de parte da sociedade, noticiado nas primeiras pá-
ginas de diversos jornais. Com o Diário de Notícias não foi diferente, Cecília
dedicou a Página de Educação do dia, 19 de março de 1932, ao Manifesto
e, na coluna dedicada ao “commentário”12, escreveu uma crônica sobre a
importância de tal documento.
No texto Antes da despedida: editando um debate, Mignot aponta que:

Cecília emprestou o prestígio conquistado ao documento,


mas foi igualmente prestigiada por ter seu nome incluído
naquele que pretendia ser um programa de governo, capaz
de romper com a tradição e instaurar um novo projeto para o
país. Marco da renovação educacional brasileira, o Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova – dirigido ao povo e ao go-
verno em favor da gratuidade, laicidade e universalidade da
escola pública – expressava o debate e as disputas políticas
do momento. Delimitava o posicionamento de um grupo de
intelectuais que pretendia liderar, pela via da educação, o
processo de modernização do país. Reafirmava princípios.
Selava alianças. Fortalecia lideranças, como observou Libâ-
nea Nacif Xavier (1993) (MIGNOT, 2001, p. 166).

Cecília tem, assim, no percurso de construção de sua identidade


de intelectual e educadora, o nome inscrito em um dos mais importantes
e significativos documentos da história educacional no Brasil. O Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova, apesar de não ter sido utilizado de forma

12 “Commentário” era o nome de uma coluna do jornal Diário da Manhã, na qual Cecília
escrevia textos sobre suas impressões a respeito de acontecimentos cotidianos, em especial
aos relacionados às questões educacionais. Os referidos textos foram classificados, por
especialistas e estudiosos da obra da autora, como pertencentes ao gênero crônica e compõem
a coletânea Cecília Meireles: crônicas de educação.

122
integral na elaboração dos programas e leis educacionais daquela época,
serviu como base e inspiração para muitas políticas públicas educacionais
empreendidas ao longo da história da educação. Pode-se também afirmar
que as maiores transformações e conquistas do sistema educacional bra-
sileiro tiveram origem nos anos próximos que antecederam e sucederam a
elaboração e divulgação do Manifesto. O documento é, ainda hoje, objeto
de diversas pesquisas acadêmicas e também retrato de necessidades
ainda não supridas em nosso sistema educacional.

Considerações finais

Cecília Meireles, intelectual engajada na questão educacional, sol-


tou sua voz e se fez ouvir por uma sociedade machista e conservadora, por
meio de quase 800 crônicas produzidas e publicadas por ela. Uma análise
superficial dos textos deixaria a impressão de que Cecília foi, em muitos
momentos, contraditória, devido às fases de convergência e divergência
de opiniões com os diferentes grupos que ocupavam o cenário político e
educacional do país. Porém, diante de uma análise mais aprofundada, é
possível perceber que, na verdade, a autora não foi contraditória em re-
lação às suas concepções de educação, e nem aos princípios renovadores
que ela defendia. Vivenciou momentos de convergências, nos quais deixou
transparecer sua crença nas intenções do governo, bem como seu otimis-
mo e entusiasmo pedagógico, o que a colocava no grupo daqueles que
tinham a ilusão de que a educação era uma garantia de mobilidade social
e de sucesso, e uma forma de democratização da sociedade; em outros
momentos, o que havia não era contradição, mas divergências de ideias,
decepção diante de um governo que tomava medidas que não condiziam
com as propostas apresentadas antes da Revolução e não atendia aos
anseios renovadores dos escolanovistas, grupo do qual Cecília fazia parte.
Cecília se formou entre artistas, educadores e intelectuais de sua
época e se dedicou com afinco à defesa dos ideais desse grupo. Além disso,
difundiu ideias e valores, por meio de muitas de suas obras voltadas ao
tema educacional, que traduziam, a partir de ações educativas, as inten-
ções da elite liberal burguesa de formar uma nova consciência nacional.

123
Para tanto, apresentou idealismos pedagógicos comuns ao seu tempo e
condizentes com alguns valores ideológicos, difundidos, no Brasil, desde a
segunda metade do século XIX. Para citar alguns ideais, pode-se destacar a
crença na ciência pedagógica que, de acordo com os intelectuais da época,
daria conta de explicar fenômenos complexos da esfera humana e dirimir
diferenças no quadro social, por meio de ações educativas. Difundiu ainda,
por meio de suas obras, em especial, as de fundo didático, voltadas para
crianças e professores, ideias que seguiam uma forte linha de moralização
e maniqueísmo, contribuindo para naturalização de uma realidade social
idealizada, romantizada e representada por personagens exemplares,
imbuídos de valores e condutas ideais.
As ideias e concepções de educação, defendidas por Cecília Meire-
les e o grupo dos escolanovistas do qual ela fazia parte, são definidas, se-
gundo Saviani (2012), como elementos que compõem o grupo das “teorias
não críticas”, no campo da educação. Tal definição acontece em função da
ênfase dada ao desenvolvimento natural humano, priorizando a evolução
individual dos sujeitos sociais no processo educativo, desconsiderando os
fatores sócio-históricos que configuram as contradições presentes em
uma sociedade dividida em classes.
Dentre as contribuições, faz-se justo reconhecer que, no conjunto
de sua obra, Cecília Meireles introduziu uma série de inovações importan-
tes (FERNANDES, 2008), como a ênfase em torno dos cuidados, respeito
e liberdade da criança; da abolição dos castigos físicos e punições; da
inclusão social de diferentes tipos humanos na escola; da valorização da
atividade lúdica e do respeito ao desenvolvimento infantil.
A autora foi e é uma das grandes representantes da literatura bra-
sileira, e também participou de grandes e importantes mudanças no modo
de pensar a educação no país. No entanto, é preciso constatar que obras da
autora – vinculadas aos ideais liberais burgueses de transformação social
por meio da modelação da criança – amparada em saberes científicos e va-
lores humanistas, contribuíram para disseminar ideais utópicos de criança
e educação que sobreviveram ao tempo e ainda repercutem nas práticas
pedagógicas atuais.

124
Cecília Meireles era muitas, em uma só e ao mesmo tempo. Ela
sempre estava lutando, simultaneamente, em diferentes frentes de
batalha. Não deixava de ser educadora para ser poeta, nem de ser poeta
para ser cronista ou folclorista; ao mesmo tempo em que dirigia a página
de um jornal, realizava também o inquérito de leituras infantis; dese-
nhava e pesquisava sobre o folclore brasileiro, enquanto escrevia textos
para conferências e palestras; estudiosa da cultura e da língua de outros
países, tornou-se poliglota e, em tempos difíceis, utilizou-se desse co-
nhecimento para fazer traduções e aumentar sua renda familiar; dirigiu
escolas e uma biblioteca infantil; levou nossa cultura e língua a muitos
países e trouxe, deles, conhecimentos para serem partilhados com seus
leitores; candidatou-se a concursos; defendeu a revolução; combateu o
governo instalado com a revolução; estudou com afinco as novas teorias
pedagógicas que se difundiam pelo mundo e se tornou especialista em
assuntos de pedagogia; atuou como jornalista, colaborando em diversos
jornais e revistas, falando de variados temas; e foi signatária do Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova.
Além de tudo, ganhou prêmios importantes, começando com a
medalha de ouro recebida das mãos de Olavo Bilac, ainda no primário, e
seguiu ganhando: 1º Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras,
em 1938; título de Doutora Honoris Causa, entregue pelo presidente da
Índia, em 1953; Prêmio de Tradução/Teatro, da Associação Paulista de
Críticos de Arte, em 1962; Prêmio Jabuti de Tradução de Obra Literária, em
1963; Prêmio Jabuti de Poesia, em 1964; ainda em 1964, post mortem, a
Academia Brasileira de Letras, concedeu-lhe o Prêmio Machado de Assis
pelo conjunto de sua obra.
Essa escritora, produziu muito, foi ativa e participante na socie-
dade em que viveu, defendeu ideias e ideais, acreditou e desacreditou de
momentos e pessoas, viveu intensamente e, hoje, está no rol dos grandes
nomes da nossa literatura, começando, mesmo que tardiamente, a ser
reconhecida como intelectual-educadora que contribuiu efetivamente
para a constituição do pensamento educacional brasileiro, tal como ele
se encontra.

125
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ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 8. ed. São Paulo: Global, 2001.

127
CAPÍTULO IX

EDGAR ROQUETTE-PINTO

Edna Misseno Pires1

Roquette-Pinto (1884-1954) viveu no período de grandes acon-


tecimentos que antecedeu o Manifesto dos Pioneiros, de 1932, embora a
literatura sobre a educação brasileira não faça muitas referências a esse
educador, as suas contribuições para esse contexto vivido no Brasil na
primeira metade do século XX foi importante para a história da educação
brasileira. As informações sobre sua trajetória de vida se encontram em
fragmentos presentes em jornais, sites e artigos de sua época.
Roquette-Pinto foi médico, antropólogo, educador, e dedicou
seus estudos a temáticas relacionadas às raças e à diversidade do povo
brasileiro, trazendo informações sobre a herança cultural das diferentes
regiões do país. Dedicou-se também aos indígenas, fazendo uma junção
de estudos entre a ciência e a cultura, e produzindo uma reflexão sobre as
diferenças e desigualdades, e a diversidade racial, e isso envolvia observar
o Brasil a partir de um olhar antropológico e enxergar o homem da idade da
pedra, o servo, o homem do campo e o homem trabalhador.

1 Doutora em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/2799055149530414. E-mail: edna.misse-


nopires@gmail.com.

128
Figura 1 – Roquette-Pinto (médico).
Fonte: Secretaria do Estado e Cultura do Rio de Janeiro/RJ.

Segundo Rangel (2010), Edgar Roquette-Pinto nasceu em 25 de


setembro de 1884, no Rio de Janeiro, e morreu em 1954, nessa mesma
cidade. Decidiu fazer medicina em 1899, por influência de outras pes-
soas, e concluiu o curso em 1905, no Rio de Janeiro. Também se formou
no curso de humanidades, no ano 1900. Em 1906, foi nomeado pelo
presidente da República ao cargo de assistente da Quarta Seção se An-
tropologia e Etnografia do Museu Nacional do Rio de Janeiro e, em 1908,
tornou-se médico legista e publicou dois trabalhos: Fauna cadavérica do
Rio de Janeiro e Etnographia indígena do Brasil.
Roquette-Pinto foi um cientista social que buscou identificar diver-
sas formas de servidão nas populações do sertão brasileiro. Ele acreditava
que, nesse Brasil marcado pelo trabalho, pelas doenças e pelo analfabetis-
mo, ainda era possível uma regeneração cultural.
Sobre as características dos estudos de Roquette, Rangel (2010)
comenta:

129
Entre os tipos antropológicos diferenciados entre si, cons-
truiu categorias, teoremas, axiomas, classificações para
apreendê-los, nacionalizá-los, em sua dinâmica e estrutura
organizacional corporal, biológica, pisicoanatômica e históri-
ca. Para este intento, valeu-se da antropologia anatômica e
fisiológica, das análises estatísticas comparativas de carac-
teres somáticas e da craniometria como modelo explicativo
para entender tipos, traços, e diferenciação dos índios e dos
católicos do Brasil (RANGEL, 2010, p. 16).

Devido sua profissão de médico legista, em 1906 Roquette foi para


o Rio Grande do Sul com o objetivo de estudar os sambaquis – as jazidas
de conchas de ossos e os utensílios do homem pré-histórico que habitou
o litoral das Américas.
Quando conheceu o Coronel Cândido Mariano Rondon, que estava
nas selvas do Amazonas e do Acre desde 1890, Roquette-Pinto passou a
acompanhá-lo em suas expedições e, sempre que voltava, deixava uten-
sílios indígenas no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Roquette mostrou
interesse em estudar esses utensílios e, do estudo, resultou o documento
“Nota sobre os índios Nhambiquaras do Brasil central”, o qual foi apresen-
tado em um congresso em Londres e, depois de regressar ao país, Roquette
acompanhou Rondon em uma expedição no Mato Grosso, atuando como
etnógrafo, sociólogo, geógrafo, arqueólogo, botânico, medico etc. Também
filmou, fotografou e registrou o que pôde e deixou esse acervo, ainda hoje
conservado, no Museu Nacional.
Roquette acompanhou cada passo de Rondon e, em 1912, par-
ticipou de uma expedição no Mato Grosso, a qual resultou na sua obra
publicada em 1916, denominada “Rondônia” que se tratava de um estudo
geográfico, etnográfico, antropológico e cultural.
Foi durante essa expedição que ele demonstrou fascínio pela arte
da comunicação e conseguiu imagens, por meio de películas dos Nham-
biquaras, que resultou em um documentário para o Museu Nacional para
compor a cinemateca e, dessa forma, viu a possibilidade de levar informa-
ções à comunidade em geral.
Ligada à antropologia, suas principais obras são: Exercício da me-
dicina entre os indígenas da América (1906); Guia da antropologia (1915);

130
Rondônia (1916); Elementos de minerologia (1918); Contribuição da ana-
tomia comparada das raças humanas (1926); Seixos Rolados e nota sobre
o Nnhanduff do Paraguai (1927); Ensaios da antropologia brasileira (1933);
Samambaia (1934). e Ensaios brasilianos (1941).
Em 1917, tornou-se professor de História Natural aplicada à agri-
cultura e à criação de animais, da Escola Normal.
Em 1922, lançou o dicionário histórico, geográfico e etnográfico,
pelo instituto Histórico Geográfico Brasileiro, e logo em seguida fundou a
Rádio A, em 1923, com intenção de democratizar o ensino por meio da
Rádio Difusão. Após isso, mudou o seu foco de atividades e a antropologia
deixou de ser o alvo de interesse e passou a dar prioridade às ideias ligadas
à rádio.
Os problemas educativos e os fatos sociais próprios do contexto
fomentaram a ideia de que a educação resolveria todos os problemas
sociais e, por isso, Roquette se empenhou em projetos como o museu
educativo, o rádio educativo, o cinema educativo, dentre outros. Ao lado de
pessoas importantes no cenário educacional, como Fernando de Azevedo
e Anísio Teixeira, Roquette-Pinto participou das discussões sobre reformas
estruturais da educação brasileira. Porém, a sua fama foi de ser pioneiro do
rádio nacional, pois fundou a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro que depois
ficou conhecida como rádio MEC AM 800.
O interesse pela rádio teve início no ano de 1863, em Cambridge,
na Inglaterra, quando James Clerck Maxwell demonstrou a existência de
ondas eletromagnéticas e, depois, o físico alemão, Henrich Rudolf Hertz,
detectou pela primeira vez as ondas de rádio. Esse contexto fascinou
Roquette-Pinto que, desde o início do século XX, já se interessava pelo
assunto e, em 1923, fundou a primeira emissora de rádio do Brasil, com
39 anos.
Até meados do século XX, a mídia impressa foi a principal fonte de
informação. Após, a rádio revolucionou o mundo das comunicações por
transmitir informações quase que em tempo real. A primeira transmissão
de rádio no Brasil foi em 1922, feita por uma rádio implantada no Rio de
Janeiro, pelos Estados Unidos, que transmitiu um discurso proferido pelo

131
presidente Epitácio Pessoa nas estações SPC (Rádio Corcovado) e Praia
Vermelha de propriedade da companhia Westinghouse. A transmissão foi
feita para o Rio de Janeiro, Niterói e São Paulo. Oficialmente, a primeira
transmissão de rádio no Brasil ocorreu em 7 de setembro de 1922, nas
comemorações do centenário da Independência do país, com a trans-
missão, à distância e sem fios, da fala do presidente Epitácio Pessoa, na
inauguração da radiotelefonia brasileira.
Com a visualização da rádio como um meio de divulgar a cultura e
popularizar a educação, Roquette-Pinto, conhecido popularmente como
“pai do rádio”, convenceu a Academia Brasileira de Ciências a patrocinar
a criação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, que viria a ser a PRA-2,
em 1923.
Por meio da mistura de telégrafo e telefone, Amadeu Amaral en-
tendia que poderia transmitir sons à distância, mas, ao entrar na casa de
Roquette-Pinto, deparou-se com uma vara de bambu plantada no jardim
como uma antena de fios de cobre que se estendiam até a sala, sendo
enfiadas em uma bobina de papelão do qual saía uma tomada ligada à
torneira da pia e um fone, comum, de telefone. Amadeu achou engraçado,
mas era aquilo que se tornaria uma rádio, e, ainda, ao colocar o fone no
ouvido, para sua surpresa, escutou poemas e trechos de ópera irradiados
a quilômetros de distância. Por esse motivo, abril de 1923 é a data de
implantação da primeira emissora de rádio no Brasil, como resultado dos
experimentos de Roquette-Pinto. No entanto, consta oficialmente que
a emissora de rádio nasceu no Brasil em 30 de abril de 1923, com um
transmissor doado pela Casa Pekan, de Buenos Aires, instalado na Escola
Politécnica, na então capital federal, cidade do Rio de Janeiro.
A primeira década de existência da rádio teve um crescimento
lento devido à legislação brasileira que não permitia os chamados co-
merciais, dificultando, dessa forma, os patrocínios. Porém, muitos anun-
ciantes específicos divulgavam seus produtos ao longo do programa. A
maioria da população ainda não tinha acesso ao rádio devido seu alto
custo, mas a rádio se popularizou no início dos anos 1930 e, em 1932,
com a mobilização política, visto que a população queria a deposição do

132
presidente Getúlio Vargas, a rádio se tronou uma poderosa arma nesse
contexto e o movimento chamado Revolução Constitucionalista ganhou
forças em 1932, exigindo a formação da Assembleia Constituinte que
culminaria em uma nova Constituição em 1934.
No ano de 1932, segundo Ferraretto (2000, p. 98), novos moldes
comerciais do rádio foram consolidados, haja vista que o Decreto n.
21.111 de 1º de março de 1932 autorizava 10% das programações das
rádios a ter comerciais.
Nesse período, o Brasil estava no contexto de democratização
do ensino por meio de diversos intelectuais que buscavam popularizar
a educação. Roquette-Pinto engajou na luta para liberar a rádio, visto
que o Estado mantinha a regulamentação de impedir que cidadãos
possuíssem aparelhos de rádio doméstico. Em consequência disso,
Roquette montou a rádio educativa vinculada à Academia Brasileira de
Ciências com a finalidade de derrubar a lei que proibia a popularização
da rádio no Brasil. A sociedade no Brasil ainda estava sob o estigma
escravocrata e o Estado ainda era visto como detentor das tradições.
Além disso, como membro da Academia de Ciência e diretor do
Museu Nacional, teve grande influência no pensamento educacional
brasileiro, na metade do século XX.

133
Figura 2 – Roquette-Pinto na primeira estação de rádio.
Fonte: Acervo Roquette-Pinto – Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro/RJ.

Roquette-Pinto participou da criação da Revista Nacional de


Educação, em 1932, que serviria de instrumento para difundir as ideias
neoliberais, resultando no Manifesto dos Pioneiros, de 1932.
Roquette se empenhou para manter o caráter educativo da rádio,
mas, a lei n. 21.111, de 1º de março de 1932, assinada pelo presidente
Getúlio Vargas, autorizava a propaganda comercial, surgindo, assim, os pa-
trocinadores, os cachês, programas de auditório, programas humorísticos
e as disputas dos artistas para a divulgação de seus trabalhos.
Em 1933, juntamente com Anísio Teixeira, na época Secretário da
Educação, fundou a Rádio Escola, mantida pela prefeitura do Rio de janeiro.
Para que a rádio ganhasse força, Roquette-Pinto propôs a transferência
dela, em forma de doação, para o Ministério da Educação e Saúde, com

134
o argumento de manter o caráter cultural. A Rádio Escola serviu de ins-
trumento de transmissão de conhecimento até meados dos anos 1950.
Dessa forma, a rádio se tornou um projeto de escolarização da sociedade
brasileira, buscando meios e instrumentos pedagógicos para isso. Roquette
também entendeu que a rádio poderia ser explorada para fins pedagógicos.
Além de cientista, antropólogo e médico, Roquette foi educador e,
por isso, o nome de Roquette-Pinto aparece na literatura direcionada ao
contexto do Manifesto dos Pioneiros de 1932. Edgar Roquette-Pinto foi
um educador engajado na causa de reforma educacional por meio da força
cultural em suas expedições pelo Brasil, que o permitiu conhecer as par-
ticularidades sociais, econômicas e culturais do país e conseguiu também
radiografar os males sociais da sociedade brasileira.
No contexto da realidade educacional do Brasil no início do século
XX, com a escassez de educação para a maioria da população, Roquette
impulsionou e popularizou a educação por meio da comunicação radiofônica.

O rádio é a escola dos que não têm escola. É o jornal de quem


não sabe ler; é o mestre de quem não pode ir à escola; é o diver-
timento gratuito do pobre, é o animador de novas esperanças, o
consolador dos enfermos e o guia dos sãos – desde que realize
com espírito altruísta e elevado (CASTRO, 1996, p. 13).

No Brasil, após anos de regime republicano e sob inspiração de no-


vos ideais modernizadores de educação, um grupo de educadores passou
a defender uma nova concepção de escola, em oposição à velha estrutura
livresca e conservadora da escola tradicional então vigente.
A nova concepção de escola assume um caráter mais humano,
pautada na hierarquia social, rumo à democracia que abre a mesma opor-
tunidade de educação para todos, com o objetivo de desenvolver meios de
ação para o desenvolvimento humano.
A elite intelectual, embora tivesse diferentes posições ideológicas,
tinha também algo em comum: o direito de interferir na organização da es-
cola. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova foi redigido por Fernando
de Azevedo e assinado por 26 intelectuais, entre ele Edgar Roquette-Pinto.
O texto tinha como proposta que houvesse um plano geral de educação

135
organizado pelo Estado e como princípio uma escola única, pública, laica,
obrigatória e gratuita.
Por ser aliada do Estado, a Igreja Católica criticou duramente tais
ideias e tinha em seu poder a rede de escolas privadas, mantida no sistema de
educação tradicional que ia de encontro à proposta da educação nova, propos-
ta por educadores que defendiam uma política educacional ampla e integrada.
Para ajudar na divulgação dessas novas ideias e ir contra as ideias
conservadoras dominantes, a rádio se tornou um importante instrumento
educacional. De acordo com Leal (1999, p. 3), em 7 de setembro de 1936, a
Rádio Sociedade do Rio de Janeiro se tornou Radio Ministério da Educação
e Cultura, primeira emissora dedicada exclusivamente à radio educação.
Tudo isso foi cuidadosamente planejado pelos intelectuais que defendiam
a modernização da escola como condição para consolidação da democracia
republicana no Brasil.
Ainda em 1936, Roquette criou o Instituto Nacional do Cinema
Educativo – Ince, o qual distribuía fitas educativas em diversas escolas do
Distrito Federal.
As forças transformadoras das ideias reformistas estão nas pro-
duções científicas e na atuação social de Roquette-Pinto, e estas sempre
foram marcadas pela preocupação do intelectual a respeito da cultura
brasileira a partir das questões sociais, raciais e culturais. Com influência
positivista, Roquette disseminava a ideia da intervenção da ciência e da
educação na realidade social. Sua ideia estava em resguardar o estudo da
antropologia, nacionalizando o território brasileiro.
Roquette-Pinto, influenciado pelas leituras de Foucault, engajou-
-se na luta contra o racismo e as ideias de superioridade de raças, e seus
estudos antropológicos do território brasileiro resultaram em produções
que serviram para a formação do cidadão republicano. Roquette foi reco-
nhecido como um cientista social que buscou identificar formas de relação
de poder no sertão brasileiro, decorrentes do analfabetismo e da miséria
presentes naquelas regiões do país. Roquette e suas ações serviram para
diagnosticar e também para transformar a realidade social do Brasil.

136
A criação da rádio foi um meio de comunicação criado para uma
determinada finalidade, ou seja, seu objetivo era permitir a participação
popular e redução dos índices de analfabetismo no Brasil. Dessa maneira,
Roquette-Pinto estava engajado na luta para democratizar o acesso ao
conhecimento.
Outra iniciativa foi a criação do Movimento de Educação de Base –
MEB, com o objetivo de alfabetizar milhares de jovens e adultos por meio das
Escolas Radiofônicas, principalmente nas Regiões Norte e Nordeste do país.
A ideia de uma nação civilizada por meio da educação e da cultura,
usando a rádio como um meio, serviria para compor o cenário brasileiro
rumo à modernidade intelectual, e, ainda, articularia o povo-nação na imen-
sidão do território brasileiro. Por esse motivo, Roquette se preocupou com
as necessidades da sua época e contribuiu para mudar a história brasileira.

REFERÊNCIAS

CASTRO, R. Roquette-Pinto: o homem multidão. Revista Especial dos 60 anos da Rádio


MEC, Rio de Janeiro, 1996.
COSTA, M. L. F. Rádio Educativo: a contribuição de Edgar Roquette-Pinto para a
democratização do conhecimento no Brasil. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HIS-
TÓRIA DA EDUCAÇÃO: A EDUCAÇÃO ESCOLAR EM PERSPECTIVA, 3., 2004, Curitiba.
Resumos [...]. Curitiba: SBHE, 2004. p. 1-6, v. 1.
FERRARETTO, L. A. Rádio: o veículo, a história e a técnica. Porto Alegre: Sagra Luz-
zatto, 2000.
LEAL, M. C. Nas ondas da razão e da ciência: a radioeducação como instrumento da
modernidade no Brasil dos anos 20 aos 50. Rio de Janeiro: Ed. Moderna, 1999.
RANGEL, J. A. Edgard Roquette-Pinto. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora
Massangana, 2010. Coleção Educadores.
TEIXEIRA, A. O manifesto dos pioneiros da Educação Nova. Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos, v. 65, n. 150, p. 407-425, maio/ago. 1984.
XAVIER, L. N. Para além do campo educacional: um estudo sobre o Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova (1932). Bragança Paulista: Edusf, 2002.

137
CAPÍTULO X

EDGARD SUSSEKIND DE MENDONÇA

Luiz Felipe Cândido de Oliveira1

As décadas de 1920 e 1930 foram especialmente marcadas por


mudanças sociais, políticas e culturais, com o fim da República Velha, o
início do Estado Novo, o rompimento da secular “Política do café com leite”,
o movimento tenentista, a coluna Prestes, a Era Vargas. Nesse contexto,
viveu Edgard Sussekind de Mendonça, educador brasileiro com a vida
marcada pela combatente dedicação ao ensino e à inovação das práticas
pedagógicas, além de uma contundente atuação política e militância em
benefício das comunidades carentes.
Professor, diretor de escolas, escritor, tradutor, editor, desenhista
e gráfico, nascido no dia 25 de agosto de 1896, no seio de uma família da
elite intelectual brasileira, filho de Lúcio Eugênio de Meneses e Vascon-
celos Drummond Furtado de Mendonça, e Annita Fedorovna Hasselman
Sussekind, irmão de Carlos Sussekind de Mendonça, Irene Sussekind de
Mendonça, Daniel Sussekind de Mendonça, e meio irmão de Maria Julia de
Mendonça (SOUZA, 2011, p. 6).
A mãe, Anita, era pintora, e seu pai, Lúcio de Mendonça, era advo-
gado, jornalista, magistrado, chegando até a ser presidente do Supremo

1 Doutor em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/7197279344234646. E-mail: luizfelipecandido-


deoliveira@gmail.com.

138
Tribunal Federal, e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.
Seu tio-avô, Salvador de Mendonça, foi diplomata e autor do Manifesto
Republicano, juntamente com Quintino Bocaiúva. Os dois tiveram uma
atuação de destaque no estabelecimento da República no Brasil (MEN-
DONÇA, 2013, p. 3).
Edgard sempre viveu em um ambiente de grande estímulo cultural,
sendo aluno de Euclides da Cunha na disciplina de lógica, do Colégio Pedro
II, no ano de 1911. Sua ampla cultura abrangia literatura, história, artes e
ciências (MENDONÇA, 2013, p. 3).
Já em sua formação inicial, os irmãos Edgard e Carlos Sussekind,
fascinados por questões políticas e sociais, fundaram o Grêmio Euclides
da Cunha, na Escola Pedro II. Edgard foi presidente do Grêmio Euclides da
Cunha do Rio de Janeiro em todo o período da sua existência, e foi um dos
euclidianos mais atuantes na tarefa de promover o Grêmio e seus principais
objetivos: o comprometimento com a ciência, ensino, e com a melhoria da
qualidade da educação no Brasil (COSTA, 2002, p. 54). Além disso, era um
“Excelente orador, suas intervenções, sempre repassadas de emoção e
paixão pelas questões que abordava, despertava extraordinário interesse
entre seus companheiros e ouvintes” (LEMME, 2004, p. 50).
O Grêmio Euclides da Cunha ocupou lugar de destaque nas ações
de Edgard, como sua primeira atuação política, e por inspirar sua formação
acadêmica, além de motivar sua ação em outros projetos de valorização
do conhecimento científico e, principalmente, da literatura, campo do qual
Euclides da Cunha seria um dos principais representantes nacionais.
Paschoal Lemme (2004, p. 24), em sua autobiografia, conta que
Edgard Sussekind de Mendonça se dedicou, inicialmente, ao estudo de
belas-artes, contudo, entrou em conflito com os professores da Escola de
Belas Artes do Rio de Janeiro, em virtude dos métodos de ensino que estes
adotavam, revelando, desde cedo, o temperamento combativo e polêmico,
característica marcante de Paschoal. Também escreveu um verdadeiro
libelo contra a congregação da Escola de Belas Artes, sendo punido com
a penalidade de suspensão. Acabou por abandonar o curso, mas sempre
manteve suas vocações artísticas e se tornou um excelente desenhista.

139
Edgard Sussekind de Mendonça foi colaborador dedicado do pro-
jeto que Armanda Álvaro Alberto realizou no ano de 1921, com a criação
da Escola Regional de Meriti, dedicação essa que resultou, no dia 11 de
agosto de 1928, no casamento entre Edgard e Armanda, grande educado-
ra, voltada ativamente para renovação da educação e do ensino no Brasil.
Ela também criou uma escola onde se desenvolveram, pioneiramente,
exemplos de integração com a comunidade, como a constituição do pri-
meiro Círculo de Mães, buscando com isso conferir sentido ao seu projeto
educacional renovador.

Não foi para construir um exemplo de perfeição ou mesmo de


apurada qualidade, mas foi para construirmos um exemplo
de possibilidade de realização, que mais valesse porque nos
cercamos, justamente, das menos vantajosas das condições
locais (MENDONÇA, 1968, p. 21).

Alberto (1968, p. 41) explica que idealizou uma escola primária


regional que sentisse as necessidades de progresso de sua região e to-
masse para si as iniciativas em benefício da comunidade a que pertencem
os seus alunos.

A integração escola comunidade obedecia assim à compre-


ensão de que a educação primária de todas as crianças e do
povo é denominada pelo interesse da vida local (MENDONÇA,
1968, p. 14).

Segundo a definição de Edgard Sussenkind de Mendonça (1968


apud MIGNOT, 1993, p. 40), a concepção de escola regional “traduzia a
compreensão de que não existiria nacionalidade sem as características
de cada região”. Para Edgard, o ensino regional, intimamente ligado ao
conceito de regionalismo, deveria criar um sistema próprio de ensino, com
metodologia e práticas específicas ao seu público, visando constituir uma
experiência de escola moderna, laica, com foco nos princípios de educação
popular e regionalismo, e com métodos ativos.
A chamada “Escola Proletária”, depois, “Escola Regional de Meriti”,
segundo Alberto (1968, p. 39), foi orientada por métodos modernos e vol-

140
tada para a população carente. Não havia notas, prêmios ou castigos, e sua
orientação geral se resumia em quatro cartazes afixados, com os dizeres:
“Saúde”, “Alegria”, “Trabalho” e “Solidariedade”. As famílias recebiam bo-
letins, mensalmente, onde eram relatadas as atividades dos alunos, bem
como seus exames de saúde e atos de bondade.
Essa escola foi inovadora, afirma Mignot (1993, p. 6), ao intro-
duzir a merenda escolar no país, além de oferecer assistência médica e
remédios. Contando com a colaboração de seu marido Edgar, Armanda
Álvaro Alberto permaneceu à frente da escola até 1964, quando trans-
feriu sua direção para a fundação religiosa norte-americana, Instituto
Nacional do Povo. Mais tarde, a instituição passou a ser chamada de
Escola Dr. Álvaro Alberto.
A divulgação e o reconhecimento do trabalho educativo e social da
escola fortaleceram o movimento social e político da nova elite intelectual,
perante a sociedade civil e política da capital federal da época, construindo,
assim, uma imagem de progresso social e cultural. Dessa forma, Edgard
demonstrou sua ação civilizadora, ideal contido nos projetos dessa nova
elite intelectual, projetando-se na vida social, intelectual e política do povo
do Rio de Janeiro e do Brasil.

A Livraria Científica Brasileira

Edgard Sussekind de Mendonça se sobressaiu ainda mais no meio


intelectual quando seu irmão Carlos Sussekind de Mendonça fundou, no
ano de 1922, a Livraria Científica Brasileira, sob a razão social de Sussekind
de Mendonça & Cia, que foi liquidada dois anos mais tarde. Lemme (2004,
p. 130) afirma que, apesar de sua curta existência, Edgard Sussekind foi
responsável pela publicação da Revista Brasileira de Educação, inspiração
da Associação Brasileira de Educação – ABE. Além disso, a Livraria Cien-
tífica Brasileira se tornou um ponto de encontro dos pensadores, intelec-
tuais e educadores brasileiros da época, inconformados com a situação
da educação e do ensino vigentes no Brasil, entre os quais sobressaía a
figura de Heitor Lyra da Silva, considerado o maior inspirador dos ideais
que deveriam nortear as atividades da nova entidade.

141
Em 1922, ainda, Carlos S. de Mendonça, Francisco Venâncio
Filho, Fernando Raja Gabaglia e Soter Célio de Araújo fun-
daram sob a razão social Süssekind de Mendonça & Cia., a
Livraria Científica Brasileira, liquidada dois anos mais tarde.
Além de editar livros de diversos autores brasileiros, como
Delgado de Carvalho, Afrânio Peixoto e Roquette-Pinto, a
livraria oferecia suas instalações para aulas particulares mi-
nistradas por Pecegueiro do Amaral e Jaime Coelho, dentre
outros. Uma das iniciativas da livraria foi a publicação da
Revista Brasileira de Educação, segundo Carlos, germe da
Associação Brasileira de Educação criada em 1924 e da qual
Edgard foi um dos fundadores (VIDAL, 2013, p. 286)

Os encontros na livraria e a publicação da Revista Brasileira de


Educação, explica Lemme (2004, p. 132), motivaram a criação da ABE,
que de início, foi idealizada por seus fundadores como um partido político
que teria como objetivo principal de seu programa a luta pela melhoria das
condições da educação e do ensino do povo brasileiro, em todos os seus
aspectos, fator que consideravam básico para promover transformações
econômicas, políticas e sociais que, segundo esses intelectuais, o país
exigia, para que o povo brasileiro pudesse atingir o desenvolvimento e o
progresso que todos desejavam.

Figura 1 – Escola Regional de Meriti (1928).


Fonte: Alberto (1968, p. 14).

142
Paschoal Lemme (2004, p. 133) relata que essa primeira ideia foi,
desde logo, abandonada e se tornou vitoriosa a opinião de que o melhor
instrumento para promover a realização dos objetivos visados seria a
fundação de uma entidade que reunisse professores, educadores, cien-
tistas e intelectuais, de modo geral, para, sem qualquer subordinação aos
poderes públicos, discutir todos os problemas relacionados à educação
e ao ensino no país, criticando as situações existentes, apresentando
às autoridades sugestões para a melhoria dessas condições, edificando
um fórum aberto a todas as correntes de opinião, em um ambiente de
perfeita convivência democrática.
Marta Carvalho (1989) apresenta os contextos econômicos, sociais
e políticos da época, com o surgimento de um “estado novo de coisas”.

Ter-se-ia estabelecido no país um novo estado de coisas, sob


a pressão das causas econômicas, sociais, políticas e dessa
fermentação de ideias que, depois da guerra de 1914, se
alastrava por todos os domínios culturais; desse estado de
coisas eram sintomas o movimento de renovação educacio-
nal, a Semana de Arte Moderna e as Revoltas Tenentistas.
Espraiava-se por toda a parte um sentimento cada vez mais
vivo de desconfiança em relação ao antigo estado de coisas
e as ideias estabelecidas e uma aspiração constituiríam-se
como ingredientes principais de uma mentalidade revolu-
cionária que se vinha formando numa atmosfera carregada
de eletricidade, que teria de desfechar, em 1930, numa
revolução de maior envergadura (CARVALHO, 1989, p. 32).

Toda essa intensa inquietação, que marcou o movimento de re-


novação educacional, inspirou a fundação da ABE, no dia 15 de outubro
de 1924, no anfiteatro de física da Escola Politécnica do Distrito Federal,
afirma Massarani (1998, p. 90), reunindo personalidades ilustres e cultas,
com o propósito de analisar suas responsabilidades e deveres em relação
aos grandes problemas nacionais.
Concebida como entidade pedagógica e cultural, a ABE reunia uma
pluralidade de profissões, como professores, intelectuais e todas as pes-
soas interessadas na educação e na cultura.

143
As conferências anuais, convocadas por essa sociedade de
educadores, aproximando professores de todos os graus
de ensino e de todos os estados, criando uma atmosfera
favorável ao debate de idéias (sic) e promovendo a expansão
dos ideais das reformas empreendidas em alguns dos prin-
cipais centros de cultura, atingiam objetivos eminentemente
nacionais, concretizando o sonho de seu fundador Heitor
Lyra, quando pensou em tornar móvel a sede da Associação
que, no seu plano primitivo, deveria reunir-se anualmente
em um dos estados, ora no norte, ora ao sul, ora ao centro,
de modo a realizar uma verdadeira transfusão de idéias (sic)
e sentimentos (MASSARANI, 1998, p. 93).

Responsável por promover diversas conferências nacionais de


educação, com a participação de diferentes educadores de todo o país, a
ABE realizou debates sobre assuntos educacionais e influenciou na ela-
boração de leis que traçaram diretrizes e bases de educação e de planos
nacionais de educação.

A Associação Brasileira de Educação começou a colher seus


primeiros frutos a partir de novembro de 1928, na Segun-
da Conferência Nacional de Educação, realizada em Belo
Horizonte, quando foi reconhecida pelo governo mineiro,
na pessoa do presidente Antônio Carlos, como entidade
que realizava uma obra de governo, na qual o poder público
se supre de suas deficiências, nela se inspirando para suas
decisões (CARVALHO, 1989, p. 33).

Entretanto é com a Revolução de 1930 que a ABE alcança o status


político almejado, passando a funcionar, nos anos que imediatamente
sucederam à Revolução, como espécie de prolongamento do Ministério da
Educação criado.

Durante a realização da Quarta Conferência Nacional de


Educação, o Governo Provisório pede aos conferencistas
nela reunidos que forneçam a “fórmula feliz”, o “conceito de
educação” que sirva de base para a política educacional. A
recusa da Conferência em responder ao Governo abre espaço
para o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova (CARVALHO, 1989, p. 33).

144
Assim, no ano de 1932, a ABE lançou o Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova, redigido por Fernando de Azevedo que, pela repercussão
alcançada em nossos meios educacionais e culturais, constituiu-se em um
dos acontecimentos mais marcantes da história da educação no Brasil,
com a proposta de uma ampla renovação educacional que permitisse
resgatar o país do analfabetismo generalizado, condição necessária para
acompanhar o ritmo de crescimento e avanços da modernidade europeia
e norte-americana. Isso levou a muitos deles se empenharem profunda-
mente nas campanhas pelo ensino público.

Foram os seguintes, na ordem em que aparecem na publica-


ção do Manifesto, os seus signatários: 1. Fernando de Azeve-
do (redator); 2. Afrânio Peixoto; 3. Antônio Sampaio Dória; 4.
Anísio Spínola Teixeira; 5. Manoel Bergström Lourenço Filho;
6. Edgard Roquette-Pinto; 7. José Getúlio da Frota Pessoa;
8. Júlio de Mesquita Filho; 9. Raul Briquet; 10. Mário Casas-
-santa; 11. Carlos Delgado de Carvalho; 12. Antônio Ferreira
de Almeida Júnior; 13. J. P. Fontenelle; 14. Roldão Lopes de
Barros; 15. Noemy M. da Silveira; 16. Hermes Lima; 17. Atílio
Vivacqua; 18. Francisco Venâncio Filho; 19. Paulo Maranhão;
20. Cecília Meireles; 21. Edgard Süssekind de Mendonça; 22.
Armanda Álvaro Alberto; 23. Garcia de Rezende; 24. Nóbrega
da Cunha; 25. Paschoal Lemme; 26. Raul Gomes (LEMME,
2004, p. 102).

O Manifesto refletiu o esforço dos signatários pela elevação do


nível cultural do povo, utilizando um sistema democrático de educação
pública em que seja proporcionado, a cada indivíduo, a oportunidade
de se desenvolver plenamente em todas suas potencialidades e, dessa
forma, ocupar na sociedade uma situação que correspondesse melhor às
suas capacidades e aspirações.
O Manifesto da Educação Nova, em suas propostas, foi apresenta-
do como uma carta de princípios pedagógicos, um marco em prol de uma
escola renovada, mas, sobretudo, em defesa da afirmação da responsabi-
lidade do Estado pela expansão da educação pública no país. Também se
constituiu como a única manifestação realmente de valor e grande alcance
daquele momento, firmado por um grupo das mais destacadas figuras da

145
intelectualidade brasileira, abordando o ensino e as direções nas quais
deveriam ser conduzidas questões educacionais do país, em busca da
renovação educacional que correspondesse aos anseios e às esperanças
dos brasileiros na construção de um país justo e moderno.

O trabalho profissional

A atuação profissional de Edgard é descrita por Paschoal Lem-


me (2004, p. 51), o qual informa que Mendonça foi diretor da Escola
Profissional Álvaro Batista, especializada em artes gráficas; também foi
nomeado, durante a administração de Fernando de Azevedo, para assumir
a Diretoria-Geral da Instrução Pública do Distrito Federal (1926-1930),
quando então passou a se dedicar especialmente ao ensino técnico das
artes gráficas. Em seguida, relata que Edgard passou a lecionar no curso
de didática das ciências físicas e naturais, no Instituto de Educação – já na
administração de Anísio Teixeira (1931-1935) –, confirmando, assim, seus
dotes excepcionais de professor, com pleno domínio dos mais aprimorados
métodos e técnicas de ensino (LEMME, 2004, p. 51-52). Ainda, “O curso
que organizou em colaboração com Francisco Venâncio Filho e que publi-
cou sob o título de Ciências físicas e naturais, é um modelo do que deve ser
o ensino dessas ciências nos currículos das escolas de 2º grau” (LEMME,
2004, p. 54).
Adriana Mendonça (2013, p. 32) acrescenta que Edgard Sussekind
de Mendonça foi também um dos fundadores e principais ativistas de um
novo meio de comunicação, na época, o Rádio, que aparece oficialmente no
Brasil em 1922, na exposição do centenário da independência, quando foi
transmitido o discurso do presidente Epitácio Pessoa e, a seguir, foi reali-
zada a transmissão de uma ópera, do Teatro Municipal do Rio de Janeiro,
chamada “O Guarany”, de Carlos Gomes.
A criação do rádio foi modificando, aos poucos, a vida dos brasilei-
ros de todos os cantos do país, trazendo notícias, informações e conhe-
cimentos para o “homem da cidade” e, logo em seguida, para o “homem
do campo”. Destaca-se a participação de Mendonça no aparecimento do

146
rádio, como uma iniciativa de intelectuais e cientistas, cujos objetivos
eram, primordialmente, culturais, educativos e científicos.

A chegada do rádio no Brasil gerou uma onda de euforia


em alguns meios educacionais muito similar à que presen-
ciamos com a internet nesta década e, anos atrás, com a
TV. Acreditava-se, naquele momento, que o rádio seria um
meio barato, rápido e eficaz de democratizar a informação
e, assim, educar toda a nação (MASSARANI, 1998, p. 124).

Mendonça (2013, p. 34) explica que a ideia inicial era que o rádio
tivesse um papel fundamentalmente educativo. Nesse começo, o rádio era
um meio de comunicação que pertencia à elite, pois os aparelhos recepto-
res eram muito caros. Transmitiam óperas, concertos, recitais de poesia,
palestras científicas e uma programação de alto nível cultural. Somente
a partir dos anos 1930 o rádio se tornou um veículo realmente popular. O
Decreto n. 21.111, de março de 1932, regulamenta a publicidade comercial
no rádio, ao mesmo tempo que considerava a Rádio Fusão como um meio
de interesse para finalidades educacionais.
De acordo com Luisa Massarani (1998, p. 81), a Rádio Socieda-
de, do Rio de Janeiro, foi criada por um grupo de pessoas, entre elas os
membros da Academia Brasileira de Ciências – ABC, que se reuniram para
implantar esse novo veículo de comunicação, com o objetivo de difundir
assuntos culturais e científicos. Segundo os estatutos da Rádio Sociedade,
esta instituição foi fundada com fins exclusivamente científicos, técnicos,
artísticos e de educação popular, não se envolvendo em assuntos profis-
sionais, industriais, comerciais ou políticos (Cf. MASSARANI, 1998, p. 128).
É fundamental descrever o idealismo que orientou a criação dessa
Rádio que, de certa forma, norteou a perspectiva cultural no início da utili-
zação desse meio de comunicação, no Rio de Janeiro.
Massarani (1998, p. 81) ainda destaca que os idealizadores da
Rádio Sociedade tinham como objetivo criar um espaço dinâmico em
sua sede com uma sala para cursos e conferências, uma biblioteca, um
laboratório de ensaios para seus componentes e uma estação emissora
(broadcasting) para irradiar concertos, palestras, assuntos de diversos

147
interesses culturais de cunho científico, artístico, literário, assim como o
boletim do tempo e outras curiosidades.
Albert Eisntein, quando esteve no Brasil, em maio de 1925, visitou
a rádio e, nela, transmitiu publicamente suas impressões, traduzidas pelo
químico, Mario Saraiva:

Após minha visita a esta Rádio Sociedade, não posso deixar


de mais uma vez admirar os esplêndidos resultados a que
chegou a ciência aliada à técnica, permitindo aos que vivem
isolados os melhores frutos da civilização. É verdade que o
livro também poderia fazer e o tem feito; mas não com a
simplicidade e segurança de uma exposição cuidada e ouvida
de viva voz. O livro tem que ser escolhido pelo leitor, o que
por vezes traz dificuldades na cultura levada pela radio-
telefonia, desde que sejam pessoas autorizadas as que se
encarreguem das divulgações, quem ouve, recebe, além de
uma escolha judiciosa, opiniões pessoais e comentários que
aplainam os caminhos e facilitam a compreensão: esta é a
grande obra da Rádio Sociedade (MENDONÇA, 2013, p. 73).

Toda essa mesma militância de Edgard pelos temas da educação aca-


bou o levando à prisão, no ano de 1935, durante o governo de Getúlio Vargas,
fato que marcou a família Sussekind de Mendonça nos anos posteriores.
Em novembro de 1935, ocorreu o movimento insurrecional de-
nominado “Intentona Comunista”. Os acontecimentos seguintes foram
marcados pelo acirramento das ações dos órgãos repressivos, culminando
na prisão de militantes e simpatizantes da Aliança Nacional Libertadora –
ANL, entre eles, figuravam Edgard Sussekind de Mendonça e sua esposa
Armanda Álvaro Alberto, suspeitos de participarem do levante comunista.
Edgard permaneceu preso de 1o de dezembro de 1935 a 21 de dezembro
de 1936, e Armanda Alberto, por sua vez, esteve detida entre 8 de outubro
de 1936 e 22 de junho de 1937 (MORAES, 2012, p. 9).
Mendonça foi demitido dos cargos que exercia (professor do Ins-
tituto de Educação do Rio de Janeiro e desenhista do Serviço Geológico
do Ministério da Agricultura) e teve que esperar até o ano de 1947 para
ser reintegrado ao cargo de professor na Escola Secundária do Instituto de
Educação do Distrito Federal (MIGNOT, 1993, p. 304).

148
A ANL foi uma frente única de partidos de esquerda, sindicatos,
certa ala tenentista e alguns elementos apartidários, ou seja, uma con-
junção entre parte da classe média e parte da classe operária com a qual
Edgard Sussekind de Mendonça simpatizava e, inclusive promovia reuniões
em sua própria casa.
Paschoal Lemme (1989, p. 218), explicou, em suas Memórias, os
motivos que pesaram sobre sua própria prisão e a de Edgard Sussekind de
Mendonça: tinham sido professores de um curso para a União Trabalhista
que utilizava um referencial marxista. Lembra ainda os velhos e dolorosos
“tempos agitados e difíceis das posições extremadas”, descrevendo as
reuniões das quais participava, na casa de Armanda e Edgard, com a pre-
sença de importantes líderes da revolução de 1935, que foram indiciados e
presos sob acusação de incitar a rebelião.
Souza (2011, p. 5) afirma que o conhecimento da militância de
Sussekind de Mendonça, em inúmeras outras causas sociais e políticas,
permite levantar suspeita de que teriam sido as suas firmes convicções
científicas ou até mesmo positivistas, e não o comunismo, que o levaram a
se opor ao ensino religioso e a defender a laicização das escolas.
Sua forte oposição ao ensino religioso nas escolas lhe rendeu mui-
tas críticas, inclusive com agressão física, como a que ocorreu em 1934,
no Congresso de Educação no Ceará. Em fevereiro de 1934, o padre Helder
Câmara atuou como membro da comissão executiva organizadora da VI
Conferência Nacional de Educação, promovida pela ABE, em Fortaleza.
Praxedes (2015, p. 11) conta que, na ocasião, após fazer uma
exposição e um dos debates, o padre Helder Câmara protagonizou um
boicote aos educadores ecolanovistas presentes, dentre os quais estava
Anísio Teixeira, Almeida Júnior e Edgard Sussekind de Mendonça:

Comandei a retirada do público numeroso que acorrera à


minha palestra [...] recordaria Câmara, auto criticamente.
Contra todas as regras da hospitalidade cristã e do espírito
evangélico, deixei os visitantes – uns 30 educadores, vindos
sobretudo do Rio – às moscas (PRAXEDES, 2015, p. 11).

149
Com o acirramento do confronto entre católicos e escolanovistas
na conferência, o educador Edgard Sussekind de Mendonça contesta Dom
Xavier de Matos, o representante da Confederação Católica Brasileira de
Educação. Em represália, logo após o encerramento do evento, no dia 12
de fevereiro de 1934, explica Praxedes (2015, p. 12) que o padre Helder
Câmara insufla pessoalmente um grupo de militantes integralistas a surrar
o Edgard Sussekind de Mendonça.
Sobre esse acontecimento, afirma Moraes (2012, p. 16) que o
jornal A Lanterna, do dia 22 de fevereiro de 1934, dirigido pelo anarquista
Edgard Leuenroth, destacou a “revoltante violência Clérico-Integralista no
Ceará” em que “o Dr. Edgard Sussekind de Mendonça foi covardemente
agredido pelas capangas das sacristias”. E conclamava: “Urge intensificar o
movimento anticlerical, para fazer frente às hordas vaticanescas”.
Leuenroth (1963, p. 114) assevera que o jornal afirmou a neces-
sidade de combater a influência da igreja “em suas ações reacionárias”,
visto que a instituição, para ele, auxiliava a exploração capitalista. Nesse
sentido, “disseminaram-se por todo o país as organizações anticlericais,
que promoviam conferências e comícios e divulgaram jornais, manifestos
e prospectos. No Rio de Janeiro teve atuação de destaque, tornando-se um
centro de combate e de educação social”.
Em 1924, explica Moraes (2012, p. 2), os irmãos Carlos e Edgard
Sussekind de Mendonça lançaram o opúsculo “Iniciando uma campanha
contra a ação católica no Brasil”, prefaciado por Edgar. No início da década
de 1930, eles eram membros da Liga Anticlerical no Rio de Janeiro. As ligas
foram fundadas em diversos lugares do Brasil.

REFERÊNCIAS

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150
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Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/semina-
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VIDAL, D. G. 80 anos do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova: questões
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2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1517-97022013000300002&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 1 out. 2017.

151
CAPÍTULO XI

FERNANDO DE AZEVEDO

César Evangelista Fernandes Bressanin1


Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida2
José Maria Baldini3

Os diversos papéis e funções exercidas por Fernando de Azevedo


ao longo de sua vida – professor, educador, crítico, ensaísta, historiador,
jornalista e sociólogo – colocaram-lhe no rol de intelectuais de seu tempo.
Um intelectual militante e compromissado com a educação, tornando-se
crítico em relação à escola e o papel dela. Podemos referendar Fernando
de Azevedo como aqueles “[...] intelectuais que apresentavam identidades
plurais, constituídas a partir da produção muitas vezes articulada entre
pensamento e ação” (PINTO et al., 2000, p. 33).
Sua trajetória profissional profícua foi indissociável de sua inte-
lectualidade: “foi um homem obcecado pelo trabalho” (PILETTI, 1994a, p.
182), engajado nos grupos e movimentos aos quais se filiou, e dono de

1 Doutor em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/4737722834785056. E-mail: cesarfernandes@


uft.edu.br.
2 Doutora em História. CV: http://lattes.cnpq.br/5736362178244406. E-mail: zeneide.cma@
gmail.com.
3 Doutor em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/2750664629773893. E-mail: jmbaldino@uol.
com.br.

152
uma considerável “produção bibliográfica, realizada nos interstícios (e em
alguns casos em decorrência) de suas ocupações” (ANJOS, 2014, p. 158).
Para Azevedo, era preciso pensar o Brasil e, “ao pensá-lo, [...]
encontra na educação um elemento poderoso de mobilidade social e
transformação do país” (PENNA, 2010, p. 73). Assim, dentro do pen-
samento educacional brasileiro, Azevedo pode ser considerado um
intelectual que participou efetivamente da construção de uma nova
maneira de pensar a educação. Além disso, seus escritos sintetizam
essa nova concepção de educação, servindo de fundamento para o
movimento escolanovista brasileiro.
Recorrendo a diversos teóricos e suas aplicações dentro de outros
contextos, soube absorver pressupostos que embasaram seu pensamento
e suas formulações, sem deixar de lado o contexto político e social da na-
ção. Além disso, “Seus pensamentos e ideias foram construídos tendo por
mote encontrar soluções que coubessem na realidade nacional” (SILVA;
NOMA, 2013, p. 197).
Paschoal Leme, um de seus amigos, o tinha como “uma das mais
altas expressões da inteligência e da cultura do Brasil moderno” (PILETTI,
1994b, p. 183). Por isso, faz-se mister considerar a trajetória humana e
intelectual de Fernando de Azevedo, especialmente na fase de transição,
como a que ele viveu entre um processo de industrialização insipiente e
urbanização desorganizada; Revolução de 1930; fim e término do Estado
Novo; regimes totalitários impondo seu poder e força; Segunda Guerra
Mundial. No entanto,

[entre essas] condições procurou pensar o Brasil com os ins-


trumentos e categorias que lhe pareceram mais adequadas e
com os quais realizou uma tomada de consciência da realida-
de educacional brasileira, suas especificidades, tendências,
conflitos e necessidades (PENNA, 2010, p. 13).

Como base em seus pensamentos, ações e projetos, fundamentou


seu “arcabouço “teórico-filosófico-prático” escolanovista: Dewey, Kerschens-
teiner, Pestalozzi, Decroly, além [de] outros sistemas explicativos, como os de
Dürkheim, Pareto, Marx, entre outros” (SILVA; NOMA, 2013, p. 197).

153
Sua trajetória

Mineiro, de São Gonçalo do Sapucaí, Fernando de Azevedo nasceu


no dia 2 de abril de 1894. Foi o terceiro filho da numerosa família do Sr.
Francisco Eugênio de Azevedo e da Sra. Sara Lemos de Almeida Azevedo,
e viveu sua infância na pequena cidade de Cambuquira, interior de Minas
Gerais. Em sua obra História de minha vida, Fernando de Azevedo narra
algumas peculiaridades de sua infância e o caracteriza como um menino
franzino, solitário, rebelde, caprichoso e aplicado nos estudos.
Quanto à sua vida estudantil, foi encaminhado à sua cidade natal
para morar com seus tios maternos, Fernando Lemos e Laura de Almeida
Lemos. Ali cursou o primário no colégio particular de Francisco Lentz, pre-
parando-se para o curso ginasial que iniciou em 1903, no Colégio Anchieta,
dos padres jesuítas, em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, que funcionava
como um internato para meninos e rapazes. Seus pais pareciam ter boas
condições financeiras, na época, no entanto, algumas correspondências
sugerem que passaram por dificuldades, colocando em risco sua vida escolar
(NIEPHE, 2000).
Certamente, Fernando de Azevedo teve uma excelente formação
intelectual, tendo em vista a possibilidade de estudar em uma escola de
ordem religiosa, clássica e afamada pela dedicação e zelo para com o en-
sino e os estudos.
Ao concluir seus estudos, desperta-se para a vida religiosa e, em
1909, ingressa no noviciado dos jesuítas, sob a orientação do padre Leonel
de França. Durante o tempo da experiência vocacional com os filhos de
Inácio de Loyola, Azevedo, em uma crise de consciência, refletiu sobre
o chamado à vida religiosa e se deparou com sua verdadeira vocação: o
magistério (NIEPHE, 2000). Vocação esta que havia experimentado dentro
do próprio convento, visto que, em diversas ocasiões, “[...] era destacado
para substituir professores em seus impedimentos, reger essa ou aquela
cadeira para a qual faltavam [...]” (AZEVEDO, 1971, p. 27).
Com isso, deixa a vida religiosa em 1914 e se matricula no curso de
Direito, no Rio de Janeiro, iniciando sua formação acadêmica. No mesmo

154
ano, transfere o curso para Belo Horizonte e, na capital mineira, leciona
latim e psicologia, no Ginásio do Estado.
Como “homem de pensamento, com múltiplos interesses intelec-
tuais, para quem nada do que é humano era estranho” (PILETTI, 1994a,
p. 182), Fernando de Azevedo, dentro do Ginásio Estadual, desenvolveu
interesse pela disciplina de educação física, adquirindo conhecimentos
nessa área e analisando severamente as condições precárias do ensino de
ginástica. A partir disso, propôs ao governo mineiro, em 1916, um projeto
de lei que foi aprovado pela Câmara dos Deputados e que tornou essa
disciplina obrigatória em todas os níveis de ensino e em todas as escolas
públicas e privadas de Minas Gerais.
Três fatos, no contexto da educação física, chamam a atenção na
trajetória de Azevedo: ao propor o projeto de lei “já ali se mostrava sua
vocação de educador e reformador da educação” (PENNA, 2010, p. 147),
bem como o esporte, que esteve presente em vários momentos da vida
do educador, como esgrima e natação, no tempo do colégio dos jesuítas e,
em 1942, obteve o brevê de piloto. Nesse mesmo ano, também concorreu
a uma vaga para a cadeira de professor de educação física do Ginásio es-
tadual, apresentando a tese A poesia do corpo. Porém, mesmo tendo sido
aprovado no concurso, não tomou posse do cargo devido a interferências
políticas. Apesar disso, Fernando de Azevedo publicou a tese apresentada,
sendo essa sua primeira obra, e, posteriormente, publicou a segunda edi-
ção dela sob o título modificado “Da Educação Física: o que ela é, o que tem
sido e o que deveria ser” (NIEPHE, 2000).
Em 1917, Azevedo se mudou para São Paulo, onde concluiu o
curso de Direito, em 1918. Nesse interim, foi professor de latim no Ginásio
Anglo-Brasileiro. De fato, o que o levou para São Paulo foi conhecer Elisa
Assunção do Amarante Cruz, em dezembro de 1916, em Cambuquira. Elisa
era uma moça paulista, de família tradicional, e que, em 1917, casou-se
com o intelectual.

Acontece, porém, que, descendo uma das ruas da cidade,


cruzei com um casal, acompanhado de um casal de filhos.
Vim a saber que eram de São Paulo [...]. Ao nos cruzarmos,

155
não me foi difícil perceber que a filha [Elisa] me olhava com
certo interesse, mais ou menos o mesmo que me despertara,
com seus olhos azuis, com seus cabelos castanho-claros e
pela delicadeza de seus traços. Não podia imaginar, naquele
momento, que eu cruzava com alguém que iria influir no meu
próprio destino [...] (AZEVEDO, 1971, p. 47).

Sua militância

Depois de formado, Fernando de Azevedo iniciou sua intensa vida


profissional e intelectual na capital paulista. Nunca militou como advoga-
do. Sua paixão profissional foi a educação, desde o tempo em que conviveu
com os jesuítas. Em 1921, lecionava latim e literatura na Escola Normal de
São Paulo. Concomitantemente, dedicou-se à crítica e à História Literária
escrevendo, primeiramente, para o jornal Correio Paulistano e, posterior-
mente, para O Estado de S. Paulo, onde mantinha a coluna Ensaios.
Em 1926, Fernando de Azevedo foi convidado pelo diretor do jornal
O Estado de S. Paulo, Julio de Mesquita Filho, seu amigo e incentivador, para
realizar um inquérito sobre a Instrução Pública em São Paulo. Apesar de
hesitar em realizá-lo, como ele mesmo justifica, visto que “nesses domí-
nios (da educação), os meus conhecimentos não ultrapassavam ainda as
fronteiras de duas especialidades: da educação física [...] e da literatura e
língua latina [...]” (AZEVEDO, 1963, p. 25), “Foi no decorrer do inquérito que,
deixando-se empolgar pelo problema, resolveu dedicar-se inteiramente ao
assunto em que mais tarde se revelaria um mestre” (PENNA, 2010, p. 39).
Ao elaborar esse inquérito, Fernando de Azevedo se aprofundou
nas leituras sobre educação, conhecendo, assim, as novas tendências da
área e as ideias escolanovistas, especialmente de Dewey, de quem recebeu
grande influência ao formular seu pensamento pedagógico/educacional.
Esse inquérito, mesmo que tenha sido respondido por educadores
paulistas, revelava, a priori, a situação da educação no Brasil, e, também
significou a tomada de consciência da questão educacional, por Fernando
de Azevedo, que lançou o inquérito como insigne especialista e grande re-
novador da educação brasileira. Desse inquérito, surgiu uma de suas obras

156
A educação pública em São Paulo, problemas e discussões: Inquérito para o
Estado de S. Paulo, publicado em 1937 e, em uma segunda edição, sub o
título A educação na encruzilhada, em 1960. Um trecho dessa obra revela
algumas soluções, apontadas por Azevedo, para os problemas levantados
pelo inquérito.

A necessidade de uma política de educação, com unidade de


concepção e de plano, nas suas diretrizes e linhas gerais, como
a de colocar os problemas de educação em face das novas con-
dições econômicas e sociais e de adaptar o ensino às neces-
sidades regionais; a reconstrução da escola para a formação
de valões socialmente úteis; a organização da escola primária
como escola do trabalho e escola-comunidade; o problema da
preparação do professor e a elevação do seu status social; a
cooperação da família e da escola; as bibliotecas escolares,
operárias e circulantes; o apelo ao cinema e ao rádio como ins-
trumentos educativos e o seu papel na escola; a orientação e a
seleção profissional pelos métodos psicotécnico; a valorização
técnica do elemento humano; o ensino secundário baseado
nas línguas modernas e nas ciências; o papel da ciência e da
técnica na civilização industrial; a associação do ensino e da
pesquisa; eis aí várias questões mais discutidas e das medidas
propostas no inquérito, e em torno de algumas das quais se
estabeleceu uma notável convergência de pontos de vista
(AZEVEDO, 1963, p. 20).

A década de 1920 foi fértil, no que se refere à discussão sobre a


educação no Brasil, poie alguns educadores viam a necessidade de mu-
danças, e o movimento pela reestruturação do ensino ganhou força com as
conferências de educação, de 1922, e a fundação da Associação Brasileira
de Educação – ABE, em 1924. As reformas do ensino se irradiaram por
vários estados brasileiros e se concretizaram no Ceará, com Lourenço
Filho, (1923); no Rio de Janeiro, com Carneiro Leão (1926); no Paraná,
com Lisímaco da Costa (1927); em Minas Gerais, com Francisco Campos e
Mário Casasanta (1927-1928), na Bahia, com Anísio Teixeira (1928); e em
Pernambuco, com Carneiro Leão (1928).
Em 1927, Fernando de Azevedo foi nomeado pelo prefeito
do Rio de Janeiro, na época, Antônio Prado Junior, para o cargo de

157
diretor-geral de Instrução Pública do Distrito Federal, função que de-
sempenhou de janeiro de 1927 a outubro de 1930. O conhecimento
e as experiências adquiridas com o inquérito de São Paulo, somados
à personalidade corajosa e destemida de Azevedo, fizeram com que
propusesse ao prefeito, ainda em 1927, uma reforma radical na
educação da capital do Brasil.
Tendo o projeto sido submetido à Câmara dos Vereadores do Dis-
trito Federal, em 4 de outubro de 1927, Azevedo

[...] o defendeu perante o Conselho Municipal [...] suas Co-


missões, e o público em geral. [...] manteve-se calmo, sereno,
durante a longa exposição de motivos. Mas, encenando o que
infelizmente se tornou um acontecimento usual em nossas
câmaras supostamente representativas, sua explanação do
projeto educacional que idealizara terminou em tumulto,
tiros e ordem de se evacuarem as galerias [...]. Foi atacado
por todos, oposição e situação. Houve manobras de ambos
os lados para cooptá-lo. [...] Fernando de Azevedo não aceita
tais condições, mas consegue manter o projeto na íntegra
apoiado pelo prefeito que obtém também a aquiescência do
Presidente Washington Luís [...] (PENNA, 2010, p. 44).

A partir do início do ano de 1928, começou a vigorar, no Distrito


Federal, a reforma projetada por Fernando de Azevedo que “[...] não é
apenas uma reforma de métodos pedagógicos. É a reorganização radical
de todo o aparelho escolar em vista de uma nova finalidade pedagógica e
social” (AZEVEDO, 1958, p. 72).
Nessa reforma, embasada em princípios que foram norteados pela
sociologia – ciência de que se tornou estudioso e especialista –, eclodem
ideias inovadoras a respeito da educação, que foram instrumentalizadas
pela ciência social, como a escola única, escola do trabalho e a escola-co-
munidade, como percebemos em seu relato.

[...] A educação deve ser uma para todos (única), obrigatória


e gratuita [...] “um ponto de partida comum para todos”
os alunos dos meios diversos, é a poderosa instituição de
“aprendizagem da vida coletiva”, de “realização da unidade
nacional”. [...] A escola do trabalho é a escola em que a

158
atividade é aproveitada como um instrumento ou meio de
educação. Nada se aprende, senão fazendo: trabalhando [...].
Assim, a tarefa da escola, além de criar e desenvolver o sen-
timento democrático (escola única), poderá transformar-se
num instrumento de reorganização econômica pela escola
de trabalho. A reforma baseou toda a educação na atividade
criadora e pesquisadora do aluno, estimulada pelo interesse,
que, permitindo desenvolver-se o trabalho com prazer, lhe
dá o caráter educativo de que deve revestir-se na escola
primária. [...] A escola nova se propõe, por uma forma de vida
e de trabalho em comum, a ensinar a viver em sociedade e
a trabalhar em cooperação. O aluno não deve exercer a sua
atividade isoladamente, mas quanto possível, em grupos,
em que a realização e a responsabilidade de um “trabalho”
sejam atribuídas a vários indivíduos para se habituarem a
agir em cooperação, afirmando a sua personalidade, com
espírito de disciplina coordenador de esforços individuais [...]
(AZEVEDO, 1958, p. 72-74).

Outra ênfase da reforma da instrução no Distrito Federal, onde se


salienta a importância e a interferência dos estudos sociológicos de Fernan-
do de Azevedo, está no destaque para a formação dos professores, pois

[...] se é certo que, colocando os professores em faze dos


problemas postos pelas pesquisas sociológicas, se consegue
imprimir a seus espíritos uma orientação geral, de que todo
o ensino poderá beneficiar-se, é verdade também que o
confronto do sistema pedagógico com o conjunto do sistema
social levará o professor a compreender melhor o lugar da
escola na vida e os limites de seu círculo de ação. [...] Dir-
-se-ia, de fato como observou C. Bouglé, que a escola pode
tudo, e que dominar a escola é dominar toda a sociedade
(AZEVEDO, 1958, p. 97-98).

A reforma educacional do Distrito Federal foi ruidosa pois reor-


ganizou a Instrução Pública da capital brasileira, ou seja, alterou o ensino
normal, construiu novos prédios, organizou o Ensino Primário e o tornou
gratuito e obrigatório, remodelou as escolas as adequando ao meio em que
se localizavam (urbano, rural ou marítimo) e as especializando conforme a
vocação de cada região, inseriu a ginástica em todos os níveis, construiu
praças ao derredor das escolas etc.

