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Antropologia e

Cultura Brasileira
Autor: Prof. Rubens Lopes Júnior
Colaboradores: Prof. Enzo Fiorelli Vasques
Prof. Tânia Sandroni
Professor conteudista: Rubens Lopes Júnior

Nascido em São Caetano do Sul – SP em 1985, é graduado em Relações Internacionais pela Faculdade Santa
Marcelina de São Paulo (2007), mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2011)
e doutor em Comunicação Social também pela Universidade Metodista (2018). Realizou o curso Business Programme
no Newcastle College, Inglaterra, em 2016, sendo o professor responsável pelos alunos intercambistas brasileiros
daquela turma.

É docente no ensino superior e em pós-graduação lato sensu há 6 anos, transitando por diversos cursos e temáticas.
Possui diversas orientações de projetos de pesquisa nos cursos superiores, bem como orientações de Trabalhos de
Conclusão de Curso e artigos de pós-graduação. Já participou de diferentes bancas e comissões julgadoras e leciona
disciplinas em inglês. É também coordenador auxiliar do curso de Relações Internacionais no campus Santos na
Universidade Paulista (UNIP).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

L864a Lopes Júnior, Rubens.

Antropologia e Cultura Brasileira / Rubens Lopes Júnior. –


São Paulo: Editora Sol, 2019.

176 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXV, n. 2-219/19, ISSN 1517-9230.

1. Antropologia. 2. Cultura. 3. Religião. I. Título.

CDU 572

U503.43 – 19

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
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Unip Interativa – EaD

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Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Lucas Ricardi
Fabrícia Carpinelli
Sumário
Antropologia e Cultura Brasileira

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8

Unidade I
1 A IMPORTÂNCIA DA ANTROPOLOGIA E DA CULTURA PARA
AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS.................................................................................................................... 11
1.1 A antropologia na dimensão da ciência...................................................................................... 13
1.2 O evolucionismo e a antropologia biológica............................................................................. 15
1.3 O funcionalismo e a antropologia cultural................................................................................. 20
1.4 O estruturalismo e a linguística...................................................................................................... 25
2 AS DIMENSÕES DA CULTURA...................................................................................................................... 28
2.1 Sentido e alcance da cultura............................................................................................................ 38
2.2 Cultura e sociedade.............................................................................................................................. 43
3 ANTROPOLOGIA, RELIGIÃO, RITOS E MITOS........................................................................................... 46
3.1 A religião na perspectiva da antropologia cultural................................................................. 47
3.2 A religião na perspectiva histórico-político-social no ocidente........................................ 51
4 RITOS E MITOS E SUA INFLUÊNCIA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS...................................... 57

Unidade II
5 IDEOLOGIA E SUAS CONCEPÇÕES............................................................................................................. 72
5.1 Identidade e nacionalismo................................................................................................................ 79
6 ANTROPOLOGIA NA PRÁXIS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
O CONCEITO DE PODER E SUA RELAÇÃO COM A CULTURA............................................................... 90
6.1 A dimensão da cultura nas negociações internacionais.....................................................103
6.2 A antropologia e as dinâmicas do poder como influenciador cultural.........................112

Unidade III
7 A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE BRASILEIRA: UM DIÁLOGO
COM FREYRE, BUARQUE E RIBEIRO............................................................................................................125
7.1 O papel dos portugueses na colonização brasileira..............................................................129
7.2 A importância do indígena na formação brasileira...............................................................138
8 O PAPEL DOS ESCRAVOS AFRICANOS NA FORMAÇÃO BRASILEIRA.........................................147
8.1 É possível falar em identidade brasileira?.................................................................................153
APRESENTAÇÃO

Você deve estar se perguntando: para que estudar antropologia? O que tem a ver isso com
aquilo? Pois bem... Tudo! E a justificativa para essa resposta é simples: em um mundo cada vez mais
interconectado, no qual o aparelho celular é, muitas vezes, a extensão do corpo humano, colocando
em xeque as fronteiras físicas dos países em questão de segundos, o internacionalista deve estar apto a
compreender todas as dimensões dessas relações.

Existem pessoas oriundas de diferentes culturas em todas as partes do mundo. Sendo assim,
compreender essas dinâmicas em sua dimensão antropológica e cultural é fundamental para que você
possa lançar um olhar construtivo para a sua prática profissional (atual ou futura). Assim, para um
profissional ser bem-sucedido, é importante que saiba lidar com o outro.

Para isso, é fundamental que possamos estudar e compreender a aplicabilidade de conceitos como
etnocentrismo, relativismo, rito, mito, alteridade, troca simbólica e cultura. O estudo da antropologia
enquanto instrumento de compreensão da realidade é fundamental.

Outro aspecto de suma importância para o seu sucesso profissional em nossa área é compreender o
papel e as dinâmicas próprias de nosso país. Para tal, o estudo da evolução histórica da cultura brasileira,
sua cadeia de significação, nossa multiculturalidade e o que entendemos por identidade e etnia também
poderão nos ajudar.

Compreender o porquê de fazermos o que fazemos é primordial para o sucesso profissional do


internacionalista. É necessário saber que cada cultura é fruto de um determinado contexto, assim como
admitir as diferenças e não deixar que elas atrapalhem os negócios.

Imagine você negociando com uma empresa alemã, por exemplo, que marca a reunião para começar
às 14h15min, e nós, brasileiros, de uma forma assustadoramente natural, frequentemente marcamos
nossos horários assim: “umas 14h, 15h está bom...”.

O estudo antropológico nos dá subsídios para que possamos compreender questões contemporâneas
que invadem os portais eletrônicos e os telejornais diários, como migrações internacionais e soberanias
territoriais. A antropologia também é responsável por estudos sobre diversidade cultural, hegemonias e
muitas outras coisas.

Assim, ao final desta disciplina, você estará apto para:

• Reconhecer os conceitos centrais da antropologia e identificar aspectos essenciais da cultura


brasileira frente ao campo das relações internacionais.
• Distinguir e oportunizar aspectos relevantes das interligações entre os diversos fatores da vida
social e cultural, sistemas de crença, dinâmicas globais, comportamentos individuais e meio
ambiente físico e o respeito da e pela alteridade.
• Compreender a complexidade da cultura brasileira e as dinâmicas cotidianas.

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Observação

Lembre-se: por trás das relações internacionais existem pessoas e


sociedades que possuem suas próprias dinâmicas, sendo elas responsáveis
por comportamentos e práticas que aparecem nas relações entre os
players internacionais.

INTRODUÇÃO

Para facilitar a compreensão da nossa disciplina, dividimos o conteúdo em três pilares: a antropologia,
a cultura brasileira e a relação entre esses aspectos frente às relações internacionais.

Inicialmente, discutiremos o que são a antropologia, as dimensões da cultura e a conexão desses


estudos com as relações internacionais. No campo antropológico, vamos estudar a dimensão científica da
antropologia, abordando três correntes de pensamento (evolucionismo, funcionalismo e estruturalismo)
através do estudo de suas ideias centrais. Entretanto, ao mesmo tempo, dialogaremos com o âmbito
biológico e cultural da antropologia. Outro aspecto relevante para o internacionalista é a linguística,
ciência que também é classificada como parte da antropologia, mesmo porque no meio internacional
nos deparamos inevitavelmente com culturas e línguas distintas.

Salientamos que esse panorama é somente uma parte do todo, uma breve apresentação de algumas
teorias e correntes, não de todas. A escolha dessas teorias se deu pelo fato de serem mais interessantes
para o campo das relações internacionais.

De modo algum o assunto se encerra aqui. Sinta-se à vontade para buscar novas bibliografias, pois a
ideia é mostrar, acima de tudo, a importância desse estudo para nossa área. Vale ressaltar também que
antropologia é tanto uma ciência quanto um pensar filosófico e pode ser uma excelente ferramenta
para o internacionalista se capacitar e exercer sua profissão.

Já no campo da cultura, trataremos do próprio conceito de cultura, seu desenvolvimento histórico


e sua influência na antropologia e nas relações internacionais. Para tal, estudaremos as definições de
cultura e seus múltiplos sentidos, bem como as características que existem em cada uma delas. Também
veremos o sentido e o alcance da cultura, pois é necessário compreendermos como ela opera e até onde
vai sua influência. Completando esse passeio pelo conceito de cultura, analisaremos a relação da cultura
com a sociedade.

Vamos ainda estudar o aspecto da religião na antropologia. Embora falar de religião seja um tanto
quanto complexo, afinal, em nosso imaginário, “política, futebol e religião não se discute”, ela é fator
determinante para as relações internacionais contemporâneas. Mesmo depois da Paz de Vestfália, em
1648, quando a religião foi relegada ao campo do privado, ela não desaparece por completo. Muito pelo
contrário, ela se transforma de tal maneira que sua influência fica evidente em outras formas do fazer
religioso. Por isso, iremos estudar a religião na perspectiva antropológica e em sua dimensão política, pois

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ela foi elemento fundador de diversas sociedades. Vamos estudar também o papel do rito na sociedade
contemporânea, pois ele transcende o caráter religioso nos dias de hoje. O mito também é importante
porque ele atua como narrativa nas sociedades e pode, inclusive, influenciar comportamentos humanos.

Na sequência, você compreenderá a importância da antropologia para as relações internacionais,


lembrando que o profissional desse campo irá atuar no âmbito empresarial, em organizações voltadas
para os negócios internacionais, e também na diplomacia, seja ela de Estados ou corporativa, ou
trabalhar com assessoria especializada em assuntos de alcance global, por exemplo. Enfim, há um leque
de possibilidades que se desenrola no mundo atualmente, e é de suma importância termos exemplos de
como essas dinâmicas funcionam.

Por isso, vamos ver conceitos como ideologia e poder, entendendo tais termos nas concepções mais
conhecidas de Marx e Foucault, respectivamente. Ideologia é algo muito falado, mas pouco compreendido
de fato. Também vamos trabalhar os conceitos de pós-modernidade e nacionalismo, pois em tempos nos
quais existem muitas referências sociais, há uma crise do indivíduo na contemporaneidade justamente
por essa multiplicidade de referências. Inclusive tivemos, no século XX, várias nações que elevaram seu
nacionalismo ao grau mais perigoso possível, culminando em regimes fascistas e guerras globais.

É importante compreendermos a dimensão dos símbolos e como eles são usados para dar coesão
social. Por isso, vamos ver na prática como o samba foi utilizado no governo Vargas para dar coesão social,
no intuito de se criar um símbolo que desse unidade ao país recém-saído da monarquia, sendo utilizado
até como elemento na política externa. O samba? Sim! Ou você acha mesmo que todo brasileiro
nasce sambando?

E já que vamos falar de um gênero musical, a própria música ocidental é fruto de uma política da
Igreja Católica para a manutenção e a ampliação do seu poder na Europa. Dessa forma, o poder pode
ser visto em diferentes situações que, se não estudarmos de fato, sequer percebemos a sua influência.
É o caso dos filmes de Hollywood, que também foram utilizados para fins ideológicos e para o exercício
de poder.

Por fim, conversaremos em verde e amarelo. Veremos um panorama sócio-histórico da formação


do Brasil e as relações entre as três etnias principais que formaram o povo brasileiro. Nossos
interlocutores são consagrados autores brasileiros, como Gilberto Freyre (2004). Utilizaremos sua
obra-prima, Casa‑grande & Senzala. Nosso outro interlocutor será Sérgio Buarque de Holanda (2016)
e seu livro Raízes do Brasil. E completando nossos autores, dialogaremos com Darcy Ribeiro (2015),
conhecido autor das causas indígenas.

Estudaremos as três etnias responsáveis pelo surgimento do povo brasileiro.

Primeiro, falaremos sobre os portugueses. Longe daquela perspectiva do senso comum em que os
europeus são um povo “frio”, os portugueses que chegam na então Ilha de Vera Cruz já têm larga
experiência em colonização, bem como na utilização da miscigenação para povoar sua colônia. Ou seja,
nossa primeira geração não nasceu como fruto do amor que leva à constituição de família, mas sim para
haver população suficiente para consolidar a colônia.
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Na sequência, ao estudar os indígenas, entenderemos quais aspectos das culturas ameríndias ainda
se fazem presente em nosso DNA. Ainda veremos que a figura da mulher e do menino indígena foram
cruciais para os interesses da Coroa Portuguesa e que também são fruto da organização social nativa as
relações de parentesco no exercício do poder.

Por fim, ao estudarmos a influência dos escravos negros africanos, poderemos perceber como as
dinâmicas sociais de exploração se enraizaram em nossa sociedade, consolidando aspectos que nos
custam admitir. Eles foram responsáveis por espalhar a língua portuguesa, por exemplo. Isso molda
nossa forma de enxergar o mundo.

Compreender o fenômeno global em sua dimensão antropológica irá capacitá-lo a enxergar novos
horizontes nos negócios globais. Portanto, estudaremos alguns conceitos como nacionalismo, migrações
e ideologia, o papel da cultura nos negócios, entre muitas outras questões que se fazem relevantes e
influenciam direta e indiretamente os mercados globais.

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ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Unidade I
1 A IMPORTÂNCIA DA ANTROPOLOGIA E DA CULTURA PARA AS
RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A antropologia é tanto uma ciência como um pensar filosófico. Ela lida com uma variedade de temas
que são fundamentais para as relações internacionais, caminha desde a linguística até a arqueologia e
também estuda conceitos como cultura, subcultura, tradição e folclore. Aliás, Geertz (2013) afirma que
a cultura é a semente que fez surgir a antropologia.

Ela percorre temas como tabus sociais e economia, e discute questões de poder e Estado dentro
da chamada antropologia política. É uma ciência que possibilita uma infinidade de abordagens
socioculturais, as quais dão um arcabouço de conhecimento de dinâmicas que são fundamentais para o
profissional de relações internacionais.

A palavra antropologia é composta por dois substantivos gregos: anthropos, que significa “homem”,
e logia, que significa “estudo”. Porém, Gomes (2008) afirma que antes de ser estudo, o sufixo logia deriva
de logos, que, também em grego, significa “razão”. Sendo assim, podemos perceber como a antropologia
está diretamente relacionada à razão – base da filosofia e ciência – e às relações entre os homens.

Observação

A palavra homem, utilizada pelos autores clássicos, designa ser humano,


e o não uso da palavra mulher está relacionado ao desenvolvimento dessas
sociedades. Olhe só, uma observação antropológica!

Embora a palavra antropologia seja de origem grega, não foram eles que inventaram tal estudo pelo
fato de que eram uma sociedade fechada em si. Se eram assim, como poderiam estudar o outro? É só
no reconhecimento de que existem culturas – no plural – que podemos pensar em antropologia ou no
estudo do homem.

Desse modo, os estudos antropológicos sistematizados como disciplina só surgiram diante de um


contexto social europeu no qual as sociedades que estavam ali instaladas passaram a reconhecer a
existência de outras sociedades completamente diferentes da sua.

Esse momento remete exatamente à transição sociocultural do período renascentista ao momento do


surgimento da sociedade capitalista moderna e à expansão além-mar desses povos; momento importantíssimo
para o surgimento de elementos que posteriormente vêm a ser fundamentais nas relações internacionais.

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Unidade I

Laplantine (2003) afirma que o nascimento da antropologia contemporânea se dá na descoberta do


que os europeus chamam de Novo Mundo, pois, ao se depararem com realidade tão distinta da sua, eles
sentiram a necessidade de explicar aquilo que haviam descoberto.

O mais interessante é que, embora a antropologia seja um campo relativamente recente, o interesse
do ser humano em buscar respostas para questões fundamentais data desde as primeiras tribos e
civilizações de que se tem registros. Acontece que com as descobertas de civilizações diferentes
daquelas europeias, um objeto de estudo se mostra à frente de pesquisadores e estudiosos de questões
sobre a humanidade.

A antropologia, então, compreende o homem na sua dimensão individual e em sua dimensão


coletiva, o ser em sociedade inserido dentro de uma (às vezes mais) cultura. Esse momento da história
ocidental remete ao iluminismo, consolidando o fato de a antropologia ser uma ciência que está em
diálogo com o campo da filosofia.

Observação

Conforme o Dicionário Priberam, iluminismo é:

1. Doutrina de certos movimentos religiosos marginais, baseada na


crença de uma iluminação interior ou em revelações inspiradas diretamente
por Deus. 2. Movimento de renovação científica na Itália, no século XVIII.

Para que esse tipo de estudo seja possível, deve existir uma característica fundamental para essa
ciência: a capacidade de se distanciar de sua própria cultura. Pois, somente assim, é possível que se
estude outra cultura sem se utilizar a sua por base.

Para se obter esse pensar é preciso ter-se ou criar-se a capacidade de sair ou


tomar distância de sua própria cultura, dos valores por ela cultivados, para
daí penetrar e entender outras culturas pelos valores dessas outras culturas,
não de sua própria. Tal método de pensar é condição sine qua non para
existir o pensamento antropológico (GOMES, 2008, p. 12).

Consequentemente, a distância em relação a nossa sociedade nos dá a possibilidade de perceber que


aquilo que para nós era tido como natural é uma construção social. Esse aspecto da antropologia é o
choque cultural que leva o pesquisador a repensar a abordagem comum a partir da perspectiva de sua
própria cultura. É o início da reflexão que leva ao surgimento do conceito de alteridade.

Ademais, o contato com outras culturas nos causa um estranhamento, uma certa perplexidade
que, acima de tudo, fez com que os pesquisadores refletissem sobre o que não enxergavam a respeito
da própria cultura. Afinal, o “conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente
pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura
possível entre tantas outras, mas não a única” (LAPLANTINE, 2003, p. 13).
12
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

É diante dessa condição que a antropologia começa a se desenvolver tanto como pensar filosófico
quanto como ciência.

Figura 1 – Comida chinesa

1.1 A antropologia na dimensão da ciência

Se partirmos do pressuposto de a antropologia ser ciência, só pelo fato de ser ciência, ela
já nos diz algo: o ser humano pode ser estudado. Não só estudado, mas “pode ser objetivado,
esquadrinhado, medido, calculado, dimensionado no tempo e no espaço, tal qual outros objetos
científicos” (GOMES, 2008, p. 13).

Compreendendo a antropologia por essa perspectiva, ela está lado a lado com outras ciências que
compõem um bloco denominado ciências humanas ou ciências sociais. Ela seria, hipoteticamente, irmã
da sociologia, que se preocupa com o ser humano inserido na coletividade (sociedade). Também poderia
ser prima da economia, que enxerga o aspecto material da sociedade, desde bens e trocas. Embora
facilmente possamos entender a economia como uma ciência exata – afinal, economia remete aos
números –, essa ciência também trata de temas como desigualdade social, por exemplo.

A antropologia também pode ser considerada prima da ciência política, pois esta busca compreender
as relações de poder dentro de uma sociedade, bem como mecanismos de convivência e até mesmo
controle. Até a psicologia pode ser compreendida como parente da antropologia, pois ela estuda a
psique do ser humano. É verdade que ela transita por entre o indivíduo em seu aspecto fisiológico
filosófico, mas não deixa de ser uma ciência humana.

Sendo assim, podemos compreender que a “antropologia é a ciência humana que presume abordar
um pouco de tudo que cada outra ciência humana aprecia” (GOMES, 2008, p. 15). Porém, ao mesmo
tempo, “só pode ser considerada como antropológica uma abordagem integrativa que objetive levar em
consideração múltiplas dimensões do ser humano em sociedade” (LAPLANTINE, 2003, p. 9).

Nessa ótica, a antropologia é uma ferramenta de compreensão da realidade. E quando pensamos


na antropologia enquanto ciência, admitimos que uma variedade de mecanismos de compreensão
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Unidade I

podem fazer parte de um leque maior. Assim, ciências como a arqueologia, a linguística, a antropologia
biológica e muitas outras ciências fazem parte da antropologia.

Além do mais, precisamos definir incialmente que a antropologia é uma ciência ambiciosa, pois ela
não é apenas o estudo dos elementos que compõem as sociedades, mas sim um estudo que abrange todas
as sociedades humanas, inclusive aquela em que nós estamos inseridos. Ela estuda as diversidades
geográficas, históricas e culturais, daí a preocupação em situar o outro.

Figura 2 – Museu de Antropologia do México

Para melhor compreendermos essa tal antropologia, dividimos seu campo em duas dimensões de
atuação: a antropologia biológica e a cultural.

