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Terceira questão

Prefácio

Thomas Kesselring

A democracia é uma forma de governo não muito boa, mas é a menos ruim que
conhecemos. - Quais são as suas características? Em Moçambique a política é
democrática? As sociedades Africanas são, ou não, apropriadas para um
governo democrático? Questões como estas são discutidos neste livro. O que
levou o filósofo Severino Ngoenha a escrevê-lo, foi a profunda preocupação
com os eventos políticos em 2013 e 2014, antes das eleições presidênciais:
faltava pouco, e Moçambique quase escorregou numa nova guerra civil.

Esta obra, então, fala do Moçambique actual. Mas o autor também apresenta um
um estudo sobre as condições que garantem a convivência pacífica entre
diferentes grupos sociais, políticos, étnicos etc. Ele enriquece seus argumentos
com uma grande variedade de amostras que ilustram o funcionamento e o não-
funcionamento da política em outros paises, no passado histórico como no
presente. Esta investigação é iluminadora também para membros de qualquer
sociedade do mundo.

A democracia moçambicana é o denominador comum de todas as partes do


livro. Mas o que é uma democracia? Há duas caraterísticas que a definem.
Primeiro, a democracia é uma forma de governo, no qual o povo participa, de
uma maneira ou outra, nas decisões políticas. Esta participação se concretiza em
eleições e, mais raramente, em votos sobre assuntos de particular importância.
Uma democracia, portanto, se baseia num esquema de representação: Os
cidadãos elegem como políticos (presidente, parlamentares, ediles...) aqueles
candidatos, dos quais esperam que representam melhor os interesses do povo. O
segundo aspecto da democracia é o princípio da igualdade diante da lei: A
constituição é vinculativa para cada pessoa, seja ela mendigo, médico,

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empresário ou presidente, e todas as pessoas gozam dos mesmos direitos


básicos (Direitos Humanos). Formalmente, o Moçambique é uma democracia,
mas uma democracia com muitos defeitos. Eis alguns deles, nas palavras do
autor:

“(A) nossa democracia é de poucos, e esses poucos são os com mais posse. No
fundo, estaríamos mais perto de uma oligarquia do que de uma democracia”
(33). - “Temos o mau hábito de (...) reduzir a democracia à competição entre os
partidos para a tomada de poder” (98). - “A democracia, em suma, não pode ser
um jogo de elites em detrimento do povo.” (95f.) - “A democracia militarizada
institucionalizou o anormal: violência, fraudes, engano, mentira, a falsidade;
introduziu o medo, o que pode levar até a conflitos étnicos e regionais” (96). -
“No quadro do nosso sistema não temos nenhum contrôle sobre o que faz em
termos de politicas públicas, não há nenhuma discussão sobre o vasto mundo da
ação governativa e do uso dos recursos públicos. (...) Não sabemos o que se faz
com o nosso dinheiro, com os nossos recursos. (...) Como é que se definem as
prioridades num pais em que milhões de crianças não têm pão? ” (100). - “Os
custos do funcionamento da nossa democracia são excessivos para um povo
cuja maioria vive na miséria” (81).

Analizando os múltiplos defeitos da democracia moçambicana, Severino


Ngoenha chama particular atenção para três aspectos sintomáticos:

Primeiro, o Moçambique se apresenta como uma “democracia pós-política, quer


dizer [uma democracia] sem ideias” (34). A falta de ideias se manifesta de
modo mais gritante em períodos de eleições. O autor relata como, na última
campanha eleitoral, ele se habituava a ler, dia por dia, os jornais e a assistir os
midias, sempre na procura de idéias políticas. Mas não encontrou alguma! Mais
do que isso: A política tem se afastado do povo. Ele apresenta-se aos
espectadores como luta, às vezes violenta, entre os partidos opostos, longe das

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preocupações da população, como o combate à miséria, a garantia de segurança,


o atendimento médico, um ensino básico com qualidade etc. Nas campanhas
eleitorais, estas preocupações se reduzem a meros slogans. Sem planos
coërentes quanto à sua concretização, elas nem podem ser interpretadas como
promessas políticas.

Segundo, ao lado dos órgãos políticos formou-se um grupo de “cyber-


intelectuais" que se submetem à lógica dos mídias, vendendo o uso do seu
intelecto aos que mais pagam, seja em dinheiro ou seja em quotas de
atendimento mediático. O “cyber-intelectual” gosta de ser escutado, e por isso
não se nega a brilhar em Talkshows. É difícil encontrar, na política
moçambicana, discursos verdadeiros, debates engajados e trocas constructivas
de idéias. Faltam pensadores que acompanham, comentam e criticam a vida
política, como Sartre o fazia na França da década de sessenta ou Habermas o
pratica ainda hoje, na Alemanha.

Terceiro, a cultura democrática é sufocada pela “aparatocracia”: Os partidos


transformaram-se em máquinas de poder que aspiram, antes de tudo, a sua
autosustentação e a acumulação de mais poder. Não é de admirar que os
programas dos partidos políticos são intercambiáveis, o que provoca o autor a
perguntar, se os partidos políticos não são supérfluos, afinal das contas? Se não
o são, para que, então, servem? Inicialmente, a função de um partido era juntar
os cidadãos dispostos a engajarem-se para promover certos objetivos sociais ou
políticos que lhes parecem prioritários. Hoje, os partidos se limitam a atrair,
com “espectáculos” mediáticos, a atenção e o aplauso do público. Difamar o(s)
partido(s) concorrente(s) faz parte do jogo. O que conta, é o poder do “aparato”.
Isso significa que o poder de um partido não se manifesta primariamente no
número de membros e aderentes, nem mesmo na sua presênça mediática, mas
sim, no capital que consegue mobilizar, e no arsenal bélico que consegue
juntar. O partido armado é uma criação moçambicana. Contudo, ataques

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violentos, e até contra pessoas inocentes, como ocorreram em 2013 e 2014,


marcam o estilo de caudilhos e se opõem radicalmente aos princípios
democráticos.

***

Será que os fenômenos analizados por Ngoenha são específicos para o


Moçambique? Ou pode-se observar fenómenos parecidos também em outros
países, particularmente na Africa subsaariana? Ou são eles o reflexo de
circunstâncias ainda mais abrangentes, que não se limitam ao continente
africano? Quem tenta interpretar estes fenômenos na luz de outos eventos que
marcam o “mundo globalizado”, vai detectar diversos tipos de factores -
factores nacionais (moçambicanos), factores regionais (africanos) como também
factores ligadados à ordem econômica e política global - que todos contribuem
na gênese dos fenómenos descritos por Severino Ngoenha.

Apesar de ser um pais jovem, o Moçambique tem a sua própria história, forjada
por vários eventos “locais”, inconfundíveis, como a luta pela independência, a
criação de estruturas de Estado numa época que foi marcada pela rivalidade
tensa entre dois partidos etc. Mesmo que o autor põe o acento nos eventos
“domésticos”, ele de vez em quando chama a atenção para eventos que fogem
este quadro.

Pois, vale a pena insistir no fato de que o Moçambique não é o único pais com
estruturas formalmente democráticos que não funcionam como deveriam. Em
muitos paises da Africa subsaariana, a democracia não funciona. Como se pode
explicar isso? Não raras vezes ouve-se dizer que a ordem democrática é alheia
às tradições africanas. A isso Ngoenha responde, com toda razão, que a
democracia é alheia a todas as culturas, sendo que não é intrínseca a nenhuma
delas em particular. Na cidade antiga de Atenas a democracia também
fracassou, para depois desaparecer da história ocidental por dois mil anos. Mas

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isso não impede que a ordem democrática pode, em princípio, dar certo em
qualquer sociedade do mundo.

Além dos fatores ligados à história e às culturas “domésticas”, talvez haja


outros factores, de ordem mais geral, que atrapalham o funcionamento de uma
organização democrática? Segundo o economista inglês, Paul Collier, 1 os paises
mais pobres (“last developed countries”, LDCs), muitos dos quais se encontram
na Africa subsaariana, enfrentam problemas sérios que dificultam o
estabelecimento de uma democracia. As causas disso são complexas. Nos paises
em questão o nível da formação do povo é baixo, mas isso não é o ponto
central: As pessoas sabem bem, o que querem - boa saúde, boa educação básica,
um trabalho decente que permite uma vida com qualidade razoável. Mas a
política, em vez de fornecer programas sociais em favor do povo, serve como
trampolim pelo qual os candidatos para a política se jogam numa posição social
alta, bem acima do nível da pobreza. Muitos políticos se comportam como
caçadores e coletores, tentando apropriar-se de recursos naturais (petrólio, gaz,
minerais, carvão, ouro etc.) ou do direito de comercializá-los. O mesmo ocorre
com os recursos financeiros, muitos dos quais provêm do exterior, como
empréstimos ou doações para “ajudar ao desenvolvimento”. Mas estes recursos
todos pertencem a todos os cidadãos e cidadâs e não são a propriedade privada
de ninguém. A ganancia é um mal generalizado. Mas o problema básico, neste
grupo de paises, é a “maldição” dos recursos, tanto financeiros quanto naturais,
pela conquista dos quais se deve ter a posição política certa, sem esforço maior
ou trabalho adicional.

Como conseqüência desta maldição, as eleições não servem para submeter


projetos políticos concorrentes a uma avaliação pelo povo, mas sim, para
legitimar aqueles que já governam, mesmo se chegaram ao poder, como
1 Paul Collier: The Bottom Billion: Why the Poorest Countries are Failing and What can be
Done about It. New York: Oxford Univ. Press, 2008. Paul Collier: Wars, Guns, and Votes:
Democracy in Dangerous Places. New York: Harper Collins Publishers, 2009.

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acontece freqüentemente, mediante um golpe. Assim, as eleições tornam-se um


ritual para fortalecer o poder. Compras de votos e fraudes na contagem são
frequentes. Um político honesto que apresentasse projetos sociais sérios e bem
elaborados, correria o risco de perder contra políticos que conseguem mobilizar
mais verbas. Segundo Collier, num pais de baixa renda econômica o risco de
que se estabeleçam sistemas de patrocínio aumenta justamente na proporção na
qual o pais em questão é rico em recursos naturais. O capital barato que entra de
fora agrava o problema.

***

Passando para os factores de dimensão global, com impacto nos processos


políticos do Moçambique, não se deve esquecer das múltiplas ingerências pelo
exterior, como os ditames do Fundo Monetário Internacional e do Banco
Mundial, mas também daquelas nações e organizações não governamentais que
estão envolvidas na cooperação para o desenvolvimento. Muitos donadores
impõem aos seus parceiros indigentes as regras do jogo - regras às vezes até
incompatíveis umas com as outras, sendo que o mercado da “ajuda para o
desenvolvimento” atrai muitos atores internacionais.

Outro factor, também no nível internacional, que influe na política dos paises
subsaarianos, é a decadência das próprias democracias ocidentais. O politólogo
inglês Colin Crouch, analista brilhante das políticas contemporâneas, chama a
época actual não de “pós-política”, como Severino Ngoenha, mas de "pós-
democracia".2 Com este termo ele se refere ao facto de que, em boa parte do
mundo ocidental, as instituições democráticas já não funcionam mais
corretamente, apesar de continuarem a existir. A democracia é uma planta
sensível cujo cultivo necessita de muito cuidado, e cada geração deve
preocupar-se com as condições adequadas para manter a planta viva.

2 Colin Crouch: Post Democracy. Oxford: Polity Press, 2004.

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O fenômeno da “pós-democracia” se manifesta, antes de tudo, num


desequilíbrio entre as ideias chaves da democracia, igualdade e liberdade. Para
o liberalismo político (cujo representante mais importante era o filósofo
americano John Rawls, 1921-2002), a liberdade e a igualdade são entrelaçadas
e se sustentam mutuamente. Pois a liberdade exprime-se nos direitos básicos
(Direitos Humanos) que são iguais para todos. Nas sociedades capitalistas,
contudo, a liberdade se extende na esfera das actividades económicas. No
liberalismo econômico (cujo fundador era o economista austríaco Friedrich
August von Hayek, 1899-1992), os direitos econômicos têm, pelo menos, o
mesmo peso como os direitos pessoais, políticos e sociais. Mas a liberdade
econômica é fonte de desigualdades sociais. Na medida em que a política se
torna escrava da economia, liberdade e igualdade entram em contradição uma
com a outra. O rico tem mais liberdade econômica e, com isso, mais poder de
que o pobre. Hoje, o abismo entre ricos e pobres aprofunda-se constantemente.
Nas últimas décadas, o número de milionários e bilionários cresceu
continuamente - também nos paises pobres, e até no Moçambique.

Segundo Crouch, a submissão da política à economia é a causa principal da


crise nas democracias ocidentais. Esta submissão se manifesta numa série de
sintomas: Primeiro, as empresas multinacionais operam em vários países, o que
lhes dá o poder de extorquir os governos, anunciando que, se as leis não
estiverem favoráveis aos seus negócios, não investem mais no pais em questão e
saem. Segundo, quando os mídias - jornais, rádio, televisão – se concentram nas
mãos de pouquíssimos empresários, eles se tornam instrumentos para a
manipulação da opinião pública. Quem domina os mídias pode impor os seus
interesses na política. Na Itália, um dos donos mais poderosos dos mídias
privados, Silvio Berlusconi, conquistou o cargo de primeiro ministro, e como tal
prejudicou seriamente o seu pais. Terceiro, as instituições estatais têm a
reputação de serem fracas, incompetentes e ineficientes, enquanto que, ao

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contrário, o sector privado é considerado um reduto de eficácia, espírito


inovador e habilidade exquisita. Por isso os representantes das instituições
políticas são chamados de frequentar as “aulas” que os empresários lhes dão,
para transformar, de modo eficiente, as instituições políticas em companhias
privadas. É essa a doutrina do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco
mundial e da Organização do Comércio Mundial (World Trade Organization).
Na tendência, o próprio Estado se transforma numa super empresa. No entanto,
essa transformação leva a uma distorsão: Um Estado não é criado para render.
Se ele cumpre seu papel e fornece aos seus cidadãos bem-estar, segurança,
saude, uma boa fromação, e justiça, ele não é lucrativo. Por isso os cidadãos
participam na sua sustentação, pagando impostos.

Se Montesquieu (1689-1755) vivesse hoje, ele provavelmente proporia, além da


separação dos poderes legislativos, executivos e jurídicos, também a separação
entre os poderes políticos, econômicos e dos mídias.

***

Como o Moçambique pode enfrentar os desafios actuais? O que para isso


a filosofia pode contribuir? São três as coisas que ela oferece: Ela ensina e
encoraja o discurso argumentativo e a “ação comunicativa” (Habermas): Se,
numa conversa, todos os participantes se colocam na pele do outro, se consege
resolver conflitos de maneira pacífica. Além disso, a filosofia nos ajuda a
elaborar um diagnóstico da situação vigente de um Estado, como Severino
Ngoenha o apresenta nesta obra. É verdade que, segundo Marx, a filosofia
apenas interpretava o mundo, enquanto que é preciso transformá-lo. Mas nisso
também a filosofia pode contribuir, como filosofia prática, mostrando que “um
outro mundo é possível”.3 A filosofia, então, pode desempenhar um papel
fundamental neste processo. Por isso o autor deste livro escolheu como pano de

3 „Um outro mundo é possível“ é o lema dos Foruns Sociais Mundiais que ocorreram em
paises pobres como eco crítico dos annuais Foruns Económicos Mundiais.

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Terceira questão

orientação, em várias obras suas, as perguntas referentes à política


moçambicana que, há muitos anos, a associação filosófica do Moçambique lhe
tinha colocado. Mas a filosofia é apenas uma disciplina entre outras, como a
pedagogia, sociologia, politologia, antropologia cultural, psicologia etc. Todas
estas disciplinas podem e devem contribuir para a procura de um futuro melhor.
Nesta procura, em última análise, toda a população pode participar. Mas graças
ao privilégio de ter passado uma formação melhor e mais profunda, os
intelectuais têm uma responsabilidade particular. Em Dezembro 2013, na auge
da crise política mais recente, reuniram-se em Maputo, de modo informal,
cinquenta intelectuais – artistas, professores, jornalistas etc. - para debater sobre
possíveis saídas do impasse político. Este grupo de intelectuais deveria
continuar a se reunir e a debater as questões mais urgentes do pais. É da
sociedade civil que o deba

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Terceira questão

1. PORQUÊ TERCEIRA QUESTÃO?

Não é só porque não há duas sem três, nem sequer porque três é um
número sagrado, a trindade – pai, filho e espírito santo, o que constitui a
essência do cristianismo-, o número das religiões monoteístas. Mas também sim
porque três, quantifica a nossa circunstância, que eu teimo em dar resposta um
pouco tardia, mas oportuna – creio – à ACAFIL .
Na senda de Alain Badiou, três é um número filosoficamente simbólico,
pois que seriam três os momentos de maior dignidade na produção filosófica: o
momento grego, o momento alemão e o momento francês. E este, apesar de
atingir o seu apogeu com o período que vai de Marleau-Ponty a Derrida,
passando por Sartre, Lacan, Foucault, Deleuze, etc., seria também uma espécie
de trindade, dado que foi precedido pelos semi-momentos cartesianos e
iluminista-enciclopédico (Diderot, D´Alembert, Voltaire, Rousseau).
Do ponto de vista africano, depois do Renascimento de Alain Locke e do
Renascent Africa de Azikiwe, estamos, com Thamo Mbeki na tentativa de um
terceiro renascimento; depois da etnofilosofia e da filosofia crítica emerge a
filosofia intercultural.
Quanto a Moçambique; o terceiro congresso correspondeu a uma
mudança radical para a Frelimo e para o país; estamos na terceira república;
tivemos três candidatos nas últimas eleições; temos o terceiro presidente saído
das urnas e três foram as constatações no meu último livro quanto ao que o pais
precisava para a sua boa governação: estabilidade, desenvolvimento económico
e comunhão (cum munnia) material e imaterial.