159
Esse ruído influenciou e incentivou outras reformas pelo Brasil e,
também, intensificou a militância dos educadores que enxergavam o mo-
mento pelo qual a nação passava como um tempo de mudanças.
Com a Revolução de 1930, Fernando de Azevedo foi deposto da
função de diretor da Instrução Pública do Distrito Federal e retornou para
São Paulo com sua família. Novamente na capital paulista, retornou às
atividades de professor e de jornalista, lecionando sociologia na Escola
Normal e se dedicando aos estudos de aprofundamentos do pensamento
de Durkheim e Dewey, dois autores que influenciaram fortemente seu
pensamento como sociólogo e educador.
Azevedo ocupou cargos diversos na administração pública, tendo
uma vida profissional bastante eclética, porém sempre voltada para inte-
resses sociais e culturais. Em 1931, teve uma atuação significativa como
fundador, organizador e diretor da Biblioteca Pedagógica Brasileira – BPB.
Além disso, contribuiu para a estruturação do campo cultural brasileiro,
por meio da coordenação de importantes coleções científicas produzidas
e mantidas pela BPB, entre elas a série Iniciação Científica e a Coleção
Brasiliana, ambas lançadas em 1931.
A Associação Brasileira de Educação – ABE se expandiu desde
sua fundação com a realização das conferências de educação, em 1927,
1928 e 1929, atraindo cada vez mais associados educadores e gestores da
educação de todo o país, tanto da educação pública como da rede privada.
Na visão de Carvalho (1994, p. 72), a ABE “havia sido projetada como órgão
legítimo de opinião das classes cultas, destinado a colaborar em perfeita
harmonia com os governos em questões de educação”.
Em 1931, a ABE realiza a IV Conferência de Educação em Niterói,
no Rio de Janeiro, e recebe a solicitação do presidente Vargas e do Ministro
da Educação, Francisco Campos, de fornecer para o Governo Provisório um
plano que embasasse a política do ensino no Brasil.
A ABE estava dividida: havia uma dualidade entre os defensores
de uma educação de orientação religiosa (ala católica) e os defensores
da educação única, laica e gratuita, os quais se impuseram à conferência,
não permitindo que fosse apresentado ao governo algo dessa assembleia.

160
Dessa forma, ficou estabelecido que seria escolhido um único orador para
a redação desse documento que deveria ser apresentado na IV Conferência
de Educação, em 1932.
O escolhido para redigir tal documento foi Fernando de Azevedo
que, durante a IV Conferência de Educação, havia feito um discurso con-
templando os ideais defendidos pelo grupo que buscava aplicar as ideias
da Educação Nova no Brasil. A escolha de Azevedo para a redação deste
manifesto

deveu-se principalmente à sua atuação como reformador


escolar no Distrito Federal, nos últimos anos da década de
1920 [que] contara com a colaboração de diversos educado-
res cariocas [Venâncio Filho, Edgar de Mendonça, Armanda
Álvaro Alberto e outros], então sediados na ABE, funcio-
nando como um polo aglutinador em torno de propostas de
remodelação escolar (CARVALHO, 1994, p. 73).

Assim, Fernando de Azevedo redigiu o Manifesto dos Pioneiros da


Educação Nova: a reconstrução educacional do Brasil – ao povo e ao governo,
que foi lançado logo após a V Conferência como resposta ao Governo
Provisório. Assinado por 32 signatários4, o Manifesto elucidava pontos
importantes para uma reforma educacional no Brasil. Tais pontos não se
divergiam da reforma implementada por Fernando de Azevedo, no Distrito
Federal, em 1928, mas alavancavam inúmeras outras situações que colo-
cariam a educação brasileira na vanguarda, como a laicidade do ensino e a
criação de universidades.
Os princípios norteadores do Manifesto estão assentados sobre os
ideais da Educação Nova e de seus pensadores que, na visão de Azevedo,
buscam um “[...] sistema de educação vivo e flexível, concebido como uma
obra orgânica” (AZEVEDO, 1958, p. 53).

4 Eram eles: Fernando de Azevedo, Afrânio Peixoto, Anísio Spínola Teixeira, Manuel Bergström
Lourenço Filho, A. de Sampaio Dória, Roquette-Pinto, Frota Pessoa, Julio de Mesquita Filho,
Raul Briquet, Mário Casasanta, C. Delgado de Carvalho, A. Ferreira de Almeida Junior, J.
P. Fontenelle, Roldão Lopes de Barros, Noemy M. da Silveira, Hermes Lima, Attilio Vivacqua,
Francisco Venâncio Filho, Paulo Maranhão, Cecília Meireles, Edgard Sussekind de Mendonça,
Armanda Álvaro Alberto, Garcia de Rezende, Nóbrega da Cunha, Paschoal Lemme, Raul Gomes.

161
O Manifesto reforça as ideias já expressas por Azevedo na reforma
do ensino do Distrito Federal, em defesa da escola única, na qual caberia,
a um só tempo, uma escola que promovesse maior adequação do aluno
ao meio social – educando para o trabalho, a convivência social e o coope-
rativismo, e uma escola comunidade –, bem como estimulasse a espargir
os ideais nacionalizantes e democráticos da civilização atual (AZEVEDO,
1958, p. 74).
Assim, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova trazia em
seu bojo as expectativas de uma concepção de escola leiga, gratuita
e obrigatória, que enfatizasse o cenário e as necessidades regionais,
implicando “uma unidade que não significasse uniformidade, mas, ao
contrário, multiplicidade e, por conseguinte, uma educação que fosse
federativa e descentralizada” (PENNA, 2010, p. 61). Essas concepções e
anseios revelavam o pensamento azevediano sobre a educação a partir
de seus embasamentos, aqui já arrolados, na Sociologia Durkheimiana
e no pensamento ecolanovista de John Dewey. Concepções e anseios
de que comungavam os demais signatários do movimento talvez não
fundamentados nos mesmos teóricos.
Apesar da Constituição federal de 1934 ter inserido em seu texto
muitas das reinvindicações do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
de 1932, o texto constitucional de 1937 abandona as ideias da Educação
Nova. Na visão de Azevedo, “[...] com o golpe de estado que instituiu, no
Brasil, a 10 de novembro de 1937, um regime autoritário e unitário, entrou
em declínio a campanha que se vinha desenvolvendo pela renovação edu-
cacional [...]” (AZEVEDO, 1963, p. 695).
Para Penna (2010), Fernando de Azevedo foi constante quando
defendia a ideia de que a mudança de mentalidades é o passo mais im-
portante para a transformação de estruturas. No Manifesto, esse vetor
constituiu o seu cerne: “a necessidade de uma mudança de mentalidades,
condição essencial para que se possa resolver problemas urgentes da
realidade educacional brasileira” (PENNA, 2010, p. 30).
Assim, apesar do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de
1932 ser considerado um importante marco na história da educação

162
brasileira, pela originalidade e urgência de seus apelos às mudanças nas
políticas educacionais, e servir de inspiração e bússola para se estudar
os princípios de uma educação democrática, de uma escola única, leiga,
gratuita e universal, ele não conseguiu alcançar seu objetivo. Talvez o
pensamento de Azevedo, de fato, aqui se aplique: não é possível realizar
qualquer tipo de renovação ou modificação sem reformas de base, sem a
mudanças de mentalidade.
Independentemente de inúmeras críticas e perseguições, em
virtude do Manifesto dos Pioneiros, a trajetória de Fernando de Azevedo
floresce e ele passa a ocupar lugar de destaque entre os intelectuais e
educadores do Brasil. No final de 1932, foi nomeado diretor-geral da Ins-
trução Pública de São Paulo e, apesar de ficar pouco tempo nessa função,
realizou, em São Paulo, mais uma reforma na educação, por esse motivo,
não é por acaso que Antonio Candido o chama de “o reformador”.
Além de tudo, Azevedo implementou o Código de Educação de São
Paulo, que, posteriormente, transformou-se no Decreto-lei n. 5.884, de
21 de abril de 1933. Esse Código dispunha, em sua estrutura, de alguns
elementos reformadores característicos de Azevedo, como a reestru-
turação do Curso Normal – pois prioriza a formação dos professores –,
a organização da escola de educação física (uma de suas paixões), bem
como a obrigatoriedade dessa matéria nas escolas públicas e particulares,
e implantação do ensino de sociologia em todas as Escolas Normais do
Estado de São Paulo. Algumas questões administrativas foram também
elencadas nesse Código, como a reorganização do quadro de inspetores
escolares e definição de suas funções, e a revisão do processo de seleção e
transferência de professores.
Fernando de Azevedo não abandonou a docência, pois, durante o
ano de 1932, passou a dar aulas de Sociologia Educacional no Instituto de
Educação de São Paulo o qual foi fundador e seu primeiro diretor, e, em
1934, participou ativamente da fundação da Universidade de São Paulo
– USP, como redator de seu anteprojeto e de primeiro regimento. Nessa
universidade, dedicou grande parte de sua vida docente e de pesquisador
como catedrático do Departamento de Sociologia e Antropologia da Facul-
dade de Filosofia, Ciências e Letras; e alguns de seus contemporâneos o
consideram como a alma mater dessa universidade.

163
REFERÊNCIAS

ANJOS, J. J. T. dos. Fernando de Azevedo, “a cultura brasileira” e a história da educa-


ção. Revista Tempos e Espaços em Educação, v. 7, n. 14, set./dez. 2014.
AZEVEDO, F. de. A cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil. 4. ed.
rev. amp. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963.
AZEVEDO, F. de. História de Minha Vida. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1971.
AZEVEDO, F. de. Novos caminhos e novos fins: a nova política da educação no Brasil.
3. ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1958.
CARVALHO, M. M. C. Fernando de Azevedo: pioneiro da Educação Nova. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 37, 1994.
NASCIMENTO, A. S. Fernando de Azevedo: dilemas na institucionalização da Sociolo-
gia no Brasil. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.
NIEPHE. Trajetória de vida e de profissão. São Paulo: USP – Instituto de Estudos
Brasileiros – Arquivo Fernando de Azevedo, 2000. Disponível em: http://www.usp.br/
niephe/publicacoes/docs/TRAJETOR.PDF. Acesso em: 17 abr. 2018.
PENNA, M. L. Fernando de Azevedo. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Mas-
sangana, 2010. Coleção Educadores.
PILETTI, N. Fernando de Azevedo: da educação física às ciências sociais. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 37, 1994a.
PILETTI, N. Fernando de Azevedo. Revista Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 22,
p. 181-184, set./dez. 1994b.
PINTO, D. C. et al. Trajetórias de liberais e radicais pela educação pública: Anísio Tei-
xeira, Darcy Ribeiro, Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes. São Paulo: Loyola,
2000.
SILVA, M. M. da; NOMA, A. K. O projeto político-educacional azevediano no Brasil nos
anos 1920-1930. Revista Histedbr On-Line, Campinas, v. 13, n. 53, out. 2013.

164
CAPÍTULO XII

FRANCISCO VENÂNCIO FILHO

Luiz Felipe Cândido de Oliveira5

Francisco Venâncio Filho nasceu na cidade de Campos, no estado


do Rio de Janeiro, no dia 14 de abril de 1894, e pertencia a uma família
tradicional de fazendeiros, sendo filho de Francisco Venâncio e Antônia
Gomes Venâncio.
Iniciou seus estudos primários na Escola Alemã, em Campos, e,
quando ficou órfão de pai, logo se transferiu para o Rio de Janeiro, que, na
época, era a capital federal, passando a estudar no antigo Externato Aquino,
onde se dedicou aos estudos de ciências e letras (CARNEIRO, 1995, p. 114).
Os anos de estudo no Externato Aquino marcaram Venâncio Filho
profundamente, o que anunciou sua futura carreira como educador. A ins-
tituição era voltada ao ensino das ciências experimentais, determinando,
assim, sua vocação científica, sem prejuízo da formação humanística e
criando o equilíbrio entre as ciências da natureza e as humanidades (CAR-
NEIRO, 1995, p. 114).
Já no ano de 1911, no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, estudou
com um grupo de jovens que apreciavam o estilo e as ideias de Euclides da

5 Doutor em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/7197279344234646. E-mail: luizfelipecandido


deoliveira@gmail.com.

165
Cunha, entre eles, Murilo Araújo, Edgard Sussekind de Mendonça, Carlos
Sussekind de Mendonça (os dois últimos filhos do ilustre poeta Lúcio de
Mendonça), os quais mostraram apreço pelo mestre escritor, fundando
o Grêmio Euclides da Cunha. O primeiro presidente desta instituição foi
Murilo de Araújo e, nesta condição, publicou a revista Ciência e Musa, a qual
teve apenas uma edição (LEÃO, 1995, p. 48).
Além disso, o intelectual padecia de asma, razão pela qual tinha a saú-
de e a aparência frágil. Jean (1995, p. 70) afirma que Venâncio Filho atravessou
a vida com um aspecto físico idoso (seus amigos disseram que sempre o teve)
nunca deixou de ser infinitamente moço de coração e de espírito.

Homem de construção franzina e de saúde precária. Tomou-


-se, pela sua atividade incessante, uma figura quase popular
no Rio de Janeiro onde era visto por toda parte, com sua
pasta e seu guarda-chuva, à procura de seus inumeráveis
amigos, para recebê-los ou acompanhá-los, para partilhar
de suas tristezas e de suas alegrias, ou nas idas e vindas de
reuniões, congressos e conferências (AZEVEDO, 1995, p. 70).

Carneiro (1995, p. 98) descreve que, durante toda vida, Francis-


co Venâncio Filho se enamorava por coisas puras e belas. O amor pela
terra e pelo povo do Brasil foi nele um sentimento sério, sem clarinadas
patrióticas, sem retórica, sem missangas e lantejoulas. Assim reafirma
Carneiro: “Quase estou em dizer que Venâncio tinha pelo Brasil profunda,
calma, segura amizade. Ele estima a sua terra e a sua gente” (CARNEIRO,
1995, p. 98).

O culto à memória de Euclides da Cunha

Pouco depois da morte do grande épico, Euclides da Cunha, for-


mou-se em torno do seu nome o grêmio de ferventes devotos – jovens
estudantes que o haviam seguido, no Colégio Pedro II, as preleções de
Cunha, na disciplina de lógica. Entre os fundadores já citados anteriormen-
te, estavam Múcio Leão, Murilo Araújo, Carlos e Edgard Sussekind de Men-
donça, e, pouco depois, amplia-se o número de participantes do Grêmio
Euclides da Cunha com a filiação de Francisco Venâncio Filho, Raul Sena

166
Caldas, Roberto Lira, Rui Castro, Alberto Álvaro entre outros. Os eventos
anuais em memória de Euclides da Cunha atraíam para o Grêmio grandes
personalidades dos meios literários e científicos.
Venâncio Filho foi o principal promotor do movimento de opinião
pública em prol de Euclides da Cunha. Desde o falecimento de seu “mestre”,
dedicou-se ao estudo da vida e das obras de Euclides, reunindo, nos arqui-
vos do grêmio do qual se tornou magna pars, manuscritos, cartas, artigos,
depoimentos, fotografias, recortes de jornais, e tudo o que pudesse servir
para a elaboração de uma autêntica biografia do imortal escritor da obra
“Os sertões”, um clássico da literatura brasileira. Carneiro (1995, p. 111)
afirma que, graças a Francisco e seu companheiro nessa campanha, Ed-
gard, há um precioso material sobre Euclides da Cunha disponível aos pes-
quisadores e editores dos numerosos trabalhos desse renomado escritor.
No ano de 1913, quando o Grêmio Euclides da Cunha saiu do Co-
légio Pedro II, não teve servidor mais exato e regular do que Francisco Ve-
nâncio Filho. Na coleção da revista do Grêmio Euclides da Cunha, os artigos
anônimos eram, quase sem exceção, de autoria de três pessoas, apenas:
Francisco Venâncio Filho (quando se tratava de pesquisa bibliográfica ou
biográfica), Edgard e Carlos Sussekind de Mendonça (quando se tratava de
polêmica) (LEÃO, 1995, p. 49).

Francisco Venâncio Filho viveu para a educação e para o culto


a Euclides da Cunha. A última vez que o vi, anunciou-me a
viagem que ia fazer em breve, resumiu-me as conferências
que ia fazer em Montevidéu. Nem parecia lembrar-se dos
três meses que acabara de passar em casa, cego e imóvel.
Depois da grave operação da vista à qual se submeteu,
começou logo a ditar artigos à mulher, a escutar a leitura dos
jornais que lhe faziam os filhos e a contar seus projetos a
todos (JEAN, 1995, p. 67).

É bem provável que Francisco Venâncio Filho nunca tivesse


procurado explicar a origem sentimental de sua grande e permanente
devoção a Euclides da Cunha. Silveira (1995, p. 89) destaca ser possível
que o frágil Venâncio nunca tivesse pensado na existência daqueles fato-
res emocionais, imponderáveis fisicamente, latentes no subconsciente,

167
e sempre prontos, a um dado sinal, a impulsionar todo o complicado
psiquismo humano.

O fim real de sua vida foi a divulgação da obra de Euclides


da Cunha, que sempre lembrava, comentava, difundia. Sua
biblioteca era um altar a Euclides da Cunha (JEAN, 1995, p. 67).

O fato é que, na adolescência e na idade adulta, o estudo aprofun-


dado das obras e o conhecimento da personalidade do grande Euclides
da Cunha, nutrindo-se daquelas raízes subterrâneas, aparentemente
esquecidas, fizeram eclodir, veemente, a dedicação fervorosa que cul-
minaria no sacrifício extremo da última peregrinação e São José do Rio
Pardo (SILVEIRA, 1995, p. 89).

Vocação Pedagógica

Francisco Venâncio Filho se formou em Engenharia Civil, em 1916,


e, nesse mesmo ano, fez concurso para a cadeira de Ciências Naturais
na Escola Normal do Rio de Janeiro, e ingressou no corpo docente dessa
instituição que, posteriormente, foi transformada em Instituto de Educa-
ção. A partir disso, forma 30 anos de serviços ininterruptos dedicados ao
magistério, com esporádicas passagens pela administração da educação,
além de ter ministrado aulas de física na Escola Normal, depois chamada
de Instituto de Educação do Rio de Janeiro, e no Colégio Bennett, onde
conheceu Dina Fleisher, que era aluna e que, mais tarde, tornou-se esposa
de Venâncio (CARNEIRO, 1995, p. 115).
A vocação de educador de Francisco Venâncio Filho se manifestou
na juventude, como uma decisão definitiva, uma decisão formativa pri-
mordial que comandou o desenrolar da existência dele, ao longo de seus
triunfos e vicissitudes. Carneiro (1995, p. 115) explica que a escolha da
profissão de educador decorreu de uma opção consciente, de uma alter-
nativa básica de sua existência, de forma que tinha um comprometimento
real com o ensino.
A partir do seu ingresso no magistério da Escola Normal e atuando
como professor do Colégio Bennett, era natural, como professor nato, que

168
logo procurasse conhecer os métodos ideais da Escola Nova, os quais já
começavam a ser difundidos no Brasil; e, adepto dos métodos de Montes-
sori, tomou como tema de sua divisa “Educar-se para educar”.
Nos últimos anos do magistério, dedicou-se ao ensino de História
da Educação, e, junto com Heitor Lyra, foi um dos fundadores da Associa-
ção Brasileira de Educação – ABE. Também foi signatário e articulou, ao
lado de Fernando de Azevedo, o texto do Manifesto da Educação Nova no
Brasil, em 1932.

Lourenço Filho, autor da obra Introdução ao Estudo da Escola


Nova, livro de cabeceira dos educadores, considerado por
Francisco Venâncio Filho o melhor ensaio em língua portu-
guesa, sobre as bases científicas da nova educação (CARNEI-
RO, 1995, p. 103, grifo nosso).

Ciente do papel da renovação do sistema educacional brasileiro,


empenhou-se na renovação do ensino das ciências exatas, interessan-
do-se também pelo processo de formação da sociologia brasileira, em
especial a obra de Euclides da Cunha. Foi um colaborador assíduo na im-
prensa periódica. Em reconhecimento à sua contribuição para a educação
brasileira, recebeu o Prêmio Francisco Alves (1937), da Academia Brasileira
de Letras – ABL.
No campo da educação, foi extremamente diversificada a contri-
buição de Francisco Venâncio Filho. Pode-se dizer que não houve questão,
relativa à educação e ao ensino, que ele não tocasse. Seus escritos trazem
a marca de sua experiência pessoal, no trato dos seus alunos, e refletem
sentimentos que inspiram as instituições em que lecionou, e dessas se
destacam – pela estima que o estudioso tinha – o Colégio Bennett, o
Instituto de Educação e o Colégio Pedro II. Em sala de aula, Venâncio Filho
dava o melhor de si. A clareza e a precisão com que analisava as teorias
mais complexas, ou descrevia as experiências mais delicadas da física e da
química, punham-nas ao alcance de todos, quase sem esforço (CARNEIRO,
1995, p. 110).

169
Em conferências e discursos proferidos nessas instituições, abor-
dava-se sempre temas importantes para a educação, valendo-se de tais
oportunidades para assinalar os novos rumos da educação.

Preocupação com a mulher e a criança

Ao cumprimentar sua primeira turma de física no Colégio Bennett,


em 1924, discorreu sobre o destino e a responsabilidade das mulheres que
a educação moderna liberta:

Para que essa libertação, diz ele, se faça de modo que a


mulher venha a trazer ao mundo a contribuição que o torne
melhor, é imprescindível que a sua emancipação intelectual e
moral preceda a sua ação política. De outro modo ela usaria
as mesmas armas de que têm lançado mão os homens da
direção dos Governos. Teríamos assim duplicado os males.
A influência que a mulher tem de exercer sobre a face da
terra há de ser a da sua reforma moral, procurando fazer o
homem subir à sua dignidade e nunca descer a ele. Para que
ela possa adquirir essa consciência, faz-se preciso que se
eduque amplamente. A cultura não pode mais ser privilégio
dos homens. A mulher educa sempre. Mais, muito mais do
que o homem, só acidentalmente educador. Educa a toda
hora. Educa o companheiro do seu lar, por exemplo, pela
bondade, pelo consolo e pelo estímulo, pela resignação e
pelo devotamento. Educa seus filhos, símbolos do seu amor;
educa ainda quando transfunde em filhos alheios a ternura
que a maternidade lhe-dá (sic). Está na força insubstituível
da mulher a força renovação do mundo (CARNEIRO, 1995,
p. 106).

Além de sua constante preocupação com a mulher e com a criança,


revelam os escritos de Francisco Venâncio Filho o vivo empenho com que
sempre procurou anteder às necessidades culturais do povo. Vale recordar
o concurso que prestou, juntamente com seu amigo Edgard Sussekind de
Mendonça, a partir da criação da Escola Rural de Meriti, por iniciativa de
uma pioneira da Escola Nova, Armanda Álvaro Alberto.
Venâncio foi um colaborador dedicado do projeto de Armanda,
grande educadora voltada ativamente para a renovação da educação e do

170
ensino no Brasil, criando, no ano de 1920, a Escola Regional de Meriti, onde
se desenvolveram, pioneiramente, exemplos de integração com a comuni-
dade, como a constituição do primeiro Círculo de Mães, buscando com isso
conferir sentido ao seu projeto educacional renovador.

Não foi para construir um exemplo de perfeição ao mesmo,


de apurada qualidade, mas foi para construirmos um exemplo
de possibilidade de realização, que mais valesse porque nos
cercamos, justamente, das menos vantajosas das condições
locais (MENDONÇA, 1968, p. 21).

Alberto (1968, p. 41) explica que idealizou uma escola primária re-
gional que sentisse as necessidades de progresso de sua região, e tomasse
para si iniciativas em benefício da comunidade a que pertencem seus alu-
nos: “A integração escola comunidade obedecia assim à compreensão de
que a educação primária de todas as crianças e do povo é denominada pelo
interesse da vida local” (MENDONÇA, 1968, p. 14).
Segundo a definição de Edgard Sussenkind de Mendonça (apud
MIGNOT, 1993, p. 40), a concepção de escola regional “traduzia a compre-
ensão de que não existiria nacionalidade sem as características de cada
região”. Para Edgard, o ensino regional, intimamente ligado ao conceito de
regionalismo, deveria criar um sistema próprio de ensino, com metodo-
logia e práticas específicas ao seu público, visando, assim, constituir uma
experiência de escola moderna, laica, com foco nos princípios de educação
popular e regionalismo, e com métodos ativos.

A luta política

Azevedo (1995, p. 71) afirma que a ação política para Francisco


Venâncio Filho era uma festa do espírito. Era uma ação persistente, mas
refletida; serena, mas firme, que praticava naturalmente, sem esforço na
aparência, ultrapassando quase sempre os limites da fatiga normal. Além
disso, informa que viu, pela primeira vez, esse homem, de extrema fragili-
dade física, com equilíbrio e indulgência de um sábio, mal suspeitando de
sua fortaleza moral e sua disposição admirável para o trabalho e mesmo

171
para a luta. A sua serenidade nada tinha a ver com a conformidade e a
rotina, nem era uma paz superficial de cansaço ou acomodação, mas era
uma paz de espírito que resultava, ela mesma, de um esforço heroico para
a conquista do domínio de si próprio.

Amava e amparava por todas as formas os homens de


combate e de ação, quando lhes reconhecia honestidade,
elevação de propósitos e generosidade nas suas campanhas
inspiradas por um grande ideal e pelo sentimento do inte-
resse público. Colaborador eficaz e dedicado das reformas
mais importantes que se empreendera no país, vivia, sem se
perturbar, na atmosfera das controvérsias, que não só não
evitava, mas estimulava, pela sua nítida compreensão do al-
cance das tensões necessárias e das divergências fecundas
(AZEVEDO, 1995, p. 71).

Francisco Venâncio Filho, homem de consciência tão honesta


quanto o espírito reto. Tolerante para com os outros, ainda quando maltra-
tado ou ferido pela injustiça do ser humano, e severo para consigo mesmo.

Entre o espírito e o coração de Francisco Venâncio Filho


parecia circular uma corrente contínua, de luz e calor, que
nunca permitia ao coração dizer a última palavra sem que
se fosse ouvida a razão, nem à inteligência pronunciar-se
sobre o que quer que fosse, sem se aconselhar com o
coração. Ideias, palavras e atitudes, tudo se ajustava a uma
alta concepção de vida, a cujos princípios se mantinha fiel
sem fazer praça de sua fidelidade, e a que não faltava, para
torná-lo mais amável, nem o espírito de dedicação nem
a tolerância para com os defeitos e fraquezas humanas
(AZEVEDO, 1995, p. 72).

A esse sentido social extremamente agudo, que conduzia o pro-


fessor a participar da vida social e intelectual do país, unindo-se, com fre-
quência, aos amigos, mestres e discípulos para lhes promover a unidade,
associava-se o “sentido humano”, visível em toda sua obra, e com que
seu pensamento se dilatava, ultrapassando as fronteiras, para abranger o
amor da humanidade e não um amor abstrato; um amor real e vivo, que se

172
traduzia pelos problemas concretos do ser humano, pelos seus sofrimen-
tos, bem como suas inquietações e esperanças (AZEVEDO, 1995, p. 73).

A sadia inquietação espiritual de Francisco Venâncio Filho


deixou aos que o conheceram e amaram a lembrança do
tremulo del mare no desassossego fecundo de onde resultam
o que a vida pode ter de mais puro e belo (ROQUETTE-PINTO,
1995, p. 82-83, grifo nosso).

Sonhando ver o Brasil sem analfabetos, Rabelo (1995, p. 78)


afirma que Venâncio não perdia tempo, pois sempre apresentava projetos,
debatia problemas e sugeria soluções com um entusiasmo de legislador.

A Livraria Científica Brasileira

A Livraria Científica Brasileira nasceu sob a razão social “Sussekind


de Mendonça e Cia”, tendo como seus fundadores: Francisco Venâncio
Filho, Carlos Sussekind de Mendonça, Fernando Raja Gabaglia e Soter Caio
de Araújo. O negócio fracassou, e o que existiu de idealismo, de desinteres-
se financeiro, de beleza, por trás desse fracasso, arrastou a permanência
da Livraria por quase três anos. O que interessava era servir os amigos,
sendo esta a grande preocupação da vida de Venâncio Filho.

Quando ainda havia em nossa cidade, nos cantos de certas


ruas, livrarias que se constituíam em salões literários, luga-
res de encontros marcados pela presença de prestigiosas
figuras que em torno delas congregavam admiradores e
amigos, uns na casa Garnier, outros à casa de Francisco
Alves, tinha Venâncio Filho o seu próprio ponto de reunião,
na Livraria Científica Brasileira, criada e dirigida por Carlos
Sussekind de Mendonça, seu fraternal amigo. À tarde, ali se
ajuntavam homens de ciência e homens de letras, profes-
sores e estudantes, personalidades ilustres do jornalismo e
do teatro, ao lado de obscuros boêmios atraídos pelas cele-
bridades. Lá apareciam com frequência, Heitor Lira, Afrânio
Peixoto, Roquette-Pinto e Edgar Mendonça de Susssekind,
João Carlos Vital, Celso Kelly, Raja Gabaglia, Jonatas Serrano,
Raul Bittencourt, Delgado de Carvalho, Faria Góes, Gustavo

173
Lessa, Alair Nunes, Tude de Souza, entre outros (CARNEIRO,
1995, p. 101).

Alguns jornais da época abriam espaço para esses pioneiros do mo-


vimento renovador da educação. Sobre isso, Carneiro (1995) descreve que,
duas vezes por semana, o jornal Diário de Notícias publicava as crônicas de
Cecília Meireles que tratavam de questões educacionais em uma dimensão
universal. Em Cecília Meirelles, a Escola Nova encontrou o oráculo de que
carecia para implantar os seus mandamentos na alma do povo.
Mendonça (1995, p. 91) descreve que, mesmo com a falência, a Li-
vraria Científica Brasileira produziu alguns frutos, como a Rádio Sociedade
do Rio de Janeiro, idealizada no sobrado da livraria, sendo Venâncio Filho
um dos coadjuvantes, junto com Roquette-Pinto, no surto e na expansão
da radiofonia em nosso país. Nessa livraria, também nasceu a ABE, cujo
diretor foi Roquette, e seus secretários foram Carlos Sussekind de Men-
donça e Francisco Venâncio Filho.

A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro

O professor de física, Francisco Venâncio Filho, tinha sempre em


vista as inovações e descobertas que pudessem melhorar a difusão dos
conhecimentos em escala mundial. Carneiro (1995, p. 107) afirma que,
no dia 7 de setembro de 1922, quando ouviu as primeiras emissões do
rádio, no Brasil, teve a imediata percepção do campo maravilhoso que se
abria para a educação das massas, em um país desta extensão. Com isso,
o professor se associou, imediatamente, a Edgar Roquette-Pinto para
fundar a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, no dia 20 de abril de 1923,
para implantar no Brasil esse novo instrumento de educação e cultura
(CARNEIRO, 1995, p. 107).

Dentro do mesmo espírito, e com o mesmo objetivo, promo-


veu Roquette-Pinto, em 1934, a criação do Instituto Nacional
do Cinema Educativo. Foi uma das iniciativas mais fecundas
por ele tomadas. Vinha ela ao encontro das aspirações de
numerosos educadores em nosso país. Desde 1931, clama-

174
va Francisco Venâncio Filho por tal instituição (CARNEIRO,
1995, p. 108).

Para Venâncio, interessava mais o papel do cinema como fator de


civilização, de educação de massas, com alcance quase ilimitado. À edu-
cação pelos meios tradicionais, a palavra, o livro, a revista, juntavam-se,
agora, com o rádio e o cinema. À frente dos que defenderam sua imediata
utilização no ensino público, encontravam-se Francisco Venâncio Filho,
seu amigo Edgard Sussekind de Mendonça, e Jonatas Serrano.
Segundo Carneiro (1995, p. 109), a importância dos museus foi
também muito enfatizada por Venâncio Filho, que afirmava serem escolas
que, dia a dia, hora a hora, infiltram cultura no povo, sem distinção de
classes sociais. Ao lado dos museus clássicos de História Natural e das
pinacotecas, surgiram, na Europa e nos Estados Unidos, museus de outros
tipos, vivos, dinâmicos, consagrados à ciência e tecnologia; museus em
que os visitantes poderiam manipular instrumentos, pôr em marcha os
aparelhos, repetir experiências, e reproduzir documentos e os objetos que
desejarem. Enfatiza o extraordinário papel dos museus para o desenvolvi-
mento econômico e cultural dos países.

Associação Brasileira de Educação

A ABE foi idealizada, também, em reuniões na Livraria Científica


Brasileira, que empreendeu grandes campanhas em prol da melhoria da
educação no Brasil, e Venâncio era a alma da vida interior disso, cuidando
de tudo para que as reuniões, conferências e publicações se realizassem
com a maior regularidade e perfeição. Carneiro (1995, p. 12) também re-
lata que Venâncio Filho dedicava, diariamente, horas para entreter-se com
educadores de todos os estados, buscando informações e conselhos sobre
questões que a ABE colocava em foco.
Dessa forma, a influência pessoal de Francisco Venâncio Filho se
estendia por todo o Brasil.

A realização, em fins de 1927, da I Conferência Nacional


de Educação, promovida pela ABE foi, por todos os parti-
cipantes, reconhecida que o plano de Fernando de Azevedo

175
inaugurava uma nova era na instrução pública no Brasil. Ao
propagá-la, acentuou Francisco Venâncio Filho a impor-
tância das medidas tendentes à criação da escola única,
da escola do trabalho e da escola-comunidade (CARNEIRO,
1995, p. 103).

Os intelectuais, Francisco Venâncio Filho, Fernando Azevedo, Lou-


renço Filho e Anísio Teixeira, empenharam-se em salvaguardar, nas suas
campanhas educativas, os princípios de ordem, liberdade e respeito às
instituições e crenças nacionais.
Seu amigo, Lourenço Filho, autor da obra Introdução ao Estudo da
Escola Nova, livro de cabeceira dos educadores, considerado por Venâncio
Filho o melhor ensaio, em língua portuguesa, sobre as bases científicas das
novas teorias da educação, e uma inspiração para o início do Movimento
Escolanovista no Brasil.

A ABE e o início do Movimento Escola Nova

A reforma do ensino de 1925, promovida pelo ministro João Luís


Alves e conhecida como “Reforma Rocha Vaz”, foi um dos acontecimentos
de maior repercussão pedagógica dos anos 1920. Além disso, essa reforma
foi precedida de um considerável movimento de opinião pública promovido
pelo próprio governo, ao declarar que tomaria em consideração todas as
ideias e sugestões sobre a nova organização do ensino a ser decretada.
Infelizmente, os governantes não cumpriram sua palavra, mas, mesmo
assim, as discussões e levantamentos se realizaram, propondo mudanças
no sistema educacional brasileiro.

O governo, numa dessas comédias anunciou que aceitaria


sugestões para a reforma de ensino projetada. De qualquer
maneira, a solicitação do Governo teve o mérito de provocar
estudos que, se não foram acatados, tornaram-se o ponto
de partida para o aprofundamento das discussões sobre o
problema nacional da educação (CARNEIRO, 1995, p. 120).

Venâncio Filho, como presidente da Liga Pedagógica, nomeou uma


comissão destinada a elaborar as sugestões de reforma e que teve como

176
principal mentor, Heitor Lyra. Segundo ele, o germe da ABE estava na in-
cumbência da Liga Pedagógica. A ideia lançada em março de 1924 evoluiu
para a criação de uma associação que congregasse educadores e todos
aqueles que estivessem preocupados com a educação em todo o país.

Quatro foram os que estiveram presentes no restaurante


Sul-América, às 07h00 de 29 de agosto de 1924, que é de
fato o dia em que se fundou a Associação Brasileira de Edu-
cação: Heitor Lira, Everardo Backeuser, dois companheiros
fraternais de sempre, como Edgard Sussekind de Mendonça
e Francisco Venâncio Filho (CARNEIRO, 1995, p. 120).

Como já mencionado anteriormente, a ABE constituiu a primeira


e mais ampla forma de institucionalizar a discussão dos problemas de
escolarização em âmbito nacional. Carneiro (1995, p. 120) relata que, em
torno dessa Associação, reuniram-se figuras muito expressivas, como
educadores, políticos, intelectuais e jornalistas, cuja ação se desdobrou na
programação de cursos, palestras, reuniões, inquéritos, semanas de edu-
cação e conferências, especialmente as nacionais referentes à educação.

Desta forma, procurava realizar sua divisa proposta nos


seguintes termos: “Ao cabo de um século de independência
sente-se que há apenas habitantes no Brasil – transformar
estes habitantes em povo é o programa da Associação Bra-
sileira de Educação” (CARNEIRO, 1995, p. 120).

A ABE foi o centro, por excelência, da difusão do ideário da Escola


Nova, e o Manifesto dos Pioneiro da Educação Nova foi o corolário natural
das discussões sobre o problema educacional brasileiro que processados
no âmbito da ABE.
Desde o início da ABE, Francisco Venâncio Filho emprestou sua
colaboração ao desenvolvimento da nova instituição, com o calor do seu
entusiasmo educacional e com sua imensa capacidade de trabalho.
Carneiro (1995, p. 121) também registrou que, em 1929, cinco anos
depois da fundação da ABE, Venâncio escreveu: “A Associação Brasileira de
Educação é, no Brasil, um milagre”. A partir disso, o professor Francisco se

177
esforçou para utilizar racionalmente os recursos audiovisuais existentes
na época: o cinema e o rádio.

Em 1941, Francisco Venâncio Filho publicou o livro A edu-


cação e seu aparelhamento moderno, no qual estuda, entre
outros instrumentos, os usos educativos do cinema, do
rádio, do fonógrafo e dos museus (CARNEIRO, 1995, p. 121,
grifo nosso).

Ainda, Venâncio Filho sempre enalteceu a importância dos museus


para a cultura popular, como bom conhecedor dos museus da Europa.
Também publicou vários artigos nos quais descreveu e analisou o papel
relevante que museus empenhavam no desenvolvimento cultural das
comunidades.

Todo este trabalho intenso de seu magistério na Escola


Normal, no Pedro II, no Colégio Bennett, e às atividades per-
manentes na ABE, além de outros compromissos, é surpre-
endente como encontrava tempo para acompanhar, quase
pari-passu, o desenrolar da revolução científico provocada,
nos primeiros decênios do século, pela teoria da relatividade
e pela mecânica quântica (CARNEIRO, 1995, p. 123).

Criada e dirigida por personalidades de excepcional projeção em


nosso meio, a ABE se tornou um centro de documentação e pesquisa, com
o objetivo de organizar conferências nacionais de educação, promover
inquéritos em todo o país, sobre questões de ensino, preparar cursos de
aperfeiçoamento de professores, e trazer ao Brasil as grandes figuras do
movimento renovador da educação na Europa e nos Estados Unidos.

Alguns jornais da época abriam suas colunas a esses pionei-


ros do movimento renovador, Nóbrega da Cunha, Azevedo
Amaral, Frota Pessoa traziam o público informado das ideias
novas nesse campo. Duas vezes por semana, no Diário de
Notícias, as crônicas de Cecília Meirelles davam às questões
educacionais uma dimensão universal, numa encantadora
linguagem poética. Nela encontro a Escola Nova o oráculo
que carecia para implantar os seus mandamentos na alma
do povo (CARNEIRO, 1995, p. 101).

178
A aplicação, no Brasil, dos novos métodos de ensino e dos novos ti-
pos de escola, da Europa e dos Estados Unidos, estimulou o espírito criador
dos educadores brasileiros presos a uma tradição educacional defasada.
Os autores que, na França, Itália, Alemanha, Inglaterra, Bélgica,
Suíça e América do Norte, formulavam, em seus tratados, os princípios
da Escola Nova, passaram a ser lidos, comentados e traduzidos no Rio de
Janeiro, bem como em São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Salvador.
O papel que Francisco Venâncio Filho desempenhou nesse período
de transferência de conhecimentos foi de muita importância. Assíduo e
atendo leitor de revistas e livros estrangeiros, em matéria de educação,
ele era sempre o primeiro a informar, aos nossos meios escolares, sobre
o que se publicava no exterior de novo e válido. Além disso, seus amigos,
suas notas e suas crônicas assinalam o roteiro que seguiu o movimento
das ideias reformadoras em nosso país.

Desde 1916, ao ser nomeado, mediante concurso, professor


de Física na Escola Normal, consagrou grande parte do seu
tempo ao estudo e à divulgação dos trabalhos de Ferrière,
Durkheim, Piéron, Binet, Montessori, Bovet, Decroly, Dewey
Kilpatrick, Morrison, entre outros, que evolucionaram o nos-
so arcaico educativo (CARNEIRO, 1995, p. 100).

A IV Conferência Nacional de Educação – IV CNE, reunida em Ni-


terói, em dezembro de 1931, sob a presidência do Celso Kelly, foi teatro
de veementes controvérsias a respeito da política educacional brasileira.
Os participantes dessa Conferência adotaram, por fim, uma resolução,
confiando a Fernando Azevedo, como intérprete da nova corrente de pen-
samento pedagógico, a tarefa de consubstanciar em um texto dos novos
ideias, e fixar o sentido fundamental da política brasileira de educação.

As correspondências de Fernando de Azevedo com Francisco


Venâncio Filho revelam a participação intensa no exame das
várias redações do Manifesto e na coleta de assinatura de fi-
guras expressivas da cultura brasileira, como Afrânio Peixoto
e Roquette-Pinto (CARNEIRO, 1995, p. 121).

179
Surgiu assim o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, a que
deu Venâncio o seu apoio e a sua assinatura. Nesse manifesto, segundo
Carneiro (1995, p. 105), figuram como pontos principais a nacionalização
do ensino, a defesa do princípio de laicidade, a organização da educação
popular, a remodelação do Ensino Secundário e do Ensino Profissional, e a
criação e universidades e institutos de alta cultura para o desenvolvimento
dos estudos desinteressados e da pesquisa científica.

No Movimento da Escola Nova, admitido um núcleo de


princípios comuns, poderíamos distinguir uma vertente
europeia e uma vertente americana, decorrentes das dife-
renças culturais e das tradições de pensamento. Nestas duas
vertentes apontaríamos três orientações: uma de cunho
acentuadamente psicologista, com ênfase nos métodos de
apreensão da aprendizagem; a segunda de caráter mais so-
cial, concebe na filosofia pedagógica de Dewey; finalmente,
a terceira corrente, adotando a renovação metodológica da
escola e a orientação sócio cultural (sic), reitera o sentido
essencialmente humanístico da educação, embora na
perspectiva de um humanismo moderno. No Brasil dos
anos 1920 e subsequentes, estas três orientações tiveram
seus representantes mais expressivos, respectivamente
em: Lourenço Filho, Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo
(CARNEIRO, 1995, p. 117-118).

Ao tomar posse, no dia 15 de outubro de 1931, do cargo de diretor


da Instrução Pública do Distrito Federal, Anísio se declarou solidário com
a política educacional de seu ilustre predecessor Lourenço Filho. Com isso,
afirma Carneiro (1995, p. 104) que Francisco Venâncio Filho foi o elo inte-
lectual que precisavam. Por sua sugestão, Anísio Teixeira confiou a direção
do Instituto de Educação – anteriormente, era chamado de “Escola Nor-
mal” – a Lourenço Filho. Dessa forma, estabeleceram-se, assim, estreitos
laços de estima e colaboração entre os três principais responsáveis pelas
reformas da educação no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Francisco Venâncio Filho foi, sem dívida, adepto do ideário


da Escola Nova, contudo adepto independente e moderado.
Filia-se à vertente europeia e, incorporando os métodos
da escola ativa, permanece fiel ao caráter humanístico da

180
educação. Esta é por ele entendida como desenvolvimento
integral e harmonioso do educando, numa formulação que
nos faz lembrar a categoria germânica da Bildung: O ideal da
educação moderna é que ela constitua um todo harmônico e
solidário, em que todas as partes se coordenem logicamente
e se sucedam sem transição (CARNEIRO, 1995, p. 118).

O ideário da Escola Nova ampliou os horizontes de Francisco para


se projetar para além da sala de aula, e leva-lo à linha de frente da luta pela
renovação e expansão da escola brasileira, nos anos 1920.
Informa Carneiro (1925, p. 118) que o censo de 1920 revelou
baixíssimo índice de escolarização primária e uma elevada taxa de analfa-
betismo, que correspondia a 60,1% da população, e era ainda mais elevada
do que a taxa indicada pelo censo de 1900. Apesar desses números, a
República não fez nada para diminuir esse índice.

Afrânio Peixoto, em discurso na Câmara dos Deputados, no


qual encaminhava emendas à Constituição, visando ampliar
a participação da União no esforço educacional do País,
proclamava: “Os males do Brasil de hoje, e de todos os tem-
pos, resumem-se apenas nisto, privação ou deficiência, ou
perversão da educação física, intelectual, cívica ou política”
(CARNEIRO, 1995, p. 119).

Venâncio se tornou um dos grandes paladinos da causa da edu-


cação para o povo, defendendo a educação pública em todos os lugares
institucionais onde atuava, mesmo como dirigente em cargos administra-
tivos que ocupou. No entanto, o lugar privilegiado, onde ele exerceu, por
excelência, sua cruzada educativa, foi a ABE, da qual foi um dos fundadores,
e, por duas vezes, seu presidente.

Obras de Francisco Venâncio Filho

Fiel à sua missão de professor, Venâncio Filho escreveu, sem ces-


sar, sobre as matérias que ensinava. A bibliografia dos seus trabalhos de
caráter científico e educacional se estende de 1924 a 1946. Desde 1914,
consagrava, porém, artigos e ensaios à vida e à obra de Euclides da Cunha,

181
em um preito de admiração que exaltou e engrandeceu toda sua existência.
Carneiro (1995, p. 105) ainda expõe que Venâncio publicou 180 trabalhos
sobre diversos assuntos, e nenhuma dessas obras ficou obsoleta ou desin-
teressante, porque em todas elas se reflete a originalidade do espírito do
autor, sensível a todos os problemas do Brasil e capaz de analisá-los com
lucidez e generosidade.
Francisco Venâncio Filho deixou uma extensa e rica produção escrita,
com cerca de 150 títulos no campo da educação, que se estendem de 1922
a 1946, entre eles deixou publicados os seguintes (MAGALHÃES, 1995, p.
59): Problemas de física e química (em colaboração com o Prof. Dr. Pedro
A. Pinto); Cinema e educação (1930) (em colaboração com o Prof. Jonatas
Serrano); Educar-se para educar (1930); Ciências Físicas e Naturais (1932-
1933) (em colaboração com Edgard Sussekind de Mendonça); Notas de
educação (1933); Física para a 3ª Série do Curso Secundário (1935); Qual
é o melhor meio de divulgar o Ensino Primário no Brasil (1937) (recebeu
o Prêmio “Francisco Alves” da Academia Brasileira de Letras, em 1936);
Educação e seu aparelhamento moderno (1940); e, Contribuição americana
à educação (1941).
De 1941 a 1944, foi responsável pela seção de educação, da revista
Cultura Política, em que foi autor de dezenas de artigos (CARNEIRO, 1995,
p. 125).
Outros trabalhos de Francisco Venâncio Filho:

Qual o desenvolvimento que devem ter nas humanidades as


teorias modernas da física. Rio de Janeiro: Livraria Científica
Brasileira, [s.d.]. 26 p.
Euclides da Cunha: notas bibliográficas. Rio de Janeiro: Tipo-
grafia Revista dos Tribunais, 1915. 22 p.
As medidas físicas. Rio de Janeiro: Tipografia Leuzinger,
1926. 192 p. (Tese apresentada à Congregação do Colégio
Pedro II, para o concurso de professor catedrático de física).
Resposta ao inquérito da Associação Brasileira de Educação:
sobreo problema do ensino secundário. [s. l.]: Associação
Brasileira de Educação, 1929.
Problemas elementares de física e química. Rio de Janeiro:
livraria Francisco Alves, 1930. 208 p. (Em colaboração com
Pedro A. Pinto).

182
Cinema e educação. São Paulo: Melhoramentos, 1931. 159
p. il. (Biblioteca de Educação, 14). Em colaboração com Jona-
thas Serrano.
Educar-se para educar. Rio de Janeiro: Tipografia São Bene-
dito, 1931. 258 p.
Euclides da Cunha: ensaio biobibliográfico. Rio de Janeiro: Off.
Industrial Graph; 1931. 165 p. il. (Academia Brasileira de Le-
tras. Coleção Afrânio Peixoto. Biblioteca de Cultura Nacional,
3. Bibliografia, 2).
Ciências físicas e naturais. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1932. (Livros didáticos. Biblioteca pedagógica bra-
sileira. Série 2ª, v. 1). Em colaboração com Edgard Sussekind
de Mendonça.
Resposta ao inquérito da Associação Brasileira de Educação:
sobre problema Universitário. [s. l.]: Associação Brasileira de
Educação, 1932.
Notas de educação. Rio de Janeiro: Calvino Filho, 1933. 172 p.
Ciências físicas e naturais: Introdução geral às ciências ex-
perimentais. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1934.
372 p. (Livro didáticos. Biblioteca pedagógica brasileira.
Série 2ª, v. 16). Em colaboração com Edgard Sussekind de
Mendonça).
Leitura de ciências físicas e naturais. Rio de Janeiro: F. Briguiet
& Cia, 1934. 320 p. (Em colaboração com Edgard Sussekind
de Mendonça).
Instituto de educação do Distrito Federal. Rio de Janeiro: União
Pan-Americana, 1935. 17 p. (Série sobre educação, n. 52).
Física: Introdução ao estudo dos fenômenos físicos de
acordo com o programa oficial. São Paulo: Companhia Edi-
tora Nacional, 1935. 217 p. (Biblioteca pedagógica brasileira.
Livros didáticos. Série 2, v. 28).
Aspectos da cultura norte americana. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1937. 351 p.
Euclides da Cunha e seus amigos. São Paulo: Companhia Edi-
tora Nacional, 1938. 245 p. (Biblioteca pedagógica brasileira.
Série 5ª. Brasiliana, 142).
A glória de Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1940. 323 p. (Biblioteca pedagógica brasileira.
Série 5ª. Brasiliana, 193).
Contribuição americana à educação. Rio de Janeiro: Instituto
Brasil-Estados Unidos, 1941. 31 p. (Lições da vida america-
na, 2). Conferência realizada no dia 28 de novembro de 1940.
A educação e seu aparelhamento moderno: brinquedos – ci-
nema – rádio – fonográfico – viagens e excursões – museus
– livros. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941, 222

183
p. (Biblioteca pedagógica brasileira. Série 3ª. Atualidades
pedagógicas, 38).
Os cultores da física no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1942. (Separata dos Anais do 3º Congresso de
História Nacional).
Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, 1949. 37 p. il. (Edição do
Conselho Nacional de Geografia, especialmente dedicada às
“Comemorações Euclidianas”, Sã José do Rio Pardo, agosto
de 1949).
Euclides da Cunha e a Amazonas. Rio de Janeiro, 1949, 22
p. (Tese aprovada pelo X Congresso Brasileiro de Geografia.
Contribuição às comemorações Euclidianas realizadas em São
José do Rio Pardo, entre 9 e 15 de agosto de 1949) (LEÃO,
1995, p. 49).

Em todos os seus escritos, Venâncio se revela um analista partici-


pante dos problemas da educação nacional, ao mesmo tempo em que se
mostrava atento às questões pedagógicas suscitadas pelo movimento da
Escola Nova no exterior.

Considerações finais

Múcio Leão (1995, p. 46) define Francisco Venâncio Filho como um


homem modesto e tímido, que voltou voluntariamente à obscuridade, e
acreditamos que esse é o verdadeiro traço característico desse extraordinário
homem. Ligou-se ao grupo de educadores que concebeu, na década de 1920
e procurou implantar, no período subsequente, a nova estruturação do en-
sino. Participou ativamente do movimento capitaneado pela ABE, sendo ele
o 18º signatário do Manifesto dos Pioneiros da Escola nova (1932). Faleceu
no ano de 1946, aos 52 anos de idade, ainda cheio de vigor intelectual. Seu
frágil organismo não suportou o peso de seu labor incessante no magistério,
nem o excesso de energia espiritual consumida em sua luta ininterrupta pela
educação de seu povo (CARNEIRO, 1995, p. 126).

184
REFERÊNCIAS

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CARVALHO, M. M. C. O novo, o velho, o perigoso: relendo a cultura brasileira. Caderno de Pesqui-


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LEMME, P. Paschoal Lemme: memórias de um educador. 2. ed. Brasília: Inep, 2004. v. 5.

MAGALHÃES, B. Francisco Venâncio Filho: trecho de um capítulo de minhas memórias. In:


VENÂNCIO FILHO, A. (org.). Francisco Venâncio Filho: um educador brasileiro (1894-1994). Rio
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MASSARANI, L. A divulgação científica no Rio de Janeiro: algumas reflexões sobre a década de


20. 1998. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Universidade Federal do Rio de
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tacoes/Massarani_tese.PDF. Acesso em: 30 set. 2017.

MENDONÇA, A. S. de. A vida cultural no Rio de Janeiro durante a Segunda Guerra Mundial através
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185
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VENÂNCIO FILHO, A. (org.). Francisco Venâncio Filho: um educador brasileiro (1894-1994). Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

186
CAPÍTULO XIII

HERMES LIMA

João Oliveira Ramos Neto1

Hermes Lima foi um político, jornalista, jurista, professor e escritor


brasileiro e, além de outros aspectos, destacou-se por conseguir ocupar
duas cadeiras importantes e concorridas: imortal da Academia Brasileira
de Letras e Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Hermes Lima nasceu no dia 22 de dezembro de 1902, em Vila
Velha, atualmente Livramento de Nossa Senhora, antiga Livramento do
Brumado, na Serra Geral da Bahia, a 658 quilômetros de Salvador, próximo
ao parque da Reserva Natural Serra das Almas. Era filho de Manuel Pedro
de Lima e de Leonídia Maria de Lima. A mãe faleceu em 1912, quando Her-
mes Lima ainda tinha apenas 9 anos de idade. Já o pai, culto comerciante
do sertão baiano, viveu até os 85 anos. Hermes Lima também era irmão da
historiadora baiana Helena Lima Santos (1904-1998).
Na infância, Hermes Lima foi criado pelo padrinho, Leopoldino
José de Lima, que era casado com a avó de Lima. A relação entre ele e seu
padrinho parece ter sido boa, pois, foi para ele que Hermes Lima dedicou
seu primeiro livro. Na sua cidade natal, Hermes Lima iniciou os estudos na

1 Doutor em História. CV: http://lattes.cnpq.br/6427938680486263. E-mail: joaooliveirara-


mosneto@gmail.com.

187
escola primária do professor Alfredo José da Silva (1887-1985). Ainda na
infância, Hermes Lima foi para Salvador para iniciar seus estudos secun-
dários – àquela época, chamado de “Ginásio” –, no Colégio Interno Jesuíta
Antônio Vieira. Sobre isso, Ivan Lins, em seu discurso de recepção, na Aca-
demia Brasileira de Letras – ABL, informou que Hermes Lima precisa viajar
seis dias a cavalo e de trem para chegar à capital. Afinal,

no começo do século [20] não havia, no sertão baiano,


ginásios e rareavam as escolas primárias. Os rebentos
das famílias mais abastadas ou mais esclarecidas, quando
se aproximavam da adolescência, eram levados para os
colégios da velha cidade de Salvador e ali permaneciam em
regime de internato, com saídas, aos domingos, para o al-
moço na casa do “correspondente”, em geral um negociante
ou um doutor patrício da capital (LINS, 1968).

No colégio, “os jesuítas esmeravam-se no ensino e estimulavam o


gosto literário de seus alunos, ministrando-lhes boas doses de vernáculo,
latim e francês. Incentivavam a leitura dos clássicos e dos filósofos” (LINS,
1968). O ministro Eros Grau informa que Hermes Lima “era uma pessoa
afável, de fina educação, respeitada e amada por todos que lhe serviam.
Um homem simples. Modesto” (GRAU, 2005, p. 10).
Em 1924, Hermes Lima se tornou advogado, diplomado pela Fa-
culdade de Direito da Bahia, profissão que ele exerceu com entusiasmo.
Conforme Heller, “sua especialidade era o Direito Público” (HELLER, 2018)
e “defendeu sempre [...] o valor da ordem, a cuja proteção deve servir o Di-
reito. Em complemento, reconhecia na sociedade um Direito sempre novo
a florescer, produto de novas necessidades sociais” (HELLER, 2018). É
compreensível que Hermes Lima tenha assinado o Manifesto dos Pioneiros
pela Escola Nova, já que sempre se alinhara com ideias progressistas.
Como no capítulo sobre Attilio Vivacqua, o período entre 1889 a
1930 ficou conhecido, na história do Brasil, como um período de fraudes
eleitorais e voto de cabresto, comandado pelos coronéis da chamada
“República Velha”, ou “República Oligárquica”. Porém, diferente da família
Vivacqua, a família Lima, de Livramento do Brumado, não era latifundiária
e, possivelmente, foi vítima desses desmandos da política local. Hermes

188
Lima, então, ainda como jurista, antes de ser político, começou a defender a
necessidade de acabar com “as farsas eleitorais típicas da República Velha
e advogou que ‘a terra e a gente com seus problemas e desafios deveriam
constituir os pontos básicos para referência da prática constitucional’”
(HELLER, 2018).
A carreira como professor teve início aos 22 anos, quando Hermes
Lima se tornou professor de sociologia no Ginásio da Bahia e, no ano
seguinte, tornou-se professor de Direito Constitucional, na própria uni-
versidade onde havia se formado. Como professor de sociologia, era um
ávido leitor de Vilfredo Pareto (GODOY, 2015). Como professor de Direito
Constitucional, Hermes Lima via “no Direito Constitucional uma função
basilar de satisfação das necessidades democráticas, como conjunto de
regras destinadas a tornar favoráveis à estabilidade social os sentimen-
tos políticos dominantes” (HELLER, 2018) e “como leitor de John Dewey,
observava que a realização de democracia, do governo do povo por si
mesmo, é impossível sem a igualdade de oportunidades que só a educação
promove” (HELLER, 2018). Portanto, “Hermes Lima aproximou sociologia e
direito, na certeza de que o direito também é a formalização normativa das
premissas e possibilidades da sociologia” (GODOY, 2015).
Ainda antes de concluir a faculdade, Hermes Lima começou sua
carreira como jornalista, em 1920, com apenas 17 anos, no jornal O Im-
parcial, de Homero Pires, seu professor, que “costumava convidar, para
redatores, os estudantes que despertavam a sua atenção na faculdade”
(LINS, 1968); e “no jornal de Homero Pires, os jovens gozavam de enorme
liberdade. Assinavam seus artigos, atacavam o governo e permitiam-se
epigramas e sátiras contra importantes figuras da intelectualidade” (LINS,
2018). Logo em seguida, Hermes Lima também ingressou no jornal Diário
da Bahia, mesmo jornal onde, anos antes, Rui Barbosa (1849-1923) tam-
bém iniciara sua vida pública.
Em 1925, Hermes Lima foi eleito deputado estadual da Bahia,
função que exerceu junto com a de secretário do governador Góes Calmon
(1924-1927), enquanto Anísio Teixeira (1900-1971) era Secretário da
Educação. Em 1926, transferiu-se para São Paulo, onde, após realizar

189
um concorrido concurso, tornou-se docente de Direito Constitucional da
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São
Paulo, e professor de Sociologia Geral, no Instituto de Educação Caetano
de Campos. Também conciliou essas atividades com a de jornalista do jor-
nal Correio Paulistano (onde conviveu com Oswald de Andrade e Tarsila do
Amaral, entre outros intelectuais), Folha da Manhã e Folha da Noite. Quando
a publicação do Manifesto ocorreu, Hermes Lima estava em São Paulo
– mesmo período em que estava acontecendo a Revolução Constitucio-
nalista de 1932, contra o governo Getúlio Vargas (1882-1954). Inclusive,
compôs a comissão que negociou a pacificação do estado com o governo
federal (GRAU, 2005, p. 11).
Em 1929, em São Paulo, casou-se com a viúva Maria Moreira Dias,
cujo pai também era nordestino e a mãe era da elite paulista. Sobre ela,
dizia que “em termos kantianos, é a razão prática, enquanto guarda a razão
pura” (LINS, 2018). Em um artigo publicado no jornal Correio da Manhã, o
intelectual disse: “nossa felicidade repousa, não em riquezas, posições ou
poder, mas no dom de amar e ser amado” (LINS, 2018). Maria Moreira Dias
tinha um filho do primeiro casamento com o diplomata chileno, Ernesto
Torrealba. Com isso, Hermes Lima adotou como filho, Gonçalo Torrealba,
que teve quatro filhos, os quais Hermes Lima os considerava como netos.
Com 25 anos (dois anos antes de se casar), aconteceu um dos
episódios mais icônicos da vida de Hermes Lima: foi vítima de um acidente
de avião. Viajando para Paris, como correspondente do jornal Correio
Paulistano, foi de São Paulo para Natal, RN, de avião; de Natal para Dakar,
no Senegal, foi de barco, em uma viagem de 8 dias; e, do Senegal para
a França, o avião em que estava ficou sem combustível e foi obrigado a
fazer um pouso de emergência no deserto do Saara. Por sorte, ele e os
demais passageiros conseguiram ser resgatados com vida, no dia seguinte
(LINS, 1968). Eram os primeiros anos da aviação, por isso, os aviões eram
extremamente deficientes e essa disposição de Hermes Lima demonstra
como era um jovem corajoso e que tinha atração pela aventura.
Em 1933, Lima se mudou para o Rio de Janeiro para assumir o
cargo de professor de Introdução à Ciência do Direito, na Universidade do

190
Distrito Federal (atual UFRJ), mediante aprovação em concurso. No mesmo
ano, publicou seu primeiro livro, Introdução à ciência do Direito, que já teve
mais de 30 edições e é utilizado até hoje nos cursos de Direito. Segundo
Heller (2018), esse livro era “resultado de uma mente inquieta em busca de
uma explicação para o fenômeno jurídico, a obra revela um jurista marcado
pela influência de autores canônicos da sociologia”, e, por isso, “enxergava
o Direito como um fato social decorrente das exigências e circunstâncias
impostas pelo regime de produção vigente, isto é, como instrumento da
economia” (HELLER, 2018).
A partir disso, Hermes Lima rejeitava as teorias do Direito Natural
que, para ele, eram meras manifestações de preferências pessoais. Além
disso, nesse livro, Hermes Lima deixou claro que via, no Estado, um pro-
motor de transformações sociais e econômicas e, assim, o governante
dispõe de um instrumento para promover a oferta de serviços públicos que
nada mais seriam do que deveres estatais. Logo, assinar o Manifesto dos
Pioneiros era, antes de tudo, uma questão de coerência com os valores que
havia defendido ao longo de sua carreira.
Em 1935, Hermes Lima se tornou diretor da Faculdade de Direito
da universidade onde era docente, e também foi jornalista dos jornais Di-
ário de Notícias e Correio da Manhã. Ainda nesse ano, publicou seu segundo
livro, Problemas de nosso tempo, em forma de ensaio. Nessa obra, discorreu
sobre os mais variados temas, e, um deles que, em particular, despertava a
paixão de Hermes, era a defesa do Estado Laico.
Em sua carreira como político, Hermes Lima era militante da
Aliança Nacional Libertadora – ANL, organização ligada ao Partido
Comunista Brasileiro – PCB, fechada pelo presidente Getúlio Vargas,
em julho de 1935. Porém, em suas palavras, Hermes disse que nunca
foi um marxista, no sentido político, porém: “o marxismo é chave indis-
pensável para a análise e compreensão da vida em sociedade, o mais
apropriado método para inserir a razão no contexto da história. Abre
as janelas para o mundo, lança sondas nas relações humanas” (LIMA,
1974, p. 84). Em novembro, a ANL deflagrou um movimento armado em
Natal, Recife e no Rio de Janeiro: a “Intentona Comunista”, sufocado pe-
las forças governistas. Na onda repressiva que se seguiu à insurreição,

191
Hermes Lima, mesmo sem participar do levante, foi afastado da Facul-
dade de Direito, tendo permanecido preso durante 13 meses, junto com
o escritor Graciliano Ramos, que o cita em Memórias do Cárcere:

Naquela manhã, depois do café, ouvi alguém chamar-me,


no passadiço. Avizinhei-me da grade, vi diante de mim um
belo rapaz de ar tranqüilo (sic), voz lenta, risonho: — Quem
de vocês é Fulano? — Eu. Que é que há? Estendeu a mão
através dos varões: — Vim conhecê-lo. Sou Hermes Lima.
– Oh! Diabo! Exclamei sacudindo-lhe o braço, num espanto
verdadeiro. Um professor de universidade tão novo! Eu o
supunha velho! (RAMOS, 1953, p. 16).

Alegava-se, para a prisão, que Hermes Lima lecionava um curso


subversivo de Economia Política para uma organização denominada “União
dos Trabalhadores do Distrito Federal” (GODOY, 2015). Graciliano Ramos
ainda escreveu:

Hermes Lima foi a pessoa mais civilizada que já vi. Naquele


ambiente onde nos movíamos em cuecas, meio nus, admi-
tindo linguagem suja e desleixo, vestia pijama – e parecia
usar traje rigoroso. Amável, polido, correto, de amabilidade,
polidez e correção permanentes (RAMOS, 1953, p. 16).

Ao deixar a prisão, voltou a exercer a docência de Direito, na


Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, além de trabalhar na
revista Vamos Ler, assinando artigos com pseudônimos. Pouco antes da
decretação do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937, Hermes Lima
viajou para o interior da Bahia, onde viviam seus pais. Passado o período de
repressão mais forte, retornou ao Rio, onde trabalhou no Correio da Manhã.
Entretanto, como seus artigos eram sistematicamente censurados, deixou
o jornal e passou a trabalhar como advogado.
Em 1939, publicou seu terceiro livro, uma biografia de Tobias
Barreto intitulada A época e o homem. Esse livro, publicado como parte
da Coleção Brasiliana, foi o resultado de ter lido todas as obras de Tobias
Barreto, enquanto esteve preso.

192
Em 1945, com a desagregação do Estado Novo, participou da
fundação da Esquerda Democrática – ED, tendo sido eleito deputado da
Assembleia Nacional Constituinte daquela que seria a quinta Constituição
do país, como representante do Distrito Federal (atual cidade do Rio de
Janeiro). Como deputado federal, além de membro da comissão organiza-
dora do projeto da Constituição de 1946, também foi membro da Comissão
de Constituição e Justiça, na qual “foi relator do projeto de lei cassando
os mandatos dos deputados do Partido Comunista, propondo sua rejeição
por considerá-lo inconstitucional. Sempre ativo na defesa das instituições
democráticas” (GRAU, 2005, p. 13).
Em 1947, participou da fundação do Partido Socialista Brasileiro
– PSB. Em 1950, candidatou-se, na legenda socialista, à Câmara Federal
pelo Distrito Federal, conseguindo apenas uma suplência. Por isso, voltou
à universidade para o magistério e também voltou a atuar como advogado.
Em 1953, ingressou no Partido Trabalhista Brasileiro – PTB. Como diretor
da Faculdade de Direito, da Universidade do Brasil, entre 1957 e 1959,
ao longo da década de 1950, representou o Brasil em diversos eventos
internacionais.
A renúncia do presidente Jânio Quadros (1917-1992), em 25 de
agosto de 1961, levou o país a uma aguda crise política. Como os ministros
militares tentaram impedir a posse do vice-presidente João Goulart (1919-
1976), ela só se concretizou duas semanas depois, por meio da aprovação,
pelo Congresso, de emenda constitucional instituindo o regime parlamen-
tarista. Empossado Goulart, Tancredo Neves (1910-1985) foi nomeado
primeiro-ministro e Hermes Lima foi convidado a chefiar o Gabinete Civil.
Em julho de 1962, quando Francisco Brochado da Rocha (1910-1962)
assumiu a chefia do gabinete, Hermes Lima se tornou Ministro do Trabalho
e Previdência Social.
Em setembro do mesmo ano, o primeiro-ministro encaminhou ao
Congresso proposta que antecipava para 7 de outubro o plebiscito sobre a
permanência ou não do parlamentarismo. Com a rejeição de seu projeto,
Brochado da Rocha renunciou, juntamente com todo o gabinete. Esse fato,
seguido de uma greve geral decretada pelo Comando Geral dos Trabalha-

193
dores, levando o Congresso a aprovar a lei que antecipava o plebiscito para
6 de janeiro de 1963. Goulart nomeou Hermes Lima para o cargo de pri-
meiro-ministro, em setembro de 1962, que acumulou com o de titular da
pasta das Relações Exteriores. No dia 6 de janeiro, o plebiscito determinou
o retorno do presidencialismo. Hermes Lima permaneceu, então, Ministro
das Relações Exteriores até junho.