A antropologia biológica se preocupa com a busca pelo entendimento do ser humano e sua
natureza biológica, física. Ela estuda o ser humano enquanto um espécime e questiona qual é o nosso
lugar no mundo e na cadeia evolutiva, assim como todo tipo de assuntos que trazem questionamentos
dessa natureza.

Já a busca pelo entendimento do ser humano enquanto produtor de cultura fica a cargo da
antropologia cultural. Afinal, o ser humano é o único dos animais que é capaz de criar cultura e ser
influenciado por ela. Compreender quais são as relações, os símbolos, signos e significações; as dinâmicas
sociais, seus ritos e mitos; estudar os elementos que passam de geração em geração, não como herança
genética, mas através da linguagem e tradições, fica a cargo dessa dimensão antropológica.

Não é segredo que a segunda concepção antropológica descrita nos é mais atraente, não é mesmo?
Em nossa sociedade cada vez mais interconectada, hoje mais do que em outros tempos, as diferenças
culturais ficam evidentes e vão influenciar todas as negociações entre diferentes culturas e sociedades.

Embora a parte que nos remete à cultura seja a mais interessante para nosso curso, é importante
compreendermos cada degrau e subdivisão que a antropologia possui.

14
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Em seu desenvolvimento enquanto campo de estudo, a antropologia acabou por ser dividida
em diferentes subgrupos e sofreu influência de diferentes correntes de pensamento. Uma corrente
de pensamento é uma espécie de teoria que normalmente influencia todos os aspectos de uma
sociedade em um determinado momento no tempo. Consequentemente, as ciências da época são
influenciadas também.

Para melhor compreendermos como essa dinâmica se dá, nos próximos tópicos iremos estudar
algumas dessas correntes e, ao mesmo tempo, exemplificar a influência dessa corrente de
pensamento em alguma subdivisão da antropologia para que possamos entender quais as relações
entre esses dois aspectos.

Como ressaltamos anteriormente, essa nossa reflexão não contempla todos os campos
antropológicos nem todas as correntes de pensamentos, mas sim aquelas que são mais interessantes
para as relações internacionais.

1.2 O evolucionismo e a antropologia biológica

A antropologia biológica ou antropologia física é um campo de estudo que se preocupa com temas
como a transição do nomadismo para o sedentarismo e em compreender como o ser humano se
deslocou e se adaptou aos quatro cantos do planeta (embora ele seja esférico!). A antropologia biológica
se preocupa em compreender a evolução do ser humano, ou seja, como passamos de neandertais para
Homo sapiens. Enfim, todos os temas que seguem essa linha de questionamento se encontram na esfera
da antropologia biológica.

Compreender a antropologia biológica é saber que ela é muito mais do que documentários televisivos
sobre a “busca do elo perdido” ou “qual a semelhança do ser humano com o chimpanzé”. É saber que ela
foi influenciada pela teoria evolucionista de Charles Darwin, de 1859, por exemplo.

É compreender essa teoria que afirma que a continuidade da vida depende de “uma série de processos
químicos” e “da capacidade de disputa de cada espécie dentro do ambiente em que está inserida”
(GOMES, 2008, p. 16). A antropologia biológica é uma espécie de elo entre as pesquisas das ciências
biológicas e os estudos das ciências humanas.

O evolucionismo é uma linha de pensamento que ganha popularidade no século XIX. Ele é responsável
pela influência da Teoria Geral da Evolução também nos fenômenos de cunho cultural.

Uma corrente de pensamento normalmente se transforma em teoria. Ela é fruto do trabalho de muitos
pesquisadores de diversas áreas. Através dessa ótica proposta por uma corrente de pensamento, há uma
infinidade de possibilidades a frente do pesquisador, sendo que ele tem total liberdade de escolher como
irá estudar tal sociedade, desde que siga alguns padrões estabelecidos nesse consenso do pensar.

Por meio da influência do evolucionismo, a antropologia passa “a ser pensada como uma ciência que
iria contribuir para enquadrar o homem e suas culturas num plano contínuo, ou ao menos paralelo ao
plano biológico” (GOMES, 2008, p. 12).
15
Unidade I

Segundo Marconi (2013), mesmo com Darwin sendo o pai da teoria, na área da cultura outros já
estavam – ao mesmo tempo e até mesmo antes que ele – desenvolvendo teorias nas quais os objetos de
estudo eram classificados em estágios de evolução.

Para se estudar uma cultura sob a ótica evolucionista, existem três princípios básicos: sucessão linear,
métodos comparativo e sobrevivência. Linear porque ela é cronológica, um estudo das suas mudanças
ao longo do tempo. É a mesma lógica utilizada no algoritmo das redes sociais, nossa timeline. Ela
demonstra um desenvolvimento, sempre está em constante evolução e segue o tempo, que sempre vai
para frente. Portanto, justificava a lógica presente na cultura europeia de existirem sociedades superiores
(eles) e inferiores (seus colonizados).

É necessário o método comparativo, porque nele se parte do pressuposto de que existe hierarquia
por causa da evolução das sociedades não seguir o mesmo curso, sendo assim, é necessário comparar
uma cultura com a outra para avaliar e validar tal teoria.

Mas qual o critério comparativo? Sobrevivência.

Entretanto, temos duas perspectivas para a ideia de sobrevivência. Primeiro, na perspectiva de


continuidade da espécie, sendo literalmente uma luta de vida ou morte pela continuidade da vida.
Porém, no campo da cultura, o conceito de “sobrevivência” significa a capacidade de “perpetuação de
um fenômeno originário em épocas anteriores, em condições diversas” (MARCONI, 2013, p. 247).

Figura 3 – Charge da Teoria da Evolução

E qual a relação dessa ciência com as relações internacionais?

Vamos fazer um rápido exercício reflexivo: imaginemos um país que seja uma teocracia. Agora, imagine
você em um eventual trabalho de negociação internacional entre uma empresa de um país laico de base
científica-tecnológica, negociando com uma empresa ou até mesmo um governo teocrático e tradicional.

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ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Observação

Conforme o Dicionário Priberam, teocracia é:

1. Sociedade em que a autoridade, considerada como emanação de


Deus, é exercida pelos seus ministros. 2. Governo em que o poder está na
mão do clero.

É uma situação na qual há um interlocutor oriundo de uma lógica cultural oposta ao outro.
Consequentemente, os diferentes hábitos e formas de se enxergar o mundo estarão presentes em
todos os aspectos dessa negociação, dificultando ainda mais esse processo. Ou o profissional de
relações internacionais está preparado para tais circunstâncias nas quais há um choque cultural, ou
não haverá negociação.

Vamos além: uma das frases clássicas que resume a teoria de Darwin é “a sobrevivência do mais apto”.
Essa frase “sintetiza a teoria da evolução, mesmo que se compreenda modernamente que a disputa
entre as espécies dá vez, com frequência, a processos cooperativos” (GOMES, 2008, p. 16).

Disputa, processos cooperativos... Como é parecido com o meio internacional, não?

Gomes (2008) afirma que o ser humano surgiu há cerca de 200 mil anos, sendo que em torno
de 80 mil anos evoluiu fisicamente para nossa condição atual, sem nenhuma grande mudança
posterior. Além do mais, o autor afirma que a evolução humana ocorreu através de processos
idênticos aos outros animais. Nitidamente, percebemos a influência da teoria evolucionista
darwiniana nesse estudo.

Porém, o ser humano desenvolveu habilidades muito além de outros animais, incluindo a fabricação
e utilização de ferramentas, o domínio do fogo e a criação de sistemas linguísticos, aumentando sua
capacidade de comunicação. Toda essa evolução se dá, então, por conta da criação de uma dimensão
cultural de convivência.

Talvez um dos pontos fundamentais para a consolidação da sociedade moderna seja a “adoção
generalizada de um costume social excepcional, a proibição do incesto, isto é, de relações sexuais entre
pais e filhos e irmãos e irmãs, como regra fundamental da sociedade humana” (GOMES, 2008, p. 17).
Assim, o incesto torna-se tabu.

O evolucionismo influencia a antropologia principalmente no século XIX, pois essa ciência, ao se


ancorar nessa perspectiva de evolução das espécies, identifica que existe uma espécie humana, igual a
sua, mas que seu desenvolvimento, no que tange aos aspectos socioculturais, econômicos e políticos, se
desenrola em um tempo e lógica completamente diferentes da europeia. Vale também nossa atenção ao
fato de que essa perspectiva evolucionista também serve de subsídio para o colonialismo.

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Unidade I

A antropologia evolucionista, cujas ambições nos parecem hoje


desmedidas, não hesita em esboçar em grandes traços afrescos
imponentes, através dos quais afirma com arrogância julgamentos de
valores sem contestação possível. A convicção da marcha triunfante
do progresso é tal que, juntando e interpretando fatos provenientes
do mundo inteiro (à luz justamente dessa hipótese central), julga‑se
que será possível extrair as leis universais do desenvolvimento da
humanidade (LAPLANTINE, 2003, p. 52).

Embora a teoria evolucionista se encaixe facilmente no campo da antropologia física, ela dialoga
entre os aspectos biológicos e culturais. E, mesmo que seja fácil de constatar o fato de a biologia
influenciar a cultura, podemos também pensar na direção contrária. Um exemplo disso é a utilização
do fogo para se cozinhar os alimentos. Por conta dessa prática, “os grandes molares, encontrados nos
fósseis de alguns ancestrais humanos e próprios para triturar sementes, ficaram dispensados dessa
função, já que sementes cozidas são mais facilmente mastigáveis” (GOMES, 2008, p. 17).

Existem duas questões básicas que orientam as pesquisas de antropologia biológica: a primeira
delas é compreender a posição do Homo sapiens na escala evolutiva. A segunda é tentar entender o
quanto de “animal” ainda há no ser humano; é compreender o quanto de nossas ações ainda é fruto
dos instintos de ser humano – aqui no sentido do verbo “ser” – e o quanto de ser humano é oriundo de
transformações culturais, como religião ou política, por exemplo.

Novamente, podemos traçar um paralelo com o campo das relações internacionais. Essa busca da
antropologia biológica pode nos ajudar a entender e refletir sobre as nações viverem em paz ou se o
ser humano é incapaz de tal feito, dado o seu instinto de sobrevivência, assim como os animais, nessa
perspectiva evolucionista.

Uma das ferramentas que dá subsídio para a antropologia biológica é a anatomia. Por que a anatomia?
Porque grande parte da pesquisa desse campo está em esqueletos e ossos fossilizados.

Outra ferramenta da antropologia biológica é a genética. Embora as pesquisas sobre genética


sejam recentes, datando principalmente da segunda metade do século XX, ela nos dá subsídios para
compreender as diferenças e semelhanças entre as espécies. Além do mais, na pesquisa forense, a
genética pode ser utilizada para a resolução de crimes.

Nos anos 1980, os estudos sobre genética e a própria aplicação dessa ferramenta científica foi
fundamental para o reconhecimento biológico dos netos das avós da Praça de Maio, na Argentina, pois
com a morte dos pais no período da ditadura argentina, muitos desses netos e netas sequer sabiam que
não eram filhos legítimos das famílias em que foram criados.

18
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Saiba mais
Sobre o tema, assista ao filme:
500: os bebês roubados pela ditadura argentina. Dir. Alexandre Valenti,
Argentina: Intuition Films & Docs, 2013. 105 minutos.

Se pensarmos na relação da dimensão cultural com a dimensão biológica do estudo das sociedades
através de antropologia, podemos chegar na arqueologia.

Quando se pensa na palavra arqueologia, é inevitável que imaginemos uma escavação em alguma
tumba muito antiga, em um lugar longínquo, quem sabe de um grande faraó, ou em pedras preciosas,
brilhantes, esperando o primeiro explorador de chapéu marrom para serem capturadas. No entanto, essa
descrição está baseada em cenas que, de alguma forma, fazem parte do nosso imaginário. Cada um de
nós imagina a cena de um jeito, mas, coletivamente, algumas ideias são praticamente as mesmas.

É o conceito de imaginário ligado ao conceito de cultura. Imaginário foi um termo que ganhou
notoriedade em meados do século XX, mas que já vinha sendo estudado desde um século antes. Para
Maffessoli (2001), imaginário remete a uma espécie de estado de espírito de um povo. Não é algo
simplesmente racional, pois traz consigo o imponderável, um certo mistério. “É uma força social de
ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável”
(MAFFESSOLI, 2001, p. 75).

Exatamente por isso que, quando pensamos em arqueologia, algumas imagens já vêm na nossa
cabeça. Embora tenhamos algumas sinapses cerebrais, elas são constituídas por conta das relações sociais.

Quer ver o poder do imaginário? Pense em aniversário. O que vem na sua mente? Festa, comemoração,
bolo, parabéns.... Não há mágica nisso, mas uma correlação da realidade com o pensamento coletivo.

Contudo, independentemente de nosso imaginário, compreender a dimensão da arqueologia para a


antropologia é importante para o estudo das relações internacionais. Afinal, ela é uma excelente forma
de se compreender – através de uma espécie de reconstituição a partir dos “achados” – como era a
dinâmica de uma sociedade antiga.

A ideia é reconstituir o passado por meio das evidências concretas que


podem ser, literalmente, desenterradas: lascas de pedras que um dia foram
facas, furadores e raspadores; ossos, esqueletos e corpos mumificados, que
podem dar dados sobre idade, doenças, hábitos alimentares, status social [...]
(GOMES, 2008, p. 17).

Agora, imagine o que é preciso para chegarmos a esse ponto. Ser arqueólogo é estar durante muito
tempo à disposição da escavação, suando na poeira que vem da limpeza de esqueletos ou dos cacos de

19
Unidade I

objetos raros. E se pensarmos sob o aspecto cultural da antropologia, reconstituir a dinâmica de uma
sociedade antiga é criar a possibilidade de se compreender diversos processos de mudanças culturais,
estudando sua relação com a cultura nos dias de hoje.

Figura 4 – Antropólogos trabalhando

É por isso que a arqueologia é considerada uma técnica de descoberta, que atende tanto a
antropologia biológica como a cultural. O interessante é que, ao mesmo tempo, muitas técnicas da
própria arqueologia vêm da química, da geologia e até mesmo da própria anatomia.

Uma das tarefas mais árduas da arqueologia é conseguir datar determinado sítio arqueológico a
partir do estudo de materiais retirados naquele local. E outro desafio de peso é dialogar com conceitos
da antropologia cultural, pois, se é possível reconstruir uma sociedade antiga a partir dos achados, é
possível estudar a sua evolução.

1.3 O funcionalismo e a antropologia cultural

Sabemos que a antropologia cultural, embora em uma dimensão diferente, dialoga com a
antropologia física. Porém, vale ressaltar que o campo da antropologia cultural é fundamental para o
internacionalista. Ela também é conhecida como filosofia da cultura, e suas reflexões giram em torno da
lógica, de modo muito parecido como ocorria na filosofia antiga.

Um dos mais importantes instrumentos de pesquisa que traz grande contribuição para a antropologia
é a etnografia, que é um estudo descritivo das sociedades designadas como objetos de estudos. Tal campo
de estudos é, então, um emaranhado de estruturas “amarradas umas às outras, que são simultaneamente
estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem de, de alguma forma, primeiro apreender e depois
apresentar” (GEERTS, 2013, p. 7). Para que o etnógrafo tenha sucesso na sua pesquisa, é necessário
“estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos,
manter um diário, e assim por diante” (GEERTZ, 2013, p. 4).

20
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Vimos há pouco que a antropologia cultural possui uma característica histórica fundamental para
sua existência: ela é fruto do iluminismo. Conseguinte, os caminhos traçados pelas sociedades que
foram influenciadas por essa corrente de pensamento tiveram contato com relatos, livros e diários
trazidos por exploradores e comerciantes de outros lugares, descrevendo culturas distintas da europeia,
o que chamou muita atenção de curiosos e pesquisadores.

Porém, segundo Laplantine (2003), não basta viajar e ver o diferente para se tornar etnólogo. Para
ele, a etnografia só surge quando o pesquisador admite que ele próprio deve estar no campo de estudos,
pois somente através da observação direta é possível realizar a etnografia. Ademais, é somente nesse
período que o conceito de homem se constitui não somente como sujeito, mas também como um
objeto passível de estudo.

A antropologia social também contribui para a modificação da própria maneira de se fazer ciência.
No Renascimento, a capacidade de observação se populariza, acrescentando uma nova forma de
compreender o mundo diferente daquela visão de mundo dos gregos antigos.

O Renascimento foi um período histórico que remete ao século XI, quando a Europa começa a
enxergar o mundo de uma nova maneira. É o momento de reinvenção da vida econômica, há um
aumento populacional e o nascimento das modernas cidades. Ao mesmo tempo, é o período da expansão
de várias nações europeias. Por exemplo, da “conquista da Inglaterra pelos Normandos, alguns passos
importantes no sentido da reconquista da Espanha aos muçulmanos, a primeira cruzada” (PALISCA;
GROUT, 2014, p. 96).

Porém, também é importante destacar que essas mudanças na concepção de mundo também se
dão no campo cultural. É nesse período que temos as primeiras traduções dos escritos árabes e gregos,
também é o momento do surgimento das primeiras universidades, entre diversos outros fatores que
funcionaram como um despertar das capacidades humanas. Isso porque, há muitos séculos, a cultura
europeia esteve sob o domínio da igreja cristã institucionalizada. Dessa maneira, esse momento de
ruptura com o antigo sistema de vida foi como um renascimento para aquelas sociedades.

No fundo, é a constituição de uma nova forma de se enxergar o ser humano, que, assim, passa a ser
compreendido em sua “existência concreta, envolvida nas determinações de seu organismo, de suas relações de
produção, de sua linguagem, de suas instituições, de seus comportamentos” (LAPLANTINE, 2003, p. 40).

Um grande etnógrafo da antropologia que merece nossa atenção é Franz Boas (1858–1942). Ele é
considerado um pesquisador de campo e conhecido por ser um detalhista na sua descrição etnográfica,
pois ele descrevia, por exemplo, desde o tipo de material com que as casas eram construídas até a nota
que era cantada na melodia das canções locais.

Ele também é um dos defensores de que o costume de uma sociedade só tem significação dentro
dela mesma. Também foi pioneiro em defender que somente o pesquisador qualificado – e não mais
o viajante que escrevia um diário – tem capacidade para analisar o costume naquele contexto. Assim,
a partir de Boas, a etnografia começa a se preocupar com o que estudar, e não sair pegando qualquer
material aleatoriamente.
21
Unidade I

Boas também coloca todos os objetos de estudos em um mesmo patamar, afirmando que não
existe um melhor e um pior. Para ele, uma história contada por qualquer pessoa tem tanto valor,
etnograficamente falando, do que a mitologia da sociedade. E o pesquisador também deu muita
importância para a linguística, pois, para ele, estudar a língua é necessário porque as tradições locais
não poderiam ser traduzidas.

Outro grande nome da etnografia que merece destaque é Bronislaw Malinowski (1884–1942). Ele
é conhecido, assim como Boas, por ser um dos antropólogos que mais viveu em campo. Sua pesquisa
visava compreender até o que as pessoas daquelas sociedades sentiam. Ele também era um pesquisador
que defendia que se apenas um objeto de uma sociedade fosse estudado, esse objeto já traria pistas do
perfil da sociedade toda. Esse aspecto é um contraste com o detalhismo de Franz Boas.

Além do mais, Malinowski defendia que uma sociedade, para ser compreendida antropologicamente,
deveria ser estudada na sua totalidade. Ele, de certa forma, rompe com as abordagens históricas que até
então eram populares na antropologia.

Com Malinowski, a antropologia se torna uma “ciência” da alteridade que vira


as costas ao empreendimento evolucionista de reconstituição das origens
da civilização e se dedica ao estudo das lógicas particulares características
de cada cultura (LAPLANTINE, 2003, p. 61).

Figura 5 – Museo “Alto Bierzo” de Bembibre de El Bierzo, província de León, Espanha – Etnografía

Talvez o maior legado de Malinowski tenha sido contribuir com a utilização da corrente de
pensamento chamada de funcionalismo no campo da antropologia. O funcionalismo é uma teoria que
admite que o “o indivíduo sente um certo número de necessidades, e cada cultura tem precisamente
como função a de satisfazer à sua maneira essas necessidades fundamentais” (LAPLANTINE, 2003, p. 62).