O que me vai ocupar desta vez é uma tentativa de responder à questão:


“que leitura se pode fazer das recentes eleições presidenciais e legislativas (...)”,
terceira questão da Acafil. Aqui também se impõe o número de três, que
corresponde ao das principais constatações que se podem fazer das últimas

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Terceira questão

eleições: a emergência dos ciber-intelectuais, o nascimento da pós-política e a


transformação dos partidos em aparatos.

Para aqueles que não tenham lido os meus dois livros precedentes, “Os
tempos da filosofia” e a “Interculturalidade, alternativa à governação
biopolítica”, vou situar o seu histórico, que tem neste, talvez, o último esforço.

Como disse, a ACAFIL (Academia filosófica) organizou um seminário na


Matola em mil novecentos e noventa e nove, no qual levantou questões a serem
debatidas por um plantel de académicos em volta das eleições que acabavam de
se realizar. As questões então levantadas eram densas e de difícil resposta. Por
isso, optei então por responder só a uma das quatro formuladas, “Qual é o papel
da filosofia num país democrático”, cujo aprofundamento levou à publicação,
cinco anos mais tarde, de “Os tempos da filosofia”. Volvidos outros cinco anos,
voltei às perguntas da ACAFIL e, desta feita, concentrei a minha reflexão numa
outra questão: “Qual é o tipo de governação de que Moçambique precisa para o
seu bom funcionamento?”, o que resultou no livro “Intercultura, alternativa à
governação biopolítica?”. Agora volto, de novo, às questões da ACAFIL para
reflectir sobre a terceira questão.
Interessar-me ainda hoje por esta questão, neste longo diálogo com a
ACAFIL, parece-me oportuno e pertinente, pois ela foi formulada num período
análogo ao momento presente, e sobretudo, porque os nossos pleitos
reproduzem fenómenos que se tornaram constantes: processos pesadamente
dispendiosos para o nível económico do país; contestações posteriores dos
resultados; transparência duvidosa; fiabilidade incerta; luta renhida entre o
candidato da Frelimo e o da Renamo; utilização ilícita dos meios do Estado;
ausência de programas claros quanto aos objectivos da governação;
concorrência desigual; grande aparato de alguns competidores, maquiavelismo
político onde, está visto, que os fins justificariam os meios.

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Terceira questão

Estas constantes autorizam-me a voltar ao questionário da ACAFIL, mas


são, sobretudo, uma oportunidade para me debruçar sobre um dos aspectos mais
candentes da nossa jovem democracia.
Não será extemporâneo responder à ACAFIL volvidos tantos anos e
numa circunstância que, se bem que análoga, parece diferente? Eu poderia
responder invocando, como o fiz em livros anteriores, a particularidade
epistemológica do tempo filosófico. Vou, porém, percorrer um outro caminho
para tentar ser mais incisivo.
A filosofia é uma particular imanência da cronologia temporal; está no
tempo e fora dele, ou pelo menos, tenta transcedê-lo. O que quer dizer, que ela
pode diferir sempre a sua aplicação. Ela engaja-se a não se contentar com
aparências e a re-avaliar tudo de mais longe. Se conviermos em que o filosofar é
o acto de engendrar a temporalidade sobre a dupla razão da sua constituição e
da sua constituição em história, então, como diria Hegel, não se deveria
responder à questão do quando, mas esta deveria ser deslocada.
Convenhamos que filosofar é um acto de espírito que tende a
compreender e a ordenar a diversidade fenomenal segundo uma sequência de
razão ou de razões. Neste sentido, tem a ver com o tempo, dado que este é a
forma da diversidade, como ele aparece, em primeira instância, na sucessão dos
momentos e das fases que estruturam o devir.
Dado que não é criador dele mesmo e do mundo, o sujeito filosofante é,
antes de mais, convidado a tomar a realidade como ela se apresenta; o que leva,
na busca dos seus materiais, a privilegiar a dimensão da memória, imediata ou
longínqua. O tempo apresenta-se então como uma linha contínua; de ontem a
hoje; esta linha é cheia, transbordante de factos e de palavras;

“Eis que a noite cai, e a coruja da minerva pode começar a sua ronda: ela
terá que decifrar o enigma antes que renasça o novo dia que nada permite com
certeza, como se pudesse aferrar o futuro”.

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Terceira questão

Neste sentido, o que é o presente senão um instante da viagem noturna,


uma mancha obscura que separa o ontem do amanhã?
Agora que o dia chega ao seu crepúsculo, podemos filosofar, pois
tornou-se possível recapitular o que foi organizado numa rede de relações,
iluminar a figura do presente. A filosofia torna-se uma hermenêutica ontológica,
que restitui ao evento a sua economia originária, e apreende, na distância, as
contribuições para a definição das condições da aventura que tem que elaborar.
Quando o já mencionado Hegel, no “Prefácio das linhas fundamentais da
filosofia do direito”, consagra uma reflexão à actualidade do pensamento,
intima o filósofo a não brincar aos profetas encerrando o devir nas masmorras
das suas previsões. Quando recorda que a “Coruja da Minerva levanta voo ao
cair da noite”, ele não pretende limitar o pensamento à reconstrução do passado
enquanto passado; ele não só não reduz o filósofo ao simples trabalho da
conservação dos eventos idos, como ainda erige o ideal prometéico de uma
reflexão englobante com a pretensão de abraçar a totalidade do real: recorda
simplesmente que o filósofo não é um deus, mas um ser mortal e que, como
todos os seres, está preso numa cadeia de momentos que se sucedem; ele não é
inteiramente livre de criar ou recriar o que precisa para o seu discurso. Em
suma, o filósofo depende, no seu esforço de inteligibilidade, do material que a
história lhe fornece.
Vincar esta dimensão objectiva do filosofar não significa limitá-la a uma
tarefa de recapitulação. Através dela, opera-se também uma formação da
consciência: “é a ideia que guia o mundo”, proclamava a Elíada, esse grandioso
poema que articula as liberdades dos homens com a necessidade do destino. Em
Hegel, a interpretação ontológica é só o primeiro passo de um processo que
deve culminar numa hermenêutica dialéctica, onde ela cabe presente como a
base de um filosofar prospectivo.

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Terceira questão

Se ela se limitasse a uma mania de conservar, de mumificar, de


cristalizar, a filosofia se tornaria numa catalogação de arquivos, cara a
Hountondji. Todavia, a sua ambição não é só compreender a diversidade
fenomenal e dos eventos, mas ordenar estes, de uma maneira que respondam a
uma certa coerência, – uma coerência que fundamente as diferenças, e por isso
susceptível de reger o futuro, como o fez com o passado. Trata-se da
transmutação de uma ontologia numa ética capaz de propor uma orientação do
agir.
A inteligência do passado é o que forma a invenção do futuro. Basta que
essa invenção seja livre, isto é, que ela seja aberta ao evento de toda a novidade,
e esteja sempre pronta a reformular os princípios heurísticos que tinha
depreendido da leitura do que foi.
Duas objeções podem entravar esta previsão racional do futuro. A
primeira seria a impossibilidade da sua realização, sempre que as condições
suficientes para o seu exercício não sejam dadas, ou não estejam presentes, ou
ainda, que se pense não se mostrem ainda reunidas. Pode-se então falar de
tempos de crise?

A situação de impasse em que se encontra a nossa democracia é um bom


exemplo para este questionamento, dado que uma reflexão séria sobre a sua
natureza e o estatuto das suas instituições é sempre postecipada, em nome de
urgências sempre novas e de obras imediatas. Enquanto se espera o crepúsculo
do dia, a confusão impera, e toda a palavra parece simplesmente juntar-se à
cacofonia generalizada.
Durante a campanha eleitoral, alguns jornalistas interrogavam-se quanto
ao meu silêncio. Que palavra se podia dizer naquele pandemónio, naquela
cacofonia? Alguma palavra teria sido mais eloquente do que o silêncio?
Não se deve dormir nesses tempos. Simplesmente, o pensamento é
reenviado à sua origem comum, e encontra segurança na sua própria

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Terceira questão

insegurança. Ė a hora em que as coerências conceptuais são confrontadas, e às


vezes, cedem, diante de outras fidelidades, políticas, económicas ou mesmo de
cobardia.
A segunda objeção não tende simplesmente a diferir o quando da filosofia
na espectativa de dias melhores. Numa emissão da televisão, invoquei Melca,
amigo de estudos em Paris. Perguntei-lhe certa vez o que significava para ele
ser judeu; ele retorquiu com uma rapidez não habitual: ter a mala pronta, porque
o que aconteceu ontem pode de novo acontecer amanhã.
Durante o período das recentes hostilidades, vimos cotidianamente
homens, mulheres e crianças prontos a deambular pelas matas, fugindo de
outros homens, preferindo, como já cantava Roberto Carlos, a companhia (a
civilização) de animais. Podia a reflexão filosófica exercer-se nesta
circunstância ou tinha que ficar suspendida, como diria Husserl, metida em
“epoké”?
Ignorar a dramaticidade destes eventos, pelo que foram e são, pelas
reminiscências que fizeram re-emergir em certos sobreviventes, que tinham
visto, trucidados, membros das suas famílias em conflitos precedentes, é estar
fora do mundo e da história. Contudo, diante da enormidade da aposta em jogo,
seria irrisório denunciar, nesta injunção negativa, um ilogicismo banal, que
confunde o facto com as modalidades do seu exercício. Ė claro que qualquer
filosofia, que tenha como ideal uma omni-compreensão de tudo o que foi,
ficaria em crise. Eventos que expõem crianças e mulheres ao dilema dantesco
de terem que escolher entre armas de guerra (de homens civilizados) e animais
selvagens reconduzem a civilização à portas primitivas.
Absurdas, odiosas seriam as atitudes que se deveriam encontrar nestes
anti-eventos da razão. Nenhum filósofo se pode dar como tarefa decifrar tais
contra-eventos. A única coisa que podemos fazer é tentar compreender, para
que, através de um sobressalto de espírito, tentemos barrar a estrada do futuro

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Terceira questão

ao erro original (a presunção da força, e de se ter sempre e em todo o caso,


razão) cujo desenvolvimento levou a esse crime contra razão.

Mas o que pode a filosofia? Desespera-se Paulin Hountondji!


Shakespeare, no desabafo de Romeu, no “Romeu e Julieta”, sentencia:
“que a filosofia se vá enforcar, se ela não consegue trazer-me Julieta de volta, e
anular a sentença do príncipe. Ela não sabe dar nenhuma ajuda, não pode fazer
nada”!
J. Stuart Mill, perante o massacre que um general inglês ordenou contra
os Cimarrones da Jamaica, culpados de tentarem fugir ao trabalho escravo,
mobiliza os seus estudantes-discípulos, que acreditavam nele e nos seus dotes,
para uma batalha em favor do direito e da justiça. O lema de Stuart Mill era: a
razão e o direito triunfam sempre. Depois das deliberações no tribunal, os
estudantes, atónitos e incrédulos com o que lhes parecia a derrota da razão e da
justiça, ouviram o juíz decidir pela inocência do general. Mill, para surpresa de
todos, vira-se para os seus estudantes e diz: “ganhamos”. Doravante nenhum
inglês poderá matar inocentes em nome de qualquer poder. De facto, alguns
meses depois, rompe a famosa revolução inglesa.
A filosofia não pode restituir Julieta a Romeu, mas pode obrar para que
no futuro, nenhum príncipe separe os amantes e sobretudo que não possa
incorrer em juízos arbitrários. Ela não pode restituir a vida às crianças mortas
em Muchungue, mas pode e deve obrar para que novos muchungues não se
voltem a reproduzir.
Quando a filosofia se encontra cara a cara com a desumanidade do tempo
e é chamada a barrar o caminho ao retorno do desumano, as referências do
passado deveriam levá-la a libertar-se das concatenações da morte, e torná-la
mais apta a inventar novas vias baseadas no diálogo e na tolerância como únicos
critérios legítimos e humanamente aceitáveis para a resolução dos problemas
entre os homens.

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Terceira questão

Não é que, olhando para a frente, se possa discernir, necessariamente,


formas de um mundo futuro. Ontologia e ética, como estases da inteligência e
do querer, estão lá como empenhos, necessários e parciais, que orientam para a
única temporalidade própria: o presente, na sua proveniência e na sua
destinação.
A filosofia reconhece como sua missão, mesmo arriscando-se e num
discurso sempre provisório, sempre a rever, a lógica do que é. Existe filosofia,
quando se renuncia a procurar saídas ou soluções fora dos recursos que nos
oferece a situação presente, mas também há que mobilizar todos os recursos à
disposição, activar todos os meios a começar pelos mais brandos e, se
necessário, ir aos mais radicais. Por isso, se ela sempre privilegiou o diálogo
(Sócrates, Raul F. Bentacourt, Appel), as concertações (Martha Husbawn,
Ortega e Gasset), as petições (Sartre e Foucault), as reformas (J. Stuart Mill,
Furrier), ela também conheceu momentos revolucionários, dos quais Engels e
Marx (únicos que têm ruas consagradas em Moçambique enquanto filósofos)
são um exemplo.
“Tu não serás melhor que o teu tempo, mas do teu tempo, tu serás o
melhor”, escreve Hegel no seu Wastebook de Iena.
Ser ou estar no seu tempo, na melhor das maneiras, significa apreender na
luz (amor pela liberdade que se faz luta pela autodeterminação, unidade entre
etnias e grupos, amor pela paz que se faz diálogo) ou no escuro do passado
(escravatura, colonialismo, guerra de não reconhecimento e de intolerância,
violências, violações, mortes) de um passado que deixamos vir ao presente,
como o que nos pode advertir (Hans Jonas fala do princípio de precaução) das
suas reais potencialidades; ser ou estar no seu tempo significa deixar germinar
nele o apelo em direção a formas mais elevadas de liberdade.
Em outras palavras, se é difícil discordar de Hegel quando diz que a
história constitui a segunda natureza do homem (para Herder é a cultura),
também não se pode ignorar a sugestão nietzscheana de eliminar uma

17
Terceira questão

historiografia monumental, glorificadora de um passado abominável,


prevalentemente violento, substituindo-a por um registo de ideias e estímulos
que possamos selectivamente herdar.

A nossa geração conheceu uma grande aceleração do tempo que foi


acompanhada por metamorfoses axiológicas (valores e contra valores) enormes.
Porém, mais do que anular a importância e a pertinência da filosofia, esta
velocidade me parece exigir um acompanhamento e uma reflexão filosófica
mais aguda. Para realizar estes objectivos, mesmo se não pode fazer a economia
das reflexões anteriores, ela, a filosofia, deve também ser parte de uma
interrogação do tempo no qual vivemos.
Mas, se nos queremos arriscar a dizer qual é a sua especificidade, só
podemos fazê-lo em oposição ao espírito das ciências sociais e das ciências
humanas em geral. A ciência tende a se definir em função da delimitação de um
objecto de conhecimento; existe, por exemplo, uma sociologia que se quer
demarcar da psicologia, da história e isto, desde o seu nascimento. No interior
mesmo da sociologia, surgem sociologias particulares, políticas, jurídicas,
religiosas, económicas. Seus objectos podem obrigar o pensamento a sujeitar-se
a imperativos de exactidão e de definição, e exigir do sujeito do conhecimento
que permaneça na exterioridade.
A filosofia parece-me proceder por uma outra exigência. Ela é guiada,
desde a sua origem, por uma necessidade de compreender o que significa o
facto que os homens vivam em sociedade (viver-juntos), de identificar, na
diversidade dos estabelecimentos humanos onde reina a ideia de uma identidade
comum e a vontade de independência, um pequeno número de formas de
sociedade, pela vontade de descobrir os critérios que constituem o fundamento
desta distinção, da necessidade de desvendar, relativa ou absolutamente, qual é
o melhor tipo de vida ou o melhor regime. Por conseguinte, a questão do poder
está no centro da interrogação do filósofo, e quaisquer que sejam as suas

18
Terceira questão

divisões internas, todas as sociedades são ordenadas por um polo que lhes
assegura a sua coesão e a sua permanência no tempo.
Não se pode dizer que o poder seja exterior à sociedade: ele tem uma face
visível, ele aparece no porte de um mestre ou num grupo que o detém ou
simplesmente o exerce, nos apoios de que ele beneficia numa fação mais ou
menos larga, nos meios materiais utilizados para manter a autoridade. Todavia,
o poder não está na sociedade como um órgão qualquer, pois de qualquer
maneira que ele se traduza na realidade, a sua função é instituir; a distância que
ele gera e alimenta com o conjunto social não se pode medir simplesmente em
termos de relação de força (o poder ao qual todos estamos sujeitos); ele é sinal
de um afastamento da sociedade dela própria, de uma transcendência que torna
sensível a sua identidade através da multiplicidade das suas manifestações.
Neste sentido, a filosofia não se pode satisfazer com a separação
estabelecida de um ponto de vista científico, entre a política de um lado (como o
conjunto de atividades e de relações que tocam ao exercício do poder) e, do
outro, a economia, o direito, os costumes, etc. Como também não se pode
satisfazer com a separação entre o domínio público e o domínio privado.
Por mais importante que sejam as questões relativas à maneira como se
define e se exerce a autoridade política, o desdobramento das instituições nas
quais se manifesta, estas questões abrem-se sobre outras, que têm a ver com o
fundamento da representação do poder, sobre o estatuto daquele ou daqueles
que se julgam encarná-lo. São questões que têm a ver com a natureza dos
critérios de legitimação, da competência e levam-nos a buscar as ligações entre
o político e o religioso, ou entre o político e a ética, e de uma maneira mais
geral, entre o político e o meta-político.
A partir do momento em que nos interrogamos desta maneira, não
podemos dissociar a análise política das relações sociais, pois a divisão em
classes e em diferentes agrupamentos permanentes depende da representação
dos actores e da maneira como ela se exprime e se modifica em função de uma

19
Terceira questão

experiência partilhada dos princípios que regulam a coexistência, isto é,


comandam a noção do que é legítimo e ilegítimo, do que é conforme à natureza,
do que é do domínio do possível ou do impossível, do que é o domínio do
cognoscível.