194
Figura 1 – Presidente João Goulart condecorando o ministro Hermes Lima.
Fonte: Cpdoc-FGV.

195
Como já mencionado, entre 1951 e 1962, Hermes Lima participou
também de importantes missões estrangeiras, representando o Brasil em
quatro assembleias gerais da recém-criada Organização das Nações Uni-
das – ONU, assim como fez parte da décima Conferência Interamericana,
em Caracas, na Venezuela, e da Conferência Econômica da Organização
dos Estados Americanos – OEA, em Buenos Aires, na Argentina.
Além disso, foi membro do Conselho Diretor da Fundação Univer-
sidade de Brasília e do Conselho Federal de Educação. A partir de 1962,
presidiu o Conselho de Ministros “com a prudência de quem sabia avaliar
adequadamente o momento histórico, na preparação da retomada do re-
gime presidencialista” (GRAU, 2005, p. 14). Em 1963, Hermes Lima foi no-
meado, pelo presidente João Goulart, como Ministro do Supremo Tribunal
Federal – STF para o cargo decorrente da aposentadoria de Frederico de
Barros Monteiro, permanecendo mesmo após o afastamento de Goulart,
pelos militares, em 31 de março de 1964.
Como Ministro do Supremo, Hermes Lima “julgou com a técnica e o
pragmatismo que marcaram a sua obra” (HELLER, 2018). Durante o regime
militar, prometeu proteger o pouco de institucionalidade que restava: “em
casos nos quais, mesmo à luz dos Atos Institucionais, sobressaía a arbitra-
riedade estatal, proferiu votos condutores concedendo a ordem em habeas
corpus e em mandados de segurança contra atos abusivos dos militares”
(HELLER, 2018). Porém, em 1969, Hermes Lima foi compulsoriamente
aposentado pelo presidente Costa e Silva (1899-1969), por meio do Ato
Institucional número 5.
Em 1974, Lima publicou seu penúltimo livro, uma autobiografia
intitulada Travessias, já citado neste capítulo. Além de suas memórias
pessoais, o livro proporciona um importante testemunho histórico dos
eventos da história do Brasil, conhecidos como Era Vargas (1930-1945)
e Segunda República (1945-1964). Depois desse livro, sua última publi-
cação foi a biografia Anísio Teixeira: estadista da educação, de 1978. Anísio
Teixeira nomeou a irmã de Hermes Lima professora da Escola Normal
de Caetité, Bahia, em 1926. É nesse livro que encontramos as principais
ideias de Hermes Lima quanto à educação. Pedimos desculpas ao leitor
pela longa citação, porém, muito necessária:

196
Ao irromper em 1930 a revolução da Aliança Liberal, o campo
da educação oferecia já amplas perspectivas inovadoras pelo
pensamento e pela ação. Aprofundou-se com a revolução
a consciência do atraso, da inorganicidade do sistema de
ensino. Em dezembro de 1931, reunida no Rio de Janeiro,
da IV Conferência de Educação surgiu uma “Declaração de
Princípios” informativa de rumos da almejada reconstrução
educacional. Nessa década, o documento capital, capital
igualmente na história da educação neste país, divisor de
águas, é o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
intitulado “A Reconstrução Educacional no Brasil” datado de
1932, de iniciativa de Fernando de Azevedo, por ele redigido
e cuja primeira assinatura é a sua, a que se seguem as de
Afrânio Peixoto, Sampaio Doria, Anísio Spínola Teixeira,
Lourenço Filho, Roquette-Pinto, J.G. Frota Pessoa, Julio de
Mesquita Filho, Raul Briquet, Mario Casasanta, Delgado de
Carvalho, Almeida Júnior, J. P. Fontenelle, Roldão Lopes de
Barros, Noemy M. da Silveira, Hermes Lima, Attilio Vivacqua,
Venâncio Filho, Paulo Maranhão, Cecília Meirelles, Edgard
Sussekind de Mendonça, Armanda Álvaro Alberto, Garcia de
Rezende, Nóbrega da Cunha, Paschoal Leme, Raul Gomes.
Rebelava-se o Manifesto contra o empirismo dominante,
propugnava no estudo e na solução dos problemas edu-
cativos por orientação tão científica como nos domínios
das ciências técnicas e sociais. Transferia do puro terreno
burocrático-administrativo para os planos políticos e sociais
o encaminhamento dos problemas escolares num país que,
patentemente, aspirava incorporar-se à moderna civilização
industrial. Expungia da área da educação o preconceito eli-
tista, a preguiça doutrinária, as improvisações do empirismo.
Advogava como primordial o papel do Estado em face da
educação, “função essencialmente pública”. Reivindicava a
escola única, além dos princípios de laicidade, gratuidade,
obrigatoriedade e co-educação (sic) (LIMA, 1979, p. 82).

Como dissemos no início, Hermes Lima foi eleito para a ABL, em


22 de agosto de 1968, na sucessão de Afonso Pena Júnior, e recebido pelo
acadêmico Ivan Lins, em 18 de dezembro do mesmo ano. Ganhou o Prêmio
“Machado de Assis”, em 1975; considerado o principal prêmio literário
brasileiro, oferecido pela Academia Brasileira de Letras a escritores, pelo
conjunto de obras destes. O primeiro prêmio foi em 1941, e, em 1975, o
vencedor recebia, além do prêmio, um valor em dinheiro e um diploma.

197
Hermes Lima foi o quinto ocupante da Cadeira nº 7 – que tem por patro-
no Castro Alves – tomando posse dela em 18 de dezembro de 1968.
Hermes Lima, perseguido tanto pela ditadura de Getúlio Vargas,
como pela ditadura de Costa e Silva, faleceu em 1º de outubro de 1978, no
Rio de Janeiro, aos 76 anos.

REFERÊNCIAS

GODOY, A. A travessia existencial de Hermes Lima. Revista Consultor Jurídico, 2015.

GRAU, E. R. Discurso do Senhor Ministro Eros Grau. In: BRASIL. Supremo Tribunal Fede-
ral. Sessão em homenagem ao centenário de nascimento do Ministro Hermes Lima de 31
de fevereiro de 2005. Brasília: Supremo Tribunal Federal, Secretaria de Documentação,
2005.

HELLER, G.; GODOY, A. S. de M. Hermes Lima e a construção de um pensamento


jurídico brasileiro. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 118, p.
53-96, jan./jun. 2019.

HELLER, G. Hermes Lima: pragmatismo e inspiração democrática no Supremo Tribu-


nal Federal. O Estado de São Paulo, São Paulo, 29 maio 2018. Estado da Arte: revista
de cultura, artes e ideias.

HERMES LIMA. FGV Cpdoc, 2009. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/


dicionarios/verbete-biografico/lima-hermes. Acesso em: 30 mar. 2021.

LIMA, H. Anísio Teixeira: estadista da educação. In: ABL. Academia Brasileira de Le-
tras. Revista Brasileira, Rio de Janeiro, ano 5, n. 5, 1979. LIMA, H. Travessia: memórias.
São Paulo: Editora José Olympio, 1974.

LINS, I. Discurso de recepção. Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 18 dez.


1968. Acadêmicos. Disponível em: https://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/
sys/start.htm%3Fsid%3D129/discurso-de-recepcao. Acesso em: 5 mar. 2020.

RAMOS, G. Memórias do cárcere. São Paulo: Editora José Olympio, 1953.

198
CAPÍTULO XIV

JOÃO PAULO DE ALBUQUERQUE


MARANHÃO FILHO

João Oliveira Ramos Neto1

Ao andar pelo estado do Pará, é possível encontrar o nome deste


signatário do Manifesto os Pioneiros pela Educação Nova, de 1932, em vários
locais, desde a Avenida Paulo Maranhão, em Santarém, até a Escola Muni-
cipal Paulo Maranhão, em Belém, o que se leva a pensar que se trata deste
signatário, porém, não é dele que se trata esse novo.
Escrever a bibliografia deste signatário foi um grande desafio, pois
muitas fontes encontradas discorrem sobre um Paulo Maranhão muito
importante, que viveu no Pará, no início do século XX. De fato, segundo
um artigo anônimo publicado no Jornal O Estado, Paulo Maranhão “foi o
maior jornalista do Pará de todos os tempos” (LEGADO..., 2020). No en-
tanto, apesar de importante jornalista, educador e político, não é o mesmo
Paulo Maranhão signatário do Manifesto de 1832, mas, sim, o pai dele.
O Paulo Maranhão signatário é o João Paulo de Albuquerque Maranhão
Filho, signatário o qual será considerado neste capítulo. Para isso, é preciso
começar a história a partir de Paulo Maranhão, pai João Paulo de Albu-

1 Doutor em História. Professor do IFG. E-mail: joaooliveiraramosneto@gmail.com.

199
querque, porque foi o nome mais encontrado nas fontes. Portanto, sempre
que houver uma referência denominada “Paulo Maranhão”, estaremos nos
referindo ao pai do signatário, e o próprio signatário será retomado como
“Paulo Maranhão Filho”.
João Paulo de Albuquerque Maranhão (pai) nasceu em Belém, no
Pará, no dia 11 de abril de 1872, filho de Manuel de Albuquerque Maranhão
e de Luísa Francisca de Albuquerque Maranhão. Mais especificamente,
nasceu no “Bairro de Campina, a Rua São Vicente, quase esquina com a
travessa Benjamin Constante” (CARNEIRO, 2019). Seu irmão, Raimundo
Rodrigues Barbosa, “foi general do exército, interventor federal na Bahia
em 1931 e ministro do Superior Tribunal Militar de 1938 a 1943” (PAULO
MARANHÃO, 2009, p. 16).
Aos 8 anos de idade, o Brasil ainda era uma Monarquia, e Paulo
Maranhão ficou órfão de pai e mãe, “sendo cuidado pelas mãos de sua
velha avó” (Ibidem). Por causa das dificuldades advindas da orfandade,
precisou trabalhar desde cedo, enquanto estudava. Assim, conseguiu um
emprego na The Amazon River Steamship Navigation Company Limited, uma
empresa inglesa de linhas fluviais que fez história no norte do país, no iní-
cio do século XX. Essa empresa tinha uma sede em Belém, e uma sucursal
em Manaus, chegando a ter 46 navios a vapor e linhas regulares entre
várias cidades que conectava o país com a Bolívia e o Peru, inclusive. Paulo
Maranhão trabalhou nas oficinas da empresa, onde aprendeu os ofícios de
torneiro de metais e serralheiro.
Enquanto trabalhava de dia, Paulo Maranhão “à noite frequentava
a escola pública do professor Manoel Couto. Mais tarde continuou seus
estudos no Colégio Marquês de Santa Cruz, concluindo posteriormente
no Liceu Paraense” (CARNEIRO, 2019). Ao completar os estudos, retornou
para a vida marítima, trabalhando como embarcadiço da Companhia de
Navegação e Comércio do Amazonas, desenvolvendo as funções de carvo-
eiro, foguista e praticante de máquinas.
Paulo Maranhão trabalhou na área de navegação fluvial até 1889,
quando então retornou para Belém e iniciou sua carreira na área do jorna-
lismo. Não se sabe se a mudança aconteceu por iniciativa do próprio Paulo

200
Maranhão ou de outrem, mas, é provável que tenha sido uma mudança
em decorrência do declínio da navegação fluvial, já que, naquele ano, mu-
danças significativas ocorreram. Em 1889, faleceu Irineu Evangelista de
Souza, Barão de Mauá, o responsável pelo empreendimento (BRITTO,
2017) e, também, foi o ano da Proclamação da República no Brasil, quando
os militares, liderados por Marechal Deodoro da Fonseca, depuseram o
imperador Dom Pedro II.
De volta para a capital do Pará, Paulo Maranhão aprendeu os ofí-
cios de tipógrafo, pautador e encadernador, nas oficinas de Chico Livreiro.
Seu primeiro contato com a imprensa tinha sido, pois, quando era criança,
quando trabalhou na distribuição da revista Arena, que era ligada ao im-
portante jornal paraense Diário de Belém, o que, provavelmente, despertou
seu interesse para a área de comunicação e jornalismo, desde sua infância.
Nessa época, periódicos, como jornais e revistas, eram muito importantes
como veículos de comunicação e formadores de opinião pública. Eram
vários jornais que circulavam pelo Brasil e desempenhavam importante
papel na política.
Aos 17 anos, Paulo Maranhão obteve seu primeiro emprego como
repórter no jornal Diário do Grão-Pará. Depois dessa primeira experiência,
Paulo Maranhão trabalhou no jornal A República. Como mencionado em
outros capítulos deste livro, no passado, era comum que os jornais fossem
ligados a determinados partidos políticos, e o jornal A República não era di-
ferente, pois era ligado ao Partido Republicano – PR. O Brasil tinha acabado
de alterar seu regime de governo de Monarquia para República e, entre os
diferentes discursos, Paulo Maranhão se viu inserido no regime que apoiava
a nova experiência política. Nesse jornal, Paulo Maranhão desenvolveu várias
atividades, entre elas as funções de revisor, repórter e secretário, chegando
a ser diretor.
Três anos após o início das atividades como jornalista, Paulo Ma-
ranhão entrou para o magistério, atuando em vários municípios do interior
do Pará. A primeira experiência teve início em 19 de fevereiro de 1892, para
“reger interinamente a Escola Elementar do povoado Caju, no município de
Marapanim” (CARNEIRO, 2019). Foi nesse município que conheceu Antônia

201
Oeiras, com quem se casou em fevereiro de 1896 e teve oito filhos: Sula-
mita, Helga, Silvia, Olga, Hilda, João, Clóvis e Paulo. Portanto, é aqui que
nasce o nosso signatário, o caçula, de 8 irmãos.
Paulo Maranhão Filho nasceu no dia 28 de junho ou julho, pois o
jornal O Tico-Tico informa, na edição 1034 de 1925, que essa era a data
do aniversário dele (apesar da dificuldade de se entender a grafia dessa
data, corretamente). Há poucos registros da infância e juventude desse
signatário, mas, com as informações biográficas de seu pai, encontra-se
evidências de como Paulo Filho desenvolveu sua rede de relacionamentos
nas áreas da política, educação e do jornalismo. Entretanto, apesar da
grandiosidade de seu pai, é difícil encontrar informações sobre Paulo Ma-
ranhão Filho, justamente por ele ser o caçula. Seu irmão mais velho, João
Maranhão, teve mais protagonismo na vida política, o que lhe favoreceu
em número de fontes; e, enquanto João Maranhão herdou a atividade jor-
nalística e política do pai, Paulo Maranhão ingressou no curso de medicina
e começou sua carreira como inspetor escolar do Rio de Janeiro.
Em 1896, Paulo Maranhão (pai) voltou para a área de comunicação,
atuando como revisor do jornal Folha do Norte, que tinha acabado de iniciar
suas atividades. O jornal tinha sido fundado por Enéias Martins, seu padri-
nho de casamento. Foi no jornal Folha do Norte que Paulo Maranhão exer-
ceu a maior parte da sua profissão como jornalista, culminando no cargo de
redator-chefe, quando Enéias Martins foi eleito deputado federal. Segundo
um artigo anônimo publicado no Jornal O Estado, ele “foi o principal jorna-
lista da Folha [do Norte] e quem lhe imprimiu a marca pessoal” (LEGADO...,
2020). Além disso, Paulo Maranhão também escreveu colunas no Folhetim
Semanal, Nota do Dia, Conto para os pequenos leitores, Crônica Policial,
Comédia do Amor e Gazetilhas (CARNEIRO, 2019).
Por meio do jornal, Paulo Maranhão atuava politicamente fazendo
oposição ao governo de Augusto Montenegro (1901-1909), que era do
Partido Republicano do Pará e tinha apoio do jornal A Província, mantido
por Antônio Lemos. Por causa das questões políticas, Enéias Martins foi
para o estado do Amazonas, onde se elegeu deputado federal e vendeu o
jornal Folha do Norte para Cipriano Santos.

202
Naquela época, vivia-se o período que a historiografia denomina
“Primeira República”, ou “República Velha”, em que os estados eram
chamados de províncias e a política era dominada por coronéis que, não
poucas vezes, usava métodos violentos para manutenção do poder. Em tal
contexto, Paulo Maranhão sofria várias perseguições por sua oposição a
Antônio Lemos, sendo obrigado a se refugiar várias vezes, inclusive morou
por 17 anos no prédio onde funcionava o jornal, para obter alguma pro-
teção. Em 11 de abril de 1949, no dia do seu aniversário, ele foi agarrado
em uma praça pública e “banhado em fezes. Depois dessa violência, Paulo
escreveu um editorial que até hoje é muito citado no Pará, a propósito
de ações de terrorismo, de espezinhamento dos direitos individuais: ‘ato
porco de um governo porco’” (JORGE, 2020).
Em 1912, o governador Augusto Montenegro foi sucedido pelo
seu inimigo político, João Coelho, e, dessa vez, foi Antônio Lemos, dono do
jornal A Província, que teve que fugir do estado do Pará. Sem a oposição
política, Paulo Maranhão retornou ao magistério, conciliando sua carreira
de jornalista com a de professor, ministrando aulas na Escola Normal. Sua
gestão foi marcada por importantes inovações, pois “instituiu a merenda
escolar, a ginástica sueca, a bolsa escolar para os alunos pobres e organi-
zou bandas de músicas” (CARNEIRO, 2019).
Então, o antigo dono do jornal, Enéias Martins, retornou ao estado,
inclusive sendo eleito governador, em 1913. Com isso, o proprietário, na
época, de seu antigo jornal, Cipriano Santos, rompeu politicamente com
Enéias. Paulo Maranhão acompanhou o colega e também rompeu com
o seu padrinho de casamento, publicando o texto “A você, Enéias” – no
jornal Folha do Norte –, em que fez severas críticas ao governador Enéias
e reafirmou seu apoio a Cipriano Santos. Conforme um artigo publicado no
Jornal O Estado, “Paulo Maranhão era um panfletário. Muitas vezes deixava
os fatos e a verdade de lado para fustigar os antagonistas ou desafetos
com a mais odiosa verrina” (JORNAL O ESTADO, 2020).
O período conhecido como “Primeira República” foi caracterizado,
também, como um período de muita instabilidade política. Uma crise polí-
tica, em 1917, levou ao poder da província do Pará o político Lauro Sodré, o
qual, então, decidiu nomear Paulo Maranhão como secretário de Instrução

203
Pública, cargo que seria hoje o de Secretário de Estado da Educação. Dois
anos depois, Paulo Maranhão comprou o jornal Folha do Norte, do qual era
o redator-chefe. Para isso, “contraiu um empréstimo ao coronel José Júlio
de Andrade, nome de prestígio em várias regiões do Estado, em um valor
de duzentos e cinquenta contos de réis” (CARNEIRO, 2019).
Após se tornar o novo proprietário do jornal, empreendeu uma
ampliação, fazendo com que o periódico se tornasse o principal jornal,
tanto no estado do Pará, como no estado do Amazonas. Ao assumir o
jornal, “empreendeu uma completa transformação em todos os setores,
dando-lhes uma diretriz nova e dinâmica” (CARNEIRO, 2019).
Apesar de não sabermos exatamente quando Paulo Maranhão Fi-
lho nasceu, pode-se fazer algumas inferências, ou seja, se considerarmos
que o seu pai se casou em 1986, e levarmos em conta um intervalo de nove
meses de gravidez para cada filho, Paulo Maranhão Filho, o caçula dos oito
irmãos, nasceu por volta de 1902. Também se sabe, por meio de notícias
publicadas à época, que Paulo Maranhão Filho já atuava como inspetor
escolar no Rio de Janeiro, em 1921, o que significa que, naquele período,
já era um adulto; portanto, se ele nasceu em 1902, em 1921 ele tinha 19
anos. Foi por essa época que também se casou e seis anos depois sua filha
fez a Primeira Comunhão.
Seu trabalho na educação se destacou nessa atuação como ins-
petor escolar do município do Rio de Janeiro, na época, capital federal. Na
edição de 6 de dezembro de 1922 do Jornal do Brasil, foi publicada uma
relação de pessoas para exame oral da Faculdade de Medicina da Universi-
dade do Rio de Janeiro, aparecendo o nome de Paulo Maranhão na lista do
segundo ano. Isso explicaria o motivo de ele ser sempre chamado de “Dr.
Paulo Maranhão”. Porém, talvez seja necessário novas pesquisas, uma vez
que não era comum alguém cursar medicina já casado e com filhos.
Em 1924, Paulo Maranhão (pai) foi eleito deputado federal, no
Pará, sendo reeleito no pleito seguinte. No entanto, com a Revolução de
1930, que levou Getúlio Vargas ao poder, foi afastado do cargo, uma vez
que o Poder Legislativo foi fechado, devido o autoritarismo do presidente
da República, e uma das faces desse autoritarismo se revelava na nomea-
ção de interventores nos estados. Dessa forma, em 1934, Getúlio Vargas
nomeou Joaquim de Magalhães Barata como interventor, o qual passou

204
a perseguir novamente Paulo Maranhão. O jornal Folha do Norte voltou a
sofrer perseguição e o próprio Paulo Maranhão foi preso e seu filho, João
Maranhão, foi deportado. Por esses motivos, Joaquim de Magalhães Bara-
ta mandou nomear diretor do jornal o seu afiliado político, Pedro Timóteo,
e, somente em 1943, Getúlio Vargas autorizou que a restituição do jornal
ao seu legítimo dono.

Figura 1 – Srs. Drs. Paulo Maranhão, inspetor escolar, e Mario Cavalcante, agente
da prefeitura e filho do saudoso ministro André Cavalcante, recentemente falecido.
Fonte: Jornal Brasil Social (1927).

Como inspetor escolar, sua principal contribuição foi com a publi-


cação dos Testes Pedagógicos. No início do século XX, estava em alta a
ideia de se produzir e aplicar testes pedagógicos. Porém, por meio de uma
resenha publicada no jornal A Escola Primária, de março de 1926, é possível

205
descobrir que Paulo Maranhão Filho foi pioneiro na aplicação dos testes:
“ninguém se havia decidido no nosso meio escolar a admitir os testes
como prova decisiva do grau de adiantamento dos alunos” (JORNAL A ES-
COLA PRIMÁRIA, 1926, p. 12) até que apareceu o livro “do ilustre inspetor
escolar, Dr. Paulo Maranhão, sob o título Testes Pedagógicos2, trabalho
que é produto de dois anos de experimentação nas escolas do sétimo
distrito” (Ibidem); e a resenha continua: “Não se limitou o operoso inspetor
a construir testes para cada uma das disciplinas do programa primário [...]
cada teste foi levado por ele às classes e lá experimentada” (Ibidem). Após
discorrer sobre o rigor do método, o autor da resenha continua: “o trabalho
do Dr. Paulo Maranhão é o primeiro do gênero, realizado entre nós, tendo
a vantagem de ter sido elaborado pacientemente, durante dois anos de
experimentação [...] assegurando [...] a certeza dos resultados” (Ibidem).
Esses testes deram ao inspetor Paulo Maranhão projeção nacional,
e, sobre isso, uma notícia no jornal A Escola Primária informa: “veio a Belo
Horizonte, a convite do governo, o Dr. Paulo Maranhão, distinto inspetor
do ensino no Distrito Federal, o qual se tem especializado no assunto”
(JORNAL A ESCOLA PRIMÁRIA, 1926, p. 119). Uma das grandes inovações
de Paulo Maranhão Filho nesses testes foi justamente a de substituir “a
subjetividade das questões, que normalmente exigiam respostas disser-
tativas, por questões objetivas de assinalar, de completar, dentre outras
opções” (PINHEIRO; VALENTE, 2014, p. 13).

Figura 2 – Propaganda do livro de Paulo Maranhão no jornal Escola Primária – março


de 1926.
Fonte: Jornal Brasil Social (1926).

2 Sobre os testes, recomenda-se a leitura do artigo de Nara Pinheiro e Wagner Valente (2014).

206
A ditadura implantada por Getúlio Vargas, em 1937, durou até o
ano de 1945, quando a democracia do país foi restabelecida. Cinco anos
depois, Paulo Maranhão se tornou novamente deputado federal no estado
do Pará. Porém, ao longo de sua trajetória política no legislativo federal,
Paulo Maranhão passou a maior parte do tempo sofrendo oposição dos
chefes do executivo, em seu estado de origem. Ele encerrou sua carreira
política quando concluiu seu último mandato como deputado, em 1955.
Paulo Maranhão também ficou ao lado do movimento militar que, em
1964, depôs o presidente João Goulart e implantou o regime ditatorial,
enquanto fazia oposição ao governador, na época, Jarbas Passarinho.

Figura 3 – Paulo Maranhão Filho em homenagem ao pai.


Fonte: Vida Doméstica (1930). Edição 00151.

Paulo Maranhão (pai) também fundou a Academia Paraense de


Letras e dirigiu outros periódicos importantes, no estado, como o Mara-
paniense e a Folha Vespertina. Seus últimos escritos foram publicados na
Folha do Norte sob o título “Sócios de um espírito sonolento”, e na coluna
diária Vozes da Rua. Faleceu em 17 de abril de 1966, aos 96 anos. Sobre

207
Paulo Maranhão Filho, não se sabe a data de seu falecimento, mas tem-se
notícias de que ele atuou como diretor de Instrução Primária da prefeitura
do Distrito Federal, na década de 1950.

REFERÊNCIAS

BRITO, R. K. L. de. A introdução da navegação a vapor na Amazônia no século XIX: o pro-


cesso de formação da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas. In: CONGRESSO
BRASILEIRO DE HISTÓRIA ECONÔMICA, 12., 2017, Niterói. Anais [...]. Niterói: Associação
Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, 2017. p. 1-22.
CARNEIRO, J. Q. Quem foi quem na imprensa paraense. Memórias do Pará: um blog sobre o
passado, Belém, Pará, 2 ago. 2019. Disponível em: http://memoriasdopara.com.br/. Acesso
em: 29 mar. 2020.
JORGE, F. Cale a boca, jornalista! O ódio e a fúria dos mandões contra a imprensa. Barueri:
Novo Século Editora, 2020.
JORNAL A ESCOLA PRIMÁRIA. Belém/Pará, mar. 1926.
LEGADO de 50 anos. Jornal O Estado, Santarém, ano 14, n. 4164, 14 nov. 2020.
PAULO MARANHÃO. FGV Cpdoc, 2009. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/
dicionarios/verbete-biografico/joao-paulo-de-albuquerque-maranhao. Acesso em: 30
mar. 2021.
PINHEIRO, N. V. L.; VALENTE, W. R. Medeiros e Albuquerque, Paulo Maranhão e Isaías Alves: a
aritmética científica da escola primária. Cuiabá: Reamec – Revista da Rede Amazônica de
Educação em Ciências e Matemática, 2014.

208
CAPÍTULO XV

JOSÉ GETÚLIO DA FROTA PESSÔA

Edna Misseno Pires1

A década de 1930 foi considerada a década da modernização, do


processo de industrialização e urbanização da sociedade brasileira. Uma
figura intelectual marcante desse período foi José Getúlio da Frota Pessôa,
nascido em Sobral (1875-1951). Há uma estreita relação entre o pensa-
mento escolanovista e o pensamento desse intelectual prosador, poeta e
jornalista. Bacharelou-se em direito na cidade do Rio de Janeiro, onde foi
funcionário municipal atuando na Diretoria da Instrução Pública.
Frota Pessôa, ainda secundarista, morava em Fortaleza quando
escreveu seus primeiros versos, e, depois de completar o Ensino Secun-
dário, em 1893, Frota Pessôa foi para o Rio de Janeiro, onde se formou no
curso de Direito em 1904, passando a exercer diversas funções públicas na
Diretoria da Instrução Pública do Distrito Federal, e, entre as suas ativida-
des, tornou-se redator do jornal O comércio.
Os escritos de Frota Pessôa estão catalogados em três Livros: A
educação e a rotina: theses heterodoxas (1924), Divulgação do Ensino Primário
(1928) e A realidade brasileira (1931). O livro Divulgação do Ensino Primário

1 Doutora em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/2799055149530414. E-mail: edna.misse-


nopires@gmail.com.

209
traz reflexões sobre os problemas da educação brasileira e foi premiado
no Segundo Prêmio Francisco Alves. Os artigos que compõem o livro A
realidade brasileira defendem a educação para o trabalho e, nesse livro,
encontra-se artigos produzidos entre 1924 e 1929. Entre 1933 a 1948,
Frota Pêssoa produziu mais de 2 mil artigos que foram publicados no Jornal
do Brasil, e o seu principal tema foi o embate entre os católicos e liberais e
a polêmica do ensino público e religioso.
Pessôa também se tornou marcante, no período do movimento
dos pioneiros, pelas suas afirmações firmes e corajosas. Na obra A educa-
ção e a rotina, Frota expressa ideias polêmicas, como a crítica à gratuidade.
Para ele, a educação primária seria apenas um dos ramos da “assistência
pública”, pois a educação única cabe ao Estado, sendo oferecida de forma
mental, física, moral e sobretudo técnica.
Desse modo, existem expressões de Frota Pessôa que possuem
pontos de concordância e discordância. Os anos 1920 foram denominados
“período de ebulição das ideias educacionais”, também chamados, por
Nagle (2001), de “período do entusiasmo pela educação”. Essa também foi
uma época em que a sociedade brasileira passou por acentuadas mudan-
ças políticas, sociais e econômicas.
No final de 1932, quando assinou o Manifesto dos Pioneiros, co-
meçou a escrever na coluna Educação e o ensino do Jornal do Brasil e, depois
do seu falecimento, em 1º de agosto de 1951, os textos escritos por ele,
entre 1916 a 1923, tornaram-se uma coletânea composta pelos seguintes
textos: Educação moral comporta um programa (1916), A instrução adequada
(1917), As perversões da educação cívica” (1917), Inflitração techinica (1918),
O preconceito da instrução gratuita (1918), Cultura física (1918), A infiltração
burocrática (1918), O programma, o exame e a sebenta (1918), Uma ideia
condenada (1920), Educação popular (1921), A reforma paulista (1921) e A
educação e o ideal (1923).
Pessôa, ainda, destacou que o maior problema do Brasil, naquela
época, estava na educação, e nem mesmo os problemas econômicos su-
peravam esse problema, pois o desenvolvimento econômico de um país
está sempre atrelado à educação. Segundo Maia (2010), Frota acreditava
que a deficiência de se encontrar um norteamento para os objetivos da

210
educação estaria na inexistência de uma concepção científica que pudesse
fundamentar processos pedagógicos mais eficazes para a realização da
educação escolar brasileira.
O intelectual também propôs que houvesse formação do profes-
sor no campo sociológico, antropológico, filósofo e científico, para se ter
uma plena compreensão das mudanças sociais ocorridas no país e que
pudessem ter influências em seus alunos e, consequentemente, em seus
sucessores intelectuais; e o Ensino Primário deveria ser voltado para a
formação de cidadãos críticos.

Que importa que a creança termine seu curso primário sem


conhecer as regras de grammatica, os teoremas de arithi-
metica ou acidentes geográficos? O que é essencial é que
saia apta a aprender todas essas cousas e com uma visão
geral dos princípios e problemas da vida (sic) (PESSÔA,
1924, p. 80).

No texto Infiltração technica (1918), o autor ressalta o trabalho de


Ester Pedreira de Mello, educadora que implanta o regime de inspetores
e a criação de um centro responsável pela organização e discussão de
temas de interesse dos educadores, promovendo, dessa forma, a ideia de
formação continuada. Engajado nas ideias do Manifesto que eram contra
o conformismo e o tradicionalismo, à mercê de interesses de alguns, Frota
atiçava o desejo de reforma social como pré-requisito para a reforma edu-
cacional, e, por isso, a escola teria um papel influenciador nas tomadas de
decisões. Além disso, defendia uma escola, arquitetonicamente, uniforme,
modesta, com capacidade para 500 alunos, bem limpa, mas com um diri-
gente competente e autônomo, com capacidade de resolver problemas.
Tais ideias permeiam no que se culminará no chamado “escolanovismo”.
De acordo com Vieira (2010, p. 25), O livro Divulgação do Ensino Pri-
mário, de 1928, ressalta os problemas da educação no Brasil que encaixa
bem com as ideias de Frota Pessôa de que os entes federados deveriam
ter encargos discriminados e criteriosamente distribuídos e, além disso,
para ele, a União deveria fundar as escolas nacionais, principalmente no
Nordeste. Essa obra foi premiada no Segundo Prêmio Francisco Alves da
Academia Brasileira de Letras – ABL, em 1927.

211
Nesse cenário, começam a ganhar maior visibilidade duas cor-
rentes que, embora já existissem, destacaram-se no debate educacional
das décadas seguintes – os católicos e os liberais. Nos anos 1930, com a
intervenção da União nas tomadas de decisões, no que se refere ao campo
educacional, Pessôa contribuiu com seus escritos sobre a transição da
República Velha para a Nova República.
Frota Pessôa acreditava veementemente na ideia de que a reforma
da educação no Brasil estava relacionada à reforma social, e que a escola
teria um papel fundamental nessas mudanças. Também discordava de
algumas posições do Manifesto, em que a escola deveria ser por igual
acessível pois seria ocupada pelos mais abastados e, dessa foram, a de-
sigualdade educativa dos pioneiros, em “O preconceito da instrucção gra-
tuita”, continuaria. Por esse motivo, a burguesia deveria ajudar no custeio
da educação:

O credito do ensino municipal attráe ás escolas publicas


alumnos de todas as categorias sociaes, sendo talvez de
metade o numero dos que pertencem ás classes medias e
abastadas. Ora, não há nenhum interesse de ordem publica
em ministrar o ensino gratuito a essa espécie de alumnos,
porquanto a necessidade de instrucção está tão arraigada no
espírito da burguezia que um pae se privará de elementos de
conforto, se fôr preciso, para educar os filhos (sic) (PÊSSOA,
1924, p. 42).

Frota Pessôa era bastante próximo de Fernando de Azevedo e


Anísio Teixeira, visto que, em seus escritos, sempre fazia alusões a essas
duas importantes figuras. De acordo com Vieira (2010), Azevedo descreveu
Frota como “lutador que não envelhece”, educador e homem de “personali-
dade vigorosa, decidido e com grande facilidade para escrever”.
No contexto que antecedeu a assinatura do Manisfesto, os escritos
de Pessôa estavam voltados para defesa de reformas educacionais.
O livro A realidade brasileira, publicado em 1931, é resultado de
diversos escritos produzidos entre 1924 e 1929, período marcado por
grandes acontecimentos políticos, como a Revolução Paulista, de 1924, e
a marcha da coluna Prestes que recuou, porém no ano seguinte retomou,

212
com força, como um movimento de resistência de militares, sob o comando
do capitão Luiz Carlos Prestes. Nessa época, Anísio Teixeira e Fernando de
Azevedo estavam engajados nas reformas do plano educacional e, com a
criação da Associação Brasileira de Educação – ABE, organizaram confe-
rências nacionais de educação.
O texto de Azevedo mostra que os pioneiros assinantes do docu-
mento estavam engajados em uma luta consciente pela reforma na educa-
ção do Brasil: “Não alimentamos, de certo, ilusões sobre as dificuldades de
toda a ordem que apresenta um plano de reconstrução educacional de tão
grande alcance e de tão vastas proporções” (AZEVEDO et al., 2006, p. 202).
Na contemporaneidade, os escritos de Frota não são tão conheci-
dos como os de Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo, mas
as contribuições dos escritos de Frota Pessôa ainda são relevantes, pois
suas proposições, para os problemas da educação brasileira, continuam
pertinentes, uma vez que não foram superados, e os temas educacionais
por ele abordados permanecem atuais no debate sobre a escola pública
neste país.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, F. de. et al. Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932: a re-
construção educacional no Brasil ao povo e ao governo. Revista Histedbr On-line,
Campinas, n. especial, p. 188-204, ago. 2006.
MAIA, G. B. P. Conhecer o homem, compreender seu tempo: sobre a importância de
José Getúlio da Frota Pessôa e o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova para a
história da educação brasileira. Revista Historiar, ano 2, n. 1, p. 172-189, 2010.
NAGLE, J. Educação e sociedade na Primeira República. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2001.
PESSÔA, J. G. da F. A educação e a rotina. Rio de Janeiro: Livraria Editora Leite Ribeiro
Freitas Bastos; Spicer & Cia, 1924.
VIEIRA, S. L.; FARIAS, I. M. S. de. Frota Pêssoa. Recife: Fundação Joaquim Nabuco;
Editora Massangana, 2010. Coleção educadores.

213
CAPÍTULO XVI

JOSÉ PARANHOS FONTENELLE

Wilson Alves de Paiva1


Tamires Farias de Paiva2

José Paranhos Fontenelle nasceu em Belém do Pará, em 15 de no-


vembro de 1885. Filho de José Freire Fontenelle Bezerril e Maria Joaquina
da Silva Paranhos, os quais tiveram uma prole de seis filhos. Seu pai foi
governador do estado do Ceará (1892-1896), deputado federal, por cinco
mandatos, e duas vezes senador. Engenheiro Militar de formação, com
estudos também em matemática e ciências físicas, realizados na Escola
Militar do Realengo, no Rio de Janeiro, seu pai militou no movimento pró-
-República e foi amigo do Marechal Floriano Peixoto (1839-1895), o qual
presidiu o Brasil de 1891 a 1894.
Não há muita informação sobre o período da infância de José Pa-
ranhos Fontenelle, mas, como na trajetória de muitas famílias brasileiras,
sobretudo do Nordeste, naquele período, mudou-se para o Rio de Janeiro,
onde cursou o nível secundário no Colégio Militar e, depois, fez o curso de
Medicina, o qual concluiu em 1908, na Faculdade de Medicina do Rio de

1 Doutor em Filosofia da Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/7384413996427337. E-mail:


scriswap@ufg.br.
2 E-mail: scriswap@ufg.br.

214
Janeiro. Em uma época em que as faculdades proporcionavam a possibili-
dade de pesquisa e a defesa do trabalho para aquisição do grau de doutor,
simultaneamente aos estudos de graduação, Fontenelle defendeu sua
tese intitulada Climatologia Médica do Brasil.
No ano de 1909, aos 24 anos de idade, iniciou sua carreira no cam-
po da saúde pública, no momento em que as campanhas do sanitarista
brasileiro Oswaldo Cruz (1872-1917) ainda estavam fortes na memória
popular. O ano de 1904, quando a Revolta da Vacina demonstrou a antipatia
da população pelas medidas de higienização, já estava cinco anos distante,
mas não era fácil esquecer os 30 mortos e os 110 feridos, durante a ma-
nifestação. Mesmo assim, assumiu um posto interino na Diretoria-Geral
de Saúde Pública do Distrito Federal, antiga capital do país (Rio de Janeiro),
quando desenvolveu um trabalho de estatística demográfico-sanitária, no
Serviço de Estatística Demógrafo-Sanitária, quando reuniu um conjunto
de conhecimentos, dados e resultados de pesquisa que culminaram na
publicação do livro O método estatístico em biologia e educação, em 1933.
J. P. Fontenelle se casou em 5 de novembro de 1919, com Alda
Monteiro de Barros, filha do coronel e industrial Octávio Monteiro de
Barros e Alda Eugênia Monteiro de Barros; e em 1920, nasceu a filha de
João com Alda, Maria Thereza Fontenelle. O casamento do intelectual foi
noticiado no Jornal Correio da Manhã, como um acontecimento social de
relevância para a sociedade carioca. Ignora-se o motivo pelo qual, em
diversos lugares, aparece, equivocadamente, a data de 5 de novembro de
1929 para seu matrimônio. No entanto, a fonte do Jornal Diário da Manhã
indica, seguramente, a data de 1919.
Sua carreira docente teve início quando, por meio de concurso, foi
nomeado docente de higiene da Escola Normal do Distrito Federal3, na
capital Rio de Janeiro, em 1917. Nesse mesmo ano, publicou suas Notas
das aulas de Hygiene professadas na Escola Normal, o que forneceu subsí-
dios para a posterior publicação do Compendio de Hygiene, para uso nas
escolas normais, reeditado até a década de 1940. Com isso, Fontenelle

3 A partir do ano de 1932, a Escola Normal do Distrito Federal passou a ser denominada
“Instituto de Educação do Distrito Federal”.

215
desenvolveu um grande interesse pelas questões de higiene escolar,
dentre elas a deficiência mental e antropometria física e psíquica da
criança. Nessa mesma obra, há também uma parte com vários capítulos
dedicados à higiene escolar (sexta parte), na qual os mesmos princípios,
encampados pelos escolanovistas, são defendidos. O autor comenta que
“a criança vae toda para a escola, – corpo, intelligencia e alma” (FON-
TENELLE, 1918, p. 533), reafirmando a necessidade de uma educação
completa, ambientada em espaços amplos, higienizados e apropriados
às necessidades das crianças, com boa ventilação, boa iluminação, com
ambientes pedagógicos, amplo local para jogos e atividades recreativas.
Além disso, nessa obra (FONTENELLE, 1918, p. 548), há, inclusive, as
indicações para a construção de uma boa carteira escolar, e observações
que são estritamente seguidas nas construções empreendidas por Anísio
Teixeira, como a Escola Parque, na Bahia.
O aprofundamento de tais questões foi possível por meio de
estudos que realizou nas escolas primárias e que, posteriormente, foram
publicados em forma de artigos e livros. Aliás, no artigo publicado em A
folha médica, em 1920, intitulado Deficiência mental nos escolares, Fonte-
nelle assinala que foi a partir de sua nomeação para o cargo de professor
na Escola Normal que passou a se interessar pelas questões de higiene
escolar. Igualmente, foi a partir de sua atuação de chefe do Serviço de
Profilaxia Rural, em 1918, que se abriram as possibilidades de realização
de experiências junto às escolas do Rio de Janeiro.
Em 1925, Fontenelle seguiu para os Estados Unidos, tendo sido
agraciado com uma bolsa da Fundação Rockefeller. Lá estudou Biometria e
Estatística, Epidemiologia e Administração de Saúde Pública, até 1926, na
Escola de Higiene e Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins.
Por influência da arte cinematográfica, em forte ascensão na cul-
tura americana, no início do século, quando retornou, passou a utilizar tal
ferramenta na Educação em Saúde. Na condição de conselheiro técnico da
Saúde Pública do Rio de Janeiro, Fontenelle projetou e orientou a produção
de filmes de curta-metragem para sessões de cinema – “Os inimigos
invisíveis”, sobre micróbios e contaminação; “Maternidade”, abordando o

216
tema da higiene natal e “Os homens de amanhã”, acerca da higiene escolar.
Porém, sua produção no campo da didática escolar começou antes, quando
publicou, com a colaboração técnica e financeira de uma organização nor-
te-americana, o livro O alfabeto da saúde da criança.
No campo educacional, além dessa produção didática de filmes,
Fontenelle atuou como membro da Associação Brasileira de Educação –
ABE, fundada no ano de 1924, onde participou ativamente das discussões
nela empreendidas. Além disso, tornou-se o primeiro presidente da Secção
de Educação Physica e Hygiene dessa associação, sendo responsável por
traçar planos que visavam intervenções na educação escolar da capital,
especialmente com relação às questões de saúde. Durante o tempo de sua
existência, essa seção também contou com a presidência de Faustino Es-
pozel, Belisário Penna, Gustavo Lessa, Jorge de Moraes e Renato Pacheco.
A inserção de Fontenelle nos debates da época foi legitimada pela
participação nas Conferências Nacionais de Educação, bem como nos
Congressos Brasileiros de Higiene, realizados, especialmente, entre as
décadas de 1920 e 1930. Nessa época, os intelectuais não se limitavam
a um só campo do conhecimento, mas transitavam em diversas áreas,
relacionando-as, em uma visão sistêmica. A defesa de que era necessário
unir os propósitos da saúde pública aos educacionais esteve presente em
seus discursos e talvez tenha o principal tema de ligação entre Fontenelle
e os demais signatários.
Fernando de Azevedo afirma que havia entre os signatários do
Manifesto uma discordância quanto aos “fins da educação” (AZEVEDO,
1949, p. 50), a qual era própria da concepção de vida e filosofia que cada
signatário tinha. Desse modo, na sessão de encerramento do V Congresso
Brasileiro de Higiene, realizado no ano de 1929, os médicos José Paranhos
Fontenelle e Xavier de Oliveira defenderam sua “concepção de vida” e sua
aplicabilidade à educação, chamando a atenção do professorado brasileiro,
bem como requisitando a realização de um congresso com a participação
tanto das autoridades sanitárias como dos membros do magistério, a fim
de se discutir a relação entre saúde e instrução. Ou seja, os “fins da educa-
ção”, na concepção do médico J. P. Fontenelle, estavam relacionados a uma
formação completa, buscando um bem maior, que é do melhoramento das

217
condições gerais da vida em sociedade. A diferença com alguns pedagogos
era de ordem técnica e se salientava nas especificidades de suas próprias
áreas. Em suas palavras:

Considerando que a Saúde e a Instrucção do povo devem


constituir o maximo objectivo de uma nação em plena
formação, como a nossa [...] e, considerando, afinal, que,
dos municipios, são factores maximos para sua melhoria no
ponto de vista da Hygiene e da Instrucção as autoridades
sanitárias e do magistério: indico ao voto do V Congresso
Brasileiro de Hygiene: dentro do prazo de dois annos, a con-
tar desta data, sob os auspícios do Departamento Nacional
de Saude Pública e do Departamento Nacional de Ensino
e da Sociedade Brasileira de Educação, e debaixo do alto
patrocínio dos governos Federal e Estaduaes, seja realisado
um Congresso das autoridades sanitárias e do magisterio de
todos os Municipios do Paiz, para o fim especial de tratar das
altas questões que dizem com a saúde e com a instrução do
povo brasileiro (FONTENELLE, 1925, p. 180-181).

Combinando os dois campos do conhecimento, foi inspetor sanitá-


rio do Departamento Nacional da Saúde Pública, vice-presidente da Socie-
dade Brasileira de Higiene e primeiro professor-chefe da Seção de Biologia
Educacional e Higiene, do Instituto de Educação do Distrito Federal. Espe-
cialista em Administração Sanitária, foi um dos principais incentivadores
do curso de Medicina Especializada, na Policlínica Geral do Rio de Janeiro,
seguindo a orientação pedagógica da Fundação Rockefeller. Foi também
professor do curso Especial de Higiene da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro. Responsável pelas modificações e adaptações feitas no teste de
seleção do exército americano para a Primeira Guerra Mundial, Fontenelle
produziu o instrumento que passou a ser utilizado no processo seletivo
dos candidatos ao curso normal do Instituto de Educação do Rio de Janeiro.
A trajetória de Fontenelle, no campo educacional, foi marcada por
preocupações relacionadas ao desenvolvimento da criança, especialmente
durante a etapa escolar. A defesa da ideia de que a professora primária
deveria zelar pela saúde das crianças esteve presente em seus discursos,
fortalecendo os princípios higienistas veiculados nos diferentes espaços.
Na primeira edição de seu Compendio de Hygiene, Fontenelle assinala a
importância do estudo da Higiene Infantil:

218
Todos os que se occupam com as crianças teem a mais
estricta obrigação de conhecer as grandes regras da pueri-
cultura, e o hygienista precisa ser ouvido em todo o curso
do crescimento da criança, para aconselhar as mães em
cada caso especial. É nosso encargo analysar, agora, em
linhas geraes, o problema da puericultura, que é a synthese
da hygiene infantil; mais tarde teremos de ver a criança na
escola, para estatuirmos as regras da hygiene escolar (FON-
TENELLE, 1918, p. 437).

Discurso que, nesse período, estava amalgamado aos ideais da


modernidade, os quais sustentavam a necessidade de sanear o Brasil
e civilizar o povo, reservando à infância escolarizada um lugar próprio.
Nessa imbricação, própria das primeiras décadas do século XX, vemos a
escola primária se configurando como um espaço propício à efetivação dos
preceitos de higiene e, sobretudo, fortalecendo‐se a crença na infância
enquanto potencial instrumento educativo do meio social (PAIVA, 2013).
As décadas de 1920 e 1930 foram um período fértil para os médi-
cos que tinham, assim como J. P. Fontenelle e Afrânio Peixoto4, um trânsito
entre saúde e educação. Os discursos de ambos intelectuais, veiculados a
partir de diferentes suportes, somavam-se aos dos profissionais, perten-
centes tanto ao campo médico como ao campo educacional, que comparti-
lhavam as mesmas preocupações em relação à saúde e educação nacional.
A publicação de manuais, utilizados na formação de professoras primárias,
esteve no âmbito de um projeto de nação higienizada, fomentado por
médicos e higienistas, dentre eles J. P. Fontenelle e Afrânio Peixoto.
No contexto do projeto de higienização, os manuais de higiene
se constituíram dispositivos didático-pedagógicos que materializaram
os anseios da classe médica e pretenderam alcançar a formação do pro-
fessorado primário. Afrânio Peixoto, com Noções de Hygiene, e Fontenelle,

4 Júlio Afrânio Peixoto foi um médico e professor baiano que produziu durante sua trajetória
intelectual uma vasta bibliografia e ocupou distintos espaços de saberes. Signatário do
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, alcançou representatividade, tanto no campo médico
como no educacional, veiculando discursos que enfatizavam a necessidade de formação de
uma consciência sanitária nacional. A experiência como médico, perceptivelmente, fundiu-se
na fala como educador e igualmente refletiu em sua vida política, aquecendo os debates acerca
da Saúde e Educação Nacional.

219
com Compendio de Hygiene, foram autores de manuais que circularam até
a década de 1940 e foram adotados nos programas de ensino da Escola
Normal do Distrito Federal. Abordando, dentro do amplo campo de estudo
da higiene, o problema da educação escolar e seus sujeitos, ambos os
textos funcionaram como importantes materiais para a conformação de
representações acerca dos professores e seu ofício.
Em seu compêndio, no capítulo 3 – A criança na escola – Fontenelle
elogia o trabalho de exame, medição e acompanhamento de “centenas
de milhares de crianças” (1918, p. 580), realizado pelos Estados Unidos e
alguns países da Europa. Ação necessária à criança brasileira, até porque,
segundo ele, o crescimento somático auxilia no desenvolvimento das
funções intelectuais. Essas e outras ideias foram apresentadas nos con-
gressos e reuniões da Associação Brasileira de Educação – ABE.
A atuação de Fontenelle na ABE contribuiu para sua aproximação
ao Movimento Escolanovista, culminando na assinatura do Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova, no ano de 1932. Destarte, foi um grande
colaborador de Lourenço Filho, na tentativa de criar uma pedagogia expe-
rimental, enfatizando a valorização crescente dos testes de inteligência, no
Instituto de Educação.
Fontenelle defendeu ideias que eram contrárias à educação tra-
dicional, como os espaços lúdicos, o cuidado com a infância e até mesmo
as relações democráticas na escola. Escreveu certa vez, com admiração, o
seguinte: “Nos E. Unidos já está sendo tentado até o systema de serem os
professores eleitos pelos alumnos” (FONTENELLE, 1918, p. 544) –, ideia
que o aproximou de Delgado de Carvalho, o qual tentou ampliar a participa-
ção do aluno no cotidiano da escola quando foi diretor do Colégio D. Pedro
II, no curto mandato de 1930 a 1931.
Para Fontenelle, a sala de aula deveria dispor de um espaço ade-
quado tanto para o estudo dos alunos quanto para o trabalho realizado pe-
los professores. Tal defesa voltava-se, principalmente, para os anos iniciais
da vida escolar, quando sugere que não deveria ser realizada a instrução,
mas um conjunto de atividades lúdicas que desenvolvessem a memória e a
imaginação. Argumentava, igualmente, que a educação das crianças mais

220
novas deveria ser realizada por professores especializadas, a fim de dar
contornos próprios a essa etapa da vida escolar:

Foi Froebel quem imaginou e poz em pratica taes escolas,


com o nome de “Kindergarten”, palavra que bem traduzida
do allemão não póde significar, como há quem pense, um
jardim para crianças, mas, sim, dar idéa de que a criança é
uma planta que precisa ser cultivada com a delicadeza com
que o são as plantas de jardim. Para isso, devem ser prepa-
radas educadoras especiaes, consagradas exclusivamente á
educação das crianças pequeninas, pois que o emprego das
professoras communs em taes escolas produz infallivelmen-
te máos resultados (sic) (FONTENELLE, 1925, p. 573).

Mais do que isso, no capítulo IV de seu Compendio de hygiene, consta


que a sala de aula é o lugar da prevenção por excelência. Com um programa
de “saúde na escola” seria possível, por exemplo, verificar os problemas
que se manifestam na infância, como adenoides, hipertrofias, dificuldades
na fala, entre outros, os quais impedem o bom desenvolvimento educativo.
Ademais, um programa como esse tem o potencial de desenvolver uma
postura saudável, desde a mais tenra idade, a fim de evitar problemas
futuros. O benefício estaria também no encaminhamento, por parte do
governo, da cura das enfermidades detectadas nos escolares. Idealista
como era, Fontenelle dizia claramente: “A organização sanitária das es-
colas precisa dispor de medicos, enfermeiras, dispensarios, classes ao ar
livre, colonias de feiras e cantinas (sic)” (FONTENELLE, 1925, p. 619). Tal
perspectiva é, claramente, a ideia de educação integral – a qual está bem
presente tanto no conceito de “escola-parque” (desenvolvida nas décadas
de 1920 e 1930) quanto na Escola Parque (Centro Educacional Carneiro
Ribeiro), criada por Anísio Teixeira, na Bahia, em 1950.
Em 1947, José Paranhos Fontenelle foi eleito vice-presidente da
Associação Americana de Saúde Pública e, no ano de 1951, foi jubilado na
Escola Normal do Distrito Federal (que, a partir de 1932, passou a se cha-
mar Instituto de Educação), quando era professor catedrático de Biologia
Educacional, Higiene e Estatística.

221
Fontenelle uniu em sua trajetória profissional higiene, saúde
pública e educação. E, no contato com sua obra, é possível afirmar que
ele buscava elevar a professora primária como importante agente na
difusão da educação higiênica. É perceptível esse elo, essa aliança entre
higiene e instrução, que serviu de chamada de atenção dos educadores
e, consequentemente, fonte para o cuidado da infância nas questões de
higiene do desenvolvimento, pois Fontenelle se dedicou ao tratamento
do desenvolvimento da criança, ao estudo das fases do crescimento e, no
geral, às questões relacionadas à puericultura, as quais estão expressas no
Compênio de Hygiene, ajudando a compor o ideário educacional escolano-
vista como um todo e revelando o grau de interação entre os intelectuais
e seu compromisso com o novo projeto de educação que estava em curso
no país. Com seu olhar de médico-higienista sobre a escola, J. P. Fontenelle
termina seu discurso, publicado na revista Arquivos do Instituto de Educação,
da seguinte maneira:

O aperfeiçoamento do professor primário, após sua


formatura, é função primordial do Instituto de Educação,
lamentavelmente descurada até bem pouco tempo. O que
já foi conseguido, nos últimos três anos, representa obra de
tal vulto que desafia qualquer possibilidade de recuo. Antes,
exige que seja cada vez mais desenvolvida, para atender
aos anceios de um inteligente e esforçado corpo de mestres
de escola, bem compenetrado das ingentes dificuldades de
sua tarefa e da grandeza do patriótico trabalho que tem de
realizar (FONTENELLE, 1950, p. 55).

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, F. de. A educação entre dois mundos. São Paulo: Melhoramentos, 1949.
CAMPOS, C. E. A.; COHN, A.; BRANDÃO, A. L. Trajetória histórica da organização sani-
tária da cidade do Rio de Janeiro: 1916-2015 – cem anos de inovações e conquistas.
Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 5, p. 1351-1364, 2016.
FONTENELLE, J. P. Aperfeiçoamento de professores primários. Arquivos do Instituto
de Educação, v. 2, n. 3, jun. 1950.
FONTENELLE, J. P. Compendio de Hygiene Elementar. Rio de Janeiro: Livraria Editora
Leite Ribeiro, 1925.

222
FONTENELLE, J. P. Compendio de Hygiene. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro & Maurillo,
1918.
JORNAL CORREIO DA MANHÃ. Rio de Janeiro, ano 19, n. 7.555, 5 nov. 1919.
LUIZ, A. de C. S.; LINA, F. O ensino da saúde pública no Brasil: os primeiros tempos
no Rio de Janeiro. Trabalho, Educação e Saúde, v. 4, n. 2, p. 291-324, 2006. Disponível
em: file:///C:/Users/revisor4/Downloads/Public_health_education_in_Brazil_before-
time_in_Ri.pdf. Acesso em: 8 mar. 2021.
PAIVA, T. F. de. Noções para persuadir e educar: os discursos médico-higiênicos na
formação do professorado primário (1914-1928). 2013. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2013.
PAIVA, T. F. de. Pela educação Hygienica do professorado: docência e pedagogia nos
discursos científicos na Primeira República. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS
E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”, 9., 2012, João Pes-
soa. Anais […]. João Pessoa: UFP, 2012.

223
CAPÍTULO XVII

JÚLIO AFRÂNIO PEIXOTO

Elianda Figueiredo Arantes Tiballi1

Como já afirmara Luiz da Câmera Cascudo (1970), “Afrânio Peixoto?


Plural: Afrânios”. Essa foi a principal característica da trajetória de vida de
Júlio Afrânio Peixoto, protagonizada pela sua atuação em diferentes cam-
pos científicos e por sua extensa produção literária, indo da Medicina ao
Direito, da Pedagogia à História, da Literatura à Moda e ao Folclore, enfim,
um polígrafo2. Como intelectual atuante, compartilhava os ideais políticos
que circulavam entre seus contemporâneos, defendendo a modernização
da nação, a racionalidade científica – como princípio para as proposições
de mudanças sociais desejadas –, a democracia e a consolidação da nacio-
nalidade brasileira.
Foi um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
de 1932, e, por essa razão, excertos de sua biografia é o conteúdo deste

1 Doutora em História e Filosofia da Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/1828025455687021.


E-mail: tiballielianda@gmail.com.
2 “Essa era uma nota comum àquele tempo, onde os escritores brasileiros se esforçavam
em ser polígrafos, refletindo a reduzida diferenciação existente no campo intelectual. O mais
frequente era o médico, o bacharel, o militar ou o engenheiro que, além dos termos técnicos de
suas especializações, versasse sobre a política e a literatura, esta em numerosos gêneros de
prosa e verso” (MAIO, 1994, p. 75-76).

224
capítulo que tem por objetivo narrar alguns eventos da trajetória de vida
desse intelectual, de modo a fornecer argumentos que possam explicar
sua presença ente os signatários daquele Manifesto.
Trata-se de um estudo biográfico que se insere na especificidade
de uma biografia histórica e realizada nos limites do que foi considerado
por Silveira: “Entende-se por biografia histórica a perspectiva biográfica
que busca articular narração e explicação, regulada pelas regras de pes-
quisa e de produção comuns à escrita da história” (SILVEIRA, 2016, p. 472).
Assim, sem a pretensão de um estudo exaustivo de história bio-
gráfica, o que extrapolaria em muito o espaço editorial deste capítulo, os
fragmentos da biografia de Afrânio Peixoto, aqui narrados, decorrem dos
nexos que foram surgindo à medida em que o cruzamento heurístico dos
dados biográficos, já disponibilizados por diferentes autores, seus intér-
pretes, fornecia o roteiro dos caminhos percorridos por esse signatário
em sua trajetória de vida. O que significa dizer que, concordando com Levi:
“Nenhum sistema normativo é suficientemente estruturado para eliminar
qualquer possibilidade de escolha consciente, de manipulação ou de inter-
pretação de regras, de negociação” (LEVI, 2008, p. 176). Essa advertência
se aplica, sobretudo, ao historiador que se dispõe ao estudo biográfico de
Afrânio Peixoto, que – por sua trajetória de vida fértil, com uma produção
bibliográfica extensa, uma rede de sociabilidade ampla e uma diversificada
atuação profissional institucional – exige do historiador escolhas conscien-
tes. Nesse caso, a escolha do estudo biográfico de Afrânio Peixoto é uma
premência em razão da impossibilidade de apreensão de toda sua extensa
e intensa atividade intelectual e profissional.
À abundância de dados biográficos desse intelectual, deixados em
sua vasta produção bibliográfica que somam mais de 359 títulos, juntam-
-se 106 estudos biográficos e analíticos de suas obras, conforme constam
no catálogo organizado pela Biblioteca Nacional (1976) para a exposição
comemorativa do centenário de nascimento de Afrânio Peixoto. Além
destes, constam das referências bibliográficas registradas no Dicionário de
Verbetes referentes a Júlio Afrânio Peixoto, e, na Casa Oswaldo Cruz/Fiocruz
(2013), 34 títulos de estudos sobre Afrânio Peixoto. Foram localizadas,

225
ainda, seis teses e dissertações produzidas entre os anos de 2014 e 2018,
conforme registros da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações – BDTD,
do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia – Ibict, do
Ministério de Ciências, Tecnologia e Inovações – MCTI.
Diante desses números, o risco de tautologia é eminente. Assim,
para evitar o risco, dois recortes foram realizados para a escrita deste ca-
pítulo: o primeiro, considerar os estudos já realizados como referência para
o propósito desta escrita e utilizá-los como fonte de dados; e o segundo,
extrair, da biografia de Afrânio Peixoto, informações de sua atuação como
higienista, educador e literato para apreender, a partir dessas suas ativi-
dades profissionais, nexos que marcaram a militância política de Peixoto.
As obras escolhidas como principais fontes dos dados analisados,
e aqui apresentados como recorte biográfico da trajetória de vida de
Afrânio Peixoto, foram: Fonseca (2013), Gondra e Silva (2014), Gondra
(2018 e 2020), Venâncio Filho (2007) e Vilela (2014), o catálogo da ex-
posição comemorativa ao centenário de nascimento de Afrânio Peixoto
organizado pela Biblioteca Nacional (1976), e livros do próprio Afrânio
Peixoto (1913, 1918, 1923, 1931, 1933).

Dados biográficos

Segundo Fonseca (2013):

Júlio Afrânio Peixoto nasceu em Lençóis-BA, em 17 de


dezembro de 1876. Era filho do Capitão Francisco Afrânio
Peixoto, comerciante de diamantes, e de Virgínia de Moraes
Peixoto, e neto de Alexandre Mascarenhas Peixoto e Maria
Constança Peixoto, que haviam vindo de São Pedro de Azu-
rém (Guimarães, Portugal). Teve como irmãos Estefânia de
Moraes Peixoto, que se tornou religiosa da Congregação das
Irmãs Dorotéias, Filogônio de Souza Peixoto, farmacêutico,
dentista e fazendeiro de cacau na província do Espírito Santo,
Maria Constança de Moraes Peixoto, e Júlia de Moraes Pei-
xoto, que se dedicaram à assistência à pobreza na cidade de
Salvador. Em 1885, com a crise na exploração de diamantes,
o casal deixou a cidade de Lençóis, e foi residir no povoado
de Salobro, município de Canavieiras, na mesma província,

226
onde seu pai, Francisco Afrânio Peixoto tornou-se agricultor
de cacau. Nesta localidade nasceram os outros irmãos de
Júlio Afrânio Peixoto: Álvaro (o primeiro, falecido com um
ano de idade), Álvaro Afrânio Peixoto, farmacêutico, Mário
Afrânio Peixoto, cirurgião-dentista, Arthur Afrânio Peixoto,
padre, Helena de Moraes Peixoto e Jovita de Moraes Peixoto,
igualmente dedicadas à vida religiosa como irmãs Dorotéias.
Júlio Afrânio Peixoto passou sua infância e adolescência na
Fazenda da Boa Vista, às margens do Rio Pardo, na região
diamantífera de Canavieiras, na província da Bahia. Casou-se
em 8 de janeiro de 1912 com Francisca de Faria, filha de
Alberto de Faria, advogado, empresário, escritor, e poste-
riormente membro da Academia Brasileira de Letras. Teve
um único filho, José Júlio (Juca), que faleceu, aos 18 anos, em
1942. Foi cunhado de Otávio de Faria, também acadêmico, e
concunhado de Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Atahyde),
que se casou com Maria Teresa de Faria, irmã de sua esposa
(FONSECA, 2013, p. 1).

O higienista

A formação acadêmica de Afrânio Peixoto teve início com as aulas


que frequentava com professores de primeiras letras, ainda em Lençóis,
Bahia. No entanto, os estudos que o levaria à formação médica foram
proporcionados pela sua transferência para a cidade de Salvador, matricu-
lando-se no curso preparatório para o Colégio Florêncio em 1888, o que lhe
permitiu ingressar na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1892. Enquanto
esteve cursando medicina, foi nomeado “aluno interno” da cadeira de
Clínica Médica do professor Frederico de Castro Rebello, da cadeira de Psi-
quiatria e Moléstias Nervosas do professor Juliano Moreira, e foi também
aluno assistente do professor Raymundo Nina Rodrigues, na cadeira de
Medicina Legal.
Concluiu o doutorado em Medicina em 1897, defendendo a tese
Epilepsia e Crime, a qual foi reeditada em 1898, com uma tiragem de mil
exemplares, prefaciada por Nina Rodrigues.
Entretanto, apesar de sua dedicação aos estudos na área de medi-
cina, a clínica médica não teria sido sua preferência profissional:

227
Quando me formei pretendia exercer a clínica e parti para Ca-
navieiras. Minha mãe tinha feito uma consulta aos médicos
da terra sobre um instrumental de cirurgia, que me queria
oferecer. Como manteve segredo comigo, despendeu muito
dinheiro e grandes canseiras para mandá-lo vir da Europa,
através da Bahia, um arsenal de cirurgia, heteróclito, que da-
ria para vários especialistas de uma capital. Assim é que eu
tinha caixas niqueladas de Collin, contendo todo um arsenal
para amputações. Outras caixas para resseções sub-cáp-
sulo-periósticas, de Olier; outras com uma série de sondas
de Guyon; material completo para uretrotomia; material
para partos e para tratamentos ginecológicos. Enfim, vários
catálogos e informações idôneas. Gastou, com isto, muitos
contos de réis, que não me aproveitariam, visto como eu não
estudara nenhuma dessas especialidades, para as exercer,
sem perigo para o meu próximo (RIBEIRO, 1950, p. 31 apud
FONSECA, 2013. p. 2).

Disposto a seguir a carreira de professor, assumiu, em 1891, a


cadeira de Medicina Pública na Faculdade de Direito da Bahia e integrou o
grupo literário chamado “Tetúlia das Letras”.
Em 1902, transferiu-se para o Rio de Janeiro, então capital do país,
para concorrer a uma vaga de professor na Faculdade de Medicina.

Nomeado tomei logo o meu partido e disse a Nina Rodrigues


que não pretendia ficar na Bahia, visto como estimava-o
bastante para não desejar a substituição dele, ainda moço, e
com poucos anos de professorado. O desejo, porém, de dar
à vida uma situação definitiva, ia levar-me ao Rio, onde seria
próxima a sucessão de Souza Lima. Nina, bondosamente,
convenceu-me de que, para esse concurso, devia eu siste-
matizar estudos e conhecimentos para vencer. Foi assim
que, por dois anos preparador de Medicina Legal, fui eu o
mais estudioso e aproveitável dos seus alunos. Na ausência
de [João Americo Garcez] Fróes, que substituía na Faculdade
de Direito a Rodrigues Doria, então no Parlamento, fui nome-
ado professor. E me exerci na Cadeira teórica, tanto quanto
na Faculdade de Medicina, nos estudos práticos. Com Juliano
Moreira, avancei um pouco mais na Psiquiatria que me seria
indispensável, e com Alfredo de Andrade, no Laboratório
Municipal de Análises, Química Bromatológica e Toxicologia,
que também me seriam úteis. Para ocupar o resto do tempo,

228
fiz literatura e agitei a Bahia com a propaganda simbolista
(RIBEIRO, 1950, p. 33 apud FONSECA, 2013. p. 3).

Já, no Rio de Janeiro, foi indicado por J. J. Seabra, Ministro da Justiça


de Rodrigues Alves, para o cargo de secretário da Diretoria-Geral da Saúde
Pública, mas, essa indicação não teve a aprovação de Oswaldo Cruz, Dire-
tor daquele órgão, na época. Diante desse impasse, Oswaldo Cruz convida
Afrânio Peixoto para a direção do Hospital de Jurujuba e este prontamente
recusou o convite (FONSECA, 2013).
Na sequência dos fatos, Afrânio Peixoto foi nomeado Inspetor
Sanitário (1902), e, em 1903, foi trabalhar com Juliano Moreira no Hospital
Nacional dos Alienados, tendo assumido a direção deste Hospital em
razão do adoecimento de Moreira, em 1904. Após concurso, foi nomeado
professor de Medicina Legal da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
(1907) e assumiu os cargos de professor extraordinário da Faculdade de
Medicina (1911); diretor da Escola Normal do Rio de Janeiro (1915); diretor
da Instrução Pública do Distrito Federal (1916); deputado federal da Bahia
(1926-1930).
Entre 1904 e 1906, percorreu a Europa em companhia de Oscar
Rodrigues Alves, filho do Presidente do Brasil, Rodrigues Alves, visitan-
do dez países: França, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Itália, Suíça, Áustria,
Alemanha, Espanha e Portugal, para se especializar nos estudos sobre
Medicina Legal, Autópsias e instituições para “alienados”3 . Ao regressar
ao Brasil, foi aprovado em concurso público para as aulas de Medicina
Legal na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Em 1907, foi nomeado
o primeiro diretor do recém-criado Serviço Médico Legal do Rio de Janeiro,
cargo que exerceu até 1910.
Em maio de 1910, foi eleito o terceiro ocupante da Cadeira nº 7 da
Academia Brasileira de Letras – ABL, sucedendo Euclides da Cunha. Para
dar razão literária à sua indicação, escreveu o romance A esfinge, antes de
sua posse ocorrida em agosto de 1911.
Ainda em 1910, publicou Elementos de Medicina Legal, que teve,
até 1938, 25 mil exemplares distribuídos, e, em razão da linguagem es-

3 O alienismo foi considerado, na virada do século XVIII, para o século XIX, como a primeira
especialidade médica destinada aos assuntos relacionados às doenças mentais.