Cada sociedade, então, elabora subdivisões, através da criação de instituições políticas ou econômicas,
por exemplo, para que possam responder a anseios coletivos. Essas soluções são sempre originais porque
elas fornecem a resposta para determinada sociedade. Ademais, na visão funcionalista, as sociedades
são estáveis e não possuem conflitos, buscando o equilíbrio justamente na criação dessas instituições.

22
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

O funcionalismo é uma corrente de pensamento que, no estudo antropológico, contribuiu para


a ruptura com as antecessoras. É a mudança de foco do olhar histórico e evolucionista para a lógica
da cultura como um todo, um sistema, “relacionando a sociedade a um organismo, a uma unidade
complexa, a um todo organizado” (MARCONI, 2013, p. 255). É uma corrente que também tem devida
importância nas mudanças de paradigmas da sociologia.

Se o funcionalismo se preocupa com o todo, com a maior parte dos componentes e das relações
que eles estabelecem entre si, todos os detalhes da sociedade importam. Assim, o funcionalismo pode
ser considerado como o pai da etnografia, pois ela nada mais é do que uma forma funcionalista de se
descrever uma sociedade. “Cada costume é socialmente significativo, já que integra uma estrutura,
participando de um sistema organizado de atividades. Uma cultura não é simplesmente um organismo,
mas um sistema” (MARCONI, 2013, p. 256).

Outro aspecto interessante do pensamento de Malinowski é o fato de o autor romper com o


estigma evolucionista que herdara de outra época, direcionando sua forma de enxergar o mundo para
a alteridade. Ou seja, ele se identificava com a sociedade estudada, não com a sociedade dita civilizada
da qual nascera.

Assim, o funcionalismo nos deixa de herança o fato de que a cultura é um sistema, com lógica
própria, oriunda de um determinado contexto. São partes independentes que se relacionam entre si.
Divide a existência em cultural e natural, e é uma corrente de pensamento que delimita e estuda o
conceito de necessidades. O funcionalismo introduz uma característica que vem a ser fundamental na
antropologia: o relativismo cultural, possibilitando o estudo de outras culturas sem ser projetada a
visão cultural do pesquisador.

Embora inicialmente os costumes ou rituais que ficaram conhecidos na Europa pudessem ser
interpretados como bizarros, algumas pessoas passaram a questionar qual era o sentido para aquele
povo que praticava tal ritual. Laplantine (2003) afirma que essa mudança faz parte do próprio
amadurecimento do campo antropológico, que passa a enxergar o mau selvagem como bom selvagem.
Vale atentarmo‑nos para o fato de que essa transição não exime nem condena o fato de que a admiração
possa ser apenas estética ou romantizada.

Vale ressaltar que esse ímpeto expansionista europeu do século XVI é responsável por iniciar o
processo de colonização das Américas. A religião dominante na Europa nesse período também tem papel
fundamental, pois havia uma “destinação cristã de construtores do reino de Deus no Novo Mundo, de
soldados apostólicos da cristandade universal” (RIBEIRO, 2015, p. 45). A religião era uma justificativa
para uma expansão territorial e norteava um processo civilizatório.

É importante atentarmo-nos também ao fato de que esse é o contexto de surgimento do conceito de


civilização. Para Laplantine (2003), essa questão de designar um rótulo para outras culturas diferentes da
europeia já vem desde os gregos. Para eles, tudo que não era parte da cultura helenística era visto como
bárbaro. No período renascentista – séculos XVII e XVIII, principalmente – se chamavam de selvagens.
O termo primitivos ganha força somente no século XIX. A influência desse modo de enxergar o mundo aparece
na literatura da Ciência Política, no conceito de estado de natureza utilizado por Thomas Hobbes, por exemplo.
23
Unidade I

Saiba mais
Para Thomas Hobbes, o estado de natureza é a “guerra de todos contra
todos”, contrastando com a sociedade civil que seria criada a partir do
pacto de surgimento do Estado.
Sobre o assunto, leia:
WEFFORT, F. C. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2006. (v. 1).
HOBBES, T. O Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

Se pensarmos nas próprias relações internacionais contemporâneas, enxergamos o mesmo discurso


de civilização X bárbaros na justificativa de intervenções ocidentais no Oriente Médio, em sua maioria
sob uma sombra maior chamada de terrorismo. Essa visão de mundo que hierarquiza as sociedades
justifica ações além das fronteiras de seus países, ocasionando efeitos instantâneos e irremediáveis em
sociedades tidas como inferiores.

Analisar através da ótica antropológica, segundo Laplantine (2003), é uma forma de se expulsar o
outro da cultura para a natureza, pois eles estão em uma parte da cultura na qual a sociedade europeia – e, no
caso de nosso exemplo, a sociedade ocidental – não participa. É como se a sociedade que interfere na
outra – que é vista como inferior – já tivesse superado essa fase em outros tempos.

Como exemplo dessa afirmação, a própria forma como os europeus descrevem os ameríndios,
por exemplo, nos mostra tal faceta. Para eles, além do critério religioso, a aparência física, a nudez,
os hábitos de alimentação, a linguagem, absolutamente todos os elementos em que consistiam as
sociedades eram distintos.

Ora, eles não acreditavam no deus cristão (porque sequer conheciam o que o europeu entende
por religião) e, por conta disso, foram considerados “sem alma”; eles não tinham a linguagem
europeia, por isso foram taxados como um povo sem língua; eles tinham aparências diferentes (eram
considerados feios) e se alimentavam como “animais”. Assim, não houve outra perspectiva a não ser
taxá-los exatamente como animais.

O século XIX é emblemático para as relações humanas aos olhos da antropologia; já para as relações
internacionais, é importante por questões geopolíticas. É o período de consolidação de conquistas
coloniais, principalmente na África, pois nas Américas o expansionismo se dá desde o século XVI. Um
momento importante para a determinação de cursos históricos é a assinatura do Tratado de Berlim no
ano de 1885, determinando a partilha da África entre seus colonizadores.

Para nosso campo de estudos é importante o fato de que esse tratado põe fim à soberania de nações
africanas. Ao mesmo tempo, consolida-se a antropologia moderna. É também no século XIX que a noção
de selvagem vem a transformar-se em primitivo.

24
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

É no movimento dessa conquista que se constitui a antropologia moderna, o


antropólogo acompanhando de perto, como veremos, os passos do colono.
Nessa época, a África, a Índia, a Austrália, a Nova Zelândia passam a ser
povoadas de um número considerável de emigrantes europeus; não se trata
mais de alguns missionários apenas, e sim de administradores. Uma rede de
informações se instala (LAPLANTINE, 2003, p. 48).

Toda essa exemplificação pode ser considerada fruto de mutações de aspectos culturais, sendo
que nos dias de hoje acrescenta-se o fato do rápido desenvolvimento tecnológico, inédito para a
humanidade. Assim, as sociedades atuais não seriam mais sociedades tradicionais, mas ainda não
temos como classificá-las e nem os estudos dão conta de suas mudanças justamente por conta da
velocidade delas.

Diante dessa perspectiva, a antropologia pode ser considerada um instrumento de investigação para
o melhor entendimento de aspectos cruciais para o profissional de relações internacionais, como crises
de identidade nacionais.

A antropologia cultural pode nos ajudar a compreender também o pluralismo cultural, ou seja,
choque de línguas, formas de pensar e técnicas de convívio e sobrevivência. Talvez o aspecto mais
relevante para nós pode ser uma forma de se evitar conflitos ocasionados por choques religiosos,
econômicos e socioculturais.

1.4 O estruturalismo e a linguística

A linguística é uma ciência muito importante para o profissional de relações internacionais. Ela estuda
as “línguas humanas, suas estruturas internas, suas conexões mútuas, suas histórias, sua capacidade de
mudança e, especialmente, o significado que elas dão ao homem e à cultura” (GOMES, 2008, p. 24).
Se partirmos dessa perspectiva, estudar a língua de um país é, acima de tudo, também estudar um
pouco de sua cultura e sua própria história, conhecimento que pode ser fundamental para o sucesso
em nossa profissão.

Vale ressaltar que os antropólogos da área da linguística estudam muito mais línguas não europeias,
pois eles acreditam que através da língua seja possível aprender tanto o mundo da natureza como o
da cultura. “A língua seria o veículo da cultura, que, por sua vez, é a intermediação entre o homem e a
natureza” (GOMES, 2008, p. 24).

Como um exemplo de contribuição da linguística para as relações internacionais, podemos elucidar


o fato de que o estudo da evolução de uma determinada língua pode demonstrar o seu deslocamento
físico e, consequentemente, servir de ferramenta para se estudar fluxos migratórios.

Também podemos, através do estudo histórico da língua, compreender o poder de persuasão dela
através do estudo da retórica e do discurso, ferramentas fundamentais nas negociações internacionais.
Orlandi (2003) afirma que o discurso é a capacidade e a linguagem necessária do ser humano para
dar sentido entre a realidade natural e social em que está inserido. Já Bourdieu (1996), a partir de
25
Unidade I

uma ótica cultural, afirma que para se compreender um discurso, é necessário entender as condições
da formação dele.

Se pensarmos na sociedade brasileira, a análise de Beltrão (1980) pode nos ser útil para reflexão.
Ele afirma que a história brasileira é escrita através da capacidade de absorção, por parte das culturas
nativas, das características de seus conquistadores. Mas, ao mesmo tempo, possui a capacidade de
conservação dos traços culturais da sua cultura original. Estamos falando de outro conceito muito
importante para nossos estudos: miscigenação, que vamos estudar logo mais.

Para chegar a essa conclusão, Beltrão (1980) estuda a língua falada no Brasil, pois, para o autor, ela
era – e continua sendo – o instrumento principal de comunicação das pessoas. Embora a nossa língua
tenha o tronco latino, ela foi enriquecida depois da interação das culturas indígena e africana.

Podemos pensar também que o estudo da linguística pode servir como ferramenta de compreensão
do desenvolvimento cultural de uma sociedade, pois cada língua nasce dentro de cada cultura específica.
O português é falado no Brasil por conta de nossa história, fruto das nossas próprias interações sociais.

Entretanto, historicamente, desde nossa colonização, a língua falada no Brasil era de origem
ameríndia e, por conta das interações entre os colonos e jesuítas, a mais difundida era o tupi.
O português só se tornou língua oficial no século XIX, com a chegada da Coroa Portuguesa. Assim,
a população foi obrigada a adotar a língua portuguesa “sem estudá-la, aprendendo-a de ouvido,
envolvendo-a nas roupagens verdes das florestas ou sanguínea-e-negras da distante, ensolarada e
saudosa África” (BELTRÃO, 1980, p. 10).

As línguas “têm as palavras de que suas culturas precisam para representar suas características
e propriedades” (GOMES, 2008, p. 25). Assim, justifica-se o fato de as línguas terem a capacidade de
serem todas diferentes entre si. A língua é capaz de explicar desde pensamentos abstratos até descrições
precisas. As palavras se misturam e se transformam, como em um grande caldeirão sob o fogo, fazendo
com que novas palavras sejam criadas. Elas podem até ser misturadas com outras línguas, mas sua
significação é fruto do contexto em que ela está inserida.

Se pensarmos de uma forma prática, os estudiosos da linguística foram capazes de estudar e


compreender que uma língua tem sua própria sistematização. Os sons emitidos só fazem sentido ali
naquele sistema que estão inseridos e não fazem sentido algum em outro sistema. É por isso que o
internacionalista tem que estudar outras línguas, como o inglês e o espanhol, pois faz parte das relações
que se desdobram no sistema internacional.

Ademais, as palavras representam coisas reais, mas só possuem sentido se inseridas em um


determinado sistema, que pode ser o português, o inglês, o espanhol, o russo, o francês... Cada idioma
representa um sistema próprio de significação e – não é mera coincidência – tais palavras também
podem designar nacionalidades.

26
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Figura 6 – Globo representando as línguas

Vale ressaltar que embora a antropologia se debruce em grande parte nos estudos de povos de origens
não europeias, a linguística nos dias de hoje é, segundo Laplantine (2003), responsável também por estudos
na área de comunicação, frutos de modernas técnicas como a mass media e a cultura audiovisual.

Observação

Conforme o Dicionário Priberam, mass media é uma locução inglesa, do


inglês mass, massa + latim media, meios. Trata-se do conjunto dos meios
de comunicação social.

Os estudos da linguística ficaram populares sob a influência do pensamento estruturalista. Segundo


os pesquisadores adeptos dessa corrente, o estruturalismo é um refinamento da teoria funcionalista.
Um dos principais antropólogos do estruturalismo é Claude Lévi-Strauss (1908–2009), um belga que
chegou, inclusive, a dar aulas como convidado no Brasil.

Segundo Marconi (2013), a concepção de estrutura é oriunda do campo da linguística, pois, como
vimos, esse campo de estudo sistematiza a língua em uma forma estrutural, como a estrutura que
sustenta um prédio, por exemplo. Dessa maneira, a estrutura funciona como um modelo de compreensão,
pois o objeto de estudo são as relações sociais.

Refere-se à estrutura como um sistema que reflete a realidade social ou


cultural, seu funcionamento, as alterações regulares a que está sujeita, o rumo
das transformações provocadas por fatores externos à cultura, e as previsões
de reação quando alguma de suas partes é afetada (MARCONI, 2013, p. 263).

Para ser estrutura, esse modelo de estudo deve possuir quatro aspectos. O primeiro deles é ter um
caráter de sistema, o que significa que, por conta dessas relações, qualquer alteração afeta todo o sistema,
o que é muito parecido com o pensamento da corrente funcionalista. O segundo é a possibilidade de
se agrupar os elementos a serem estudados em modelos, em uma espécie de família. O terceiro é seu
caráter de previsibilidade, pois, a partir das duas primeiras premissas, é possível até prever como será a

27
Unidade I

reação em caso de mudança em qualquer um de seus elementos. E, finalmente, o quarto é a totalidade,


pois ela deve explicar todos os fatos que estão sendo observados e estudados.

Em suma, o estruturalismo pode ser considerado simultaneamente um conjunto de teorias e um


método de análise da realidade. Sua herança consiste em uma visão sistêmica da cultura voltada à
totalidade do fenômeno. Cria noções como estrutura social e a adota modelos de estudo. É uma forma
de pensamento que é importante para a história das ciências.

Vale ressaltar que os conceitos, aspectos e contextos históricos descritos contemplam apenas um
breve panorama para situar a importância da antropologia para as relações internacionais. Vamos, agora,
compreender a dimensão da cultura e sua influência em nossa área do saber.

2 AS DIMENSÕES DA CULTURA

Cultura é uma palavra que a todo momento é falada por nós. Entretanto, o que não percebemos é
que ela não é somente uma palavra, mas sim um conceito. Como não percebemos isso, também não
notamos que esse conceito tem diversos sentidos.

É muito comum ouvirmos coisas como “essa pessoa é muito culta” ou até mesmo “falta cultura
para esse povo”. Mas o que é essa tal cultura? Será que é possível “adquirir” cultura, como algo que
você compra e possui? Ou será algo intrínseco ao ser humano? E nem é preciso dizer que cultura é
fundamental nas relações internacionais, não é mesmo?

É importante refletirmos sobre esse conceito, sua dimensão e sua relação com a antropologia e,
principalmente, com as relações internacionais.

Antes de começarmos nossa reflexão, vamos admitir três pressupostos sobre cultura:

• Ela não é inata. Você não nasce com ela. Não há como você nascer no Brasil com a cultura da
Rússia já pronta em você.
• Não é certa, nem errada. Não entramos aqui em méritos de especificidades de cada cultura.
Sabemos que é difícil falar que não é errada a morte por apedrejamento como condenação em
alguns países, por exemplo. Mas para que possamos estudar a cultura, é necessário estar antenado
ao princípio básico da antropologia: o outro.
• Ela não se refere ao comportamento individual, mas sim coletivo – embora possamos dizer que
uma pessoa é culta. Pois então, percebeu a complexidade do termo?

Segundo Gomes (2008), a conceituação de cultura é tão complexa que na década de 1950 um
antropólogo americano compilou mais de 250 variações de sentido desse conceito! Pior: hoje talvez
tenhamos mais, pois cultura não é algo que se restringe ao estudioso, mas sim algo que está presente
no povo. Entretanto, para facilitar nossa compreensão, os estudiosos agruparam tais definições em
grupos menores.

28
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Talvez a relação mais evidente no que tange ao termo cultura seja a velha máxima de cultura
popular e cultura erudita. Aliás, o termo cultura é mais conhecido como sinônimo de erudição, pois é
percebido como uma espécie de refinamento social. Ela fica evidente nos comportamentos socais, como
a etiqueta demonstrando atributo de classe, no conhecimento filosófico, literário, musical – clássico – e
muitas outras formas de interação social. Além disso, ela aparece muito nas redes e colunas sociais. Essa
conceituação de cultura é a “acepção original da palavra ‘cultura’ tal como concebida pelos romanos
(‘cultura’ é palavra latina que vem do verbo ‘colere’, ‘cultivar’)” (GOMES, 2008, p. 33).

Um desdobramento interessante dessa forma de conceber cultura vem da Alemanha do século XVIII,
entendendo a cultura como uma espécie de formação, no sentido de desenvolvimento tanto individual
(daí nossa confusão com o termo) quanto coletivo.

A cultura nessa concepção estaria relacionada e seria responsável pela formação intelectual do
indivíduo, assim como a formação comportamental. Os padrões a serem seguidos eram os tidos como
refinados, os superiores. Como consequência, haveria pessoas com mais ou menos cultura e sociedades
com culturas mais consolidadas do que outras.

É essa concepção de cultura que fez nascer no brasileiro o que alguns estudiosos como Darcy Ribeiro
e Paulo Freyre entendem como “síndrome do colonizado” ou “complexo de vira-lata”: aquela forma de
pensar no qual tudo que “vem de fora” é melhor do que a cultura daqui, pois somos inferiores.

É comum também compreendermos cultura no campo das manifestações artísticas, sendo as


produções de um povo. Essas produções transitam entre cultura popular e erudita, passando desde o
teatro até as manifestações folclóricas. Nos próximos tópicos iremos analisar a fundo as dimensões do
popular e do erudito, pois tais perspectivas são fundamentais nas relações internacionais, principalmente
no que tange aos protocolos de negociação.

Outra categoria que se encaixa no conceito de cultura diz respeito aos hábitos de um povo, sua
forma de ser. Normalmente, são costumes próprios de uma determinada sociedade que acabam por
ser indicadores justamente do seu modo de vida. Os comportamentos – e aqui incluindo o intelectual
e emocional – de uma coletividade também fazem parte da conceituação de cultura. No Brasil, as
diferenças regionais são um belo exemplo dessa perspectiva.

Assim, diz-se que no Nordeste, comer rapadura com farinha, e em Minas Gerais,
comer broa de milho – faz parte da cultura dessas regiões. Dormir em rede no
Nordeste, ir à praia aos domingos no Rio de Janeiro, passar as tardes de sábado
nos shopping centers em São Paulo e noutras cidades modernizadas – é parte
da cultura. O jeito maneiroso do baiano, a desconfiança do mineiro, a elástica
de gozação do carioca, ou rígida lógica do português – são manifestações de
suas respectivas culturas (GOMES, 2008, p. 34).

Temos também o entendimento de cultura como a identidade de um povo. Ela se forma em torno de
símbolos carregados de significados que fazem com que valores estejam acima de diferenças sociais, como
região, religião ou até mesmo classe social. O simbólico é responsável por diferenciar um povo de outro,
29
Unidade I

pois cada coletividade tem seu respectivo simbolismo. Falando novamente de Brasil, grandes exemplos de
como a cultura é interpretada dessa maneira são o futebol, o Carnaval e até mesmo o “jeitinho brasileiro”.

Existem também algumas concepções de cultura que são mais difíceis de enxergar. Um exemplo
é a compreensão da cultura ser “aquilo que está por trás dos costumes e das atitudes de um povo.
Aqui o conceito de cultura se intelectualiza, torna-se abstrato” (GOMES, 2008, p. 35). Essa visão
entende a cultura como uma espécie de estrutura – ou sistema – inconsciente, sendo responsável
pelo comportamento e pensamento de um povo.

Lembrete

Estrutura, sistema, modelo, padrão... Estamos diante de um exemplo da


influência do estruturalismo nos estudos de cultura, assim como vimos há
pouco na antropologia.