No caso concreto de Moçambique, seria interessante analisarmos a


diferença entre a democracia popular e a democracia multipartidária, mas
também as dinâmicas e as discrepâncias que o surto repentino do crescimento e
da riqueza suscitam. Analisar-se-iam os efeitos desta mudança em todos os
domínios da vida social e como é que ela afectará a nossa experiência do tempo,
da verdade, da linguagem e da moral.
Ė fazendo este esforço que teremos uma qualquer possibilidade de
descortinar como se produziu esta outra mutação, que favoreceu a emergência
de uma democracia militarizada; em que as metralhadoras são a condição do
diálogo e a possibilidade de ser ouvido.
Talvez fosse necessário interrogar a génese da democracia moçambicana,
que parece trazer em si mesma os germes da sua conflitualidade: imposição
externa (democratismo) logo depois do fim da guerra fria; vicissitudes históricas
e descontínuas da Frelimo; a natureza da Renamo; a natureza ecónomo-cêntrica
da comunidade internacional, suposta garante da democracia; a natureza das
nossas constituições e dos nossos órgãos democráticos; a natureza do poder que
garante o usufruto do Estado e da economia.

A). O Pensamento Democrático

Nos trabalhos precedentes, falei muito do ultra-liberalismo e da


biopolítica, mas talvez não tenha feito uma distinção fundamental entre o
pensamento liberal e a democracia. O liberalismo é reticente, não tanto ao

20
Terceira questão

sufrágio universal, que acabou por aceitar, mas aos direitos sociais e aos direitos
culturais que lhe parecem desfigurar os direitos fundamentais.
Em contrapartida, é necessário que um sistema de valores, incarnados por
instituições adequadas, venha imprimir-se numa cultura e se torne familiar, para
que a democracia evolua, como a história, numa segunda natureza (o que não
pode ser feito sem o respeito da primeira); para que a democracia se mostre
coisa diferente de um simples sistema de instituições a defender; que ela não se
reduza ao pluripartidarismo, às eleições e ao parlamento, mas se transforme em
algo a que cada um se refira ou se possa referir.
Enquanto o pensamento liberal tem como referência a liberdade e procura
construir os modelos a partir das relações entre os indivíduos, sob o postulado
que estes se definem pela sua capacidade de iniciativa; com o pensamento
democrático, afirma-se, ao mesmo tempo, a imagem do indivíduo, a imagem do
povo colectivo, a imagem da humanidade. O pensamento democrático não
autoriza que se confine a relação social à relação inter-individual e, sobretudo,
faz com que o cidadão seja habitado por uma tensão entre a imagem que ele tem
de si próprio, enquanto indivíduo, e a imagem do povo que resvala nas
instituições.
Doutro modo, poderia dizer-se que o liberal é humanista, no sentido que
o indivíduo tem que realizar nele mesmo a sua humanidade, a sua qualidade de
homem, enquanto o democrata é humanista no sentido que a humanidade existe
também na extensão e não somente como atributo de um indivíduo atomizado.
O pensamento democrático não pode aceitar certas modelações
específicas do pensamento liberal, segundo as quais existiria uma boa cultura,
um bom saber, uma justa competição, etc. O pensamento liberal está sempre
tentado a circunscrever no interior da sociedade real a verdadeira sociedade; ele
exclui o que se chama “bárbaros”, homens diminuídos, incultos, os que não
estão à altura, e que, pela mesma razão, não têm o direito de participar nos
debates públicos. O pensamento democrático não pode travar as mudanças: ele

21
Terceira questão

é feito necessariamente para acolher os novos direitos, as novas reivindicações;


ele não pode manter uma oposição de princípio entre os que têm direito e os
outros, quer se trate de educação, de cultura quer de economia.

Como escrevi em Os tempos da Filosofia e na Intercultura, o


individualismo é um dos elementos mais marcantes da nossa jovem democracia.
Na transição da democracia popular à democracia multipartidária, houve uma
sobreposição dos fundamentos do liberalismo num espectro de democracia, em
que o primeiro acabou por se impôr em detrimento do segundo. Isto comportou
uma espécie de dissolução social, onde cada indivíduo acaba circunscrevendo o
seu campo de ação e de experiência simplesmente aos seus interesses, nas
relações com os seus próximos.
Mesmo na vertente jurídica, os direitos são concebidos numa perspectiva
liberal, como direitos dos indivíduos, o que permite a estes, a priori,
defenderem-se contra a usurpação das suas liberdades pelo Estado. Ora, mesmo
se nos focalizamos sobre os ditos direitos fundamentais, como foram elaborados
nas grandes declarações, temos que concordar, que eles dão consistência ao
espaço público: os indivíduos não são considerados como átomos leibnizianos.
Por exemplo, os direitos à expressão não são, como insinua Marx, os substitutos
do direito de propriedade, mas significam que não só a palavra pode ser
exprimida, mas também que pode ser transmitida e entendida, que ela pode
suscitar uma resposta. Existe, no direito de expressão, uma incitação à relação, à
comunicação, que é um fenómeno fundamental para a socialização democrática.
O direito à segurança permite a liberdade de movimento, em outras
palavras, é a condição sine qua non de uma abertura lateral aos outros, de uma
participação de cada um num espaço comum. Ė em razão do significado político
destes direitos que se podem estruturar novas reivindicações, quer sejam sociais,
económicas quer culturais. Se existe uma dinâmica de direitos, ela baseia-se no
facto que as reivindicações que as fundamentam, procedem de uma exigência de

22
Terceira questão

reconhecimento público por parte dos que as formulam, e isto é muito mais do
que um simples desejo de satisfazer os próprios interesses.

2. A CIBER-INTELECTUALIDADE

Depois de uma intelectualidade associativa (os negros de Lourenço


Marques…), de uma intelectualidade da imprensa escrita (Brado Africano…),
de uma intelectualidade militante (E. Mondlane, Marcelino dos Santos, J.
Chissano, A. Guebuza, P. Mocumbe…), de uma intelectualidade literária
(Noémia de Souza, J. Craveirinha...) de uma intelectualidade artística
(Malangatana, A. Chissano...), de uma intelectualidade orgânica (Jorge Rebelo,
Óscar Monteiro, Sérgio Vieira, Aquino de Bragança...); com a reabertura da
faculdade de direito, e sobretudo com a criação da extinta UFICS, assistimos ao
nascimento de uma nova elite intelectual proveniente das ciências sociais:
antropólogos, sociólogos, politólogos, peritos em comunicação.
Um dos aspectos mais relevantes das últimas eleições foi a sua cobertura
massiva pelos meios de comunicação e, com eles, a emergência de uma nova
classe de intelectuais: os ciber-intelectuais.
Depois dos acordos de Roma, nasceu no país a chamada imprensa livre.
Alguns jornais acabaram desaparecendo, como o semanário Demos, outros não
conseguiram vingar. Todavia, os novos mídias que se fizeram ouvir na praça
pública são quantitativamente mais numerosos do que os que desapareceram ou
os que não conseguiram vingar, quer se trate de jornais, quer de canais de
televisões e até mesmo rádios.
O factor mídias, filosoficamente, transferiu agora o espaço público para as
televisões. Já houve momentos, sobretudo na Primeira República, em que as
questões da sociedade eram discutidas nos grupos dinamizadores, círculos,
células, jornais do povo. Hoje, o debate sobre a vida do país faz-se
prevalentemente nos mídias. Isto é tanto mais importante quanto no parlamento,

23
Terceira questão

lugar por excelência da discussão política, não há um verdadeiro confronto de


ideias, dada a desproporção da representatividade dos partidos. E mais grave
ainda, os deputados tiveram tendência, sobretudo na última legislatura, para
privilegiar interesses próprios, em detrimento dos interesses da maioria, o que
acabou levando a um distanciamento com as massas e a protestos por parte da
sociedade civil.
A preponderância e o impacto dos mídias produziu a emergência de uma
nova classe de atores políticos: opinistas, analístas, politólogos, comunicólogos,
que se disputam e são disputados pelos diferentes canais de televisão (TVM,
TIM, STV, Gungu). Estes novos Mídias e os seus atores, para parafrasear I.
Goffmann, cenarizaram a vida política e o processo eleitoral de uma maneira
que nos era inédita, criando até o que podemos apelidar de indústria política.
Como consequência, os mídias despertam os apetites e mesmo a
concupiscência dos partidos com o propósito de controlar a opinião. Assim,
personalidades políticas (que entre nós se confundem muitas vezes com
económicas) ou grupos compraram ou tornaram-se accionistas de certos jornais
e canais de televisão que, à partida, se queriam independentes. Os próprios
analistas, algumas vezes reféns desta disputa pelo controle do espaço público,
dividiram-se entre os que o jornalista Machado da Graça chamou de
macuaquinhas -que brilharam pelo seu unanimismo ou concordismo-; os contra,
por princípio e sistematicamente, e os que, muito poucos, pautaram por algum
rigor de análise.
Esta anormalidade, que infelizmente se tornou regra, é comum, mesmo nas
chamadas grandes e velhas democracias. Assim, nos Estados Unidos, os jornais
de maior tiragem como Washington Post ou o New Iorque Times têm
tendências políticas claramente identificáveis. Na França, a Liberation é da
esquerda e o Le Monde da direita. Aliás existem ainda jornais, como a Croix e a
humanité, que defendem uma visão cristã e comunista respectivamente. Isto
para não falar da Itália onde o antigo primeiro-ministro, Sílvio Berlusconi, é

24
Terceira questão

proprietário não só dos jornais com as maiores tiragens do país, como o Corriere
della Sera, mas é também proprietário de um verdadeiro império de canais
privados que dominam a cena mediática da política italiana.

O estatuto dos Mídias foi alvo de muitas interpretações filosóficos, pois,


desde a sua emergência e difusão, não cessou de incrementar a sua importância
na arena política; basta pensar na lendária BBC, na France-Inter, a RTP Africa,
para não falar em CNN e Aljazira que até se tornaram Mídias globais, embora
sempre com um cunho ideológico bem vincado.
Adorno e Horkheimer4 fazem parte dos primeiros filósofos que se
questionaram quanto ao estatuto dos Mídias, dado que estes já não se limitam a
informar mas formam, de certa maneira, as nossas consciências. Isto vai da
aparente, banal e inocente publicidade (a Nestlé que incita a comprar o leite em
pó ou condicionado que seria melhor do que o leite materno, a 2M que se tornou
nossa cultura e nossa maneira de ser), passa pela formatação das mentes sobre o
tipo de lazer, alimentação, vestuário -as diferentes “stars” de televisão, os
messis, os ronaldos, no futebol, os jordans no basket usam roupa que se espera
nós imitemos para estar na moda. As senhoras, em Moçambique, sofrem
literalmente com o sapato de salto alto brasileiro que invadiu o nosso mercado,
e não há uma que se respeite que não tenha uma bolsa cavalinho.
Esta estratégia de informação-formatização vai até o ponto de fazer
concorrência aos educadores tradicionais ( pais, escolas, igrejas), veículos da
moral coletiva e individual. Ė neste contexto que os dois filósofos alemães
falaram dos Mídias como alienação.
Todavia, este juízo crítico tem os seus opositores. Assim, o filósofo italiano
Gianni Vattimo, pai do “pensamento fraco”, vê nos mídias uma possibilidade de
emancipação, sobretudo para as populações cujos saberes, epistemologias e
4 Adorno e Horkheimer indústria cultural, São Paulo, 2004

25
Terceira questão

estéticas foram marginalizados pelo universalismo etnocêntrico que dominou o


panorama mundial, desde a emergência da época moderna.
Contudo, uma vez que o que nos ocupa, in primis, não são os Mídias, mas os
ciber-intelectuais, então a questão do seu estatuto tem que ser subordinada a
uma outra: o que são os intelectuais?
O termo intelectual foi criado pelo presidente francês Clémenceau, em
seguida a um posicionamento crítico de um grupo de jovens escritores,
encabeçado por Émile Zola, contra a condenação injusta e racista pronunciada
contra o oficial judeu Dreyfus5.
O neologismo intelectual designava, na sua origem, uma vanguarda cultural
e política que ousava desafiar a razão de Estado. Esta palavra que, em princípio,
devia desaparecer depois da resolução da crise politica, perpetuou-se, quer para
designar um grupo social, quer para qualificar uma maneira de olhar para o
mundo social em nome de valores universais contra as hierarquias
estabelecidas.
Se considerarmos o conceito nesta perspectiva, não basta ser detentor de um
diploma para ser considerado intelectual, nem sequer seria suficiente ter
vocação para intervir nos meios de comunicação. Na esteira de Raymond Aron 6,
podemos definir o intelectual também pelo seu modo de intervenção social. É-se
intelectual quando se faz sentir a própria voz a propósito de algumas questões
de interesse geral, quando se assume a função de interpelador, quando se
mobiliza um arsenal de instrumentos racionais que testemunham da vontade de
transcender a própria opinião em proveito de um uso coletivo.
Da mesma maneira que o diploma não confere necessariamente o estatuto de
intelectual, um professor universitário que se isola no seu ângulo e se limita a
leccionar não é necessariamente alguém que possamos apelidar de tal. Do

5 CHARLE, Christophe. Naissance des intellectueles. Paris, les editions de minut, 1990.

6 Cf. RIEFFEL, Rémy. La tribu des clercs: les intellectuels sous la Ve Republique.
Calmmann-Lévy : CNRS Editions, 1993, pp.76

26
Terceira questão

mesmo modo um pintor, um músico, um cantor, um arquiteto que realiza o seu


trabalho no simples quadro do seu domínio de predileção não há-de a priori, ser
considerado intelectual, pois não sai daquilo que Kant chamava de condição de
menoridade.
Ė verdade que um homem de cultura não pode ficar continuamente longe
das preocupações da vida da cidade e que um certo tipo de criações estéticas se
parecem com um engajamento politico. A escrita (Noémia de Souza, Mia
Couto, Jorge White) como a composição musical (Azagaia…) ou a pintura
(Malangatana, Chissano, Norberto Dias) permitem muitas vezes a tomada de
posição, não obstante as recusas ou as negações. Isto significa que a categoria
de intelectuais não se resume a peticionistas, mas existem outras formas de
intervenção cívica.
Seria interessante que se fizesse uma espécie de cartografia dos lugares de
encontro e de debate de ideias entre os intelectuais locais. As universidades
deveriam ser os centros privilegiados de produção e de debate de ideias. Mas
entre nós, elas se ocupam prioritariamente de questões administrativas e da
fofoca. Contudo, em Maputo existem, felizmente, lugares informais de encontro
e de debate de ideias: a Associação dos Escritores, a Associação dos Jornalistas,
as Barracas do Museu, o Núcleo de Arte, o Café Estoril pelas manhãs, os
almoços das quartas-feiras no Centro dos Estudos Africanos, etc.
O prelúdio positivo da participação activa e cívica de intelectuais no debate
público, alcançou talvez o seu apogeu no encontro entre quase cinquenta
intelectuais e académicos na universidade “A Politécnica”, durante o recente
período das hostilidades militares. Ė evidente que não compareceram todos os
intelectuais moçambicanos. Aliás, talvez até tenham participado os que o meu
velho professor de filosofia (Adolfo Duro) chamava de intelectualóides.
Contudo foi um marco importante, na medida em que o encontro se queria uma
tomada de posição sobre a situação político-militar que se vivia no país e
culminou numa declaração pública.

27
Terceira questão

Não abundam, é claro, entre nós, reuniões destas, mas a esperança é que
aquele encontro tenha sido o primeiro de entre muitos, com uma metodologia
não de simples observação e análise, nem sequer de puro criticismo, mas de
propostas concretas no que se pode e deve melhorar nos vários campos da
sociedade.
Aliás, o que hoje se chama 20/25 começou como simples encontros entre
alguns académicos (Eduardo Sitoi, Filimone Meigos, Elísio Macamo, José
Castiano, Obede Balói, Luís de Brito, Severino Ngoenha) com vista a juntos
exercermos a nossa cidadania, alimentando com ideias e propostas a evolução
da nossa jovem democracia.

A) A Intelectualidade Africana
Matias Dussou 7, antropólogo do Benin, dividiu os intelectuais africanos
em duas categorias: os tradicionais e os modernos. Na ideia de Doussou, os
intelectuais africanos são sábios, mas sobretudo, na tradição dos griots da África
Ocidental, são os conservadores da memória coletiva; poderíamos chamá-los de
historiadores. Hampâte Bá ficou famoso pela sua célebre frase, “quando um
velho morre é como uma biblioteca que se queima”.
O romance Raízes do jornalista e intelectual afro-americano Alex Halley, é
um exemplo soberbo da historiografia tradicional. No esforço de satisfazer um
velho sonho familiar, Halley vai à busca das suas origens, ou se quisermos da
terra natal do antigo escravo Ngunta Nguite que, apesar de todos os dissabores
da escravatura, vendas a diferentes donos, torturas, sofrimentos, mantivera
firme a vontade de transmitir aos descendentes a notícia da sua origem. Com o
passar do tempo, a única coisa que permanecia na memória da nova geração era
o nome.
Quando, na segunda metade do século XX, um século depois do fim da
escravatura, Halley vai à procura das suas origens, mobiliza arquivos,

7 Tese de Doutoramento não publicada. Universidade de Lausanne, Suiça, 2004.

28
Terceira questão

bibliotecas, sábios, antropólogos, linguistas (…). Depois de um estudo


multidisciplinar, conseguiu identificar a região da origem provável do nome.
Depois, através de um trabalho de colaboração entre antropólogos,
historiadores, bibliotecários, conseguiu-se identificar os dados concernentes à
data da deportação, o nome do navio que o transportara, o país e a região de
proveniência de Nkunta Nkinte.
Mas a última prova tocava à historiografia local, à tradição oral, à tradição
dos griots. Ė assim que um velho, que conservava a memória colectiva, foi
chamado a narrar a genealogia da família Nkinte. Depois de se referir às origens
do criador da estirpe, o ano de chegada, o casamento, o número de filhos; o
velho historiador, a certo ponto, numa coincidência que fazia justiça ao saber
tradicional, narrou o desaparecimento do Jovem Nkunta Nkinte que se tinha ido
lavar no mar. A coincidência factual confirmava a investigação moderna, uma
modernidade que precisou da confirmação da historiografia tradicional.
A divisão de Doussou da intelectualidade em tradicional e moderna é
importante, na medida em que reconhece e faz justiça aos saberes das tradições
africanas; mas também é um reconhecimento da existência de hermeneutas, de
sábios, de visionários no interior das culturas endógenas. Há inúmeros exemplos
dessas personalidades, como é o caso do saudoso Viegas de Nampula, sobre o
qual, José Castiano prepara uma publicação.