229
pecializada do livro, foi convidado pelo editor Francisco Alves a escrever
um manual didaticamente produzido para a compreensão do leitor não
especializado.

Quando no verão de 1910, procurei as Paineiras como


refrigério para a canícula do Rio, encontrei o livreiro editor
Francisco Alves, que era, como eu, o único hóspede insen-
sível ao jogo em que se entretinham todos os outros. Na
varanda do hotel, um encontro fê-lo falar comigo e ficamos
companheiros de palestra. Tão constantemente falava-lhe
da Europa, que ele perguntou, um dia, por que não satisfazia
logo esse desejo. Respondi-lhe que me faltavam meios; os
meios se adquirem pelo trabalho. — “Por que não escreve
um livro didático que lhe dê para isso?”. Como não compreen-
desse bem, explicou-me que o compêndio de Medicina Legal
de Souza Lima era inabordável e o Manual que lhe juntasse à
doutrina algumas observações, por fôrça seria bem recebido.
Uma primeira edição de um livro didático poderia dar-me a
cobiçada viagem. [...]. Pus-me a escrever o livro e estava ele
realizado, quando procurei o livreiro Alves, que o resolveu
imprimir na Europa, sendo-me dadas aí as provas respec-
tivas. [...], mas eu parti, em setembro, diretamente para a
Itália, Nápoles, onde iriam ter as provas de Paris (RIBEIRO,
1950, p. 45 apud FONSECA, 2013, p. 6).

Foi então que Afrânio Peixoto escreveu o manual Elementos de Hi-


giene.

Vale lembrar que, à época, os manuais médicos da família


estariam presentes em quase todas as casas da elite (que
seria um dos únicos grupos alfabetizados), sendo usual que
as famílias a eles recorressem na busca por tratamento das
mais diversas mazelas (LIMA, 2006, p. 13).

Esse manual, embora destinado ao ensino nas escolas primárias,


sintetiza conceitos sobre higiene e foi adotado tanto em cursos superiores
como no ensino das escolas normais. Outros de seus escritos tiveram o
mesmo propósito, e, neles, Afrânio Peixoto realizou e publicou estudos
para a melhoria da vida em sociedade, visando formular proposições higie-
nistas para evitar doenças e epidemias no país. Dessa forma,

230
A higiene não é precisamente uma ciência, porque é uma
aplicação prática de quase todas. É um conjunto de preceitos,
buscando em todos os conhecimentos humanos, mesmo
fora e além da medicina, e tendentes a cuidar da saúde e
poupar a vida (PEIXOTO, 1913, p. 564).

Ao ser nomeado para a cátedra de Higiene na Faculdade de Medi-


cina, assim se pronuncia em reportagem publicada no Jornal do Comércio.
de 4 de agosto de 1916:

A Higiene, mais modesta e que não tem um século de cultura


racional, algumas décadas apenas de estudo especializado,
já pode ser chamada a plenário, sem vexame. Não conse-
guimos curar a cólera, a peste, a lepra, a febre amarela; ela
as evitou, ela as fará desaparecer do mundo, para nossa
fama. [...]. A Medicina não sabe curar as doenças orgânicas,
a Higiene as pode evitar [...]. Tal é a Higiene: ainda uma es-
pecialidade hoje, e singular nas nossas faculdades, amanhã
divulgada certamente aqui mesmo, em numerosas outras
derivações, outras tantas cadeiras, e lá fora, desde a aula
primária, nas escolas preparatórias, normais, profissionais,
porque só a saúde é a compensação da vida, e essa glória de
viver são só a consegue e ensina a Higiene (RIBEIRO, 1950,
p. 62-64 apud FONSECA, 2013, p. 7).

Esse pronunciamento é parte de um polêmico debate travado


entre profissionais médicos que, à época, polarizavam duas posições: de
um lado, os que defendiam a medicina como profissão responsável pelo
tratamento de doenças que acometiam a população brasileira em de-
corrência da mestiçagem das raças, do clima e da ignorância, buscando
alternativas epidemiológicas para os tratamentos médicos. De outro lado,
Afrânio Peixoto e outros adeptos do movimento higienista4 que defendiam
a promoção de campanhas para o esclarecimento educativo da população,
visando a promoção e a preservação da saúde pública. Assim, “Não será

4 São muitos os estudos vindos da área de medicina, de história e de educação que analisam
os movimentos higienistas, sanitarista e eugenistas no Brasil, explicitando as diferenças que
distinguem as políticas de saúde pública defendidas por seus adeptos. Afrânio Peixoto tem
várias publicações sobre higiene e sanitarismo, com posições bastante polêmicas, tornando
difícil filiar suas convicções a um daqueles movimentos. Para maior compreensão do tema, ver:
JANZ JUNIOR (2011); GÓIS (2014); TAMANO (2017); GONDRA (2018).

231
necessário mudar o eixo da Terra para dar novo clima ao Brasil, nem nos
transfundir o sangue das raças nobres, para lograrmos a saúde, e então a
prosperidade, o bem estar (sic) e a razão de viver” (PEIXOTO, 1918, p. 2).
Afrânio Peixoto participou ativamente do debate em torno dos
temas eugenia, sanitarismo e higienismo e, neste sentido, esteve no
centro de uma polêmica com Carlos Chagas5, questionando publicamente
a importância da descoberta da tripanossomíase americana (doença de
Chagas) e dos investimentos públicos a ela destinados. Nas palavras de
Afrânio Peixoto proferidas em discurso na Academia Nacional de Medicina:
“uma doença rara e desconhecida, doença de que se falasse muito, mas
quase ninguém conhecesse os doentes, encantrada (sic) lá em um viveiro
sertanejo de vossa província” (PEIXOTO, 1923, p. 723-724 apud KROPF,
2006, p. 232).
Em seus posicionamentos enfrentava a polêmica em defesa de
seus princípios higienistas e seus biógrafos enfatizam a eloquência de sua
oratória e de sua participação ativa como interlocutor no debate sobre a
saúde pública no Brasil.

O escolanovista

Em 1915, Afrânio Peixoto foi nomeado diretor da Escola Normal


do Rio de Janeiro e, no ano seguinte, diretor da Instrução Pública do Dis-
trito Federal. Também foi professor de História da Educação do Instituto

5 “O ‘grupo anti-Chagas’. Cada novo cargo, honraria ou indicação no Brasil reforçava o ‘grupo
anti-Chagas’. Não gostavam das ideias de Chagas, dos critérios de mérito que ele e Oswaldo
Cruz instituíram, das relações de Chagas com instituições estrangeiras e nem da sua condução
dos negócios da saúde pública. Quando o Departamento de Saúde Pública foi criado, o poderoso
Afrânio Peixoto tinha a pretensão de dirigi-lo. Com a nomeação de Chagas, Afrânio tornou-se
o mais virulento inimigo do descobridor da tripanossomíase. Foi Afrânio Peixoto quem, dois
anos depois, abriu a chamada ‘disputa da Academia Nacional de Medicina’, em que acusações
sérias foram feitas em reunião daquela casa em novembro de 1922.Chagas solicitou que uma
comissão julgasse as acusações que lhe faziam: a de que a doença não era consistente, de
que ela não tinha relevância epidemiológica e de que ele próprio não seria nem mesmo o seu
descobridor, cabendo o título a Oswaldo Cruz. A comissão trabalhou de forma turbulenta, de
1922 a 1923. Finalmente, em 6 de dezembro de 1923, a comissão concluiu favoravelmente a
Chagas”. Reportagem publicada na Folha de São Paulo, em 7 de fevereiro de 1999, por Marília
Cordeiro apud PICCININI, J. W. História da Psiquiatria. Psychiatry On line Brasil, [s. l.], v. 11, n. 12,
mar. 2006.

232
de Educação do Rio de Janeiro (1932) e reitor da Universidade do Distrito
Federal, em 1935.
Em 1932, era professor do Instituto de Educação, dirigido por
Lourenço Filho, na cadeira de História da Educação; professor da Facul-
dade Medicina do Rio de Janeiro; professor catedrático de Medicina Legal
e Criminologia, no curso de doutorado da Faculdade de Direito do Brasil.
Ao mesmo tempo, participava ativamente como integrante da Diretoria
da Associação Brasileira de Educação – ABE, instituição que organizava
anualmente a Conferência Nacional de Educação6.
A participação como sócio atuante na ABE fornece uma chave
de entendimento da presença de Afrânio Peixoto como signatário do
Manifesto do Pioneiros da Educação Nova. Obviamente que sua militância
intelectual, atribuindo sentido político às questões coletivas, em especial
aquelas pertinentes ao campo da saúde e da educação, legitima o seu
pertencimento ao grupo dos signatários daquele documento, mas não o
explica suficientemente.
Ao analisar a atuação dos intelectuais à frente da ABE, Viera (2017)
aponta três aspectos defendidos pelos intelectuais que militavam nessa
associação e que coadunavam com os interesses políticos e pessoais de
Afrânio Peixoto: o entendimento da missão das elites cultas na formação
da consciência nacional; a indicação do Estado como principal interlocutor
da ABE; a perspectiva de ocupação de cargos estratégicos no aparelho
estatal e/ou pela influência na formulação das políticas públicas.

Os intelectuais reunidos na ABE reafirmaram o bordão,


presente no cenário intelectual brasileiro desde o século
XIX, da missão das elites cultas na formação da consciência
nacional. Essa consciência cívica teria na escola primária o
seu lugar privilegiado de formação, disseminando condutas
e sentimentos associados às ideias de laboriosidade, ordem,
higiene e civismo (VIEIRA, 2017, p. 25).

6 Sobre as Conferências Nacionais de Educação, ver o artigo de VIEIRA (2017), com indicações
de outros estudos de historiadores que também investigam o tema: VIEIRA, C. E. Conferências
Nacionais de Educação: intelectuais, Estado e discurso educacional (1927-1967). Educar em
Revista, Curitiba, n. 65, p. 19-34, jul./set. 2017.

233
Assim, a rede de sociabilidades constituída por Afrânio Peixoto
com os participantes da ABE – resultando no convívio com os militantes
defensores da escola pública, em consonância com o seu coerente po-
sicionamento em defesa do Movimento Escolanovista e do movimento
sanitarista – explica, ainda que parcialmente, a assinatura de Afrânio
Peixoto como signatário do Manifesto de 1932. A militância política, não
apenas como deputado federal, mas principalmente como intelectual em
defesa da escola pública, vendo nesta todas as possibilidades de formação
humana integral capaz de contribuir, sobremaneira, com a saúde pública,
justifica a participação de Afrânio Peixoto no Movimento Escolanovista no
Brasil e a sua assinatura no Manifesto de 1932.
Sua publicação na área de educação, embora significativa, foi
numericamente menor que as publicadas em outras áreas, como a de
medicina e literatura. As publicações mais especificamente destinadas ao
campo da educação foram: Noções de História da Educação (1933) e duas
coletâneas nas quais reúnem vários de seus textos, como: Ensinar a ensinar
– ensaios de pedagogia prática aplicada à educação nacional (1923), desti-
nadas à formação de professoras primárias e Marta e Maria – documentos
de ação pública (1931), com textos que abordam questões relacionadas à
saúde pública e à educação primária. “Parte desta obra resulta de trabalhos
realizados no Congresso, enquanto esteve deputado federal, à qual deu,
com o sabor literário, o título de Marta e Maria, dizia ele para não interessar
os políticos” (VENÂNCIO FILHO, 2007, p. 25). Nestes seus escritos, Afrânio
Peixoto reafirmou o ideário de renovação da escola e de responsabilidade
desta instituição com a formação humana integral.
Em estudo analítico de uma das principais obras de Afrânio Peixoto,
Noções de História da Educação (1933), Gondra sintetiza:

Na ótica do médico baiano, do erudito homem de letras e da


política, a reforma da sociedade exigia a reforma das escolas,
que se deveria iniciar mais cedo, ser mais científica e durar
mais tempo. Interferindo na ponta extrema do passado, so-
nhava e queria fazer os futuros professores sonharem com
uma ordem educada, a ser obtida com o auxílio de uma escola
renovada. A “recordação para professoras”, como imaginara

234
em seu curso e seu livro, também pode ser compreendida
como uma espécie de propaganda das reformas que emba-
lara e animara uma geração de homens e mulheres. Projeto
esse forjado na luta por uma sociedade mais educada, mais
disciplinada (GONDRA, 2011, p. 30).

Pelos dados apreendidos de sua trajetória de vida, é possível


afirmar que a participação de Afrânio Peixoto como médico atuante no mo-
vimento sanitarista o levou, coerentemente, à participação no movimento
educacional escolanovista. Ao governo, Afrânio Peixoto sugeria ações que
promoveriam a melhoria das condições de vida e saúde da população,
propondo medidas que pudessem controlar as epidemias por meio de
ações sanitaristas preventivas. Às escolas, sugeria renovação das ações
pedagógicas de modo a promover a instrução que, entre outros ganhos
educativos, proporcionariam mudanças de hábitos e costumes de higiene
da população.
Ao pronunciar uma conferência na Academia Brasileira de Letras,
em homenagem ao imortal Afrânio Peixoto, o conferencista Alberto Ve-
nâncio Fulho citou uma referência feita por Francisco Venâncio Filho, sobre
a atuação de Afrânio Peixoto:

Na multiplicidade dos aspectos que apresenta a personali-


dade de Afrânio Peixoto, o que domina é o de educador. No
homem de letras como no de ciências, no higienista como no
médico legista como no parlamentar, no ensaísta como no
professor, no homem de sociedade como no amigo, Afrânio
Peixoto é antes de tudo o educador. Educou-se para educar,
e ninguém no seu tempo o excedeu nesse nobre mister. Aos
trabalhos sobre a educação que escreveu, cite-se o primoro-
so ensaio Ensinar a Ensinar, e uma história do nosso país que
é Minha Terra e Minha Gente (VENÂNCIO FILHO, 2007, p. 23).

De fato, Afrânio Peixoto se dedicou à carreira do magistério ainda


quando era aluno do curso de Medicina, na Bahia, tendo sido assistente
de três importantes professores durante o curso. Logo que se formou
médico, transferiu-se para o Rio de Janeiro já com o propósito de se tornar
professor na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

235
Essa dedicação ao magistério, contudo, sempre esteve atrelada à
área médica, vínculo evidenciado pelas disciplinas que lecionava. Mas, a
partir dos anos de 1915, assumiu diferentes funções docentes na área de
educação, tanto como professor em cursos de formação de professores
como em cargos dirigentes da administração pública da educação. A partir
disso, sua atuação foi expressiva no campo educacional.
O educador de sempre, agora se expressava enquanto intelectual
reconhecido na área de educação e suas ideias circulavam nesta área,
difundindo o ideário político higienista e pedagógico escolanovista, este
último sintetizado no documento Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
de 1932.

O literato

Entre 1926 e 1927, Afrânio Peixoto dirigiu a Revista do Brasil,


lançada por Julio de Mesquita, em 1916. Publicou artigos em vários jornais,
como era costume dos intelectuais de seu tempo, já que a mídia impres-
sa era o veículo de comunicação disponível mais utilizado. Seu discurso
circulava nos jornais da época, seja com publicações de artigos autorais
ou porque outros intelectuais comentavam sobre seus escritos: Caderno
da Manhã; O Mundo Literário; O Globo; Jornal das Letras; Revista do Brasil; A
Tarde; A Manhã; Jornal do Comércio; Diário de Notícias; O Jornal; Revista Médica
da Bahia; Correio da Manhã (BIBLIOTECA NACIONAL, 1976).

Além de sua atividade clínica e política, Afrânio Peixoto con-


sagrou-se como renomado literato e ensaísta. Sua primeira
obra, Rosa Mística, permeada pelo simbolismo, não obstante
ter sido renegada pelo autor, rendeu-lhe as honras que o
levaram à ABL. Outras publicações aclamadas são a trilogia
regionalista: Maria Bonita (1914), Fruta do Mato (1920) e
Bugrinha (1922) e os romances urbanos: As razões do coração
(1925), Uma mulher como as outras (1928), Sinhazinha (1929)
e A Esfinge (1911) (VILELA, 2014, s.p.).

Afrânio também foi membro do Instituto Histórico e Geográfico


Brasileiro, bem como da Academia das Ciências de Lisboa; da Academia

236
Nacional de Medicina Legal; do Instituto de Medicina de Madri; e da Acade-
mia Brasileira de letras.
Segundo Coutinho:

Foi o escritor mais popular de então, ocorrendo com todos


os seus romances o mesmo êxito de público. Como se pode
ver no livro de Leonídio Ribeiro, a primeira edição de A Esfinge
foi de 1.000 exemplares, enquanto a de Fruta do Mato subiu
a 3.000, a de Bugrinha a 5.000, a de Sinhàzinha a 10.000, e
a de Uma mulher como as outras a 11.000, todos esses (sic)
três e mais edições sucessivas. Ao todo, com a obra literária
e científica, foi, como afirmou Leonídio Ribeiro, o escritor, em
seu tempo, mais lido da língua portuguêsa (sic), suas obras
tendo atingido cerca (sic) de 600 mil exemplares (COUTINHO,
1962, p. 31).

Como membro da ABL, obteve do embaixador da França, Alexan-


dre Conty, a doação pelo governo francês do palácio Petit Trianon (1923),
construído para a Exposição da França no Centenário da Independência
do Brasil:

Em 1923, ao presidir a Casa de Machado de Assis, apro-


ximou-se da embaixada francesa, com a qual negociou a
réplica do Petit Trianon, construída para a Exposição da
França no Centenário da Independência do Brasil. Através
desta bem-sucedida aliança, em 1935, Afrânio Peixoto, na
função de primeiro reitor da Universidade do Distrito Federal,
contou com missões francesas para auxiliar na estruturação
dos cursos da recém criada instituição de ensino. De breve
duração, a UDF, em detrimento de um padrão de ensino
altamente profissionalizante, melhor representava o projeto
inovador de formação de um centro intelectual. No entanto,
acabou por sucumbir às disputas ideológicas do período e
aos ataques dos grupos de articulação católico e integralista,
tendo seu fechar de portas datado de logo após a revolta
comunista de novembro de 1935, com seus fundadores
acusados de envolvimento e demitidos. Dentre estes, figura-
vam Afrânio Peixoto e Anísio Teixeira, idealizador do projeto
e Diretor do Departamento de Educação do Distrito Federal
(VILELA, 2014, s.p.).

237
Durante sua trajetória de vida, ocupou-se intensamente com a
produção bibliográfica, tendo publicado mais de 350 títulos de sua autoria,
computando, livros, artigos, traduções, prefácios e obras literárias.
Também, na aérea de Literatura desencadeou debate polêmico,
quando definiu a “Literatura como sorriso da sociedade”.

A Literatura é como o sorriso da sociedade. Quanto ela


é feliz, a sociedade, o espírito se lhe compraz nas artes e,
na Arte literária, com ficção e poesia, as mais graciosas
expressões da imaginação. Se há apreensão ou sofrimento,
o espírito se concentra, grave, preocupado, e, então, história,
ensaios morais e científicos, sociológicos e políticos são-lhe
a preferência imposta, pela utilidade imediata. A literatura de
um povo não denuncia apenas sua sensibilidade e sua inte-
ligência, senão suas condições de vida, feliz ou apreensiva,
ou sofredora, sofrimento moral, político, econômico. Seria
absurdo que a flor, na ponta do galho, não dependesse de
raiz obscura, no seio profundo da terra [...] (PEIXOTO, 1940,
p. 24 apud VENÂNCIO FILHO, 2007, p. 28).

Este pronunciamento desencadeou um debate acirrado entre os


literatos de sua época, alguns refutando com veemência tal afirmativa,
rememorando os clássicos da literatura que trazem em suas obras o re-
gistro angustiado dos períodos de guerras, crises sociais e revolta contra
regimes absolutistas. Mas, Afrânio Peixoto reafirma: “Não tenho motivos
para modificar minha definição de Literatura – retruca sem pestanejar”
(PEIXOTO, 1940, p. 25 apud VENÂNCIO FILHO, 2007, p. 29).
Aparentemente, essa polêmica se distancia do foco que orientou
a escrita deste capítulo, mas há um registro de João Cabral de Melo Neto
em uma carta a Carlos Drummond de Andrade, de 26 de julho de 1944,
aderindo ao conceito de Afrânio Peixoto, que esclarece:

Eu tenho a impressão que a solução mais geralmente indi-


cada seria a compreensão da Literatura como “sorriso da
sociedade”. Digo isso a você porque, estou certo, você não vai
entendê-la como se eu achasse que a Literatura deva ser o
agradável divertimento das chamadas camadas superiores
da sociedade. Eu a uso no outro sentido, o de necessaria-

238
mente a Literatura ser um veículo de alegria, saúde, não
morbidez. Creio que a função mais importante da Literatura
não é refletir a miséria que a gente está vendo e sim dar co-
ragem a esses que se estão vendo na miséria (MELO NETO,
1944, p. 2 apud VENÂNCIO FILHO, 2007, p. 32).

Essas palavras de João Cabral de Melo Neto enlaçam as posições


políticas de Afrânio Peixoto que, alinhando literatura, educação e ciência,
deixou evidente em seus escritos a preocupação com a renovação, mudan-
ça e construção de uma sociedade saudável e civilizada.
Após 40 anos de serviços prestados ao Brasil como funcionário
público, aposentou-se em 1941, deixando assim definida sua trajetória de
vida: “Estudou e escreveu. Nada mais lhe aconteceu”.
Faleceu em 12 de janeiro de 1947, no Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS

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nascimento de Afrânio Peixoto: 1876-1947. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1976.
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nível em: http://expagcrj.rio.rj.gov.br/afranio-peixoto-julio/. Acesso em: 8 mar. 2020.

241
CAPÍTULO XVIII

JULIO DE MESQUITA FILHO

Aldimar Jacinto Duarte1


Cláudia Valente Cavalcante2
Vinícius Oliveira Seabra Guimarães3

Este capítulo tem por objetivo analisar a participação política e


profissional do jornalista Julio de Mesquita Filho4 e suas contribuições para
a construção de um pensamento político, social e educacional na cidade
de São Paulo, por meio do jornal O Estado de S. Paulo. Também, busca-se
compreender as práticas (complexas e contraditórias) desse jornalista no
campo político e social, que o levaram a assinar o Manifesto dos Pioneiros
da Educação Nova, de 1932.
Julio de Mesquita Filho nasceu na cidade de São Paulo, no ano de
1892, e faleceu em 1969, aos 77 anos de idade. Seu primeiro livro autoral

1 Doutor em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/8154824077202046. E-mail: aldimarjd@


hotmal.com.
2 Doutora em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/2596699122693694. E-mail: cavalcante70@
yahoo.com.br.
3 Doutor em Educação.
4 Faz-se uma observação acerca da grafia do nome “Julio” sem acento, preservando a forma
como a imprensa, mais especificamente o jornal O Estado de S. Paulo, utilizou durante os anos
em que Julio de Mesquita Filho esteve à frente do tabloide (de 1927 a 1969). De semelhante
maneira, com relação à nomenclatura do jornal que, utilizando-se a abreviação “S. Paulo”, será
preservada por ser esta a forma usual na referida época.

242
foi publicado em 1925 com o título: A crise nacional, visto que a questão
da democracia, da política e da educação no Brasil já era discutida. No ano
de 1927, assumiu a direção do jornal O Estado de S. Paulo, sendo este de
grande circulação na capital paulista desde o ano de 1875 e, posteriormente,
com a junção de outras mídias, ficou conhecido como Estadão.
No dia 19 de março de 1932, o jornalista assinou e publicou o
Manifesto dos Pioneiros pela Educação Nova no jornal O Estado de S. Paulo,
juntamente com outros 26 signatários, que defendiam uma educação pú-
blica, laica e gratuita, entre outras premissas de grande importância para o
processo de reconstrução da educação brasileira com a intenção de inserir
a Educação Nacional no plano político e social e de retirar o seu caráter
meramente administrativo. Tal movimento se insere em uma conjuntura
de Revolução Burguesa que, embora estivesse sendo construída desde o
movimento pela independência do Brasil, em 1822, passando pela aboli-
ção da escravatura, em 1888, e pela Proclamação da República, em 1889,
tem seu marco histórico na Revolução de 1930. Essa combinação histórica,
aliada ao poder do jornal O Estado de S. Paulo, coloca Julio de Mesquita Filho
no palco da história brasileira. Uma das suas grandes contribuições foi
usar o jornalismo como um elemento de mobilização da opinião pública e
de construção de um novo nexo psicossocial e sociocultural, inserindo-se
assim, de forma efetiva, no processo de modernização, a partir dos funda-
mentos e limites da Revolução Burguesa no Brasil.
O engajamento político e social de Mesquita Filho e do próprio
jornal O Estado de S. Paulo demonstra a intencionalidade da imprensa
no Brasil, desde a República, em se constituir como instância educativa,
socializadora e mediadora da própria realidade histórico-social do Brasil.
Entretanto, o mesmo meio de comunicação serviu historicamente como
plataforma de interesses pessoais e políticos, reafirmando as hegemonias
de poder e as disputas de classes de seu tempo.

Jornalismo, sociedade e política no Brasil

O jornal impresso surge no Brasil no início do século XVIII, sendo


uma das consequências da mudança da família real para o Brasil, em 1808.

243
Desde os seus primeiros impressos, o jornal teve como função midiática
a difusão de assuntos referentes à política e à sociedade brasileira (LIMA,
2008), o que não foi diferente no caso do jornal denominado “O Estado de
S. Paulo”, criado em 1875. Foi por esse meio comunicação, ou seja, pela im-
prensa escrita, que Julio de Mesquita Filho a utilizou como ferramenta para
intervenção política, social e educativa, assim como meio de propagação
de seus interesses pessoais, especialmente nos anos de 1916 a 1932.
A primeira transmissão radiofônica oficial no Brasil ocorreu na
capital da República, na época, Rio de Janeiro, em 7 de setembro de 1922.
A data não foi escolhida aleatoriamente de forma desinteressada, pois,
na ocasião, comemorava-se o centenário da Independência do Brasil,
demonstrando que o rádio seria o mais novo meio de intervenção e dis-
seminação da política, das questões socioculturais e das discussões em
torno das futuras práticas educativas.
Se, por um lado, o rádio, desde sua origem, apresentava-se no
cenário nacional como uma mídia de caráter mais popular, tendo em vista
sua base na linguagem oral; por outro lado, o jornal impresso ocupava cen-
tralidade junto aos setores médios e altos da sociedade, pois trabalhava
com a linguagem escrita em uma sociedade marcada pelo analfabetismo5,
produzindo informações, mediando discussões coletivas a partir dos inte-
resses da classe dominante paulista6.
No ano de assinatura do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
em 1932, o jornal impresso ocupava primazia como fonte de informação
das classes médias e altas da sociedade brasileira. Possivelmente, nessa
época, as próprias informações veiculadas pelo rádio se valiam dos im-
pressos jornalísticos como fonte para as transmissões radiofônicas.
O jornalismo ocupou grande importância no processo de forma-
ção da opinião pública e na socialização das discussões acerca da política,
da sociedade, da cultura e da educação no Brasil, no início do século XX.
Nessa época, a imprensa escrita foi estabelecida como uma das princi-
pais fontes informacionais dos programas de rádio. Foi nesse cenário

5 De acordo com Lima (2008), o censo escolar de 1940 apontava ainda uma taxa de 56,17% de
analfabetismo da população brasileira com idade superior a 15 anos.
6 A televisão só chegou ao Brasil em 1950.

244
de efervescências e sinergia midiáticas, com tons políticos, que Julio de
Mesquita Filho se inseriu e desenvolveu sua participação no jornalismo
e na política, compreendendo o caráter educativo da imprensa, no pro-
cesso de disputa política e social, e a importância da educação escolar no
processo de construção da democracia no Brasil.
O jornal O Estado de S. Paulo foi fundado em 4 de janeiro de 1875 e
é considerado o jornal mais antigo em circulação no estado de São Paulo.
Dentre as 16 pessoas que fundaram o jornal, destaca-se os nomes de
Manoel Ferraz de Campos Salles (1841-1913) e Américo Brasiliense de
Almeida Melo (1833-1896), que utilizaram a impressa com propósitos po-
lítico-sociais para, supostamente, combater a monarquia e fazer oposição
à escravidão vigente no Brasil na referida época.
A história do jornal O Estado de S. Paulo se funde com a própria his-
tória de São Paulo, pois ambos se desenvolveram de forma relacional, com
fortes embates políticos, mas, igualmente, cresceram juntos, influenciando
e sendo influenciados pela imprensa escrita, que tinha desde os primórdios
a intenção de intervir na política, na sociedade e na cultura. Ao longo dos
anos, o jornal se tornou um espaço de expressão de importantes escritores
como: Aluísio de Azevedo (1857-1913), Euclides da Cunha (1866-1909),
Monteiro Lobato (1882-1948), Olavo Bilac (1865-1918), entre outros.
No contexto de movimentação política, na década de 1930, O Estado
de S. Paulo e, em especial, Julio de Mesquita Filho desenvolveram um im-
portante papel nas disputas do período. Severiano (2012) argumenta que o
discurso liberal destes era apenas uma dissimulada fachada. Na perspecti-
va desse autor, a direção do Estadão chegou até a conspirar e se considerou
a possibilidade de aderir à luta armada, em 1932, por ter, supostamente,
suas aspirações ao poder ameaçadas. Aliás, ainda segundo esse autor, o
referido jornal sempre esteve em disputa de espaço essencialmente po-
lítico. Lima (2008), em sua tese de doutorado, defende claramente que O
Estado de S. Paulo atuou de forma efetiva tanto no processo de tomada de
poder de Getúlio Vargas, em 1930, como na Revolução Constitucionalista
de 1932. De acordo com essa autora, a contraposição a Vargas, a partir de
1932, por Julio de Mesquita, ganhou tamanha evidência que o jornalista,

245
ao lado dos principais líderes do movimento, foi mandado para exílio em
Portugal, após a vitória do Governo contra o movimento paulista7.

A família Mesquita e sua prática política: entre o liberalismo e o


conservadorismo político

Julio César de Ferreira Mesquita (1862-1927), pai de Julio de


Mesquita Filho, assume O Estado de S. Paulo, em 1885, porém, somente
em 1902, torna-se o único dono do jornal. Julio César de Ferreira Mes-
quita teve uma fluente carreira política: foi vereador na Câmara Municipal
de Campinas, no estado de São Paulo (1887), fez parte da Comissão de
Justiça, foi nomeado secretário-geral do novo Governo Provisório de São
Paulo (1889), foi eleito para o Congresso Constituinte Paulista (1891) e foi
deputado federal (1892, 1894, 1898, 1901, 1907, 1910, 1913).
Em 1909, tornou-se um dos articuladores da candidatura de Rui
Barbosa à presidência da República, valendo-se da imprensa como ferra-
menta política, de forma que se opunha à candidatura do militar Marechal
Hermes da Fonseca. A partir disso, iniciou-se o que ficou conhecido como
a “Campanha Civilista”, que teve explícito apoio, disseminação e divulgação
no jornal O Estado de S. Paulo (SANTOS, 2018).
Pode-se destacar também a proximidade que O Estado de S. Paulo
teve com a Liga Nacionalista de São Paulo – LNSP, especialmente nos anos
de 1917 a 1924. A Liga se estabeleceu sob três bandeiras: a escola, a refor-
ma do voto e o serviço militar. À frente da LNSP, estava Olavo Bilac, poeta,
jornalista, republicano e nacionalista, que fez inúmeras viagens pelo Brasil
em campanhas em prol da alfabetização e do serviço militar obrigatório.
O Brasil, no início do século XX, estava passando por um processo
de expansão econômico impulsionado, majoritariamente, pela exportação
do café no litoral do estado de São Paulo. A economia cafeeira, apesar
de ter chegado ao Brasil no início do século XVIII, só se constituiu em um
importante componente econômico, político e territorial no início do século

7 Para essa autora, Julio de Mesquita foi ainda, um dos defensores da implementação da
Ditatura Militar no Brasil, em 1964, passando a se contrapor a tal regime só a partir do Ato
Institucional 2.

246
XX, tornando-se o motor da modernização, internacionalização e indus-
trialização de São Paulo.
Paralelamente à expansão cafeeira em São Paulo, em Minas Gerais,
a produção de leite também estava em franco crescimento, modernização,
politização e expansão territorial, o que culminou na chamada “Política
do café com leite”, em referência à predominância de uma oligarquia do
poder econômico e político exercido por Minas Gerais e São Paulo sobre as
questões políticas, econômicas e sociais no restante do Brasil.
Foi nesse ambiente familiar e político que nasceu e viveu Julio de
Mesquita Filho, o que favoreceu sua integração intensa na disputa política,
no jornalismo e na defesa de temas relacionados à educação escolar, em
especial, à educação superior. Dessa forma, no seu primeiro livro autoral,
publicado em 1925 com o título A crise nacional: reflexões em torno de uma
data, ele propunha discutir acerca da democracia, da política e da educação
no Brasil, entre outros temas polêmicos. Pouco tempo depois, em 1927,
ele assumiu a direção do jornal, sendo este um jornal de grande circulação na
capital paulista, que, posteriormente, a partir da junção com outras mídias,
ficou conhecido como Estadão.
O jornal O Estado de S. Paulo vivenciou, em sua trajetória, momen-
tos de grande tensão, pois, em várias circunstâncias, a família Mesquita
se posicionou politicamente de forma explícita, como foi o caso da greve
operária de 1917, como mediador nas negociações entre o governo e
os operários. Além disso, a família participou, de forma intensa, do pro-
cesso de tomada do poder por Getúlio Vargas, em 1930 e, em momento
posterior, rompeu com o Governo, passando a fazer parte da Revolução
Constitucionalista de 1932, em campanhas eleitorais subsequentes, como
a Campanha à Presidência da República do Brigadeiro Eduardo Gomes, e,
na defesa à tomada do poder pelos militares em 1964.
A trajetória da família Mesquita foi marcada pelo poder da escrita
e por vivenciar contrassensos por deter nas mãos um poderoso meio de
comunicação que, se por um lado pretendia cumprir o papel de construção
da República, a partir dos pressupostos liberais e positivistas, por outro
lado, aliava-se a interesses políticos tradicionais presentes no início do

247
século XX. Obviamente, que, desde a sua fundação, sua história foi mar-
cada por contradições em distintos momentos históricos e por alianças
consideradas necessárias, pelos proprietários do O Estado de S. Paulo, para
a construção da hegemonia liberal e manutenção da hegemonia paulista,
em especial, de sua família.
Julio de Mesquisa Filho, oriundo de uma classe dominante de uma
oligarquia rural paulista, esteve imerso em uma complexa contradição que
se constituiu desde o processo da independência do Brasil, em que, por meio
do pensamento liberal, mesmo que parcialmente transplantado para o país,
converteu a dominação senhoral em dominação estamental e, em seguinda,
a partir da década de 1920, em dominação de classe. Aliado a esse fator, o
liberalismo brasileiro, longe de defender a cidadania como um valor e prática
irrestrita a todos, converteu-se na garantia de privilégios sociais.
Nesse sentido, o pensamento liberal no Brasil não conseguiu “reali-
zar o milagre de mudar a natureza social das elites senhoriais ou de colocar
em outro contexto histórico a formação e evolução de nossas instituiçoes
políticas” (FERNANDES, 2005, p. 63). O patriarcalismo e o patrimonialismo
continuaram a se constituir como valores e práticas principais de tais elites,
mesmo que em seu discurso defendessem aspectos relacionados à demo-
cracia e à cidadania. Nesse contexto, ainda que o grande mote dos liberais
no período citado fosse a democracia, na verdade, não se esperava ou não
se pretendia que ela fosse uma condição universal da sociedade brasileira,
mas, como um dos recursos utilizados por tais elites para o equilíbrio, a
eficácia e a continuidade da dominação de classe.
Em outras palavras, a democracia e a cidadania, para esses setores
no Brasil, não comportavam os princípios filosóficos do liberalismo em sua
radicalidade, salvando-se assim as raras exceções. Também, buscava-se
um processo de modernização do Brasil sem, no entanto, negação efetiva
do passado, sem perdas de privilégios ou de poder dos estamentos, e, pos-
teriormente, das classes que já estavam historicamente no poder político e
cultural no país. A tomada do Estado, por parte desses setores, foi uma das
principais estratégias de manutenção desse poder.

248
Aliado a isso, há que se destacar o papel desempenhado pelos
meios de comunicação (rádio e imprensa) na difusão e legitimação desse
novo mundo urbano e industrial, cuja ideologia devesse ser concebida como
progresso por todos. Esse papel também passou a ser desenpenhado pela
educação escolar, da qual se esperava contribuição para a construção das
novas utopias e novas ideologias modernizadoras.
Na visão de Lima (2008), o fato de, por décadas, a família Mesquita,
em especial na pessoa de Julio de Mesquita Filho, deter, exclusivamente,
o poder sobre O Estado de S. Paulo, o fez utilizar o jornal como um “veículo
para representar a realidade do poder político ao qual ele pertencia” (p.
49). Ou seja, os interesses individuais ou os interesses de classe estavam
acima dos princípios liberais de construção da democracia.

Portanto, não se configura historicamente, dessa perspecti-


va, a existência de uma “burguesia” plenamente integrada e
consciente do seu destino histórico, como pudesse afirmar-
-se como portadora de uma consciência especificamente
revolucionária. A realidade mostra-se o inverso disso, pois
no plano no qual a ação daqueles estratos sociais era inco-
ercivelmente inovadora eles pretendiam uma evolução com
a aristocracia e não contra ela (FERNANDES, 2005, p. 239).

Embora Julio de Mesquita Filho não tenha se filiado a partido polí-


tico algum, isso não o fez menos ativo politicamente por ocasião de todo o
contexto histórico que o abalizou. Nesse sentido, para Lima (2008), o sig-
natário transformou seu engajamento político em uma prática jornalística
e vice-versa.

Julio Mesquita e o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova

O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932) não deve ser


entendido como um documento isolado do conjunto das disputas políti-
cas, sociais, econômicas e culturais que se desenvolveu, especialmente,
a partir do processo de independência do Brasil; ele parte da luta política
impetrada no país, principalmente, por meio de intelectuais engajados que

249
queriam contribuir para o processo de modernização do Brasil. De acordo
com Saviani:

O “Manifesto” apresenta-se, pois, como um instrumento


político, como é próprio, aliás, desse “gênero literário”. Ex-
pressa a posição do grupo de educadores que se aglutinou
na década de 1920 e que vislumbrou na Revolução de 1930 a
oportunidade de vir a exercer o controle da educação no país
(SAVIANI, 1007, p. 253).

O Manifesto não se constituiu de forma aleatória ou intempestiva.


Na verdade, ele deu segmento às disputas políticas no campo da Educação
que vinham se desenrolando desde a década de 1920 com as reformas
educacionais em diversos estados da federação8, até culminar na IV Con-
ferência Nacional de Educação, realizada entre 13 e 20 de dezembro de
1931, a qual contou com a presença do presidente da República Getúlio
Vargas e do Ministro da Educação e Saúde Pública, Francisco Campos.
Sobre o evento, “Na abertura, Getúlio Vargas exortou os educadores ins-
critos nessa IV Conferência a definir as bases da política educacional que
deveria guiar as ações do governo em todo o país” (SAVIANI, 2007, p. 230).
Entretanto, se por um lado alguns dos segmentos da Associação Brasileira
de Educação – ABE, representados em particular por Fernando Magalhães,
pretendesse formular um documento final da Conferência, alinhado às
perspectivas do governo federal, por outro, a partir de uma intervenção de
ordem, o jornalista Nóbrega da Cunha propôs o adiamento da tomada de
decisão pela ABE a respeito da educação em sua totalidade, argumentando
que a Conferência não teria sido convocada para tal finalidade. Fernando
Magalhães concordou com a questão de ordem levantada por Nóbrega
da Cunha quanto a não se discutir os temas gerais da educação naquele
ambiente, incumbindo-o de preparar aquele tema para ser encaminhado
na próxima conferência, a qual aconteceu no ano seguinte.

8 1920 – Sampaio Dória, São Paulo; 1922-1923 – Lourenço Filho, Ceará; 1924 – Anísio Teixeira,
Bahia; 1925-1928 – José Augusto Bezerra de Menezes, Rio Grande do Norte; 1927-1928 –
Lisímaco Costa, Paraná; 1927-1928 – Francisco Campos, Minas Gerais; 1927-1930 – Fernando
de Azevedo, Brasília.

250
Nóbrega da Cunha aceita a função de redigir o documento para a V
Conferência, mas assume tal tarefa em nome de um coletivo o qual passa
a designar Fernando de Azevedo como o redator de um Manifesto que
consubstanciasse o sentido fundamental da educação brasileira.
Fernando de Azevedo aceitou a incumbência e redigiu o Manifesto
dos Pioneiro da Educação Nova: “Tomou-se então, o cuidado de escolher a
dedo os convidados para subscrever o texto, levando em conta a posição
de liderança e também a capacidade de difusão ligada ao exercício pro-
fissional em órgãos de imprensa” (SAVIANI, 2007, p. 234). Assim, embora
seu redator tenha sido Fernando de Azevedo, é mister destacar que o
documento expressava uma heterogeneidade de pensamento acerca dos
fundamentos e dos objetivos da educação no Brasil.
Destaca-se ainda que, entre os 26 signatários do Manifesto, Julio
de Mesquita não era o único profissional vinculado aos meios de comu-
nicação, contava-se também com outros nove intelectuais que atuavam
exclusiva ou parcialmente em rádios ou jornais, entre eles: Edgar Ro-
quette-Pinto – fundador da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 1923,
e diretor da Rádio Municipal do Distrito Federal, em 1932; José Getúlio da
Frota Pessôa – em 1932, exerceu atividade jornalística no Rio de Janeiro
e foi subdiretor da Instrução Pública no Distrito Federal; Mário Casasan-
ta – em 1932, foi diretor da Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, e,
em 1931, inspetor geral de Instrução Pública em Minas Gerais e reitor da
Universidade de Minas Gerais; Hermes Lima – em 1932, foi jornalista em
São Paulo e professor na Faculdade de Direito de São Paulo; Cecília Bene-
vides de Carvalho Meireles – além de poeta, dirigiu, em 1932, a página
de educação do Diário de Notícias do Rio de Janeiro; Sezefredo Garcia de
Rezende – em 1932, atuou em atividades jornalísticas em diversos diários;
Carlos Alberto Nóbrega – atuou como redator dos jornais A Noite e O Jornal,
e, no ano de 1930, fundou o jornal Diário de Notícias e se tornou membro
da Associação Brasileira de Imprensa; e, em 1932 e 1933, foi diretor de
Instrução Pública do estado do Rio de Janeiro; Raul Rodrigues Gomes – foi
jornalista e professor de níveis médio e universitário (SAVIANI, 2007).

251
Isso demonstra que a escolha feita “a dedo” por Fernando de Aze-
vedo para assinar o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova fez parte de
uma inteligente estratégia desse educador para difundir o Manifesto ao
maior número de pessoas e, como bom Durkheimiano, para que o ato se
constituísse em um verdadeiro Fato Social.
No dia 19 de março de 1932, Julio de Mesquita Filho, assinou e
publicou no jornal O Estado de S. Paulo o Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova: a reconstrução educacional no Brasil – ao povo e ao governo, defen-
dendo, juntamente com outros 26 educadores uma educação pública,
laica e gratuita, ocupando, dessa forma, lugar central na disseminação dos
pressupostos escolanovistas no Brasil.
Julio de Mesquita Filho não foi um educador no sentido estrito do
termo. Nunca teve uma classe de alunos em uma escola ou universidade.
Entretanto, sua prática educativa era desempenhada por meio da imprensa,
reafirmando o jornalismo como instância socializadora e educativa, ainda
que marcada por inúmeras contradições. Na visão de Pontes (2010, p. 19),
“sem este mobilizador da opinião pública, a história da educação brasileira
teria sido outra, certamente”. Exageros à parte, há que se reconhecer a
importância desse profissional, como os demais profissionais da educação
e da comunicação, na difusão do Manifesto.
Fica claro que as razões que levaram Julio de Mesquita Filho a ser
um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros pela Educação Nova foi o fato
de ele deter o poder de uma das maiores mídias da época, o jornal O Estado
de S. Paulo, o que daria grande visibilidade para a luta dos educadores.
Contudo, não é coerente creditar sua participação apenas a esse fato, pois
o jornalista já vinha promovendo discussões sobre política, democracia e
educação, o que poderia ter contribuído para tê-lo colocado em rota de
proximidade junto aos outros signatários.
Pouco tempo depois de assinar o Manifesto dos Pioneiros pela Edu-
cação Nova, Julio de Mesquita Filho, encontra-se novamente com o educa-
dor Fernando de Azevedo para trabalharem para a criação da Universidade
de São Paulo – USP, que foi efetivamente fundada em 25 de janeiro de
1934. A fundação da USP se deu em razão das preocupações de um grupo
de intelectuais da elite paulista com a formação de professores de nível

252
secundário e superior, e com a necessidade de formação de uma faculdade
de filosofia, ciências e letras que não fosse utilitarista, mas que estivesse
voltada essencialmente para a pesquisa e a especulação teórica (FAUSTO,
2003). Para Fernando de Azevedo, a função social da universidade estaria
em formar as elites intelectuais, as classes dirigentes do país. Para esse
pensador, as elites seriam as verdadeiras forças criadoras da civilização.
A universidade de Fernando de Azevedo deveria formar uma elite
nova, a partir de um processo sistemático, pois o espontâneo já não estaria
funcionando, pretendendo, entretanto, obter semelhantes efeitos em ter-
mos de “equilíbrio moral” e “disciplina social” (CUNHA, 1980, p. 262).
Os ideais políticos de Julio de Mesquita Filho vão ao encontro da
concepção de Azevedo, pois, de acordo com Santos (2018), o jornalista
tinha duas percepções sobre educação: uma destinada às camadas pobres
com cursos técnicos e outra para a formação de uma elite intelectualizada.
A despeito de todo o esforço dos intelectuais da cultura, nos seus
diversos campos de atuação, para a construção de uma nova sociedade,
fundamentada em princípios de democracia liberal, cujos propósitos se
alicerçaram nos anseios de colocarem a educação a serviço da renovação
do homem, de sua mentalidade e capacidade de ação, o que se percebe,
no decorrer dos anos, em especial até meados da década de 1980, com
o fim da Ditadura Militar no Brasil, é o fracasso no intento de construir
uma sociedade democrática tendo a educação como seu motor principal,
levando em conta que “o suporte material e moral , fornecido pela socie-
dade, é insuficiente para dar à escola um padrão próprio de crescimento
integrado, o que a impede de atingir de modo completo esses fins e alvos
ideais” (FERNANDES, 1966, p. 79). Para o autor, esse seria o principal mo-
tivo de as utopias escolanovistas não terem conseguido atingir total êxito
em seus ideais, em função dos elementos conservantistas e arcaizantes
que permeavam o pensamento social brasileiro. E o pior de tudo, de acordo
com Fernandes (1966, p. 80), é que a:

[...] existência dessas fôrças (sic) renovadoras engendrou


a ilusão de que estaria ocorrendo uma modernização
relativamente extensa e intensa das instituções escolares
brasileiras. Quando, na verdade, as inovaçoes pedagógicas
apenas afetavam o pensamento formulado de um pugilo de
pioneiros.

253
Considerações finais

Julio de Mesquita Filho foi um intelectual orgânico de sua própria


classe, que fazia de sua profissão e do meio de comunicação, o jornal O
Estado de S. Paulo – propriedade de sua família –, instrumentos de luta de
(re)construção da hegemonia, de reclassificação social de sua família e de
seu estrato de classe social em uma sociedade em mudança. Mas há que
se considerar que, se por um lado a Revolução Burguesa no Brasil teve um
caráter limitado ao beneficiar as tradicionais elites dominantes em um pro-
cesso de reclassificação política, social, econômica e cultural, reiventando
as formas de manutenção de seu prestígio; por outro lado, destaca-se a
importância da utopia liberal que se constituiu no Brasil, desde as lutas
pela Independência e pela Proclamação da República neste país.
Seguindo a perspectiva analítica de Florestan Fernandes (2005),
podemos compreender que – apesar de suas contradiçoes e limitações –
tal filosofia proporcionou dar forma e conteúdo aos anseios de igualdade
e justiça social; aos princípios republicanos e democráticos e de busca de
extinção do Estado colonial e, por conseguinte, da ordem colonial. Ou seja,
constituiu-se em força conjuntural para a construção do sentido da mo-
dernização brasileira. Entretanto, se no campo jurídico e no ordenamento
do Estado tal pensamento encontrou relativo êxito, nos espaços da vida
social, econômica e política, mantiveram-se as concepções de mundo de
uma sociedade colonial, em que o patriarcalimo, o patrimonialismo e o
conserdadorismo endêmico continuam sendo importantes mediadores em
todo o processo político.
Às instituições da cultura, como a escola, o rádio e a imprensa,
foram atribuidas a função de contribuirem de forma efetiva para a cons-
trução de um novo pensamento sobre o mundo no processo de consti-
tuição da Revolução Burguesa no Brasil. Novos princípios psicossociais e
socioculturais deveriam substituir o que se era considerado como arcaico,
e, para além da dinamização da dimensão ecônimica, fazia-se necessário a
transformação dos campos jurídico, político e cultural, fundamentados por
uma nova mentalidade que tinha como princípio a modernização da socie-
dade brasileira, calcada nos princípios da urbanização e industrialização.

254
No entanto, no plano prático, aqueles grupos sociais que, desde a
colônia, foram destituídos de qualquer forma de poder e particição política
na terra Brasílis, não tiveram as mesmas condições de competição, ou
foram completamente excluídos dessa possibilidade, como foi o caso dos
negros pós-abolição da escravidão e do conjunto de trabalhadores urba-
nos e rurais. Assim, a ideologia de modernização do Brasil se constituía
como fator central para o desenvolvimento do capitalismo comercial e
financeiro, condicionado pelo crescimento constante do mercado interno
e da economia urbana.
Julio de Mesquita Filho ocupou lugar de destaque na história do
Brasil, pois, como sujeito oriundo de uma família da aristocracia paulista
e herdeiro do jornal O Estado de S. Paulo, contribuiu de forma efetiva para
a construção desse novo pensamento social, de uma nova moral urbana,
e participou de forma intensa da vida política nacional, entre os anos de
1930 e 1969, oscilando entre a luta pela democracia liberal e a defesa de
regimes ditatoriais.
Sua trajetória, como buscamos demonstrar, não foi marcada por
uma contradição individual, mas pela estratégia de conquista, reclassifica-
ção e manutenção do poder de sua própria classe social. A prática política e
profissional de Júlio de Mesquisa Filho foi proprocionada pela sua condição
de origem de um estamento superior no Brasil, que, juntamente com os
estamentos sociais intermediários, concentrou-se na defesa obstinada
dos privilégios aos quais sentia ter como direito ou que não queria perder.

REFERÊNCIAS

CUNHA, L. A. A universidade temporã. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1980.


FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
FERNANDES, F. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica.
São Paulo: Editora Globo, 2005.
FERNANDES, F. Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1996.
LIMA, S. H. C. Julio de Mesquita Filho: entre a máquina de escrever e a política. 2008.
Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) – Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2008.

255
PONTES, J. A. V. Julio de Mesquita Filho. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora
Massangana, 2010.
SANTOS, J. F. A. Julio de Mesquita Filho e o projeto de ensino superior paulista: seus
escritos, sua atuação (1920-1938). 2018. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018.
SAVIANI, D. A História das idéias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associa-
dos, 2007.
SEVERIANO, M. Nascidos para perder: história do Estadão, jornal da família que tentou
tomar o poder pelo poder das palavras – e das armas. São Paulo: Insular, 2012.

256
CAPÍTULO XIX

MANOEL BERGSTRÖM
LOURENÇO FILHO

Luciana da Silva Martins1

O propósito deste capítulo consiste em contextualizar Manoel


Bergström Lourenço Filho como intelectual partícipe da organização edu-
cacional que se propôs a participar do Manifesto dos Pioneiros, incluindo
neste propósito uma compreensão da vida cotidiana deste signatário nos
contextos intelectual, institucional e social. Também, busca-se compreen-
der quais foram suas funções e seus motivos de atuação na assinatura
do Manifesto. Para responder essas questões, foi realizada uma pesquisa
bibliográfica de cunho histórico e intelectual, utilizando como fundamen-
tação metodológica o contextualismo linguístico, alicerçado na teoria de
Quentin Skinner, pelas perspectivas de Souza (2008) e Vieira (2017).
Importa-nos assegurar que esta proposta é respaldada em uma
análise que respeita o tempo histórico específico pelo qual o signatário em
questão percorreu, em uma proposta de compreender sua participação
inserida em um contexto de Brasil do início do século XX, adentrado a uma

1 Mestre em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/8569095416031261. E-mail: plucianamartins@


hotmail.com.

257
série de situações que não faz sentido trazer ao presente, mas que é rele-
vante em uma interpretação que assegura este mesmo tempo histórico.
Parafraseando Skinner, Vieira (2017) ressalta que, na interpretação
de um texto, necessita-se compreender o que o autor estava fazendo
quando o escreveu, pretendendo assim, estabelecer a tensão de relações
entre a linguagem e as experiências.
A justificativa deste procedimento neste estudo, atenta-se por
partilhar do mesmo pensamento de Vieira (2017), ao afirmar que o con-
textualismo linguístico “possibilita demonstrar historicamente como um
conjunto de agentes partilham um determinado meio expressivo” (VIEIRA,
2017, p. 57). Na compreensão deste enquadramento argumentado, bus-
cou-se – por meio das óticas de outros autores, como Monarcha (1997,
2001, 2002), Ruy Lourenço Filho (1997, 2001) e Nagle (1997) – traçar um
contexto biográfico de Lourenço Filho na sua contribuição como signatário,
partícipe e ativador do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova.
O Brasil no início do século XX, diferente da Europa e dos Estados
Unidos, ainda não possuía um sistema público de ensino, processo este
que foi efetivado no país nos anos 1920 e 1930, por meio de debates
e reformas, em que a educação, segundo Monarcha e Lourenço Filho
(1997), foi o centro das discussões. Naquele período, essa problemática
determinou uma busca que é respondida pela pedagogia da Escola Nova,
por meio de recursos técnicos, científicos e doutrinários, os quais apre-
sentavam como possíveis à implantação de uma escola que atendesse
a todos uma escola que atentasse para necessidade de produção de
condições materiais e técnicas.
Insertado a esse processo social, político e econômico, destaca-se
Lourenço Filho como um dos promotores desses ideais. Sua atenção foi
caracterizada pela necessidade de implantar um novo modelo de escola,
contribuindo de forma efetiva para a constituição do campo educacional,
para o processo institucional da Psicologia, para a produção e propagação
dos conhecimentos da Ciência Psicológica aplicada à Educação, para a
preocupação na minimização dos problemas pedagógicos e para a con-
solidação de uma formação de professores com o objetivo de atender às

258
necessidades específicas as quais se substanciava o momento histórico do
início do século XX.
Lourenço Filho (1897-1970), formou-se em Direito, cursou dois
anos de Medicina, foi professor de Psicologia, participou ativamente das
reformas educacionais de São Paulo e do Ceará no início da década de
1920 e, a partir disso, tornou-se um importante signatário do Manifesto
da Escola Nova no Brasil, tendo como companheiros de jornada Anísio Tei-
xeira e Fernando de Azevedo. Também foi promotor de um extenso volume
de publicações, reconhecido como um grande administrador, integrador da
Companhia Melhoramentos, em 1925, grande aliada de suas publicações,
e diretor da Biblioteca de Educação desde a fundação desta, em 1927, até
a morte dele, em 1970.

Lourenço Filho um articulador da renovação pedagógica na


Educação Nova

De acordo com Monarcha e Lourenço Filho (1997), a Lourenço Filho


coube contribuir de forma significativa para a construção de uma reflexão
psicológica e sociológica sobre educação. Essa reflexão abarcou uma mul-
tiplicidade de planos unificados em um único plano, de autoria de Lourenço
Filho, representativo das correntes das ideias em ascensão. Ou seja, no
movimento renovador inserido no Brasil a partir de 1920.
Para uma compreensão mais efetiva da participação de Lourenço
Filho no processo renovador, faz-se necessário compreendê-lo inserido
em um contexto histórico e não como alguém apartado de mudanças
operadas em nível de setor econômico e social. Assim, inseri-lo dentro de
um contexto histórico fundamentado por Nagle (2001) nos ajuda a com-
preender seus pensamentos e suas inquietações.

O Brasil, especialmente no decênio da década de 1920,


vive uma hora decisiva, que está exigindo outros padrões
de relações e de convivências humanas, imediatamente
decorre a crença na possibilidade de reformar a sociedade
pela reforma do homem, para que a escolarização tenha um

259
papel insubstituível, pois é interpretada como o mais decisivo
instrumento de aceleração histórica (NAGLE, 2001, p. 134).

É imprescindível pensar Lourenço Filho como intelectual partícipe


de um contexto cuja importância da educação escolarizada se configura
diretamente na política, participação do voto, e engajamento social e
econômico, pois, de acordo com Nagle (2001, p. 137) a importância da
escolarização, no contexto que antecede o Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova, deriva-se das necessidades políticas, dos prestígios que tal
escolarização proporcionam. Essa importância orientou muitas atividades,
organizações e intelectuais durante esse processo, tais como a Liga Nacio-
nalista, a Associação Brasileira de Educação – ABE, e, posteriormente, o
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932)
Todas as organizações, com suas características, organizadas ou
não “representavam um foco expressivo para o desenvolvimento do entu-
siasmo pela educação” (NAGLE, 2001, p. 143) – cada qual atendendo suas
especificidades que assentavam suas filosofias, as quais variavam desde
a educação religiosa e privada, defendida pelos católicos, até a educação
científica, pública e gratuita, bandeira levantada pelos escolanovistas –,
estavam demonstradas na educação. A educação se entremeava no social,
e o próprio Lourenço Filho a compreendia da seguinte forma:

Na verdade, não existe “vida social” de um lado e “processo


educativo” de outro – como se a primeira fosse o corpo, a
última, as vestes, suscetíveis de serem alteradas no talhe,
no estofo ou na cor, segundo o arbítrio, a moda ou a dispo-
nibilidade de recursos. Vida social e educação representam
aspectos de uma só e mesma realidade, cuja compreensão
geral exige a indagação dos grandes delineamentos que, a
cada momento, ambas estejam apresentando (LOURENÇO
FILHO, 1940, p. 8).

O debate, as produções e as conferências organizadas pelos pre-


ocupados com a educação foram instrumentos utilizados para centralizar
o assunto, levantar discussões e aflorar ideais. A partir disso, Monarcha e
Lourenço Filho (1997) afirma que o início do século XX foi um período em

260
que o tema Educação foi o centro das discussões no país e, cooperando
com essa afirmativa, Nagle (2001) acentua que:

Uma das mais significativas formas do padrão de pensa-


mento educacional, na década de 1920, foi a de considerar
a escolarização como o problema vital, pois da solução dele
dependeria o encaminhamento adequado dos demais pro-
blemas da nacionalidade. A escolarização é o instrumento do
progresso histórico (NAGLE, 2001, p. 145).

Nessa conjuntura, inclui-se Manoel Bergström Lourenço Filho,


nascido no fim do século XIX (1897), na cidade de Porto Ferreira, no estado
de São Paulo. Filho de Ida Cristina, professora de origem sueca e Manoel
Lourenço Júnior. Estudou no Ginásio de Campinas em 1910, já sendo admi-
tido no 2º ano por conhecer o programa do 1º ano, entretanto, por falta de
condições de custeio, trancou o curso no final do ano letivo.
Em 1912, matriculou-se na Escola Normal Primária de Pirassunun-
ga, recém-aberta por Oscar Thompson, e, nesse mesmo ano ainda conhe-
ceu Antonio Ferreira de Almeida Júnior, professor de Francês e Pedagogia,
com quem nutriu uma longa amizade. No ano seguinte, em parceria com
o colega Ozório Pinto de Freitas, abriu uma escola para aulas particulares,
a qual o ajudou a custear sua estadia na cidade de Pirassununga onde
permaneceu até o ano seguinte, quando recebeu o diploma de normalista
e retornou para cidade de Porto Ferreira.
Já no ano de 1915, começou a trabalhar como professor substituto
na Escola Normal de sua cidade, época que iniciou suas atividades literárias
e jornalísticas com inúmeras publicações entre 1915 e 1921. Publicou em
diversas revistas e jornais, como Revista Vida Moderna, jornal O comércio de
São Paulo, Jornal do Commércio (São Paulo), A Folha (Porto Ferreira), Jornal de
Piracicaba, O Estado de S. Paulo, dentre outros.
Em 1917, após ter se mudado, no ano anterior, para São Paulo,
cursou o final da Escola Normal Secundária da Capital na Escola Normal da
Praça e recebeu um novo diploma de professor. Nesse período, foi aluno do
professor Antônio de Sampaio Dória, o qual muito influenciou sua forma-

261
ção e, posteriormente, suas decisões quando foi convocado, em 1922, para
assumir, no Ceará, a Diretoria de Ensino para realizar reformas de ensino.
O ano de 1918 foi marcante para Lourenço Filho, pois foi um ano
bastante profícuo, no qual conheceu numerosos intelectuais que configu-
raram sua rede de relações intelectuais. Entretanto, devido seus trabalhos
na redação do Jornal do Commércio (SP) e da Revista do Brasil, que era diri-
gida por Monteiro Lobato, Lourenço Filho trancou o curso de Medicina (no
segundo ano); não conseguiu conciliar os estudos e a agenda de trabalhos.
Porém, nesse mesmo ano, participou da Campanha da Liga Nacionalista1
(SP), do Núcleo Nacionalista, em Piracicaba, liga esta que Dória também
fazia parte, e que difundia a exigência política de disseminação da escola
primária como necessidade pública.
No período de 1920, Lourenço Filho atuou como professor
substituto de Pedagogia e Educação Cívica da escola Normal Primária,
anexa à escola Normal secundária de São Paulo. O signatário levou essa
experiência cívica para a reforma que realizou no Ceará nos anos 1922 e
1923. Tornou-se professor da cadeira de Psicologia e Pedagogia da Escola
Normal de Piracicaba em 1921, e realizou o primeiro trabalho pedagógico
da Pedagogia Experimental, intitulado Estudo da atenção escolar.
Nesse mesmo ano, casou-se com a também professora Aída de
Carvalho e, no ano seguinte, publicou, na Revista de Educação e Trabalho, um
trabalho com o título de Prática pedagógica, divulgado por Sampaio Dória o
qual incluiu o trabalho nos anais da Conferência Interestadual do Ensino
Primário, tornando o intelectual conhecido e ampliando sua rede de rela-

1 Sobre a Liga Nacionalista, posteriormente compreende-se que muitas das decisões


tomadas por Lourenço Filho, assim como características apresentas por ele, foram herdadas
de sua participação como membro dessa liga, e, além disso, se mostraram de forma marcante,
presentes na estruturação do Manifesto. Nagle (2001, p. 136) explica que a “Liga nacionalista
consistia de ‘homens públicos e intelectuais que ao mesmo tempo, eram educadores’, num
tempo em que os assuntos educacionais não constituíam, ainda, uma atividade suficientemente
profissionalizada” muitos desses membros católicos com convicções bastantes tradicionais
traziam em suas características políticas a percepção que a escolarização atentava para
possibilidades políticas sociais. Ou seja, a Liga discutia, responsabilizava e atribuía muitas
das políticas sociais às ações escolares. Convencido estamos que a participação de Lourenço
Filho na Liga Nacionalista contribuiu para sua visão quanto ao ensino religioso, bem como sua
visão cívica e sua formação católica, além da perspectiva em relação à forma de administrar,
compreendendo que a escola e o social possuem características inseridas.

262
ções. Essas redes foram importantes, pois permitiram a Lourenço Filho ser
indicado por Sampaio Dória ao cargo de diretor-geral da Instrução Pública
do Ceará, com o objetivo de organizar reformas no ensino desse estado.
Após retornar a Piracicaba, no final de 1923, já no ano de 1924,
voltou a ensinar Psicologia e abriu um comércio de fabricação de lápis
e tinta. Nesse mesmo ano, também faleceu seu pai e, no ano seguinte,
nasceu seu primeiro filho, o qual tem como padrinhos Sampaio Dória e
Fanny Dória. Além disso, assumiu o cargo de professor de Psicologia e Pe-
dagogia da Escola Normal de São Paulo, cargo este que exerceu até 1930,
período em que realizou muitas pesquisas e publicações, em favor dos
testes psicológicos e da institucionalização da psicologia na educação. Em
1926, retomou o curso de Direito, o qual tinha trancado e, no próximo ano,
reabriu o Laboratório de Psicologia. Também nesse período fez traduções
de textos pedagógicos e organizou a Biblioteca de Educação.
Em 1929, foi eleito membro da Academia Paulista de Letras, ocu-
pando a Cadeira nº 32, ano que, conjuntamente, graduou-se em Bacharel
em Ciências Jurídicas e Sociais (Faculdade de Direito de São Paulo).

Lourenço Filho e o estudo da Escola Nova – período de


consagração de novos princípios da Educação

A publicação do livro Introdução ao estudo da Escola Nova, pela


editora Melhoramentos, foi um grande marco na visibilidade intelectual de
Lourenço Filho, pois o livro proporcionou ao intelectual grande consagração
e ampliou seu reconhecimento social junto a outros estudiosos da Educa-
ção. O livro foi publicado no ano de 1930, em São Paulo, e sua visibilidade
promoveu a Lourenço Filho grandes elogios. Fouconnet, um sociólogo
importante e professor da Universidade de Toulouse fez uma ampla divul-
gação do capital intelectual de Lourenço Filho, conforme é exposto:

Sinto-me feliz em poder comunicar aos leitores do “O esta-


do” todo bem que penso acerca de um livro, que acabo de
lêr (sic) com prazer infinito. Esse livro se intitula “Introdução
ao Estudo da Escola Nova” (Biblioteca de Educação, volume
XI, São Paulo, Cia. Melhoramentos, 1930, 235 páginas). Seu

263
autor, professor sr. Lourenço Filho, que é diretor da excelente
Biblioteca, acima referida, ensina também na Escola Normal
de São Paulo [...] Esta “Introdução” é um dos melhores livros
que, seja em que língua fôr (sic), já se tem escripto (sic) acerca
da escola Nova (FAUCONNET, 1930, p. 7).2

Sobre o livro supramencionado, há vários elogios e colocações


que nos possibilita contextualizar linguisticamente as concepções que
influenciaram Lourenço Filho em sua trajetória como introdutor do estudo
da psicologia e das bases que sustentam sua posição em favor da Escola
Nova. Essa obra foi como um guia, um verdadeiro mostruário de como
Lourenço Filho entendeu a Escola Nova e quais os passos que os professo-
res deveriam traçar para alcançar essa nova proposta educativa com êxito.
O signatário em questão ressaltou ainda um conceito para Escola
Nova, distinguindo-a de outras visões que cerceavam muitos entendi-
mentos, asseverando sobre o movimento renovador no momento político
vigente da época, fazendo uma análise sobre o processo das ciências
educacionais e buscando sanar confusões quanto aos meios e fins, apre-
sentando uma visão social pelos quais os renovadores compreendiam a
escola e, ainda, postulando os princípios da educação vista como ativa e
funcional.

1)A escola nova – Que se deve entender por “escola nova”?


[...] porque novas têm ellas sido, de facto, em relação ao que
dantes se havia por estabelecido. [...] Mas o que interessa
no momento, e o que aqui nos traz, é a exposição das novas
tendências e correntes da educação de hoje, – do que se
deve ter como novo, em nossos dias. E veremos que não é
pouco.

2)O movimento renovador actual. [...] Em todos os paizes,


políticos esclarecidos prégam a educação do povo, como
condição de equilíbrio social, mais duradouro e perfeito[...]