A cultura também pode ser considerada como algo simplesmente que dá sentido a todos os
aspectos da vida social de um determinado povo. Ela seria, ao mesmo tempo, valores, comportamentos,
pensamentos, atos políticos ou econômicos, religião, artes... enfim, o pano de fundo para todas as ações
de uma coletividade.

Por fim, podemos também compreender a cultura de uma forma mais genérica: “tudo aquilo que
o homem vivencia, realiza, adquire e transmite por meio da linguagem” (GOMES, 2008, p. 35). Essa
definição é uma das primeiras que os estudiosos da cultura cunharam no século XIX.

Quantas concepções! E quantos exemplos brasileiros!

Ao mesmo tempo, chamamos atenção para uma coisa: todos são construções sociais. Além disso,
nenhum deles abarca 100% dos hábitos sociais e não explica precisamente como as coisas são.
É justamente por isso que os profissionais das relações internacionais têm que estar aptos a
compreenderem a importância da cultura na maioria das concepções possíveis.

Figura 7 – Meninas africanas

30
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Como vimos, existem muitos sentidos do termo cultura. Entretanto, para que possamos compreender
sua importância para as relações internacionais, devemos estudar as conceituações de cultura e,
obviamente, seus impactos nas dinâmicas de nossa profissão.

Segundo Laraia (2009), o fascínio pelo outro já aparece no filósofo grego Herótodo – embora os
gregos fossem uma sociedade fechada, como vimos anteriormente. Aparece também nos relatos de
Marco Polo e até do padre José de Anchieta. Todos eles ficaram instigados pelos hábitos diferentes dos
seus após o contato com o outro.

Embora seja importante compreender um panorama histórico do conceito de cultura, nas relações
sociais contemporâneas – aqui incluídas também as relações entre nações – esse conceito é evidente.

Um exemplo é o trânsito na Inglaterra, onde as vias seguem uma lógica oposta à nossa. Podemos
falar de hábitos alimentares, como o não consumo de carne de vaca na Índia ou a proibição do consumo
de carne de porco entre judeus e muçulmanos, dentre tantas incontáveis possibilidades.

Entretanto, vale nossa reflexão para um fato determinante sobre a importância da cultura para os
estudos sociais: ela rompe com o determinismo biológico, isto é, “os antropólogos estão totalmente
convencidos de que as diferenças genéticas não são determinantes das diferenças culturais” (LARAIA,
2009, p. 11). É exatamente por isso que elucidamos anteriormente que cultura não é inata. A pessoa não
nasce com ela, não é um fator biológico.

Em outras palavras, se transportarmos para o Brasil, logo após o seu


nascimento, uma criança sueca e a colocarmos sob os cuidados de uma
família sertaneja, ela crescerá como tal e não se diferenciará mentalmente
em nada de seu irmãos de criação. Ou ainda, se retirarmos uma criança
xinguana de seu meio e a educarmos como filha de uma família de alta classe
média de Ipanema, o mesmo acontecerá: ela terá as mesmas oportunidades
de desenvolvimento que os seus novos irmãos (LARAIA, 2009, p. 14).

Observação

Vale ressaltar que, embora haja uma ruptura com a biologia, os


estudos sobre cultura não negam a importância dessa ciência, pois somos
a mesma espécie.

Assim, o papel da cultura ganha mais importância ainda para os estudos antropológicos e para as
relações internacionais. Um bom exemplo disso está no fato de que até pouco tempo atrás “a carreira
diplomática, o quadro de funcionários do Banco do Brasil, entre outros exemplos, eram atividades
exclusivamente masculinas” (LARAIA, 2009, p. 14). Na complexidade atual das relações sociais,
compreender a dimensão da cultura é fator determinante no sucesso profissional.

31
Unidade I

Entre o final do século XIX e o início do XX surgiram algumas teorias sobre a cultura embasadas
no princípio do determinismo geográfico. Essa corrente de pensamento que norteou alguns
pesquisadores apega-se ao fato de que as diferenças físicas do ambiente em que uma sociedade
está inserida afetam a diversidade cultural.

Porém, a partir da década de 1920, outros antropólogos refutaram essa ideia afirmando que o
ambiente influencia até determinado ponto, pois existe uma limitação da influência da geografia sobre
aspectos culturais. E eles justificam sua posição no fato de que é possível existirem várias culturas em
um mesmo ambiente físico. Ademais, as tecnologias que o ser humano vem desenvolvendo ao longo de
sua história também contribuem para que superemos dificuldades geográficas.

As diferenças existentes entre os homens, portanto, não podem ser explicadas


em termos das limitações que lhes são impostas pelo seu aparato biológico
ou pelo seu meio ambiente. A grande qualidade da espécie humana foi
a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil, provido de
insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no
mais temível dos predadores. Sem asas, dominou os ares; sem guelras ou
membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isto porque difere dos
outros animais por ser o único que possui cultura (LARAIA, 2009, p. 16).

Mas o que é essa tal cultura? E como surge sua conceituação?

Para respondermos essas questões, é necessário entender os antecedentes do termo, pois foi a partir
deles que o conceito foi cunhado.

Segundo Laraia (2009), o termo cultura foi cunhado pela primeira vez, em inglês (culture), por
Tylor, em meados do século XVIII. Ele abarcou nesse termo a significação da palavra alemã kultur, que
designava os aspectos espirituais de uma sociedade, com o termo francês civilization, que se referia às
realizações de um povo, mas no âmbito material. Assim, Tylor acoplava em uma única palavra os termos
que designavam as possibilidades da realização humana – material e espiritual –, contrapondo a ideia
de inatismo.

Entretanto, vale ressaltar que Tylor não foi o inventor do termo, mas sim o sistematizador. O termo
já estava presente, embora sem uma definição, desde os pensamentos de Locke, na transição dos séculos
XVII para o XVIII, como também já poderia ser percebido em Turgot e Rousseau no século XVIII.

No decorrer da história, principalmente no século XX, o termo foi ganhando outras definições.
Com tantas variações, a confusão sobre os estudos da cultura aumentou. É por isso que Geertz
(2013) chega a afirmar que era necessária uma definição mais específica para que os estudos
possam evoluir.

Assim, a definição de cultura que defende o autor é semiótica. O autor adota uma postura weberiana,
acreditando que o ser humano é um “animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu,
assumo cultura como sendo essas teias e a sua análise” (GEERTZ, 2013, p. 4).
32
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Observação

Semiótica é a ciência dos modos de produção, de funcionamento e de


recepção dos diferentes sistemas de sinais de comunicação entre indivíduos
ou coletividades.

Nessa perspectiva, a cultura é uma ciência interpretativa que tem por meta procurar os significados
das relações humanas, diferenciando de outros campos do saber que entendem a cultura como um
objeto passível de ser analisado em leis.

Ademais, na perspectiva da semiótica, analisar a cultura é uma forma de acessar o mundo conceitual,
onde vivem os sujeitos culturais. Assim, seria uma forma de superar a dificuldade em acessar um
universo de ação simbólica não familiar ao pesquisador, suavizando o dilema da vontade de aprender e
a necessidade de analisar.

Contudo, mesmo entre a definição de Taylor e as inquietações de Geertz (2013), temos algo em
comum: a cultura é específica do ser humano. O que diferencia nós de outras espécies é a “capacidade
de fabricação de instrumentos, capazes de tornar mais eficiente o seu aparato biológico” (LARAIA, 2009,
p. 23). E essa capacidade fez com que nos tornássemos os únicos animais a possuir cultura.

A primeira definição cunhada por Taylor no século XVIII trazia consigo uma relação de causa e
efeito. Para ele, a cultura era um objeto que precisava ser estudado de forma sistemática, pois
era um fenômeno natural que possuía causas – e, consequentemente, efeitos – e regularidade.
Somente dessa forma seria possível um estudo objetivo capaz de formular leis sobre o processo de
evolução e aculturação.

Trata-se de um viés evolucionista. Note o uso dos termos fenômeno natural e evolução. É por isso que
Taylor vai amplamente buscar subsídio também nas ciências naturais. Para esse autor, a desigualdade
seria oriunda de estágios diferentes na evolução das sociedades, pois os seres humanos compõem uma
mesma espécie.

Já Kroeber, na transição do século XIX para o XX, faz uma interpretação interessante. Ele dimensiona
o que seria uma espécie de equilíbrio entre o lado biológico e o lado cultural. Não é possível negar o fato
de que o ser humano é da ordem dos primatas e que para sobreviver é necessário coisas vitais como se
alimentar, respirar e dormir. Porém, a sacada do autor está no fato de perceber que, embora questões
vitais sejam comuns nos seres humanos em todas as sociedades, cada uma faz de uma maneira, de acordo
com a sua cultura. Assim, a grande variedade de formas em se fazer as coisas vitais é quantitativamente
maior do que as próprias necessidades.

É esta grande variedade na operação de um número tão pequeno de funções


que faz com que o homem seja considerado um ser predominantemente
cultural. Os seus comportamentos não são biologicamente determinados.

33
Unidade I

A sua herança genética nada tem a ver com as suas ações e pensamentos, pois
todos os seus atos dependem inteiramente de um processo de aprendizado
(LARAIA, 2009, p. 28).

Podemos perceber uma relação intrínseca entre cultura e questões biológicas. Assim como na
antropologia, o conceito de cultura também está no centro de dilemas acadêmicos e também pode
fazer parte de dilemas do cotidiano. Quer ver só?

É muito comum, em nosso cotidiano, associarmos a destreza de uma pessoa a um talento inato.
Imaginemos um grande violinista. Logo após a beleza da peça executada por ele é fácil dizermos “ele é
muito talentoso”, por exemplo. Quando afirmamos isso, afirmamos quase que magicamente a ideia de
que ele nasceu com algo que as outras pessoas não nasceram.

Claro que nem todos tocam violino, mas será mesmo que essa pessoa nasceu com essa aptidão?

O que temos de fazer é tomar cuidado com o outro lado que esse pensamento pode trazer. Ele pode
se tornar, acima de tudo, uma explicação que remete à discriminação, tanto social como racial, no
intuito de se justificar diferenças sociais.

Pergunta: se esse gênio do violino tivesse nascido em uma cultura na qual o campo da música contasse
somente com instrumentos rítmicos, ele seria o gênio do violino sem o contato com o instrumento?

Pode parecer um exemplo até banal, mas esse pensamento que atribui os feitos sociais a uma
“determinação genética” já justificou coisas como a escravidão e até mesmo a nomeação de pessoas de
dinastias antigas ou de grandes empresas e companhias para cargos especiais.

O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um


herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento
e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam.
A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as
inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de
um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade (LARAIA,
2009, p. 34).

É por isso que, para Laraia (2009), não é suficiente que a natureza crie seres humanos muito
inteligentes, mesmo porque ela já faz isso. Porém, é necessário que esses indivíduos tenham ao seu
alcance material e possibilidade para que possam exercer sua criatividade. Além do mais, não precisamos
nem dizer sobre o exemplo que, acima de tudo, é necessário muito estudo.

Portanto, podemos pensar a cultura em diferentes aspectos. O primeiro deles se deve ao fato de que
a cultura é determinante no comportamento do ser humano e justifica nossas ações, muito mais do
que a genética. Assim, o ser humano age de acordo com determinados padrões culturais.

34
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

A cultura também é responsável pela adaptabilidade do ser humano em diferentes ambientes.


Vemos isso no fato de que somos capazes de nos adaptar a um ambiente sem que mudemos nosso
aparato biológico.

É por isso que os estudiosos da cultura afirmam que o ser humano foi o único animal capaz de
superar as diferenças ambientais, sendo uma espécie presente em praticamente todos os ambientes do
planeta. Isso contraria o determinismo geográfico.

Enquanto o urso polar não pode mudar de seu ambiente, pois não suportaria
um grande aumento de temperatura, um esquimó pode transferir-se de sua
região gelada para um país tropical e em pouco tempo estaria adaptado
ao mesmo, bastando apenas trocar o seu equipamento cultural pelo
desenvolvido no novo hábitat. Ao invés de um iglu capaz de conservar
as menores parcelas de calor, preferiria, então, ocupar um apartamento
refrigerado, ao mesmo tempo em que trocaria suas pesadas vestimentas por
roupas muito leves ou quase inexistentes (LARAIA, 2009, p. 33).

Contudo, essa concepção da cultura admite que o ser humano depende, assim, muito mais do
aprendizado que adquire do que de atitudes instintivas, sem negar as necessidades vitais. De tal modo,
é justamente esse processo de aprendizagem que vai determinar o comportamento – e a capacidade
artística, como no exemplo do violino – do ser humano. Ademais, nessa perspectiva, a cultura é um
processo de acúmulo que tem origem na experiência de gerações anteriores, sendo um fator estimulante
– ou limitador – da ação do indivíduo.

Bauman (2012) também tem importantes considerações sobre o tema. Ele vai na direção oposta
de Geertz (2013) e afirma que a cultura é um objeto tão amplo que, se fosse possível cunhar uma
definição singular de cultura, não expressaria sua dimensão e complexidade. Ele ancora sua reflexão
nos estudos antropológicos e afirma que a cultura só passou a ser objeto de interesse por conta dos
estudos de campo sobre povos até então desconhecidos do europeu. Assim, a antropologia buscava
desvendar os padrões dos comportamentos dos povos, sendo, na verdade, um ponto no qual buscava-se
compreender o que diferia uma cultura da outra. Contudo, tais estudos acabaram por semear o
surgimento do conceito de cultura.

Dessa maneira, o autor admite que opta por compreender a cultura a partir da elucidação do “significado
de elementos linguísticos semanticamente carregados pelo estudo dos locais em que aparecem tanto na
dimensão paradigmática quanto na sintagmática” (BAUMAN, 2012, p. 88). Ou seja, ele tenta compreender
a cultura através de seu uso. Para tal, o autor divide o termo em três grandes significações: a cultura como
conceito hierárquico, a cultura como conceito diferencial e um conceito genérico de cultura.

A definição de cultura como conceito hierárquico tem origem em como as pessoas compreendem a
cultura em sua experiência pessoal cotidiana. Por exemplo, uma pessoa que não consegue corresponder
aos padrões de um grupo não é aceita por esse grupo. Muitas vezes de forma implícita, o pensamento
coletivo leva à expressão “falta de cultura”.

35
Unidade I

Sucintamente, compreendemos que a transmissão da cultura é função das instituições educacionais.


Atentemo-nos para o fato de que não falamos somente da escola, que é instituição de ensino, mas de
todas as instituições responsáveis pela educação, como a família, a igreja etc.

Consequentemente, nessa perspectiva, é comum também classificarmos as pessoas de acordo


com o seu nível cultural. Sem perceber, quando taxamos alguém como uma pessoa culta, estamos
simplesmente associando ao conceito de cultura a educação, a cordialidade, a instrução, em uma espécie
de classificação nobre. Porém, automaticamente, colocamos no lado oposto dessa perspectiva aqueles
que não possuem tal instrução, pois uma pessoa culta é o oposto da inculta.

Nessa visão hierárquica da cultura, ela é, então, uma parte separável do ser humano. Ao mesmo
tempo, ela está no limiar da essência do ser humano, como também é uma característica existencial.
Sendo assim, ainda nesta perspectiva, a cultura faz com que o ser humano possa ser moldado, faz com
que ele seja adaptável, mas pode, em contrapartida, ser uma parte abandonada por nós, justamente por
ser algo à parte do ser humano.

Vale também atenção ao fato de que essa noção que compreende a hierarquia na cultura é carregada
de valor. Exatamente por isso, dizer que você está ouvindo a peça de Beethoven Für Elise em Am (Lá
menor) tem um determinado valor e uma consequente significação, mas dizer “é a música do gás” tem
outra completamente distinta. Mesma música, valores diferentes.

Observação

Em meados dos anos 1990, os caminhões de gás da região metropolitana


de São Paulo deixaram de passar buzinando pelos bairros para tocarem essa
música em alto-falantes durante vendas e entregas de botijões.

Já a interpretação de Bauman (2012) de cultura como um conceito diferencial compreende que


esse termo serve como explicação para as diferenças visíveis das sociedades, sejam elas temporárias,
ecológicas ou até mesmo sociais. Entretanto, essa visão por si só é incompleta. Ela necessita de subsídios
para que tenha sentido. Portanto, ela é alcançada somente através da observação, ou seja, é a visão de
cultura que permeia os etnógrafos.

Vale também a reflexão sobre o papel dos gregos nessa perspectiva de cultura. Embora nunca fossem
teóricos sobre cultura (como já vimos anteriormente), a visão de mundo deles era dividida em duas: o
mundo helênico, aquele que era de fato cultura grega, e todo o resto, que eles chamavam de bárbaro.

Como eles eram apegados aos seus padrões, nunca se preocuparam em estudar aquilo que não
eram, com raras exceções. Porém, mesmo não dando atenção a outras sociedades, o povo grego nos
deu subsídios para o entendimento de cultura como um conceito diferencial; afinal, o bárbaro era
observável, existia um outro mesmo que não reconhecido como ser humano na visão helenística.

36
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

O que sustenta esse conceito diferencial da cultura é o fato de que os seres humanos não são
completamente definidos por questões biológicas, aqui na perspectiva da genética. Dessa forma, o ser
humano não nasce preparado para a vida e precisa da cultura para situar-se no mundo.

Ao mesmo tempo, a variedade de sociedades culturalmente distintas e exclusivas correspondem,


ainda, a um conjunto biológico igual: espécie humana. Outro pressuposto dessa concepção de cultura
reside no fato de que ele é incompatível com a ideia de culturas universais, pois, dessa forma, não
poderia se ver o diferente.

Por fim, a visão do conceito genérico de cultura. Bauman (2012) defende que essa interpretação
de cultura é, ao mesmo tempo, oposição e complemento da visão diferencial da cultura. Complementar
porque, quanto mais se interpreta como diferencial, mais surge a necessidade de explicar o que tem
de essencial em nossa espécie. Ou seja, o próprio conceito diferencial abre a lacuna para o conceito
genérico, justamente sua oposição. Essa conceituação está no limiar do homem e do ser humano.

Se a noção hierárquica de cultura coloca em evidência a oposição entre


formas de cultura “requintadas” e “grosseiras”, assim como a ponte
educacional entre elas; se a noção diferencial de cultura é ao mesmo tempo
um produto e um sustentáculo da preocupação com as oposições incontáveis
e infinitamente multiplicáveis entre os modos de vida dos vários grupos
humanos – a noção genérica é construída em torno da dicotomia mundo
humano-mundo natural; ou melhor, da antiga e respeitável questão da
filosofia social europeia – a distinção entre “actus hominis” (o que acontece
ao homem) e “actus humani” (o que o homem faz). O conceito genérico tem
a ver com os atributos que unem a espécie humana ao distingui-la de tudo
o mais. Em outras palavras, o conceito genérico de cultura tem a ver com as
fronteiras do homem e do humano (BAUMAN, 2012, p. 130).

Figura 8 – Dança ritualística no Camboja

37
Unidade I

2.1 Sentido e alcance da cultura

Como vimos, conceituar cultura é demasiado complexo. Temos diferentes abordagens históricas,
diferentes enfoques, diferentes formas de compreensão de um fenômeno exclusivo do Homo sapiens.

Partindo da reflexão de Geertz (2013), que admite a necessidade de se trabalhar para chegarmos em
um conceito, vamos fazer caminho parecido: como conceituar cultura de modo que seja suficiente para
nossa reflexão sobre as relações internacionais? É possível isso?

Acreditamos que, embora a causa de Geertz (2013) seja nobre, dificilmente chegaremos a um
denominador comum. Estaria, assim, mais para a definição genérica de cultura proposta por Bauman
(2012). Entretanto, assumir uma postura é fundamental para nosso campo do saber.

Sendo assim, Gomes (2008) traz uma definição muito interessante que abarca dimensões que são
fundamentais para nosso desenvolvimento enquanto internacionalistas. Para ele:

Cultura é o modo próprio de ser do homem em coletividade, que se realiza


em parte consciente, em parte inconscientemente, constituindo um sistema
mais ou menos coerente de pensar, agir, fazer, relacionar-se, posicionar-se
perante o Absoluto, e, enfim, reproduzir-se (GOMES, 2008, p. 36).

Ainda assim, essa definição é um tanto quanto ampla.