No mundo das artes, homens sábios souberam sublimar conflitos através de


representações dramáticas como forma de recompor as relações sociais. O caso
dos timbilas é o mais notável. Os tsawos contêm uma parte cénica e outra
poética. O coreógrafo põe frente a frente os combatentes chopis e changanas (ou
zulos). Porém, o desfecho final é a vitória da arte sobre a guerra, a exaltação da
paz contra o conflito e da unidade contra as divisões8.

8 Moira Laffranchini-Ngoenha, Tese não publicada. Universidade de Zurique, Suiça, 2008.

29
Terceira questão

Os poemas chopes não são anónimos, como tentaram provar certos


etnomusicólogos. Aliás, no estudo das timbilas, Hugo Tracy reconhece a
grandeza dos poemas de Komukomo e Katini. A magnitude destes poetas não
está só na forma e na composição, mas também no conteúdo, que é claramente
político e social. Esta tradição manifestou-se com uma força particular na
tradição dos Espirituals, Blues e Jazz e no testemunho das recolhas poéticas que
Weldon Jonshon chamou de God Trombones. São estes poetas e escritores que
estão na base do que o filósofo Alain Locke chamou Black Renaissance e que
constitui o inicio da intelectualidade negra moderna, no sentido de Doussou.
Os “New Negros” do Renascimento de Harlem não se puseram o problema
da intelectualidade como os franceses do século XIX. Antes mesmo do início do
Renascimento (1920-1940), existia a convicção, expressa por William DuBois
que, para uma comunidade avançar, necessita de ter pelo menos dez por cento
da sua população bem escolarizada e com talentos intelectuais e não só de uma
educação no saber fazer, da qual Booker Washington tinha feito o seu cavalo de
batalha, mas de uma educação que lhes permitisse integrar todos os domínios da
sociedade.
No pensamento de DuBois, esta elite intelectual tem a responsabilidade de
carregar nos seus ombros os problemas da inteira população e sociedade. Trata-
se portanto, de uma elite intelectual mas também moral.
A questão da responsabilidade social dos intelectuais voltou a estar na ordem
do dia nas décadas de 40 a 60 entre os estudantes em Paris que, nesses anos,
criaram o movimento da negritude. A posição de Cézaire, Senghor e sobretudo
Fanon, é análoga à posição dos afro-americanos. Ser intelectual significa
assumir as suas responsabilidades com o país e o povo, não com um partido,
uma força politica ou uma pretensa história monumental.
Os Afro-Americanos, depois da emancipação da escravatura em 1865,
votaram pelos republicanos anti-escravagistas. Passados alguns anos,
retornaram em massa para votar nos democratas. Não foi porque queriam voltar

30
Terceira questão

para a escravatura, mas porque, na conjuntura, em que viviam, os democratas


pareciam responder melhor aos seus problemas. Não se trata também de uma
fidelidade cega a um discurso, o que levou Cezaire a abandonar o partido
comunista. Como também não se pode fechar os olhos à discrepância entre o
discurso e a prática. Frantz Fanon, depois de ter aderido às teses da negritude,
acabou sendo, devido às suas práticas, um dos seus maiores opositores.
Pode-se amar o próprio país, e pensar que também outros o amam, mas
talvez de um amor diferente que complete o nosso. Pode-se ser fiel a um ideal
de liberdade e pensar-se que ele só será justo quando for extensível aos outros.
Foi o que fizeram Sartre, Leiris ou Levy-Strauss que não hesitaram, contra a
França, apoiar a luta pela independência dos povos africanos; é o que faz ainda
hoje o linguista americano Chomsky, quando denuncia a violação dos direitos
humanos por parte do seu país.
Pode-se ser membro de uma família política, mas exactamente por isso, há
que se ter a ousadia de dizer o que não vai bem, para que ela possa melhorar; é
o que tem feito entre nós Jorge Rebelo.

Em 1990, em Paris, Jack Lack, o então ministro francês da cultura,


organizou uma exposição intitulada “O Desafio Formal Maconde”. Era a
primeira vez que artistas escultores africanos expunham no nobre espaço do
“Petit Palais”, construção erguida para a exposição universal de 1900, e desde
então reservada à arte ocidental.
O que esta exposição punha em evidência era a revolução formal que os
Macondes tinham operado (das máscaras iniciáticas às esculturas geométricas),
sem nenhuma forma de mediação ocidental, como é o caso da maior parte da
arte africana produzida depois do cubismo de Picasso, Braque e Matisse. Por
isso mesmo, os museógrafos a consideraram moderna, mas de um modernismo
formal. Porém, a modernidade ou auto-reflexividade da arte maconde não tem
simplesmente a ver com as suas formas; os motivos formais estão

31
Terceira questão

intrinsecamente ligados à mensagem que pretendem veicular: a constante


proposição dos “Ujamas”, dos motivos de família, das árvores geneológicas, do
entrelaçamento entre os humanos. A arte maconde parece-me esconder, ao lado
da sua dimensão formal, uma proposta política e moral para a sociedade.
A terceira vertente da intelectualidade tradicional situa-se no direito. O
direito tradicional pauta por uma atitude de recriação da dimensão das relações
sociais entre cidadãos, o que Mandela chamou de Abuntu, e na África de Sul do
hoje se tem chamado de Ubuntu9.
No Sul de Moçambique, existe a figura do Madoda. Esta velha personagem,
cujos feitos encontramos narrados nos trabalhos de missionários como Liegme
e antropólogos como Junod, era o homem sábio, ponderado, interessado no bem
comum e na coesão da sociedade. Esta figura de sábio e de reconciliador, no
direito tradicional em oposição ao direito positivo, foi indiretamente
reconhecida pela Frelimo quando se criaram os grupos dinamizadores. De facto,
um dos actores centrais dos GDs era o responsável dos assuntos sociais, o velho
Madoda, convertido ao socialismo e à democracia popular que, escolhido pelos
seus princípios éticos de integridade, mas também pela sua capacidade de
ponderação e de sabedoria assumia integralmente o seu posto.
Ė interessante constatar que os primeiros estudantes e intelectuais africanos
provinham das elites locais, que supostamente associavam em si a dimensão da
elite política e intelectual. Não foi por acaso que André Clerc intitulou o livro
que escreveu com Eduardo Mondlane de Xintlangu filho do chefe, como que a
insinuar que a legitimidade do estatuto de líder intelectual moderno dependia,
de certa maneira, do estatuto que o sujeito tinha na sua própria tradição.
A mesma leitura se pode fazer de algumas figuras históricas da
intelectualidade africana, como J. Kenyata, Senghor, Nkrumah, ou ainda do
líder carismático Nelson Mandela, que aparece em primeiro lugar como oriundo
das elites Khosas.

9 NGOENHA, in Pensamento Engajado, Educar, 2011.

32
Terceira questão

Num dos melhores romances filosóficos africanos, Cheik Hamidou Kane


mostra claramente que, no conflito de culturas que a presença europeia
provocou em África, os que tinham que ir, como eclereurs, experimentar o novo
saber ( a arte de ganhar sem ter razão), o saber europeu ou moderno, eram os
filhos da elite, porque estavam mais bem armados para suportar os choques
entre as culturas e sobretudo para fazer a síntese entre o tradicional e o
moderno.
Assim, a primeira parte do romance mostra o filho do chefe, Samba Diallo,
acompanhado pelo mestre, facto que recorda de perto a educação de Alexandre,
o Grande, sob a direcção de Aristóteles. Tal educação era rigorosa, baseada
sobre princípios e valores da tradição do grupo de pertença, os Dialobes. Depois
de um longo caminho e de uma formação sólida nos valores da moral
tradicional, Samba Diallo estava pronto a confrontar-se, quer com Descartes
quer com Karl Marx, o que vai fazer na Sorbone, em Paris.
A questão que se levanta é a relação entre essas intelectualidades. Serão
essas tradições compatíveis? – pergunta-se o filósofo P.E.A. Elungu, no livro,
Tradição Africana e Racionalidade Moderna. Só que Elungu, bem como
Doussou, limitam-se a duas tradições, mas, na verdade, omitem uma outra: a
intelectualidade que resulta do encontro entre a tradição e a modernidade, e tem
nos intelectuais ditos modernos, os seus representantes mais significativos.
Ė que os doutos africanos modernos pertencem a dois mundos, a duas
culturas: à tradição oral e à tradição escrita; falam e pensam em línguas
europeias e africanas, referem-se a dois mundos de representações e de valores.
Em suma, eles são Chitlangus e modernos; são dialobes e leitores de Descartes e
Marx. Ignorar isso, significa não ter em conta os intelectuais africanos
modernos, pois, sejam eles favoráveis ou contrários à complementaridade entre
a tradição e a modernidade, eles vivem na conjunção do seu diálogo.

33
Terceira questão

Mas limitar-se a duas tradições como fazem Ilungu e Doussou é também


omitir a intelectualidade pós-moderna, da qual a ciber-intelectualidade provém e
os mídias são o maior veículo.
Enquanto a dupla cultura propulsiona a intelectualidade africana moderna
para uma interculturalidade e um duplo referencial axiológico, a pós-
modernidade, relativista, empurra os ciber-intelectuais a caírem numa
concepção atomizada do sujeito humano; num relativismo moral ou mesmo
numa pós-moral (e pós politica), como defende Gilles Lipovetsky.
A filosofia africana nasce no inter-caminho da tradição e da modernidade.
Isto, não só porque ela surge na intersecção da antropologia – que se supõe
estudar os povos tradicionais – e a sociologia – vocacionada a estudar as
sociedades modernas-, mas também porque, nasce posicionando-se nesse fio de
meada. Ela nasce numa balança, cuja inclinação depende do peso do filósofo:
visão antropológica da tradição para os etnofilósofos, e perspectiva crítica para
os filósofos da corrente crítica. Basear-se na antropologia, porém, significa
referir-se a uma divisão epistemológica própria da modernidade, como também
o afastar-se dela (da antropologia) ou criticá-la ou mesmo questionar o seu
estatuto – como faz Eboussi Boulaga na Crise da Munthu – implica confrontar-
se com ela.
Se concordarmos que, na verdade, existem não duas, mas quatro tradições de
intelectualidade: tradicional, moderna, intercultural e pós-moderna, o elemento
novo, que aliás constitui também, para o próprio ocidente, uma aquisição
recente, está na última das quatro, no neologismo “ciber-intelectualidade”.

A partir da segunda metade do século vinte, os mídias conquistaram, no


ocidente, o estatuto de quarto poder. Com as revoluções digital e numérica, eles
aumentaram a sua presença e pressão sobre a sociedade. As ciências sociais e
morais estão, lá no ocidente, muitas vezes, sem fôlego para acompanhar a
aceleração do tempo. Nós temos tudo simultaneamente: do avanço da imprensa,

34
Terceira questão

até aos internet cafés – mal domesticado, isto é, de natureza a criar confusão, e
sobretudo a agravar a nossa crise de representação e moral!
Não é a técnica que está em causa. O problema é que ela deixou de ser a
“tecné”, prolongamento dos sentidos do homem; deixou de ser um meio, e
transformou-se num fim, o que acarreta consequências morais graves.

B) Filosofia e Comunicação
Nestas intelectualidades múltiplas, existirá uma particularidade da filosofia?
Existirá uma especificidade no âmbito do desdobramento dessas
intelectualidades no campo da comunicação?
Desde Kant, teceu-se uma relação entre a filosofia e a comunicação. A
história desta ligação está também ligada ao contrassenso sobre Kant, de
maneira particular, ao facto de se fazer de uma questão crítica, uma espécie de
imperativo antropológico, confundindo o alargamento do pensamento com a
amplificação do debate.
Mais próximo de nós, Jurgen Habermas, continuador da escola de
Francoforte, propõe-se refundar uma forma de racionalidade crítica e iluminista.
O esforço de Habermas parte do conceito de verdade intersubjetiva e do
projecto de realizar uma ética do discurso ou da comunicação, cujo pressuposto
teórico é a teoria da argumentação retórica. A sua perspectiva inscreve-se num
paradigma transcendental construído sobre o ideal de uma comunicação
ilimitada entre os sujeitos, onde a noção de verdade e da objectividade são
reformuladas no interior da comunicação e das condições da argumentação, e
por esta razão tem que se avaliar o devir e as diferenças existentes entre os
participantes do discurso.
O horizonte do agir comunicativo produz uma mudança de paradigma, uma
vez que se transita da teoria do sujeito à concórdia comunicativa da
intersubjetividade, onde o que domina é a teoria do discurso como condição

35
Terceira questão

implícita das relações humanas e o acordo entre os participantes alcança-se fora


do melhor argumento.
A comunicação pode ficar prisioneira de uma falsa consciência e ser
deturpada por mau entendimento e incompreensões produzidas por uma
organização errada do discurso.
Só as condições idealizadas por uma condição ilimitada podem legitimar o
consenso em termos racionais. O privilégio que ele acorda aos aspectos
normativos e ideais da comunicação, para além de orientarem o seu pensamento
em direcção à reconstrução de uma racionalidade ideal, levam a argumentação
retórica até à estrutura transcendental da argumentação.
O discurso retórico é considerado, em primeiro lugar, pelos efeitos que
produz. Esta concepção prossegue a imagem tradicional da técnica de persuasão
discursiva, uma vez que interpreta como arte de induzir a um consenso em
questões que não podem ser resolvidas com a força da demonstração. O que
pode imperar é a deformação desta comunicação, por interferências que o autor
chama de ideológicas de um lado e psicanalíticas do outro.

Não será a mídia o espaço hoje mais propício para realizar o ideal iluminista
e democrático da comunicação intersubjetiva?
Os mídias apresentam-se, a priori, como um lugar de discursos múltiplos, de
uma multiplicidade de agentes de enunciação, multiplicidades que se podem
opôr ao discurso solitário de um livro. Em virtude desta multiplicidade, os
mídias seriam o lugar privilegiado de intercâmbio, de discussão, de diálogo,
espaços tangíveis da liberdade do pensamento, da livre circulação de ideias, em
suma, o termómetro para medir a saúde de uma democracia.
Porém, três tipos de reservas podem ser levantadas e levam os filósofos a
desconfiar e a estar distantes dos mídias:
Primeiro, a velha distinção platónica entre duas formas de saber irredutíveis
uma à outra. De uma lado, a epistemé (verdade) e do outro, a doxa (opinião). A

36
Terceira questão

filosofia seria o discurso justo e verdadeiro sobre as coisas, legitimado pelo seu
rigor e racionalidade. Só ela, enquanto ciência dos conteúdos do real, tem o
poder de conhecer e separar, segundo critérios lógicos e racionais o verdadeiro
do falso, o bem do mal, o justo do injusto. Ao mesmo tempo, só ela teria a
capacidade de distinguir a argumentação útil do conhecimento da argumentação
orientada para o engano e a simples obtenção do sucesso.
Estes dois modelos de pensamento trazem à luz duas diferentes concepções
da linguagem: a primeira vê nela um instrumento de mediação social através do
qual, a comunidade humana articula regras de convivência civil; a segunda
considera-a como um simples meio de ornamentação, subordinado à expressão
ou à comunicação das ideias e dos conceitos.
Alguns filósofos questionam se a mídia não estaria próxima a uma certa
retórica, linguagem privilegiada dos sofistas, se não seria, por natureza, privada
de todo o tipo de conteúdos sociais, políticos e cognoscitivos.
A distinção platónica entre a epistemé e a doxa é deveras importante. A
palavra teoria significa, etimologicamente, ser testemunha, aquele que viu,
assistiu, e porque viu, sabe. Por isso mesmo, o seu testemunho, a sua opinião é
fundado, baseia-se num conhecimento de causa.
Quando se convida alguém, como me aconteceu, a ser comentador sobre
questões globais (emissão da TVM em que participavam os filósofos Alberto
Ferreira e S. Ronguane), a única coisa que podia fazer era simplesmente repetir
aquilo que não testemunhei, que não sei, mas me foi contado ou ouvi de uma
outra pessoa ou fonte: rádios, outras televisões, internet, etc. O pior é que nem
sei se as minhas fontes foram testemunhas do facto que se supõe se comente, se
provém de uma agência fiável ou se é uma construção política. Na verdade, se
tivesse sido convidado a comentar sobre as supostas instalações nucleares de
Saddam Hussein antes da segunda guerra do Golfo, teria talvez, como papagaio,
repetido como fizeram os comentadores, sobre a presença e o perigo que elas,
apesar de não existentes, representavam para a humanidade.

37
Terceira questão

Assim, a questão nem sequer está na distinção platónica, mas reside no


valor mesmo da minha doxa (que é uma autêntica paródia) e no meu estatuto,
que acaba confundindo-se com a própria televisão enquanto instrumento. Se se
trata de um instrumento por onde passam as informações, eu tenho exatamente
o mesmo estatuto.
Por exemplo, de uma maneira geral, a comunicação social africana foi
favorável à primeira eleição do presidente Barak Obama, por razões discutíveis,
apesar de termos a atenuante da horrenda história da escravatura e da
descriminação.
A comunicação social europeia fez uma campanha indireta, não a favor de
Obama, mas contra Bush e contra os republicanos. Porquê? Não foi,
principalmente, por causa da invasão do Iraque. Aliás, os europeus lá voltaram e
tiveram mesmo até a iniciativa de fazer o mesmo na Libia. A razão estava no
unilateralismo.
A política americana, durante todo o período da guerra fria, privilegiou, ou
fingiu privilegiar, uma política de concertação com os seus aliados - o que lhes
dava, aos aliados, a presunção de continuarem a ser potências e protagonistas na
política mundo, a que a presidência Bush pôs termo.
O que é que nós temos a ver com o unilateralismo ou o multiculturalismo?
Em quantos encontros de discussão sobre a política- mundo participamos? Mas
como as nossas fontes de informação vêm das ligações históricas com a
Europa, repetimos a ladainha deles nas nossas redes de comunicação, sem nos
questionarmos quanto às razões verdadeiras das diferentes posições.
Então a crítica de Adorno e Horkheimer quanto à alienação dos mídia,
concerne em primeiro lugar e sobretudo aos ciber-intelectuais.