2 Paul Fauconnet, no ano de 1930, estava em Paris escrevendo para o Jornal O Estado. O texto
foi publicado na introdução do livro Introdução ao estudo da Escola Nova, por Lourenço Filho (1961).
Esse autor também foi um sociológo e importante professor da Universidade de Toulouse
(1907) e Puis ala Sorbonne (1921), além de sua autoria nos ensinamentos de Emile Durkheim.
Seu livro Educação e sociologia foi traduzido por Lourenço Filho, em 1978.

264
E certo também que, levando o homem ao ensaio de novas
formas politicas, de novas formas de vida em comunidade, a
conflagração mundial veio impor aos educadores a revisão
dos fins tentados pela escola pública.

3)Progresso das sciencias biológicas [...] O que caracteriza


o movimento histórico presente, no domínio da pedagogia,
parece-nos, justamente, a maior exequibikidade dos fins
propostos, tendo-se em vista meios de aplicação scientifica
(sic) (LOURENÇO FILHO, 1961, p. 2-3).

Lourenço Filho, no livro, apresenta-se como signatário em favor da


Escola Nova, ciente dos contextos históricos e das mudanças ocorridas no
sistema social/econômico, advindos da Primeira Guerra Mundial, fazendo
uma leitura autoral e ressaltando sua visão quanto aos preceitos da Escola
Nova, explicitando que “não existe novidade mais velha que a escola nova”
[...] (LOURENÇO FILHO, 1961, p. 2). Além disso, no decorrer dessa obra,
apresentou um guia, um condutor, um líder que indicava aos jovens peda-
gogos professores brasileiros um caminho a ser seguido para realizar as
mudanças/reformas almejadas.

Dentro desses pontos de vista, e para a consecução de taes


fins, propõe novos meios de appliação scientifica. Aconselha,
primeiramente, a transformação da organização estática dos
estabelecimentos de ensino, pelo emprego do estudo obje-
tivo da creança, para classificação racional; e pela verificação
pobjectiva do trabalho escolar (testes), para avaliação obje-
tctiva do que lhe foi aprendido[...] (sic) (LOURENÇO FILHO,
1961, p. 69).

Neste enfoque, é importante acentuar uma contradição presente


nas atuações e discursos de Lourenço Filho quanto ao ensino particular,
pois, enquanto havia toda uma sistematização em prol de uma escola
única e pública, Lourenço Filho sempre estava empregado como professor
nas escolas particulares, o que lhe assegurava parte de seu orçamento.
Também nos propicia entender que as ideologias de Lourenço
Filho, ao contrário de Fernando de Azevedo que assentava no olhar socio-
lógico, asseguravam-se pelo olhar pedagógico, psicológico, creditando que

265
as mudanças ocorreriam a partir da mudança nas práticas pedagógicas,
no processo de como ocorre o ensino-aprendizagem, atentando para as
questões psicológicas, ou seja, o processo do fazer.
Seus alicerces estão pautados na inspiração de se fazer com-
preendido no plano prático, dentro das possibilidades que as reformas/
mudanças podem acontecer. Vê a educação como uma possibilidade de
mudança social:

Começa-se a compreender que a educação deve ser vista


não apenas em termos das questões limitadas do ensino,
mas nos das mais graves e complexas realizações de ordem
social. A educação com todas se relaciona, delas tira forças
e alento, como a todas pode e deve servir. Descobrem-se
“relações de dependência” entre aspectos bem definidos do
processo educativo e o tipo de economia, a organização da
família, a estrutura religiosa, as condições político-sociais,
as de ordem e segurança, os próprios recursos de comuni-
cação e transporte – tudo quanto possa concorrer para a
agregação dos homens ao redor de ideais e de técnicas, que
sirvam à continuidade ao aperfeiçoamento das formas de
vida coletiva (LOURENÇO FILHO, 1940, p. 8).

Este intelectual, como já mencionado anteriormente, também


compôs o grupo dos defensores da reforma e modernização da educação
brasileira, o chamado “Movimento Escolanovista”; e foi um dos signatários
do documento “Manifesto dos pioneiros pela educação nova”, assinado por
um grupo de educadores brasileiros, em 1932. Além disso, teve em suas
experiências influências das relações estabelecidas com Sampaio Dória3,
e, quando designado para realizar a reforma educativa no Ceará, a fez, e,
depois, mudou-se para o Ceará, onde permaneceu por quase dois anos.
Nagle (2001), ainda confere que a reforma realizada por Lourenço
Filho no Ceará travou quase que exclusivamente pela atuação dele próprio,
ou seja, sozinho, sem auxílio de pessoas qualificadas, sem apoio institu-
cional e de poderes públicos, acentuados por desinteresses e enfrentando
poderes políticos coronelistas.

3 Sampaio Dória realizou no estado de São Paulo a reforma, por força da Lei 1.750 de 8/12/1920,
que, segundo Nagle (2001, p. 246), introduziu as primeiras e mais radicais alterações feitas nos
sistemas escolares estaduais na década de 1920.

266
A atuação de Lourenço Filho, no Ceará, parece ser um caso
em que não se encontram tais influências: de um lado, não se
deixou outro, soube perceber com bastante agudeza muitos
aspectos da ambiência social cearense, retirando dela muitas
consequências para a atuação na esfera educacional (NAGLE,
2001, p. 248).

Em condições muito aquém às que Sampaio Dória provia, ao realizar


a reforma do Ensino Primário em São Paulo, Lourenço Filho ascendeu na
reforma do estado do Ceará pontos comuns ao seu mentor Sampaio Dória,
tais como a formação básica para nacionalidade, o recenseamento escolar,
a criação das escolas complementares, bem como das escolas reunidas,
as medidas nacionalizadoras em relação ao ensino particular, o emprego
das sentenciação e o ensino simultâneo da leitura e escrita, pontos estes
advindos de influência recebida.

Lourenço Filho um exímio administrador

Uma característica marcante na atuação de Lourenço Filho foi ca-


racterizada pela sua política administrativa: “Lourenço Filho aprendeu cedo
que o ideal não se pode inserir no real sem progressivas adaptações e que é
preciso afinal contar com os fatos e as situações concretas” (MONARCHA,
1997, p. 19). Administrador é o termo utilizado por Fernando de Azevedo
ao descrever Lourenço Filho, caracterizando-o pela forma de administrar
as situações e os cargos aos quais foi indicado no decorrer de sua trajetória.
Interpreta-se que, por possuir caráter resoluto, houve um agra-
vante para suas diferenças e conflitos com Paschoal Lemme4, outro
importante nome dentre os signatários, quando este foi trabalhar no
Instituto de Educação do Distrito Federal. Lemme, em sua característica
transformadora, com princípios comunistas, acreditava que as mudanças
deveriam ser radicais, ao contrário de Lourenço Filho, liberal, católico, que
compreendia as adaptações progressivas como uma necessidade para

4 Paschoal Lemme também signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932)
e trabalhou com Lourenço Filho. Em sua biografia, assentou-se que tiveram diferenças que
ocasionaram na saída de Lemme de sua função como Inspetor no Instituto de Educação, cargo
que tinha conseguido mediante aprovação em concurso público. Ver mais em Lemme (2004a,
2004b, 2004c, 2004d, 2004e).

267
mudanças contínuas e gradativas. Suas diferenças foram pano de fundo
para a saída de Paschoal Lemme do Instituto de Educação.
É importante ressaltar essas diferenças para desmistificar a falsa
ideia propagada sobre a homogeneização de ideais dos signatários. E
assim confirmamos nossa afirmativa concordando com Monarcha (2009,
p. 66) quando acentua “que os membros dessa geração, com seus pontos
de convergências e afastamentos – é impossível considera-los (sic) como
congregação que aceita sumariamente um conjunto de ideias integradas”.
Na função de diretor do Instituto de Educação do Distrito Federal,
cargo que exerceu de 1931 até 1937, Lourenço Filho realizou grandes
feitos, e foi quando estava nesse cargo que ele assinou como signatário
do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, documento que segundo
Monarcha e Lourenço Filho (1997), ele próprio colaborou com as produções
preliminares.
Dentre suas articulações e reformas, acentua-se sua preocupação
em reorganizar todo o espaço da Diretoria, favorecendo ampliações de ser-
viços de assistência técnica e inspeção acrescendo as delegacias de ensino
de quatro para um total de dez. Também, criou a Biblioteca Pedagógica, a
qual foi um veículo de grandes publicações das ideias escolanovistas, além
do Museu da Criança e a inspeção médico-escolar. Além disso, preocupou-
-se em criar, nas escolas, espaços para secretarias e almoxarifado, o que
não era costumeiro. Também reorganizou o Ensino Normal e Profissional
e criou o serviço de psicologia Aplicada; foi um dos principais líderes e pro-
pulsores de leitura de estudos da Educação Nova; realizou várias traduções
possibilitando a muitos professores que grandes obras fossem lidas e
difundidas no Brasil; produziu teses, artigos e livros, e desenvolveu guias
de estudos e testes psicológicos muito utilizados no campo da Psicologia.
Nesse período, exerceu a função de diretor do Instituto de Educação do
Distrito Federal, atuando, simultaneamente, como professor de Psicologia,
além de dirigir o laboratório em que, juntamente com uma equipe, dedica-
va-se a pesquisas e técnicas de experiências de testes psicológicos.
Segundo Monarcha, “Essas pesquisas eram fundamentadas em
Claparède, Piéron, Walther, Binet, Simon e outros, envolvidos diretamente
ou não com o Instituto Jean-Jaques Rousseau, sediado em Genebra, Su-

268
íça, dirigido por Claparède” (MONARCHA, 2001, p. 14). Sob a atuação de
Lourenço Filho no laboratório e a participação de sua equipe, Monarcha
corrobora afirmando que:

À frente da cadeira de Pedagogia e Psicologia e do Laborató-


rio, entre os anos de 1925-1930, Lourenço Filho atuou como
chefe de laboratório, formando uma equipe de colaboradores
ativa e coesa, composta, entre outros, por João Batista Da-
masco Penna – aluno do Curso Normal, e Noemy Marques
Siveira – professora no Grupo Escolar Prudente de Moraes
(MONARCHA, 2001, p. 13).

De característica prática e científica, considerado um homem


inquieto e cheio de responsabilidades, adicionava em seu currículo um
extenso e multifacetas de atividades. Dentre essas atividades e ainda
no mesmo período antecedendo ao Manifesto, e em cooperação com
um engenheiro, Robert Mangé5, Lourenço Filho realizava atividades de
pesquisas e testes quanto à psicologia aplicada ao trabalho, denominada
“psicotécnica”. O estudo da psicotécnica, de acordo com Monarcha (2001),
“significava, para aquela época, de acordo com a aplicação da teoria psico-
lógica na solução dos problemas práticos de todas as esferas de atividades
humana, particularmente da criança que estuda e do homem que trabalha”
(MONARCHA, 2001, p. 19).
Proferindo um discurso em que a psicotécnica não significava
apenas psicologia do trabalho, mas do ensino, da prática pedagógica e
dos diversos setores de trabalho e ciência, Monarcha (2001, p. 21) afirma
que Lourenço Filho e Robert Mangé se responsabilizaram pela utilização e
divulgação dessa técnica nos ambientes escolar, empresarial e intelectual,
de São Paulo, com o objetivo de orientar, selecionar e formar profissionais
para produzir um trabalhador estável e adaptado ao meio brasileiro.
São argumentos de Lourenço Filho:

Convém salientar [...] que o termo psicotécnico não significa,


simplesmente, psicologia aplicada ao trabalho, como vul-

5 Roberto Mangé, nascido em 1922, foi engenheiro e professor da escola politécnica. Professor
da Universidade de São Paulo, participou da construção de várias escolas públicas nos anos 70
em São Paulo. Disponível em: www.crmariocovas.sp.gov.br. Acesso em: 17 jul. 2020.

269
garmente se supõe, mas tão somente, psicologia aplicada.
É o que esclarece a Associação Internacional de Psicotécnica
fundada em Paris em 1920. Há, assim, uma psicotécnica do
ensino, ou pedagógica: uma psicotécnica médica; outra jurí-
dica; outra industrial; tantas psicotécnicas quanto forem os
objetos de possível aplicação psicológica (LOURENÇO FILHO,
1945, p. 196 apud MONARCHA, 2001, p. 20).

Em 1934, foi eleito presidente da Associação Brasileira de Educa-


ção – ABE, e, em 1938, assumiu a direção do Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep, como convidado de Gus-
tavo Capanema, onde permaneceu por sete anos, ao contrário de muitos
signatários que preferiram se retirar; Lourenço Filho foi um dos grandes
intelectuais que apoiou os ideais do governo.
Lourenço Filho, ao longo de sua história, assumiu, em uma pers-
pectiva de intelectual, uma posição explicada por Vieira (2008, p. 9) como
produtor de 5capital simbólico, expressando, simultaneamente, os inte-
resses das classes dominantes e os interesses dos intelectuais que lutam
pelo monopólio da produção desse capital. Assim, atentando para esta
ótica, segundo Vieira, há uma sacralização dos intelectuais, em que não se
separa a história das ideias, das ideologias, do pensamento da história dos
seus produtores (VIEIRA, 2009, p. 9).
Observa-se, pelo depoimento de Carlos Monarcha (2002), que
Lourenço Filho soube utilizar sua influência para difundir suas ideias e pro-
posições para a solução da problemática educacional, imbuído de atitudes
de um estadista:

Ativamente inserto no clima intelectual e político que envol-


via a organização e legitimação do Estado Novo, Lourenço
Filho pronunciou, entre 1938 e 1940, quatro conferências
sobre a organização e racionalização da obra de educação
nacional com foco na escola/educação primária: “Tendências
da educação brasileira”; “Alguns aspectos da educação
primária”; “Educação e segurança nacional”; e “Estatística
e educação”. Conjugando tom sério e arrebatado, erudição
e exposição didática, Lourenço Filho promoveu a exposição
de suas propostas de ação concernentes à educação em ins-
tituições dotadas de poder e prestígio, respectivamente no

270
Palácio Tiradentes, a convite do Departamento de Imprensa
e Propaganda; na Academia Brasileira de Letras, a convite da
Liga da Defesa Nacional; na Escola do Estado Maior do Exér-
cito; e no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. E,
visando mobilizar um público maior em torno de suas idéias
(sic), à medida que pronunciava as conferências, Lourenço
Filho ia publicando os respectivos textos, ora no formato de
folhetos impressos em gráfica federal, ora no formato de
artigos e separatas de publicações periódicas voltadas para
a problemática estadonovista (MONARCHA, 2002, p. 8).

Entretanto, ressalta-se que Lourenço Filho não foi um idealista


ausente, inepto dos problemas reais e sociais pelos quais a nação era
acometida na década de 1940, assistida pelo Estado Novo e as políticas
getulistas. Lourenço Filho, por meio de discurso realizado e publicado em
Tendências Pedagógicas, deixa claro sua consciência em relação à situação
da educação nacional e sua participação ativa no contexto do Estado Novo:

Entre os fins da educação escolar brasileira e as necessidades


reais da vida da Nação tem havido, é inegável, um desajus-
tamento provindo da permanência de velhos ideais, a que se
pretendeu submeter a mudança social, mal pressentida. Isso
explica que a educação tenha assumido um aspecto formal,
contra o qual as energias nacionais estão agora lutando
com mais perfeita consciência do problema. Providências
de reorganização da vida social refletem-se claramente em
medidas de reforma da educação. A Nação toma consciência
de si mesma e realiza um esforço de coesão (LOURENÇO
FILHO, 1940, p. 30).

A Era Vargas foi palco das ações pedagógicas ensejada pela Escola
Nova, em que vários intelectuais, dentre eles Lourenço Filho, solidificou-se
junto ao governo na vinculação dos ideais renovadores, solidificação esta
que justificou este intelectual por meio de discursos e ações do governo:

No período em que nos encontramos, a cultura intelectual


sem objetivo claro e definido deve ser considerada luxo aces-
sível a poucos indivíduos e de escasso proveito à coletividade
– dizia ainda há pouco, em memorável discurso, o preclaro
chefe da Nação. “Decorrido mais de meio século de trabalho

271
livre, ainda não nos distanciamos muito dos objetivos edu-
cacionais que conformaram outra época e outra sociedade”
– são ainda palavras do presidente Vargas. Claras, incisivas e
profundas palavras. Nelas se manifestam, pela condenação
das velhas tendências de educação que aqui examinamos,
as novas diretrizes que tomam corpo e que, por um novo
pensamento e uma nova ação pedagógica, penetrada de
valor social, hão de concorrer decisivamente para a grandeza
futura do País (LOURENÇO FILHO, 1940, p. 30).

Como um intelectual que exercia influência em muitos educadores,


Lourenço Filho assumiu muitos cargos de direção ao longo de seu processo
como profissional, em paralelo às funções exercidas, como diretor do Inep,
cargo que exerceu entre 1938 e 1946, cuja gestão foi marcada por grandes
feitos. Lourenço Filho sempre que se afastava de um cargo e/ou, em con-
comitância a estes, exercia a função de professor de Psicologia.
De acordo com Monarcha e Lourenço Filho (2002), foi na gestão de
Lourenço Filho como diretor do Inep que se iniciou um levantamento de toda
a legislação brasileira e também das biografias nacionais utilizadas para a
construção da biblioteca pedagógica. A Revista Brasileira de Estudos Pedagó-
gicos – Rbep6, em 1944, teve o intuito de abordar conteúdos relacionados às
pesquisas sobre o processo educacional, tanto as práticas como as políticas.
No ano de 1943, Lourenço Filho foi o representante do Brasil na
Primeira Conferência de Ministros e Diretores da Educação das Repúbli-
cas Americanas, sediada no Panamá. Lá proferiu um pronunciamento
que publicou em 1945, na Revista Pedagógica, criada por ele; o tema do
pronunciamento era “A margem dos pareceres de Rui Barbosa”. Nesse
mesmo ano, foi eleito membro da Academia Bolivariana e, no ano seguinte,
tornou-se membro da Academia Guarani-Assunção.
Nota-se, que Lourenço Filho se manteve na contínua manutenção
das relações entre os agentes, (BOURDIEU, 2015, p. 107) que é apropriada
e mantida pela interação nas formações sociais a partir da dependência
pessoal ocorrida por um trabalho incessante e o domínio dos mecanismos.

6 A Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos foi lançada em julho de 1944, marco importante
para o Inep. Foi um periódico quadrimestral, em formato impresso e eletrônico, cujo conteúdo
aborda artigos inéditos, relacionados às pesquisas na área de educação e, ainda, publica
resultados de pesquisas.

272
Lourenço Filho fez parte, como membro, do Conselho Nacional de
Educação, quando foi eleito em 1937, permanecendo até a extinção do
conselho em 1961. Concomitante a outras funções e cargos exercidos.
Em 1939, foi reitor em exercício da Universidade do Distrito Federal
– UDF, mas, com a extinção do órgão, foi transferido para a Universidade do
Brasil onde ministrou aulas de Psicologia Educacional. A década de 1940 foi
marcada pelo amplo processo de divulgação que Lourenço Filho realizou. No
ano de 1941, além das grandes publicações, presidiu a Comissão Nacional
de Ensino Primário e organizou a Primeira Conferência Nacional de Educa-
ção e Saúde. No ano seguinte, iniciou a elaboração de uma coleção de livros
infantis, que publicou até 1951 em uma série de 12 livros.
Participante ativo das movimentações em torno das políticas
educacionais, quando deixou o cargo de diretor do Inep, em 1946, já no
final do ano, aceitou o convite do Ministro Clemente Mariani para ocupar o
cargo no ano seguinte, pela segunda vez, de Diretor do Departamento de
Educação. No ano de 1948, presidiu a Comissão Nacional, cuja função foi
elaborar o anteprojeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Nesse
ano, também foi eleito membro da Société Française de Psycologie.
Nas diversas funções que exerceu durante sua vida, sempre
ressaltou a educação como uma expressão da vida social, e essa ideia foi
transcrita ao longo de seus discursos. No livro Tendências da Educação Bra-
sileira, publicado em 1961, e, depois, em uma segunda edição publica em
2002, organizado e reeditado por Monarcha e Ruy Lourenço Filho (2002),
os autores fizeram uma análise da trajetória das tendências educacionais,
desde década de 1920 até a de 1960, ressaltando, em sua ótica, pontos
positivos e negativos, traçando gráficos e buscando destacar a validade do
processo renovador na Educação brasileira.

Não demonstra outra coisa a análise do fenômeno educati-


vo, através das épocas. E quando os conflitos nele aparecem,
outra coisa não encontramos também senão a luta entre os
princípios e métodos de segurança, admitidos uns pelo in-
divíduo, outros pelo grupo, ou diversamente adotados pelos
vários grupos da mesma coletividade. Assim foi em todos os
tempos e assim é no presente. Dir-se-á que, na Idade Média,
os extremos de uma educação ascética levariam o indivíduo
à mortificação e, portanto, à insegurança. A observação seria

273
superficial. A segurança de que então se tratava era a da
vida futura, mais valiosa ao asceta que os bens da existência
terrena. Nele dominava a idéia (sic) de segurar, ou de “asse-
gurar”, a felicidade eterna. De qualquer forma, a educação,
no seu mais amplo sentido, tem provido à garantia da
existência individual aqui e além, e, por ela, à segurança das
formas sociais de que seja expressão (LOURENÇO FILHO,
2002, p. 59, grifo nosso).

Lourenço Filho, um intelectual reconhecido e as produções na


década de 1950 e 1960

No período entre 1950 e 1960, Lourenço Filho já se encontrava


aposentado da Universidade do Brasil, e, a partir disso, começou a produzir,
revisar e ampliar suas produções, e como um homem técnico e produtivo,
intensificou seus trabalhos quanto a suas produções. Esse também foi um
período de reconhecimentos por seu intenso engajamento como profissio-
nal na causa de renovação educacional.
No ano de 1952, foi eleito presidente do Instituto Brasileiro de
Educação Ciência e Cultura; e, em 1954, pelo reconhecimento de sua parti-
cipação ativa nas produções, recebeu uma placa laudatória da Câmara Bra-
sileira do Livro. No ano seguinte, presidiu o I Seminário Latino Americano
de Psicologia Aplicada e, em 1957, participou, como membro, da Comissão
de Concurso Literário Infantil.
Após sua aposentadoria, em 1956, recebeu várias premiações,
dentre elas o título da Universidade do Brasil de “Professor Emérito”. Ber-
toletti (2015, p. 177) ainda confirma isso, com uma descrição atenuante
das homenagens recebidas por Lourenço Filho, na década de 1950:

Em 1956 e 1957, foi membro da Comissão de Concurso de


Literatura Infantil. Em 1956, quando se aposentou, a Univer-
sidade do Brasil concedeu-lhe o título de “professor emérito”,
e o Governo da República inaugurou com seu nome a Ordem
Nacional de Mérito Educacional, no grau de Egregius. Ainda
por ocasião de sua aposentadoria, Lourenço Filho recebeu o
título de professor honorário da Universidade Mayor de São
Marcos de Lima, no Peru, e foi eleito membro da American

274
Statistical Association of the United States (BERTOLETTI,
2015, p. 177).

Já na década de 1960, especificamente em 1963, recebeu o Prêmio


“Ciência da Educação” pela Fundação Moinho Santista, pelo conjunto das
suas obras. Mesmo aposentado, não parava, sua característica ativa lhe
rendeu ainda muitos outros trabalhos, dos quais se destacam, de acordo
com Bertoletti (2015, p. 180), a participação como patrono da Cadeira nº
11 da Academia Brasileira de Literatura infantil e juvenil, e ainda presidiu
em 1970 a Comissão da organização do programa de Pós-Graduação em
psicologia no Isop, da Fundação Getúlio Vargas.
Monarcha (2001) acentua que seu último trabalho consistiu no
prefácio da tradução do Livro intitulado Problemas e métodos da leitura, de
Agostinho Minicucci, elaborado pela escritora Berta Braslavyky.

Considerações finais

Lourenço Filho é caracterizado pioneiro na busca pela renovação,


na tentativa incansável de inovar métodos, racionalizar procedimentos,
criar metodologias que promovesse um alcance maior e mais amplo da
educação brasileira.
Errou quando acreditou que equacionando a temporização da
educação de forma diligente e imediata poderia fazer uma transformação
total, pois a cultura e os contextos históricos são processos que devem ser
geridos gradativamente e não apressados como sonhava Lourenço Filho.
Entretanto, é importante ressaltar que este educador muito contribuiu
para a concretização de um plano educacional que o Brasil tanto almejou, e
analisar suas contribuições dentro deste contexto, nos permite confirmar
sua consolidação enquanto intelectual partícipe e atuante no processo
educacional brasileiro.
Foi um agente de renovação educacional que acreditou que, na
ordem da sociabilidade à qual estava inserido e na realização dos sacri-
fícios de trabalhos que se propôs a fazer durante toda sua vida, estaria

275
contribuindo por força de mérito para um sistema educacional melhor que
o vigente no início do século.
Enquanto intelectual, aderiu a educação como solução política uti-
lizada pelas reformas as quais participou, bem como acreditou na força da
educação enquanto contexto social, e buscou profundamente enraizar, por
meio de produções, traduções e exposições, um referencial bibliográfico
que fortalecesse esse ideal.
Resguardadas as contradições, Lourenço Filho nos deixa um
arsenal de produções que agregam a história educacional deste país, con-
tribuições como idealista, soldado contundente e gestor das políticas edu-
cacionais. Tendo como base para discussão que Lourenço Filho atuou em
um contexto em que não havia nada constituído, assim importa ressaltar
que suas contribuições, advindas na atualidade e de críticas no momento
histórico ao qual exerceu sua tarefa educacional, deixa um legado quanto
sua participação ativa e contundente na história da educação.

REFERÊNCIAS

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til e juvenil. In: MORTATTI, M. R. L. et al. (orgs.). Sujeitos da história do ensino de leitura
e esrita no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2015. p. 169-194. Disponível em: https://
static.scielo.org/scielobooks/3nj6y/pdf/mortatti-9788568334362.pdf. Acesso em: 9
mar. 2021.
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MONARCHA, C.; LOURENÇO FILHO, R. (orgs.). Centenário de Lourenço Filho. Londrina,
PR: Editora UEL, 1997.
MONARCHA, C.; LOURENÇO FILHO, R. (orgs.). Manoel Bergstrom Lourenço Filho: ten-
dências pedagógicas da educação brasileira. 2. ed. Brasília: Inep/MEC, 2002. Coleção
Lourenço Filho 6.

276
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ção (São Paulo, 1922-1933). Brasília: Inep/MEC, 2001. Coleção Lourenço Filho 3.
NAGLE, J. Educação e sociedade na Primeira República. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
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SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4. ed. Campinas: Autores Asso-
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SOUZA, V. S. de. Autor, texto e contexto: a História Intelectual e o “Contextualismo
linguístico” na perspectiva de Qeuntin skinner. Fênix – Revista de História e Estudos
Culturais, ano 5, v. 5, n. 4, 2008.
VIEIRA, C. E. Contextualismo linguístico: contexto histórico, pressupostos teóricos e
contribuições para a escrita da história da educação. Revista Brasileira de História da
Educação, v. 17, p. 31-55, 2017.
VIEIRA, C. E. Intelligentsia e intelectuais: sentidos, conceitos e possibilidades para a
história intelectual. Revista Brasileira de História da Educação, v. 8, n. 1, jan./abr. 2008.

277
CAPÍTULO XX

MÁRIO CASASANTA

Eliane Gonçalves Costa Anderi1

Mário Casasanta nasceu no estado de Minas Gerais, na cidade de


Camanducaia, no ano 1898, e faleceu na cidade de Belo Horizonte, em 30
de março de 1963, aos 65 anos de idade. Na cidade de Pouso Alegre, Minas
Gerais, diplomou-se na Escola de Farmácia, no ano de 1920, e bacharelou-
-se pela Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, em 1924,
em Belo Horizonte, local para onde se mudou em 1926 para assumir o
cargo de Inspetor Geral da Instrução, a convite de Antonio Carlos Ribeiro
Andrade e Francisco Campos. Foi casado com Lucia Monteiro Casasanta,
importante educadora brasileira divulgadora do Método Global de Alfa-
betização. Era tio de Therezinha Casasanta, notável escritora de obras
literárias dirigidas ao público infantil. Há que se ressaltar que ele foi o único
mineiro entre os signatários do Manifesto de 1932.

Atuação profissional

Lecionou no Ginásio de Pouso Alegre, no Colégio Arnaldo em Cam-


pinas, São Paulo, e no Colégio Estadual, em Belo Horizonte. Foi professor

1 Doutora em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/1318285101265074. E-mail: egcanderi@


gmail.com.

278
de Português no Ginásio Mineiro, em 1936, e também promotor de justiça
em Pouso Alegre.
Sua atuação no ensino superior teve início em 1938, lecionando
a disciplina de Direito Constitucional. Sete anos depois foi conduzido à
cátedra de Filosofia do Direito por meio de indicação da Congregação da
Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais. Também atuou na
Faculdade Mineira de Direito da Universidade Católica de Minas Gerais,
lecionando a disciplina Teoria Geral do Estado.
Desempenhou funções públicas na administração de diferentes
governos, tanto no estado de Minas Gerais, quanto no governo federal. Em
1927, como inspetor geral da Instrução Pública de Minas, participou da im-
plantação da Reforma Francisco Campos e foi Diretor do Departamento de
Educação do então Distrito Federal, no período em que Francisco Campos
esteve à frente do Ministério da Educação e Saúde (1930-1934).
Foi reitor da Universidade de Minas2 por dois mandatos, de 1930 a
1931 e de 1941 a 1944, no período em que a instituição ainda era privada.
Participou da fundação da Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas
Gerais onde ocupou a cátedra de Língua Portuguesa.
Também foi diretor da Imprensa Oficial e, no governo de Magalhães
Pinto, ocupou a direção da Caixa Econômica Federal e foi Secretário do Interior.
Assumiu a direção do Centro Regional de pesquisas Educacionais –
CRPE , em 1956, a convite do então Ministro da Educação, Clóvis Salgado,
3

que também era mineiro.


Em 1957, Mário Casasanta tomou posse da direção do Instituto de
Educação, tendo sido nomeado por Abgar Renault, o então Secretário da
Educação de Minas Gerais, acumulando também a direção do Programa
Brasileiro-Americano de Assistência ao Ensino Elementar – Pabaee, que

2 A Universidade de Minas Gerais foi criada em 1927, como uma instituição privada, mas
subsidiada pelo Estado. Foi federalizada em 1949.
3 O CRPE, segundo Xavier, Matos e Lopes (2013), é uma das unidades do Centro Brasileiro de
Pesquisa Educacionais – CBPE. Idealizados por Anísio Teixeira, a criação dos Centros visava
promover estudos que deveriam envolver a realidade social e cultural do país de modo a produzir
conhecimento sobre a realidade brasileira para subsidiar o planejamento reacional das políticas
educacionais. Sediavam os centros regionais as cidades de São Paulo, Recife, Salvador, Porto
Alegre e Belo Horizonte. A sede do CBPE ficava no Rio de Janeiro, então capital federal.

279
era uma das ações previstas no convênio firmado entre o Estado de Minas
Gerais e o governo estadunidense. Além disso, também fez parte da Aca-
demia Mineira de Letras.
Observa-se que este intelectual, ao longo de sua vida, ocupou
cargos de influência política na administração pública, tanto no governo de
Minas Gerais quanto no Ministério da Educação, além da sua atuação como
professor.

A filiação acadêmica e política

A reforma da educação mineira, elaborada por Francisco Campos


e implementada por Casasanta, produziu regras e normas de conduta
pedagógica que gerou mudanças na organização e no funcionamento
das escolas, nos currículos e programas, e em todo o fazer pedagógico, e
concentrou todo o esforço na formação e qualificação de professores e na
reestruturação do Curso Normal.
Vieira (2004) afirma, em seus estudos, que o aparato legal construído
no período compreendido entre 1892 a 1930 teve como objetivo formar o
cidadão republicano, tanto do ponto de vista moral quanto intelectual, mas
que fosse comprometido com a sustentação do regime político, ponto de vista
que, até certo ponto, também é defendida por Machado e Teruya (2007).
Essa proposta republicana de educação buscou na racionalização
científica suas bases de sustentação e tinha como desafio enfrentar a
questão da ampliação do acesso à escola pública, pois, naquele momento
histórico, o país contava com aproximadamente 85% de sua população
não alfabetizada e a proposta tinha como meta ou precisava “promover
a formação de profissionais da educação para legitimar um processo de
ensino laico, diante de uma cultura fortemente arraigada na religiosidade,
principalmente, da igreja católica” (VIEIRA, 2004, p. 2).
Como inspetor-geral da Instrução Pública, Mário Casasanta imple-
mentou importantes reformas no ensino público mineiro. Segundo Xavier,
Matos e Lopes (2013), ele protagonizou o debate educacional mineiro, con-
duzindo as ações de modernização político-administrativa e participando

280
da fundação de diferentes instituições de ensino e de pesquisa que foram
destinadas para alavancar o processo de modernização naquele estado.
É possível também destacar, na Reforma Francisco Campos, que a
formação de professores tinha um papel estratégico. A ideia era de que a
reforma da sociedade se daria via reforma da educação e da escola. Xavier,
Matos e Lopes (2013) constatam que a escola seria usada como paradig-
ma da modernização, pois a formação técnica e científica, bem como o
conhecimento dos processos de ensino e o domínio da metodologia eram
vistos como fundamentais para a transformação da escola.
A criação da Escola de Aperfeiçoamento, idealizada por Casasanta,
cumpria o objetivo de formar uma “elite pedagógica” preparada científica
e tecnicamente para ocupar os postos-chaves, dentro da estrutura do
ensino – professores das escolas normais, diretores de escolas, assisten-
tes e orientadores técnicos – que atuariam na disseminação das ideias
defendidas pela Reforma.
Nesse sentido, o Estado investiu na ida de professores estrangei-
ros para Minas Gerais, na ida de professores mineiros para outros países,
na criação de cursos de aperfeiçoamento e na utilização intensa da Revista
do Ensino, que teve sua edição fortalecida, como instrumento de orientação
e canal de comunicação com os professores de toda a rede de escolas
públicas dos municípios.
Para Xavier, Matos e Lopes (2013), o ponto alto da Reforma
conduzida por Casasanta foi a organização e funcionamento da Escola de
Aperfeiçoamento de professores.
Peixoto (2003), em uma nota de rodapé em seu texto, afirma que
surgia uma nova Era na escola mineira com a Reforma Francisco Campos e
Mário Casasanta (1927-1928) e que Francisco Campos foi “arquiteto quase
solitário da Reforma”, ao passo que coube a Mário Casasanta a sua imple-
mentação.
Entre outras coisas, Campos assim se refere a Mário Casasanta em
um discurso:

[...] cujo fulgurante talento e competência dia a dia crescente


se encontra integral e devotadamente ao serviço da educa-

281
ção pública, quotidianamente entregue a uma tarefa que, se
lhe traz fadiga e sacrifício, importará, certamente, em dívida
de reconhecimento dos mineiros para com ele (CAMPOS,
1929 apud PEIXOTO, 2003, p. 81).

Para Mário Casasanta, “um dos principais objetivos da escola é


formar cidadãos que compreendam bem o papel que lhes está reservado
na vida da coletividade” (CASASANTA, 1931, p. 32).
Para que a escola cumprisse esse objetivo de formar o cidadão,
ela deveria se transformar em uma “sociedade em miniatura”, ideia que foi
defendida por Dewey, ou seja, a escola sendo entendida como um labora-
tório de cidadania, um local onde as crianças tivessem a oportunidade de
exercitar as funções de indivíduo e de membro de uma coletividade. Para
formar esse cidadão, cumpre a escola “desenvolver aquelas qualidades
essenciais à democracia, como sejam a cooperação, sentimento da lei,
respeito à personalidade alheia, independência moral e espiritual” (CASA-
SANTA, 1931, p. 32).
Para isso, fazia-se necessário uma formação de professores baseada
na Educação enquanto Ciência, o que levou à criação da Escola de Aperfei-
çoamento de professores. Acreditava-se que, com a formação específica,
transformariam suas práticas pedagógicas de modo a tomar a sala de aula
como uma pequena sociedade, trazendo para dentro dela as experiências de
conselhos de estudantes, clubes, organização de “auditorium”, ou seja, simu-
lando situações em que fosse oportunizado vivenciar diferentes papeis sociais
e também assumir responsabilidades coletivas na solução de problemas.
Para ele, a consciência dos direitos e dos deveres seriam conquis-
tadas a partir do modo como o professor organizasse a sala de aula, crian-
do situações similares às vivenciadas na sociedade, mas que permitissem
que as situações de liberdade e autoridade fossem sendo dosadas até
que, gradativamente, ocorresse o desaparecimento da autoridade com a
prevalência da liberdade, pois os estudantes, ao tomarem consciência dos
seus direitos e deveres, conquistariam o autogoverno.
Há, nesse entendimento, a crença de que as formas autoritárias
com que se vive na sociedade se deve à falta de consciência que as pes-

282
soas têm de seus deveres e seus direitos e que isso implicaria na falta de
democracia.

Assim, o professor irá organizar uma sociedade entre os seus


alunos, em que haja uma bôa (sic) dosagem entre liberdade e
autoridade, por forma que esta tenda a desaparecer, através
do curso, até que os alunos, perfeitamente conscientes de
seus deveres e de seus direitos, a dispensem de todo e se
dirijam por si próprios (CASASANTA, 1931, p. 34).

Mário Casasanta defende que a escola deveria superar a concepção


vigente de disciplina e adotar uma concepção de governo, pois a disciplina
carrega o sentido de manutenção da ordem a qualquer preço, era imposta,
seja para o bem seja para o mal, sendo que sua efetivação, no cotidiano da
escola, dava-se por meio de premiação ou castigo, havendo o predomínio
do castigo, o que para ele não levaria ao autogoverno.
Na sua perspectiva, o papel do professor (mestre) não é o de:

[...] disciplinador. Papel de polícia. Polícia antiga. Quanto mais


bravo, melhor o mestre. Aquele é bom, tem força. Aquele é
enérgico, não repete palavras, quando dita. Aqueloutra é a
melhor professora, porque não admite vacilações, diante de
suas ordens (CASASANTA, 1931, p. 36).

O que se esperava é que a escola fosse capaz de formar um estu-


dante que realizasse seu trabalho com critério e desenvolvesse todos os
aspectos que lhe permitisse a ser cidadão digno de uma democracia e, para
isso, não seria necessário castigo, mas governo.
Na análise dos dois textos elaborados por Casasanta e que estão
sendo utilizados neste estudo como uma das fontes de pesquisa, obser-
va-se, em um deles, a evidente defesa do ideário da Escola Nova, sob a
influência do pensamento de Dewey, expressa no texto O problema da
disciplina, em que ele compreende que a escola “moderna” deve superar
o modelo disciplinar em que a autoridade do professor se manifesta por
meio da aplicação de prêmios para “o bem e penalidades para os erros”
(CASASANTA, 1931, p. 39) e caminhar na direção de um sistema de gover-

283
no que forme o cidadão, capaz de fazer parte na sua organização, “que é e
tem que ser democrática”.

Logo, a escola brasileira tem de adotar um sistema de disci-


plina, isto é, de organização e de governo, que procure desen-
volver aquelas virtudes fundamentais para uma democracia,
através de atividades e processos adequados (CASASANTA,
1931, p. 39).

Ao analisar a concepção de trabalho do professor, defendida por


Casasanta, evidencia-se um pensamento incompatível com a defesa da
modernização da sociedade via reforma do ensino. Quando ele se posiciona
contrário a uma educação tradicional, baseada em processos autoritários
de ensino e que empregam métodos pautados na memorização, a imagem
que ele tem de bom professor é a do vocacionado, do abnegado, enten-
dendo o trabalho do professor como sacerdócio que, do seu ponto de vista,
significa “tudo quanto em nossa personalidade nos atrai, nos chama, nos
arrasta para uma dada atividade. Vocação sinonimiza com convocação”
(CASASANTA, 1962, p. 7). Como se o professor estivesse atendendo a um
chamado divino.
No texto Três mestres de Minas, publicado depois de sua morte, os
elementos positivos que ele enaltece nos três professores aos quais ele
se refere no texto, é o altruísmo, o heroísmo, e a abnegação em relação à
remuneração e à doação de seu tempo à atividade de ensino, colocando-se
acima de sua vida particular.
Para homenagear os professores pelo dia que lhes é dedicado, ele
traz o exemplo de três docentes que marcaram sua vida, dentre os quais,
dois foram seus professores e a terceira foi uma professora que ele en-
controu durante uma de suas visitas a uma escola quando ele atuou como
inspetor da Instrução Pública.
Chama a atenção no seu texto a ênfase que ele dá ao fato de os
três professores, no exercício da atividade docente, passarem por cima dos
seus problemas pessoais e financeiros para se dedicarem ao trabalho com
os alunos, atribuindo a isso um caráter divino.

284
Apesar de fazer uma defesa de um ensino pautado no auto-
governo, ele considera como um aspecto positivo a adesão, por parte
dos professores, às ideias oriundas das autoridades governamentais,
fato que pode ser observado quando ele descreve a vida de um de seus
professores primários, que, no momento de mudança de governo, ao
assumir um cargo governamental, promove uma orientação pedagógica
diferente da que vinha sendo praticada.

O ensino, de começo, se desenvolvia à moda velha, com os


castigos de praxe, ficar de pé, ficar de joelhos, um coque, um
puxão de orelhas, uma reguada, um bôlo (sic) de palmatória.
De repente, saltamos de uma para outra fase, num verdadei-
ro passe de mágica (CASASANTA, 1963, p. 10).

Após a mudança do governo de Minas, na época em que ele ainda


era estudante, Mário Casasanta enaltece não só a aquisição de novos ma-
teriais didáticos para a escola, mas, principalmente, a mudança operada
nas práticas pedagógicas do seu professor, expressada assim em seu texto:
“O que, contudo me espanta até agora foi a radical transformação de nosso
mestre. Uma palavra de João Pinheiro1 representava para êle (sic) o que um
versículo do alcorão vale para um mulçumano” (CASASANTA, 1963, p. 11).
Isso leva a acreditar que a adesão a uma proposta pedagógica passava por
uma questão de fé, sem qualquer tipo de questionamento ou de oposição.
Ainda na linha da imagem do professor altruísta que, a despeito
das limitações materiais impostas ao seu trabalho e a sua condição de
vida consegue arrumar soluções paliativas para a falta de condições de
trabalho vivida em seu cotidiano escolar, foi visto como algo admirável por
Casasanta, que considerava uma característica positiva do “ser professor”.

O mestre não assinava jornais, porque o ordenado não lhe


dava para êsse luxo, mas os amigos emprestavam-lhos, e
êle no-los lia, palavra por palavra, telegrama por telegrama,
comentando o que se passava no Reino. Que entusiasmos!
Que veemência! Foi ao extremo de fazer passar de uma

1 João Pinheiro foi o presidente interino do estado de Minas Gerais no período de 10 de


fevereiro de 1890 a 20 de julho de 1890.

285
cidade paulista vizinha um telegrama a Guerra Junqueira, êle,
que tanto poupava o seu dinheiro para os pesados encargos
da família, e, o que é mais notável, aquêle homem pobre
arranjava modo de ser a criatura mais caridosa e esmoler
da pequena cidade, malgrado o magro ordenado (sic) (CASA-
SANTA, 1962, p. 11).

O que se depreende nessa afirmação é que não havia, por parte


de Mário Casasanta, estranhamento em um professor, que passava por
privações materiais, não receber uma remuneração que lhe garantisse um
mínimo de conforto. Isso era visto com naturalidade.
Também chama a atenção a admiração que ele manifesta ao fato
de, mesmo ganhando muito mal, o professor ainda usar do seu dinheiro
para solucionar os problemas da ausência de material didático necessário
para realização de seu trabalho. Pode-se dizer que essa imagem de pro-
fessor altruísta, vocacionado, dedicado ao trabalho, mesmo em condições
materiais adversas, ainda não foi superada nas atuais políticas educacio-
nais brasileira, pois há todo um discurso de valorização do trabalho do pro-
fessor sem que haja ações efetivas no sentido de melhoria das condições
de trabalho, de salário e de carreira.

Rede de sociabilidade

De acordo com Xavier, Matos e Lopes (2013), Mário Casasanta


teve uma participação ativa na construção e desenvolvimento de projetos
e reformas de ensino, e no exercício de diferentes cargos e funções que
viabilizaram a divulgação de suas ideias no cenário educacional no estado
de Minas Gerais e no país. Todas essas experiências permitiram sua inser-
ção em uma rede de sociabilidade a partir da qual conseguiu divulgar suas
ideias.
Dessa rede de sociabilidade, chama a atenção seus colegas de
turma na Faculdade de Direito, pessoas que, mais tarde, ocuparam impor-
tantes cargos dentro da estrutura governamental do país, por exemplo,
aqueles colegas que fizeram parte do grupo “Intelectuais da Rua Bahia”: a)
Gustavo Capanema, que foi Ministro da Educação e da Saúde na Era Vargas

286
(1930-1945), responsável pela Reforma do Sistema Educacional Brasilei-
ro, realizada nesse período; b) Abgar Ranaut, que também participou da
equipe do governante do estado de Minas Gerais, Antônio Carlos, no pe-
ríodo de elaboração e implantação da Reforma Francisco Campos e Mário
Casasanta, assumindo por duas vezes a secretaria de Estado da Educação
em Minas Gerais, no governo de Milton Campos, de 22 de dezembro de
1997 a 5 de setembro de 1950, e no governo de Bias Fortes, no período
de 31 de março de 1956 a 13 de março de 1959, quando convidou Mário
Casasanta para dirigir o Instituto de Educação de Minas Gerais; c) Milton
Campos – dentre várias atuações no campo da política, foi governador do
estado de Minas Gerais, em 1947; d) João Pinheiro Filho, que foi delegado
de polícia, prefeito de Poços de Caldas, deputado constituinte, vice-presi-
dente da Confederação das Indústrias, além de outros cargos vinculados
a entidades econômicas do país; e) e os poetas Carlos Drummond de
Andrade e João Alphonsus.
Também teve outros colegas que não participaram do grupo “Inte-
lectuais da Rua Bahia”, mas que ocuparam importantes cargos no governo
e na política nacional, como os casos de Francisco Negrão de Lima2 e de
Gabriel Passos3.
De acordo com Xavier, Matos e Lopes (2013), a participação da
imprensa e de seus contemporâneos foi fundamental para viabilizar e asse-
gurar as estratégias previstas no conjunto das mudanças programadas na
Reforma mineira. Seus colaboradores foram: Alda Lodi, Lucia Monteiro Casa-
santa, Bolivar Mineiro, José Bonifácio Lafaiete de Andrade e Abgar Renault.
O que pode ser observado é que os ideais de modernização da
sociedade mineira, defendidos por um grupo de intelectuais, que faziam
parte da burguesia mineira, contou com a participação desses intelectuais
para serem disseminados e também dessa rede de sociabilidade estabe-
lecida entre os intelectuais e as pessoas que ocupavam cargos de poder

2 Francisco Negrão de Lima – advogado, jornalista e deputado. Foi aliado de Getúlio Vargas,
chefe de gabinete do então Ministro da justiça, Francisco Campos, e também assumiu
o Ministério da Justiça. Foi ainda prefeito do Distrito Federal e governador do estado da
Guanabara, entre outras atividades vinculadas à política nacional.
3 Gabriel Passos – deputado por três mandatos: em 1945, constituinte, depois em 1954, e
reeleito em 1958. Foi secretário de Minas e Energia quando Tancredo Neves ocupou o gabinete
parlamentarista, no governo de Jânio Quadros.

287
na administração pública; pois, por meio dessa rede, criou-se condições
materiais para a divulgação, disseminação e implementação dos ideais
defendidos pela burguesia industrial nascente naquela época.

REFERÊNCIAS

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6, n. 53-55, jan./mar. 1931. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/hand-
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In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 7., 2013, Mato Grosso.
Anais [...]. Mato Grosso: Universidade Federal do Mato Grosso, 2013.

288
CAPÍTULO XXI

NOEMY SILVEIRA RUDOLFER

Eliane Gonçalves Costa Anderi1

Professora Noemy Silveira Rudolfer nasceu no início do século


XX, em 1902, em uma pequena cidade do interior do estado de São Paulo
chamada Santa Rosa do Viterbo, e faleceu no dia 16 de dezembro de 1980,
aos 78 anos de idade, na cidade de São Paulo. Era filha de um comerciante
do ramo farmacêutico de quem recebeu grande incentivo para morar, ainda
muito jovem, em São Paulo, algo considerado uma mentalidade aberta em
relação ao papel da mulher para os costumes da época.
Casou-se, em 1933, com o engenheiro civil Bruno Rudolfer que foi,
também, professor de estatística na Escola Livre de Sociologia e Política
–ELSP. Bruno veio a falecer no ano de 1942.
Em São Paulo, Noemy concluiu o Curso Normal na Escola Normal
Padre Anchieta, o que mais tarde se tornou o Instituto de Educação Padre
Anchieta. Aos 16 anos de idade, formou-se professora e, em 1919, com 17
anos, começou a lecionar, inicialmente, no Ensino Primário2 e, posterior-

1 Doutora em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/1318285101265074. E-mail: egcanderi@


gmail.com.
2 Na época, o Ensino Primário correspondia ao que hoje denominamos de anos iniciais do
Ensino Fundamental.

289
mente, nas Escolas Normais, quando começou também a trabalhar como
assistente do professor Lourenço Filho na cadeira de Psicologia Geral e de
Psicologia Educacional na Escola Normal da Praça da República, trabalho
que realizou durante sete anos, no período compreendido de 1921 a 1927,
conforme afirma Cruz (2008).
Em 1928, essa intelectual integrou um grupo de educadores brasi-
leiros que viajaram para os Estados Unidos, tendo como objetivo conhecer
e estudar a educação estadunidense, recebendo, para isso, uma bolsa de
estudos paga pela Associação Brasileira de Educação – ABE3 e pelo Inter-
national Institute of Education de Nova York, o que, segundo Cruz (2008, p.
77), era uma “prática pouco frequente para mulheres na época”.
Em 1930, retornou aos Estados Unidos para aprofundar seus estu-
dos com vistas à sua atuação na área de Orientação Educacional, o que lhe
exigiu se dedicar aos conhecimentos das áreas de Psicologia, Sociologia e
Higiene Mental. Matriculou-se na Universidade de Columbia, no Teacher’s
College, onde teve a oportunidade de estudar com alguns intelectuais fa-
mosos da Psicologia, como Thorndike, Dewey, Gates, Kilpatrick e outros.
Segundo Noemy, “[...] O orientador precisa estar apto para conhecer a
criança como um todo, como ela é afetada pelo ambiente, os seus proble-
mas emocionais e também os de saúde (RUDOLFER, 1945, p. 150).

A trajetória profissional

Pinheiro e Valente (2016) afirmam que, em sua trajetória profis-


sional, ela se dedicou a pesquisar sobre medidas psicológicas, medidas

3 A Associação Brasileira de Educação – ABE, criada em 1924, era uma associação da


sociedade civil, de adesão voluntária, que reunia professores e interessados em educação,
fossem jornalistas, políticos, escritores ou funcionários públicos. Fora do Rio de Janeiro, onde
localizava sua sede, a filiação à entidade se fazia por meio das seções regionais que gozavam
da mais ampla autonomia. A atuação da associação se dava por meio de encontros para
discutir diversos temas – educação, cursos, publicações, pesquisas – e, principalmente, por
meio de conferências ou congressos nacionais de educação que abordavam temas específicos.
Durante o período 1924-1935, serviu de centro de debates das reformas que ocorriam no
campo educacional, tanto no âmbito estadual quanto no federal. Disponível em: http://
cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/ASSOCIA%C3%87%C3%83O%20
BRASILEIRA%20DE%20EDUCA%C3%87%C3%83O%20(ABE).pdf. Acesso em: 28 jan. 2018.

290
do trabalho escolar, orientação escolar e profissional, ficando como uma
das responsáveis pela aplicação dos testes de verificação da maturidade
necessária à aprendizagem da técnica da leitura e da escrita, em grupos
escolares paulistas. Esses testes foram elaborados pelo prof. Lourenço
Filho e receberam o nome de “Testes ABC”.
Além das pesquisas sobre medidas educacionais, Rudolfer foi
responsável pela tradução, para o português, de importantes obras de
estudiosos de psicologia, os quais foram seus professores. Atividade que
contribuiu para que estudiosos brasileiros tivessem o acesso a esses estu-
dos, o que era escasso na época.
Ela foi responsável pela tradução das seguintes obras: A lei bioge-
nética e a escola Ativa, do psicólogo suíço Adolphe Ferrière, e também a
obra Educação para uma civilização em mudança, do autor estadunidense
William Heard Kilpatrik, além de também participar, na condição de autora,
da coleção Atualidades pedagógicas4.
Foi a primeira professora de Psicologia educacional no recém-criado
Instituto de Educação Caetano de Campos5, tendo o seu ingresso ocorrido
a partir da aprovação em concurso de provas e títulos, permitindo que ela
assumisse a cátedra de Psicologia Educacional do Instituto de Educação, o
qual foi, posteriormente, transferido para a então Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo – USP, onde Noemy atuou
por 16 anos na formação de professores, tendo sido a primeira professora
de Psicologia dessa Universidade.
Sua tese, para o acesso à cátedra, tratou da evolução da Psicologia
Educacional à luz da Psicologia Moderna, e, depois de essa obra passar
por uma revisão, foi publicada, inicialmente em 1938, e uma segunda
edição em 1961.

4 Atualidades Pedagógicas é uma publicação da Companhia Editora Nacional, fundada por


Fernando Azevedo, em 1931. A coleção ficou sobre o seu comando no período de 1931 a 1934.
Segundo Toledo (2006), ela foi desenvolvida a partir de um programa escolanovista de formação
de professores. “A Atualidades Pedagógicas tornou-se um espaço de difusão das concepções
educacionais do grupo de Azevedo, cujo programa político comum era a reforma da cultura pela
reforma da educação da escola” (CARVALHO, 2003 apud TOLEDO, 2007, p. 163).
5 Por meio do Decreto nº 16.392, de 2 de dezembro de 1946, da Assembleia Legislativa do
estado de São Paulo transformou a Escola Normal Caetano de Campos em Instituto de Educação
Caetano de Campos. Essa instituição tem, na sua história, a origem da Escola Normal em São
Paulo e no Brasil, a Escola Normal da Praça, que foi criada em 1846.

291
Na USP, ela ministrou aulas no curso de Pedagogia, que, por sinal, foi
o primeiro curso que incluiu a disciplina de Psicologia em seu currículo. Depois
lecionou Psicologia no curso de Filosofia. Na Escola Livre de Sociologia e Política
– ELSP, atuou no período compreendido entre 1935 a 1940, lecionando a disci-
plina Psicologia Social.
Junto com seu marido Bruno Rudolfer, participou da Sociedade de
Sociologia, criada em 1936, e presidida por Fernando de Azevedo.
Participou, como sócia fundadora (categoria A), em 1931, da funda-
ção do Instituto de Organização do Trabalho – Idort que, segundo afirmação
de Moraes (2007), ocorreu “sob o patronato da Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (Fiesp) e do jornal O Estado de S. Paulo” (p. 491), con-
tribuindo ativamente para as atividades e assumindo a cadeira de diretora.
Também participou da publicação da revista do Instituto: Revista de Organiza-
ção Cientifica – Iort, não só escrevendo artigos, mas também atuando como
“responsável pela Comissão de Redação e, junto com Victor da Silva Freire,
pela seção de Orientação Profissional” (MORAES, 2007, p. 491).
Ainda segundo Moraes (2007), o Idort tinha como horizonte
promover tipos ideais de trabalhadores e empresários, desenvolvendo
comportamentos, hábitos e atitudes padrões, independentemente do
contexto social, com a intenção de interferir no controle e na autonomia
do trabalhador sobre o seu trabalho. Tem-se então que o Idort exerce
um papel importante, segundo Saviani (2007), o de influenciar, de forma
decisiva, a formulação das políticas governamentais no período pós-
-Revolução de 1932, abalizando a reorganização educacional no que se
refere ao Ensino Profissional.
Rudolfer também atuou, por cinco meses, no Serviço de Psicologia
aplicada da Diretoria-Geral do Ensino do estado de São Paulo, tendo sido
nomeada por Lourenço Filho, quando este ocupou o cargo de diretor-geral
do Ensino do estado de São Paulo, em 1931. Retornou à Diretoria quando
Azevedo passou a ocupar a direção da Diretoria-Geral do Ensino do estado
de São Paulo e a chamou de volta para ocupar a mesma função.
No período em que atuou na gestão de Fernando de Azevedo, à
frente da Diretoria-Geral de Ensino, Noemy participou da comissão que

292
redigiu a versão final do Código de Educação de São Paulo, que, segundo
Moraes (2007, p. 249), “no auge da reforma paulista, entre várias de-
terminações, decidiu que o Serviço de Psicologia Aplicada voltaria a ser
anexo ao Instituto Pedagógico”, depois, por meio de decretos, esse insti-
tuto teve seu nome alterado para Instituto de Educação e, mais tarde, foi
incorporado à USP.
Também, foi indicada, em 1935, por Lourenço Filho, para constituir
a Comissão de Estudos para a elaboração do Plano Nacional de Educação
do Ministério da Educação e Saúde Pública.
Durante sua atuação como Catedrática de Psicologia Educacional,
manteve contatos frequentes e intercâmbios de conhecimentos com os
especialistas da Missão Cultural Francesa, no sentido de colaborar para a
criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, além de Cate-
dráticos brasileiros que compunham a Congregação.
Na década de 1940, aceitou convites para eventos culturais do
Ministério de Relações Exteriores em vários países da América Latina, es-
tabelecendo também contatos pessoais com líderes da ciência psicológica,
em visita a diversos países da Europa.
Além da sua atuação na USP, no Idort e na Escola Livre de So-
ciologia e Política, estendeu suas atividades a outras regiões do país e,
também, do exterior. Nos anos 1950, dirigiu serviços de orientação edu-
cacional junto ao Instituto de Seleção e Orientação Profissional – Isop6, da
Fundação Getúlio Vargas e de outras importantes instituições de ensino,
no Rio de aneiro. Na mesma época, passou a atuar na área de Psicologia
Clínica como psicoterapeuta, fora das atividades da universidade, indo e
vindo de São Paulo para o Rio de Janeiro várias vezes durante a semana,
sem, contudo, deixar a sua cadeira na USP. Além disso, fez parte da Academia
Paulista de Psicologia.

6 Criado em 8 de agosto de 1947, com o propósito de proporcionar ao ensino, à administração,


à indústria e ao comércio os mais modernos e eficazes recursos de psicologia aplicada. Em
1981, sua denominação mudou para Instituto Superior de Estudos e Pesquisas Psicossociais,
mantendo-se, contudo, a sigla Isop. Foi extinto em 29 de maio de 1990. Disponível em: http://
bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8874. Acesso em: 28 jan. 2018.

293
No Rio de Janeiro, contribuiu efetivamente para o desenvolvi-
mento da psicanálise, tanto na qualidade de analista pessoal como na
de analista didata7, formando vários seguidores nessa área, talvez os
primeiros do país.

A filiação acadêmico-política

Para Moraes (2007), Noemy pode ser considerada uma pessoa


chave no processo de renovação educacional pelo qual passava o país no
período de 1930-1940, pois ela teve um papel importante na elevação da
Psicologia como disciplina do Instituto de Educação em São Paulo, sendo
que “a Psicologia, acompanhada da Orientação Profissional, oferecia sub-
sídios científicos para fortalecer uma sociedade que poderia ser adjetivada
de autoritária” (MORAES, 2007, p. 13).
Na medida em que contribuiu para divulgar a disciplina, tornou-se
uma importante agente na consolidação do processo de modernização
conservadora; pois, fazendo uso do conhecimento da administração cien-
tífica, encontrou amparo no discurso científico para a defesa da disciplina e
do controle social do trabalhador.
Para Nagle (2001), a entrada dos especialistas na educação trazia
uma integração entre o “entusiasmo pela educação” com o “otimismo
pedagógico” pelo escolanovismo, e isso contribuiu para criar uma expec-
tativa e uma crença de que seria possível reformar a sociedade por meio
da reforma do homem e, nesse sentido, a escola desempenharia um papel
fundamental e insubstituível, servindo de um instrumento de “aceleração
histórica” (NAGLE, 2001, p. 134).
Todavia, o escolanovismo, segundo Moraes (2007), recusava tanto
o conteúdo político quanto a formação crítica que visasse à transformação
social. Apesar de incorporar elementos do entusiasmo e do otimismo pela
educação, manteve os padrões tradicionais de ensino e cultura, princi-
palmente no que se refere à separação entre a elite e o povo, e seguiu

7 A análise didática é uma condição necessária para formação do psicanalista clínico, pois um
sujeito não poderia escutar o desejo recalcado de outro sujeito, se ele próprio não passasse pela
experiência da análise. Disponível em: http://www.psicanalistaemsaopaulo.com.br/didata_10.
html. Acesso em: 28 jan. 2018.

294
cumprindo o papel, por um lado, de formar o trabalhador brasileiro como
elemento útil para a produção e, por outro, de formar uma elite consciente
do seu papel de conduzir o Brasil rumo ao progresso. Para isso, os testes
psicológicos destinados à classificação, organização e seleção dos traba-
lhadores foram aplicados em algumas propostas escolanovistas dos anos
1930, conforme se pode observar na atuação de Noemy.

A presença de um verniz técnico-científico encobria as


relações de exploração capitalista da época e forjava uma
modernização conservadora em sua essência, com uma
roupagem liberal, sem questionar a distribuição de renda e
as relações de poder. Tanto a Psicologia como a Orientação
Profissional reforçavam a necessidade de uma elite escla-
recida para cumprir a missão de levar o Brasil ao progresso,
traduzida na assertiva: “the rightman in the right place”.8A
aplicação e desenvolvimento dos testes de inteligências e
outros estudos (alguns sobre a população da capital paulis-
ta), realizados pela professora, caminharam ao encontro da
constituição de um processo de seleção/classificação dos
indivíduos que buscava materializar a ideia de uma elite
que conduziria o progresso nacional (MORAES, 2007, p.
316-317).

Nos estudos desenvolvidos por Moraes (2007) sobre a atuação de


Noemy, é possível constatar os avanços que a psicologia teve ao se tornar
um campo científico que se constitui em um importante espaço no interior
da educação que acabou exercendo grande influência na Pedagogia, no que
se refere a critérios normativos de organização e classificação dos alunos
e do espaço escolar. Esse movimento de separar, classificar e selecionar
estudantes dentro da escola tinha como horizonte a ampliação do controle
normativo para o mercado de trabalho. O que se observa então é que seus
estudos e o seu pioneirismo colaboraram, de forma decisiva, para o projeto
de dominação do trabalhador.
Perez-Ramos (2005) constata que ela muda os rumos de suas
investigações, saindo de uma pesquisa de natureza psicológica, dirigindo-
-as, principalmente, para a Psicofisiologia, voltada para as áreas de maior
interesse educacional com foco na aferição de instrumentos psicológicos e

8 O homem certo no lugar certo.

295
estudo do perfil do alunado. Isso foi observado por Warde (2016), quando
afirmou que a escola e a fábrica foi para ela, a partir da segunda metade
dos anos 1920, os ambientes profissionais nos quais e para os quais de-
senvolveu os seus estudos e experimentos.
Foi na condição de pessoa responsável pelo trabalho à frente do
serviço de Psicologia Aplicada da Diretoria de Ensino do Estado de São
Paulo que ela estabeleceu uma íntima relação dessa Diretoria com a
Companhia de Estrada de Ferro Sorocabana e, também, com o Idort que,
segundo Warde (2016), em um relatório que elaborou em 1932, ela própria
faz referência os mencionando como sendo “instituições sociais com as
quais o Serviço teria mantido colaboração no ano anterior” (WARDE, 2016,
p. 128).

Tudo indica que Noemy da Silveira, assim como seu mentor e


agora chefe Lourenço Filho, via com bons olhos a cooperação
entre o setor público e o privado. Talvez não qualquer colabo-
ração, não qualquer intercâmbio, mas aqueles que, à moda
norte-americana, implicavam subsídios do estado ao capital
por meio do incremento e proteção à ciência e à tecnologia;
a cujo benefício, o capital responderia socialmente gerando
riqueza e postos de trabalho, e dando acesso ao consumo
(WARDE, 2016, p. 129).

Para Warde (2016), Noemy esperava que os princípios do taylo-


rismo servissem como um caminho para ensinar as crianças a dar um
rumo aos seus interesses dispersos, a canalizar suas energias, a centrar
suas vontades de modo a produzir os efeitos desejados e isso se daria por
meio de prêmios, como modo de evitar a fadiga e o desperdício que, na sua
perspectiva, era uma maneira de proteger os indivíduos e a sociedade do
pior dos males que, para ela, era a inaptidão social.
Nessa linha de pensamento, Noemy entendia que o trabalho da
Orientação Profissional manteria uma relação estreita com o equilíbrio
social e a manutenção da ordem política; pois, no seu ponto de vista, ao
explorar o melhor dos valores humanos, conseguiria expandir a produtivi-
dade industrial. O que permitiria que o campo da Orientação Profissional
se ampliasse e atendesse a todas as classes sociais, no sentido de guiar

296
os indivíduos para a profissão que se adaptasse às suas aptidões; seria o
fato de que se desenvolveria o amor pelo trabalho e, consequentemente,
obter-se-ia mais rendimento e maior economia, pois, para ela, isso é o que

Evita o desperdício de forças preciosas em tentativas infrutí-


feras; previne a instabilidade operária e os acidentes de tra-
balho para o profissional e para aqueles que são alcançados
pela sua ação. Cuida de guiar a juventude ao sair das escolas,
conduzindo-a para atividades que promovam a equação de
suas tendências profissionais – esta é sua obra fundamental
(RUDOLFER, 1929, p. 87 apud MORAES, 2007, p. 289).

A forma como Noemy colocava as questões ligadas ao desconten-


tamento que os trabalhadores demonstravam nas relações de trabalho
são reduzidas a uma questão de inaptidão profissional, ou seja, o fato de
o trabalhador se rebelar no trabalho é resultado da falta de orientação
profissional.
Sendo assim, o trabalho de Orientação Profissional se apresentaria
como resposta; pois, sob o discurso do conhecimento científico referen-
dado por testes, garantiria, em tese, que o trabalhador se convenceria de
que as questões ligadas à precarização das suas condições de vida e de
trabalho são um problema pessoal, uma questão de sua inaptidão. Isso
então contribuiu para formar no trabalhador, desde a infância, uma cons-
ciência de que ele é pobre porque é inábil, o que de certa forma serviu de
estratégia para retirar das fábricas as discussões políticas ligadas à luta
de classe nas sociedades capitalistas. Vale lembrar que, naquela época, o
Brasil vivia uma efervescência do movimento operário.