Ao afirmar “modo próprio de ser”, o autor considera essa a parte biológica do ser humano. É o diálogo
com a antropologia biológica, o “homem” como um ser do reino animal dotado de instinto de sobrevivência.
Entretanto, por conta da cultura, temos características que vão além do próprio instinto animal.

Se o ser humano é capaz de, racionalmente, se diferenciar das outras espécies pela sua capacidade
de pensar, para a antropologia, “pensar é articular uma compreensão do mundo (worldview em inglês,
weltanschauung, em alemão) através da linguagem” (GOMES, 2008, p. 37).

Todos nós sabemos que pensar é um ato da consciência, de caráter individual, que dá sentido a
diferentes aspectos do existir. Ele pode ser demonstrado através de palavras, conceitos e, não é exagero,
da própria língua, pois ela é um exemplo do que e como o pensamento pode dar sentido a algo.

Porém, existe algo que nos interessa: o pensamento pode ser coletivo. Exatamente por isso que
afirmamos que cultura é sempre coletiva. O pensar culturalmente é “um ato coletivo, na medida em
que os termos desse pensar, as categorias de pensamento, são dados pela cultura da qual o indivíduo
faz parte” (GOMES, 2008, p. 37).

38
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Lembrete
Esse pensar coletivo é o meio que origina o conceito de imaginário, pois
ele funciona desta maneira: a manifestação é individual, mas a concepção
vem dos relacionamentos com a coletividade.

Sendo assim, o pensamento da cultura fica explícito através da língua, um veículo de comunicar,
mas também de pensar. Além do mais, tanto a língua quanto o pensar formam estruturas que estão
presentes em praticamente todas as definições de cultura. Em relações internacionais, quer maior
exemplo disso que a necessidade de se aprender alguma língua estrangeira?

Conhecer o poder da língua é fundamental para a nossa profissão, pois a língua é, também, um
“sistema de símbolos convencionados como significados que são compartilhados inconscientemente
por uma comunidade” (GOMES, 2008, p. 37).

Ademais, todas as palavras possuem significados próprios que são, de certa forma, compartilhados
entre os membros de uma determinada sociedade, de forma que se fazem compreensíveis por todos.
Entretanto, esses significados não são fixos, pois eles podem ser modificados pela própria sociedade no
decorrer de seu desenvolvimento.

Sendo assim, podemos perceber por que o pensar é tanto coletivo quanto individual. Coletivo
porque são compartilhados pela sociedade, visíveis através da língua sobre a realidade que está inserida.
Individual porque, ainda assim, é possível que se crie e modifique em cima dessa realidade coletiva.

Portanto, essa condição é crucial para que haja o desenvolvimento de outra característica fundamental
para o desenvolvimento das sociedades: a criatividade.

A criatividade é muito discutida nos dias de hoje, principalmente no campo da inovação, e a inovação
nada mais é do que a mudança na realidade coletiva.

Ela pode ser entendida como a capacidade de se buscar e encontrar respostas inusitadas e incomuns
a questões sociais. Normalmente, chega-se a essas respostas através de amplas associações. Pode ainda
ser compreendida como um ato, uma ideia ou um produto que modifica algo existente, mas que também
cria algo novo.

O papel dela é de alterar a realidade. A única coisa que devemos ter atenção em relação à criatividade
é que ela não vem do nada, mas sim de muito tempo de relacionamento e contato entre o corriqueiro
e a nova ideia. “Criatividade não é uma lâmpada na cabeça, como muitos desenhos animados a
representam. É uma conquista nascida de intenso estudo, longa reflexão, persistência e interesse”
(PEARSON EDUCATION DO BRASIL, 2011, p. 6).

39
Unidade I

Figura 9 – Grafite, arte de rua

É inegável que a criatividade fica evidenciada nos dias de hoje na ciência e, principalmente, na
tecnologia. Afinal, temos o mundo em nossas mãos, não é? Essas novas dinâmicas afetam as relações
internacionais.

Podemos, enfim, conceber a cultura como um sistema de ordenamento do pensar e do agir, sendo
um código carregado de valor. Desse modo, os atos podem ser considerados como ações individuais
aceitáveis pela coletividade. Por isso, palavras e atos que destoam do coletivo podem ser rejeitados.
Ao mesmo tempo, quando algo que destoa é aceito, pode vir a modificar o próprio sistema do qual
destoou. A cultura seria, nessa perspectiva, uma espécie de sistematicidade aberta.

Podemos, então, compreender o alcance da cultura através dessa via de mão dupla. A priori, o
coletivo e o individual são esferas distintas, sendo possível percebê-las separadamente, cada qual com
sua respectiva lógica. O indivíduo age pela consciência – e pelo inconsciente –, mas o coletivo do qual
esse indivíduo faz parte é algo muito difícil de se situar e descrever, embora seja possível perceber, pois
é uma soma de vários indivíduos.

Nessa perspectiva, o coletivo aqui expresso pela cultura age de maneira semelhante ao inconsciente
do indivíduo. Ele pode aparecer em ações menos padronizadas, em comportamentos previsíveis, e a
parte que poderia ser concebida como consciente aparece naquilo que é passado de geração em geração
pelo ensino-aprendizagem.

Para Gomes (2008), a cultura também possui um limite de compreensão. Para ele, o não compreensível
da cultura se apresenta como “o Deus, os deuses, os entes espirituais da floresta, o indecifrável, enfim, o
misterioso” (GOMES, 2008, p. 39).

Essa perspectiva da cultura que engloba o indecifrável é compreendida como o sagrado e é canalizada
através de todos os sentimentos, falas e ações que se opõem a tudo que é comum, corriqueiro.

Outro aspecto interessante que podemos conceber como o alcance da cultura é sua capacidade
de reprodução, algo próprio dos seres vivos. Contudo, reprodução significa que ela pode mudar ou ser

40
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

conservada, pois sua essência pode ser conservada e reproduzida, como pode ser alterada e reproduzida.
Uma coisa não é antagônica à outra.

Essa reprodução se dá por diferentes formas. Uma delas é a reprodução por meios físicos, ou seja,
a transmissão dos símbolos e signos de geração em geração ou no espaço da mesma geração – enfim,
aquilo que é passado no cotidiano. Assim, fica evidente o papel da linguagem e do comportamento
ensinado. A transmissão é a própria manutenção da cultura.

Embora todos os aspectos da cultura devessem funcionar para garantir sua conservação,
frequentemente existem choques culturais dentro de uma mesma coletividade. E quando isso ocorre, a
cultura busca encontrar um novo arranjo para que a situação não conflituosa cesse.

Veremos mais adiante que, na contemporaneidade, essa questão de definição cultural em um


contexto de mudança rápida coloca em xeque formas tradicionais de organizações sociais. Porém,
também devemos compreender que cada cultura possui seu ritmo próprio de reprodução. Qualquer
alteração nessa normalidade afeta a própria continuidade da cultura.

Essa situação pode ser exemplificada com a própria colonização brasileira. A cultura indígena
sofreu diversas mudanças após o contato com o colono português, de forma acelerada, que pouco
se tem do que realmente era original das tribos ameríndias, enquanto, do outro lado, somos uma
sociedade moldada na lógica europeia. Dessa forma, a reprodução da cultura perpetuou muito mais
características lusitanas visíveis do que indígenas, embora, como vamos ver adiante, ainda temos
muita herança indígena não visível em nossa cultura.

Essa reflexão sobre o alcance da cultura nos leva a outro ponto: as culturas se relacionam, assim
como os indivíduos se relacionam entre si. Podemos pensar aqui tanto na colonização como em nosso
panorama atual globalizado. Trocam-se bens, produtos e também valores, modos comportamentais que
são, ao longo do tempo, incorporados ao coletivo, ganhando a sua própria dinâmica.

Temos diversos exemplos sobre esses aspectos, desde os hábitos indígenas – que acabamos de citar
– até o uso da calça jeans em larga escala na sociedade brasileira, item cultural norte-americano que é
completamente natural em nosso dia a dia. “O contato entre povos produz um contato entre culturas
que se relacionam, emprestando e incorporando novos hábitos, novas instituições, novos modos de ser”
(GOMES, 2008, p. 46). Diz-se “jeans combina com tudo”. Pois bem, é cultural!

Na antropologia existe um termo para designar essas trocas e empréstimos: a aculturação. Sua
significação vai desde a representação de mudanças culturais, como aconteceu com os ameríndios, e
também explica o processo pelo qual um imigrante passa.

Às vezes, o termo conota uma espécie de integração a algo maior, por exemplo, uma nação.
Ao mesmo tempo, esse processo pode suscitar o caminho contrário: um povo se fechar na sua
própria cultura.

41
Unidade I

Figura 10 – Choque cultural

Vale também nossa atenção ao fato de que esse processo pode se dar por meios políticos e militares.
Nessas condições – mais no meio militar do que no político –, esse processo frequentemente se dá
de maneira forçada, eliminando a resistência na aceitação por meio violento. Essa condição pode ser
exemplificada nos casos das ditaduras.

Se as dinâmicas de cada cultura são afetadas pelo contato e relacionamento entre os povos e se esse
contato se dá frequentemente com a roupagem de nações e Estados, temos, então, a pura essência das
relações internacionais na cultura.

Ademais, nos dias de hoje, as formas mais evidentes desse intercâmbio se manifestam nos aspectos
políticos e econômicos. A desigualdade entre as nações é um exemplo disso, pois um ato de uma nação
pode afetar em maior ou menor grau outra sociedade. Além do mais, quanto mais poderosa for uma
nação, mais fica claro o modo como uma cultura sobrepõe outra, muitas vezes na forma de submissão.

Voltemos aos aspectos da cultura estadunidense e os filmes de Hollywood. Eles são, para além de
entretenimento, ensaios da própria cultura dos norte-americanos. O empréstimo cultural, nesse exemplo,
não se dá por uma necessidade das culturas, mas sim por virem de outra cultura que, ideologicamente,
tem força para se espalhar para além de suas fronteiras.

Diante desse exemplo, vale ressaltar que, embora seja possível medir as culturas pelo critério da força, não
existe cultura inferior ou superior, como na perspectiva evolucionista. É por isso também que assumimos, no
início deste tópico, que não existe certa nem errada. “Toda e cada cultura têm o seu próprio e singular valor;
toda cultura proporciona aos seus membros o sentido de ser e estar no mundo” (GOMES, 2008, p. 43).

Muitas vezes, pelo próprio entendimento do conceito de força, é comum que se confunda a
superioridade político-militar e econômica de uma nação com superioridade cultural. Se esse tipo de
visão se expande, é possível que haja consequências políticas. Ao mesmo tempo, pode haver o caminho
contrário, no qual a cultura de uma nação menos poderosa possa predominar sobre outras muito mais
poderosas, como foi o caso da cultura grega clássica sobre a romana, antes de sua conquista.

42
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Mesmo em momentos de contradições, a cultura justifica o povo em seu modo de ser. Claro que
existem algumas ferramentas para isso – como a ideologia que iremos estudar adiante –, mas em
determinado contexto ela acaba por dar significação para atitudes e pensamentos como o nazismo e o
fascismo, por exemplo.

Atualmente, a convivência entre as culturas presentes nas diversas nações se dá por alguns princípios
humanistas e pensamento científico. É importante salientar que os empréstimos culturais se dão cada vez mais
por questões econômicas. Dessa forma, vemos muitas culturas com aspectos comuns, fruto da influência dos
Estados Unidos a partir do seu enorme desenvolvimento cultural, econômico, político e militar. Essa percepção
de o mundo estar se tornando um só ficou popularmente conhecido como globalização.

2.2 Cultura e sociedade

Cultura e sociedade são duas palavras que muitas vezes são utilizadas com a mesma definição.
Elas compartilham alguns aspectos semelhantes; entretanto, “sociedade compreende o conjunto dos
indivíduos, não como soma populacional indiferenciada, senão agrupados em situações comuns de
existência” (GOMES, 2008, p. 44).

Não é segredo que esse termo ficou como objeto de estudos para os sociólogos. Eles compreendem,
então, esse conjunto de indivíduos em categorias sociais e instituições, como família, vizinhança, igreja,
educação, trabalho, entre muitas outras. Nessa perspectiva, os indivíduos se comportariam de acordo
com sua participação justamente nessas instituições.

Dessa forma, se falamos em indivíduos que se reconheceriam em determinada situação, fazendo com
que essa pertença fique evidente em atitudes e na sua forma de enxergar o mundo, estamos falando de
cultura. Assim, a “sociedade, em suas parcialidades ou sem sua totalidade, se rege pela cultura, por um
modo de ser coletivo que é partilhado por seus membros” (GOMES, 2008, p. 44).

Quando o ser humano pertence a uma determinada categoria, ele está, automaticamente, formando
o tecido cultural, pois da soma das categorias da sociedade e dos seus modos de enxergar o mundo se
forma a cultura.

A antropologia cultural tem algumas definições interessantes sobre os aspectos que as sociedades
podem demonstrar. Elas podem ser igualitárias, aquelas nas quais todas as famílias teriam a mesma
participação econômica; ascendentes, em que existe uma relação entre velhos e jovens; e também
dominantes, em que fica evidente a relação entre servos e senhores.

Porém, essas definições às vezes nos parecem longe da realidade porque a maioria das sociedades atuais
são desigualitárias. Essa definição é um conceito diferente de desigualdade: uma sociedade desigual é o
resultado de uma sociedade desigualitária, pois esse termo indica algo que leva à desigualdade. Assim, a
desigualdade social seria o resultado de uma sociedade desigualitária em seus diversos aspectos, sejam eles
econômicos, sociais etc. Esse conceito traz consigo a ideia de que o nível de participação nos bens e valores
culturais se dá de forma desigual nessas sociedades.

43
Unidade I

Portanto, sociedade é um todo de indivíduos agrupados em categorias


sociais. Tais categorias se constituem por diferenciação, mesmo que não
resulte em desigualdade. Já a cultura seria o modo de ser dessa sociedade.
Aqui cultura teria uma função muito importante: dar coesão, integridade,
ao que é necessariamente dividido (GOMES, 2008, p. 46).

Logo, se existem classes dentro de uma mesma sociedade, sendo que dentro dessas classes existem
diferenças culturais, pode-se afirmar que existem subculturas, pois cada classe concebe o seu próprio
modo de ser.

Existem também, principalmente em nações de largo território, diferenças entre coletividades que
estão em distintos pontos desse lugar. Portanto, é natural que haja diferenças culturais. Esse é o caso do
Brasil. Vimos há pouco que, muitas vezes, as diferenças culturais regionais são elas próprias indicadores
da distinção cultural dentro de um mesmo território. É exatamente por isso que utilizamos o termo “sub”.

Novamente não é difícil perceber que tais diferenças ficam mais evidentes diante de aspectos
socioeconômicos. Afinal, estamos falando de desigualdade dentro de uma mesma sociedade. Entretanto,
temos de tomar cuidado, pois se concebemos algo como subcultura, ela só faz sentido dentro de um
panorama maior chamado de cultura. Ou seja, elas são “parcialidades de uma cultura englobante que
também lhes dá sentido e comunicação mútua” (GOMES, 2008, p. 47).

Outro termo bastante usado e que se identifica com cultura é tradição. Essa palavra remete à própria
cultura, só que em uma dimensão temporal passada. “Tradição seria tudo aquilo cultural que uma
coletividade reconhece como sendo essencial para sua identidade, e que vincula sua existência atual
com seu passado” (GOMES, 2008, p. 48).

Desta forma, é inevitável que, se a tradição (passado) sustenta a cultura hoje (presente), haja uma
preocupação com a lealdade a esse passado. Sendo assim, a tradição necessariamente está atrelada ao conceito
de ética, pois exige uma atitude de acordo com o que o grupo concebe como ético àquela tradição.

Figura 11 – Gueixas com maquiagem e vestimentas tradicionais japonesas

44
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

É importante salientar que, muitas vezes, tradição se confunde com folclore. Entretanto, folclore
é algo que se relaciona a crenças, mitos, festividades e ritos, o que, nos dias de hoje, se restringe a
comunidades menores e afastadas de metrópoles cosmopolitas. Porém, ao mesmo tempo, remete a um
saudosismo que, talvez, muitas pessoas sequer vivenciaram, mas sentem saudades.

Observação

Conforme o Dicionário Priberam, cosmopolita (do grego kosmopolítes,


“cidadão do mundo”) é:

1. Pessoa que considera o mundo como pátria. 2. Pessoa que viaja


muito e que se sente bem em qualquer país. 3. Que é relativo a cosmópole
(ex.: centro cosmopolita). 4. Que é de todos os países. 5. Que é relativo
a ou próprio dos grandes centros urbanos (ex.: hábitos cosmopolitas). 6.
[Botânica, Zoologia] Que se encontra na maior parte do mundo (ex.: espécie
com distribuição cosmopolita).

Percebe o poder da cultura?

Mas temos que ser sensatos: você tem alguma dúvida que é mais fácil encontrar nas metrópoles
uma festa de Halloween ou uma promoção no St. Patrick’s Day do que o Saci Pererê? Entretanto, esse
fenômeno globalizante das culturas não extingue o fato de que estudar o folclore seja importante.
Exatamente por isso iremos estudá-lo mais à frente.

Saiba mais

O que nos torna humanos?

Essa pergunta é o ponto de partida para o filme Human, de Yann


Arthus-Bertrand.

Ele viajou o mundo durante 3 anos buscando entender a essência humana


e encontrou histórias de vida de 2 mil mulheres e homens de 60 países,
originando o documentário que foi disponibilizado na íntegra no YouTube.

Esse documentário é uma fantástica fábrica de inquietações no que


diz respeito à cultura em nosso contexto globalizado. Ademais, a reflexão
social que provoca no telespectador é digna de se vivenciar.

HUMAN. Dir. Yann Arthus-Bertrand. França: Humankind Production,


2015. 190 minutos.
45
Unidade I

3 ANTROPOLOGIA, RELIGIÃO, RITOS E MITOS

Até agora vimos o que é essa tal antropologia e um pouco da complexidade de falarmos de cultura.
A todo momento, é possível perceber sua importância para as relações internacionais.

Existem alguns aspectos que são elementos-chave para que possamos, de fato, traçar um paralelo
com nosso campo de estudo, principalmente no que tange às negociações entre pessoas oriundas de
nações diferentes.

Portanto, para compreender as dimensões antropológicas desses elementos, dividiremos a reflexão


sobre o papel da religião, dos rituais e dos mitos. Contudo, aprofundaremos também as questões de
folclore, dando devida atenção às questões relacionadas à cultura popular versus cultura erudita.

Entretanto, tais conceitos não podem ser simplesmente expostos sem mensurarmos sua importância
para as relações internacionais. Exatamente por isso que se faz necessário compreendermos uma
dimensão da cultura que será o pano de fundo para que possamos determinar o grau de importância
desses estudos antropológicos para nossa área do saber: a cultura política.

Segundo Silva e Gonçalves (2010), cultura política diz respeito ao estudo de diversos fatores
que compõem uma sociedade. Esses fatores são todos relativos ao fenômeno político, nos campos da
psicologia, da sociologia e da antropologia. O pressuposto desse estudo reside no fato de que alguns
elementos estudados podem refletir características determinantes tanto para o comportamento
individual quanto para o coletivo.

Ideias, normas, símbolos, costumes, tradições e religião, além de valores


morais e sociais, são alguns dos principais aspectos não objetivos ou
materiais tidos como significativos para a compreensão do comportamento,
da estrutura, da ordem e dos processos de mudança na esfera política (SILVA;
GONÇALVES, 2010, p. 38).

Essa vertente de estudo não é recente. Podemos identificar elementos da influência cultural na
política desde Platão e Aristóteles, até Montesquieu e Rousseau, por exemplo. Entretanto, o estudo de
forma sistemática dessa influência se deu somente após as Guerras Mundiais, devido ao fato de que
houve um avanço significativo nas teorias antropológicas psicossociais e na forma de coleta de dados
relativos a fenômenos comportamentais.

No campo das relações internacionais, a preocupação com esse estudo se dá a partir da década de
1960, pois passou-se a perceber que “culturas políticas refletem as tendências psicológicas dos indivíduos
pertencentes a determinada sociedade em relação aos fenômenos políticos” (SILVA; GONÇALVES, 2010,
p. 38). Dessa forma, foca-se o esforço na identificação das tendências dos sistemas políticos, sua
estrutura e a relação dos indivíduos com o sistema do qual fazem parte.