A segunda reserva, de certa maneira anti ou pós platónica, vem-nos de


Jacques Derrida – e nisto podíamos acrescentar Paulin Hountondj, – quando

38
Terceira questão

afirma que a filosofia se descobre solidária de uma escritura 10. Com esta
afirmação, Derrida pretende dizer que a filosofia herda o seu pensamento do
passado, e com base nele constrói – em continuidade amigável ou num dissenso
polémico- as teorias, através de um conjunto de textos, isto é, de tecidos de
palavras que têm tramas constituídas por muitos fios. Referir-se a estes fios
antes das tramas, significa aproximar-se dos textos com respeito pelo seu
caracter compósito, multiforme e nunca unívoco, pondo de lado esquemas
historiográficos pré-estabelecidos e cânones interpretativos rígidos.

Um terceiro argumento vem do próprio Habermas, que chama atenção para


o perigo de uma comunicação deformada11, que pode ser produzida pela força
de coação que representam as ideologias. Se pensarmos nos mídias
contemporâneos ligados à esfera politica, é fácil verificar que jornais e
televisões, ao mesmo tempo que reivindicam a sacrossanta liberdade de
imprensa, estão ideologicamente orientados. O paradoxo moçambicano é a
coexistência de uma imprensa livre com um suposto G40.

3. A PÓS-POLÍTICA
Um dos aspectos mais controversos da etnofilosofia, e sobretudo de Placide
Tempels (A filosofia bantu), foi pretender que os africanos não fossem capazes
de pensar com a própria cabeça. Os africanos seriam desprovidos de todo e
qualquer pensamento individual, limitar-se-iam a ir colher num antigo depósito
comum as suas ideias e valores. Por isso, carecem de ideias individuais e
pensam todos a mesma coisa. Houtondji e Laleye 12 opuseram-se a esta visão do

10 Entrevista no colectivo a que pensam os filósofos, Paris, 2011

11 HABERMAS, J. La pretesa di universalità dellérmeneutica, in Ermeneutica e critica


dell’ideologia (1971) tr.it.di.G. Tron, Brescia, Guerniana, 1992, p.134.

12 Cf. Severino Ngoenha. Das Independências às Liberdades, pg97. Paulinas, 2014.

39
Terceira questão

pensar africano e acusaram Tempeles de ter uma visão unanimista ou


concordista do africano.

A) O Unanimismo Ciber-Intelectual
Se a crítica de Houtondji contra Tempels é justificável e pertinente, a
visão tempelesiana tem a sua aplicação nas nossas ciber-intelectualidades. De
facto, o que pensar, quando se vêem emissões inteiras em que os painelistas se
repetem uns aos outros, até com as mesmas palavras? Como disse o meu colega
do painel, como diz o Dr. Fulano, sincrano ou beltrano, (…); estamos num
unanimismo da doxa, não só contrário à epistemé, mas também ao diálogo, à
contraposição de ideias e por consequência à própria democracia que as
emissões pretendem manifestar.
Trata-se de uma doxa sem doxa, que repete a doxa dos que doxam sem
doxa !
Contudo, a ideologia não é só macuaquismo, mas é também confundir a
liberdade de opinião com um anti-macuaquismo de principio. Há jornais e
canais de televisão em que os mestres e os discípulos da nova religião nunca
têm ou podem ter razão, nunca podem ter uma ideia correta. Isto é também
intelectualmente desonesto. O que torna comum estas duas classes é o conceito
gramesciano de organicidade. Um dos macuaquianamente orgânicos e outros
contra-orgânicos.
A história da filosofia é também a história de relações problemáticas não
só com os conteúdos, mas também com as suas formas; problemáticas quer
dizer polémicas e estratégicas. Há momentos em que a relação com as formas é
uma relação de força, uma política do pensamento, lugar de conflito com outras
formas de saber ou de exposição. A forma, na filosofia, como em outros
saberes, não é extrínseca, ela liga a apresentação com a exposição, ela não
reflete o pensamento, ela é o pensamento sob uma forma.

40
Terceira questão

De vez em quando, os filósofos vão procurar os seus elementos fora das


estruturas de exposição herdadas da tradição. Porque não podíamos então
imaginar que eles captem o sistema que domina a opinião? Mas isso seria
postular que o pensamento substituísse a opinião, que ele a expulsasse, e ter-se-
ia assim um lugar vazio a ser preenchido. Bastaria meter um pouco de reflexão
nos artigos, compassar as palavras, e os mídias se metamorfoseariam para
tornar-se espaço de comunicação absoluto.
A segunda ilusão seria pensar que o pensamento existe exclusivamente na
palavra, ou na escrita, num curso ou num livro; que a imagem seria desprovida
de pensamento e fazer da imagem o grande outro do pensamento ou então
deplorar a oposição entre a filosofia e os mídias sobre o fundo de conflito de
galáxias Gutenberg e Marconi.

Contudo, não se pode concluir por uma impossibilidade radical entre a


filosofia e a mídia.
A ideia de Platão, quando ele falou da democracia, tinha a ver com a
existência de um espaço, “Agora”, onde cidadãos livres se encontravam para
deliberar, quer quanto à organização do próprio debate, quer quanto a maneira
como ele se devia terminar por um ato de poder, quer ainda quanto à gestão da
cidade e aos objetivos a confiar-lhe.
Como os homens livres no seu tempo, eram poucos, uma praça podia
servir de palco à democracia. Contudo, gradualmente, as nações foram sendo
geograficamente maiores, as questões a discutir mais imbricadas, o número de
participantes mais considerável, a agora teve que ganhar uma nova
configuração. Ao mesmo tempo, a ideia da democracia como participação e
deliberação de todos os cidadãos foi tendo uma maior efetividade, pelo menos, a
nível teórico.

41
Terceira questão

Contudo, em nenhum lugar, os cidadãos puderam efetivamente participar


todos. Por motivos díspares, existiram sempre aqueles que ficaram à margem do
debate.

Os mídias, para utilizar a linguagem de Vattimo, poderiam ser uma


ocasião de participação do maior número, e neste sentido, jogariam para a
sociedade democrática um papel muito relevante. Contudo, como disse, a sua
alienação pelo Estado ou pelos partidos políticos fazem deles uma ocasião-
problema. Eles podem fornecer ocasião hipotética de participação do maior
número, mas também de alienação e mesmo falsificação dos pleitos eleitorais.
Podem ainda dar também uma falsa impressão de participação.
De facto, quando se olha para a aparelhagem de meios que concorriam
para dar informações sobre o andamento das eleições – jornais, canais de
televisão, rádios – tem-se a impressão de uma nova agora, mais adequada para
as circunstâncias actuais.
As emissões eram cotidianas e em todos os horários; mesmo os
considerados mais nobres. A isto se deve acrescentar a natureza do trabalho que
era feito. Nos telejornais tínhamos informações do que supostamente acontecia
em todo o pais, desde os comícios e marchas dos candidatos, passando por
apelos de figuras nacionais, até a uma participação massiva e cívica.
Líamos artigos de fundo com posicionamentos ousados dos editorialistas.
Nos debates, havia, para além dos analistas, a intervenção dos próprios
protagonistas; o público tinha alguns momentos (poucos) de antena para fazer
perguntas aos diferentes painéis e tecer considerações, fazer criticas e dar as
suas opiniões.
Contudo, se analisarmos cuidadosamente o que se passou, damo-nos
conta de que, no fundo, o que havia era uma aparente participação de todos. De
facto, os jornais semanais ou quotidianos vendem prevalentemente da avenida
Julius Nyerere até à estátua de Eduardo Mondlane. Nas zonas periféricas, onde

42
Terceira questão

vive a maioria da população de Maputo, com excepção de qualquer estação de


gasolina, não há jornais. Nas outras regiões do país, tem que se esperar dias ou
semanas para que os jornais cheguem, e quando chegam, muitas vezes, as
notícias que trazem já estão ultrapassadas.
Quanto à televisão, não é difícil ver que a maioria dos moçambicanos não
têm receptor, e mesmo que tivessem, as zonas do país sem eletricidade são de
longe as mais extensas. Neste sentido, ter televisão, seguir as notícias,
acompanhar e participar na agora é exceção e não a regra. Mais importante
ainda é que as zonas sem eletricidade e com menos aparelhos de televisão são as
mais povoadas do país. O que leva a inferir que a nossa democracia é de poucos
e esses poucos são os que têm mais posses. No fundo, estaríamos mais perto de
uma oligarquia do que de uma democracia. Os mídias cobrem o país, mas não
as pessoas. Cobrem a geografia física, mas não a geografia humana.
Mais do que híper-política, o que acontece, de facto, enfatizado pela
mídia, é a emergência de uma política espetáculo, na qual o público se apaixona
do lado que diverte, jornalisticamente mais impressionante que o da dinâmica
do poder e da dialéctica da política. O que o povo faz é seguir o espetáculo
como expetadores atentos. Mas um espectador é sempre um espectador. Mesmo
que ele comente o jogo entre a Liga Muçulmana e o Ferroviário da Beira, que
faça críticas ao treinador, a este ou àquele atleta; que ele tenha ideias de como a
equipe devia jogar, quem deveria ser substituído. Todas estas considerações não
o tiram do seu lugar e do seu estatuto de espectador.
Os mídias são uma espécie de visionismo que dá a impressão de uma
relação próxima, directa, de aproximação entre os atores políticos e a sociedade.
Porém, isso não faz outra coisa para além de introduzir uma ulterior dificuldade,
na medida em que a interpretação política foi substituída pela política como
representação dominada pelos peritos em comunicação.
Se ligarmos este facto a um outro, o da não existência de programas
claros, estaríamo, na realidade, a viver não uma época hiper-política, com uma

43
Terceira questão

participação de quase todos os cidadãos, mas uma democracia pós-politica, quer


dizer, sem ideias.

Quando a Frelimo chegou, em mil novecentos e setenta e quatro, mas


sobretudo depois da independência, podíamos estar ou não de acordo, mas havia
uma orientação política clara. Foi exactamente contra essa orientação política
clara, que a Renamo se constituiu.
Como tive ocasião de dizer e escrever em outras ocasiões, os
posicionamentos eram ligados à marcha da história mundial; fazia-se a divisão
do mundo entre a esquerda e a direita. Dado que a Frelimo se tinha alinhado ou
tinha sido alinhada na esquerda, a oposição situava-se logicamente na direita.
O fim ideológico mundial acabou com a guerra em Moçambique. Mas o fim da
nossa guerra significa o fim ideológico e o alinhamento de todos à direita do
xadrez politico.
Moçambique não foi um caso exceptional. Com efeito, muitos partidos
comunistas simplesmente despareceram, muitos socialistas também, as estátuas
dos grandes profetas foram abatidas, e as esquerdas ou os protagonistas das
esquerdas de ontem passaram à direita. A viragem da Frelimo foi temerária, mas
penso que os principais atores, infelizmente, vivem bem com esta situação.
O único problema é que a dimensão do político deixou de ser pertinente,
e é talvez Fukuyama que tem razão quando fala do fim da história. Em todo o
caso, a não ser que a história renasça, e oxalá com outro teor, desde a queda do
muro de Berlim, o único fazedor da historia é o neo-liberalismo representado
pelo Banco Mundial e o FMI. Os sacerdotes deste novo monoteísmo são os
bancos, as troikas e alguns super socialistas de ontem.
Então, as eleições políticas deixaram de discutir ideias, objectivos, ideais,
sonhos, perspectivas e começaram a discutir pessoas e aparelhos. Que os nomes
dos partidos pertençam a uma herança histórica quer de esquerda quer de
direita, que as constituíções sejam a favor de uma igualdade entre os cidadãos, a

44
Terceira questão

verdade é que todos governam à direita. Isto é um marco de que, sob a


aparência de uma era ultra-politica, se esconde uma era pós-politica no mundo
inteiro.
Crise da democracia? Crise do sistema de representação? Crise dos
partidos? Existem alternativas ao sistema em curso? Em outras palavras, não
terão os partidos esgotado as suas funções históricas? Daniel Cohn-Bendit, líder
histórico do movimento de sessenta e oito, pergunta se hoje não se devem
suprimir os partidos políticos.
Em Moçambique, a Frelimo mesmo se deixou de ser frente e passou a
partido; mesmo se da esquerda, evoluiu para a direita, conserva o seu nome. A
Renamo continua a ser o movimento da resistência. E o que é um partido
democrático num pais que inscreveu a democracia no funcionamento das suas
instituições?
Mas esta questão subentende imediatamente uma outra: qual é a nova
configuração política que tem o Estado e a democracia hoje? Quais são os
sistemas e movimentos de representação para que a democracia possa continuar
a percorrer o seu caminho?

Duas figuras têm caracterizado tradicionalmente o engajamento político


do filósofo: a do filósofo cidadão e a do filósofo conselheiro do príncipe.
Existirá uma terceira? Com a uniformização liberal do fim da história, existirá
ainda um espaço para o filósofo, ou terá que se substituir a metáfora hegeliana
da coruja pelas ciber-máquinas (também humanas) que com a sua aceleração do
tempo e diminuição dos espaços, impedem mesmo que a filosofia seja escutada
e a tornam vã?
Na nossa era da simultaneidade, as representações das actividades
políticas, discussões parlamentares, os encontros da Joaquim Chissano, as
posições e os programas dos partidos são transmitidos como os jogos de futebol,
pelos diferentes canais da televisão. Aliás, as principais figuras da vida política

45
Terceira questão

são criticadas, caricaturadas, condenadas. Durante um certo período, nas


entrevistas, a pergunta de rigor era quem é que é responsável pelas hostilidades,
Guebuza ou Dlhakama? Alguém chegou mesmo a lançar a hipótese da
necessidade de capturar Dlhakama e matá-lo. Viva a inteligência, viva a
moral…

B) Papel da Filosofia na Era Pós política


Como vimos, a história da filosofia ensina-nos, com Sócrates e Platão, a
fazer diferença entre filosofia e sofisma. Rousseau opôs-se aos enciclopedistas e
Marx aos ideólogos vulgares. Ė que sofistas, enciclopedistas e ideólogos
vulgares têm como vocação ensinar, disputar. Comunicar, lá onde a filosofia
reza, medita, contempla. A vocação dos primeiros não é tanto pensar por eles
mesmos, mas transmitir o que lhes é dito por outros. Por consequência, o
território dos sofistas e dos seus sucessores fica sujeito a um controle social. Já
que o seu papel é a transmissão, eles estão enfeudados a uma instância exterior
ao pensamento, enquanto a filosofia não tem nenhuma outra regra que o próprio
pensamento. Esta diferença de atitudes e de postura levou Descartes a recusar a
escola e Nietzsche a levantar-se contra os professores.
Esta velha querela pode e tem de ser relida de uma outra maneira. O
sofista constitui a contra figura sarcástica da filosofia, para o teórico do
comunicável, o técnico da comunicação é o inimigo próximo.
Quando os nossos Hountondjis se afeiçoaram aos prazeres dos palácios
ministeriais, às galas e coquetéis, a afeição durou pouco, e rapidamente se
transformou, com os Mudimbes, em caminho do exílio. Os que não resistiram
ao charme dos salões transformaram-se rapidamente em ideólogos, a sua escrita
em manifestos e a sua linguagem em literatura. Todo o trabalho deles se reduz a
uma obra carnavalesca, mascarada em confissões, memórias da vida política,
memórias íntimas.

46
Terceira questão

Dado que tal publicação já não se articula entre vida pública e privada,
trata-se de uma literatura: escrita que opera indiferentemente a divisão entre a
intimidade e a publicidade. Mas como se trata de uma obra do conselheiro do
príncipe, choca com toda uma tradição de reserva em matéria política.
De facto, trata-se talvez de uma nova configuração das relações entre o
exercício do pensamento e da acção racional e as suas aplicações em formas de
pensamento, mediáticas, poéticas. Mais um passo, e o filósofo, se entra no
jogo, torna-se marioneta; ou pior, joga o jogo do gato e do rato e transforma-se
na figura monárquica do palhaço do rei.
Terá ainda o mundo das representações a necessidade do filósofo? Os
mídia não têm, neles próprios, a capacidade de decisão para reforçar ainda mais
a sua importância?
Numa famosa sentença, Michel Foucault afirmava: “Não me perguntem
quem sou e não me peçam que permaneça o mesmo”. Isso releva de uma moral
do estado civil. Estão aí as bases para reflectir num novo papel do intelectual:
nem funcionário do universal, nem conselheiro técnico, o filósofo tem que
inventar o seu lugar.
O filósofo que se interroga hoje sobre as condições de possibilidade do
seu discurso é obrigado a ver que não vive na cidade ideal que constituía o reino
ou a república das letras. Está condenado a confrontar-se com os eventos, os
acontecimentos, com a história; ele deve reconhecer-se cidadão de um pais (e
mundo) que não esperou por ele para ser o que é. Um país (e mundo) cujo
sentido fica por decifrar.
O filósofo não beneficia de nenhum privilégio. Ele não deve ter nenhuma
nostalgia de um tempo de beatitudes, que aliás, talvez nunca tenha existido. Ele
tem que examinar pacientemente as condições do exercício do pensamento,
exercício que, afinal de contas, é por si mesmo político. Esta identificação das
diferentes maneiras de fazer e dizer conduz-nos ao primeiro gesto filosófico.