As redes de sociabilidade de Noemy

• Lourenço Filho: de quem Noemy foi assistente no laboratório


de Psicologia, o que lhe possibilitou ampliar sua atuação no
Instituto de Educação; na USP – Faculdade de Filosofia, Ciên-
cias e Letras e na Escola Livre de Sociologia e Política; no Idort;
na Diretoria de Ensino de São Paulo e no Serviço de Psicologia.
Além de ser professor, chefe do laboratório de Psicologia, ele

297
também foi diretor de Ensino no governo do estado de São
Paulo, e também participou da criação do Idort.
• Fernando de Azevedo: foi uma pessoa muito presente na vida
de Noemy, como colega de trabalho no Instituto de Educação e
depois na USP, tanto na Faculdade de Filosofia, Ciências e Le-
tras quanto na Escola Livre de Sociologia e Política, e também
na Diretoria de Ensino de São Paulo.
• Afrânio Peixoto: também foi um signatário; diretor da Instru-
ção Pública do Distrito Federal; e fez parte do Grupo do jornal
O Estado de S. Paulo.
• Sampaio Dória: foi diretor-geral da Instrução Pública no Go-
verno do estado de São Paulo, no período 1908 a 1920; atuou
no laboratório de Psicologia Aplicada do Instituto de Educação
Caetano de Campos; e também participou da criação da USP.
• Victor da Silva Freire: atuou junto com Noemy na Revista de
Organização Científica do Idort. De acordo com Costa (2011),
ele participou da administração da cidade de São Paulo, atuan-
do como coengenheiro no governo de Campos Salles até o ano
de 1926. Ocupou o cargo de vice-diretor da Escola Politécnica
de São Paulo, onde Noemy e seu marido também lecionaram.
• Roberto Simonsem: também participou da criação do Idort e
da Revista do Idort e compôs o grupo que atuou na criação do
Curso da ELSP da USP. Chefiou a Diretoria-Geral da Prefeitura
de Santos e depois fundou a empresa Companhia Construtora
de Santos, que passou a realizar obras de grande porte nessa
cidade, inclusive no setor de planejamento urbano. Foi respon-
sável pela condução do processo de adaptação do parque in-
dustrial paulista à economia de guerra, além de outras funções
importantes. Foi eleito deputado Constituinte, representando
as entidades sindicais do empresariado e, em 1934, obteve
novo mandato como deputado classista. Em 1942, foi nomea-
do para o conselho consultivo da Coordenação de Mobilização
Econômica, órgão federal que desempenhou importante papel

298
na condução da economia brasileira no contexto da Segunda
Guerra Mundial. Em 1932, assumiu papel destacado na direção
do Movimento Constitucionalista de São Paulo, deflagrado
contra o governo federal.
• Armando Sales de Oliveira: foi interventor de São Paulo,
atuando junto com Noemy na criação do Idort; compôs do
Grupo do jornal O Estado de S. Paulo, e participou do grupo
que criou a ELSP da USP. Também fez parte da deflagração
da Revolução Constitucionalista, contra o governo de Getúlio
Vargas. Participou ativamente da eleição para a Assembleia
Nacional Constituinte. Foi interventor no estado de São Paulo
no governo Vargas, e durante sua gestão, a USP foi criada. Em
1937, disputou a presidência da República, com o apoio do
governador gaúcho Flores da Cunha, em aberto confronto com
Vargas, e também de grupos oposicionistas de outros estados.
Com o golpe de 1937, exilou-se na França, Estados Unidos e
depois se fixou na Argentina. Anistiado, volta ao Brasil, em abril
de 1945. Fez parte da fundação e foi membro da comissão
diretora da União Democrática Nacional – UDN, partido que
reunia adversários do Estado Novo.
• Julio de Mesquita Filho: (cunhado de Armando) foi um dos
signatários, participou da criação do Idort, compôs Grupo do
jornal O Estado de S. Paulo e da criação da USP.
• Roberto Mange: suíço, formado em engenharia pela Escola
Politécnica de Zurique em 1910. Veio para o Brasil em 1913
para lecionar na Escola Politécnica. Foi responsável pela cria-
ção do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, sendo também
seu superintendente. Fez um trabalho de Seleção e Orientação
dos alunos matriculados no curso de Mecânico, o que veio con-
tribuir, mais tarde, para a consolidação da área de Orientação
Vocacional no Brasil. Utilizou o teste Giese (identi­ficação da
aptidão profissional) para selecionar alunos para o curso de
Mecânica Prática. Com Ítalo Bologna, organizou a sede central

299
da Estrada de Ferro Sorocabana com o trabalho de Orientação
Vocacional. Fundou o Idort, com implantação de serviços de
Psicologia Aplicada ao trabalho, com a colaboração de Aniela
Ginsberg e Betti Katzenstein. Participou da elaboração e di-
reção do Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profi­ssional
de São Paulo – Cfesp, tendo oportunidade de implantar a
Instrução Racional, cujo principal elemento era a Psicotécni-
ca. Juntamente com Oswaldo de Barros Santos, colocou em
funcionamento, em 1937, o Gabinete de Psicotécnica da Es-
cola Técnica Getúlio Vargas. Fundou, juntamente com Roberto
Simosen e Euvaldo Lodi, em 1940 e 1942, o Serviço Nacional
de Aprendizagem Industrial – Senaim, sendo o seu primeiro
diretor. Sua participação, no planejamento do Senai estava
alinhada com a proposta de implantação da Instrução Racional
(psicotécnica) para a formação de trabalhadores industriais de
outros setores.

Sobre a obra: Através de Revistas e Jornais – o primeiro serviço de


Orientação Profissional e educacional no Brasil

O texto de Noemy, objeto de análise neste estudo, foi publicado no


ano de 1945, na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos – Rbep, em seu
volume 5, nas páginas de número 150 a 158, seção “Vida Educacional” e
subseção “Através de Revistas e Jornais”.
Catani e Bastos (1997), na apresentação do livro Educação em Re-
vista, apontam a importância do emprego da imprensa educacional como
um corpus documental de vastas dimensões, na medida em que ela pode
ser considerada um testemunho dos métodos e concepções pedagógicas
de uma época e também uma ideologia moral, política e social de um grupo
profissional; portanto, torna-se um excelente observatório, uma fotografia
da ideologia que preside.
Nesse sentido, considera-se importante trazer para este estudo
o contexto histórico da revista enquanto imprenso educacional que
apresenta em suas páginas elementos que ajudam a compreender os

300
motivos de sua criação, a forma como foi organizada, para qual tipo
de público se destinava, que pessoas compunham seu corpo editorial,
qual a periodicidade e a sua tiragem. Todos esses elementos auxiliam
na compressão das ideias defendidas nos textos veiculados pela revista
e de como essas ideias eram disseminadas.
A história da Rbep tem seu início no ano de 1944, quando foi criada
como uma publicação do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos sob
a liderança de Lourenço Filho. Apresentava-se como um órgão oficial de
divulgação da política educacional do Estado Novo, conforme afirmação
feita por Capanema, então Ministro da Educação Cultura e Saúde. No texto
de apresentação do primeiro volume da revista, lê-se:

[...] Seu papel será reunir e divulgar, pôr em equação e em


discussão não apenas os problemas gerais da pedagogia,
mas, sobretudo os problemas pedagógicos especiais que se
deparam na vida educacional de nosso País. O Ministério da
Educação não pode ser somente uma agência burocrática,
um aparelho de enumeração ou registro das instituições e
atividades da educação nacional. Por outro lado, não seria
mais admissível que as nossas preocupações teóricas se
limitassem à divulgação de ideias pedagógicas gerais,
tornadas lugares-comuns na presente fase da história da
educação nova no mundo, distanciados que estamos das
primeiras tentativas de renovação das práticas pedagó-
gicas e experiências [...] transposta que se acha a fase de
discussão dos princípios gerais da filosofia e da ciência da
educação [...] e de fixação das bases dos métodos ativos
[...].Outro objetivo não tem o Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos senão este de ser o centro nacional dessas
observações e pesquisas. E a publicação que agora se inicia,
a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos se apresenta
como um instrumento de indagação e divulgação cientí-
fica, como um órgão de publicidade dos estudos originais
brasileiros de biologia, psicologia e sociologia educacionais
e também das conclusões da experiência pedagógica
dos que, no terreno da aplicação, trabalham e lutam pelo
aperfeiçoamento da vida escolar de nosso País. Rio de
Janeiro, 11 de julho de 1944. Gustavo Capanema Ministro
da Educação (CAPANEMA, 2005, p. 19).

301
Ainda segundo Silva (2008), o perfil ideológico da revista estava
definido como uma publicação declaradamente antimarxista e anti o
ecletismo, ou seja, a linha editorial se colocava contra a diversidade de
formas de conduta ou de opiniões. Esse perfil foi apresentado ao Ministro
da Educação por meio de uma relação de providências que deveriam ser
tomadas nas diversas áreas do governo, incluindo a área da educação. O
documento com a relação de providências sugeridas foi entregue por Alceu
Amoroso Lima. As recomendações foram apresentadas em forma de uma
lista contendo 19 tópicos organizados por ordem alfabética (da letra “a”
até a letra “t”), sendo que os itens constantes nas letras d, e, f eram os que
mais diziam respeito à linha editorial da Rbep:

[...] d) publicação de uma revista nacional de educação na


base destes princípios, com boa colaboração etc.; e rigorosa
exclusão do ecletismo pedagógico e muito menos do bolche-
vismo etc.; e) publicação de pequenas ou grandes doutrinas
antimarxistas e de documentação anti-soviética (sic); f) idem
de obras sadias, construtivas, na base dos princípios de
educação no Brasil (LIMA apud SILVA, 2008, p. 34).

Logo que foi lançada, em 1944, teve periodicidade mensal (1944 a


1946), de 1948 a setembro de 1969 passou a ser trimestral e, a partir de
outubro de 1969 até os dias atuais, sua periodicidade é quadrimestral.
A publicação estava organizada da seguinte forma nas seguintes
seções: Apresentação; Editorial; Ideias e Debates; Documentação; Vida
Educacional com cinco subseções – Educação Brasileira, Informação dos
estados, Informação do estrangeiro, Bibliografia e Através de Revistas e
Jornais; Atos oficiais.
O volume V da Rbep, que apresenta o texto da Noemy, foi todo
dedicado a discussão da Orientação Profissional e Educacional.
A seção “Vida Educacional”, onde estava o texto de Noemy, é cons-
tituída de cinco subseções: A Educação Brasileira; Informação dos Estados;
Informação do Estrangeiro; Bibliografia; Através de Revistas e Jornais. O
conteúdo dessa seção, em sua maioria, continha notícias sobre a Educação
no país e as atividades do governo nessa área. Já a subseção “Através de

302
Revistas e Jornais” continha, a partir de publicações de grande circulação
em diferentes Estados, principalmente jornais, textos sobre temáticas
educacionais em diferentes localidades do país. Na subseção deste volume
V, havia dois textos, o de Noemy e o de Aracy Muniz Freire, com o título
“Aspectos da orientação educacional nos Estados Unidos”.
O texto de Noemy está organizado em duas partes: na primeira,
“Aspectos da Orientação Educacional nos Estados Unidos”, em que ela
faz um relato de sua experiência formativa nos Estados Unidos; e, a se-
gunda parte, com o título “O primeiro serviço de orientação profissional
e educacional no Brasil”, está subdividida em seis outros subtítulos: 1)
“A orientação profissional e educacional, decorrente da complexidade
social”; 2) “O primeiro serviço de orientação profissional e educacional do
Brasil”; 3) “Do conhecimento do indivíduo a orientar na escolha da profis-
são ou da escola futura”; 4) “Do conhecimento do mundo das profissões
e das escolas por parte do indivíduo a orientar”; 5) “Do aconselhamento”;
6) “Colocação dos orientados e fiscalização dos colocados para reajusta-
mento”; e, por último, ela apresenta um Resumo.
Na primeira parte do texto, Noemy faz um relato de sua expe-
riência formativa nos Estados Unidos e, a partir da análise do texto,
foram identificados três momentos no relato. No primeiro, ela trata dos
“cursos”, ou seja, a parte teórica de sua formação. Foram esses cursos:
Psicologia (educacional, infantil e psicologia da adolescência), Sociologia
e Higiene Mental. Todos voltados para a compreensão do ser humano em
diferentes dimensões, como um conhecimento essencial para o exercício
da Orientação Profissional e Educacional.
No segundo momento do relato, ela narra sua experiência nas es-
colas situadas nos arredores de Chicago, tendo a oportunidade de ter con-
tato com três escolas, sendo que cada uma apresentava formas distintas
de organizar a Orientação Educacional e Profissional. Durante a leitura do
relato feito por ela, foi possível constar a forma elogiosa com que Noemy
trata a organização do trabalho que vivenciou nas escolas estadunidenses.
O modo como fez seu relato leva a inferir que o curso de formação
de Orientador Educacional e Profissional era então constituído dessas

303
duas etapas; todavia ela recebeu mais uma bolsa, agora do governo es-
tadunidense, para conhecer outras experiências pelo país e, nessa etapa,
receberia uma orientação individual de uma educadora do país, a quem
ela teceu muitos elogios.
Isso lhe permitiu visitar 19 estados do país, porém, nessa experi-
ência, ela se referiu ao trabalho da Orientação Educacional e Profissional
não só nas instituições escolares, mas também em estabelecimentos
não escolares que lidavam com “menores em esforço de guerra” e “de-
linquentes”.
Observa-se que o trabalho da Orientação Educacional centrava
esforços em inculcar valores cívicos, obediência às leis, à disciplina e ao
ajustamento dos indivíduos ao contexto de guerra, e também no fato de o
indivíduo ser útil para a sociedade como elemento primordial do trabalho.
O trabalho do Orientador Educacional com esse grupo de pessoas
era mais voltado para o ajustamento dos jovens às necessidades da
“sociedade” que, naquele momento de guerra, deveria minimizar os seus
efeitos sobre as crianças, filhos de mulheres que tiveram que ingressar
no mercado de trabalho por força da guerra e dos jovens que voltavam
da guerra.
Nessa parte do texto, Noemy deixa transparecer a defesa do mode-
lo adotado nos Estados Unidos como benéfico para a sociedade brasileira,
sem, contudo, apresentar qualquer ponderação em relação às diferenças
sociais, econômicas e culturais entre os países.
Ainda na segunda parte do texto, ela apresentou a justificativa da
necessidade da Orientação Profissional e Educacional no Brasil e o seu
conceito. Também detalha a forma como essa orientação estava sendo
organizada no Brasil e como ocorreu a atuação do orientador profissional e
educacional nas escolas brasileiras.
O que se observa é que a trajetória profissional e intelectual de No-
emy está relacionada ao ideário defendido no Manifesto dos Pioneiros que,
de acordo com afirmação de Moraes (2007), almejava uma modernização
tendo como base uma sociedade controlada e administrada por uma elite
esclarecida e formada pela escola, que, apoiando-se em uma psicobiologia
como ferramenta, auxiliaria na classificação e ordenação das classes e

304
séries e, nessa perspectiva, a elite seria então formada pela eleição dos
mais capazes intelectualmente.
A psicologia é apresentada como ferramenta fundamental para
operar essa transformação, fosse na escola ou no serviço de Orientação
Profissional. Afinal, “à coletividade interessa pôr o homem no lugar devido,
para garantia do equilíbrio social [...] busca-se hoje mais orientar a pessoa
na sua vida total que apenas na profissão. Em outras palavras: [...] a pessoa
deve sentir-se feliz, da qual a felicidade é mera parcela” (MORAES, 2007,
p. 305).

REFERÊNCIAS

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306
CAPÍTULO XXII

PASCHOAL LEMME

Luciana da Silva Martins1

Paschoal Lemme (1904-1997), um professor que entre tantas


outras atividades técnicas, inseridas ao longo de seus 93 anos vividos,
foge à caracterização homogeneizadora e se constrói enquanto sujeito,
característico de suas próprias determinações e formação cultural que o
torna peculiar diante das escolhas realizadas. Não autárquico e desvincu-
lado de seu tempo histórico, político e social, mas um ser questionador,
atuante, complexo, controverso e sensível diante das situações políticas,
econômicas e sociais, pelas quais passava o Brasil no início do século XX.
Busca-se neste capítulo, compreender Paschoal Lemme, como
um signatário do Manifesto da Escola Nova, de 1932, fundamentando-
-se na categoria que, segundo Vieira (2017), consiste em: “autores que
realizam análises de eventos, trajetórias ou movimentos intelectuais que
se destacaram [...] considerando os domínios disciplinares das Ciências
Sociais, da História e da Educação”. Compreendendo-o como sujeito in-
serido em um contexto imbuído de mudanças estruturais, na sua função
de professor, servidor público e incansável militante pela escola pública,

1 Mestre em Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/8569095416031261. E-mail: plucianamartins@


hotmail.com.

307
desempenhando suas atividades cotidianas. Os documentos para esta
análise são as referências do próprio Paschoal Lemme, nas publicações
de suas Memórias; recorre-se para esta interpretação os documentos
publicados por Lemme (2004a, 2004b, 2004c, 2004d, 2004e) além de
obras de Brandão e outros acervos publicados pelo O Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep.
Paschoal Lemme, ao escrever suas ¹memórias, fez de forma intui-
tiva, ao intentar que poderia interessar a futuros autores atentos para as
particularidades de vida deste grande contribuinte da história da educação
brasileira. Acertou-o, ao acreditar que suas memórias poderiam ser de
utilidade para possíveis pesquisadores que interessassem para certas
circunstâncias particulares que caracterizaram o desenvolvimento do
processo de modernização do ensino no Brasil, do qual Lemme foi em suas
próprias palavras “[...] testemunha direta ou até modesto protagonista”
(LEMME, 2004, p. 58).
Compreender o processo a que Lemme estava inserido, inclusa a
sua participação como sujeito histórico de seu tempo, e utilizar para esta
análise o seu ponto de vista em relação a esta participação é um desafio.
Entretanto, um desafio que nos possibilita abarcar sua visão e sua narra-
tiva de maneira reflexiva, visto que suas memórias foram publicadas após
mais de 50 anos dos fatos ocorridos, sendo estas organizadas nas décadas
de 1980 e 1990.
Segundo Maurice Halbwachs (2004), as lembranças individuais
estão interligadas a interferências coletivas de contextos já vividos que
representam nossas lembranças, assim, uma memória nunca é individual,
mas, sim, coletiva; o fato memorizado difere de um ocorrido do momento,
pois o indivíduo em si, sem nenhuma entidade social que se recorda, pode
lembrar efetivamente, senão da sociedade, pela presença ou a evocação
e, nesse sentido, pela assistência dos outros ou de suas obras (HALBWA-
CHS, 2004, p. 24). Ao partir da compreensão de Habwachs em relação à
memória, o olhar de Lemme em referência a sua experiência, aquilo que
representou para o autor no momento vivido, isto é, o Brasil no início do
século XX, e toda a sua configuração social, econômica e política inserida

308
nesse cenário, nos propiciará uma percepção histórica de Paschoal Lemme
que permitirá configurar nossa própria perspectiva de sua biografia.
Houaiss (1998 apud LEMME, 2004a) faz referência a Paschoal
Lemme como signatário do Movimento Escola Nova, ao explicitar a sua
posição diferenciada em relação a seus colegas. Também, o caracteriza
como um lúcido na compreensão quanto às especulações com a edu-
cação, os métodos de ensino e todos os equipamentos para justificar e
explicar as análises físicas e psíquicas. Além disso, afirma que Paschoal
Lemme compreendia que os artifícios usados pelos renovadores serviam
de ilusões tecnológicas, e alimentavam a ilusão de resolverem o chamado
“problema educacional”. No entanto, “Paschoal Lemme nunca foi um iluso
a tal respeito. Mas nunca abandonou a luta. Daí a relevância de sua vida”
(HOUAISS, 1988 apud LEMME, 2004a, p. 20-21).
Em prefácio ao livro de Memórias de Paschoal Lemme, Houaiss,
descreve-o com as seguintes características:

Paschoal Lemme era missão, paixão, devoção: cria fun-


damente que, em última análise, o homem é um ser da
cultura, dessa coisa que só ele, homem, inventou, a saber, a
capacidade/necessidade/fatalidade de marcar/transformar/
modificar a natureza, para criar para si mesmo um universo
em que ele, homem, possa ser cada vez mais homem mesmo
(HOUAISS, 1988 apud LEMME, 2004a, p. 19).

Pesquisar o contexto de atividades desenvolvidas, em que atuava


este signatário quando assinou o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
é o problema deste capítulo. Problema este que é respondido pelo próprio
Paschoal Lemme (2004b) em Memórias IV, quando ressalta que trabalha-
va como secretário de Fernando de Azevedo, compondo uma equipe de
profissionais preocupados com o processo educativo e de ensino. Neste
contexto, já participante e associado da Associação Brasileira de Educação
– ABE, desde 1926, constituía-se como servidor público e atuava como
secretário, e, depois, também assumiu a função de organizar o curso de
adultos. No decorrer da organização do Manifesto, foi o responsável por
colher as assinaturas dos signatários no documento.

309
Segundo Zaia Brandão (2010, p. 17), Paschoal Lemme, como
signatário dos pioneiros da Educação Nova, ao elaborar e publicar suas
memórias, fornece uma ajuda para enxergar e compreender as contradi-
ções que atravessaram o trabalho daquela geração de educadores, res-
ponsáveis, mesmo aferidos de diversos elogios e críticas, pelo primeiro e
vigoroso esforço de construção de um sistema público de ensino em que o
destaque foi a elaboração de um Plano Nacional de Educação.

Um professor da escola pública

Professor de escola pública, Paschoal Lemme acreditava ser o ma-


gistério uma missão, sempre se preocupando com os problemas sociais.
Envolveu-se, diretamente, com as questões políticas da área educacional,
a partir de um convite feito para trabalhar como secretário de Jonathas
Serrano, então secretário de Fernando de Azevedo, promotor da Reforma
Educacional no Distrito Federal, nos anos 1928-1930.
Caracterizou-se por fazer parte de professores atuantes, envolvidos
e preocupados com a educação. Um marco em seu envolvimento quanto
à área de política educacional foi em 1926, com a sua filiação à ABE, por
concordar com os princípios gerais defendidos pelos educadores que
pretendiam renovar o cenário escolar brasileiro. Porém, após conhecer a
filosofia marxista, caracterizou-se pelo constante discordar dos caminhos
percorridos pelos colegas, a fim de promover tão almejada mudança, apesar
disso, sem abandonar a causa, tornou-se uma voz solitária entre os seus.
Lemme, (2004c, p. 26) afirma que se dedicou aos problemas
educacionais e ao ensino durante 60 anos, ou seja, de 1924, quando foi
nomeado vice-diretor da Escola Visconde de Mauá, antiga escola que
estudou e onde conheceu seu professor Téofilo Moreira da Costa, que lhe
inspirou a missão de educador, até 1984, quando cedeu uma entrevista a
Zaia Brandão (2010) quando ela fez a sua tese de doutorado, tendo como
objeto da pesquisa, Paschoal Lemme. No entanto, acrescenta-se a esta
data, um período maior, pois Paschoal Lemme faleceu em 1997, ainda
produzindo suas memórias. Assim, necessita-se ressaltar, que este autor
se dedicou aos problemas educacionais por mais de 70 anos.

310
Nesse período, Paschoal Lemme em seus discursos, afirma que
enfrentou grandes desafios e, como resultado, conquistou grandes vitó-
rias. Processou-se um cenário de contradições ideológicas, movidas por
justaposição de práticas que se movimentavam em relação ao pensamento
reformista e, ao mesmo tempo, contradiziam-se, separando-o, em função
de ideais marxistas.
Nessa trajetória carregada de originalidade, fez-se daquele que se
julgava o menor dentre os grandes “cardeais da educação”, um signatário
do Manifesto da Escola Nova que, segundo o próprio Lemme, “assumira um
caminho próprio que me distinguia ou separava daquela corrente de pensa-
mento reformista, ou mais precisamente, liberal democrática em matéria de
educação [...]” (LEMME, 2004c, p. 24 apud BRANDÃO, 2010, p. 13).
Lemme também assumiu que titubeou ao aceitar o convite de
Jonathas Serrano para trabalhar na Diretoria de Instrução Pública, pois
se via como um professor, um soldado raso junto à classificação de sua
participação nas mudanças da educação, e se confirma, desse modo, que
até então seus interesses eram pautados na sala de aula e na dinâmica que
este meio compreende, sem maiores propensões.

Vim para casa meio tonto, mas abalado pela franqueza da


conversa com Jônatas Serrano. Discuti o problema com
Carolina. Hesitei durante dois dias. Mas afinal resolvi aceitar
o convite. A razão principal, percebia claramente, era uma
intensa curiosidade de ir conhecer afinal como funcionava
a administração do ensino em seus escalões mais altos.
Até então sempre exercera o magistério como “soldado
raso”, propenso a menosprezar as atividades de adminis-
tração, talvez pelos vícios em que a burocracia do ensino
mergulhara. Julgava que educação e ensino eram tarefas
de professores, de educadores e não de burocratas. Além
disso, receava perder minha independência, minha liberdade
de crítica, dado meu temperamento voltado sempre para a
oposição e o inconformismo. Passados dois outros dias, não
me recordo bem, voltei a Jônatas Serrano para dizer-lhe que
aceitava a função. Minha nomeação, assinada por Fernando
de Azevedo, investia-me assim como o primeiro assistente
do primeiro “serviço técnico” criado com essa denomina-
ção específica numa administração de ensino no Brasil,

311
mais precisamente, da capital do País (LEMME, 2004b, p.
31, grifo nosso).

A década de 1920 expôs um cenário advindo das mudanças no


setor modernizador radicado na mudança de regime da Monarquia para a
República, incorporando o grande fluxo de imigrantes, e resultou em vários
bairros de classe média operária.
Período turbulento, pois, ao contrário do que se organizou na Ingla-
terra e Europa, obedecendo a uma ordem clássica na trajetória evolutiva:
artesanato, seguido de manufatura, até se tornar indústria, de acordo com
Saviani (2013, p. 189): “o processo de industrialização no Brasil deu-se,
desde as origens, na forma da ‘grande’ indústria”.
Nascido em meio a este cenário, na cidade do Rio de Janeiro, em 12
de novembro de 1904, Paschoal Lemme, filho de Antônio Lemme e Maria
do Nascimento Lemme, sendo seu pai de origem italiana, dentista prático
– que só com muito sacrifício e já com quatro filhos conseguiu diploma
superior –, e a mãe de origem portuguesa, professora por instinto, mas
dona de casa por necessidade, Lemme, teve como concepção em casa a
importância da instrução como oportunidade de crescimento social, con-
forme nos aponta em seu depoimento:

Outra de minhas grandes recordações foi a alegria que todos


nos atingiu quando meu pai, recebendo afinal o diploma
consagrador, pode instalar o consultório em casa [...] como
era usual na época para médicos e dentistas. [...] Seu tempe-
ramento [...] atribuídos sem muita clareza aos excessos do
esforço que faziam para realizar-se e estabilizar-se e ambos,
pai e mãe, o faziam com grande afinco, [...] pois sendo
oriundos do Sul da Europa e de classe média, eram esses os
objetivos fundamentais da vida (LEMME, 2004d, p. 31).

Boudieu (2015) caracteriza como habitus a consonância de hábitos


realizados e incutidos por um grupo no decorrer dos tempos, tornando-se
comum e característico a um grupo. Neste sentido, Lemme, alfabetizado
pela mãe, aos 7 anos de idade foi à escola para realizar o curso primário,
nas escolas públicas do Distrito Federal, curso este com duração de 7 anos.

312
Durante sua infância e adolescência, no Bairro do Méier, no Rio de Janeiro,
contrapondo muitos hábitos de famílias comuns à sua, vê-se em um con-
texto familiar que supervaloriza o trabalho, a ponto de inculcar-lhe como
missão, herdada dos pais, a responsabilidade e o cumprimento do dever
como missão; talvez uma possível explicação para, no futuro, tamanho
envolvimento, nas justificativas de Lemme nas funções exercidas.
É importante ressaltar que, ao mesmo tempo em que Lemme foi
inspirado por seus pais a um grande interesse ao trabalho e à necessidade
de se estabilizar economicamente, faz uma acentuação quanto a percepção
ativa referente aos problemas sociais e políticos, ressaltando característi-
cas marcantes em sua aptidão enquanto questionador e não aceitação das
“regras prontas e acabadas” que se configuraram ao longo do processo de
sua constituição enquanto ser, desde sua educação familiar.
Constitui-se com o apoio e exemplo dos pais com um perfil argu-
mentador e questionador, pautado pelo gosto da leitura e pela valorização
dos estudos. Cenário este que, segundo Lemme (2004b), propiciará, no
futuro, a ele e seus irmãos, inconveniências, devido seus posicionamentos
políticos e ideais. Assim, Lemme nos apresenta um pai leitor e assíduo aos
problemas sociais, o que lhe possibilita um natural envolvimento e preo-
cupação social e política, a que cotidianamente presenciava e se configura
como bens culturais que poderiam mudar sua história.

Meu pai era leitor assíduo do Correio da Manhã, desde seu


aparecimento. O estilo combativo do jornal de Edmundo
Bittencourt, as vezes até desabusador, coadunava-se bem
com o temperamento e com seu ânimo calabrês, formado no
âmbito das lutas garibaldinas [...].

É de notar que meu pai, italiano de nascimento, já se


achava perfeitamente integrado e identificado com sua
pátria adotiva; tornado brasileiro pela grande naturaliza-
ção decretada em 15 de novembro de 1889 pela República
nascente, ele nos incumbia, como talvez poucos pais
brasileiros, o interesse pelos acontecimentos nacionais.
Isso naturalmente por sua própria educação europeia,
de valorização da coisa pública, dos fatos políticos e
sociais, o que não era comum nas famílias brasileiras

313
do mesmo nível social. Essa orientação influiu profunda-
mente na formação dos irmãos Lemme sendo, sem dúvi-
da, a razão de nossos pendores para a participação nos
acontecimentos políticos e sociais de nosso povo, o que
nos conduziram posteriormente a opções mais ou menos
extremadas, de acordo com as situações em que cada um
de nós se viu envolvido no decorrer da vida. E como não
poderia deixar de acontecer, tais opções trouxeram para
alguns de nós não pequenos dissabores [...] (LEMME,
2004b, p. 41-42, grifo nosso).

Sua adolescência, também usufruída no bairro Méier, foi caracte-


rizada por seus estudos no Colégio Pedro II, onde fez o Curso Secundário
e concomitantemente o Curso Normal da Escola Normal. Quanto a esta
escola, Paschoal Lemme esclarece que sua turma foi uma das últimas que
ainda havia rapazes, pois, depois das mudanças ocorridas na legislação,
raramente se encontrava rapazes interessados em cursar o Magistério,
pelo motivo, de acordo com a sua ótica, dos baixos salários e das mínimas
condições para se sustentar uma família.
Em 1924, iniciou sua função como professor na rede pública; no-
meado como professor adjunto ministra aulas para a 7ª série, porém, de
acordo com Brandão (2010, p. 151), em 1923, já exercia, como professor
substituto da Escola Profissional Visconde de Cairu, a função docente. Sua
vida como professor foi tomando um rumo linear até receber o convite de
Jonathas Serrano, em 1928.
Em 1925, nomeado diretor da Escola que antes estudara, também
fez o vestibular e ingressou na Escola Politécnica para realizar o curso de
Engenharia, porém, interrompeu o curso no 3º ano. Em 1926, já aderido
às preocupações com o ensino e estimulando as ideias de uma renovação
educacional, filiou-se à ABE, fundada por Heitor Lira da Silva e outros inte-
lectuais e profissionais do ensino.
Em 1927, casou-se com Carolina de Barros e Vasconcelos (também
professora) e, no ano seguinte, teve seu primeiro filho. Assim seguiu sua
“vidinha sem grandes preocupações e alheio a muitos acontecimentos im-
portantes pelo qual o processo educacional se expande” (LEMME, 2004b,
p. 30), até receber um convite que mudou sua vida.

314
Certo dia de junho de 1928 estava eu em pleno desempenho
de minhas atividades de professor na Escola Profissional Vis-
conde de Cairu, quando recebo um telegrama assinado pelo
professor Antonio Vitor de Souza Carvalho, secretário do Di-
retor de Instrução – Fernando de Azevedo –, convidando-me
para comparecer à sede da Subdiretoria Técnica da Diretoria
Geral de Instrução Pública, devendo procurar diretamente o
subdiretor, professor Jônatas Serrano. Esse telegrama, que
ainda conservo entre meus velhos papéis, trazia a data de
19 de junho de 1928. Fiquei seriamente preocupado com
o convite, e jamais poderia imaginar que, em conseqüência
(sic) dele, minha vida iria mudar completamente de rumo
(LEMME, 2004b, p. 30).

Um signatário do Manifesto da Escola Nova

Aceitou o convite de Jonathas Serrano e, integrado à equipe


responsável por estudar e reorganizar a Diretoria-Geral da Instrução
Pública no Distrito Federal desde 1928, Paschoal Lemme também se
integra como um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova, em 1932, sendo o encarregando de recolher as assinaturas que
consolidaram o documento.
Lemme, em suas Memórias, deixa em evidência seu julgamento de
inferioridade em relação aos outros educadores que assinaram o docu-
mento e se declara surpreso quando foi-lhe pedido que também assinasse,
pois se apresenta sempre no perfil justificado de ser um funcionário público
atento às suas responsabilidades, ao mesmo tempo que possui opiniões
contrárias em relação à possibilidade de transformação social movida pela
escola. Também acredita que as ações apontadas no Manifesto são es-
senciais para as necessidades do momento vivido. Em Memórias IV (obra
póstuma), Venâncio Filho faz uma introdução para ressaltar o discurso de
Paschoal Lemme e sua versão para a sua colaboração ao documento:

As idéias renovadoras lançadas pela administração Fernando


de Azevedo, prosseguidas e ampliadas pela administração
Anísio Teixeira, aliadas ao trabalho de divulgação de idéias
da Associação Brasileira de Educação, levaram a que na

315
4ª Conferência Nacional de Educação, em 1931, o próprio
chefe do Governo Provisório lançasse um apelo para que
os educadores organizassem um programa de ação educa-
cional. Daí, surgiu a idéia, levada à frente, de divulgação do
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, redigido por
Fernando de Azevedo e assinado por um grupo de vinte e
sete educadores. O Manifesto era repositório dessas idéias
renovadoras, e dentre seus subscritores havia educadores
provectos, ligados a um outro tipo de sistema, mas que se
juntaram às idéias novas, além do grupo que se aglutinara
em torno da Associação Brasileira de Educação. Paschoal
Lemme foi um desses subscritores e, incumbido da coleta de
assinaturas, ficou surpreso quando Francisco Venâncio Filho
lhe exigiu que também o assinasse. Era o mais moço, mas
já estava plenamente irmanado nesses ideais da renovação
educacional (sic) (FILHO, 2004 apud LEMME, 2004c, p. 16).

Brandão (2010, p. 37) assegura que os pioneiros eram, quase


todos, pessoas autodidatas. Poucos deles possuíam uma formação es-
colar voltada ao magistério, derivavam-se de diferentes formações, como
Direito, Medicina e Engenharia. Paschoal Lemme era professor e trabalhou
nos Ensinos Primário e Secundário; além disso, possuía uma experiência
que possibilitava a ele entender o contexto da escola, com as condições de
trabalho; possuía um contato direto com as exigências cotidianas e sociais
do professor da sala de aula do interior escolar.
A experiência profissional aliada à cultura familiar preponderou na
concepção que Paschoal Lemme tinha sobre a sociedade e em seu posicio-
namento no que se refere à transformação das funções inerentes à escola.
Para Lemme, as mudanças estavam atreladas a fatores sociais e não ca-
beria à escola realizar tamanha transformação, conforme acreditavam os
renovadores em âmbito geral.
Entretanto, sua posição filosófica não influenciava sua relação
com seus colegas, tanto Jonathas Serrano, Fernando de Azevedo e Anísio
Teixeira são considerados, em seus relatos, pessoas muito admiráveis,
principalmente quanto à pessoa de Fernando de Azevedo, a quem Pas-
choal Lemme relata otimistas manifestações de consideração e apreço
por esse intelectual, declarando um verdadeiro orgulho por ter trabalhado

316
e convivido com esses “cardeais” da educação, listado depoimentos nos
quais inseriu com convicção a personalidade forte e determinada de Fer-
nando de Azevedo, acrescida de reconhecimento quanto à sua inspiração
na seriedade que comandava a organização pública. Também ressaltou o
caráter de Jonathas Serrano, em sua ética e profissionalismo, e a forma
polida pela qual Anísio Teixeira conseguia ampliar as Reformas iniciadas
por Fernando Azevedo.

De outro lado, Jônatas Serrano, com quem ia trabalhar di-


retamente, fazia um contraste gritante: sereno, ponderado,
conciliador, mas enérgico quando se fazia necessário, de
cultura excepcional e delicadeza no trato que chegava ao
inverossímil: estive cerca de três anos a seu lado e jamais
indagou ou se referiu, mesmo indiretamente, às minhas
idéias (sic) ou convicções religiosas, filosóficas ou políticas.
Católico praticante, líder católico, nomeou e manteve como
seu auxiliar direto, um ateu, que eu já o era a esse tempo.
Além da absoluta inteireza de caráter (LEMME, 2004c, p. 34).

Essa admiração se cristalizou nas cartas que Lemme trocou com


Fernando de Azevedo posteriormente, nas décadas de 1950 e 1960. Cartas
que ressaltaram a visão do autor em relação à análise social e educacio-
nal; Paschoal Lemme em momento algum de seus trabalhos publicados
desvalorizou o trabalho realizado por seus colegas, pelo contrário, fez uma
análise desmistificando muitas críticas e interpretações “presentificadas”
que os desqualificaram, acrescentando perceber a importância e a grande-
za deles no processo educacional brasileiro.
Também foi no período anterior ao Manifesto que Paschoal Lemme
conheceu a filosofia marxista, e, dali por diante, passou a orientar as suas
ideias e a conduzir os rumos de suas iniciativas em prol do ensino. Mesmo
permanecendo “fora dos quadros do Partido Comunista”, assumiu a condi-
ção de “intelectual de esquerda” (BRANDÃO, 2002, p. 883 apud SBRANA;
CUNHA, 2017, p. 101).
Entretanto, o pensamento marxista, que o diferenciava de grande
parte dos renovadores, não atrapalhou o processo de renovação, mas,
confirmou a essência instigante desses signatários, que, mesmo advindos

317
de diferentes posições sociais e de diferenças epistêmicas, alicerçavam um
ideal em comum: consolidar, no Brasil, uma escola pública de qualidade.
Em entrevista a Brandão (2010, p. 21), Lemme enfatizou que sua
participação ativa nos projetos de Reformas Educacionais, junto a Fernan-
do de Azevedo e depois a Anísio Teixeira. Acentuado pelo cargo exercido,
pelas possibilidades para os alunos pobres e pela responsabilidade que
dispunham em lutar pela escola pública, não poderia deixar de colaborar
esperando uma mudança radical na qual acreditava. Então escolheu, mes-
mo sem acreditar totalmente, as mudanças sociais e participar das que se
tornavam possíveis:

Apesar das diferenças ideológicas de Lemme, em relação à


visão de Anísio Teixeira e de Fernando de Azevedo, sobre o
papel da educação na mudança social, nos inúmeros encon-
tros em que ele discutiu comigo as razões que o levaram a
colaborar diretamente com esses dois “cardeais da educa-
ção”, afirmava que “dada a sua condição de funcionário públi-
co”, ele via o trabalho desenvolvido por aqueles educadores
na gestão da educação pública, como um avanço possível
e necessário na direção do direito à educação de qualidade
para as populações mais pobres. Não seria ético, segundo
ele, em função das suas convicções políticas cruzar os braços
`a espera de uma “revolução social” que criasse as condições
de uma sociedade igualitária para que se pudesse realmente
democratizar a educação (BRANDÃO, 2010, p. 21-22).

Nesse discurso explicitado de Lemme, pelo ponto de vista de


Brandão (2010), expressou-se a coerência do contexto linguístico inter-
pretado por Vieira (2017). O discurso do autor tem seu próprio tempo, sua
narrativa expressa seus intentos, que não caracteriza o contexto social
conjunto. Lemme se utilizou de uma justificativa, e somente foi possível
sua compreensão por uma análise que observou não apenas suas rela-
ções de causa e efeito, construindo assim não uma história determinista,
mas um fator que, pela perspectiva do próprio Lemme, o torna singular
em meio ao contexto estudado.
As primeiras experiências de Lemme contribuíram para sua visão
mais crítica em relação a seus colegas reformistas. Brandão (2010, p.
37) ampara esta afirmação quando informa que, a partir de 1923/1924,

318
Paschoal Lemme foi convidado para coordenar o trabalho de ensino agrí-
cola nas escolas rurais, um projeto ambicioso que propiciaria alimentação
aos alunos, inviabilizado por falta de apoio governamental. Sua primeira
experiência lhe fez desacreditar que a escola realizaria grandes mudanças,
independentemente da situação econômica.
O fato de o trabalho realizado por Lemme na escola rural não ter
dado certo, favoreceu-lhe conhecer Jhonatas Serrano que, em 1928, o
convidou para ocupar o cargo de seu secretário na Subdiretoria Técnica
da Diretoria-Geral de Instrução Pública, na administração de Fernando
de Azevedo.
Compreender a história de Lemme está longe de uma interpreta-
ção simplista, pois o autor abarca um conjunto de significados e redes de
sociabilidade que, ao serem analisados, fogem de uma trajetória linear,
uniforme e facilmente explicável. Lemme, em suas memórias, ideologi-
camente aponta caminhos de um pensamento que não justifica, mas,
também, não contradiz suas práticas diárias.
Ele não escondia ter posicionamentos diferentes de seus colegas
signatários do “Manifesto dos pioneiros pela educação nova”, contudo, em
seu discurso, busca se justificar diante das escolhas feitas, de forma a se
caracterizar como sujeito de suas escolhas, mas ciente de estar envolvido
em um contexto social em que não poderia ser autônomo e independente.
Bourdieu (2015, p. 76), ao explicar a constituição do capital social, auxilia-
-nos a compreender o envolvimento de Paschoal Lemme como participan-
te do grupo de renovadores, ao apontar que uma rede de relações sociais
não é um dado natural constituído de uma única vez, mas um produto do
trabalho de instauração e de manutenção, cobrado para permanência em
um grupo; assim, para se firmar (capital social), Lemme, mesmo discordan-
do de alguns pontos, participava do conjunto das ações dos renovadores
da educação.
Como secretário-chefe do gabinete de Fernando de Azevedo
(1929-1930) e, depois, de Anísio Teixeira (1931-1935), quando ambos
exerceram o cargo de diretor da Educação Pública do Distrito Federal, além
de exercer outras funções nesse período, como organizador de cursos
para adultos no noturno, não deixou de se posicionar ideologicamente, de

319
acordo com suas convicções; no entanto, realizou exerceu suas funções
com destreza e responsabilidade, confirmando assim sua atuação como
participante desse campo social.
Paschoal Lemme compreendeu sua função no grupo e a utilizou
como justificativa para apoiar as ações realizadas durante o processo
renovador, bem como a posição de funcionário público exercendo plenas
funções, além de apontar muitos benefícios que surgiram com as ideias
propostas a partir desse processo. Para reforçar essa análise, Sbrama e
Cunha (2017) informam:

Paschoal Lemme, como se pode apreender da análise de


sua narrativa autobiográfica. Suas memórias indicam que
ele também vivenciou o que Martins (1986, p. 14) deno-
mina de “ambivalência”, sentimento comum àqueles que
assumiam um posicionamento otimista diante dos fins
que almejavam, mas eram acometidos pelo pessimismo
quanto aos meios para alcançá-los. É certo, também, que,
juntamente com os demais integrantes daquela geração,
Lemme empenhou-se com afinco na busca por definir
sua identidade social, assumindo um caráter missionário
(SBRAMA; CUNHA, 2017, p. 106).

Dessa forma, Lemme, como ser humano, permite-se, em um pro-


cesso dialético e cheio de contradições, ao mesmo tempo que expõe clara-
mente suas diferenças ideológicas, e se assume como um signatário que,
consciente de não conseguir todas as mudanças na infraestrutura social,
optou por colaborar nas pequenas mudanças indicadas pelos renovadores.

A rede de sociabilidade de Paschoal Lemme

Bourdieu (2015, p. 75) conceitua capital social como um conjunto


de recursos ou potenciais ligados a uma rede de relações institucionaliza-
das vinculados a um grupo, como conjunto de agentes que, mesmo não
compactuando com propriedades comuns, reconheciam-se e tiveram
reconhecimento. Paschoal Lemme e os signatários da Educação Nova, de
1932. A partir da definição de Bordieu para o “capital social” se torna mais
compreensível a trajetória intelectual de Lemme, que assumiu publica-

320
mente, em suas memórias, que muito de suas conquistas se deram por
convites de amizades que estabeleceu durante sua trajetória educacional.
Mesmo acrescido em seus relatos como um funcionário muito
comprometido com suas funções, e que atendeu com competência as ta-
refas a ele designado, Lemme afirma que a função desempenhada por ele
lhe abriu oportunidades para conhecer e participar do grupo de intelectuais
da educação, composto por grandes nomes da intelligentsia do país.
Pouco tempo depois, por indicação do amigo Francisco Venâncio
Filho, foi designado para chefiar a seção de Extensão Cultural do Museu
Nacional, então dirigida por Heloísa Alberto Torres (LEMME, 1988, p. 54).
Concomitantemente, passou a atuar no Instituto Nacional de Cinema
Educativo, onde, com o apoio de outro amigo, Edgar Sussekind, organizou
o “maior número possível de filmes e diafilmes que viessem atender às
necessidades do Ensino Primário, secundário e superior”, tornando-se,
assim, um pioneiro do cinema educativo no Brasil (LEMME, 1988, p. 54).
Esses contatos contribuíram para que suas ideologias ganhassem
força e para que ele participasse ativamente de sua luta em prol da escola
pública. Lemme ressaltou, em suas Memórias, que conhecer pessoas im-
portantes contribuiu para sua ampliação de ideais, porém, acrescentou que
tais amizades nunca influenciaram sua realização nas funções exercidas,
pois todas foram alcançadas por meio de concursos.

Os editais dos concursos, os programas e principalmente


a constituição das bancas examinadoras me obrigavam a
procurar, quase sempre entre os professores catedráticos
de ensino superior, os elementos necessários à consecu-
ção desses objetivos, inclusive a indicação de nomes de
idoneidade inatacável para servirem como examinadores.
Ao procurá-los, como representante de uma administração
com a responsabilidade na implantação de novos métodos
de trabalho, tinha, portanto, de agir com muita segurança
e absoluta honestidade de propósitos, pois não podia trair
a confiança em mim depositada, mas a compensação,
além do dever rigorosamente cumprido, vinha na forma de
amizades que conquistei entre muitos daqueles meus mais
ilustres colegas – se posso falar assim – colocados nos

321
postos mais elevados do ensino do País (LEMME, 2004c,
p. 37).

Na execução dessas tarefas, foi se ampliando a rede de sociabi-


lidade de Paschoal Lemme, que lhe propiciou ter contato com os nomes
mais conclamados do país. Conforme exposto por Bourdieu: “o real é
descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles
únicos e tantos mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de
modo incessante imprevisto” (BOURDIEU, 1986, p. 185) e, dessa reali-
dade, foram se formando novas posições as quais Lemme percebeu e se
permitiu adentrar.
Em 1936, Lemme assumiu a Superintendência de Educação de
Adultos no Distrito Federal, função que exercia quando foi preso, acusado
de insuflo de conceitos marxistas durante as aulas. Sua prisão durou quase
dois anos, sendo liberado por falta de provas consistentes; sobre este epi-
sódio, Lemme ressaltou que a amizade de Venâncio Filho foi fundamental
para sua persistência, e que Venâncio Filho sempre o apoiou: “Num dos
momentos mais difíceis de minha vida particular e profissional, animou-me
e incentivou-me a prestar o concurso para o cargo de inspetor de ensino do
Estado do Rio de Janeiro” (LEMME, 2004c, p. 50).
Em 1938, já liberto das acusações, foi aprovado no concurso
para técnico em educação, do Ministério de Educação e Saúde, quando
trabalhou na equipe de Lourenço Filho no Inep, como chefe da Secção de
Documentação e Intercâmbio, função que não exerceu muito tempo, pois,
devido a desentendimentos com o próprio Lourenço Filho, transferiu-se
para o Museu Nacional, em 1943, por interferência do amigo Venâncio
Filho, onde permaneceu até 1947, realizando um trabalho importante com
filmes educativos. Ainda em 1939, realizou um curso de Administração e
Interpretação Social na Universidade da Pensilvânia, também apoiado por
Venâncio Filho que lhe propiciou o alcance de uma bolsa de estudos.

Finalmente, no momento em que resolvi deixar o Instituto


Nacional de Estudos Pedagógicos, por divergências em
matéria de orientação com seu diretor, o professor Lourenço
Filho, e onde exerci sucessivamente os cargos de chefe das

322
Seções de Documentação e Intercâmbio e de Inquéritos
e Pesquisas, foi ainda Venâncio quem sugeriu a Heloisa
Alberto Torres minha designação para a chefia da Seção de
Extensão Cultural do Museu Nacional. Algum tempo antes,
já indicara meu nome a Roquette-Pinto para sucedê-lo
na direção do Instituto Nacional de Cinema Educativo, por
ocasião de sua aposentadoria, que estava para se efetivar
(LEMME, 2004c, p. 50).

Nos anos subsequentes, na década de 1950, Paschoal Lemme


atuou como professor de História e Filosofia da Educação, entretanto sua
participação ativa foi dedicada para além da sala de aula, e, dessa forma,
enredou-se na produção de textos em defesa da escola pública e permane-
ceu atuando na sala de aula até se aposentar, em 1960. Um texto bastante
exposto foi Paschoal e o Governo Kubitschek; e, em relação ao programa de
metas do governo, foi Educação para o desenvolvimento, no qual Paschoal
Lemme fez uma análise subjugando que o tema deveria ser Desenvolvi-
mento para a Educação, pois se tratava de uma lógica equacional sendo que
a Educação dependia do processo social (LEMME, 2004c, p. 21). A partir
disso, dedicou-se a escrever para jornais e participar de congressos.
Especificamente entre os anos de 1974 e 1982, escreveu cartas
a jornais diários do Rio de Janeiro, entre eles o jornal O Globo e o Jornal do
Brasil. Em 1982, uma data também de grande importância devido ser o
ano que Paschoal Lemme foi homenageado na II Conferência Brasileira de
Educação, ocasião em que proferiu um pronunciamento em defesa de suas
teses nas quais apontou suas defesas em relação à educação e sociedade.
Nestas, expôs seus apontamentos, apresentando suas convicções quanto
aos problemas educacionais no país, ressaltando que, em seu ponto de
vista, acudiam-se devido à natureza política e social que abrangia uma
esfera maior que a estritamente pedagógica.
Nos anos seguintes, continuou participando de outras conferên-
cias dessa natureza e continuou envolto na produção de suas Memórias,
sempre atento às mudanças econômicas e políticas/sociais. Nas décadas
de 1980 e 1990, Lemme dedicou seus esforços para produzir suas Memó-
rias, publicadas pelo Inep, em 1997, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro,
deixando-nos um amplo e complexo material de análise e pesquisa.

323
Considerações finais

De acordo com Vieira (2017) o termo “intelligentsia” está relacio-


nado aos intelectuais da esfera política, à atividade cívica e à crítica a um
poder ressaltado por estruturas tradicionais. Neste termo, fundamenta-se
a interlocução de Paschoal Lemme, como um intelectual atuante no seu
tempo histórico, que evidenciou seu engajamento junto a uma causa: o
fortalecimento da educação pública brasileira.
Paschoal Lemme, em suas Memórias, contribuiu para essa des-
mistificação de homogeneização dos signatários envolvidos no processo
renovador educacional; também contribuiu com a sua originalidade de
pensamentos marxistas e abarcou um complexo envolvimento de dis-
putas de poder, em que se caracteriza por não fugir da sua identidade,
mesmo quando necessário contrapor aquilo que tinha como filosofia
social e política.
Apresentou-se como um representante de um pensamento dife-
renciado, um “precursor da intelectualidade independente”, que assumiu
solitariamente a luta contra os ditames de um “país politicamente trucu-
lento e primário” (SBRAMA; CUNHA, 2017, p. 102), de forma a nenhum
momento desprivilegiar a importância das contribuições de seus aliados
nessa longa e profícua caminhada.
Assim, conclui-se que Paschoal Lemme, ao longo de sua trajetória
histórica, apresentou-se como um intelectual, um professor que tomou
decisões, contrapôs-se à outras e buscou, com pontos assertivos e erros,
construir-se como sujeito. Considerado a voz apagada entre os signatá-
rios, devido às suas inclinações comunistas, deixou subscrito suas ideias
e concepções a tempo de se fazer reconhecido no contexto educacional,
acentuando que sua história foi composta por participações e possibilida-
des oferecidas pelo desempenho realizado e por se constituir como um ser
social, participante e ativo em seu tempo histórico.

324
REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Z. Paschoal Lemme. In: FÁVERO, M. de L. A.; BRITTO, J. de M. (orgs.).


Dicionário de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais. 2. ed. Rio de Janeiro:
UFRJ; MEC; Inep; Comped, 2002.
BRANDÃO, Z. Paschoal Lemme. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massangana,
2010. Coleção Educadores.
BOURDIEU, P. Os três estados do capital. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. Escritos de
Educação. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. Tradução Laís Teles Benoir. São Paulo: Centau-
ro, 2004.
LEMME, P. Paschoal Lemme: memórias de um educador – estudos de educação e
destaques da correspondência. 2. ed. Brasília: Inep, 2004a. v. 5.
LEMME, P. Paschoal Lemme: memórias de um educador – estudos de educação e
perfis de educadores. Brasília: Inep, 2004b. v. 3.
LEMME, P. Paschoal Lemme: memórias de um educador – estudos de educação,
participação em conferências e congressos. 2. ed. Brasília: Inep, 2004c. v. 4.
LEMME, P. Paschoal Lemme: memórias de um educador – infância, adolescência,
mocidade. São Paulo: Cortez, 2004d. v. 1.
LEMME, P. Paschoal Lemme: memórias de um educador – vida de família, formação
profissional e opção política. São Paulo: Cortez, 2004e. v. 2.
LEMME, P. Memórias: reflexões e estudos sobre problemas da educação e ensino.
Perfis: Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Heloísa Alberto Torres, Humberto Mau-
ro, Sousa Silveira. São Paulo: Cortez, 1988.
SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: priemiras aproximações. 11. ed. São Paulo:
Autores Associados, 2013.
SBRANA, R. A.; CUNHA, M. V. Análise retórica das Mémorias de Paschoal Lemme.
Revista História da Educação, Porto Alegre, v. 21, n. 52, p. 96-110, 2017.
VIEIRA, C. E. Contextualismo Linguístico: contexto histórico, pressupostos teóricos
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periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/38432/pdf. Acesso em: 9 mar.
2021.

325
CAPÍTULO XXIII

RAUL CARLOS BRIQUET

Neide da Silva Paiva1


Elianda Figueiredo Arantes Tiballi2

Raul Carlos Briquet (1887-1953), médico, conhecido como um ser


humano solidário e que se destacou no Brasil como personalidade de ação
na esfera científica e cultural. Construiu sua imagem intelectual com gran-
de sensibilidade, criando e recriando formas de interpretar e atuar sobre
o momento histórico em que viveu, provocando-nos a conhecê-lo melhor
(BOMFIM, 2002). Briquet era poliglota e recebeu uma formação cultural
geral diversificada por influência de sua mãe. Conforme as palavras de Kat-
zenstein-Schoenfeldt, “era ele protótipo de uma geração quase extinta”.
Dono de uma cultura abrangente e profunda, era um sujeito atuante não
apenas no campo da Medicina, mas também se destacou na Psicologia,
Filosofia, Educação e, como artista, tornou-se um exímio pianista (WIN-
DHOLZ, 2004). Nessas áreas do conhecimento, desempenhou papéis
importantes e, como intelectual, ofereceu contribuições relevantes para as
questões sociais.

1 Doutora em Educação. E-mail: neidepaivapaiva@bol.com.br.


2 Doutora em História e Filosofia da Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/1828025455687021.
E-mail: tiballielianda@gmail.com.

326
Briquet utilizou seu prestígio social e cultural para mobilizar a opi-
nião pública a pensar as dimensões educacionais associadas aos impactos
sociais. Impactos esses ampliados pelo movimento dinâmico da história
mundial, localizado no início do século XX, a partir das realidades política,
econômica e social, e entrelaçado em um contexto histórico do entreguer-
ras no Brasil, incluídas as atribulações de forças políticas que compuseram
a Era Vargas.
Briquet nasceu em Limeira, São Paulo, formou-se médico pela
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1911 e defendeu sua tese Da
psychophysiologia e pathologia musicaes, evidenciando o seu pioneirismo na
ciência psicológica. Cabe ressaltar que a Faculdade Nacional de Medicina,
no Rio de Janeiro, tinha como objetivo formar profissionais para prevenir
as doenças e curar o país doente, sob o argumento de que o saber médico,
com a configuração de médicos higienistas e sanitaristas, preocupava-se
com o educar e prevenir a população contra doenças (WINDHOLZ, 2004).
Ao mesmo tempo em que se dedicava à pesquisa em diferentes
áreas do conhecimento, ele desenvolvia a clínica médica. Como médico,
especializou-se em Ginecologia e Obstetrícia, iniciando sua vida profissio-
nal na maternidade de São Paulo. Anualmente, atendia cerca de mil ges-
tantes. Interessou-se pelo estudo de diagnóstico em gravidez e publicou,
em 1914, o trabalho inédito Diagnóstico da gravidez pela diályse-reacção de
Abderhalden, estudando com Abderhalden, autor do método (BOMFIM,
2002). Atuando como professor concursado desde 1925, na Faculdade de
Medicina e Cirurgia de São Paulo, seus estudos e sua atuação didática se
desdobraram na área de enfermagem, onde foi pioneiro.
Ocupou-se com a formação de profissionais que auxiliassem o
obstetra na assistência ao parto, a fim de preparar melhor as parteiras. Dos
cursos ministrados, ele organizou, em 1931, a publicação do livro Elementos
de enfermagem. Em 1943, como diretor-geral dos cursos de Enfermagem
e socorros de guerra da II Região Militar, organizou a publicação do livro
Manual da Socorrista de Guerra, definindo as atribuições específicas desse
socorrista e proporcionando os conhecimentos indispensáveis ao desem-
penho de suas funções. Formou uma geração de médicos e cientistas por
meio de seus ensinamentos, livros e artigos, contribuindo para o estudo da
história da ciência no Brasil.

327
A vida de Raul Briquet foi cheia de benemerência e exaustivamente
dedicada ao progresso da medicina e ao bem-estar da humanidade, se-
gundo, Onofre Araújo, um de seus discípulos mais diletos (BOMFIM, 2002).
O que se observa é que o contexto social em que Briquet buscou
sua formação em Medicina foi marcado por fatos históricos do final do
século XIX, período de culminância do cientificismo e do nacionalismo
que orientou o pensamento europeu. Periódicos das faculdades do Rio de
Janeiro e da Bahia traziam relatórios, dados estatísticos, pesquisas da rea-
lidade do Brasil – soldados mutilados na guerra do Paraguai, crescimento
desordenado do país, inúmeras epidemias.
Nas revistas, Gazeta Médica (Bahia) Brazil Médico (Rio de Janeiro),
os colaboradores se consideravam “imparciais” e distantes de “paixões
políticas”. Essas revistas buscavam uma identidade da medicina brasileira,
e a busca por essa identidade levou a compreensão de uma medicina para
o povo. Os médicos eram os especialistas em serviços de intervenção e
de cura dos males arraigados no povo; além disso, colocavam-se como os
orientadores do povo brasileiro para o pensamento libertador que levaria
todos ao progresso, prevenindo e sanando as grandes epidemias, com o
lema “mens sana in corporesano”. O controle físico e mental era necessário
para construir a civilização (ARAÚJO, 2016).

O contexto político, econômico e social do médico-professor

O interesse de Raul Briquet pelas Ciências Humanas e Sociais teve


destaque em sua participação na criação da Escola Livre de Sociologia e
Política de São Paulo, em 1933. Nessa época, Briquet já formava, junta-
mente com Roberto Simonsen, Jorge Street, Armando de Sales Oliveira,
Pacheco e Silva e André Dreyfuss, a lista dos mantenedores (BOMFIM,
2002). Convidado a proferir aula inaugural e a criar a cadeira de Psicologia
Social, ele foi além, ampliando estudos e pesquisas em Sociologia, Biologia,
Psicanálise. Por sua contribuição na Psicologia Social ocupou a Cadeira nº
12 da Academia Paulista de Psicologia. Criou o primeiro manual de Psico-
logia Social no Brasil, que retratou a importância das Ciências Humanas e
Sociais para a compreensão do sujeito na sociedade.

328
A Psicologia Social não pode construir uma ciência autônoma
pela simples razão que não mira a problema algum cujo estu-
do não incumba, respectivamente, à Biologia ou à Sociologia.
Entretanto, seu objetivo, no conjunto dos conhecimentos,
em especial no grupo das ciências sociais, consiste em evi-
denciar a importância dos fatores psíquicos, na interpretação
do comportamento dos indivíduos. Essencial é manter-se a
coordenação dos fatos, relacionar sempre as partes ao todo,
e conservar nítida a unidade estrutural [...] se o indivíduo
só se completa depois de integrado na sociedade, e uma
vez que desinteressa o aspecto estritamente pessoal ou
biológico, claro é que a Psicologia, no sentido lato, há de ser
forçosamente social (WINDHOLZ, 2004, p. 12 apud BRIQUET,
1935, p. 2).

Essa obra foi dividida em duas partes: a primeira, de forma geral,


procurou buscar subsídio em elementos da Biologia, Sociologia e Psicologia;
e a segunda articulou aspectos específicos, como os “fatores psíquicos”, e
a distinção entre: instinto, imitação, simpatia, inteligência e “vida social”;
analisou grupos sociais, multidão e revolução, liderança, adaptação social
e preconceitos de raça. Como pesquisador poliglota, Briquet aprofundou
seus estudos e destacou a influência de filósofos, psicólogos, sociólogos
de várias escolas mundiais: americanas, inglesas, alemãs, francesas e
italianas (BOMFIM, 2002).

Seu estudo sobre grupos foi fortemente influenciado pelo


materialismo histórico de Karl Marx (abrangendo o deter-
minismo econômico, a concepção materialista da história, a
luta de classes e a teoria econômica) e pelo método dialético
de Hegel. Com isso, concorria Raul Briquet para a introdução
da visão materialista histórica em Psicologia Social no Brasil,
conforme Bomfim (2003). Sua atitude anti-racista (sic)
levou-o a um ferrenho combate ao preconceito racial num
momento histórico em que aos preconceitos contra negros e
mulatos eram acrescidas as barreiras à imigração japonesa.
Posicionou-se, ainda, contra a censura e defendeu a possi-
bilidade de revolução contra um governo injusto (BOMFIM,
2002, p. 33).

329
Ele acreditava que seria possível harmonizar a vida psíquica com
o ambiente social. A compreensão de sociedade que Raul Briquet de-
fendia, segundo Araújo (2016), partia da Sociologia Positivista, em que a
sociedade era entendida como um organismo social, e a revolução deveria
ser estudada como período patológico para, em seguida, apreender-se o
movimento normal da “ordem social”.
Nas pesquisas acerca da psicologia social de Briquet, assuntos
como o modelo político organizado em partidos de vanguarda foi funda-
mental para a compreensão da dinâmica das massas revolucionárias e da
importância de um líder nos movimentos sociais.
De acordo com Araújo (2016), o marco do século XX é a Primeira
Guerra Mundial, constituindo-se como início de uma guerra de massas, com
encerramento na Segunda Grande Guerra. Na primeira década do século
XX, percebeu-se que os valores liberais burgueses da Revolução Francesa,
formulados no século XVIII, apontavam para sua falência e grande parte da
humanidade viu o seu esgotamento.
Raul Briquet e sua geração pensavam uma solução para esse
impasse moderno. Uma alternativa, segundo vários amigos, dentre eles
o sociólogo Fernando de Azevedo (quem o instigou a assinar o Manifes-
to dos Pioneiros da Escola Nova) e o modernista Mário de Andrade, seria
preparar um projeto educacional que formasse líderes intelectuais, isto é,
governantes de uma futura geração que fosse conduzida pelos princípios
da ciência e da verdade. O Estado deveria ter como pressupostos homens
da ciência, a educação, e os princípios da democracia e da cidadania liberal.
Se o desastre da Primeira Guerra Mundial induziu ao fim a Europa
burguesa e liberal enquanto centro do mundo, as implicações políticas
do pós-guerra levaram esse processo ao extremo. De acordo com Araújo
(2016), provavelmente a principal consequência desse período foi um mo-
vimento revolucionário mundial, que falhou enquanto modelo, mas gerou
transformações, de forma geral, na configuração política do mundo.
Após 1929, na América Latina, dez países mudaram de governo
e de regime por meio de golpe militar. No Brasil, a principal consequência
política foi o esmorecimento econômico, a demolição da República Velha

330
oligárquica e a tomada do poder por Getúlio Vargas. Viu-se no Brasil o
surgimento de uma elite intelectual comunista na década de 1930, com-
posta por jovens de procedência oligárquica latifundiária e por oficiais
(ARAÚJO, 2016).
Briquet era filho do engenheiro Edouard L. Briquet, de naturalidade
francesa, e de Ana Rosa Constança Baumgart Briquet, de ascendência
alemã e formação requintada, que foi também “sua única professora, com
quem adquiriu conhecimentos de idiomas e de música” (BOMFIM, 2002).
Seu grupo social, econômico e cultural o levou a ser conhecido
como o devorador de livros, desde muito jovem. Em suas primeiras produ-
ções científicas, destacava-se longa lista de referências bibliográficas, com
autores de diferentes nacionalidades, o que para Briquet não era problema,
uma vez que, por ser poliglota, revelava-se um autor rigoroso e exigente
em suas pesquisas.
Foi um intelectual militante em diferentes campos científicos. O
significado atribuído a intelectuais, neste texto, tem o significado da pala-
vra intelligentsia que, conforme explicado por Vieira:

[...] gozando de capacidades superiores de análise e de


elaboração de propostas sociais, que se constituía como
protagonista político privilegiado. Defendendo reformas
sociais os jovens cultos reivindicaram as condições de guia
do povo e de grupo portador da consciência nacional (VIEIRA,
2008, p. 69).

Briquet agiu como intelectual no cenário público brasileiro, fazendo


parte da geração de médicos, jornalistas e advogados que, na década de
1930, associados ao Movimento pela Escola Nova, buscaram dar identi-
dade ao protagonismo daquele, no contexto do Brasil. Vieira reforça a ideia
de que a identidade social desses associados está anexada ao sentimento
de missão, de dever social, pois “o intelectual é aquele que mobiliza o seu
prestígio como especialista em favor de causas públicas, muitas delas
distantes das suas especialidades” (VIEIRA, 2015, p. 9).
As questões públicas e políticas e a relação com os assuntos edu-
cacionais, no fim do século XIX e início do século XX, estiveram pautadas

331
como investimentos na sociedade por entender a educação para além de
dimensões técnicas e práticas, definindo ações e posições que influencia-
ram diretamente a história da educação brasileira. Vieira ainda destaca que
“a escrita e a publicação do célebre Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova, em 1932, talvez tenha sido o evento mais emblemático e, portanto,
capaz de exemplificar essa atitude de manifestação dos intelectuais em
torno de projetos educacionais” (VIEIRA, 2015, p. 8).
Esse documento, considerado reformador e liberal, sofreu muitas
críticas. Contradição à parte, tornou-se instrumento para a defesa da
escola pública, laica, obrigatória e gratuita, com a finalidade de oferecer
diretrizes para uma política nacional de educação. Embora o conjunto dos
intelectuais signatários do Manifesto fosse constituído pela elite pensante,
intelligentsia daquele contexto, que se reuniu em defesa da modernização
e democratização da sociedade por meio da educação, os componentes do
grupo tinham posições diferentes nas disputas ideológicas que se faziam
presentes no cenário político daquele período.
O pensamento inovador, no sentido amplo, indicou critérios para
a reflexão das estratégias utilizadas no contexto histórico de produção de
ideias, no movimento político e no modo de pensar, na reestruturação que
as condições propiciaram para que os intelectuais optassem “pela ocupa-
ção de cargos de direção do Estado para implementar a sua agenda de
reformas sociais” (VIEIRA, 2015, p. 9).
Briquet assim o fez: participou da reunião de criação da Fundação
da Sociedade Brasileira de Psychanalyse, em 1927, a convite do médico
Durval Bellegarde Marcondes. Entre eles estavam Francisco Franco da
Rocha, psiquiatra; Manoel Lourenço Filho, educador; Cândido Motta Filho,
jornalista; Antônio Sampaio Dória, Ministro da Justiça; Osório César, psi-
quiatra e crítico de arte; Pedro de Alcântara Marcondes Machado, pediatra;
e Menotti Del Picchia, escritor. Todos tinham interesse na psicanálise, ideias
que chegavam ao Brasil por meio do movimento modernista e da ciência.
Conforme Moretzsohn (2015), no registro em Ata da sessão de fundação
da Sociedade Brasileira de Psychanalyse, presidida pelo psiquiatra Francis-
co Franco da Rocha, este pronunciou:

332
A applicação therapeutica da psychanalyse apresenta ainda
entre nós innumeras difficudades de ordem pratica, porque
suas vantagens ainda não foram bem apprehendidas pela
opinião publica, para a qual os factos psychicos de natureza
sexual não podem ser expostos abertamente. Esse precon-
ceito prejudica inteiramente o trabalho clinico, principalmen-
te quando se trata de pacientes do sexo feminino. Entende,
porem, que já é bem tempo de se fazer uma propaganda
mais intensa dos princípios psychanalyticos nas suas múlti-
plas applicações, devendo-se interessar sobretudo a classe
dos professores (sic) (MORETZSOHN, 2015).