Um exemplo muito interessante dessa perspectiva é o processo eleitoral presidencial estadunidense.


Especialistas ficam tentando compreender a lógica interna e, principalmente, as tendências da política
46
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

externa dos Estados Unidos de acordo com os candidatos. Se o candidato é republicano, a tendência é
uma; se for democrata, é outra.

Outro aspecto importante do estudo da cultura política é o fato de os objetos serem observáveis e
identificáveis. Essa perspectiva permite, por exemplo, identificar se, a partir desses objetos, é estabelecida
uma relação de submissão ou de participação dos envolvidos.

Por ser uma ciência que nasce e ganha força em plena Guerra Fria, o comunismo foi um grande objeto
de estudo. Posteriormente, outros objetos de estudos foram os diferentes padrões de desenvolvimento
das sociedades. Já nos anos 1990, cresceu o interesse por temas de direitos humanos e, com a noção de
globalização ganhando força, tornou-se objeto de interesse a ideia de sociedade internacional.

Diante desta contextualização, vamos aos elementos antropológicos e sua relação com a religião.

3.1 A religião na perspectiva da antropologia cultural

Temos visto, principalmente a partir do século XX, o ressurgir da religião no cenário internacional,
especialmente com a Revolução Iraniana, em 1979, com o papel da Igreja Católica e do Papa João Paulo II
na queda do comunismo no Leste Europeu e, talvez, o aspecto mais atual, o pós-11 de setembro, que
têm deixado em pauta a questão do choque entre o oriente islâmico e o ocidente cristão. Hoje, esse
embate é responsável pelo aumento de fluxos migratórios e, principalmente, pelo aumento de atitudes
extremistas, carregadas de violência, personificadas à sombra do grupo Estado Islâmico.

Embora exemplos não faltem, o nosso foco é compreender a religião como um sistema cultural
passível de análise antropológica que é determinante em questões de âmbito global. Portanto, mesmo
que em alguns momentos seja necessário exemplificar e, consequentemente, contextualizar um
determinado panorama religioso, não iremos estudar de fato as religiões.

Encarando então a religião como um sistema cultural, novamente Geertz (2013) pode nos ajudar.
Para ele, a antropologia que se preocupa com o estudo da religião não teve progresso teórico após a
Segunda Guerra Mundial, pois o máximo que foi feito nesse campo de estudo foi a extração de conceitos
de nomes extremamente conhecidos no assunto, como Durkheim e Weber.

Para se ir além desses fatos, não se deve abandonar tais teorias, mas sim usá-las como ponto de
partida para novos desenvolvimentos, colocando-as num contexto mais amplo e atual.

Se falarmos em dimensão cultural na análise religiosa, temos o problema da multiplicidade do


termo cultura, como vimos anteriormente, mas, ao mesmo tempo, podemos restringir nossa análise em
significados de cultura transmitidos historicamente em formas simbólicas.

Vale ressaltar que o intuito de se estudar religião sob a ótica da antropologia não é afirmar a
existência de deus. A antropologia não engloba todas as religiões, porque o objeto de estudo são as
relações, as representações e a forma como a religião é um fator cultural.

47
Unidade I

Entretanto, para falar em religião é necessário adotar o termo “sagrado”, pois sabemos que os
símbolos sagrados mostram o tom, caráter e a visão de mundo de um povo.

O sagrado é o que não se pode explicar, colocado a parte da vida cotidiana. Ele é o oposto do
profano, aquilo que é corriqueiro. “O sagrado é aquilo que a cultura, como coletividade, reconhece como
merecedor de respeito e reverência porque toca a todos” (GOMES, 2008, p. 136). Entretanto, a ideia de
sacralizar sempre é uma abstração. Normalmente, atrela-se a concepção de sagrado a algum objeto,
pessoas, locais e símbolos.

Figura 12 – Jerusalém, cidade sagrada

Dessa forma, o sagrado coloca um fenômeno social em outro patamar para aquela sociedade. Essa
visão sacralizada de mundo mostra um estado verdadeiro das coisas para esse povo, ou seja, os símbolos
correspondem entre uma vida particular do indivíduo e uma vida metafísica específica.

Assim, a religião ajusta as ações humanas a uma ordem cósmica e projeta imagens dessa ordem no
plano dos humanos. Nessa perspectiva, a religião é:

Um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes


e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação
de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções
com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem
singularmente realistas (GEERTZ, 2013, p. 67).

Diante de tal definição, o autor compreende o termo “símbolo” como “qualquer objeto, ato,
acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma concepção” (GEERTZ, 2013,
p. 67). Assim, pode-se afirmar que atos culturais utilizados de formas simbólicas tornam-se públicos e
observáveis. Porém, não são a mesma coisa, afinal, construir uma casa é bem diferente de uma planta
da construção, mesmo que a construção siga essa planta.

Um traço genérico dos símbolos é que a formação deles se dá externamente ao indivíduo, não é um
traço genético. Ele é significativo porque a formação de um indivíduo se dá não só por dentro dele, mas
sim por influências externas.

Padrões culturais agem como um conjunto de símbolos que modelam as relações de um para outro.
Existe uma diferença entre o termo “de” e o termo “para”: o primeiro age como uma espécie de expressão
48
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

da estrutura em questão, e o segundo designa um modelo para a realidade em si. Modelos de e modelos
para são interligados nesse campo. Seguindo o exemplo, o de é a planta e o para é a casa.

Quando Geertz (2013, p. 67) afirma que esse sistema de símbolos “estabelece poderosas, penetrantes
e duradouras disposições e motivações nos homens”, ele afirma que o ser humano, ao buscar sua
revelação em relação ao sagrado, algo que não é compreendido, estabelece uma direção para onde ir,
conduzindo o crente a tendências, capacidades, propensões etc. Isso não significa que o ser humano é
devoto o tempo inteiro, mas que ele pode praticar atos de devoção em si. Isso traz o interior do indivíduo
para o exterior, tornando algo que pode ser observado e analisado.

De fato, ao analisarmos a religião nessa perspectiva, não estamos analisando a religião em si, mas
sua influência no âmbito da sociedade. Eis aqui a diferença entre teologia e ciências da religião. E como
nos estudos da antropologia nas relações internacionais nosso objeto é a cultura, a segunda perspectiva
é ideal.

Seguindo ainda a definição de Geertz (2013, p. 67), o que o autor defende ao afirmar “formulação
de conceitos de uma ordem de existência” é o fato de, se os símbolos sagrados não levassem o homem
às suas disposições e ao mesmo tempo não despertassem ideias de ordem, não haveria diferença entre
atividade empírica e experiência religiosa.

A religião precisa afirmar algo, senão tornar-se-ia simplesmente uma prática que poderíamos chamar
de moralismo. Porém, a religião é muito mais do que isso, pois o homem seria incompleto se não tivesse
padrões culturais. O homem é completamente dependente de símbolos; seu maior medo é encontrar
algo que não seja passível de interpretação. Portanto, sabendo do limite da cultura em explicar tudo,
esse algo que não é passível de interpretação, que Gomes (2008) afirma ser o absoluto, é encaixado na
perspectiva do sobrenatural.

Desta forma, o caos e eventos que não se interpretam racionalmente testam os limites do ser humano
e desafiam sua capacidade de análise, seu domínio sobre a natureza e sua introspecção moral. Grande
parte dos humanos é incapaz de deixar sem explicação problemas não esclarecidos, ou seja, não tentar
desenvolver noções para algo não explicado. Porém, há uma dificuldade em tornar certos fenômenos
em conceitos culturalmente formuláveis.

Para Geertz (2013), a religião ajuda as pessoas a suportar situações de pressão emocional, abrindo
fugas a tais situações que nenhum outro caminho empírico abriria. O problema do sofrimento, para a
religião, não é a busca de um meio de evitá-lo, mas sim tornar o sofrimento algo suportável. A religião
não oferece ao homem somente uma garantia para sua capacidade de compreender os fatos, mas sim
uma definição de um sentimento para este tornar-se suportável.

O sofrimento muitas vezes é visto como o mal, o sofredor o vê como imerecido. O mal é a mesma
espécie de problema do sofrimento, e o esforço da religião é para negar que existam acontecimentos
inexplicáveis, que a vida é insuportável e que a justiça não passa de uma miragem.

49
Unidade I

Existe nessa definição um questionamento implícito: como o ser humano religioso muda o
inexplicável para o explicável?

Os antropólogos jogam essa questão para os psicólogos, reduzindo o problema. Entretanto, o homem
religioso aceita uma autoridade divina, pois aquele que quer saber precisa primeiro aceitar. Geertz (2013),
por sua vez, coloca a palavra “fatualidade” em sua definição para tal, ou seja, o fato em si já é suficiente.

Observação

Fatualidade tem sua origem em fatual ou factual.

Conforme o Dicionário Priberam, fatual é:

1. Que está relacionado ao fatos ou que se baseia nos mesmos; objetivo,


imparcial. 2. Que possui a existência verdadeira; em que há verdade
comprovada; comprovado, verdadeiro, real. 3. Que pauta somente nos
fatos, mas não procura compreendê-los e/ou interpretá-los.

Figura 13 – Menino muçulmano rezando

A perspectiva religiosa pode ser comparada com outras perspectivas que os homens usam para
construir sua visão de mundo: o senso comum, a perspectiva científica e a perspectiva estética.

O senso comum seria um simples modo de enxergar o mundo e sua aceitação do jeito que se
apresenta. A perspectiva científica, por sua vez, é a visão de mundo em que a pesquisa geraria uma
explicação através de termos formais. Já a estética, como o próprio nome diz, explicaria o mundo
pelas aparências. A perspectiva religiosa vai além da vida cotidiana, e a palavra que melhor ilustra tal
perspectiva é aceitação. Perspectiva religiosa é compromisso em vez de análise.

50
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Essa perspectiva nos leva ao ritual. É no ritual que surge a ideia de que as concepções religiosas são
verdadeiras; as induções dos símbolos religiosos dos homens se reforçam umas às outras – o mundo
vivido e o mundo imaginado fundem-se num só. Iremos estudar o ritual a seguir.

Finalmente, quando Geertz (2013, p. 67) afirma que “as disposições e motivações parecem
singularmente realistas”, ele quer dizer que o mundo dos objetos de senso comum e atos práticos
constituem a realidade humana. Até mesmo um grupo dos mais insensíveis homens possui um senso
comum. Portanto, o impacto do ritual não é propriamente no ritual em si, mas no que reflete na vida
humana. A religião modela e altera radicalmente o panorama apresentado ao senso comum. Esse
impacto é passível de uma avaliação geral do valor da religião em termos morais e funcionais.

Nessa perspectiva antropológica e cultural, a religião serve tanto para o indivíduo quanto para um
grupo. É a interpretação dos processos sociais e psicológicos através do cosmo. O estudo antropológico
da religião nada mais é do que uma análise dos significados dos símbolos e o relacionamento desse
sistema simbólico a processos socioestruturais e psicológicos.

A partir da visão cultura e antropológica da religião podemos compreender melhor porque ela é
importante nos estudos da sociedade. Porém, para melhor situarmos seu papel nas relações internacionais,
devemos também compreender o seu papel como modeladora de processos sociais, principalmente no
que tange às sociedades ocidentais.

3.2 A religião na perspectiva histórico-político-social no ocidente

A religião, assim como a cultura, se desenvolve de formas diferentes em cada lugar do mundo. Porém,
para melhor entendermos a dinâmica e influência dela em nossa sociedade, trataremos aqui da história
e constituição da religião cristã, que se institucionaliza em forma de igreja durante o Império Romano,
especificamente na segunda metade do século IV, chamada posteriormente de catolicismo. Reiteramos
que a ideia não é um estudo de todas as religiões, mas é fundamental a história da constituição de
algumas delas, pois elas moldaram as sociedades ocidentais.

Primeiramente, devemos compreender que o cristianismo institucionalizado foi hegemônico na Europa


durante muitos séculos, moldando costumes, práticas e regras. E se essa religião teve todo esse poder e
influência, é natural que ela tenha delegado para si a noção de única visão de mundo possível. Automaticamente,
diante dessa perspectiva, o valor de outras culturas e civilizações foi completamente deslegitimado.

Porém, embora estejamos falando de religião, não podemos em nenhum momento separar seu
caráter político. Mais do que o monopólio da salvação da alma, essa instituição precisava se colocar
politicamente na sociedade. Dessa forma, iniciou-se em Roma um movimento que tinha por finalidade
unificar a prática cristã católica. Para isso, era necessário que a prática fosse igual em todas as partes da
Europa onde houvesse uma igreja cristã.

Esse fato histórico é muito interessante para nós, internacionalistas, porque, embora ele tivesse
como finalidade a unificação das práticas de uma instituição – ou seja, cunho político –, ele passava por
questões do sagrado: a unificação litúrgica.
51
Unidade I

Porém, antes de se pensar em unificar a prática, foi necessário que se consolidasse o cristianismo.
Um fato muito interessante nesse processo é como o imperador Constantino, no ano 313, lidou com o
crescimento dessa religião. Até o século IV, o cristianismo era somente uma religião como tantas outras
que havia na Europa. Entretanto, ela crescia exponencialmente de forma clandestina.

Segundo Stark (2006), o cristianismo não cresceu porque foi reconhecido pelo império, mas foi
reconhecido pelo império porque estava em plena ascensão. O autor afirma que o cristianismo crescia a
uma taxa de 40% por década, sendo que no ano 40 d.C. havia mil cristãos no Império Romano. Diante
de tal equação, é fácil perceber o quanto essa religião cresceu, principalmente após meados do século III.
Quando o então imperador percebeu esse crescimento, ele intuiu que isso poderia se tornar um problema
político em breve. Dessa forma, “Constantino concedeu aos cristãos os mesmos direitos e a mesma
proteção que aos praticantes das outras religiões do império” (PALISCA; GROUT, 2014, p. 41).

Mas o que era esse tal cristianismo? Uma religião clandestina que crescia de forma tão rápida para
colocar em risco a soberania política de todo um império? O que havia nela que não havia nas outras?

Segundo O’Donnell (2007), o cristianismo é uma crença de cunho religioso que tem sua base no
Cristo, que acredita-se ser Jesus de Nazaré, um judeu que viveu nessa região em meados do século I.
Esse movimento religioso teve seu início no Oriente Médio, como um movimento judeu. Seus valores
residem na humildade, no perdão e na graça divina. Ao mesmo tempo, ele é um paradoxo: “alega-se
não somente que Deus poderia se tornar homem, mas também que um homem crucificado podia ser
saudado como Salvador e Senhor” (O’DONNELL, 2007, p. 117).

Porém, como afirmamos ser um movimento tanto religioso como político, é necessário compreender
o seu processo de institucionalização para, então, compreendermos suas dinâmicas sociais. E a religião
se institucionaliza quando se transforma em igreja. Essa palavra é a tradução da palavra grega ekklesia.
Ela significa “reunião”, designando a todos que seguiam o messias e se reuniam em veneração.

Contudo, por ser uma instituição, a igreja cristã é dotada de todos os aspectos de qualquer outra
instituição, como hierarquia e burocracia. Ao se firmar enquanto instituição, ela estabelece um divisor
de águas entre cristianismo primitivo e cristianismo moderno. O cristianismo primitivo seria uma
instituição eclesial não institucionalizada e o cristianismo moderno era caracterizado justamente
pela existência de uma instituição eclesial, que seria referência e autoridade do saber teológico,
estabelecendo códigos e condutas.

Diante desse panorama, qual o papel da cultura e da antropologia?

Segundo Chaui (2004), o processo de transição da clandestinidade para ser a religião oficial
institucionalizada, com caráter político, só foi possível pelo estilo de pessoalidade intrínseco ao próprio
cristianismo. Com uma lógica distinta de outras religiões conhecidas, as quais tinham seus pilares em
questões regionais, o cristianismo nasceu como uma religião ligada aos indivíduos e sua fé em um único
deus, e não ao pertencimento a uma nação ou a um Estado. Essa perspectiva nos mostra uma nova
função da religião, que molda aspectos socioculturais como nunca houvera antes.

52
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

É possível verificar seu efeito nas relações políticas. Por isso que “à medida que declinava o prestígio
do imperador romano, o do bispo de Roma ia aumentando, e começou gradualmente a ser reconhecida
a autoridade preeminente de Roma em questões de fé e disciplina” (PALISCA; GROUT, 2014, p. 41).
Em pouco tempo, essa instituição religiosa consolidou aspectos sociais como a própria língua, pois no
próprio século IV o latim substituiu o grego na prática litúrgica.

Vimos a importância da língua tanto nos estudos da linguística quanto para a própria antropologia
e os estudos sobre cultura. Se uma instituição tem o poder de alterar a língua, influenciando toda
uma região de grande importância como a Europa, podemos, assim, perceber sua importância para
nossa disciplina.

A igreja se infiltrou na política, sendo que alguns bispos assumiam cargos nas diretivas e assembleias
nacionais. Segundo Dawson (2014), exerciam funções legislativas e judiciárias na Espanha. Na Gália, os
reis retribuíam o clero com doações generosas de terras e isenções legais. Não há dúvidas sobre a riqueza
agrária que a Igreja acumulou nesse período e sobre as mudanças nas condições econômicas e sociais, nas
quais foi fator preponderante. Com tanta terra, a Igreja voltou a se instalar na zona rural, onde os bispos
governavam como verdadeiros príncipes, impondo não só dízimos, mas também tributos e pedágios.

Tal aspecto fica evidente, então, em questões culturais. Ao se expandir, inevitavelmente havia o
choque entre a cultura agora sagrada e a cultura do outro, o bárbaro, a profana. O mesmo dilema que
aparecia na cultura grega aparece na romana, agora cristã institucionalizada.

Em consequência deste fato, a contradição entre cultura dominante e


popular, que, por ocasião dos primeiros enfrentamentos dos bárbaros com a
civilização romana, havia sido encoberta pela oposição entre cultura urbana
e rural, viria agora a tomar a forma que se tornaria característica para a Idade
Média, ou seja, a forma de oposição entre cultura eclesiástica e profana. [...]
Ocorria, entretanto, que a Igreja, que de fato promovia a cultura dominante,
julgando-se a única detentora da verdadeira cultura e considerando o povo
como sendo inculto e ignorante, negava a própria existência da cultura
popular (SCHURMANN, 1989, p. 56).

Durante todo o primeiro milênio da era moderna, a então igreja cristã institucionalizou-se ne figura
da Igreja Católica Apostólica Romana. Porém, com o próprio desenvolvimento das sociedades, a sua
explicação de mundo e salvação da alma passou a não servir mais para explicar o absoluto e os próprios
fenômenos naturais como fazia outrora. Ao adentrarmos nos primeiros séculos do segundo milênio, o
poder dessa instituição foi diminuindo gradativamente.

Enquanto o século XIII foi uma era de estabilidade e unidade, o século XIV foi de mudança e
diversidade. A autoridade da Igreja, que tinha o centro de poder no papado em Roma e era respeitada
e reconhecida como suprema e universal, chegando a exercer sua autoridade em questões intelectuais e
políticas, é colocada em xeque com o surgimento e crescimento da filosofia no século XIV, que concebia
a “razão humana e a revelação divina como domínios separados, limitando-se a autoridade de cada uma
à esfera que lhe competia” (PALISCA; GROUT, 2014, p. 130).
53
Unidade I

Essa perda de poder por parte da Igreja passa por dois conceitos fundamentais nos estudos da cultura:
modernidade e secularização. Para Hervieu-Legér (1999), a modernidade de uma sociedade é necessariamente
avaliada pelo papel da autonomia do sujeito, pela capacidade de determinar, em consciência, as orientações
que esse indivíduo almeja dar a sua própria vida em todos os aspectos da atividade humana.

Dessa forma, essa sociedade é necessariamente diferenciada e pluralista, em que nenhuma instituição
impõe ao coletivo dos indivíduos e do corpo social um código de sentido global. O resultado pode ser
facilmente notado no fato de que a religião não mais regula a conduta do indivíduo.

Acreditamos que, nas sociedades antigas, a mística e a magia se expressavam num formato religioso,
impregnando todas as atividades daqueles indivíduos, seja no âmbito social ou sobrenatural. Ao longo
do tempo, as técnicas mágico-religiosas, que moldaram por grandes períodos o modo de vida dessa
sociedade, são substituídas por outras de caráter racional, de base científica em geral.