47
Terceira questão

Trata-se, para cada um, de inventar a sua maneira própria e especifica de pensar,
de filosofar, de estar presente na cidade.
A recente campanha eleitoral em Moçambique mostrou que este espectro
da autonomia individual de pensamento e da participação na vida pública já se
vislumbra entre nós. Revelaram-se-nos filósofos analistas (Alberto Ferreira),
filósofos candidatos à legislação suprema do estado (Ronguane), filósofos
membros da sociedade civil (Brazão Mazula). O engajamento com a sorte da
cidade ocupou a todos de maneiras diferentes. Foi neste sentido que, no
congresso da abertura do primeiro doutoramento em filosofia, os participantes
redigiram o manifesto seguinte:

“Nós, filósofos moçambicanos, reunidos num colóquio científico por


ocasião da abertura dos primeiros Doutoramentos de Filosofia em Moçambique,
decidimos, por via deste manifesto, exprimir a nossa profunda solidariedade
com o nosso povo que volta a conhecer situações dramáticas de violência e de
guerra como aconteceram no passado.
A vocação da filosofia não consiste unicamente num pensar da realidade
do homem e do seu estar no mundo (dimensão teórica), mas ela tem também
necessariamente que militar marxianamente pela sua transformação.
As transformações essenciais que urgem no contexto moçambicano nos
parecem, em primeiro lugar, a estabilidade, em segundo, o desenvolvimento
económico, político e social e em terceiro lugar a criação de uma verdadeira
comunidade nacional (cum-munia/partilha de bens materiais e imateriais).
A fim de atingirmos esses objectivos, ocorre que militemos duma maneira
mais firme e determinada em relação a uma política que priorize a todo custo a
dimensão do diálogo. O diálogo supõe em primeiro lugar o reconhecimento do
outro. Em segundo lugar, significa pôr em comum um sentido, o que ainda não
é, a partir do que já é; e constatar as divergências com base no que já se tornou
comum. Por isso o diálogo tem que se basear sobre a nossa igual pertença a

48
Terceira questão

Moçambique, ao facto de termos uma história comum, de militarmos todos pela


paz e querermos construir uma história futura para as novas gerações de
harmonia e cooperação.
A paz supõe a tolerância que não é simplesmente o antónimo da
intolerância, mas também da indiferença em relação à sorte política, económica,
social, em resumo humana do outro.
Voltaire dizia: Eu não estou de acordo contigo, mas vou me bater para
que tu possas dizer a tua opinião.
Toda a guerra aparentemente justa nas suas finalidades é intrinsecamente
injusta nos seus meios. A guerra comporta uma monstruosa crueldade na qual o
homem não só mata o outro homem, mas o insidia, o assalta, o sacrifica com
toda a crueldade que lhe é possível. A guerra dos 16 anos está lá para
testemunhar barbaridades e desumanidades que prescindem de toda descrição.”

4. O DESAFIO MOÇAMBICANO DA FILOSOFIA

Numa edição muito comentada da revista Politique Africaine 13


(devido sobretudo a um bom artigo de Achille Mbembe), Jean Copans
pergunta se as ciências sociais africanas têm uma filosofia, subentendendo que,
tal como as ciências sociais francesas, a teoria social africana necessita de uma
ligação com a filosofia, não só de tipo genealógico, mas de um contínuo
diálogo.

Só que a pertinência da filosofia, na interpretação de factos democráticos,


não tem um consenso geral. A escola americana, em dois nomes, John Rawls e
Richard Rorty, não vê nenhuma pertinência da filosofia na interpretação da
democracia.

13 Philosophie, Politique Africaine nr 77, Paris, Karthala, 2000.

49
Terceira questão

A cultura iluminista, da qual nasce a democracia americana, conduz ao


princípio de que a vida pública tem que ser governada pela razão humana, que
constitui a essência e a natureza de todos os homens. A tese da existência de
uma natureza humana racional é eminentemente filosófica, apesar de esta ter
sido marginalizada nos últimos dois séculos.

Por isso mesmo, a democracia olhou para a filosofia com uma certa
suspeição. John Rawls propõe que, em privado, cada um tenha as opiniões
filosóficas que preferir, mas no Estado democrático a vida pública não deve ser
guiada por nenhum dogma religioso nem por nenhuma tese filosófica 14. A
lógica é que o estado democrático prescinde quer da religião quer da filosofia. A
democracia é não filosófica.

Rawls ambiciona ser o teórico da não- filosofia, ou seja, da absoluta


pobreza filosófica da democracia. Por sua vez Richard Rorty, defensor e
intérprete desta propensão de Rawls, escreveu um ensaio intitulado exactamente
“A prioridade da democracia sobre a filosofia”15 .

Mas para Rawls e Rorty, a filosofia, com a qual a democracia não deve
ter nada que fazer, é definida de maneira restrita: trata-se de uma filosofia que
tende a afirmar a existência de uma natureza humana universal, ou até mesmo
de uma ordem que nos antecede, que questiona sobre a finalidade e sobre o
significado da existência humana. Para Rawls a democracia pode portar-se bem,
mesmo sem este tipo de questões. Ao teórico da democracia basta cingir-se a
algumas ideias intuitivas e fundamentais como a fé na tolerância, a refutação da
escravatura, que estão radicadas nas instituições políticas de uma sociedade
democrática.

14 RAWLS, J. Liberalismo Político, Boston, 2004, pp. 47

15  RORTY, Richard.  (2002) A prioridade da democracia para a filosofia. Objetivismo,


relativismo everdade. Escritos filosóficos vol. 1. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

50
Terceira questão

Para Rorty, esta é uma sã atitude historicista e anti universalista, herança


autêntica do iluminismo. Contudo, trata-se sempre e de qualquer maneira de
uma atitude filosófica.

Por conseguinte, no estado democrático, a tolerância e a liberdade não são


princípios ou fundamentos universais, cuja clarificação teriam necessidade da
autoridade filosófica, mas são convicções que, através de um processo histórico
determinado, se foram consolidando nas democracias ocidentais. Rorty escreve
que não precisa de nenhuma outra autoridade senão a constituída de um acordo
feliz entre indivíduos que se descobrem herdeiros das mesmas tradições
históricas e postos diante dos mesmos problemas. Esta teoria da democracia
limita-se à descrição histórico-sociológica do que são hoje os herdeiros do
iluminismo.

Como disse antes, a definição de Rawls e Rorty é restritiva. J.F Lyotard,


no livro programático sobre “A condição pós moderna” dividia a humanidade
em duas partes, não entre os herdeiros do iluminismo e os outros, mas entre
ricos e pobres. Ė um facto que o Japão, por exemplo, não é um herdeiro
filosófico do iluminismo, mas aderiu à dimensão weberiana da
“Zwekrationalität’’ . Os defensores da pós-modernidade como Vattimo vêem
nela uma ocasião para a libertação das dimensões epistémicas que o
etnocentrismo do iluminismo tinha sacrificado.

A filosofia, depois de se ter interpretado, durante séculos, como relação


intrínseca entre a fé e a razão (filosofia ancilla teologiae), depois dos
pressupostos racionais da socialização, quer na sua dimensão liberal quer
socialista, ambas herdades do iluminismo, hoje, quer seja adepta de uma pós-
modernidade (até híper-modernidade, de uma modernidade tardia, reativa ou até
de uma post post modernidade) quer contra elas, como é o caso de Habermas do
Discurso filosófico da modernidade, admite ser “filia temporis”, acompanhar as

51
Terceira questão

vicissitudes históricas da aventura humana e criar um espaço, no interior das


diferentes sociedades, sem nunca renunciar à sua dimensão do universal.

Derrida considera a universalidade como o único passaporte que o


filósofo deveria ter. Admite porém, numa postura hegeliana, que o filósofo tem
que apreender o próprio tempo através de conceitos e que esta apreensão é
intrinsecamente ligada à maneira de Ortega e Gasset, às circunstancias
específicas de cada filósofo. Quer dizer que a filosofia, contrariamente ao que
defendem Rawls e Rorty, tem uma pretensão universal que se justifica pela
comum humanidade dos homens e pela diferença específica da racionalidade
que os distingue de todos os seres. Isso é que explica que a América, herdeira
do iluminismo, defenda, na sua constituição, os direitos humanos que
compreendem a liberdade de todos e a tolerância. Isto quer dizer que a
particularidade americana é filosoficamente pertinente, porque retira os
fundamentos da sua democracia de uma tese filosófica de reconhecimento da
comum humanidade de todos os homens.

Em segundo lugar, a filosofia contemporânea, que Habermas não aceita


como pós-moderna, mas prefere chamar de pós-metafísica, reconhece que esta
humanidade comum dá razão à própria existência, quer dizer, manifesta-a de
maneiras diferentes. Isto abre espaço a que existam filósofos e hermeneutas de
diferentes comunidades e grupos humanos, que partem das suas particularidades
em direção ao universal.

Em outras palavras, é legítimo e necessário que os filósofos partam das


suas situações existenciais concretas, das suas línguas, passando pelas
linguagens culturais e institucionais, não para estar de acordo com elas, não
necessariamente para justificá-las, mas para continuamente fundamentá-las e
interrogá-las, a partir do pressuposto de uma humanidade comum.

52
Terceira questão

Parece-me que a responsabilidade da filosofia não consiste em descrever


histórico-sociologicamente a sociedade, não obstante isso seja importante, até
para compreender a emergência da filosofia no contexto africano: luta pela
dignidade e reconhecimento da própria humanidade. Todavia, no contexto da
era pós-metafisica, existem razões epistemológicas suficientes para reivindicar
uma perspectiva filosófica a partir do nosso eu histórico e circunstancial (Ortega
e Gasset).

Parece-me que a responsabilidade e o desafio histórico da filosofia em


Moçambique seja trabalhar para robustecer as estruturas conceptuais e
institucionais da nossa jovem democracia.

Dado que o Estado, a democracia, a vida pública estão sujeitos e vivem


em simbiose com os aparelhos políticos, o dilema do filósofo é ter que viver
perigosamente, equilibrar-se no desequilíbrio, num dentro e fora. Ele não pode
eximir-se da vida pública, apesar de ela estar dominada pelos aparelhos, mas a
resistência e a vigilância filosóficas impõem-lhe que não se deixe fagocitar. Por
isso não pode estar completamente dentro, mas também não pode viver
completamente fora deles. Fagocitado perdia a sua alma, fora deles tornar-se-ia
um observador inócuo.

Este é um argumento negativo; existe um ponto de vista mais positivo. O


filósofo vive na sociedade, as suas preocupações vêm daquilo que G. B. Vico
chamava de sentido comum16; é deste sentido comum que ele colhe as suas
preocupações e os seus problemas. O filósofo é, antes de mais, membro de uma
comunidade na qual vive e está inserido. Enquanto membro dessa comunidade,
ele não se pode considerar, de nenhuma maneira, um átomo leibniziano, à parte,
especial, segregado. Mas, ao mesmo tempo, pela sua função, tem uma particular
responsabilidade social.

16 Ciencia Nova; Severino Ngoenha Vico e Voltaiere dua interpretações filosóficas da


historia o Sec XVII, salessianos, 1991.

53
Terceira questão

O específico do filósofo é uma espécie de vigilância crítica (Hountondji),


subordinada à busca do bem e do justo. Contudo, isso supõe que ele esteja num
diálogo contínuo com os outros membros da sociedade, o que, por sua vez,
implica que os outros membros da sociedade reconheçam o valor de um tal
diálogo. Isto quer dizer que a sociedade, a nossa sociedade, deve optar por uma
vida intelectual comum, feita de interrogações livres, e de um empenho também
livre e consequente das vontades individuais na busca do bem e da justiça.

Para a sociedade optar a favor de uma via livre da razão, significa criar
espaços nos quais indivíduos concretos podem participar dela. Não se trata de
um simples espaço teórico, como podem ser as universidades nas quais
exercemos o essencial das nossas atividades de ensino. O espaço da liberdade
intelectual que a sociedade deve pôr à disposição dos seus membros, é algo de
particularmente concreto, tangível, que não se limita a um “não é proibido,
ninguém te controla, não há censura”.

Trata-se de favorecer a vida intelectual, suscitando-a, encorajando-a,


protegendo-a e, se necessário, defendendo-a contra seus eventuais negadores.
Como dizia Voltaire, “Não estou de acordo contigo, mas vou lutar para que tu
possas dizer a tua opinião”. Se, porém, organizar quer dizer fechar, controlar, no
fim de contas sufocar, então não deveríamos falar da organização da vida
intelectual. Mas se organizar quer dizer promover, então a sociedade deve
proporcionar uma vida intelectual livre.

Para o filósofo moçambicano, cuja sociedade tomou a opção de enveredar


pelo caminho da liberdade de pensamento e de diálogo, as disposições
orientadas a promover a vida intelectual tornam-se direitos. Mas em
contrapartida, os filósofos devem admitir que eles têm deveres para com a
sociedade. Eu creio que, quaisquer que sejam as formas particulares que esses
deveres tomem nas ópticas dos diferentes filósofos, se lhes pode dar um nome

54
Terceira questão

genérico: respeito. Este respeito tem, em primeiro lugar, a ver com a ordem
social, que resulta da adesão (mesmo se crítica) às instituições, aos seus
representantes e à ordem coletiva. O respeito não pode e não deve ser
confundido com o receio ou com o medo.

O respeito não significa inibição de refletir ,estudar, analisar, de


questionar sobre o que respeitamos. Respeitar significa antes de mais,
reconhecer o valor das nossas instituições, dos seus representantes e da nossa
ordem social e mesmo do ideal que eles representam. Para mim, para o filósofo
que eu sou, respeitar a nossa ordem social significa reconhecer que ela tem um
valor, e questioná-la não pode resultar de uma atitude ligeira e leviana, pois isso
tem a ver com a sociedade inteira na sua vida e no seu equilíbrio.

Daqui se pode depreender que a relação entre o filósofo e a sociedade há-


de ser dominada por uma certa dialética. Isto é, a dialetica da liberdade e do
respeito. Se falo de dialética é porque penso que nenhum destes termos deveria
ir sem o outro. Nós, como filósofos, só podemos estar submetidos ao respeito,
na condição que a sociedade se engaje a organizar uma vida intelectual livre.
Reciprocamente, a sociedade não poderia de nenhuma maneira nos respeitar, se
não respeitássemos a ordem social; se fôssemos ligeiros nas nossas análises ou
se fizéssemos uma espécie de terrorismo intelectual.

Mas a noção de dialética não se esgota na oposição e complementaridade


que une os termos que estão implicados. As características de toda a forma de
dialética devem também ser procuradas ao nível do que advém da totalidade, no
interior da qual, os termos se opõem, ao mesmo tempo que se completam. No
caso da nossa sociedade e dos pensadores individuais chamados a viver no seu
seio, é evidente que a totalidade é a sociedade moçambicana naquilo que é a sua
tarefa principal que é o bem comum. Por conseguinte, é da relação entre o
filósofo e a sociedade, da oposição-completaridade entre os direitos e os deveres

55
Terceira questão

respectivos, reconhecidos ao filósofo e à sociedade que depende, em parte, o


sucesso da vida social.

Isto remanda-nos, uma vez mais, sobre a importância de nos situarmos


como filósofos no interior mesmo das nossas sociedades, filosofar a partir delas,
do seu interior, acompanhando as suas dinâmicas e as suas metamorfoses, sem
nunca perder o nosso espaço de liberdade critica. Foi o que eu chamei de
dinâmica de dentro-fora.

Isto não quer dizer que as dialéticas de outros filósofos com as suas
respectivas sociedades não tenham interesse para nós. Nem sequer que a
filosofia já-feita não tenha nada a nos dizer. Pelo contrário, a filosofia é uma
tradição, e neste sentido o seu passado não nos pode ser indiferente. Ainda mais,
e isso explica a natureza tradicional da filosofia e a importância que ela confere
ao passado e à história; enquanto horizontes longínquos de onde a razão nos
interpela, tanto no passado donde proviemos como no futuro em direção ao qual
estamos orientados.

Os filósofos não constituem nenhum perigo para a ordem social em


Moçambique. Não somos nem niilistas nem anarquistas. Nós não somos
perturbadores da ordem social; nós somos amantes da busca de um saber capaz
de participar na edificação de uma melhor comunidade (cum munia)
moçambicana, de uma sociedade ciumenta e garante da sua independência,
capaz de assegurar progressivamente o bem-estar de todos os moçambicanos.

Como disse antes, um dos nossos maiores desafios é fortificar a


democracia na sua valência institucional, mas é também retrazer a democracia,
e por consequência a politica, na sua relação com a ética. Vale a pena recordar
que o sentido da política em Aristóteles é a ótima cidade que pratica o bem
comum. Isto é, a política está inserida numa ordem natural da convivência

56
Terceira questão

humana, numa moral social. Ė algo que é inerente ao homem como animal
social, que vive naturalmente com os seus semelhantes, na busca comum do
justo e do bem.

A relação do filósofo com a cidade, o papel do filósofo e a prudência


filosófica que o deve contradistinguir, é tanto mais importante, quanto alguns
mestres e mesmo dos mais conhecidos, às vezes prevaricam quanto à prudência.
Basta pensar na elite de Atenas e mais perto de nós em Gentile e Croce no
tempo do Fascismo na Itália, nos namoricos de Heidegger com o nacional-
socialismo, na condescendência de alguns discípulos de Althusser diante da
estalinização dramática do marxismo ou ainda, mais recentemente, no papel que
jogou “o novo filósofo” Bernard Henry-Levy na invasão da líbia.

5. DEMOCRACIAS PRECÁRIAS (E AMORAIS), EXEMPLOS


HISTÓRICOS

Vale a pena referir as crises de algumas democracias históricas e as suas


consequências. A última, na ordem do tempo foi a República de Weimar na
Alemanha que abriu as portas para a subida de Hitler ao poder. Porém, a que se
parece mais análoga à nossa, em termos de crise moral, e também a mais
significativa para ilustrar o meu propósito, é a crise da primeira democracia na
história, que aliás acabou decretando a sua falência.

Atenas e Moçambique, quanto são parecidos!

A democracia tinha entrado em Atenas pela porta da liberdade concebida


como bem supremo do povo. A democracia ateniense pode ser resumida numa
frase: o povo é soberano, mesmo diante das leis 17. Xenofonte chega mesmo a

17 Tucydide, La Guerre du Pélopomnèse, Paris, Les Belles Letres, pp.27-28

57
Terceira questão

dizer que é uma coisa abominável impedir o povo de fazer o que quer. O
próprio Péricles, dirigente supremo da cidade, afirma: “nós praticamos a
liberdade, não só na condução da ordem política.” Aristóteles diz que, na
opinião de Demóstenes, (…) a justiça é uma igualdade e a igualdade é a vontade
soberana da multidão18.