Nessa reunião, Briquet foi eleito vice-presidente da Fundação


que, mais tarde, tornou-se a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São
Paulo. A conjuntura social do país levava o grupo de intelectuais a refletir,
acreditando ser o momento de possibilitar a formação de uma sociedade
com foco nas ideias de Freud, com estudos que apresentariam tentativas
de aproveitamento prático, sobretudo, à classe dos professores.
No início da década de 1930, Briquet, junto a outros intelectuais,
participou da criação da Sociedade Paulista de Filosofia e Letras, grupo
que exerceu importante influência para a fundação da Universidade de
São Paulo. Quatro anos mais tarde, “Briquet tornaria Catedrático de Clínica
Obstetrícia e Puericultura Neonatal” (BOMFIM, 2002, p. 33).
Nas palestras referentes à Educação, Briquet discutiu assuntos
diversos, como “Ensino da leitura”, “Do método no estudo”, “Disciplina do
gesto” e “J. Locke, filósofo e educador” em “Instrução primária e secundária
no Brasil”, reunidos no livro Palestras e conferências, publicado em 1942,
conferindo-lhe o Prêmio “Carlos de Laet”. Como resultado do curso ofere-
cido em Educação Nacional, da Escola Livre de Sociologia e Política de São
Paulo, em 1946, Briquet publicou o livro História da Educação: evolução do
pensamento educacional. Ele também ocupou a Cadeira nº 38 na Academia
Paulista de Letras por sua atuação nas Letras, contribuindo com vários
artigos para a Revista da Academia (BOMFIM, 2002).
Como historiador da Ciência no Brasil, não se esquecia das ques-
tões políticas. Enquanto o modelo da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
cias Humanas tinha por finalidade a formação pedagógica de professores

333
secundários, inspirada no modelo francês de escola superior. A Escola Livre
de Sociologia e Política se inspirava no modelo norte-americano, projetada
como centro de estudos e pesquisas sobre as origens, funções e necessida-
des do meio social brasileiro. A instituição visava a formação de indivíduos
“aptos a colaborarem na solução dos problemas da administração pública
e particular, e eventualmente orientar o povo e a nação no reajustamento
do moderno equilíbrio social” (MONARCHA, 2014, p. 455).
Em debates e conferências, Briquet defendia sua posição quanto
aos rumos da educação pública. Participou das indagações de Fernando
de Azevedo, em 1926, para publicação de O Estado de S. Paulo em quesi-
tos formulados a respeito dos problemas fundamentais nas democracias
modernas. Ao ser questionado sobre a causa fundamental do insucesso
das repetidas reformas no Ensino Secundário e Superior e a falta de
integração no ambiente nacional a serviço da cultura do país, Briquet
respondeu que existe “a ausência da finalidade educativa essencial à
humanização do indivíduo” e acrescenta:

O fato de que no ensino primário, onde prevalece a aquisição


de noções concretas, e, pois o desenvolvimento eminente-
mente sensorial pela contemplação ambiente, não colhe o
aluno suficiente material com o qual cultive mais tarde, no
curso secundário, a reflexão e a abstração (MONARCHA,
2014, p. 455).

Embora Raul Briquet, no decorrer do processo de sua produção


intelectual, tenha apresentado ampla atuação nas áreas de Medicina e
Saúde, este signatário articulou-se com o Movimento Escolanovista em
defesa da escola pública brasileira. As proposições deste representante do
movimento de renovação e modernização da escola foram formuladas no
âmago das questões sociais, culturais e políticas de seu país, entrelaçadas
à concepção de proteção à vida e às possibilidades de uma sociedade ser
construída com a criação do caráter nacional, com o afinco aos estudos
pelas gerações mais jovens, e da lógica das ciências como critério definidor
das políticas pública (MONARCHA, 2014, p. 455).

334
Considerações Finais

O Brasil do início do século XX, com a conjuntura econômica e


política a qual Briquet esteve inserido, permitiu-nos compor o panorama
da atuação de um intelectual em seu contexto histórico por meio da sua
trajetória intelectual. Briquet e associado a um conjunto de pessoas que
pensavam “as reformas pedagógicas intimamente ligadas com a recons-
trução fundamental das relações sociais para a sociedade brasileira”
(AZEVEDO, 2010, p. 193).
Bomfim (2002) faz referência a Raul Briquet, dando notoriedade
em sua postura científica, reconhecida por sua contribuição na área da
saúde e da educação. Médico e professor, assumiu funções diversas nas
instituições das quais participou como fundador e colaborador. Também,
“Seu estudo sobre grupos foi fortemente influenciado pelo materialismo
histórico de Karl Marx (abrangendo o determinismo econômico, a concep-
ção materialista da história, a luta de classes e a teoria econômica) e pelo
método dialético de Hegel” (BOMFIM, 2002, p. 33).
A leitura dos escritos do autor em seu tempo histórico – compreen-
dendo sua concepção de sociedade, identificando, localizando e buscando
as associações entre as ideias e os sentidos das suas práticas sociais – foi
a proposta do texto. Uma tarefa muito desafiadora. Todavia, um desafio
que representou respeitar o dito e o feito pelo intelectual pesquisado, sem
interferir em suas intenções e ações, e, ao final, buscar o significado políti-
co de sua ação como intelectual como um dos signatários do Manifesto dos
Pioneiros pela Educação Nova, de 1932. Como signatário daquele Manifesto,
Raul Briquet confirmou seu engajamento no movimento de renovação da
escola e de modernização da sociedade brasileira dos anos de 1930.

Publicações de Raul Carlos Briquet

Livros

BRIQUET, R. Antologia médica brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1951.
BRIQUET, R. Da psycho-physiologia e pathologia musicaes. 1911. Tese (Doutorado em
Medicina) – Faculdade de Medicina, Rio de Janeiro (Publicada em São Paulo. Typ.
Modelo, 1911).

335
BRIQUET, R. História da educação: evolução do pensamento educacional. São Paulo:
Ed. Renascença, 1946.
BRIQUET, R. Lições de anestesiologia. São Paulo: Atlas, 1944.
BRIQUET, R. Obstetrícia normal. São Paulo: Freitas Bastos, 1939.
BRIQUET, R. Obstetrícia operatória. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1932.
BRIQUET, R. (org.). Elementos de enfermagem. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1931.
BRIQUET, R. (org.). Manual da socorrista de guerra. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1943.
BRIQUET, R. Palestras e conferências. São Paulo: Atlas, 1944.
BRIQUET, R. Patologia da gestação. São Paulo: Renascença, 1948.
BRIQUET, R. Tendências da sociologia contemporânea. São Paulo: Typografia Comer-
cial, 1933.
BRIQUET, R.; LEVI, R. Maternidade universitária de São Paulo. São Paulo: Reitoria da
USP, 1946.

REFERÊNCIAS

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nual brasileiro sobre Psicologia Social. 2016. Dissertação (Mestrado em Psicologia
Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
AZEVEDO, F. de et al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos Educa-
dores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. Coleção
Educadores. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/
me4707.pdf. Acesso em: 26 mar. 2021.
BOMFIM, E. de M. Históricos cursos de Psicologia Social no Brasil. Psicologia &
Sociedade, [s. l.], v. 16, n. 2, p. 32-36, maio/ago. 2002.
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Ber-
trand do Brasil, 1989.
BRIQUET, R. Psicologia Social. São Paulo: Francisco Alves, 1935.
MONARCHA, C. Um autor polígrafo. Um manual insólito. Raul Briquet e História da
Educação: evolução do pensamento educacional. Cadernos de História da Educação,
Uberlândia, v. 13, n. 2, p. 453-474, jul./dez. 2014.
MORETZSOHN, M. A. História da Psicanálise. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v.
48, n. 89, dez. 2015.
SKINNER, Q. Significado e interpretação na história das ideias. Tradutor Marcus
Vinícius Barbosa. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 358-399,
jan./abr. 2017.

336
VIEIRA, C. E. Contextualismo linguístico: contexto histórico, pressupostos teóricos e
contribuições para a escrita da história da educação. Revista Brasileira de História da
Educação, Maringá, v. 17, n. 3 [46], p. 43-67, jul./set. 2017.
VIEIRA, C. E. Intelectuais e Educação. Pensar a Educação em Revista, Curitiba; Belo
Horizonte, v. 1, n. 1, p. 3-21, abr./jun. 2015.
VIEIRA, C. E. Intelligentsia e intelectuais: sentidos, conceitos e possibilidades para a
história intelectual. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 8, n. 1 [16],
jan./abr. 2008.
WINDHOLZ, M. H. Resgatando a memória dos patronos: vida e obra de Raul Carlos
Briquet – Cadeira nº 12. Boletim Academia Paulista de Psicologia, São Paulo, ano 24,
n. 1 [4], p. 9-14, 2004.

337
CAPÍTULO XXIV

RAUL RODRIGUES GOMES

Dulce Regina Baggio Osinski1

Minha política é a da educação. Meu partido é o da


educação. Minha religião é a da educação.
Raul Rodrigues Gomes

Introdução

As palavras acima, proferidas em artigo publicado no jornal O Dia,


(GOMES, 01 mar. 1932, p. 2), bem sumarizam a opção de dedicar sua vida
à causa educacional, feita pelo único intelectual2 paranaense a ter tido o
privilégio de assinar o documento que ficou conhecido como o Manifesto
dos Pioneiros pela Educação Nova.

1 Doutora em Educação. E-mail: dulceosinski@ufpr.br.


2 O conceito de intelectual será aqui empregado a partir das reflexões de Gramsci (2004, p. 53),
que o concebe como um organizador da cultura e um interventor ativo na cena pública em favor
de transformações sociais.

338
Nascido Piraquara, PR, Raul Rodrigues Gomes (1889-1975) era filho
do português Joaquim Rodrigues Gomes, que atuou como correspondente do
jornal Diário do Comércio e Guilhermina Lisboa da Costa, professora pública da
Capital (NEGRÃO, 1927, p. 184-214). Essas relações familiares com a educa-
ção e o jornalismo possivelmente contribuíram para sua decisão de se dedicar
simultaneamente a essas duas profissões ao longo de toda a sua vida.
Sua carreira de professor se iniciou em 1907, aos 18 anos, quando
concluiu a Escola Normal de Curitiba, tendo sido no mesmo ano nomeado
para o exercício do magistério na cidade de Morretes. Também lecionou em
Rio Negro, Paranaguá e Joinvile, tendo participado da comissão responsá-
vel pelo recenseamento escolar do Paraná, iniciado em 2015 (NOTICIÁRIO,
23 out. 1915, p. 1).
Em 1921, assumiu em Curitiba o cargo de auxiliar de administração
dos Correios do Paraná, ali permanecendo até 1938. As funções exercidas
naquela Instituição (NEGRÃO, 1927, p. 230), têm relação direta com o
Curso Prático de Guarda Livros, empreendimento fundado em 1919, e que
funcionou por algumas décadas3, sendo anunciado com frequência nos jor-
nais da cidade com a promessa de “preparo individual, rápido e garantido
de escrituração mercantil, redação completa, datilografia, etc.” (CURSO..., 8
mar. 1927, p. 4). A essas atividades se somaram mais tarde as exercidas no
ensino secundário público, no qual ingressou em 1940 e ao qual se dedicou
até 1959. (BIBLIOTECA..., 1969, p. 1).
Sua formação superior ocorreu tardiamente, tendo concluído o
curso de Direito na Universidade Federal do Paraná em 1935, aos 41 anos
(BRANDALISE, 2016, p. 59). Ingressando na carreira universitária alguns
anos mais tarde quando, já com quase 60 anos, assumiu a cadeira de
Economia política na mesma faculdade que cursara, ali permanecendo até
1959, quando se aposentou compulsoriamente.
A participação de Raul Gomes em associações culturais e entidades
de classe, muitas das quais ele ajudou a fundar, foi outra marca registrada
de sua trajetória4. Chama atenção seu envolvimento com associações

3 Em 1931, unindo-se à Escola Prática de Comércio, deu origem à Academia Paranaense de


Comércio, escola de caráter oficial.
4 Entre as instituições das quais foi partícipe ou membro, podemos citar o Instituto Histórico,
Geográfico e Etnográfico do Paraná (1900), o Centro de Letras do Paraná (1912), a Associação

339
vinculadas à classe operária, com as quais contribuiu por diversas vezes,
participando de comissões deliberativas ou proferindo palestras5. Tam-
bém foi um dos criadores da OPALA – Operação Paraná de Liquidação do
Analfabetismo, em Morretes, e do GERPA – Grupo Editorial Renascimento
Paranaense, especializado em publicação de clássicos e de obras de auto-
res paranaenses.
Suas atividades como jornalista tiveram início em 1906, com a
fundação de um jornal humorístico chamado O Relâmpago (GOMES, 08
jul. 1973, p. 1). Já em 1907 estreou como colaborador na revista A Escola,
impresso do Grêmio dos Professores Públicos (GOMES, 1907), momento
em que teve início de modo mais sistemático uma produção enfatizando
assuntos educacionais.
A colaboração com o Diário da Tarde inicia, no mesmo período,
uma parceria que duraria por décadas, tendo exercido naquele veículo, em
diferentes períodos, funções diversas tais como as de repórter, redator,
redator-secretário, redator chefe e diretor. (GOMES, 8 jul. 1973, p. 1). Em
1908, uma série de artigos intitulados “Assuntos Pedagógicos” já eviden-
ciava aspectos como a defesa da educação pública e o anticlericalismo,
abordando questões como a obsolescência dos regulamentos de ensino, a
precariedade das condições materiais nas escolas, o atraso metodológico,
as práticas obsoletas de ensino, o desinteresse e omissão dos professores
e sua baixa remuneração. Alguns anos mais tarde, o A República abriu
espaço para que ele comentasse o Relatório apresentado em 1914 pelo
então Diretor da Instrução Pública, Francisco Ribeiro de Azevedo Macedo,
que propunha melhorias para a situação situação educacional paranaense,
textos que foram compilados e publicados com o título Instrução Pública
no Paraná (GOMES, 1914), iniciando uma prática que se repetiria duas
vezes mais. A obra Missão, e não Profissão (GOMES, 1928) reúne artigos
publicados em diversos veículos sobre a situação do professorado e suas

Paranaense de Educação (1928), a Academia Paranaense de Letras (1936), a Loja Dario Velozzo
da Maçonaria (1939), a Sociedade de Amigos de Alfredo Andersen (1940), e a Sociedade de
Cultura Artística Brasílio Itiberê - SCABI (1944).
5 Entre outras ações divulgadas em jornais, especialmente entre as décadas de 1910 e 1930,
Gomes integrou a comissão para elaboração das bases da Federação Operária do Paraná,
juntamente com Erasmo Pilotto e Luduvico Garcia. (O INDUSTRIAL..., 25 jan. 1930, p. 1).

340
condições profissionais. Já o livro Versa Tribunicia (GOMES, 1925) congrega
textos com a temática educacional. Tais esforços explicitam a percepção
sobre a efemeridade das publicações periódicas e o desejo de que suas
ideias tivessem um destino mais longo que as páginas dos jornais diários.
Entre 1907 e 1975 foram milhares de artigos publicados em veículos pa-
ranaenses e nacionais6. Entre os diversos assuntos, que incluem política,
arte, cultura, economia e literatura, a educação assume papel de destaque.
Não se limitando a agir somente por meio da pena, desde muito
jovem Raul Gomes demonstrou interesse em se imiscuir no tecido social,
participando de projetos prol da comunidade, coordenando-os e em mui-
tos casos atuando como seu idealizador ou proponente. Foram muitas as
campanhas por ele empreendidas ou apoiadas nos jornais paranaenses,
algumas de cunho político7. Na maioria das vezes, porém, seu foco eram os
assuntos educacionais e os referentes à arte ou à cultura.
Por vezes seus esforços de mobilização tratavam de temas
pontuais, gerando em muitos casos resultados concretos. Foi o caso das
campanhas empreendidas, em 1927, para a ereção de um monumento em
homenagem à professora Julia Wanderley (ECOS..., 18 mai. 1927, p. 2) e
para a comemoração do centenário da lei que instituiu o ensino primário
(GOMES, 19 mai. 1927, p. 2). Também lutou pela melhoria do aparelha-
mento cultural, defendendo a construção da Biblioteca Pública do Paraná,
de outras bibliotecas no Estado e do Teatro Guaíra, a fundação da Escola
de Música e Belas Artes do Paraná, e a federalização da Universidade do
Paraná. Outras ideias foram advogadas de forma recorrente por toda a
sua vida, a exemplo da dignidade da profissão docente ou o combate ao
analfabetismo.

6 Entre os jornais paranaenses, podemos citar: O Archote, O Lutador (Morretes), Diário Folha da
Manhã, Diário da Tarde, A República, O Dia, Diário do Paraná, Diário Popular, Comércio do Paraná,
Gazeta do Povo, Estado do Paraná, Folha do Norte do Paraná, Folha de Curitiba, Diário dos Campos
e O Progresso (Ponta Grossa). Colaborou com jornais que circulavam em São Paulo e Rio de
Janeiro, como a Folha da Manhã (hoje Folha de São Paulo), o Diário de São Paulo, O Globo e o
Diário de Notícias. (PROFESSOR..., 1975, p. 3). Também esteve envolvido com a edição e redação
de revistas como a Olho da Rua, Palladium, Anthus, Novela Paranaense, A Noite e A Tribuna.
7 Em 1910, mobilizou a população local contra a cessão, pelo Supremo Tribunal, de áreas do
Paraná para Santa Catarina. (MORRETES, 4 jan. 1910, p. 1).

341
Um educador renovador, um jornalista engajado

No início da década de 1930, Raul Gomes gozava de considerável


prestígio no meio educacional e cultural paranaense, mantendo igualmen-
te relações com intelectuais reconhecidos nacionalmente. Sua colaboração
para o jornal O Dia, que se iniciara esporadicamente a partir de 1925,
passou a ser quase diária naquele veículo a partir do segundo semestre
de 1931. Entre julho daquele ano e dezembro de 1932, foram 268 artigos
publicados, sendo que 73% tratavam de temas relacionados à educação8.
Localizados sempre na primeira ou segunda página do jornal, gozavam de
considerável visibilidade junto aos leitores.
As críticas ao governo provisório instituído pela revolução de
1930 eram frequentes em seus textos nesse período, especialmente
pela falta de providências tomadas para as transformações educacionais
necessárias. Os movimentos pela educação nova eram igualmente pauta
constante, sendo com frequência mobilizados exemplos de educadores
como Rousseau, Dewey, Pestalozzi, Montessori, Claparède, Ferrière, Kers-
chensteinter, Antipoff, entre outros, e comentadas reformas ocorridas em
países como os Estados Unidos, o Chile, A Argentina, o México, a Espanha
ou a Rússia. Enquanto as chamadas “escola ativa”, “escola da ação”, “escola
da sociedade” escola para a vida” ou “escola do trabalho” eram por ele
denominadas “escola da bondade”, a escola conhecida como tradicional
merecia de sua parte, por seus métodos cerceadores e ineficazes, a alcu-
nha de “escola da maldade”. (GOMES, 12 ago. 1931. p. 2). A reafirmação
do laicismo, a defesa de profissionais da educação para ocupar cargos de
comando relacionados a essa pasta, a incitação para maior organização
dos professores e a divulgação de ideias e métodos renovadores eram
alguns dos elementos recorrentes de seu discurso.
Gomes também divulgava publicações pedagógicas de autores
nacionais e estrangeiros, bem como eventos que ocorriam no exterior,
fornecendo informações sobre sua programação e comentando sua orien-

8 Esse levantamento foi realizado na Hemeroteca da Biblioteca Nacional, podendo porém


conter imprecisões pelo fato de faltarem eventualmente algumas páginas dos jornais.

342
tação pedagógica renovadora. Personagens que já naquele momento eram
conhecidos como educadores renovadores da educação eram citados de
maneira elogiosa em diversos de seus textos, como Lourenço Filho, con-
siderado “uma das maiores, senão a maior competência psicopedagógica
da América do Sul” (GOMES, 27 set. 1931, p. 2), Anísio Teixeira, “eminente
discípulo de Dewey” (GOMES, 13 out. 1931, p. 2) ou Fernando Azevedo,
“um grande técnico” da educação (GOMES, 30 ago. 1931, p. 2). Também
mencionava eventualmente outras personalidades, como Carneiro Leão,
Sussekind de Mendonça e Armanda Alberto, bem como alguns parana-
enses adeptos da educação nova, a exemplo de Erasmo Pilotto, Osvaldo
Piloto ou Lysimaco Ferreira da Costa.
É provável que os primeiros contatos de Raul Gomes com alguns
daqueles que se tornariam conhecidos como os renovadores da educação,
e que estiveram envolvidos na elaboração do Manifesto de 1932, tenha
se dado nas conferências nacionais de educação, especialmente em sua
primeira edição, que aconteceu no final de 1927 na capital paranaense.
O educador participou ativamente de vários desses eventos e em muitas
ocasiões apresentou teses, participando ativamente dos debates empre-
endidos. Em julho daquele mesmo ano, ele fora convidado a participar do
Congresso do Ensino Primário, realizado em Florianópolis, tendo-lhe sido
colocados à sua disposição transporte e hospedagem, o que denota o
grande interesse em sua participação. (CONGRESSO..., 26 jul. 1927, p. 2).
A primeira edição das conferências organizadas pela Associação
Brasileira de Educação teve como presidente o professor, pesquisador e ad-
ministrador do ensino Lysimaco Ferreira da Costa, entusiasta dos métodos
educacionais renovadores e então Diretor da Instrução Pública do Paraná.
O evento contou com a presença e apresentação de teses de vários futuros
signatários, a exemplo de Lourenço Filho, Venâncio Filho, Armanda Álvares
Penteado e Hermes Lima. Outros, como Fernando de Azevedo e Afrânio
Peixoto, foram citados por diversas vezes nos documentos submetidos à
análise naquela ocasião. Raul Gomes submeteu duas teses à apreciação
da plenária. Uma delas, intitulada “Missões Escolares”, propunha o envio
de professores brasileiros a centros educacionais no exterior para aqui-

343
sição de experiência e conhecimentos, citando como exemplos Decroly,
Montessori, Ferrière e Dewey (COSTA; SHENA; SCHMIDT, 1997). A segunda
tese, “A conscrição escolar”, de inspiração militar, propunha um modo obri-
gatório e progressivo de inserção das crianças brasileiras na escola. Em
ambos os casos, os textos foram finalizados com um pré-projeto de lei a
ser encaminhado para as instâncias governamentais. Naquela ocasião, foi
fundada a seção paranaense da A.B.E., tendo Raul Gomes ocupado o cargo
de 1º Secretário da diretoria provisória constituída. (CONFERÊNCIA..., 22
dez. 1927, p. 4).
A 2ª Conferência Nacional de Educação, realizada em 1928 em Belo
Horizonte (MG), contou com a participação de Gomes já como delegado
indicado pelo Governo do Estado e também representante da Associação
Paranaense de Educação, tendo sido eleito para integrar a Mesa Diretora
do evento. Sua atuação foi bastante comentada, tanto nos anais do certa-
me, como nos jornais paranaenses, a exemplo do O Dia, que dedicou deze-
nas de artigos lhe dando destaque. A tese por ele apresentada, intitulada
“Educação política”, foi aprovada por unanimidade pela plenária, tendo sido
elogiada pelo parecerista Bernardino de Souza, que a considerou “uma
notável contribuição”. Nas conclusões do documento, que foram adotadas
pela Conferência na íntegra, ele solicitava à Associação Brasileira de Edu-
cação que promovesse os meios mais oportunos para que uma comissão
de técnicos especialistas, “ouvidas as sugestões de todos os corpos
educadores do Brasil”, elaborasse um plano de educação nacional que
abrangesse todos os níveis de ensino. (OLIVEIRA E SILVA, 2004, p. 108).
Em entrevista concedida ao O Dia, Gomes ressaltou a necessidade de se
tratar as questões educacionais de forma integrada, devendo-se “orientar
os diversos graus de ensino para o fim de formar cidadãos aptos” (O PRO-
BLEMA..., 9 dez. 1928, p. 2). Potencializando as relações iniciadas naquele
certame, alguns meses mais tarde, o educador fez parte de uma comissão
que recepcionou Vicente Licínio de Cardoso e Ignacio Azevedo do Amaral,
que viajavam pelo Brasil em nome da A.B.E., para defender as posições da
entidade em favor da educação (A EMBAIXADA..., 7 mar. 1929, p. 8).

344
Raul Gomes também foi designado a representar o Paraná na III
Conferência Nacional de Educação realizada na cidade de São Paulo em
1929, à qual também estiveram presentes futuros signatários, como
Anísio Teixeira e Sussekind de Mendonça. Assim como ocorrera nos anos
anteriores, além de submeter a tese intitulada “O ensino profissional: as
necessidades do Brasil e a solução do problema”, fez uso da palavra por
diversas vezes para defender suas opiniões e dar sugestões de encami-
nhamento, contribuindo com os debates. Não obstante, sua participação
entusiasmada convivia com avaliações muitas vezes severas que redun-
davam em críticas públicas aos participantes e à organização dos eventos.
Má orientação dos trabalhos, falta de foco e de tempo para as discussões,
sobreposição de interesses regionais e de classe, trocas de insultos e
desentendimentos entre os participantes foram alguns dos pontos por ele
levantados em seus artigos. Isso não impediu que fosse convidado pela
própria A.B.E para participar da Quarta Conferência (1931) e atuar como
relator de um dos temas da quinta edição do evento, a acontecer em 1932
(GOMES, 22 abr. 1932, p. 2).
Gomes voltou ao assunto da necessidade de um plano nacional de
educação por diversas vezes, antes de se tornar signatário da proposta de
Fernando de Azevedo. Em julho de 1931, criticou a iniciativa governamen-
tal, que criara uma comissão para tratar do assunto, por não possibilitar
uma discussão ampla na sociedade e não incluir, entre seus membros, ne-
nhum professor primário, o que também ocorrera por ocasião da criação,
um pouco antes, do Conselho Nacional de Educação. Em sua opinião, um
plano nacional de educação deveria “traduzir o esforço de muitos, prin-
cipalmente dos professores de todos os graus, masculinos e femininos,
públicos e particulares” (GOMES, 10 jul. 1931, p. 2), devendo a unidade do
processo educativo ser o nervo do sistema a ser elaborado, com a íntima
articulação dos diversos níveis de ensino. Defendia ainda a instalação, em
cada universidade brasileira, de uma escola normal superior; a instituição
de um sistema de bolsas de estudo e a adoção de melhorias dos venci-
mentos do magistério. (GOMES, 15 jul. 1931, p. 2).

345
As relações de Raul Gomes com Cecília Meirelles, que também se
tornaria signatária do Manifesto redigido por Fernando de Azevedo, são
mais um ingrediente do complexo conjunto de fatores resultou na sua
participação daquele projeto. Desde meados de 1931, o educador contri-
buía esporadicamente com sua coluna “Página de Educação”, sendo por
ela referido como “uma das raras forças que enfrentam corajosamente a
alarmante situação educacional do Brasil” (C.M., 14 out. 1931, p. 6) e “um
grande trabalhador da Escola Nova” (PUBLICAÇÕES, 1 ago. 1931, p. 6).
Alguns dos artigos ali veiculados abordaram o tema do plano nacional de
educação, questão reforçada por seu conterrâneo Erasmo Pilotto, também
participante da referida coluna, que chegou a sugerir que o assunto fosse
discutido na Conferência que se realizaria no final daquele ano.
Quando dos trabalhos de abertura da IV Conferência Nacional de
Educação, as instâncias governamentais, nas pessoas de Getúlio Vargas
e de Francisco Campos, primeiro Ministro de Educação, solicitaram aos
educadores reunidos um delineamento de uma nova política educacional,
expectativa não realizada, muito por conta de dissidências evidenciadas
entre católicos e liberais (VIDAL, 2013, p. 583). O excesso de “palavrório
gasto” na ocasião e a falta de coesão dos congressistas para pensar um
plano para a educação do país foram alvos de crítica de Raul Gomes (GO-
MES, 25 fev. 1932, p. 2).
A decisão tomada por Fernando de Azevedo de reunir um grupo
de intelectuais para referendar, por meio de um manifesto, as diretrizes
para a educação por ele construídas, foi, segundo Vidal (2013, p. 580-581),
“estratégia política de luta, conduzida no calor das batalhas pelo controle
do aparelho educacional”, mais que uma tentativa de marcação de posi-
ções ideológicas. Assim como a maioria dos signatários, Raul Gomes era
professor e jornalista. Esse último critério de escolha carregava possíveis
expectativas de que o Manifesto fosse amplamente divulgado na imprensa,
o que em certa medida ocorreu. O texto intitulado “A reconstrução educa-
cional no Brasil: Ao povo e ao governo” foi veiculado na íntegra e referido
em artigos e notas publicados em veículos de ampla circulação como os

346
cariocas Correio da Manhã, Diário de Notícias, Jornal do Commercio, O Jornal, e
os paulistas Folha da Manhã e Folha da Noite.
A repercussão no contexto paranaense ocorreu de forma menos
enfática, tendo o Manifesto tido tratamento diferenciado pelos principais
jornais locais. O Diário da Tarde publicou o documento na íntegra, dividido
em oito artigos intitulados “Um plano nacional de educação” que saíram no
período entre 29 de março e 7 de abril daquele ano, porém sem qualquer
matéria com esclarecimentos ou comentários. Já Gazeta do Povo silenciou
completamente sobre o assunto. Raul Gomes foi o único responsável por
qualquer referência ao Manifesto no O Dia.
Entretanto, ao contrário de Cecília Meirelles, que dedicou espaço
considerável ao tema em sua coluna, Gomes se comportou de modo um
tanto evasivo. O texto intitulado O manifesto dos educadores (GOMES, 25
mar. 1932, p. 2), embora cite de forma elogiosa o nome de Fernando de
Azevedo, não explora as ideias no referido documento nem menciona seu
título, limitando-se a saudá-lo de forma genérica como uma “formidável
peça”, responsável por traçar “diretrizes lúcidas e sensacionais”, que “em-
polgou a quase totalidade das inteligências patrícias”. A promessa, feita ao
final de seu texto, de analisar seu conteúdo “detidamente em sucessivos
artigos” não foi por ele cumprida. Em outros dois textos daquele ano o
Manifesto foi mencionado de forma positiva, mas apenas de passagem
(GOMES, 2 abr. 1932, p. 2; GOMES, 20 abr. 1932, p. 2), não sendo dedicado
a ele mais que um parágrafo. Em nenhum momento ele se identificou como
um de seus signatários, referindo-se ao grupo de educadores “patrícios”
sempre na terceira pessoa.
A pouca visibilidade dada por Gomes em relação ao documento que
recebeu seu aval causa estranhamento, tendo em vista que muitas das
ideias ali contidas eram por ele há tempos defendidas. Entre os pontos
de convergência, podemos citar a primazia da educação nos planos de
reconstrução nacional, a unidade do ensino em seus diversos níveis e a
educação como direito de todos. A laicidade, a obrigatoriedade e a coedu-
cação também eram reivindicações do educador paranaense, assim como
a incorporação dos estudos de magistério à universidade e a ênfase numa

347
educação ativa e criadora, que respeitasse a individualidade do aluno. Ape-
sar disso, mesmo tendo afirmado terem os educadores a partir de então
um “evangelho” (GOMES, 25 mar. 1932, p. 2), não julgou importante que o
leitor conhecesse mais detalhes sobre ele.
Durante o ano de 1932, outros planos educacionais se sucederam.
Muitos deles mereceram comentários de Raul Gomes, a exemplo do expres-
so no programa do Partido Social Nacionalista, de Minas Gerais, (GOMES,
29 abr. 1932, p. 2), ocasião em que o educador afirmou a necessidade de
os partidos traçarem “um plano educacional rigoroso, de linhas firmes, de
propósitos objetivos”. Em maio daquele ano, o Partido Reformador Constitu-
cionalista teria seus projetos relativos à educação citados por ele de forma
elogiosa (GOMES, 27 mai. 1932, p. 2), e em junho seria a vez dos programas
do Partido Republicano Paulista e do Partido Democrático serem divulgados.
(GOMES, 29 jun. 1932, p. 2). A sucessão de propostas e planos teve conti-
nuidade ao longo daquele ano, quando no mês de agosto o Diário Oficial da
União divulgou mais um plano, desta vez de autoria do Almirante Américo
Brasil Silvado, criticado duramente por Gomes por seu “integral alheamento
a assuntos de instrução”. (GOMES, 17 ago. 1932, p. 2).
Em setembro daquele ano, o intelectual paranaense citaria o Mani-
festo de Fernando de Azevedo como um dos dois planos dignos de menção
surgidos nos últimos anos, ao lado daquele elaborado pelo Governo em
1931, afirmando, porém, que não surgira ainda “o plano definitivo”. No
artigo que publicou no final de dezembro a título balanço do que relevante
ocorrera no campo da educação, o Manifesto não é sequer citado, embora
ações de Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira junto à
esfera pública tenham sido mencionadas positivamente. Gomes também
comentou sobre as discussões empreendidas por ocasião da V Conferência
Nacional de Educação as quais, “funcionando sob orientação prática e efi-
ciente” (GOMES, 31 dez. 1932, p. 2), traçaram diretrizes e bases que seriam
acolhidas pela Constituição de 1934, embora tivessem sido suprimidas
posteriormente pela Carta Constitucional de 1937.
Apesar da falta de ênfase com que tratou essa primeira iniciativa,
o nome de Raul Rodrigues Gomes foi lembrado algumas décadas mais

348
tarde por ocasião de uma segunda ação congênere, proposta por Fernando
de Azevedo. Lançado em 1959 e intitulado “Mais uma vez convocados:
manifesto ao povo e ao governo” (AZEVEDO, 2010), o documento teve
novamente Raul Rodrigues Gomes como um dos 161 educadores que, a
ele aderindo, reafirmavam os ideais expressos em 1932 e se colocavam a
favor de medidas modernizadoras para a educação do país.

Considerações finais

As redes por Raul Gomes até aquele momento, a visibilidade al-


cançada pelas ideias que defendia em eventos educacionais e por meio
de artigos publicados em jornais que circulavam em São Paulo e no Rio
de Janeiro, e principalmente a defesa recorrente da necessidade de um
plano educacional para o Brasil, tornavam possível que seu nome fosse
lembrado para integrar o rol de assinantes do Manifesto de 1932, redigido
por Fernando Azevedo.
Entretanto, a pouca divulgação que deu à iniciativa, bem como o
fato de não se identificar publicamente como um de seus signatários é
digna de nota, tendo em vista a identificação das ideias do documento com
suas convicções pessoais a respeito dos assuntos educacionais. Uma das
hipóteses dos motivos disso ter ocorrido seria o modo como o Manifesto
foi elaborado, basicamente por seu proponente, sem uma ampla discussão
no meio educacional e excluindo a participação de professores primários,
pontos recorrentes nas argumentações de Gomes sobre o assunto.
Essa passagem de sua trajetória seria igualmente eclipsada por
ele mesmo futuramente em seus esforços de construção de uma memória
autobiográfica9, estando ausente de artigos e documentos que redigiria
ao final da vida sobre seus feitos. O motivo de seu aparente menosprezo
por esse que hoje é considerado um dos marcos históricos para o campo
educacional é um enigma ainda por ser desvendado.

9 São muitos os artigos e textos consultados em que reivindica historicamente iniciativas


tomadas. (GOMES, 17 out. 1971, p. 2; Gomes , 8 jul. 1973, p. 1; BIBLIOTECA..., 1969)

349
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Questões para debate. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 39, n. 3, p. 577-588, jul. set. 2013.

351
CAPÍTULO XXV

ROLDÃO LOPES DE BARROS

Marizeth Ferreira Farias1


Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida2

Este capítulo tem como objetivo retratar a história e memória


dos principais fatos sobre a vida política e intelectual de Roldão Lopes de
Barros. A biografia desse notável mestre mostra a sua participação no
conjunto dos 26 educadores que assinaram o Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova, em 1932. Sua trajetória profissional de 40 anos de Magis-
tério percorreu diferentes graus de ensino e estabeleceu o reconhecimento
que lhe deu a nomeação para a cadeira de História e Filosofia da Educação,
na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo
– USP. A afinidade desse educador com a vida política o destaca entre os
renomados intelectuais brasileiros, europeus e americanos.
A participação de Roldão Lopes de Barros nas assinaturas do
Manifesto enfatiza sua busca por melhorias na educação. O Manifesto
foi idealizado por Fernando de Azevedo, com o documento intitulado
A reconstrução educacional no Brasil: ao povo e ao governo. Entretanto, os

1 Doutora em Educação. E-mail: marizethfarias@gmail.com.


2 Doutora em História. CV: http://lattes.cnpq.br/5736362178244406. E-mail: zeneide.cma@
gmail.com.

352
desbravadores que o assinaram o ajudaram a se tornar conhecido pela
população, já que o documento circulou por todo o território nacional com
o objetivo de propiciar diretrizes para uma política de educação.
Filho de José Lopes de Barros e de Gertrudes Ferreira de Souza
Barros, Roldão Lopes de Barros nasceu na cidade de São Paulo, em
30 de janeiro do ano de 1884, e faleceu em 30 de agosto de 1951. Em
seu processo de formação profissional, destacou-se pela inteligência e
autodidatismo, o que lhe permitiu aprender idiomas e obter prêmios de
mérito intelectual.
Iniciou sua trajetória docente aos 27 anos de idade, pelo Ensino
Primário. Sua vida na educação teve um percurso longo de 40 anos de tra-
balho ininterruptos no Magistério. Conseguiu seu reconhecimento, sendo
o primeiro titular da cadeira de História e Filosofia da Educação, cargo que
ocupou até sua aposentadoria.
Esses acontecimentos mostram a relevância da biografia do reno-
mado Roldão, apresentada suscintamente, mas fazendo desta pesquisa
uma parcela significativa no empenho biográfico que registra a sua atuação
política-intelectual para que não caia no esquecimento. Essa memória se
torna marcante por trazer, sem rodeios, fatos da vida do professor Roldão
Lopes de Barros. A ideia é registrar sua história permeada de realizações
em um sistema de organização escolar, à altura da modernidade e das
necessidades do país.

Os passos acadêmicos e profissionais do mestre notável

Roldão Lopes de Barros iniciou seus estudos escolares aos cinco


anos, mas permaneceu na escola somente até os nove anos de idade.
Afastou-se temporariamente de seus estudos no Colégio Coração de Jesus,
em virtude do falecimento de seu pai, porém, esse rompimento temporário
da rotina estudantil não o impediu de prosseguir rumo aos avanços do
conhecimento.
Afastado dos estudos e passando por dificuldades, começou sua
vida profissional muito cedo, indo trabalhar na primeira ferrovia do estado
de São Paulo, denominada “São Paulo Railway Company”, Limited. Despois,

353
a história de seus passos acadêmicos continuou a mostrar a formação
que o abrilhantava. Sua inteligência e seu autodidatismo destacaram-no
com especial notoriedade, a ponto de sua família ansiar que ele seguisse a
carreira de sacerdote.
Explorando a sua intelectualidade, ingressou no curso de Jorna-
lismo, e conseguiu trabalho na Tribuna de santos e no Correio Paulistano de
São Paulo. Sua dedicação aos estudos o favoreceu no campo acadêmico
e profissional. Buscou ter o domínio de idiomas, sendo seus esforços re-
conhecidos, lhe garantindo a obtenção de vários prêmios de mérito inte-
lectual, já enquanto cursava a Escola Normal, atual Instituto de Educação
Caetano de Campos, em São Paulo. Após a conclusão do Curso Normal,
foi nomeado para a cadeira de Pedagogia na Escola Normal da Praça.
Após ter se estabelecido profissionalmente como professor, casou-se e
teve nove filhos.
O amigo de Roldão Lopes de Barros, Fernando de Azevedo, ates-
tou que o notável professor teve vida árdua. No começo de sua carreira
profissional, passou por dificuldades, mas galgou grandes progressos,
consoante à sua inteligência e seu esforço próprio, que o levaram de
tipógrafo a advogado.
Ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo em 1919. Nessa
época, foi apelidado, carinhosamente, pelos amigos, de “biblioteca am-
bulante”, devido ao costume de andar com os “bolsos” sempre cheios
de livros. Todavia, embora tenha exercido as profissões de jornalista e
advogado, Roldão Lopes de Barros dedicou a maior parte da sua vida ao
Magistério, percorrendo, graças à sua inteligência e dedicação, diferentes
posições na carreira docente.
Washington Luis Pereira de Souza, na época presidente do estado
de São Paulo, convidou-o para organizar a Escola Normal Padre Anchieta.
Na direção, por adotar métodos e técnicas modernas de ensino, graças ao
seu contato direto com intelectuais franceses e americanos, a escola ga-
nhou grau de excelência, sendo reconhecida por seu alto padrão de ensino.
Atuou no campo educacional como diretor substituto da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Nessa instituição de Ensino Superior,

354
Roldão orientou estudos voltados para o campo da Administração Escolar,
Legislação Escolar e Educação Comparada. Desempenhou relevantes ser-
viços também no Liceu Franco Brasileiro; e foi fundador do Colégio Pedro
de Toledo, do Orfanato Ana Rosa e do Colégio Rio Branco, sendo que, nessa
última instituição, exerceu também as funções de diretor e professor.
No Colégio Rio Branco, atuou com distinta dedicação, tanto que vi-
nham alunos até do exterior para estudar nessa instituição. Outras escolas
também foram agraciadas com seu trabalho, entre elas os colégios Santo
Agostinho, Santa Inês e Dês Oiseaux. Sua história profissional assim se
mistura à sua presteza intelectual.
Conforme preleciona Fernando de Azevedo (1951, p. 480), o “[...]
mestre Roldão foi enriquecendo e alargando a experiência humana que
para o ensino e a educação trouxera de suas atividades, profissionais e
políticas, nas classes operárias”. Sempre simpático e atuante junto às cau-
sas educacionais, filiou-se à Sociedade de Educação e, junto com Monteiro
Lobato, sendo este o editor da revista, publicaram revistas especializadas
em educação. Pela associação, o professor Roldão lançou a proposta aos
poderes públicos de reverter os lucros resultantes de arrendamento das
terras pertencentes ao Estado em benefício da Instrução Pública.
A Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (1960, p. 127) registrou
que o Centro Universitário de Estudos Pedagógicos promoveu, na Biblioteca
Municipal de São Paulo, entre os dias 27 de agosto e 15 de outubro, do ano
de 1960, o curso de extensão universitária. Essa formação era destinada a
professores e diretores de estabelecimentos de ensino e a estudantes de
escolas superiores. O tema foi “Introdução à realidade pedagógica nacio-
nal”, ministrado pelo professor Roldão Lopes de Barros. Assim, atento ao
que acontecia à sua volta, Roldão participou de movimentos políticos. Em
1924, foi companheiro de Aureliano Lopes; em 1932, com dois filhos no
movimento revolucionário, contribuiu para a Revolução na parte adminis-
trativa e no Correio Militar.
Segundo Costa (2007), o professor Roldão Lopes de Barros
correspondeu com notáveis especialistas em educação europeus e nor-
te-americanos. Desse intercâmbio, nasceram ideias revolucionárias que o
aproximaram de intelectuais brasileiros que, assim como ele, desejavam

355
promover mudanças na educação. Eram eles: Fernando de Azevedo, Ma-
nuel Bergström Lourenço Filho, Antônio Sampaio Dória, Noemy da Silveira
Rudolfer, Oscar Freire de Carvalho, Renato Jardim, entre outros.
Em sua trajetória, Costa (2007) afirma que, na ocasião em que
atuava no Orfanato Ana Rosa, o professor pôs em prática ideias obtidas
por meio de contatos com as produções intelectuais dos defensores da Es-
cola Nova. Inseriu no Instituto de menores a prática de manter os portões
abertos para a criança não se sentir aprisionada.
Preocupado em proporcionar assistência aos alunos pobres,
procurou oportunizar a eles a aprendizagem de uma profissão, por meio
de oficinas de encadernação, douração, sapataria, marcenaria, bem como
pela instalação de uma gráfica com seus próprios recursos. Criou também
uma banda de música do Colégio, a qual chegou a ser considerada uma das
melhores da cidade de São Paulo.
Bontempi Júnior (2007, p. 88) afirma que Lopes de Barros, no ano
de 1924, usou da sua influência como membro da Sociedade de Educação
e da Revista da Sociedade de Educação para se unir com os estudiosos que
defendiam o método analítico de ensino da leitura, mas desprezavam
os “receituários técnicos” apresentados aos professores primários pela
Revista Escolar. Juntos, promoveram uma “pedagogia científica” com foco
nos elementos para uma formação cultural adensada e de escopo geral
para o magistério.

O reconhecimento da notoriedade de Roldão de Barros

O mestre Roldão de Barros, sempre muito dedicado aos estudos,


revelou-se profundo conhecedor dos movimentos no campo educacional
e, em particular, da Psicologia. Nessa ciência, ministrou disciplinas apon-
tando conexão com especialistas, como William James, Édouard Claparède,
Henri Pieron e Jonh Dewey. Apresentava notório conhecimento da Língua
Francesa, dominava a Língua Inglesa e também alguns dialetos italianos.
Há registros que relatam que, na ocasião da visita dos reis da Bélgica a
São Paulo, Roldão fez parte da comissão de recepção, tendo causado boa

356
impressão à comitiva devido ao seu autêntico francês e modernos conhe-
cimentos sobre Pedagogia e Psicologia.
De acordo Azevedo (1951, p. 480), Roldão era exímio devorador de
livros e “[...] fino apreciador da boa mesa, um gourmand de categoria que
se dava ao luxo de preparar ele mesmo pratos especiais”. O professor era
tão afeiçoado à leitura que, em meio a uma solidão em virtude de uma
confinação por doença, teve a companhia de livros até o fim de sua vida.
A sua devoção ao mundo da leitura lhe rendeu o reconhecimento
de usa importância biográfica. Fernando de Azevedo (1951, p. 480) desta-
ca que seu tempo foi tão gasto com leituras que não sobrou oportunidade
para deixar obra escrita; e, embora tivesse um repertório variado de co-
nhecimento e erudição acumulado durante uma vida de estudos, restou
aos leitores das obras de Roldão Lopes de Barros escrever sobre o legado
deste intelectual, sua “[...] sagacidade de seu espírito crítico, de sua larga
experiência e da riqueza de suas lembranças”. O professor Roldão se foi e
deixou suas memórias aos que o admiravam por seu notório saber e aos
que participaram de suas palestras, aulas e rodas de conversas espon-
tâneas e vibrantes, tornando-se seus discípulos e amigos; restando aos
demais curiosos pesquisar sobre sua autêntica vida político-social.
Na concepção de Fernando de Azevedo (1951, p. 480), a principal
marca do mestre é a de “ledor incansável, perdulário da cultura”; era mor-
mente “[...] a têmpera de lutador, revelada a cada instante na firmeza com
que enfrentou as dificuldades e provações e esposou as causas nobres
e belas”. Foi desbravador em conhecimentos, trabalhador e defensor da
renovação educacional. Além disso, tinha um caráter firme, leal e bondoso,
demonstrava generosidade para com o próximo e indignação com as injus-
tiças sociais. A vida de Roldão de Barros foi sempre norteada por um amor
intenso aos alunos, à profissão, à família, aos amigos e aos pobres.
A importância de Roldão para a história da educação brasileira
é apresentada suscintamente, mas com singular contribuição para sua
memória. O mestre-educador, reconhecido pela população, fez parte de
grupos renomados, fazendo-se notório em várias épocas, cumprindo seu
papel na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e no Centro Universitário

357
de Estudos Pedagógicos (até 1980), ambos da USP, e também na Escola
Estadual de Vila Mariana que o homenageou com o título de Professor
Emérito. A Academia Paulista de Educação condecorou Roldão Lopes de
Barros como Patrono de uma de suas cadeiras, bem como uma das ruas
da grande cidade de São Paulo recebeu o seu nome. Aos que o conheciam,
lhes restavam dar a Roldão mérito de ser realmente um educador partici-
pativo nas questões políticas da educação.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, F. de. Necrológico: professor Roldão Lopes de Barros (1884-1951). Revista


de História, São Paulo, v. 3, n. 8, 1951. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/
revhistoria/article/view/68404. Acesso em: 31 mar. 2018.
BONTEMPI JÚNIOR, B. O ensino e a pesquisa em história da educação brasileira
na cadeira de Filosofia e História da Educação (1933-1962). História da Educação,
Pelotas, n. 21, p. 79-105, jan./abr. 2007. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/asphe/
article/view/29392. Acesso em: 1 maio 2018.
COSTA, H. C. Boa-Viagem A. Resgatando a memória dos pioneiros em psicologia:
Roldão Lopes de Barros – Cadeira nº 25. Boletim Academia Paulista de Psicologia,
São Paulo, v. 27 n. 1, jun. 2007. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1415-711X2007000100007. Acesso em: 1 maio 2018.
REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS. Brasília: Instituto Nacional de
Estudos Pedagógicos; Ministério da Educação e Cultura, v. 34, n. 79, jul./set. 1960.

358
CAPÍTULO XXVI

SEZEFREDO GARCIA DE REZENDE

Wilson Alves de Paiva1

Sezefredo Garcia de Rezende foi professor, jornalista, escritor e


membro-fundador da Academia Espírito-Santense de Letras – AEL. Filho
de famílias que compuseram a chamada “aristocracia cafeeira”, mas que
adentraram o mundo da política por terem seus latifúndios perdidos pela
crise econômica. Sua trajetória também foi da fazenda para a atuação polí-
tica e intelectual. Filho de Virgílio Vieira de Rezende e Sophia Garcia Bastos
de Rezende, nasceu em 7 de abril de 1897, no interior do Rio de Janeiro,
na Fazenda Boa Esperança, de propriedade do avô materno, localizada no
atual município de Lage do Muriaé. Porém, passou sua infância na fazenda
da Cascata, do avô paterno, em Minas Gerais, próximo à cidade de Cata-
guases, no distrito de Miraí, onde também fez toda sua formação básica,
desde os estudos primários, iniciado aos 7 anos, até o curso ginasial, para
o qual teve que passar por um exame de admissão, mas que garantiu a ele,
após seis anos de estudos, o bacharelado em Letras aos 16 anos de idade.
Seu gosto pela literatura foi despertado ainda em sua juventude
quando, juntamente com outros jovens, criou algumas instituições culturais

1 Doutor em Filosofia da Educação. CV: http://lattes.cnpq.br/7384413996427337. E-mail:


scriswap@ufg.br.

359
e jornalísticas na cidade de Cataguases, Minas Gerais, como o Grêmio Lite-
rário Belmiro Braga, o Seminário A Luta, mais ou menos na mesma época
em que foi criada a revista Verde – famosa por suas publicações literárias.
O seminário A Luta teve a participação de outro jovem brilhante, Camilo
Nogueira da Gama (1899-1976), o qual, mais tarde, tornou-se professor,
advogado, jornalista, deputado e senador da República. Já na revista Verde,
da qual não participou diretamente, contou com a contribuição de seu pri-
mo, o poeta Enrique de Rezende (1899-1973) que integrou o movimento
modernista e trocou farta correspondência com Carlos Drummond de
Andrade, sendo este um dos colaboradores da revista, além de Mário de
Andrade, Aníbal Machado, dentre outros. Infelizmente a revista teve uma
curta circulação de dois anos, de 1927 a 1929.
Depois, Garcia de Rezende se mudou com a família para o Rio
de Janeiro e ajudou seu pai, educador, a criar um colégio na Fazenda da
Salgada, no interior do estado. Sua mudança para o Espírito Santo, onde
desenvolveu e consagrou sua trajetória profissional e literária, aconteceu
mais tarde, em 1918, quando contava com seus 21 anos, em uma época
em que, segundo ele, “o transporte do continente para a ilha ainda era
feito por lanchas e botes a remo” (REZENDE, 1981, p. 18). Foi em Vitória
que realizou seu curso superior, com conclusão em 3 de setembro de
1930, quando defendeu “sob aplausos” a monografia sobre Cooperação
e Extensão Cultural, no Curso Superior de Cultura Pedagógica, o qual
tinha um currículo parecido com os atuais cursos de pedagogia. Esse
curso, implantado pela Secretaria de Instrução Pública, em 1928, fazia
parte do projeto reformador da educação e pode ser considerado como o
“eixo radiador” (BERTO; SIMÕES, 2016, p. 400) dos princípios da Escola
Nova, pois destinava-se a professores e inspetores escolares. O curso foi
concebido pelo educador paulista Pedro Deodato de Moraes, companheiro
de J. P. Fontenelle, signatário do Manifesto. Talvez por essa relação com
o médico-educador, que defendia veementemente a higiene escolar, que
Pedro Deodato possibilitou a interação dessas ideias com Attilio Vivacqua
e Garcia de Rezende, os quais passaram a defender a assistência médico-
-dentária nas escolas, como também Anísio Teixeira começou a defender,

360
depois. O curso foi implantando por Decreto, com participação direta de
Attilio Vivacqua, pois tinha fortes relações com Fernando de Azevedo e,
como este, defendia que o problema da educação estava na formação dos
professores e na organização do ensino.
Iniciou sua carreira educacional como diretor da escola pública de
Boa Família, atual Itaguaçu, área de colonização italiana, relacionando-se
com amigos que o influenciaram no campo filosófico e literário, como o
médico Dr. Raul Brandão, com quem, relatou Garcia de Rezende: “aprendi
a ler os clássicos e os ases da literatura brasileira e portuguesa, de Eça
de Queiroz a Machado de Assis, para ficar nesses dois escritores tão re-
presentativos da sua época” (REZENDE, 1981, p. 19). Durante o serviço
militar, no Batalhão de Caçadores, em Vila Velha, no Espírito Santo, atuou
como diretor da Escola Regimental, na qual alfabetizou vários soldados de
origem italiana e alemã. Chegou a essa função por um acaso do destino.
Ele relata em suas Memórias que se apresentou ao quartel de fraque, pois
todo professor da época assim se vestia, e foi motivo de pilhéria por parte
do sargento que recebia os recrutas, porém:

Essa severa indumentária, me foi útil. Passando pelo local,


o comandante do batalhão assistiu ao espetáculo que
tinha como principal protagonista o meu fraque e mandou
que o sargento acabasse com a gozação. Ordenando o
meu comparecimento ao seu gabinete, e sabendo da
minha condição de mestre-escola, atribuiu-me a seguinte
missão: dirigir a Escola Regimental [...] alfabetizei 90
soldados procedentes das zonas da colonização alemã e
italiana (REZENDE, 1981, p. 19).

Deu baixa em 1920, quando conheceu (na viagem de trem de volta a


Vitória) o presidente do estado, Coronel Nestor Gomes (1920-1924) e, com
ele, trabalhou por vários anos, tanto como seu chefe de gabinete, como no
Diário da Manhã, periódico oficial do governo, criado em 1907 para ser por-
ta-voz do Partido Republicano Construtor (BUSATTO, 1992). Nesse jornal,
Garcia de Rezende publicou suas crônicas e seus escritos sobre educação,
defendendo os princípios da Escola Nova. Escreveu também sobre política,
defendendo o movimento liberal; e sobre arte, propagando os ideais da

361
arte moderna. Aliás, segundo Gilioli (2008), foi ele quem levou tais ideais
aos jornais capixabas, discutindo sua relevância, uma vez que a Semana de
Arte Moderna (1922) havia registrado pouco impacto no Estado.
Nesse período, publicou alguns livros, como o de contos, intitulado
Fogo de Palha, e a obra Os outros, ilustrada por Correia Dias. Ele mesmo re-
conheceu que seu primeiro livro (Fogo de Palha) tinha mais valor histórico,
por ter sido talvez o primeiro livro editado em Vitória, do que valor literário
(REZENDE, 1981, p. 26). Mesmo com tantas atividades no campo da lite-
ratura e do jornalismo, não deixou de atuar na educação. Nesse período,
ocupou a cadeira de professor de Instrução Moral e Cívica do Ginásio do
Espírito Santo, função que deixou apenas quando foi assessorar o secre-
tário de Educação, e também signatário do Manifesto, Attilio Vivacqua, em
1928, sob o governo de Aristeu de Aguiar (1928-1930). Ocupou o cargo
de Inspetor Escolar, quando pôde divulgar melhor suas ideias da Escola
Nova e colaborar com as reformas educacionais, incentivando inclusive
as bibliotecas circulantes, a criação de cinema escolar e a radio educação.
Sobre as bibliotecas circulantes, Garcia de Rezende afirma: “As bibliothecas
circulantes, como o próprio nome indica, transitam de escola para escola,
levando ás mais apartadas regiões espirito-santenses a influencia da idéa
nova e da moderna cultura (sic)” (REZENDE, 1930, p. 13).
A amizade com Attilio Vivacqua vinha desde 1922 quando este
assumiu o cargo de deputado estadual e se tornou uma figura impor-
tante no meio intelectual de Vitória, principalmente por defender ideias
modernas, como a Escola Ativa, a implantação do Curso Superior em
Cultura Pedagógica, entre outras. A partir de 1928, quando Vivacqua
assumiu o cargo de Secretário da Educação, Garcia de Rezende passou
a auxiliá-lo na implantação desses projetos, além da implantação do
cinema escolar, bibliotecas circulantes e a ideia da escola como um esta-
belecimento-laboratório, defendido pelos princípios da Escola Ativa, que,
depois, tornou-se uma das bandeiras de Anísio Teixeira.
O trabalho desses idealistas certamente contribuiu para a curta
(1928-1930) administração pública do presidente Aristeu de Aguiar
(1892-1951), na qual deixaram um saldo de quase 70 mil crianças, de 7 a

362
12 anos, escolarizadas. Aristeu Borges de Aguiar era formado em Direito
e chegou a ser procurador do Estado, tendo sido também jornalista, pro-
fessor e diretor de escola. Além disso, foi secretário de Instrução Pública,
e se filiou ao Partido Republicano Espírito-Santense – Pres, o que o levou
à candidatura à presidência do estado. Eleito, não foi a política, mas a
educação e o jornalismo que consagraram a união entre ele, Attilio Viva-
cqua e Garcia de Rezende.
Attilio Vivacqua e Garcia de Rezende eram entusiastas da Es-
cola Ativa, publicando artigos em defesa da nova pedagogia, nos quais
é possível visualizar tanto a perspectiva do naturalismo de Rousseau,
quanto da influência do meio físico sobre a criança, defendido por Com-
te. E sob as reflexões do pedagogo suíço Adolphe Ferrière (1879-1960),
Garcia de Rezende e Attilio Vivacqua defendiam o uso do rádio como
ferramenta educativa.
Segundo Gilioli (2008, p. 65), no Brasil, “[...] as propostas de
radio-educação surgiram, não por coincidência, em um mesmo círculo
intelectual: no Rio de Janeiro entre Roquette-Pinto e seus colaboradores,
no Espírito Santo com Garcia de Rezende e Attilio Vivacqua”. Para Garcia de
Rezende, o rádio era o melhor meio de propagar a cultura, pois promovia
a cooperação intelectual entre professores, alunos e demais interessados.
Com intensas relações estabelecidas com os integrantes do
Movimento Antropofágico, Garcia de Rezende passou a defender, dentro
dos princípios da Escola Ativa, uma espécie de “Ensino Antropofágico” que
pudesse desenvolver a brasilidade em uma visão de mestiçagem, com
vistas a um “novo homem” totalmente brasileiro. Inclusive, a própria Es-
cola Ativa deveria, segundo ele, passar por um processo de nacionalização,
adaptando seus princípios e ideais pedagógicas à realidade brasileira. Em
entrevista à Revista Movimento Brasileiro, Rezende afirma:

As doutrinas de Ferrière, Decroly, Kerchensteiner e Dewey


surgiram apenas traduzidas com emphase, na bôcca dos
nossos educadores. E sem, ao menos, um trabalho criterioso
de adaptação dos princípios da escola nova ás realidades
brasileiras iniciou-se, em todo o paiz, a doutrina da peda-
gogia moderna. É claro que não estou me insurgindo contra

363
esse movimento innovador como contribuição indispensável
da cultura extrangeira. Seria situar o Brasil num regionalismo
sem physionomia própria e sem finalidade (sic) (REZENDE,
1930, p. 1).

Para Rezende, o melhor meio dessa difusão seria o cinema e o


rádio a serviço de uma unidade nacional, sendo o rádio usado como um
elemento didático. Sua atuação nessa frente possibilitou a expansão da
Associação Brasileira de Educação – ABE, criada em 1924, atingindo 155
membros em sua seção estadual. Para Garcia de Rezende, o rádio seria
como um elemento didático para conectar as escolas do interior às da
capital, auxiliando na formação cultural com transmissão de músicas,
lições, cursos e conferências (SOARES, 1998), de acordo com o ideário
geral dos pioneiros, os quais, segundo Xavier (2002), viam-se como
racionalizadores de uma realidade caótica.
Garcia de Rezende foi também chefe do Aparelho de Coordenação
e Irradiação de Cultura, em 1930, colaborando com o Boletim de Educa-
ção – publicação trimestral da Secretaria da Instrução do Espírito Santo,
inspirada no Serviço de Cooperação Cultural, criado em 1920 pela Liga das
Nações. Assim, percebe-se o engajamento deste signatário nas ideias da
Escola Nova e o esforço que empreendeu para divulgá-las em seu estado.
Para isso empreendeu diversas viagens ao Rio de Janeiro e a São Paulo no
sentido de ampliar sua rede de relações com os escolanovistas, sobretudo
durante a movimentação em torno do Manifesto, de 1930 a 1932.
Porém, sua teia inicial de relações pessoais, políticas e profissio-
nais foi com os intelectuais do Espírito Santo. O Clube dos Boêmios, em
Vitória, era o ponto de encontro, onde foi realizada, em 1921, a sessão de
lançamento da Academia Espirito-Santense de Letras. Diversas sessões
se sucederam e Garcia Rezende ocupou a Cadeira nº 19, sendo eleito
segundo secretário. Entre esses “boêmios”, destacam-se os nomes do
advogado Alarico de Freitas, do professor Elpídio Pimentel e do jornalista
Thiers Velloso. A Academia Espírito-Santense de Letras resistiu ao tempo
às instabilidades e turbulências políticas desse Estado, e ainda persiste no
centro de Vitória, localizada à Praça Climaco, como baluarte da cultura, em-

364
bora com períodos de inatividade, no passado. Como “filho” de seu tempo
e “tesouro” das letras e da intelectualidade espírito-santense, é possível
afirmar que Garcia de Rezende honrou seus confrades e, em especial, o
patrono de sua cadeira, João Motta (1881-1914), o qual escreveu, em um
de seus poemas:

Filhos d’alma!, vós sois o meu tesouro,


o meu amplo sacrário de ventura:
– epílogo de um livro onde cultura
todo um poema de amor em letras de ouro.

Outro momento importante de sua vida foi quando participou,


junto com Attilio Vivacqua, como membro da comitiva do Espírito Santo, do
Congresso da Associação Brasileira de Educação – ABE, realizado no Rio
de Janeiro, em 1930. Todos os secretários de educação do Brasil estavam
presentes e Attilio Vivacqua apresentou seu projeto de Escola Ativa, pelo
qual foi elogiado e, imediatamente, aceito tanto pelo Movimento da Escola
Nova quanto pelo Movimento Antropofágico (REZENDE, 1981, p. 35).
Sabe-se que o grupo em torno do Movimento da Escola Nova não
era homogêneo no que se refere aos ideais, mas os intelectuais viviam o
que Cury (1984) chamou de “momento de compromisso” pela moderni-
zação da educação, independentemente de suas divergências ideológicas.
Em suas Memórias, Garcia de Rezende informa:

Nessa oportunidade, assinamos o famoso Manifesto de


Educação, lançado por um pugilo de idealistas para sepultar
a velha pedagogia, cuja pregação não tinha mais sentido,
em face das mudanças ditadas e impostas pelo inconfor-
mismo das novas gerações. Esse documento de tamanha
importância como grito de alerta contra a rotina, o ramerrão,
o passadismo em ramo tão expressivo de conhecimento hu-
mano e da cultura, foi redigido por Nóbrega da Cunha, Cecília
Meireles e Fernando de Azevedo, então diretor de instrução
da municipalidade carioca (REZENDE, 1981, p. 35).

365
Os dois capixabas não compartilhavam, porém, o entusiasmo
aliancista (Aliança Liberal liderada por Getúlio Vargas) de muitos renova-
dores. Garcia de Rezende havia apoiado Júlio Prestes para presidente da
República e chegou a dizer, referindo-se às mudanças no Espírito Santo:
“tudo o que se fez em matéria de renovação escolar, foi devorado pelo es-
pírito revolucionário”. Garcia de Rezende deixa clara sua antipatia a Vargas
e, em suas Memórias, reacende a polêmica da autoria da carta-testamento,
afirmando: “Até a carta-testamento, o dramático apelo que fez ao povo para
honrar o seu legado, não foi nem por ele rascunhada. Foi redigida pelo
meu amigo e brilhante jornalista J. S. Maciel Filho, como ele próprio me
confessou” (p. 97).
Entretanto, seu afastamento do poder, por ter sido destituído dos
cargos que ocupava, possibilitou uma maior interação com os modernis-
tas, como Oswald de Andrade, chegando depois a participar mais intensa-
mente do Movimento Antropofágico, até mesmo para fortalecer a ideia da
renovação e do caráter tipicamente brasileiro da cultura, no Espírito Santo
– onde a ideia não teve tanta repercussão. Busatto (1992, p. 5) afirma que
“a Semana de Arte Moderna realizada em São Paulo, no ano de 1922, não
repercutiu em Vitória do Espírito Santo. A vida, na cidade, arrastava-se sem
modernistas e modernismos”. Ainda, ele relata uma reunião com Oswald
de Andrade da seguinte forma:

Fui convidado por ele [Oswald] a visitar a taba, então insta-


lada na residência da pintora Tarsila do Amaral, com quem
estava casado [...]. Para me receber, reuniram-se todos os
antropófagos, dentre os quais os dois Andrades, o Oswald e
o Mário, Raul Bopp, Clóvis Gusmão, Osvaldo Costa e outros.
Todos estavam sentados, formando uma roda. Fazia parte
do ritual: fumar o cachimbo da paz e tomar cauim em copos
especialmente fabricados de barro puro. Para alegrar o am-
biente, aparecia, então, a Josefina Studbaker, uma negrinha
de corpo escultural, dançando um balé infernal, num ritmo
bárbaro. O cauim era uma dinamite terrível, preparada à
base de cachaça, gim e uísque, embebedando rapidamente.
Terminada a cerimônia, fomos todos jantar num restaurante
da moda. Era como se encerrava a cerimônia, mais do que

366
aconselhável, em face do violento aperitivo. O Oswald paga-
va tudo (REZENDE apud SOARES, 1998, p. 79).

Foi por causa dessa ampliação de relações buscada por Garcia de


Rezende, no Rio de Janeiro e em São Paulo, que ele passou a ter maior con-
tato com Fernando de Azevedo e outros intelectuais liberais modernistas,
sendo elogiado por eles e, naturalmente, criticado pelos conservadores,
como Alceu de Amoroso Lima (1893-1983), mais conhecido como Tristão
de Athayde. Mesmo assim era notório o isolamento do Espírito Santo.
Nomes como os de Vieira da Cunha (1897-1976) e de Graça Aranha (1868-
1931) já eram conhecidos em Vitória, mas coube a Garcia de Rezende, seja
por sua produção literária ou por sua atuação no jornalismo, a ação de
divulgar os nomes dos demais modernistas.
O intercâmbio entre o Diário da Manhã e a Revista de Antropofagia
foi intenso. Tanto que no número 11, de 19 de junho de 1929, desta re-
vista há um artigo de Garcia de Rezende sobre o “ensino antropofágico”,
e no número 13, de 4 de julho do mesmo ano, há um elogio ao Diário da
Manhã, feito por Raul Bopp. Infelizmente, o Congresso Mundial de Antro-
pofagia, programado para ser realizado em Vitória, em 1930, acabou não
acontecendo por causa de problemas pessoais entre Oswald de Andrade
e sua companheira Tarsila do Amaral (BOPP, 1966), e devido à irrupção
do movimento getulista (REZENDE, 1981). E vale salientar também que,
embora Bopp (1966, p. 63) classifique o movimento antropofágico como
“burlão” (por sua irreverência) e “negativista”, Garcia de Rezende não o
via da mesma forma, o via como um movimento de renovação, de re-
construção da cultura, adicionando a consciência nacional, portanto um
movimento positivo.
De volta à política, sua atuação foi mais técnica e na posição de um
“observador”. O signatário estava presente no tumultuoso comício do 13
de fevereiro de 1930 quando o senador Pires Rebello chamou o governa-
dor do Espírito Santo, Aristeu Borges de Aguiar, de ladrão de votos. No dia
seguinte, no Diário da Manhã, Garcia Rezende relata a confusão e as mortes
resultantes da intervenção militar nesse comício. Segundo Wanick (2008),
Garcia de Rezende chegou a apoiar com veemência o governo, mesmo

367
sob tão tumultuada gestão, mas, em suas Memórias, acabou por criticar o
governo por seus erros, em um tom mais rigoroso que a oposição.
A saída do governo foi brutal, e, por não ter participado da Revolu-
ção de 1930, foi perseguido pelo interventor federal, José Armando Ribeiro
de Paula, que o fez ser transferido para o Rio de Janeiro, onde passou a
atuar como jornalista no Diário de Notícias e no Diários Associados, com a
ajuda do amigo Nóbrega da Cunha. O Diário de Notícias tinha uma página
inteira dedicada à educação e era coordenada pela poetisa e professora
Cecília Meireles, assessora de Fernando de Azevedo. Garcia de Rezende
deu sua colaboração para essa página publicando diversos artigos, junta-
mente com um jovem de 18 anos Carlos Lacerda. Como jornalista, viajou
para outros estados brasileiros, e até para a Argentina (a pedido de Cha-
teaubriand), como observador da “nova ordem” política, quando acabou
fazendo diversos amigos entre políticos e literatos.
No Rio, fez amizade com Assis Chateaubriand, Camilo Castelo
Branco, entre outros, ampliando, assim, sua rede de relações. Também
atuou como redator em diversos jornais, no Rio e em São Paulo, por 40
anos. Dentre esses periódicos, destacamos O Jornal, o Diário da Noite,
o Meridional e O Diário de São Paulo. Além disso, manteve a revista Vida
Capixaba, posteriormente liderada por Elpídio Pimentel e Manoel Lopes
Pimenta, a qual circulou por 35 anos e tratava de vários temas referentes
ao Espírito Santo (DERENZI, 1995), além da revista Chanaan, a qual “deu
novos rumos” às letras capixabas por meio da divulgação dos trabalhos
modernistas (BUSATTO, 1992, p. 8-9).
Garcia de Rezende foi um observador crítico de seu tempo, pois
via claramente os perigos do fascismo e do comunismo. Analisou que
os tenentes haviam lutado contra as oligarquias e o caudilhismo, mas
acabaram fortalecendo a ditadura. Sério e comprometido com o trabalho
jornalístico, não deixou, porém, de gozar a boemia carioca e paulistana. Diz
ele (REZENDE, 1981, p. 82): “No espaço de tempo que vai do ano de 1931
a 1940, vivi intensamente a noite carioca. Ainda alcancei os cabarés da
rua do Passeio, Políticos e Palace e a famosa Mere Louise, nos confins de
Copacabana”. Cansado da vida boêmia, casou-se em 1941, com a prima
Irene Rezende, funcionária do Conselho Superior, do Comércio Exterior e

368
no Instituto Pinho. Segundo relata em suas Memórias, foi um matrimônio
de muito amor e carinho que o consolaram até sua velhice. Um ano após
casado, teve a doença pulmonar obstrutiva crônica – Dpoc, que o levou
a longas internações no Sanatório de Belo Horizonte. Sarado, voltou à
intensa vida jornalística no Rio e se tornou “por um golpe de sorte” (Idem,
p. 94) funcionário do Ministério do Trabalho, como editor do Boletim Aéreo
Semanal, e realizou atividades burocráticas até sua aposentadoria, sem
deixar antes de fazer um périplo pela Europa com a esposa. Assim, afastado
das discussões educacionais do Espírito Santo, não mais tão próximo aos
escolanovistas, talvez, por isso, não participou do Manifesto dos Pioneiros,
de 1959. Faleceu em Valença, Rio de Janeiro, em 6 de outubro de 1978.