Assim, a referência das grandes igrejas não afirma mais a identidade coletiva. Inegavelmente, a
ciência, que até então era serva da própria teologia, passa a exercer grande influência nesse processo,
pois ela é a responsável pelo desencantamento do inexplicável que a religião guardava.

Consequentemente, outro fenômeno emerge no contexto da modernidade: a secularização. Esse


fenômeno pode ser entendido como o declínio da influência das igrejas históricas. Outro aspecto
importante a ser relembrado é a forma como a secularização afeta o funcionamento e o lugar do
Estado, até porque, desde o seu surgimento, o Estado passou a dividir o cenário com a religião. Ambos
muitas vezes se identificavam de tal forma que acabavam por significar a mesma personagem, ficando
centradas em uma mesma figura. Porém, o processo de secularização contribui exponencialmente para
a separação de Igreja e Estado.

Por conseguinte, ocorre uma ruptura entre sociedade civil e sociedade religiosa, pois a instituição
religiosa, que antes era soberana no cotidiano da sociedade, chega ao ponto de não determinar mais a
conduta do sujeito, abrindo assim uma lacuna para que esse sujeito possa, a partir de então, adquirir
autonomia – embora não plena – e determinar sua própria conduta e destino. A igreja era uma instituição
hegemônica; porém, no decorrer desse processo de secularização vinculado à modernidade, ela tornou-
se uma instituição como as outras existentes.

Marcel Gauchet (2005), em um trabalho antropológico sobre religião, traz uma interessante
contribuição na compreensão das consequências políticas do processo de desencantamento do mundo.
Ele defende a ideia de que o cristianismo foi a religião para a saída da religião e que no processo de
construção do mundo moderno a religião cristã, a qual era a principal influência nas sociedades, foi
perdendo sua capacidade de influência social.

Para ele, o conceito de secularização alude principalmente ao papel do cristianismo no mundo


ocidental. Todo o desenvolvimento que acontece na religião cristã é somente aparente, pois leva a um
distanciamento do caráter religioso original; para ele, somente a religião ancestral era verdadeiramente
estruturadora do mundo. Assim, todo desenvolvimento no campo da religião significa perda de suas
raízes e não aprofundamento.
54
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Gomes (2008) afirma que religião significa re-ligare, do latim, que significa “retorno”. Metaforicamente,
esse retorno pode ser para diversos lugares. Pode ser o paraíso que se perdeu ou até mesmo o retorno
a sua própria essência.

Alguns estudiosos afirmam que a religião é um fenômeno recente. Não que não houvesse práticas
místicas, mas a ideia de que a religião seja algo separado da prática cotidiana remete ao período de
transição feudal e, inevitavelmente, à separação entre Igreja e Estado.

Ora, se a religião, mesmo que imposta, era o modo de vida, a conduta cotidiana era a própria religião.
Dessa forma, não havia necessidade de se religar com nada. A partir do momento em que há essa
separação, a religião é algo necessário para que fosse possível ligar o cotidiano com o sagrado, visto que
o cotidiano não era mais sagrado.

Gauchet (2005) afirma que a religião é a forma que o homem encontrou para alienar de si
mesmo a responsabilidade de transformar o mundo, em um claro alinhamento de pensamento –
ou influência – com Nietzsche. A essa condição do ser humano ele chamou de heteronomia. Para
o autor, as religiões mais próximas das originais – aquelas denominadas primitivas – possuem um
alto grau de heteronomia.

Já nas religiões monoteístas, essa condição de heteronomia ocupa um estágio inferior. Não existe
nenhuma ruptura que separe o mundo divino e o mundo humano nas religiões ancestrais, enquanto essa
condição de hibridismo entre o humano e o divino não se apresenta nos monoteísmos, principalmente
no cristianismo.

Embora o cristianismo tivesse surgido como uma nova religião que auxiliasse o ser humano no seu
contato com o divino, com o advento da modernidade, o ser humano passa a ter a possibilidade de fazer
sua escolha, de fazer parte dessa comunidade religiosa ou então de se colocar de fora dela, assim como
é possível escolher não acreditar no sagrado nesse contexto.

Dessa forma, o sujeito passa a ser quem escolhe seus próprios caminhos, e ocorre a passagem do
mundo da heteronomia para o da autonomia. Nesse novo mundo, as regras da vida social não são
mais ditadas pelo que é externo, mas pela própria consciência. É por isso que o autor afirma que o
cristianismo é a religião para a saída da religião.

Ao mesmo tempo em que se opera essa mudança no panorama religioso oriundo dos efeitos
da secularização, ocorre outro processo interligado com o processo de modernidade chamado de
desencantamento do mundo: a eliminação da magia como técnica de salvação.

Esse conceito muda completamente a maneira de se compreender a relação entre o céu e a terra.
A salvação não está mais no divino, não mais no céu; encontra-se, a partir de então, ao alcance das
mãos humanas na própria Terra. Sendo assim, “estavam lançadas as bases para a separação da religião e
da ciência, da Igreja e do Estado, doutrinas que começaram a impor-se a partir do final da Idade Média”
(PALISCA; GROUT, 2014, p. 130).

55
Unidade I

Entretanto, mesmo com o declínio de poder da Igreja Católica a partir da secularização, a


religião não sumiu do mapa. Primeiro porque um dos grandes golpes no catolicismo não foi de
origem científica, mas sim religiosa: a Reforma Protestante, em 1517. Um outro cristianismo
surge, e seus ideais se alinham com ideias capitalistas recém-concebidas por conta das mudanças
de paradigmas sociais.

Ao mesmo tempo, não podemos esconder o capital cultural e político que a Igreja Católica constituiu
ao longo desses anos. Talvez um dos mais evidentes para nós, internacionalistas, seja a constituição
do Vaticano.

O Vaticano é uma Cidade-Estado criada em 1929, por meio do Tratado de Latrão, um pacto feito
entre o reino da Itália e a Santa Sé, tendo em vista a criação de um Estado soberano que dotasse
a Igreja Católica Apostólica Romana de uma ampla presença política mundial. Assim, a Cidade do
Vaticano é um estado eclesiástico, governado pelo Bispo de Roma, o Papa. A maior parte de seus
funcionários públicos é formada de clérigos católicos. Segundo Thomas Reese (1997), Vaticano é
o antigo nome romano para uma colina e um terreno localizado a sua volta, onde se construiu a
Basílica de São Pedro, o Palácio Apostólico e os Museus do Vaticano. Assim, o Estado da Cidade do
Vaticano – sua denominação oficial – tomou para si o nome dessa colina e suas redondezas.

Figura 14 – Vaticano, Roma, Itália

O Vaticano desperta ainda algumas questões em nosso campo do saber. Ele é um país?
Existe população por lá? E cidadãos? Eles possuem diplomatas que representam um país ou uma
instituição religiosa?

Diante de alguns questionamentos como esses, fica evidente a complexidade de se falar em cultura,
religião e relações internacionais. Nesse campo do saber, os aspectos e fenômenos se inter-relacionam
de tal maneira, que somente através do estudo desse campo é possível compreender tais dinâmicas e,
ainda assim, trazendo resultados diferentes a partir de óticas diferentes.

56
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

4 RITOS E MITOS E SUA INFLUÊNCIA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Diante de tantas formas de se conceber o ser humano em sociedade, explicando suas dinâmicas e
justificando o inexplicável, é importante que compreendamos como essas relações acontecem.

Quando falamos em rito ou ritual, automaticamente associamos com celebrações religiosas.


Entretanto, muito mais do que uma palavra que traz em si essa conotação, o rito pode ser compreendido
no meio corporativo e político.

Nas relações internacionais, principalmente na área diplomática, o ritual é amplamente utilizado. Sempre
que há o encontro entre presidentes ou até mesmo membros do alto escalão de governos e organizações
internacionais, tudo segue um protocolo, desde a utilização de roupas corretas, que não necessariamente tenha
uma norma, mas se relacione com o socialmente aceito, como o terno e a gravata, a famosa roupa social,
como também no momento do encontro, local, hora e até mesmo a foto do aperto de mão. É importante
compreendermos o que há por detrás dessas práticas que são fundamentais nas dinâmicas do meio internacional.

Primeiramente, vamos compreender a origem do rito. Como vimos anteriormente o papel da religião
e sua importância para a sociedade, não é segredo que o rito advém da prática religiosa. Para Gomes
(2008), como o sagrado é algo acima do corriqueiro, é necessário que haja uma forma específica de
se relacionar com algo tão acima da realidade observável. O rito é a maneira como as sociedades se
relacionam com o sagrado.

Entretanto, é necessário que saibamos a diferença entre rito e ritual. O rito refere-se às regras e
procedimentos para esse contato com o sagrado. Já o ritual refere-se às práticas propriamente ditas.
Algumas culturas possuem o hábito do rito de passagem da adolescência para a idade adulta. Então,
quando falamos dessa prática, é o ritual.

Um grande estudioso dos ritos é o antropólogo francês Claude Rivière. Ele afirma que os ritos sempre
compõem uma gama de condutas que podem ser tanto individuais como coletivas. Essas condutas são
de certa forma codificadas e possuem relação com o corpo, pois apresentam manifestações verbais ou
gestuais e, principalmente, posturais. Afinal, a relação com o sagrado deve ser feita em outra postura em
relação ao cotidiano (RIVIÈRE, 1996).

Outro aspecto fundamental é o fato de o rito ser repetitivo, ou seja, ele acontece em diversos
momentos. Possui, também, forte carga simbólica tanto para os praticantes como para os observadores.
Existe uma relação mental com o momento que pode ou não ser conscientizada. Porém, o rito sempre
está associado a escolhas importantes dentro da sociedade, e sua eficácia é medida não somente por
conceitos empíricos, mas sim na sua significação social.

Porém, esse rito se consolida através de uma prática, o ritual. Assim, no rito de passagem, existe
uma forma ritualística de se mostrar para a sociedade como o adolescente passa para a idade adulta.
O ritual é composto de padrões, com início, meio e fim, sendo que esse comportamento é completamente
diferente do cotidiano. Mesmo que os comportamentos corriqueiros também possam ser padronizados,
eles são diferentes do ritualístico porque não se conectam com o sagrado, diferentemente do ritual.
57
Unidade I

Vale nossa atenção ao fato de que, se ritual é a forma de se relacionar com o sagrado, todo evento
de cunho religioso é ritualístico. Porém, nem todo ritual é religioso, como os protocolos nas negociações
internacionais e encontros diplomáticos.

Podemos ir além: aqui para nós, brasileiros, o Carnaval pode ser considerado um ritual nessa
perspectiva, pois o comportamento do período carnavalesco se diferencia do comportamento cotidiano.
Afinal, não é todo dia que você encontra pessoas fantasiadas de maneira criativa andando na rua.

Até mesmo o futebol pode entrar nessa lógica, pois é comum também em dia de jogo do time
do coração o torcedor seguir um ritual: desde fazer as mesmas coisas que faz em dia de jogo até
sempre usar a mesma roupa. É, também, um comportamento que se diferencia dos outros dias
em que não há o jogo do seu time. Assim, podemos compreender que existem rituais sagrados e
profanos, embora a origem do ritual seja religiosa.

Grandes antropólogos dedicaram vidas inteiras ao estudo do rito. Um grande nome desse campo de
estudo foi Durkheim. Ele estudou a sociedade aborígene na Austrália, e grande parte do seu pensamento
tanto antropológico como sociológico vem desses estudos. Outro grande nome foi um pupilo seu
chamado Arnold van Gennep. Ao estudar diversas sociedades durante o século XX, van Gennep percebeu
que no rito as estruturas se repetiam. Em sua percepção, todo rito tem começo, meio e fim, sendo que,
em cada etapa, há características próprias.

Se o rito é a vivência que se diferencia o corriqueiro/cotidiano do momento sagrado, é necessário


que haja uma ruptura com o período anterior. Dessa forma, os participantes do ritual sabem que, a partir
desse momento, é necessário novos comportamentos e atitudes. Van Gennep chama esse momento de
afastamento, um corte com o que estava acontecendo anteriormente.

Às vezes pode ser um sinal ou até mesmo um ritual, como o sino de uma igreja que avisa que o
sacerdote está adentrando ao recinto e todos têm que levantar, afinal, o sacerdote é a pessoa que irá
ocupar lugar central no rito, como também pode ser o momento de entrada do juiz em um julgamento e
todos têm de ficar de pé, pois aquele é o momento de afastamento com o que acontecia anteriormente
e, a partir de então, as relações estão em outra instância.

Já a fase intermediária é o momento em que fica evidente que o acontecimento é diferente dos
eventos cotidianos. Muitas vezes pode até parecer contrário do que é corriqueiro e é o momento no qual
fica clara a natureza do ritual. Entretanto, mesmo sendo diferente, é o momento em que a diferença
fica explícita, mas ainda não se sabe o final. “Tudo parece estar indefinido, suspenso das regras sociais
normais” (GOMES, 2008, p. 148).

É nessa fase do ritual que ocorrem muitas ações que não são condizentes com o padrão da sociedade.
Dependendo do ritual, podem ocorrer ações que colocam em risco a integridade das pessoas e só são
aceitas porque essas ações estão exatamente em um momento ritualístico. O próprio van Gennep
associa esse perigo ritualístico com a indefinição da relação com o sagrado.

58
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

A fase final, como não poderia deixar de ser, é o momento de conclusão do rito. Ela fica evidente como
o fechamento da fase anterior. A fase final é o momento em que os participantes adquirem um novo status
social, como em um ritual de passagem, por exemplo, ou essa fase pode ser simplesmente o retorno ao
cotidiano/corriqueiro. Essa etapa também pode ser chamada de reincorporação.

Essa classificação em três etapas pode ser utilizada em qualquer ritual, independentemente de sua
origem. Sucintamente, essas fases representam o momento de ruptura com o anterior, o momento de
conexão com o sagrado ou de diferenciação do cotidiano, sendo o momento de retorno ao comum.

Voltemos ao exemplo do Carnaval do ponto de vista antropológico. Primeiro porque é cíclico:


acontece todo ano na mesma época. A fase inicial ou afastamento é a sexta-feira de Carnaval, pois é a
ruptura do cotidiano. Ela pode ser vista na troca de roupa para a fantasia e na ida ao local sagrado do
ritual (o baile ou o sambódromo) e até mesmo a mudança de comportamento pode ser um indicador
da ruptura com o momento anterior.

A fase intermediária contempla uma série de acontecimentos completamente distintos do cotidiano.


O próprio uso da fantasia pode ser compreendido como exemplo dessa vivência, pois nessa brincadeira
a pessoa deixa de existir como ela mesma e se transforma no personagem da fantasia, chegando até a
alterar o seu comportamento. Cuidado com a escolha da fantasia!

Nesse momento intermediário alguns comportamentos podem sugerir perigo, como o consumo
de álcool, aumento da libido e até mesmo comportamentos sem pudor em relação ao corriqueiro.
É o momento em que é aceito fazer coisas que no cotidiano não são aceitáveis. Entretanto, tais
acontecimentos que seriam considerados fora do padrão só são aceitos nesse período justamente por
conta do seu caráter ritualístico.

Aí vem a famigerada Quarta-feira de Cinzas, o dia que muitos não querem que chegue. Ela representa
a conclusão do rito, embora em muitos lugares do país ela não finalize o Carnaval de fato. Mas isso não
altera seu caráter de conclusão do Carnaval, pois ela é socialmente aceita exatamente como seu fim.

O momento final pode ser desde a missa da Quarta-feira de Cinzas, encerrando o período momesco
e indicando um retorno ao cotidiano, até o ritual dos trios elétricos, fechando o Carnaval e trocando o
repertório musical para outros estilos, indicando justamente o final da folia.

Figura 15 – Pessoas fantasiadas no Carnaval

59
Unidade I

Nossa sociedade é impregnada de ritos de passagem de origem sagrada. Dada nossa colonização
católica com caráter extremamente popularesco, como veremos adiante, ritos religiosos, como o
batismo e a crisma no catolicismo, a iniciação no candomblé e na umbanda, festas de santos, festa
junina – embora mescle o sagrado com o profano –, o culto de origem protestante e pentecostal e
até mesmo o bar mitzvah, de origem judaica, são rituais comuns no Brasil. Independentemente da
origem e da crença, o rito faz com que os praticantes entrem em uma condição e passem por uma
fase intermediária que concede a eles um novo status sociorreligioso, o qual é concretizado após
a fase final.

Não podemos esquecer que existem os ritos de passagem de origem laica, pois existe uma
série de acontecimentos que justamente indicam a transição de uma condição social para outra.
Talvez o mais comum seja o aniversário. Em nossa cultura é comum fazer algum tipo de evento
diferenciado para comemorar o dia do nascimento. Por mais simples que seja (“esse ano vou fazer
somente um bolinho...”), temos o afastamento, a fase intermediária e a conclusão, indicando a
reincorporação ao cotidiano.

O casamento é outro exemplo de ritual de passagem que vale nossa atenção. Primeiramente porque
ele pode ser tanto de cunho religioso quanto laico, tanto que as pessoas se casam no civil e/ou no
religioso. Segundo porque ele é um ritual que pode ser extremamente longo, iniciando com o namoro,
o afastamento da condição de solteiro, indicando o início do ritual. Há a fase intermediária, que é o
momento entre o namoro e o casamento, alguns passando pelo noivado, por exemplo. É o momento
limiar: não se é solteiro, mas não se é casado. E culmina com o encerramento no próprio casamento, que
é a conclusão do ritual. É o início de outra condição sociocultural.

Observação

O casamento no civil é uma prática instituída após a Proclamação da


República no final do século XIX justamente para firmar o Estado como
uma entidade separada da religião.

Temos outros exemplos, como o trote da faculdade, indicando a passagem do ensino médio para a
faculdade, o futebol, como falamos anteriormente, e até podemos indicar como ritualístico em nossa
sociedade o ato de assistir novela, como o capítulo final, por exemplo, pois há toda uma preparação, o
afastamento do cotidiano, o intermediário, que é o ato de assistir ao encerramento da trama, e o final,
indicando a volta para o corriqueiro.

Rivière (1996) afirma que nem sempre conseguimos identificar o limite entre o sagrado e o profano
e, por conta dessa dificuldade, identificar se o rito é sagrado ou profano. Claro que a diferença entre o
Carnaval e a missa é gritante, mas não podemos nos esquecer de que o próprio Carnaval é de origem
religiosa. Ademais, essa questão entre sagrado e profano transcende o próprio rito e tem relação com o
desenvolvimento das sociedades.

60
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Assim como vimos nos subtópicos anteriores, a questão da modernidade é fundamental para a
ressignificação do rito. Em nossa sociedade moldada nos preceitos da secularização, a religião ganha
outro status e é deslocada. Entretanto, a religiosidade não desaparece, mas sim ganha outros contornos.
Exatamente por isso, a quantidade de ritos tidos como profanos aumentaram significativamente. Seria
uma espécie de deslocamento do sagrado.

Em uma modernidade na qual as atividades são cada vez menos orientadas


pela religião, alguns setores da vida social desenvolvem formas de fascínio
em relação a determinados objetos, ideais, personagens ou fenômenos,
considerados mais ou menos misteriosos porque se situam além dos
desempenhos habituais, assim como das reações de temor, eventualmente
traduzido ou esconjurado por ritos (RIVIÈRE, 1996, p. 37).

O autor nos afirma alguns aspectos bem interessantes dos ritos em sua significação não sagrada. Eles
representam uma questão cultural da sociedade, fugindo no seu significado inicial de cunho religioso,
pois eles têm sua significação nos simbolismos da própria sociedade.

Pensando especificamente em relações internacionais, podemos enxergar o rito nos aspectos das
negociações e na prática diplomática sob a perspectiva também cultural e ritualística. Dessa maneira, o
protocolo diplomático pode ser entendido como um rito contendo início, meio e fim.

Dentro do Ministério das Relações Exteriores do Brasil encontra-se um setor denominado


Cerimonial. Esse setor é responsável por fazer a organização de eventos referentes ao relacionamento
do Brasil com outros países, efetuar a entrega de credenciais e até realizar a própria organização
do evento que contará com a participação do alto escalão dos governos e chefes de Estado.
Também é esse setor que faz a troca de correspondência entre o presidente da República e outros
presidentes do mundo todo. Lá também é o local no qual são organizados os cerimoniais como a
posse dos presidentes e vices e também as visitas de autoridades estrangeiras. Vale ressaltar que
recepções, solenidades e condecorações, ou seja, tudo que envolva cerimônia e protocolo, em
forma de ritual, é responsabilidade desse setor.