Com uma economia florescente e uma liberdade garantida aos cidadãos, a


vida política de Atenas decorria num equilíbrio entre as instituições e os
cidadãos. Péricles orgulhosamente dizia que, como as coisas não dependem de
um pequeno número, mas da maioria, trata-se de uma democracia. Como se
explica que essa Atenas democrática tenha sofrido a catástrofe e o declínio que
todos conhecemos? A decadência política e democrática de Atenas é antes de
mais uma decadência de ordem moral.

Todo o jovem em idade de se inscrever no corpo dos cidadãos, na


cerimónia de tomada de armas fazia, no templo de Agraulo, e diante dos
magistrados, o seguinte juramento:

“Eu não desonrarei estas armas sagradas: não abandonarei o meu


companheiro na batalha; combaterei pelos deuses e pelo meu focolar, sozinho
ou com os outros. Não deixarei a pátria diminuir, mas deixá-la-ei maior e mais
forte do que a recebi. Obedecerei à ordem que a sabedoria dos magistrados me
der. Submeter-me-ei às leis em vigor e às que o povo decretar em acordo
comum: se alguém quiser modificar essas leis, eu não vou segui-lo, mas
combaterei por elas, sozinho ou com os outros19”.

Com o pretexto de libertar os indivíduos do peso das responsabilidades


familiares, Dracon fez apelo ao individualismo. Segundo Sólon, este
individualismo foi radicalmente institucionalizado, e a liberdade tornou-se

18 Aristoteles, A política, Vol.9, 30-35

19 Glotz, (G.). Lacité grecque, Paris, éd. Albin Michel, 1968, p. 304.

58
Terceira questão

absoluta. Com a subida do individualismo e do egoísmo, matou-se o espírito de


família, de solidariedade e de ajuda mútua. O indivíduo, colocado como um
deus por cima das leis, lançou-se cada um na busca desenfreada do proveito
pessoal. Alastrou o hedonismo de toda a espécie em detrimento da vida
conjugal e sentido de família, com a aprovação de personalidades como Platão e
Aristófanes, antecipando aquilo que os sociólogos chamam hoje de sociedade
do prazer.

A comédia de Aristófanes20 é um modelo da atmosfera então reinante,


onde se multiplicam cenas de depravação: o prazer de gestos cínicos e de
imagens grosseiras. O vício contra a natureza se instala sem pudor com a
exibição do nu (antecipando a arte do século XIX) e das partes intimas, a
vulgarização do sexo, etc.

Antecipando a China da segunda metade do século XX, o Estado


promove a restrição dos nascimentos, e como na India de hoje, o infanticídio.
Para evitar o aumento demográfico (como quer a Ecopop hoje), o Estado
encoraja a homossexualidade, o aborto, a reclusão das mulheres e o abandono
(muito moçambicano) das crianças não desideradas nos lugares públicos.

As elites intelectuais -Platão, Sócrates, Górgias, Aristófanes- caucionam


esta degradação dos costumes. Para eles, a liberdade de procriação é uma das
razões da miséria e esta engendra a sedição e a criminalidade. Para preservar a
cidade, ocorre desfazer-se da multidão de homens disformes, aleijados e inaptos
a servir o Estado. Aliás, um homem diminuído nunca seria feliz, a felicidade é o
fim de todas as nossas atividades. Para que é que serve criar homens que não
podem atingir o seu objetivo na vida? Para que serve povoar a cidade de pessoas
inúteis? Aristóteles desaconselha que se alimentem crianças defeituosas e o
próprio Péricles chega a afirmar, como o seu amigo Górgias, que a verdadeira
moral é a moral dos mestres, a moral dos melhores e dos poderosos.
20 Defourny (M.), Arstote, études sur la politique, Paris, 1932. pp.152-153

59
Terceira questão

A consequência disto foi a fuga de muitos atenienses da cidade em


direção a países mais acolhedores. Inúmeros trabalhadores, artesãos,
cultivadores, intelectuais e soldados desertam do país. Segundo o censo de
Demétrio de Falério, Atenas passa no seculo IV de 40000 cidadãos a 21000. As
cidades estão desertas; os campos incultos, não por causa de pestes ou guerras
(…). A causa desta situação é evidente e o remédio depende de nós. Os homens
são dominados pelo fausto, a concupiscência e a preguiça (…). Quanto as
razões e aos remédios do despovoamento dos campos não se devem interrogar
os deuses. Qualquer pessoa nos dirá que só nos podemos libertar desta maldição
reformando-nos a nós próprios, os nossos costumes e as nossas condutas (…)21.

Como se pode constatar, uma das razões da falência da democracia de


Atenas reside na emergência do individualismo e do egoísmo, na emergência de
um estado de medidas segregacionistas, elitistas, favoráveis não à totalidade dos
cidadãos, mas a aumentar a riqueza dos ricos -interessados em banquetes, no
luxo, na aparência-; e a pobreza dos pobres, o que levou a acentuação das
desigualdades.

Nesta Atenas, já não se ouve ninguém dizer eu combaterei pelos meus


deuses e pelo meu focolar (…), pois os atenienses mostram cada vez menos
interesse pelas coisas públicas; eles estão todos voltados para os interesses
individuais. Para atingir este objetivo, eles abandonam todos os totens
religiosos, os deuses da cidade, as religiões nacionais que simbolizavam os
valores morais; e conservam só o símbolo do momento, isto é, o prazer, a
abundância, a riqueza: Polutos, Dionísio, Afrodite.

A isto se tem que acrescentar a violência e a injustiça que resultam da


divisão desigual das riquezas, da acumulação ilícita de uns e do
empobrecimento de outros. Como diz Isócrates.

21 Defourny (M.) op. cit., p.157

60
Terceira questão

Em vez da liberdade cívica, eles sombrearam nas múltiplas e perigosas


desigualdades. Renunciaram à concórdia, aos abundantes recursos que
encontravam uns nos outros; eles se ignoravam de tal maneira que os detentores
de riqueza preferiam deitar as suas posses no mar do que ajudar os indigentes.

Entre o V e IV séculos A.C., a luta entre as duas classes que compunham


a sociedade ateniense exacerbou-se, os ricos apoiados pelos oligarcas e os
pobres defendidos pelos aristocratas. Segundo Aristóteles, os oligarcas tinham
como sermão: eu serei injusto com o povo e no conselho eu lhes farei o maior
mal de que for capaz.

Nestas lutas fratricidas, o espírito do partido coloca-se por cima do


patriotismo, a verdadeira pátria de Atenas torna-se a classe social, e o único
irmão que conta, é o companheiro de luta.

Entre os dirigentes dos partidos opostos, os debates na assembleia


transformam-se em insultos e mesmo pugilato, como em algumas assembleias
de hoje ou como durante as nossas campanhas eleitorais. Os atenienses
preocupam-se só com seus interesses e a cidade cai no esquecimento. Cada um
vive para si, fechado nos próprios negócios: ir para além dos outros, ganhar
muito dinheiro; este é o objetivo geral. O egoísmo é soberano, a cidade, objeto
de indiferença. O patriotismo deixa de ser a primeira força do Estado.

Nesta cidade, onde a única coisa que conta é a satisfação da felicidade


pessoal, o ódio substitui-se à filantropia e o espírito de classe substitui o
civismo. Os dirigentes de Atenas brilham por um laxismo sem precedentes. Para
eles a verdadeira moral é a moral dos ricos.

O que pode fazer o Estado, lamenta-se Platão, quando o amor pela


riqueza não deixa, em nenhum momento, o prazer de se ocupar de outra coisa
que não seja o seu bem pessoal? Para os dirigentes de Atenas, os ricos têm o
direito de ser ricos e de enriquecerem sempre mais. E os pobres? Ė, como dizia

61
Terceira questão

Hannah Arendt, a propósito dos negros nos Estados Unidos, eles não são parte
de uma questão social.

Enquanto Isócrates deplora o número cada vez mais elevado de pobres,


Demóstenes recusa-se a admitir que exista um homem, sobretudo em Atenas,
tão miserável, tão cruel que veja com mau olho o socorro que se dá aos pobres.
Aristófanes compraz-se em retorquir que, se toda a gente fosse igual ou toda se
tornasse rica, quem exerceria os trabalhos baixos necessários para a cidade? E
acrescenta: o melhor seria aumentar o peso da miséria, multiplicar o número de
pobres e deixar que a miséria os invada ainda mais de modo a levá-los assim a
trabalhar mais22.

Enquanto os novos-ricos e os dirigentes de Atenas exibem


ostensivamente as suas riquezas fraudulentamente adquiridas, erguem os seus
bustos nas praças públicas, constroem mansões sumptuosas onde oferecem
continuamente galas e banquetes, os pobres, esmagados pela miséria, têm
dificuldades em se nutrir e devem vender a sua força de trabalho a um preço vil.
O sistema democrático de Atenas constitui-se, assim, num pré-capitalismo
selvagem que não tem nada a invejar ao sistema descrito por Charles Dickens
nos “tempos difíceis” e que constituí a sub base crítica, na qual Karl Marx
escreve o seu Capital.

O poder em Atenas estava na mão dos ricos oligarcas que se sucediam no


poder e se dividam as riquezas. Liberdade na indigência, igualdade no cinismo,
fraternidade no individualismo, democracia na iniquidade; eis no que se tornou
a moral dos patrões, uma moral do desprezo pelo povo e do declínio da cidade.
O que pode fazer a democracia quando tem como única realidade a sua
idealidade? O que pode fazer o Estado quando os seus próprios dirigentes vêem
a política simplesmente como meio para “encher os bolsos com coisas sujas e
inconfessáveis”?
22 Démosthénes, Harangues, Tome II, Philipiques IV, 43

62
Terceira questão

Como diz Lísias, estes cidadãos de nascimento têm como princípio que a
pátria está em todo o lugar onde estão os seus interesses (…), estas pessoas
seriam capazes de trair o bem pública para correr atrás dos seus ganhos
pessoais: aos olhos deles, a cidadania não está na pátria, mas nas suas fortunas23.

Machel teria lido Demóstenes? Teria lido este ato de acusação, de


lamentação e de tristeza do filósofo grego quando ele diz desesperado:
Atenienses, (moçambicanos?) vocês abandonaram os princípios fundamentais
dos vossos antepassados: ter a Grécia em primeiro lugar (Cabral teria lido
também Demóstenes?); criar e manter uma força militar para socorrer os mais
fracos (os partidos precisariam de ler Demóstenes).

O regime de Atenas encoraja a insaciável paixão pelo ganho pessoal e o


desejo de acumular riquezas por todos os meios. Tolera a corrupção e as paixões
mais baixas tornam-se os fins e as razões da conduta pública e privada.
Doravante a única norma social de respeitabilidade é a riqueza, o que implica
que ela se veja, que seja ostentada. Antes da mulher de César e do novo homo
mocambicanus, o novo-rico ateniense, como o moçambicano de hoje, tinha que
parecer, para saberem que é rico e, por consequência, merecer respeito.

Eis a nova ética, eis a única medida da vida social. Mas, quando a riqueza
e os homens ricos são celebrados num estado, vemos diminuir as honras pela
virtude e pelos homens virtuosos.

Glotz diz que os reitores, os advogados, os artistas que outrora


consideravam uma desonra comercializar os seus talentos, doravante não têm
escrúpulos em vender a própria mercadoria o mais caro possível; tudo se
compra, tudo se vende, tudo tem um preço. Receber comissões ou receber
mordomias não representa nada de repugnante. Nada disso é punido pela lei24.

23 Lysias, Discours, tomo II, Contre Philon, 6

24 Glotz (G.), op.cit.,pp.319.

63
Terceira questão

Esquines descreve como os Agotitai, com uma alegria cínica, saíam das
assembleias depois de terem recebido envelopes de dinheiro: vocês saem da
assembleia sem terem debatido nada, vocês dividiram-se os restos como depois
de uma refeição à custa do povo.

Foi em seguida, a este tipo de atitudes por parte das classes dirigentes,
que o povo de Atenas entrou numa grande desobediência civil sem precedentes.
Platão justifica esta desobediência com o desenvolvimento crescente das
desigualdades sociais, criadas e sustentadas pelo regime democrático25.

Eles (os cidadãos) tornaram-se tão susceptíveis, que, à mínima aparência


de contraste, se zangam e se revoltam, e chegam mesmo, como tu sabes, a
desprezar as leis escritas e não escritas, a fim de não terem absolutamente
nenhum mestre.

Para Aristóteles, quando os magistrados em função se mostram


exageradamente ávidos e insaciáveis, os cidadãos levantam-se uns contra os
outros e também contra as instituições que autorizam tais práticas e a ganância
dos dirigentes satisfaz-se quer em detrimento das riquezas privadas, quer dos
bens da comunidade.26

Demóstene narra que os ricos recusam-se a pagar impostos, aproveitando-


se da desordem generalizada.

Os que as possuem (as riquezas) mostram um espirito feito de tal


maneira, que mesmo que todos os oradores anunciassem, para meter-lhes medo,
que o rei vai chegar, que ele já esta aí, que já não é possível evitar o seu ataque
e um certo número de adivinhos pregassem no mesmo sentido, eles não
pagariam nada, e até dissimulariam as suas fortunas, negando possuí-las.

25 Platão, A República, VIII, 563

26 Aristoteles, op.cit. Vol III, 5-10.

64
Terceira questão

Diante da recusa do povo em interessar-se pelos problemas da cidade, os


dirigentes criaram a mistroforia, um sistema de corrupção visando comprar as
consciências, através de mordomias para que aceitem ocupar-se dos problemas
civis. Porém, este sistema não encontrou graça aos olhos dos cidadãos.

O conjunto destes problemas acabou por minar e enfraquecer a


democracia de Atenas. Para isso também contribuiu o desprezo dos filósofos
pela democracia. Sócrates declara não ter nenhum respeito por uma assembleia
composta essencialmente por trabalhadores de metais, sapateiros, pedreiros e
vendedores ambulantes; em suma, sem cultura e sem inteligência. Eurípides
nega às massas trabalhadoras não só a capacidade de pensar, mas também de
fazer história. Como é que as massas, incapazes de um raciocínio direito,
poderiam conduzir a cidade para um caminho direito? Como se viesse apoiar
estes propósitos, Tucídides ironiza: a democracia, com efeito, nós sabemos, nós,
as pessoas sensatas, o que ela vale.

Mesmo Heródoto, que estava do lado dos pobres diz:

“Não existe nada de mais insolente que a multidão (…). Fugir da insolência
de um tirano para cair na insolência de uma populaça desenfreada, é algo
que não se pode de nenhuma maneira tolerar. O primeiro se faz alguma coisa,
fá-lo com conhecimento de causa; o segundo nem sequer é capaz desse
conhecimento. Assim, a democracia deve ser combatida e derrubada pois o
povo que é encarregado de dirigi-la não tem nenhum sentido prático”27.

Platão, por sua vez, também combateu severamente a democracia, pois


ela seria a fonte das desregulações e da imoralidade na cidade pela liberdade e
igualdade irrefletidas que ela proclama e semeia aos quatro ventos. Aristóteles,
que só aceita a democracia rural e desconfia da democracia urbana, escreve:
“enquanto a oligarquia se define por caracteres como o nascimento, a riqueza,

27 Herodoto, Histórias, III, 81

65
Terceira questão

a educação; os caracteres que definem a democracia seriam exatamente os


contrários dos precedentes: nascimento obscuro, pobreza e vulgaridade”28.

Ainda mais, os intelectuais atenienses atacam também os símbolos da


democracia; as noções de felicidade, de liberdade e de igualdade. A felicidade,
que, na democracia, é o fim último da ação humana, aparece como uma
prerrogativa exclusiva dos ricos, dos homens de valor. Como diz Aristóteles,
essa prerrogativa é um dom (Max Weber fala da graça) de Deus às pessoas com
sorte. Então Deus não daria as mesmas possibilidades a todos os homens,
mesmo se eles são irmãos; ele não se preocupa com a igualdade. Dá sorte a uns
e azar a outros. Em conclusão, a democracia nunca levará todos os homens à
felicidade.

Mas também, dado o acento metido sobre o facto do nascimento, a


igualdade entre os homens é também uma ilusão. De facto, só pode existir
igualdade entre iguais (…).

A polis não vai conseguir levantar-se das suas incongruências, e


sobreviver ao abandono dos valores morais, ao desfasamento da ética. E quando
Demóstenes ainda exorta os seus concidadãos a salvar o regime democrático e
com ele a polis:

“Seria melhor para vocês, não receio dizê-lo, ter inimigos mais organizados
em regime democrático, do que ter amigos num regime oligárquico. Pois, se
eles estivessem livres, vocês não teriam dificuldades, se quisessem fazer a paz
com eles; enquanto, sob um regime oligárquico, as amizades não garantem
nada. Não, não é possível que um estado oligárquico tenha simpatia pelo
povo, nem que os que querem mandar tenham simpatia por aqueles que
querem viver na igualdade”29.

28 Aristoteles, op.cit. vol Iv, 35-40.

29 Démosthénes, Tome I, Pour la Liberté des rhodiens, 18.

66
Terceira questão

Demóstenes não compreendeu que o principal mal de Atenas não estava


no tipo de regime político, mas no desprezo manifesto para com os valores
morais, na crise da ética que atravessava a cidade.

Nós que muitas vezes nos representamos a democracia como uma poção
magica que basta beber para sairmos da pobreza absoluta e passar à
modernidade, deveríamos sempre recordar Atenas, para reconhecer que todo o
tipo de regime, mesmo o democrático, que ignora os valores morais e éticos,
escolhe um caminho de decadência, pois cidade sem ética é garantia da ruina do
Estado.

6. A APARATOCRACIA

Durante o período que precedeu as últimas eleições em Moçambique,


muitas pessoas e mesmo a minha família próxima, perguntaram-me inúmeras
vezes em quem votar.