REFERÊNCIAS

BERTO, R. C.; SIMÕES, R. H. S. O Curso Superior de Cultura Pedagógica (1928-1930)


como estratégia de formação de professores e difusão da escola ativa nas escolas
capixabas. Cadernos de História da Educação, Uberlândia, v. 15, n. 1, p. 398-421, jan./
abr. 2016.
BOPP, R. Movimentos modernistas no Brasil. Rio de Janeiro: São José, 1966.
BRASIL. Decretos de 25 de maio de 1945. Diário Oficial: seção 1, Brasília, DF, n. 9360,
26 maio 1945. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/biblioteca/PastasMinis-
tros/BentoFaria/DadosDatas/007.pdf. Acesso em: 24 out. 2017.
BUSATTO, L. O Modernismo Antropofágico no Espírito Santo. Vitória: Secretaria de
Produção e Difusão Cultural – Ufes, 1992.
CURY, C. R. J. Ideologia e educação brasileira: católicos e liberais. São Paulo: Cortez,
1984.
DERENZI, L. S. Biografia de uma ilha. 2. ed. Vitória: PMV; Secretaria Municipal de
Turismo, 1995.
GILIOLI, R. de S. P. Educação e cultura no rádio brasileiro: concepções de radioescola
em Roquette-Pinto. 2008. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
PRONAF/ES. Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. Projeto
de Modernização e Administração Fazendária. Sezefredo Garcia de Rezende. Projeto
de Modernização e Administração Fazendária. Espírito Santo: Governo do Estado do
Espírito Santo; Secretaria de Estado da Fazenda, s.d. Disponível em: http://www.
sefaz.es.gov.br/painel/jornal12.htm. Acesso em: 24 out. 2017.
REZENDE, G. de. Memórias: (1897-1978). Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Ameida,
1981.

369
REZENDE, G. de. O ensino no Espirito Santo: uma entrevista com o Sr. Garcia de
Rezende. Movimento Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 13, p. 12, jan. 1930.
RIBEIRO, F. A. Academia espírito-santense de letras. Patronos & Acadêmicos. Vitória:
Academia Espírito-santenese de Letras, 2002.
SOARES, R. V. A Escola activa antropofágica que a “Revolução” de 30 comeu. São Paulo:
Lei Rubem Braga-Darwin, 1998.
SAVIANI, D. et al. O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas: Autores
Associados, 2004. Coleção Educação Contemporânea.
XAVIER, L. N. Para além do campo educacional: um estudo sobre o Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova (1932). Bragança Paulista: Edusf, 2002.
WANICK, F. C. Aristeu Borges de Aguiar um presidente atropelado pela história: a po-
lítica e a economia capixabas durante os anos 1928 a 1930. Vitória: Flor e Cultura
Editores, 2008.

370
ANEXO

O MANIFESTO DOS PIONEIROS DA


EDUCAÇÃO NOVA (1932)

A RECONSTRUÇÃO EDUCACIONAL NO BRASIL - AO POVO


E AO GOVERNO1

Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em im-


portância e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econô-
mico lhe podem disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional.
Pois, se a evolução orgânica do sistema cultural de um país depende de
suas condições econômicas, é impossível desenvolver as forças econô-
micas ou de produção, sem o preparo intensivo das forças culturais e o
desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são os fatores
fundamentais do acréscimo de riqueza de uma sociedade. No entanto, se
depois de 43 anos de regime republicano, se der um balanço ao estado
atual da educação pública, no Brasil, se verificará que, dissociadas sempre
as reformas econômicas e educacionais, que era indispensável entrelaçar
e encadear, dirigindo-as no mesmo sentido, todos os nossos esforços, sem
unidade de plano e sem espírito de continuidade, não lograram ainda criar
um sistema de organização escolar, à altura das necessidades modernas
e das necessidades do país. Tudo fragmentário e desarticulado. A situação
atual, criada pela sucessão periódica de reformas parciais e freqüente-
mente arbitrárias, lançadas sem solidez econômica e sem uma visão global
do problema, em todos os seus aspectos, nos deixa antes a impressão
desoladora de construções isoladas, algumas já em ruína, outras abando-
nadas em seus alicerces, e as melhores, ainda não em termos de serem
despojadas de seus andaimes.

1 Texto na íntegra, indicado conforme o original. Cf.: AZEVEDO, F. de et al. Manifesto dos pioneiros
da ducação nova (1932) e dos Educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora
Massangana, 2010. Coleção Educadores. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/
download/texto/me4707.pdf. Acesso em: 26 mar. 2021.

371
Onde se tem de procurar a causa principal desse estado antes
de inorganização do que de desorganização do aparelho escolar, é na
falta, em quase todos os planos e iniciativas, da determinação dos fins de
educação (aspecto filosófico e social) e da aplicação (aspecto técnico) dos
métodos científicos aos problemas de educação. Ou, em poucas palavras,
na falta de espírito filosófico e científico, na resolução dos problemas da
administração escolar. Esse empirismo grosseiro, que tem presidido ao es-
tudo dos problemas pedagógicos, postos e discutidos numa atmosfera de
horizontes estreitos, tem as suas origens na ausência total de uma cultura
universitária e na formação meramente literária de nossa cultura. Nunca
chegamos a possuir uma “cultura própria”, nem mesmo uma “cultura geral”
que nos convencesse da “existência de um problema sobre objetivos e fins
da educação”. Não se podia encontrar, por isto, unidade e continuidade de
pensamento em planos de reformas, nos quais as instituições escolares,
esparsas, não traziam, para atraí-las e orientá-las para uma direção, o pólo
magnético de uma concepção da vida, nem se submetiam, na sua organi-
zação e no seu funcionamento, a medidas objetivas com que o tratamento
científico dos problemas da administração escolar nos ajuda a descobrir, à
luz dos fins estabelecidos, os processos mais eficazes para a realização da
obra educacional.
Certo, um educador pode bem ser um filósofo e deve ter a sua
filosofia de educação; mas, trabalhando cientificamente nesse terreno,
ele deve estar tão interessado na determinação dos fins de educação,
quanto também dos meios de realizá-los. O físico e o químico não terão
necessidade de saber o que está e se passa além da janela do seu labora-
tório. Mas o educador, como o sociólogo, tem necessidade de uma cultura
múltipla e bem diversa; as alturas e as profundidades da vida humana e
da vida social não devem estender-se além do seu raio visual; ele deve
ter o conhecimento dos homens e da sociedade em cada uma de suas
fases, para perceber, além do aparente e do efêmero, “o jogo poderoso das
grandes leis que dominam a evolução social”, e a posição que tem a escola,
e a função que representa, na diversidade e pluralidade das forças sociais
que cooperam na obra da civilização. Se têm essa cultura geral, que lhe

372
permite organizar uma doutrina de vida e ampliar o seu horizonte mental,
poderá ver o problema educacional em conjunto, de um ponto de vista
mais largo, para subordinar o problema pedagógico ou dos métodos ao
problema filosófico ou dos fins da educação; se tem um espírito científico,
empregará os métodos comuns a todo gênero de investigação científica,
podendo recorrer a técnicas mais ou menos elaboradas e dominar a situ-
ação, realizando experiências e medindo os resultados de toda e qualquer
modificação nos processos e nas técnicas, que se desenvolveram sob o
impulso dos trabalhos científicos na administração dos serviços escolares.

Movimento de renovação educacional

À luz dessas verdades e sob a inspiração de novos ideais de educa-


ção, é que se gerou, no Brasil, o movimento de reconstrução educacional,
com que, reagindo contra o empirismo dominante, pretendeu um grupo de
educadores, nestes últimos doze anos, transferir do terreno administrati-
vo para os planos político-sociais a solução dos problemas escolares. Não
foram ataques injustos que abalaram o prestígio das instituições antigas;
foram essas instituições criações artificiais ou deformadas pelo egoísmo e
pela rotina, a que serviram de abrigo, que tornaram inevitáveis os ataques
contra elas. De fato, porque os nossos métodos de educação haviam de
continuar a ser tão prodigiosamente rotineiros, enquanto no México, no
Uruguai, na Argentina e no Chile, para só falar na América espanhola, já se
operavam transformações profundas no aparelho educacional, reorgani-
zado em novas bases e em ordem a finalidades lucidamente descortina-
das? Porque os nossos programas se haviam ainda de fixar nos quadros de
segregação social, em que os encerrou a república, há 43 anos, enquanto
nossos meios de locomoção e os processos de indústria centuplicaram de
eficácia, em pouco mais de um quartel de século? Porque a escola havia
de permanecer, entre nós, isolada do ambiente, como uma instituição en-
quistada no meio social, sem meios de influir sobre ele, quando, por toda a
parte, rompendo a barreira das tradições, a ação educativa já desbordava a
escola, articulando-se com as outras instituições sociais, para estender o
seu raio de influência e de ação?

373
Embora, a princípio, sem diretrizes definidas, esse movimento
francamente renovador inaugurou uma série fecunda de combates de
idéias, agitando o ambiente para as primeiras reformas impelidas para urna
nova direção. Multiplicaram-se as associações e iniciativas escolares, em
que esses debates testemunhavam a curiosidade dos espíritos, pondo em
circulação novas idéias e transmitindo aspirações novas com um caloroso
entusiasmo. Já se despertava a consciência de que, para dominar a obra
educacional, em toda a sua extensão, é preciso possuir, em alto grau, o
hábito de se prender, sobre bases sólidas e largas, a um conjunto de idéias
abstratas e de princípios gerais, com que possamos armar um ângulo de
observação, para vermos mais claro e mais longe e desvendarmos, através
da complexidade tremenda dos problemas sociais, horizontes mais vastos.
Os trabalhos científicos no ramo da educação já nos faziam sentir, em toda
a sua força reconstrutora, o axioma de que se pode ser tão científico no es-
tudo e na resolução dos problemas educativos, como nos da engenharia e
das finanças. Não tardaram a surgir, no Distrito Federal e em três ou quatro
Estados as reformas e, com elas, as realizações, com espírito científico, e
inspiradas por um ideal que, modelado à imagem da vida, já lhe refletia a
complexidade. Contra ou a favor, todo o mundo se agitou. Esse movimento
é hoje uma idéia em marcha, apoiando-se sobre duas forças que se com-
pletam: a força das idéias e a irradiação dos fatos.

Diretrizes que se esclarecem

Mas, com essa campanha, de que tivemos a iniciativa e assumimos


a responsabilidade, e com a qual se incutira, por todas as formas, no ma-
gistério, o espírito novo, o gosto da crítica e do debate e a consciência da
necessidade de um aperfeiçoamento constante, ainda não se podia consi-
derar inteiramente aberto o caminho às grandes reformas educacionais. É
certo que, com a efervescência intelectual que produziu no professorado,
se abriu, de uma vez, a escola a esses ares, a cujo oxigênio se forma a nova
geração de educadores e se vivificou o espírito nesse fecundo movimento
renovador no campo da educação pública, nos últimos anos. A maioria dos
espíritos, tanto da velha como da nova geração ainda se arrastam, porém,

374
sem convicções, através de um labirinto de idéias vagas, fora de seu alcan-
ce, e certamente, acima de sua experiência; e, porque manejam palavras,
com que já se familiarizaram, imaginam muitos que possuem as idéias
claras, o que lhes tira o desejo de adquiri-las. Era preciso, pois, imprimir
uma direção cada vez mais firme a esse movimento já agora nacional, que
arrastou consigo os educadores de mais destaque, e levá-lo a seu ponto
culminante com uma noção clara e definida de suas aspirações e suas res-
ponsabilidades. Aos que tomaram posição na vanguarda da campanha de
renovação educacional, cabia o dever de formular, em documento público,
as bases e diretrizes do movimento que souberam provocar, definindo, pe-
rante o público e o governo, a posição que conquistaram e vêm mantendo
desde o início das hostilidades contra a escola tradicional.

Reformas e a Reforma

Se não há país “onde a opinião se divida em maior número de cores,


e se não se encontra teoria que entre nós não tenha adeptos”, segundo
já observou Alberto Torres, princípios e idéias não passam, entre nós, de
“bandeira de discussão, ornatos de polêmica ou simples meio de êxito
pessoal ou político”. Ilustrados, as vezes, e eruditos, mas raramente cul-
tos, não assimilamos bastante as idéias para se tornarem um núcleo de
convicções ou um sistema de doutrina, capaz de nos impelir à ação em
que costumam desencadear-se aqueles “que pensaram sua vida e viveram
seu pensamento”. A interpenetração profunda que já se estabeleceu, em
esforços constantes, entre as nossas idéias e convicções e a nossa vida
de educadores, em qualquer setor ou linha de ataque em que tivemos de
desenvolver a nossa atividade já denuncia, porém, a fidelidade e o vigor
com que caminhamos para a obra de reconstrução educacional, sem es-
tadear a segurança de um triunfo fácil, mas com a serena confiança na
vitória definitiva de nossos ideais de educação. Em lugar dessas reformas
parciais, que se sucederam, na sua quase totalidade, na estreiteza crônica
de tentativas empíricas, o nosso programa concretiza uma nova política
educacional, que nos preparará, por etapas, a grande reforma, em que

375
palpitará, com o ritmo acelerado dos organismos novos, o músculo central
da estrutura política e social da nação.
Em cada uma das reformas anteriores, em que impressiona viva-
mente a falta de uma visão global do problema educativo, a força inspira-
dora ou a energia estimulante mudou apenas de forma, dando soluções
diferentes aos problemas particulares. Nenhuma antes desse movimento
renovador penetrou o âmago da questão, alterando os caracteres gerais
e os traços salientes das reformas que o precederam. Nós assistíamos
à aurora de uma verdadeira renovação educacional, quando a revolução
estalou. Já tínhamos chegado então, na campanha escolar, ao ponto de-
cisivo e climatérico, ou se o quiserdes, à linha de divisão das águas. Mas,
a educação que, no final de contas, se resume logicamente numa refor-
ma social, não pode, ao menos em grande proporção, realizar-se senão
pela ação extensa e intensiva da escola sobre o indivíduo e deste sobre
si mesmo nem produzir-se, do ponto de vista das influências exteriores,
senão por uma evolução contínua, favorecida e estimulada por todas as
forças organizadas de cultura e de educação. As surpresas e os golpes de
teatro são impotentes para modificarem o estado psicológico e moral de
um povo. É preciso, porém, atacar essa obra, por um plano integral, para
que ela não se arrisque um dia a ficar no estado fragmentário, semelhante
a essas muralhas pelágicas, inacabadas, cujos blocos enormes, esparsos
ao longe sobre o solo, testemunham gigantes que os levantaram, e que a
morte surpreendeu antes do cortamento de seus esforços.
Finalidades da educação Toda a educação varia sempre em função
de uma “concepção da vida”, refletindo, em cada época, a filosofia predo-
minante que é determinada, a seu turno, pela estrutura da sociedade. E’
evidente que as diferentes camadas e grupos (classes) de uma sociedade
dada terão respectivamente opiniões diferentes sobre a “concepção do
mundo”, que convém fazer adotar ao educando e sobre o que é necessário
considerar como “qualidade socialmente útil”. O fim da educação não é,
como bem observou G. Davy, “desenvolver de maneira anárquica as ten-
dências dominantes do educando; se o mestre intervém para transformar,
isto implica nele a representação de um certo ideal à imagem do qual se

376
esforça por modelar os jovens espíritos”. Esse ideal e aspiração dos adultos
toma-se mesmo mais fácil de apreender exatamente quando assistimos
à sua transmissão pela obra educacional, isto é, pelo trabalho a que a
sociedade se entrega para educar os seus filhos. A questão primordial das
finalidades da educação gira, pois, em torno de uma concepção da vida, de
um ideal, a que devem conformar-se os educandos, e que uns consideram
abstrato e absoluto, e outros, concreto e relativo, variável no tempo e no
espaço. Mas, o exame, num longo olhar para o passado, da evolução da
educação através das diferentes civilizações, nos ensina que o “conteúdo
real desse ideal” variou sempre de acordo com a estrutura e as tendências
sociais da época, extraindo a sua vitalidade, como a sua força inspiradora,
da própria natureza da realidade social.
Ora, se a educação está intimamente vinculada à filosofia de cada
época, que lhe define o caráter, rasgando sempre novas perspectivas ao
pensamento pedagógico, a educação nova não pode deixar de ser uma
reação categórica, intencional e sistemática contra a velha estrutura do
serviço educacional, artificial e verbalista, montada para uma concepção
vencida. Desprendendo-se dos interesses de classes, a que ela tem ser-
vido, a educação perde o “sentido aristológico”, para usar a expressão de
Ernesto Nelson, deixa de constituir um privilégio determinado pela condi-
ção econômica e social do indivíduo, para assumir um “caráter biológico”,
com que ela se organiza para a coletividade em geral, reconhecendo a todo
o indivíduo o direito a ser educado até onde o permitam as suas aptidões
naturais, independente de razões de ordem econômica e social. A educa-
ção nova, alargando a sua finalidade para além dos limites das classes,
assume, com uma feição mais humana, a sua verdadeira função social,
preparando-se para formar “a hierarquia democrática” pela “hierarquia
das capacidades”, recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem
as mesmas oportunidades de educação. Ela tem, por objeto, organizar e
desenvolver os meios de ação durável com o fim de “dirigir o desenvolvi-
mento natural e integral do ser humano em cada uma das etapas de seu
crescimento”, de acordo com uma certa concepção do mundo.

377
A diversidade de conceitos da vida provém, em parte, das di-
ferenças de classes e, em parte, da variedade de conteúdo na noção de
“qualidade socialmente útil”, conforme o ângulo visual de cada uma das
classes ou grupos sociais. A educação nova que, certamente pragmática,
se propõe ao fim de servir não aos interesses de classes, mas aos interes-
ses do indivíduo, e que se funda sobre o princípio da vinculação da escola
com o meio social, tem o seu ideal condicionado pela vida social atual, mas
profundamente humano, de solidariedade, de serviço social e cooperação.
A escola tradicional, instalada para uma concepção burguesa, vinha man-
tendo o indivíduo na sua autonomia isolada e estéril, resultante da dou-
trina do individualismo libertário, que teve aliás o seu papel na formação
das democracias e sem cujo assalto não se teriam quebrado os quadros
rígidos da vida social. A escola socializada, reconstituída sobre a base da
atividade e da produção, em que se considera o trabalho como a melhor
maneira de estudar a realidade em geral (aquisição ativa da cultura) e a
melhor maneira de estudar o trabalho em si mesmo, como fundamento da
sociedade humana, se organizou para remontar a corrente e restabelecer,
entre os homens, o espírito de disciplina, solidariedade e cooperação, por
uma profunda obra social que ultrapassa largamente o quadro estreito dos
interesses de classes.

Valores mutáveis e valores permanentes

Mas, por menos que pareça, nessa concepção educacional, cujo


embrião já se disse ter-se gerado no seio das usinas e de que se impreg-
nam a carne e o sangue de tudo que seja objeto da ação educativa, não
se rompeu nem está a pique de romper-se o equilíbrio entre os valores
mutáveis e os valores permanentes da vida humana. Onde, ao contrário,
se assegurará melhor esse equilíbrio é no novo sistema de educação, que,
longe de se propor a fins particulares de determinados grupos sociais, às
tendências ou preocupações de classes, os subordina aos fins fundamen-
tais e gerais que assinala a natureza nas suas funções biológicas. É certo
que é preciso fazer homens, antes de fazer instrumentos de produção.
Mas, o trabalho que foi sempre a maior escola de formação da personali-

378
dade moral, não é apenas o método que realiza o acréscimo da produção
social, é o único método susceptível de fazer homens cultivados e úteis sob
todos os aspectos. O trabalho, a solidariedade social e a cooperação, em
que repousa a ampla utilidade das experiências; a consciência social que
nos leva a compreender as necessidades do indivíduo através das da co-
munidade, e o espírito de justiça, de renúncia e de disciplina, não são, aliás,
grandes “valores permanentes” que elevam a alma, enobrecem o coração
e fortificam a vontade, dando expressão e valor à vida humana? Um vício
das escolas espiritualistas, já o ponderou Jules Simon, é o “desdém pela
multidão”. Quer-se raciocinar entre si e refletir entre si. Evita de experimen-
tar a sorte de todas as aristocracias que se estiolam no isolamento. Se se
quer servir à humanidade, é preciso estar em comunhão com ela.
Certo, a doutrina de educação, que se apoia no respeito da perso-
nalidade humana, considerada não mais como meio, mas como fim em
si mesmo, não poderia ser acusada de tentar, com a escola do trabalho,
fazer do homem uma máquina, um instrumento exclusivamente apro-
priado a ganhar o salário e a produzir um resultado material num tempo
dado. “A alma tem uma potência de milhões de cavalos, que levanta mais
peso do que o vapor. Se todas as verdades matemáticas se perdessem,
escreveu Lamartine, defendendo a causa da educação integral, o mundo
industrial, o mundo material, sofreria sem duvida um detrimento imenso
e um dano irreparável; mas, se o homem perdesse uma só das suas
verdades morais, seria o próprio homem, seria a humanidade inteira que
pereceria”. Mas, a escola socializada não se organizou como um meio
essencialmente social senão para transferir do plano da abstração ao da
vida escolar em todas as suas manifestações, vivendo-as intensamente,
essas virtudes e verdades morais, que contribuem para harmonizar os
interesses individuais e os interesses coletivos. “Nós não somos antes
homens e depois seres sociais, lembra-nos a voz insuspeita de Paul
Bureau; somos seres sociais, por isto mesmo que somos homens, e a
verdade está antes em que não há ato, pensamento, desejo, atitude, re-
solução, que tenham em nós sós seu princípio e seu termo e que realizem
em nós somente a totalidade de seus efeitos”.

379
O Estado em face da educação

a) A educação, uma função essencialmente pública

Mas, do direito de cada indivíduo à sua educação integral, decorre


logicamente para o Estado que o reconhece e o proclama, o dever de consi-
derar a educação, na variedade de seus graus e manifestações, como uma
função social e eminentemente pública, que ele é chamado a realizar, com
a cooperação de todas as instituições sociais. A educação que é uma das
funções de que a família se vem despojando em proveito da sociedade po-
lítica, rompeu os quadros do comunismo familiar e dos grupos específicos
(instituições privadas), para se incorporar definitivamente entre as funções
essenciais e primordiais do Estado. Esta restrição progressiva das atribui-
ções da família, – que também deixou de ser “um centro de produção” para
ser apenas um “centro de consumo”, em face da nova concorrência dos
grupos profissionais, nascidos precisamente em vista da proteção de inte-
resses especializados”, – fazendo-a perder constantemente em extensão,
não lhe tirou a “função específica”, dentro do “foco interior”, embora cada
vez mais estreito, em que ela se confinou. Ela é ainda o “quadro natural que
sustenta socialmente o indivíduo, como o meio moral em que se discipli-
nam as tendências, onde nascem, começam a desenvolver-se e continuam
a entreter-se as suas aspirações para o ideal”. Por isto, o Estado, longe de
prescindir da família, deve assentar o trabalho da educação no apoio que
ela dá à escola e na colaboração efetiva entre pais e professores, entre
os quais, nessa obra profundamente social, tem o dever de restabelecer
a confiança e estreitar as relações, associando e pondo a serviço da obra
comum essas duas forças sociais – a família e a escola, que operavam de
todo indiferentes, senão em direções diversas e ás vezes opostas.

b) A questão da escola única

Assentado o princípio do direito biológico de cada indivíduo à sua


educação integral, cabe evidentemente ao Estado a organização dos meios

380
de o tornar efetivo, por um plano geral de educação, de estrutura orgâ-
nica, que torne a escola acessível, em todos os seus graus, aos cidadãos
a quem a estrutura social do país mantém em condições de inferioridade
econômica para obter o máximo de desenvolvimento de acordo com as
suas aptidões vitais. Chega-se, por esta forma, ao princípio da escola para
todos, “escola comum ou única”, que, tomado a rigor, só não ficará na con-
tingência de sofrer quaisquer restrições, em países em que as reformas
pedagógicas estão intimamente ligadas com a reconstrução fundamental
das relações sociais. Em nosso regime político, o Estado não poderá, de
certo, impedir que, graças à organização de escolas privadas de tipos dife-
rentes, as classes mais privilegiadas assegurem a seus filhos uma educa-
ção de classe determinada; mas está no dever indeclinável de não admitir,
dentro do sistema escolar do Estado, quaisquer classes ou escolas, a que
só tenha acesso uma minoria, por um privilegio exclusivamente econômi-
co. Afastada a idéia do monopólio da educação pelo Estado num país, em
que o Estado, pela sua situação financeira não está ainda em condições
de assumir a sua responsabilidade exclusiva, e em que, portanto, se torna
necessário estimular, sob sua vigilância as instituições privadas idôneas,
a “escola única” se entenderá, entre nós, não como “uma conscrição pre-
coce”, arrolando, da escola infantil à universidade, todos os brasileiros, e
submetendo-os durante o maior tempo possível a uma formação idêntica,
para ramificações posteriores em vista de destinos diversos, mas antes
como a escola oficial, única, em que todas as crianças, de 7 a 15, todas
ao menos que, nessa idade, sejam confiadas pelos pais à escola pública,
tenham uma educação comum, igual para todos.

c) A laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação

A laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação são outros


tantos princípios em que assenta a escola unificada e que decorrem tanto
da subordinação à finalidade biológica da educação de todos os fins parti-
culares e parciais (de classes, grupos ou crenças), como do reconhecimento
do direito biológico que cada ser humano tem à educação. A laicidade, que

381
coloca o ambiente escolar acima de crenças e disputas religiosas, alheio a
todo o dogmatismo sectário, subtrai o educando, respeitando-lhe a inte-
gridade da personalidade em formação, à pressão perturbadora da escola
quando utilizada como instrumento de propaganda de seitas e doutrinas.
A gratuidade extensiva a todas as instituições oficiais de educação é um
princípio igualitário que torna a educação, em qualquer de seus graus,
acessível não a uma minoria, por um privilégio econômico, mas a todos os
cidadãos que tenham vontade e estejam em condições de recebê-la. Aliás
o Estado não pode tornar o ensino obrigatório, sem torná-lo gratuito. A
obrigatoriedade que, por falta de escolas, ainda não passou do papel, nem
em relação ao ensino primário, e se deve estender progressivamente até
uma idade conciliável com o trabalho produtor, isto é, até aos 18 anos, é
mais necessária ainda “na sociedade moderna em que o industrialismo e o
desejo de exploração humana sacrificam e violentam a criança e o jovem”,
cuja educação é freqüentemente impedida ou mutilada pela ignorância dos
pais ou responsáveis e pelas contingências econômicas. A escola unificada
não permite ainda, entre alunos de um e outro sexo outras separações
que não sejam as que aconselham as suas aptidões psicológicas e profis-
sionais, estabelecendo em todas as instituições “a educação em comum”
ou coeducação, que, pondo-os no mesmo pé de igualdade e envolvendo
todo o processo educacional, torna mais econômica a organização da obra
escolar e mais fácil a sua graduação.

A função educacional

a) A unidade da função educacional

A consciência desses princípios fundamentais da laicidade, gratui-


dade e obrigatoriedade, consagrados na legislação universal, já penetrou
profundamente os espíritos, como condições essenciais à organização de
um regime escolar, lançado, em harmonia com os direitos do indivíduo,
sobre as bases da unificação do ensino, com todas as suas conseqüências.
De fato, se a educação se propõe, antes de tudo, a desenvolver ao máximo
a capacidade vital do ser humano, deve ser considerada “uma só” a função

382
educacional, cujos diferentes graus estão destinados a servir às diferen-
tes fases de seu crescimento, “que são partes orgânicas de um todo que
biologicamente deve ser levado à sua completa formação”. Nenhum outro
princípio poderia oferecer ao panorama das instituições escolares pers-
pectivas mais largas, mais salutares e mais fecundas em conseqüências do
que esse que decorre logicamente da finalidade biológica da educação. A
seleção dos alunos nas suas aptidões naturais, a supressão de instituições
criadoras de diferenças sobre base econômica, a incorporação dos estudos
do magistério à universidade, a equiparação de mestres e professores em
remuneração e trabalho, a correlação e a continuidade do ensino em todos
os seus graus e a reação contra tudo que lhe quebra a coerência interna e a
unidade vital, constituem o programa de uma política educacional, fundada
sobre a aplicação do princípio unificador que modifica profundamente a
estrutura intima e a organização dos elementos constitutivos do ensino e
dos sistemas escolares.

b) A autonomia da função educacional

Mas, subordinada a educação pública a interesses transitórios, ca-


prichos pessoais ou apetites de partidos, será impossível ao Estado realizar
a imensa tarefa que se propõe da formação integral das novas gerações.
Não há sistema escolar cuja unidade e eficácia não estejam constantemen-
te ameaçadas, senão reduzidas e anuladas, quando o Estado não o soube
ou não o quis acautelar contra o assalto de poderes estranhos, capazes de
impor à educação fins inteiramente contrários aos fins gerais que assinala
a natureza em suas funções biológicas. Toda a impotência manifesta do
sistema escolar atual e a insuficiência das soluções dadas às questões de
caráter educativo não provam senão o desastre irreparável que resulta,
para a educação pública, de influencias e intervenções estranhas que con-
seguiram sujeita-la a seus ideais secundários e interesses subalternos. Dai
decorre a necessidade de uma ampla autonomia técnica, administrativa e
econômica, com que os técnicos e educadores, que têm a responsabilidade
e devem ter, por isto, a direção e administração da função educacional,

383
tenham assegurados os meios materiais para poderem realizá-la. Esses
meios, porém, não podem reduzir-se às verbas que, nos orçamentos, são
consignadas a esse serviço público e, por isto, sujeitas às crises dos erários
do Estado ou às oscilações” do interesse dos governos pela educação. A
autonomia econômica não se poderá realizar, a não ser pela instituição
de um “fundo especial ou escolar”, que, constituído de patrimônios, im-
postos e rendas próprias, seja administrado e aplicado exclusivamente no
desenvolvimento da obra educacional, pelos próprios órgãos do ensino,
incumbidos de sua direção.

c) A descentralização

A organização da educação brasileira unitária sobre a base e os


princípios do Estado, no espírito da verdadeira comunidade popular e no
cuidado da unidade nacional, não implica um centralismo estéril e odioso,
ao qual se opõem as condições geográficas do país e a necessidade de
adaptação crescente da escola aos interesses e às exigências regionais.
Unidade não significa uniformidade. A unidade pressupõe multiplicidade.
Por menos que pareça, à primeira vista, não é, pois, na centralização, mas
na aplicação da doutrina federativa e descentralizadora, que teremos de
buscar o meio de levar a cabo, em toda a República, uma obra metódica
e coordenada, de acordo com um plano comum, de completa eficiência,
tanto em intensidade como em extensão. À União, na capital, e aos esta-
dos, nos seus respectivos territórios, é que deve competir a educação em
todos os graus, dentro dos princípios gerais fixados na nova constituição,
que deve conter, com a definição de atribuições e deveres, os fundamentos
da educação nacional. Ao governo central, pelo Ministério da Educação,
caberá vigiar sobre a obediência a esses princípios, fazendo executar as
orientações e os rumos gerais da função educacional, estabelecidos na
carta constitucional e em leis ordinárias, socorrendo onde haja deficiência
de meios, facilitando o intercâmbio pedagógico e cultural dos Estados e
intensificando por todas as formas as suas relações espirituais. A unidade
educativa, – essa obra imensa que a União terá de realizar sob pena de

384
perecer como nacionalidade, se manifestará então como uma força viva,
um espírito comum, um estado de ânimo nacional, nesse regime livre de
intercâmbio, solidariedade e cooperação que, levando os Estados a evitar
todo desperdício nas suas despesas escolares afim de produzir os maiores
resultados com as menores despesas, abrirá margem a uma sucessão
ininterrupta de esforços fecundos em criações e iniciativas.

O processo educativo

O conceito e os fundamentos da educação nova

O desenvolvimento das ciências lançou as bases das doutrinas da


nova educação, ajustando à finalidade fundamental e aos ideais que ela
deve prosseguir os processos apropriados para realizá-los. A extensão
e a riqueza que atualmente alcança por toda a parte o estudo científico
e experimental da educação, a libertaram do empirismo, dando-lhe um
caráter e um espírito nitidamente científico e organizando, em corpo de
doutrina, numa série fecunda de pesquisas e experiências, os princípios
da educação nova, pressentidos e às vezes formulados em rasgos de
síntese, pela intuição luminosa de seus precursores. A nova doutrina, que
não considera a função educacional como uma função de superposição
ou de acréscimo, segundo a qual o educando é “modelado exteriormente”
(escola tradicional), mas uma função complexa de ações e reações em que
o espírito cresce de “dentro para fora”, substitui o mecanismo pela vida
(atividade funcional) e transfere para a criança e para o respeito de sua
personalidade o eixo da escola e o centro de gravidade do problema da
educação. Considerando os processos mentais, como “funções vitais” e
não como “processos em si mesmos”, ela os subordina à vida, como meio
de utilizá-la e de satisfazer as suas múltiplas necessidades materiais e es-
pirituais. A escola, vista desse ângulo novo que nos dá o conceito funcional
da educação, deve oferecer à criança um meio vivo e natural, “favorável
ao intercâmbio de reações e experiências”, em que ela, vivendo a sua vida
própria, generosa e bela de criança, seja levada “ao trabalho e à ação por

385
meios naturais que a vida suscita quando o trabalho e a ação convém aos
seus interesses e às suas necessidades”.
Nessa nova concepção da escola, que é uma reação contra as ten-
dências exclusivamente passivas, intelectualistas e verbalistas da escola
tradicional, a atividade que está na base de todos os seus trabalhos, é a
atividade espontânea, alegre e fecunda, dirigida à satisfação das necessi-
dades do próprio indivíduo. Na verdadeira educação funcional deve estar,
pois, sempre presente, como elemento essencial e inerente à sua própria
natureza, o problema não só da correspondência entre os graus do ensino
e as etapas da evolução intelectual fixadas sobre a base dos interesses,
como também da adaptação da atividade educativa às necessidades psi-
cobiológicas do momento. O que distingue da escola tradicional a escola
nova, não é, de fato, a predominância dos trabalhos de base manual e cor-
poral, mas a presença, em todas as suas atividades, do fator psicobiológico
do interesse, que é a primeira condição de uma atividade espontânea e o
estímulo constante ao educando (criança, adolescente ou jovem) a buscar
todos os recursos ao seu alcance, “graças à força de atração das necessida-
des profundamente sentidas”. É certo que, deslocando-se por esta forma,
para a criança e para os seus interesses, móveis e transitórios, a fonte de
inspiração das atividades escolares, quebra-se a ordem que apresentavam
os programas tradicionais, do ponto de vista da lógica formal dos adultos,
para os pôr de acordo com a “lógica psicológica”, isto é, com a lógica que se
baseia na natureza e no funcionamento do espírito infantil.
Mas, para que a escola possa fornecer aos “impulsos interiores
a ocasião e o meio de realizar-se”, e abrir ao educando à sua energia de
observar, experimentar e criar todas as atividades capazes de satisfazê-la,
é preciso que ela seja reorganizada como um “mundo natural e social
embrionário”, um ambiente dinâmico em íntima conexão com a região e
a comunidade. A escola que tem sido um aparelho formal e rígido, sem
diferenciação regional, inteiramente desintegrado em relação ao meio
social, passará a ser um organismo vivo, com uma estrutura social, orga-
nizada à maneira de uma comunidade palpitante pelas soluções de seus
problemas. Mas, se a escola deve ser uma comunidade em miniatura, e se

386
em toda a comunidade as atividades manuais, motoras ou construtoras
“constituem as funções predominantes da vida”, é natural que ela inicie os
alunos nessas atividades, pondo-os em contato com o ambiente e com
a vida ativa que os rodeia, para que eles possam, desta forma, possuí-la,
apreciá-la e senti-la de acordo com as aptidões e possibilidades. “A vida da
sociedade, observou Paulsen, se modifica em função da sua economia, e
a energia individual e coletiva se manifesta pela sua produção material”. A
escola nova, que tem de obedecer a esta lei, deve ser reorganizada de ma-
neira que o trabalho seja seu elemento formador, favorecendo a expansão
das energias criadoras do educando, procurando estimular-lhe o próprio
esforço como o elemento mais eficiente em sua educação e preparando-o,
com o trabalho em grupos e todas as atividades pedagógicas e sociais,
para fazê-lo penetrar na corrente do progresso material e espiritual da
sociedade de que proveio e em que vai viver e lutar.

Plano de reconstrução educacional

a) As linhas gerais do plano

Ora, assentada a finalidade da educação e definidos os meios de


ação ou processos de que necessita o indivíduo para o seu desenvolvimen-
to integral, ficam fixados os princípios científicos sobre os quais se pode
apoiar solidamente um sistema de educação. A aplicação desses princípios
importa, como se vê, numa radical transformação da educação pública em
todos os seus graus, tanto à luz do novo conceito de educação, como à
vista das necessidades nacionais. No plano de reconstrução educacional,
de que se esboçam aqui apenas as suas grandes linhas gerais, procura-
mos, antes de tudo, corrigir o erro capital que apresenta o atual sistema (se
é que se pode chamar sistema), caracterizado pela falta de continuidade
e articulação do ensino, em seus diversos graus, como se não fossem
etapas de um mesmo processo, e cada um dos quais deve ter o seu “fim
particular”, próprio, dentro da “unidade do fim geral da educação” e dos
princípios e métodos comuns a todos os graus e instituições educativas.
De fato, o divorcio entre as entidades que mantêm o ensino primário e pro-

387
fissional e as que mantêm o ensino secundário e superior, vai concorrendo
insensivelmente, como já observou um dos signatários deste manifesto,
“para que se estabeleçam no Brasil, dois sistemas escolares paralelos,
fechados em compartimentos estanques e incomunicáveis, diferentes
nos seus objetivos culturais e sociais, e, por isto mesmo, instrumentos de
estratificação social”.
A escola primária que se estende sobre as instituições das escolas
maternais e dos jardins de infância e constitui o problema fundamental
das democracias, deve, pois, articular-se rigorosamente com a educação
secundária unificada, que lhe sucede, em terceiro plano, para abrir acesso
às escolas ou institutos superiores de especialização profissional ou de
altos estudos. Ao espírito novo que já se apoderou do ensino primário
não se poderia, porém, subtrair a escola secundária, em que se apresen-
tam, colocadas no mesmo nível, a educação chamada “profissional” (de
preferência manual ou mecânica) e a educação humanística ou científica
(de preponderância intelectual), sobre uma base comum de três anos. A
escola secundária deixará de ser assim a velha escola de “um grupo social”,
destinada a adaptar todas as inteligências a uma forma rígida de educação,
para ser um aparelho flexível e vivo, organizado para ministrar a cultura
geral e satisfazer às necessidades práticas de adaptação à variedade dos
grupos sociais. É o mesmo princípio que faz alargar o campo educativo das
Universidades, em que, ao lado das escolas destinadas ao preparo para
as profissões chamadas “liberais”, se devem introduzir, no sistema, as es-
colas de cultura especializada, para as profissões industriais e mercantis,
propulsoras de nossa riqueza econômica e industrial. Mas esse princípio,
dilatando o campo das universidades, para adaptá-las à variedade e às
necessidades dos grupos sociais, tão longe está de lhes restringir a função
cultural que tende a elevar constantemente as escolas de formação profis-
sional, achegando-as às suas próprias fontes de renovação e agrupandoas
em torno dos grandes núcleos de criação livre, de pesquisa científica e de
cultura desinteressada.
A instrução pública não tem sido, entre nós, na justa observação
de Alberto Torres, senão um “sistema de canais de êxodo da mocidade do

388
campo para as cidades e da produção para o parasitismo”. É preciso, para
reagir contra esses males, já tão lucidamente apontados, pôr em via de
solução o problema educacional das massas rurais e do elemento traba-
lhador da cidade e dos centros industriais já pela extensão da escola do
trabalho educativo e da escola do trabalho profissional, baseada no exercí-
cio normal do trabalho em cooperação, já pela adaptação crescente dessas
escolas (primária e secundária profissional) às necessidades regionais e às
profissões e indústrias dominantes no meio. A nova política educacional
rompendo, de um lado, contra a formação excessivamente literária de
nossa cultura, para lhe dar um caráter científico e técnico, e contra esse
espírito de desintegração da escola, em relação ao meio social, impõe
reformas profundas, orientadas no sentido da produção e procura reforçar,
por todos os meios, a intenção e o valor social da escola, sem negar a arte,
a literatura e os valores culturais. A arte e a literatura tem efetivamente
uma significação social, profunda e múltipla; a aproximação dos homens, a
sua organização em uma coletividade unânime, a difusão de tais ou quais
idéias sociais, de uma maneira “imaginada”, e, portanto, eficaz, a extensão
do raio visual do homem e o valor moral e educativo conferem certamente
à arte uma enorme importância social. Mas, se, à medida que a riqueza
do homem aumenta, o alimento ocupa um lugar cada vez mais fraco, os
produtores intelectuais não passam para o primeiro plano senão quando
as sociedades se organizam em sólidas bases econômicas.

b) O ponto nevrálgico da questão

A estrutura do plano educacional corresponde, na hierarquia de


suas instituições escolares (escola infantil ou pré-primária; primária;
secundária e superior ou universitária) aos quatro grandes períodos que
apresenta o desenvolvimento natural do ser humano. É uma reforma inte-
gral da organização e dos métodos de toda a educação nacional, dentro do
mesmo espírito que substitui o conceito estático do ensino por um conceito
dinâmico, fazendo um apelo, dos jardins de infância à Universidade, não à
receptividade mas à atividade criadora do aluno. A partir da escola infantil

389
(4 a 6 anos) à Universidade, com escala pela educação primária (7 a 12)
e pela secundária (l2 a 18 anos), a “continuação ininterrupta de esforços
criadores” deve levar à formação da personalidade integral do aluno e ao
desenvolvimento de sua faculdade produtora e de seu poder criador, pela
aplicação, na escola, para a aquisição ativa de conhecimentos, dos mes-
mos métodos (observação, pesquisa, e experiência), que segue o espírito
maduro, nas investigações científicas. A escola secundária, unificada para
se evitar o divórcio entre os trabalhadores manuais e intelectuais, terá uma
sólida base comum de cultura geral (3 anos), para a posterior bifurcação
(dos 15 aos 18), em seção de preponderância intelectual (com os 3 ciclos
de humanidades modernas; ciências físicas e matemáticas; e ciências
químicas e biológicas), e em seção de preferência manual, ramificada por
sua vez, em ciclos, escolas ou cursos destinados à preparação às ativida-
des profissionais, decorrentes da extração de matérias primas (escolas
agrícolas, de mineração e de pesca) da elaboração das matérias primas
(industriais e profissionais) e da distribuição dos produtos elaborados
(transportes, comunicações e comércio).
Mas, montada, na sua estrutura tradicional, para a classe média
(burguesia), enquanto a escola primária servia à classe popular, como se
tivesse uma finalidade em si mesma, a escola secundária ou do 3º grau
não forma apenas o reduto dos interesses de classe, que criaram e man-
têm o dualismo dos sistemas escolares. É ainda nesse campo educativo
que se levanta a controvérsia sobre o sentido de cultura geral e se põe o
problema relativo à escolha do momento em que a matéria do ensino deve
diversificar-se em ramos iniciais de especialização. Não admira, por isto,
que a escola secundária seja, nas reformas escolares, o ponto nevrálgi-
co da questão. Ora, a solução dada, neste plano, ao problema do ensino
secundário, levantando os obstáculos opostos pela escola tradicional à
interpenetração das classes sociais, se inspira na necessidade de adaptar
essa educação à diversidade nascente de gostos e à variedade crescente
de aptidões que a observação psicológica regista nos adolescentes e que
“representam as únicas forças capazes de arrastar o espírito dos jovens à
cultura superior”. A escola do passado, com seu esforço inútil de abarcar a

390
soma geral de conhecimentos, descurou a própria formação do espírito e
a função que lhe cabia de conduzir o adolescente ao limiar das profissões
e da vida. Sobre a base de uma cultura geral comum, em que importará
menos a quantidade ou qualidade das matérias do que o “método de sua
aquisição”, a escola moderna estabelece para isto, depois dos 15 anos, o
ponto em que o ensino se diversifica, para se adaptar já à diversidade cres-
cente de aptidões e de gostos, já à variedade de formas de atividade social.

c) O conceito moderno de Universidade e o problema universitário


no Brasil

A educação superior que tem estado, no Brasil, exclusivamente


a serviço das profissões “liberais” (engenharia, medicina e direito), não
pode evidentemente erigir-se à altura de uma educação universitária, sem
alargar para horizontes científicos e culturais a sua finalidade estritamente
profissional e sem abrir os seus quadros rígidos à formação de todas as
profissões que exijam conhecimentos científicos, elevando-as a todas a ní-
vel superior e tornando-se, pela flexibilidade de sua organização, acessível
a todas. Ao lado das faculdades profissionais existentes, reorganizadas em
novas bases, impõe-se a criação simultânea ou sucessiva, em cada quadro
universitário, de faculdades de ciências sociais e econômicas; de ciências
matemáticas, físicas e naturais, e de filosofia e letras que, atendendo à va-
riedade de tipos mentais e das necessidades sociais, deverão abrir às uni-
versidades que se criarem ou se reorganizarem, um campo cada vez mais
vasto de investigações científicas. A educação superior ou universitária, a
partir dos 18 anos, inteiramente gratuita como as demais, deve tender, de
fato, não somente à formação profissional e técnica, no seu máximo de-
senvolvimento, como à formação de pesquisadores, em todos os ramos de
conhecimentos humanos. Ela deve ser organizada de maneira que possa
desempenhar a tríplice função que lhe cabe de elaboradora ou criadora de
ciência (investigação), docente ou transmissora de conhecimentos (ciência
feita) e de vulgarizadora ou popularizadora, pelas instituições de extensão
universitária, das ciências e das artes.

391
No entanto, com ser a pesquisa, na expressão de Coulter, o “sis-
tema nervoso da Universidade”, que estimula e domina qualquer outra
função; com ser esse espírito de profundidade e universalidade, que
imprime à educação superior um caráter universitário, pondo-a em con-
dições de contribuir para o aperfeiçoamento constante do saber humano,
a nossa educação superior nunca ultrapassou os limites e as ambições de
formação profissional, a que se propõem as escolas de engenharia, de me-
dicina e direito. Nessas instituições, organizadas antes para uma função
docente, a ciência está inteiramente subordinada à arte ou à técnica da
profissão a que servem, com o cuidado da aplicação imediata e próxima, de
uma direção utilitária em vista de uma função pública ou de uma carreira
privada. Ora, se, entre nós, vingam facilmente todas as fórmulas e frases
feitas; se a nossa ilustração, mais variada e mais vasta do que no império,
é hoje, na frase de Alberto Torres, “mais vaga, fluida, sem assento, incapaz
de habilitar os espíritos a formar juízos e incapaz de lhes inspirar atos”, é
porque a nossa geração, além de perder a base de uma educação secun-
dária sólida, posto que exclusivamente literária, se deixou infiltrar desse
espírito enciclopédico em que o pensamento ganha em extensão o que
perde em profundidade; em que da observação e da experiência, em que
devia exercitar-se, se deslocou o pensamento para o hedonismo intelec-
tual e para a ciência feita, e em que, finalmente, o período criador cede o
lugar à erudição, e essa mesma quase sempre, entre nós, aparente e sem
substância, dissimulando sob a superfície, às vezes brilhante, a absoluta
falta de solidez de conhecimentos.
Nessa superficialidade de cultura, fácil e apressada, de autodida-
tas, cujas opiniões se mantêm prisioneiras de sistemas ou se matizam
das tonalidades das mais variadas doutrinas, se tem de buscar as causas
profundas da estreiteza e da flutuação dos espíritos e da indisciplina men-
tal, quase anárquica, que revelamos em face de todos os problemas. Nem
a primeira geração nascida com a república, no seu esforço heróico para
adquirir a posse de si mesma, elevando-se acima de seu meio, conseguiu
libertar-se de todos os males educativos de que se viciou a sua formação.
A organização de Universidades é, pois, tanto mais necessária e urgente

392
quanto mais pensarmos que só com essas instituições, a que cabe criar e
difundir ideais políticos, sociais, morais e estéticos, é que podemos obter
esse intensivo espírito comum, nas aspirações, nos ideais e nas lutas, esse
“estado de ânimo nacional”, capaz de dar força, eficácia e coerência à ação
dos homens, sejam quais forem as divergências que possa estabelecer
entre eles a diversidade de pontos de vista na solução dos problemas bra-
sileiros. É a universidade, no conjunto de suas instituições de alta cultura,
prepostas ao estudo científico dos grandes problemas nacionais, que nos
dará os meios de combater a facilidade de tudo admitir; o ceticismo de
nada escolher nem julgar; a falta de crítica, por falta de espírito de síntese;
a indiferença ou a neutralidade no terreno das idéias; a ignorância “da mais
humana de todas as operações intelectuais, que é a de tomar partido”, e a
tendência e o espírito fácil de substituir os princípios (ainda que provisórios)
pelo paradoxo e pelo humor, esses recursos desesperados.

d) O problema dos melhores

De fato, a Universidade, que se encontra no ápice de todas as ins-


tituições educativas, está destinada, nas sociedades modernas a desen-
volver um papel cada vez mais importante na formação das elites de pen-
sadores, sábios, cientistas, técnicos, e educadores, de que elas precisam
para o estudo e solução de suas questões científicas, morais, intelectuais,
políticas e econômicas. Se o problema fundamental das democracias é a
educação das massas populares, os melhores e os mais capazes, por sele-
ção, devem formar o vértice de uma pirâmide de base imensa. Certamente,
o novo conceito de educação repele as elites formadas artificialmente “por
diferenciação econômica” ou sob o critério da independência econômica,
que não é nem pode ser hoje elemento necessário para fazer parte delas. A
primeira condição para que uma elite desempenhe a sua missão e cumpra
o seu dever é de ser “inteiramente aberta” e não somente de admitir todas
as capacidades novas, como também de rejeitar implacavelmente de seu
seio todos os indivíduos que não desempenham a função social que lhes
é atribuída no interesse da coletividade. Mas, não há sociedade alguma

393
que possa prescindir desse órgão especial e tanto mais perfeitas serão as
sociedades quanto mais pesquisada e selecionada for a sua elite, quanto
maior for a riqueza e a variedade de homens, de valor cultural substantivo,
necessários para enfrentar a variedade dos problemas que põe a comple-
xidade das sociedades modernas. Essa seleção que se deve processar não
“por diferenciação econômica”, mas “pela diferenciação de todas as capa-
cidades”, favorecida pela educação, mediante a ação biológica e funcional,
não pode, não diremos completar-se, mas nem sequer realizar-se senão
pela obra universitária que, elevando ao máximo o desenvolvimento dos
indivíduos dentro de suas aptidões naturais e selecionando os mais capa-
zes, lhes dá bastante força para exercer influência efetiva na sociedade e
afetar, dessa forma, a consciência social.

A unidade de formação de professores e a unidade de espírito

Ora, dessa elite deve fazer parte evidentemente o professorado


de todos os graus, ao qual, escolhido como sendo um corpo de eleição,
para uma função pública da mais alta importância, não se dá, nem nunca
se deu no Brasil, a educação que uma elite pode e deve receber. A maior
parte dele, entre nós, é recrutada em todas as carreiras, sem qualquer
preparação profissional, como os professores do ensino secundário e os do
ensino superior (engenharia, medicina, direito etc.), entre os profissionais
dessas carreiras, que receberam, uns e outros, do secundário a sua educa-
ção geral. O magistério primário, preparado em escolas especiais (escolas
normais), de caráter mais propedêutico, e, as vezes misto, com seus cursos
geral e de especialização profissional, não recebe, por via de regra, nesses
estabelecimentos, de nível secundário, nem uma sólida preparação peda-
gógica, nem a educação geral em que ela deve basear-se. A preparação dos
professores, como se vê, é tratada entre nós, de maneira diferente, quando
não é inteiramente descuidada, como se a função educacional, de todas as
funções públicas a mais importante, fosse a única para cujo exercício não
houvesse necessidade de qualquer preparação profissional. Todos os pro-
fessores, de todos os graus, cuja preparação geral se adquirirá nos estabe-
lecimentos de ensino secundário, devem, no entanto, formar o seu espírito

394
pedagógico, conjuntamente, nos cursos universitários, em faculdades ou
escolas normais, elevadas ao nível superior e incorporadas às universida-
des. A tradição das hierarquias docentes, baseadas na diferenciação dos
graus de ensino, e que a linguagem fixou em denominações diferentes
(mestre, professor e catedrático), é inteiramente contrária ao princípio da
unidade da função educacional, que, aplicado, às funções docentes, importa
na incorporação dos estudos do magistério às universidades, e, portanto,
na libertação espiritual e econômica do professor, mediante uma formação
e remuneração equivalentes que lhe permitam manter, com a eficiência no
trabalho, a dignidade e o prestígio indispensáveis aos educadores.
A formação universitária dos professores não é somente uma
necessidade da função educativa, mas o único meio de, elevando-lhes em
verticalidade a cultura, e abrindo-lhes a vida sobre todos os horizontes,
estabelecer, entre todos, para a realização da obra educacional, uma com-
preensão recíproca, uma vida sentimental comum e um vigoroso espírito
comum nas aspirações e nos ideais. Se o estado cultural dos adultos é que
dá as diretrizes à formação da mocidade, não se poderá estabelecer uma
função e educação unitária da mocidade, sem que haja unidade cultural
naqueles que estão incumbidos de transmití-la. Nós não temos o feiticis-
mo, mas o princípio da unidade, que reconhecemos não ser possível senão
quando se criou esse “espírito”, esse “ideal comum”, pela unificação, para
todos os graus do ensino, da formação do magistério, que elevaria o valor
dos estudos, em todos os graus, imprimiria mais lógica e harmonia às
instituições, e corrigiria, tanto quanto humanamente possível, as injustiças
da situação atual. Os professores de ensino primário e secundário, assim
formados, em escolas ou cursos universitários, sobre a base de uma edu-
cação geral comum, dada em estabelecimentos de educação secundária,
não fariam senão um só corpo com os do ensino superior, preparando a
fusão sincera e cordial de todas as forças vivas do magistério. Entre os
diversos graus do ensino, que guardariam a sua função específica, se es-
tabeleceriam contatos estreitos que permitiriam as passagens de um ao
outro nos momentos precisos, descobrindo as superioridades em gérmen,
pondo-as em destaque e assegurando, de um ponto a outro dos estudos, a
unidade do espírito sobre a base da unidade de formação dos professores.

395
O papel da escola na vida e a sua função social

Mas, ao mesmo tempo que os progressos da psicologia aplicada


à criança começaram a dar à educação bases científicas, os estudos so-
ciológicos, definindo a posição da escola em face da vida, nos trouxeram
uma consciência mais nítida da sua função social e da estreiteza relativa
de seu círculo de ação. Compreende-se, à luz desses estudos, que a escola,
campo específico de educação, não é um elemento estranho à sociedade
humana, um elemento separado, mas “uma instituição social”, um órgão
feliz e vivo, no conjunto das instituições necessárias à vida, o lugar onde
vivem a criança, a adolescência e a mocidade, de conformidade com os
interesses e as alegrias profundas de sua natureza. A educação, porém,
não se faz somente pela escola, cuja ação é favorecida ou contrariada,
ampliada ou reduzida pelo jogo de forças inumeráveis que concorrem ao
movimento das sociedades modernas. Numerosas e variadíssimas, são,
de fato, as influências que formam o homem através da existência. “Há
a herança que a escola da espécie, como já se escreveu; a família que é a
escola dos pais; o ambiente social que é a escola da comunidade, e a maior
de todas as escolas, a vida, com todos os seus imponderáveis e forças
incalculáveis”. Compreender, então, para empregar a imagem de C. Bouglé,
que, na sociedade, a “zona luminosa é singularmente mais estreita que a
zona de sombra; os pequenos focos de ação consciente que são as escolas,
não são senão pontos na noite, e a noite que as cerca não é vazia, mas
cheia e tanto mais inquietante; não é o silêncio e a imobilidade do deserto,
mas o frêmito de uma floresta povoada”.
Dessa concepção positiva da escola, como uma instituição social,
limitada, na sua ação educativa, pela pluralidade e diversidade das forças
que concorrem ao movimento das sociedades, resulta a necessidade de
reorganizá-la, como um organismo maleável e vivo, aparelhado de um
sistema de instituições susceptíveis de lhe alargar os limites e o raio de
ação. As instituições periescolares e postescolares, de caráter educativo
ou de assistência social, devem ser incorporadas em todos os sistemas
de organização escolar para corrigirem essa insuficiência social, cada vez

396
maior, das instituições educacionais. Essas instituições de educação e
cultura, dos jardins de infância às escolas superiores, não exercem a ação
intensa, larga e fecunda que são chamadas a desenvolver e não podem
exercer senão por esse conjunto sistemático de medidas de projeção social
da obra educativa além dos muros escolares. Cada escola, seja qual for o
seu grau, dos jardins às universidades, deve, pois, reunir em tomo de si as
famílias dos alunos, estimulando e aproveitando as iniciativas dos pais em
favor da educação; constituindo sociedades de exalunos que mantenham
relação constante com as escolas; utilizando, em seu proveito, os valiosos
e múltiplos elementos materiais e espirituais da coletividade e despertan-
do e desenvolvendo o poder de iniciativa e o espírito de cooperação social
entre os pais, os professores, a imprensa e todas as demais instituições
diretamente interessadas na obra da educação.
Pois, é impossível realizar-se em intensidade e extensão, uma
sólida obra educacional, sem se rasgarem à escola aberturas no maior
número possível de direções e sem se multiplicarem os pontos de apoio
de que ela precisa, para se desenvolver, recorrendo a comunidade como
à fonte que lhes há de proporcionar todos os elementos necessários para
elevar as condições materiais e espirituais das escolas. A consciência do
verdadeiro papel da escola na sociedade impõe o dever de concentrar a
ofensiva educacional sobre os núcleos sociais, como a família, os agrupa-
mentos profissionais e a imprensa, para que o esforço da escola se possa
realizar em convergência, numa obra solidária, com as outras instituições
da comunidade. Mas, além de atrair para a obra comum as instituições
que são destinadas, no sistema social geral, a fortificar-se mutuamente,
a escola deve utilizar, em seu proveito, com a maior amplitude possível,
todos os recursos formidáveis, como a imprensa, o disco, o cinema e o
rádio, com que a ciência, multiplicando-lhe a eficácia, acudiu à obra de
educação e cultura e que assumem, em face das condições geográficas e
da extensão territorial do país, uma importância capital. À escola antiga,
presumida da importância do seu papel e fechada no seu exclusivismo
acanhado e estéril, sem o indispensável complemento e concurso de todas
as outras instituições sociais, se sucederá a escola moderna aparelhada

397
de todos os recursos para estender e fecundar a sua ação na solidariedade
com o meio social, em que então, e só então, se tornará capaz de influir,
transformando-se num centro poderoso de criação, atração e irradiação de
todas as forças e atividades educativas.

A democracia, – um programa de longos deveres

Não alimentamos, de certo, ilusões sobre as dificuldades de toda


a ordem que apresenta um plano de reconstrução educacional de tão
grande alcance e de tão vastas proporções. Mas, temos, com a consciência
profunda de uma por uma dessas dificuldades, a disposição obstinada de
enfrentá-las, dispostos, como estamos, na defesa de nossos ideais educa-
cionais, para as existências mais agitadas, mais rudes e mais fecundas em
realidades, que um homem tenha vivido desde que há homens, aspirações
e lutas. O próprio espírito que o informa de uma nova política educacional,
com sentido unitário e de bases científicas, e que seria, em outros países,
a maior fonte de seu prestígio, tornará esse plano suspeito aos olhos dos
que, sob o pretexto e em nome do nacionalismo, persistem em manter a
educação, no terreno de uma política empírica, à margem das correntes
renovadoras de seu tempo. De mais, se os problemas de educação devem
ser resolvidos de maneira científica, e se a ciência não tem pátria, nem
varia, nos seus princípios, com os climas e as latitudes, a obra de educação
deve ter, em toda a parte, uma “unidade fundamental”, dentro da variedade
de sistemas resultantes da adaptação a novos ambientes dessas idéias
e aspirações que, sendo estruturalmente científicas e humanas, têm um
caráter universal. É preciso, certamente, tempo para que as camadas mais
profundas do magistério e da sociedade em geral sejam tocadas pelas
doutrinas novas e seja esse contato bastante penetrante e fecundo para
lhe modificar os pontos de vista e as atitudes em face do problema educa-
cional, e para nos permitir as conquistas em globo ou por partes de todas
as grandes aspirações que constituem a substância de uma nova política
de educação.
Os obstáculos acumulados, porém, não nos abateram ainda nem
poderão abater-nos a resolução firme de trabalhar pela reconstrução

398
educacional no Brasil. Nós temos uma missão a cumprir: insensíveis à in-
diferença e à hostilidade, em luta aberta contra preconceitos e prevenções
enraizadas, caminharemos progressivamente para o termo de nossa tare-
fa, sem abandonarmos o terreno das realidades, mas sem perdermos de
vista os nossos ideais de reconstrução do Brasil, na base de uma educação
inteiramente nova. A hora crítica e decisiva que vivemos, não nos permite
hesitar um momento diante da tremenda tarefa que nos impõe a cons-
ciência, cada vez mais viva da necessidade de nos prepararmos para en-
frentarmos com o evangelho da nova geração, a complexidade trágica dos
problemas postos pelas sociedades modernas. “Não devemos submeter o
nosso espírito. Devemos, antes de tudo proporcionar-nos um espírito fir-
me e seguro; chegar a ser sérios em todas as coisas, e não continuar a viver
frivolamente e como envoltos em bruma; devemos formar-nos princípios
fixos e inabaláveis que sirvam para regular, de um modo firme, todos os
nossos pensamentos e todas as nossas ações; vida e pensamento devem
ser em nós outros de uma só peça e formar um todo penetrante e sólido.
Devemos, em uma palavra, adquirir um caráter, e refletir, pelo movimento
de nossas próprias idéias, sobre os grandes acontecimentos de nossos
dias, sua relação conosco e o que podemos esperar deles. É preciso formar
uma opinião clara e penetrante e responder a esses problemas sim ou não
de um modo decidido e inabalável”.
Essas palavras tão oportunas, que agora lembramos, escreveu-as
Fichte há mais de um século, apontando à Alemanha, depois da derrota de
Iena, o caminho de sua salvação pela obra educacional, em um daqueles
famosos “discursos à nação alemã”, pronunciados de sua cátedra, enquan-
to sob as janelas da Universidade, pelas ruas de Berlim, ressoavam os
tambores franceses. Não são, de fato, senão as fortes convicções e a plena
posse de si mesmos que fazem os grandes homens e os grandes povos.
Toda a profunda renovação dos princípios que orientam a marcha dos povos
precisa acompanharse de fundas transformações no regime educacional:
as únicas revoluções fecundas são as que se fazem ou se consolidam pela
educação, e é só pela educação que a doutrina democrática, utilizada como
um princípio de desagregação moral e de indisciplina, poderá transformar-

399
-se numa fonte de esforço moral, de energia criadora, de solidariedade
social e de espírito de cooperação. “O ideal da democracia que, – escrevia
Gustave Belot em 1919, parecia mecanismo político, torna-se princípio de
vida moral e social, e o que parecia coisa feita e realizada revelou-se como
um caminho a seguir e como um programa de longos deveres”. Mas, de
todos os deveres que incumbem ao Estado, o que exige maior capacidade
de dedicação e justifica maior soma de sacrifícios; aquele com que não é
possível transigir sem a perda irreparável de algumas gerações; aquele
em cujo cumprimento os erros praticados se projetam mais longe nas
suas conseqüências, agravando-se à medida que recuam no tempo; o
dever mais alto, mais penoso e mais grave é, de certo, o da educação que,
dando ao povo a consciência de si mesmo e de seus destinos e a força
para afirmar-se e realizá-los, entretém, cultiva e perpetua a identidade da
consciência nacional, na sua comunhão íntima com a consciência humana.

A. de Sampaio Dória
A. Ferreira de Almeida Jr.
Afrânio Peixoto
Anísio Spíinola Teixeira
Armanda Álvaro Alberto
Attilio Vivacqua
C. Delgado de Carvalho
Cecilia Meirelles
Edgard Sussekind de Mendonça
Fernando de Azevedo
Francisco Venâncio Filho
Garcia de Rezende
Hermes Lima
J. G. Frota Pessôa
J. P. Fontenelle
Julio de Mesquita Filho
M. Bergstrom Lourenço Filho
Mário Casasanta

400
Nóbrega da Cunha
Noemy M. da Silveira
Paschoal Lemme
Paulo Maranhão
Raul Briquet
Raul Gomes.
Roldão Lopes de Barros
Roquette-Pinto

401
SOBRE OS ORGANIZADORES

Elianda Figueiredo Arantes Tiballi


Graduada em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás);
Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG); Doutora em História
e Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
-SP), com Estágio Doutoral no Institut National de Recherche Pédagogique e Es-
tágio Pós-Doutoral no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Professora Titular da PUC Goiás, atuando no Programa
de Pós-Graduação em Educação – Mestrado e Doutorado, integrante da linha
de pesquisa “Teorias da Educação e Processos Pedagógicos”. Coordenadora do
Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado Acadêmico, da Faculdade
de Inhumas; Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Pensamento Educa-
cional Brasileiro – Geppeb. Pesquisadora, especialmente referente à investigação
das seguintes temáticas: Pensamento educacional brasileiro: história intelectual;
Aprendizagem escolar: processos e dificuldades e Desigualdades educativas.

João Oliveira Ramos Neto


Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG); Ba-
charel em Teologia pela FB-RJ; Mestre em História Comparada pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Doutor em História pela Universidade Federal de
Goiás (UFG); com Estágio Pós-Doutoral no Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Professor efetivo do Instituto
Federal de Goiás; foi professor e membro da comissão de implantação do Mes-
trado Profissional em Ensino para a Educação Básica do Instituto Federal Goiano
(IF Goiano); e Coordenador de Ensino Médio no IF Goiano – Urutaí. É integrante
do Grupo de Estudos e Pesquisas Pensamento Educacional Brasileiro – Geppeb
e atua como pesquisador nas áreas de História Medieval e Moderna, História das
Religiões, Ensino de História, Ensino Religioso e Ciência das Religiões.

402

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