Figura 16 – Guardas em frente ao Itamaraty

61
Unidade I

Saiba mais
Para saber mais sobre o assunto, acesse:
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Manual de visitas de
autoridades estrangeiras ao Brasil. [s.d.]. Disponível em: <http://www.
itamaraty.gov.br/images/ed_cerimonial/Manual_de_Visitas_-_Formatado_
v5.pdf>. Acesso em: 23 maio 2019.

Assim, podemos perceber o quanto estudar o rito é importante para nossa profissão, pois ele
impregna, nos dias de hoje, praticamente todos os setores de nossa sociedade, inclusive transcendendo
a própria religião na qual a noção de rito foi fundada.

Outro aspecto que também é de suma importância para compreendermos a dimensão da antropologia
para as relações internacionais é o mito. Sempre que pensamos em mito, o associamos a alguma mitologia.

É fácil lembrar da mitologia grega, com Zeus e Hércules, ou da mitologia nórdica, com Thor,
principalmente depois de alguns filmes de super-heróis que abocanham milhões em bilheteria
mundo afora.

Às vezes podemos pensar no mito como uma história que não tem qualquer ligação com a realidade,
pois essas histórias recheadas de seres míticos e feitos homéricos parecem completamente impossíveis
de se realizar. Entretanto, o mito é muito mais do que isso. É através do mito que muitas sociedades
explicam a origem de sua própria existência.

Gomes (2008) afirma que ao perguntar a um índio Guajá como surgiu o mundo, ele provavelmente
contará algo que ouviu de seus pais, que ouviram de seus avós, que provavelmente ouviram de alguém
mais velho ou talvez de um sábio da aldeia. O fato é que, independentemente da história em si, o mito
“responde sobre alguns aspectos da existência da humanidade e da natureza que são importantes para
a sua cultura” (GOMES, 2008, p. 150).

Para Chaui (2004) o mito é uma forma de narrar a origem de algo. Pode ser a origem do mundo, dos
seres humanos, dos animais, das raças... enfim, o mito sempre narra o começo de alguma coisa.

A palavra mito, como de costume, é de origem grega. Ela descende do verbo mytheyo, que significa
“narrar”, “contar”, sempre designando uma narrativa para outras pessoas. Já o outro verbo que origina a
palavra é o verbo mytheo. Ele significa “contar”, “anunciar”, mas também “conversar”.

Na cultura grega, o mito aparecia na forma de discurso, portanto, retórico. Os seus ouvintes recebiam
a mensagem como uma narrativa verdadeira por conta da confiança que possuíam no narrador.
Essa narrativa era feita em público e contava, para sua “veracidade”, com a autoridade e legitimidade
que o narrador tinha. Essa autoridade viria, então, do fato de que ele havia testemunhado o acontecido
ou que tivesse recebido a narrativa por alguém que testemunhou o que era contado.
62
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

O mito era importante naquela sociedade porque o narrador seria um escolhido das divindades.
Sendo assim, sua palavra era sagrada, tida como uma revelação divina, e tornar-se-ia incontestável.

Segundo Gomes (2008), os acontecimentos míticos podem ser algo fantástico, normalmente animais
misturados com seres humanos ou até mesmo seres fantásticos. O mito perpetuou na sociedade grega
antes do surgimento da filosofia.

Na antropologia, o caminho é parecido: através das narrativas dos anciões das sociedades em
estudo, os antropólogos coletam informações para que tenham indícios de questões que influenciam
diretamente aquela sociedade.

Já nas sociedades que consideramos modernas, muitas vezes os mitos são confundidos com lendas.
A diferença entre lendas e mitos está no fato de que a lenda é uma narrativa mais simples e possui,
muitas vezes, a intenção de ser uma forma de ensinar ou se doutrinar moralmente uma sociedade.

O mito, não. Ele possui um caráter de sagrado. É contado, assim como na Grécia Antiga, por
pessoas que possuem reconhecimento social e autoridade para tal. O conteúdo do mito é mais difícil
de se compreender do que o conteúdo da lenda, geralmente exigindo do ouvinte um certo esforço de
interpretação. Até os antropólogos precisam estudar os mitos.

Mas se o mito narra a origem de algo de forma fantástica, como ele serve para entendermos de fato
o que se passou em uma sociedade?

Aí que está a chave: se o mito sempre narra a origem de algo, por trás das narrativas muitas vezes mais
elaboradas do que o cinema hollywoodiano está algo que realmente tem ligação com a realidade. É como se
fosse um sonho: às vezes não há lógica no sonho, relação de causa e efeito, mas depois dos estudos de Freud,
descobriu-se que aquela narrativa que se apresenta como sonho pode representar a estrutura de algo.

Assim como a própria antropologia, o estudo do mito também passou pela influência de diferentes
correntes de pensamento. Por exemplo, no viés evolucionista, o mito seria uma forma de contar a própria
história antes de chegar na fase racional. Dessa forma, o mito forneceria dados reais e representaria a
moral da sociedade.

Já no viés estruturalista, o mito é compreendido como uma linguagem que poderia ser universal e
que foi utilizada, de certa maneira, por todos os povos. Nessa perspectiva, ele não teria sentido moral
ou pedagógico, mas é visto como uma forma de codificar o pensamento das pessoas daquela sociedade.

O fato é que o mito ainda é misterioso para a antropologia. Exatamente por essa dificuldade em
se compreender o que de fato significa, a palavra ganhou outros sentidos, sendo largamente usada
para designar “histórias fantásticas, enredos labirínticos, até ideologias, que condicionam visões e
comportamentos humanos” (GOMES, 2008, p. 153).

Então, por que estudar o mito nas relações internacionais? Bem, a resposta está no parágrafo
anterior: “condicionam visões e comportamentos humanos”.
63
Unidade I

É exatamente por isso que a ideia de mito é explorada, muitas vezes de forma forçada, no campo do
esporte ou da política. Colocar alguma pessoa ao patamar de mito equivaleria a sacralizar essa pessoa.
Consequentemente, sua influência perante os demais seria potencializada. É comum também mitificar
alguém postumamente. Nesse caso, provavelmente a imagem do falecido ainda é sinônimo de renda.

Lembrete
O mito condiciona visão e molda comportamento. Ele é parte integrante
da cultura e, acima de tudo, uma forma de significação social, pois a cultura
abrange diversos aspectos sociais.

Façamos um breve exercício reflexivo. Chaui (2004) afirma que existem três formas de se explicar,
miticamente, a origem do mundo. A primeira delas seria fruto da relação entre seres divinos, mãe e pai.
A segunda seria através de confrontos e alianças entre os deuses, e tudo surgiria como fruto desse
embate. Já a terceira seria através de castigos e recompensas dos deuses para os humanos.

O que podemos pensar sobre essas perspectivas?

• Há uma dualidade nas três perspectivas, seja ela homem/mulher, bom/mau, deuses/humanos.
• Existe conflito de interesses nessas visões de mundo, passando por alianças e confrontos e castigos
e recompensas.
• Há nitidamente a existência de seres inferiores e superiores

Esse é só um pequeno esboço de algumas interpretações possíveis. Entretanto, o que vale nessa reflexão
é que podemos nos questionar: será que essa não seria uma forma de explicar o próprio ser humano?

Alianças, conflitos de interesses, confrontos, dualidades, uns mais fortes e outros mais fracos.... Tudo
a ver com relações internacionais, não?

Figura 17 – Poseidon, deus do mar na mitologia grega

64
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Resumo

Estudamos o que é essa tal de antropologia. Ela pode ser dividida


em dois campos: a antropologia cultural e a antropologia biológica. Na
área cultura, ela se preocupa em estudar o ser humano como produtor
de cultura e como receptor e também a relação das sociedades com os
elementos simbólicos. Já na área biológica, a preocupação é basicamente
entender o lugar do ser humano como espécie, o que de fato é instinto e
o que é cultural. Exatamente por isso podemos considerar a antropologia
tanto uma ciência como uma filosofia.

Diante dessa preocupação, algo é fundamental para os estudos


antropológicos: o outro. Se não há o reconhecimento da alteridade, não há
como fazer antropologia.

A antropologia se divide em campos de estudo e é influenciada por


correntes de pensamento de acordo com a sua época. Além do mais, ela
surge no período de expansão dos povos europeus que entram em contato
com outras culturas.

A antropologia biológica está diretamente ligada ao evolucionismo. Essa


corrente de pensamento é conhecida por Darwin e sua Teoria da Evolução
das Espécies, que compreende o mundo de uma perspectiva linear em
que os animais buscam simplesmente sua sobrevivência. O evolucionismo
influencia a antropologia principalmente no século XIX, pois essa ciência, ao
se ancorar nessa perspectiva de evolução das espécies, identifica que existe
uma espécie humana igual a sua, mas que seu desenvolvimento, no que
tange os aspectos socioculturais, econômicos e políticos, se desenrola em
um tempo e lógica completamente diferentes da europeia. A antropologia
biológica se utiliza da genética, da arqueologia e da anatomia.

O funcionalismo é outra corrente de pensamento que influencia


a antropologia e, principalmente, a etnografia, o estudo descrito das
coisas. Essa corrente de pensamento procura relacionar a sociedade a um
organismo, a uma unidade complexa, a um todo organizado. Ela também
fala em necessidades, sendo que a cultura tem justamente a função de
suprir tais necessidades.

Tal corrente nos deixa de herança o fato de que a cultura é um sistema


com lógica própria, oriunda de um determinado contexto que só faz sentido
ali mesmo.

65
Unidade I

Vimos também o estruturalismo e a linguística. A linguística é


importante porque os estudiosos afirmam que, ao se estudar a língua
de um povo, automaticamente estamos estudando a sua cultura,
pois a língua é uma forma que aquela sociedade desenvolveu para se
expressar nela mesma.

A concepção de estrutura é oriunda do campo da linguística, pois, como


vimos, esse campo de estudo sistematiza a língua em uma forma estrutural,
ou seja, um modelo de compreensão, já que o objeto de estudo são as
relações sociais.

Depois desse breve panorama sobre antropologia, estudamos a cultura e


vimos que a definição do termo é bastante complexa. Entretanto, adotamos
três pressupostos: ela não é inata, não é certa nem errada e não se refere
ao comportamento individual, ou seja, o indivíduo não nasce com ela,
pois cada sociedade tem suas próprias dinâmicas completamente distintas
umas das outras, e a cultura sempre se relaciona ao coletivo, embora não
deixe de influenciar o indivíduo.

Vimos também que há diversas óticas para se compreender a cultura.


Às vezes vemos como sinônimo de erudição, às vezes enxergamos a cultura
no campo das artes, e também a compreendemos como os hábitos de um
povo, identidade e até mesmo cultura como uma abstração.

Já o alcance da cultura é determinante para as relações sociais. Ela


rompe com teorias como o determinismo geográfico, uma corrente que
afirmava que o ambiente físico era o fator determinante para as relações
sociais. Porém, pelo fato de o humano consistir em um ser cultural, essa
teoria perde adeptos na década de 1920.

Entre os pioneiros dos estudos sobre cultura, chegou-se à conclusão


que ela é um fenômeno especifico do ser humano. Ela é fator determinante
no comportamento, nos padrões culturais e na nossa adaptabilidade.
Bauman (2012) enxerga a cultura de três maneiras: como experiência do
cotidiano, como os aspectos observáveis de uma sociedade e como um
conceito genérico.

Exatamente por isso, quando falamos em cultura, seu alcance é enorme.


Ela é responsável por coisas como a criatividade, que tem relação com as
ações individuais no coletivo, e também pode ser um código que representa
um sistema ordenado de pensar e agir.

Embora a cultura esteja presente e explique grande parte da vida social,


aquilo que não se pode explicar chamamos de sagrado. As trocas culturais
66
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

entre povos chamamos de aculturação. E não podemos esquecer que se


existem classes dentro de uma mesma sociedade, consequentemente
temos subculturas.

Outro termo bastante usado e que se identifica com cultura


é tradição. Essa palavra remete à própria cultura, só que em uma
dimensão temporal passada.

Vimos também o papel da religião. Primeiramente, em uma perspectiva


antropológica, sendo que nessa ótica a religião ajusta as ações humanas a
uma ordem cósmica e projeta imagens dessa ordem no plano dos humanos.
Nessa perspectiva antropológica e cultural, a religião serve tanto para o
indivíduo quanto para um grupo. É a interpretação dos processos sociais e
psicológicos através do cosmo.

Já na perspectiva política, vimos como a religião foi fundamental na


consolidação da Europa, através do cristianismo, que se institucionaliza
para aumentar seu poder político. Essa religião foi hegemônica durante
mais de mil anos e começa a perder seu poder no período renascentista.

A queda de poder da Igreja é atrelada ao processo de secularização, que


é o declínio da influência das grandes religiões históricas unido ao processo
de modernidade, no qual o sujeito ganha mais autonomia. Com isso, a
explicação místico-religiosa que a Igreja oferecia não serve mais como a
única forma de significação da sociedade.

O ser humano, então, se liga com a religião através dos ritos. Embora de
origem sagrada, o rito acaba por tornar-se algo que aparece no campo do
profano. Para que o rito aconteça, existem três etapas: a primeira etapa é o
afastamento, o momento de ruptura com o comum. O limiar, considerado
a fase intermediária, onde de fato o rito acontece, é a segunda etapa. Já
o final ocorre propriamente quando é concluído, sendo o momento de
finalização da conexão com o sagrado. O rito pode ser visto em outros
aspectos da sociedade, como o Carnaval, no caso da sociedade brasileira.

Por fim, vimos também o mito, uma narrativa que conta a origem das
coisas. O mito nasce na Grécia antiga e é um fenômeno que acontece em
todas as sociedades. O interessante do mito é que, mesmo com toda a
dificuldade das ciências em conceber sua finalidade, ele condiciona visões
e molda comportamento, sendo fundamental para nós compreendermos
sua dimensão.

67
Unidade I

Exercícios

Questão 1. Considere a charge sobre a Conferência de Berlim (1884) e analise as afirmativas:

Figura 18

I – A assinatura do Tratado de Berlim, como mostra a charge, determinou a partilha da África entre
países colonizadores, colocando fim à soberania de nações africanas.

II – A noção etnocêntrica, que supõe que há culturas superiores e inferiores, alicerçou o domínio
europeu sobre os povos africanos, considerados culturalmente mais atrasados.

III – A charge, metaforicamente, mostra a África como um bolo fatiado, pois se refere ao fato de que,
com o Tratado, “a massa cresceu”, ou seja, a economia africana foi estimulada e desenvolvida.

É correto o que se afirma em:

A) I, II e III.

B) II e III, apenas.

C) I e III, apenas.

D) I e II, apenas.

E) I, apenas.

Resposta correta: alternativa D.

68
ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

Análise das afirmativas

I – Afirmativa correta.

Justificativa: o Tratado efetivou a partilha da África, o que representou o fim da soberania dos povos
daquele continente.

II – Afirmativa correta.

Justificativa: a suposta superioridade cultural das sociedades opressoras serviu de justificativa para
a dominação sobre os povos africanos.

III – Afirmativa incorreta.

Justificativa: a charge vale-se da metáfora do bolo fatiado para representar a divisão da África.
A dominação dos colonizadores não promoveu o desenvolvimento econômico e social das nações
dominadas, mas, sim, sua exploração.

Questão 2. Leia o texto 1, do livro Os Nascimentos, de Eduardo Galeano, que narra pensamentos e
mitos dos povos pré-colombianos, e o texto 2, da filósofa Marliena Chaui.

Texto 1

O fogo

As noites eram de gelo e os deuses tinham levado o fogo embora. O frio cortava a carne e as palavras
dos homens. Eles suplicavam, tiritando, com a voz quebrada; e os deuses se faziam de surdos.

Uma vez lhes devolveram o fogo. Os homens dançaram de alegria e alçaram cânticos de gratidão.
Mas, de repente, os deuses enviaram chuva e granizo e apagaram as fogueiras.

Os deuses falaram e exigiram: para merecer o fogo, os homens deveriam abrir peitos com um punhal
de pedra e entregar corações.

Os índios quichés ofereceram o sangue de seus prisioneiros e se salvaram do frio.

Os cakchiqueles não aceitaram o preço. Os cakchiqueles, primos dos quichés e também herdeiros dos
maias, deslizaram com pés de pluma através da fumaça, roubaram o fogo e o esconderam nas covas de
suas montanhas.

Fonte: Galeano (2010).

69
Unidade I

Texto 2

O antropólogo Claude Lévi-Strauss estudou o “pensamento selvagem” para mostrar que os chamados
selvagens não são atrasados nem primitivos, mas operam com o pensamento mítico. O mito e o rito,
escreve Lévi-Strauss, não são lendas nem fabulações, mas uma organização da realidade a partir da
experiência sensível enquanto tal. Para explicar a composição de um mito, Lévi-Strauss refere-se a uma
atividade que existe em nossa sociedade e que, em francês, se chama bricolage. O que faz um bricoleur,
ou seja, quem pratica bricolage? Produz um objeto novo a partir de pedaços e fragmentos de outros
objetos. Vai reunindo, sem um plano muito rígido, tudo o que encontra e que serve para o objeto que está
compondo. O pensamento mítico faz exatamente a mesma coisa, isto é, vai reunindo as experiências, as
narrativas, os relatos, até compor um mito geral. Com esses materiais heterogêneos, produz a explicação
sobre a origem e a forma das coisas, suas funções e suas finalidades, os poderes divinos sobre a Natureza
e sobre os humanos. O mito possui, assim, três características principais, citadas a seguir.

1. Função explicativa: o presente é explicado por alguma ação passada cujos efeitos permaneceram
no tempo. Por exemplo, uma constelação existe porque, no passado, crianças fugitivas e famintas
morreram na floresta e foram levadas ao céu por uma deusa que as transformou em estrelas; as chuvas
existem porque, nos tempos passados, uma deusa apaixonou-se por um humano e, não podendo unir-se
a ele diretamente, uniu-se pela tristeza, fazendo suas lágrimas caírem sobre o mundo etc.

2. Função organizativa: o mito organiza as relações sociais (de parentesco, de alianças, de trocas, de
sexo, de idade, de poder etc.) de modo a legitimar e garantir a permanência de um sistema complexo
de proibições e permissões. Por exemplo, um mito como o de Édipo existe (com narrativas diferentes)
em quase todas as sociedades selvagens e tem a função de garantir a proibição do incesto, sem a qual o
sistema sociopolítico, baseado nas leis de parentesco e de alianças, não pode ser mantido.

3. Função compensatória: o mito narra uma situação passada, que é a negação do presente e que
serve tanto para compensar os humanos de alguma perda como para garantir-lhes que um erro passado
foi corrigido no presente, de modo a oferecer uma visão estabilizada e regularizada da Natureza e da
vida comunitária. Por exemplo, entre os mitos gregos, encontra-se o da origem do fogo, que Prometeu
roubou do Olimpo para entregar aos mortais e permitir-lhes o desenvolvimento das técnicas. Numa
das versões desse mito, narra-se que Prometeu disse aos homens que se protegessem da cólera de Zeus
realizando o sacrifício de um boi, mas que se mostrassem mais astutos do que esse deus, comendo as
carnes e enviando-lhe as tripas e gorduras. Zeus descobriu a artimanha e os homens seriam punidos
com a perda do fogo se Prometeu não lhes ensinasse uma nova artimanha: colocar perfumes e incenso
nas partes dedicadas ao deus.

Adaptado de: Chauí (2004).

Com base na leitura, analise as afirmativas:

I – O mito dos povos pré-colombianos em relação ao surgimento do fogo não coincide com
o mito grego de Prometeu, o que comprova a invalidade do mito na sua função explicativa dos
fenômenos naturais.
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ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA

II – De acordo com o antropólogo Lévi-Strauss, os mitos correspondem a uma explicação e a uma


forma de organização do universo, e não se pode considerar que os povos indígenas sejam atrasados.

III – O mito narrado no texto 1 cumpre a função explicativa do domínio do fogo pelos humanos e
também revela diferentes comportamentos dos povos em relação ao mesmo dilema.

É correto o que se afirma somente em:

A) I.

B) II.

C) III.

D) II e III.

E) I e II.

Resolução desta questão na plataforma.

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