A questão parece banal, mas é profunda. De facto, não se vota pela cara
da pessoa, pela sua simpatia, pela sua maior ou menor eloquência; mas vota-se
ou deveria votar-se, pelas ideias, pelos projetos de sociedade que cada candidato
apresenta. Se são as ideias que guiam o mundo, e as ideias (o pensamento) são a
diferença específica da humanidade, como não comparar esta situação que
vivemos nas eleições com a nietzscheana procura do homem no mercado?

Durante o processo da campanha, procurei um candidato com ideias.


Procurei-o nos cartazes, na imprensa, nos telejornais e não o encontrei. Querer
construir um prédio de vários andares com materiaís inadequdos não pode ser
aprovado, porque põe em perigo a vida das pessoas. Prometer duplicar salários a
todos os fincionários públicos é pura demagogia. Fazer pender a ameaça
(apenas velada) de guerra, em caso de derrota, é antidemocrático.

67
Terceira questão

Então, se não há ideias, em que é que se vota? Durante as últimas eleições


francesas, apresentou-se uma contraposição política entre as figuras históricas
de Hobbes e Rousseau30, uma defendendo que o homem é intrinsecamente mau
e outra que é naturalmente bom, mas a sociedade o corrompe; como antes se
opunham, iconográfica e políticamente, as figuras da esquerda (Feurerbach,
Engels, Karl Marx, Lenine) e as da direita hegelianas.

A vida política, mesmo nas mais antigas democracias, apresenta um


espetro de pós-política. Nos Estados Unidos, o presidente Barak Obama,
democrata, foi o maior financiador dos bancos privados; na França, François
Hollande, candidato anti-finanças, chegado ao poder, deu uma volta de cento e
oitenta graus ao seu programa e nomeou, para a pasta da economia, um
banqueiro privado.

Os governantes, quer sejam filosófica e ideologicamente da esquerda quer


da direita, governam de modo neoliberal, dando razão a Fukuyama que
defendia, no seu Fim da história, a ausência total de alternativas ao liberalismo
triunfante. Hoje, a única imagem iconográfica plausível seria a de Friedman.

Se toda a política se faz à direita, se de facto todos são liberais e mesmo


ultraliberais, como podem os eleitores destrinçar entre os diferentes partidos,
aquele em que devem votar? Quando não há ideias, quando não se vota em
função de ideias, o que leva a votar num partido ou noutro é a força do seu
aparato.

A história das vicissitudes guerreiras da Frelimo fez com que ela se


tornasse uma autêntica máquina, um autêntico aparato. A Frelimo de outrora
compreendia uma dimensão militar, uma dimensão de serviços de segurança, de
logística, tinha escolas, hospitais, tinha uma dimensão política extremamente
organizada, uma dimensão de relações exteriores, que jogou um papel

30 Philosophie Magazine, Mensuel, nr 58, Abril de 2012.

68
Terceira questão

importante na recolha de ajudas materiais, de apoio político, de sensibilização


de grupos, povos, países à causa da libertação de Moçambique.

Depois da independência, esse aparato se alargou com a criação dos


grupos dinamizadores e sobretudo com a transformação do partido em Estado.
Contudo, esse aparato era um meio para realizar fins políticos, para atingir
objetivos que a frente de libertação primeiro, e o partido depois, se tinham
previamente fixado. Isto quer dizer que o aparato era subordinado a posições
políticas. Da mesma maneira, a Renamo era também um aparelho politico,
militar, dotado de uma importante rede de comunicações e de relações
exteriores.

Os instrumentos são, normalmente, meios para realizar objetivos, para


atingir fins, mas eles têm tendência a transformar-se eles mesmos em objetivos
e fins. O exemplo do dinheiro31 é ilustrativo. Quando foi inventado, era um
meio para adquirir mercadorias, as quais com o correlativo consumo, são os
objetivos do processo económico. Em seguida, o dinheiro tornou-se o objetivo
de tal processo, isto é, a produção de mercadoria tornou-se o meio para obter
uma quantidade cada vez maior de dinheiro.

De uma maneira geral, os instrumentos servem inicialmente para


satisfazer as necessidades; depois, as necessidades servem para possuir e usar os
instrumentos; é o primeiro e não o segundo a ser modificado.

Quando as ideias que estão na origem de uma máquina, de um aparelho,


de um aparato, perdem as suas finalidades, então a máquina, o aparelho, a
aparato se orienta ou é orientado para novos objetivos. No caso que nos ocupa,
o objetivo do aparato tornou-se a conquista e ou a conservação do poder. Então
o poder tornou-se a nova ideologia, uma ideologia que tem no aparelho a sua
principal força.
31 Sobre o dinheiro par além do classico livro do Simmel, Michel Sandel publicou em 2012
um livro intulado “O que o dinheiro não pode comprar”.

69
Terceira questão

Trata-se de uma ideologia sem ideias, ou se quisermos, de uma ideologia


cuja única ideia é a eficiência do aparato, como único meio que lhe garante o
poder. Então o incremento indefinido da potência tornou-se no objetivo
principal das forças políticas, já que ele é o garante do poder.

Se analisarmos o nosso processo eleitoral recente, constatamos que


muitos pequenos partidos, sem aparatos ou com aparatos fracos, nem sequer
conseguiram reunir o número de assinaturas suficientes para participarem nas
eleições presidenciais e legislativas. Alguns comentadores insinuaram,
maliciosamente, que a única coisa que esses partidos queriam era o dinheiro do
Estado. Mesmo se assim fosse, isso não teria nada de anormal, uma vez que o
dinheiro é indispensável para a construção do aparato e este, o aparato, é a
condição e a garantia de mais dinheiro.

Os três candidatos às eleições presidenciais eram oriundos dos três


maiores aparatos do país. Até a ordem de chegada dos candidatos corresponde
ao nível de grandeza e de sofisticação dos aparatos. Os problemas que surgiram
nas mesas de voto tinham sempre a ver com a maior ou menor capacidade
destes em colocarem seus membros em cada uma delas. No fundo, o controlo
do processo, como dos resultados, dependem da capacidade dos aparatos. O
resultado positivo que o MDM obteve nas autárquicas, deveu-se, segundo eles
próprios e segundo os comentários dos especialistas, à capacidade que teve de
controlar as urnas e de fazer uma contagem paralela. Foi o contrário disso que
nas presidenciais sentenciou a sua derrota.

As recentes hostilidades militares e conflitos que se registaram não


tinham que ver com diferentes projetos de sociedade; o que vimos foi o conflito
entre aparatos militares. Da mesma maneira, durante a campanha eleitoral,
apesar da omnipresença dos meios de comunicação, não houve nenhuma
confrontação dialéctica. As únicas confrontações tiveram que ver com a

70
Terceira questão

ocupação ou mesmo destruição de sedes de partidos adversos, com o


impedimento de que os aparatos realizassem os seus comícios em certos
lugares. Em suma, tratou-se de impedir o funcionamento eficaz de aparatos
adversos.

Então, a única maneira de prevalecer sobre os seus adversários consiste


em aumentar a potência do próprio aparato. Aliás, o simples fazer-se ouvir por
indivíduos do seu próprio campo e do campo adverso, pressupõe a utilização do
aparato, até com uso de tecnologias sofisticadas, das quais a vida política parece
não poder prescindir.

Por isso, não é surpreendente que o elemento focal da política se


concentre numa competição padrão: o aumento da capacidade dos aparatos, em
detrimento daquilo que ainda podia subsistir de ideias e de ideais democráticos.

Quem se encontrar em condições de inferioridade sob ponto de vista do


aparato, homens, máquinas, tecnologias, dinheiro, vai encontrar-se numa
posição que o condenará à derrota. É por este motivo que todos os partidos
estão gradualmente modificando os próprios projetos, isto é, se vão modificando
eles próprios, e de partidos com fins políticos, passam a estar ao serviço do
aumento da potência do aparato.

Isto significa que os aparatos transformaram a sua própria natureza, e de


meros instrumentos tornaram-se o objetivo em direção ao qual a ação política
está a tender. De meios finalizados a realizar os objetivos ideológicos, libertar
Moçambique, ou lutar contra o partido único, tornaram-se o objetivo supremo
dos partidos; o objetivo ao qual é subordinada a realização dos ideais. Para
realizar-se a si próprios, os partidos devem ser potentes; mas para sê-lo, devem
renunciar a si próprios, à própria alma.

Dirigimo-nos, cada vez mais, em direção a uma contraposição, não


centrada em conteúdos explícitos nem em tomada de posições em função de

71
Terceira questão

valores, mas com base numa vontade formal de cada uma das partes não
sucumbir diante da duplicação de si.

Esta situação é de mau agouro, na medida em que as outras forças


políticas se apercebem de que a única coisa que se lhes impõe, para entrarem na
competição democrática, passa necessariamente pela detenção de um aparato.

Na situação de competição política, post-política, em que nos


encontramos, cada força se encontra confrontada com um dilema: ou sucumbir
diante do adversário, ou subordinar a realização dos seus objetivos ao aparato
que deveria realizá-los; isto é, subordinar a realização dos seus objetivos ao
incremento da sua potência.

Herbert Marcuse qualificou o homem subordinado à técnica como


unidimensional. Não poderemos nós falar da nossa política como
unidimensional, subordinada simplesmente à dimensão do aumento da potência
do aparato?

Esta primazia dos meios sobre os fins, ou se quisermos, a transformação


dos meios em fins, tem consequências graves sobre o funcionamento da nossa
jovem democracia. Se o acento é posto no dinheiro, subsiste a questão de saber
onde é que as diferentes forças políticas vão buscar o dinheiro para alimentar os
seus aparatos. Tal resulta na transformação de partidos em holdings, passa pelo
uso e abuso dos fundos do Estado, pela manipulação dos midia, por conluios
com meios económicos de moral duvidosa, até ao aumento da dependência
externa.

Outra fonte possível é a contribuição dos membros dos propríos partidos.


Neste caso, estaríamos na maior das normalidades, na forma como os partidos
deveriam de facto funcionar. Mas a questão é saber onde é que os membros dos
partidos vão buscar as somas avultadas que exigem o crescimento e o
funcionamento dos aparatos. Ora os militantes têm dinheiro porque pertencem

72
Terceira questão

ao partido-estado que lhes abre as oportunidades; financiam o aparato para que


este possa crescer e assegurar-se da vitória, e esta vitória é a garantia de mais
oportunidades. Estamos assim num círculo vicioso.

Este modus operandi afasta os aparatos de toda e qualquer ideologia,


aliás, faz da aparatocracia a única ideologia válida. Então não é surpreendente
que indivíduos ou grupos de malandros, mafiosos, traficantes, apareçam como
financiadores dos aparatos. Não é surpreendente que se organizem jantares
onerosos em apoio aos candidatos, e que os indivíduos que se sentam à mesa do
chefe suscitem as suspeitas do grande público. Tal diminui ou mesmo retira a
credibilidade moral aos candidatos, à política e mesmo à democracia.

Os partidos mais pequenos, sem acesso direto aos meios do Estado, que,
portanto, não auferem de maneira autónoma os seus meios do erário público,
podem fazer depender a própria existência ou sobrevivência de meios externos.
Ora esses meios não são gratuitos; e uma das primeiras consequências é uma
grande dependência do exterior, o que abre as portas a uma maior ingerência,
até mesmo nos programas, nos objetivos e no funcionamento dos próprios
partidos.

Isto não terá nada de extraordinário, pode-se objectar, uma vez que o
próprio Estado fica completamente à mercê de interesses externos e mesmo o
essencial das políticas públicas é traçado por organismos internacionais.

O Jornalista Fernando Lima, num dos programas dominicais da STV


(opiniões) dizia que projetos como o da Cahora Bassa e Nomatum não foram
previamente negociados com o FMI. Quer dizer que todo o empreendimento
nacional tem que ser previamente negociado com eles? Aliás, o mesmo Lima,
numa passagem posterior, afirmava que o FMI tinha chamado a atenção ao
governo, sobre a insuportabilidade da dívida quando feita sobre

73
Terceira questão

empreendimentos não rentáveis. Ė obvio que uma ponte que só permite a


passagem da populaçã não é rentável…

Por outro lado, numa democracia de aparatos, que talvez seja mais correto
apelidar de aparatocracia -onde o maior deles é o militar-, é quase inevitável que
a reivindicação de meios leve a conflitos militares. Torna-se quase normal a
disputa em volta da detenção da violência legítima (Max Weber) entre as
diferentes forças, o que aliás é um dos temas centrais das conversações da
Joaquim Chissano. Resulta também normal que forças políticas como o MDM,
que não dispõem de militares, questionem a legitimidade desse fórum.

Seria moralmente bom pensar que o fim das recentes hostilidades e o


retorno ao diálogo resultassem do amor pelo povo, pelas crianças, pelas mães,
pelos soldados, forçados por mobilizações obrigatórias ou desespero, a ir dar a
própria vida por razões que não conhecem e que não são sempre nobres. Seria
bom que o conflito tivesse terminado por razões ligadas à defesa das
infraestruturas, à proteção dos cidadãos. Mas penso não estar muito longe da
verdade se disser que interesses alheios (e a imposição de quem têm aparelhos
mais fortes do que os nossos) acabaram prevalecendo. O que estava em causa
ou o que determinou o fim do conflito, foi a necessidade da preservação dos
nossos pequenos aparatos.

Quid da justiça? O que dizemos ou fazemos agora com aqueles que


perderam a vida? Com os pais que ficaram sem filhos, famílias sem casas? Foi
bom que se encontrasse um acordo entre os beligerantes. Ė bom ver, por
exemplo, que dirigentes circulam livremente nas cidades, entram nos
supermercados; o Marcelino com as quizinhas, a Luísa Diogo com o cão, o
Machungo no jogging, etc. Mas como diria Derrida, aqui o direito não esta em
conformidade com a justiça. Por isso mesmo, o filosofo francês diz que o direito

74
Terceira questão

pode ser sempre reformado (iura semper reformanda) o que temos que buscar
sempre é a justiça.

Responsabilizar os diferentes actores pelos seus actos não significa


necessariamente condená-los. Para mim, justiça não é, em primeiro lugar, um
conceito jurídico ligado a tribunais, juízes, advogados e polícias. Justiça é, antes
de mais, um conceito filosófico ligado à necessidade de uma vigilância
constante, na criação e preservação de relações sociais sãs, e na defesa dos mais
fracos. Isso implica o que o filósofo alemão, Hans Jonas, chamou de princípio
de precaução.

Aliás, as amnistias que nos concedemos reciprocamente depois de


conflitos, os quais, com um pouco de precaução e bom senso, podiam ter sido
evitados, não nos ilibam de sermos um dia trazidos à barra dos tribunais. Com
efeito, o direito internacional, nas suas contradições, criou esses tribunais com
vocação exclusiva a julgar os dirigentes do chamado terceiro mundo. Qualquer
dos nossos dirigentes, independentemente das amnistias internas, pode ser
levado a essas inquisições contemporâneas, onde impera a lei do
internacionalmente mais forte.

Os processos contraditórios e violentos que vivemos nas últimas décadas


-regadas de muitas mortes e de muito sangue-, quer durante a luta de libertação
nacional, quer durante a guerra dos quinze anos, nas hostilidades recentes, no
interior mesmo dos partidos como aconteceu na Africa do Sul, talvez requeiram
um processo de reconciliação mais substancial e abrangente do que o processo
pontual de que a Joaquim Chissano é hoje o palco, como antes fora Roma.

No contexto atual, o risco é que a própria democracia que deveria ser uma
forma social ideologicamente neutra e com o objetivo de limitar os embates
ideológicos, se transforme, ela mesma, numa ideologia. O problema é que a
vontade das populações se exprime nos partidos, e estes deveriam realizar a

75
Terceira questão

vontade daquelas. Só que os partidos, convertidos em aparatos, se tornaram


incapazes de realizar a vontade das populações. Este status quo torna a
democracia aparente.

Mutatis mutandis, a própria democracia não pode realizar os seus


objetivos sem o aparato, e por isso mesmo, é obrigada a subordinar-se ao seu
incessante crescimento. O autogoverno democrático torna-se assim ilusório; a
vontade popular deixou de ser livre e sucumbe literalmente à prepotência dos
aparatos.

No interior mesmo dos partidos, a transformação destes em aparatos


acaba desviando a essência do debate. Numa recente entrevista ao jornal
Savana, Dhlakama acaba subordinando ou justificando as suas posições
movediças à pressão que o aparato-Renamo exerce sobre ele quanto à eficácia
da sua estratégia. Os problemas pós-eleitorais de Simango no MDM, acusado de
não ter sido eficaz no controle das mesas de voto, vão no mesmo sentido. Na
Frelimo, o grande problema é ver quem detém as rédeas do comando do partido.
Isso quer dizer que quem manda não é quem foi eleito pelo povo, mas quem
detém as rédeas do aparato. Não foi este o espírito do décimo congresso?

Então, como é que a nossa pequena e jovem democracia pode evitar a sua
subordinação à aparatocracia? Vimos atrás que as tecnologias e artes da difusão
de informação, que se supõe, favorecerem a participação do maior número nas
decisões, nos levam a um beco sem saída.

Os meios de comunicação difundem uma cultura selecionada com base


em critérios aparatocráticos. Os diferentes grupos já se apropriaram da difusão
da midia fazendo dela um instrumento de política unilateral. Neste sentido, os
mídias não fazem mais que reforçar este processo anti-democratico.

76
Terceira questão

7. A TRIBALIZAÇÃO MOÇAMBICO-ATENIENSE DA POLÍTICA

O segundo perigo é a tribalização dos aparatos e consequentemente da


política.

Eu quero dar ao conceito de tribo um significado diferente daquele que é


comummente usado. Sei que tribalização política em Africa invoca, em
primeiro lugar, os eventos do Kongo de Patrice Lumumba, quando os belgas
favoreceram ou até mesmo propulsionaram a emergência de partidos e
candidaturas com carácter étnico, como foi o caso dos kassavubus, mobutus e
outros. Aliás, esta emergência da tribalização política foi trágica para o
continente, desde os massacres do Biafra na Nigéria, até aos horrores do
Ruanda.

No contexto moçambicano, os proto movimentos nacionalistas


inscreviam as suas dinâmicas no interior de espaços étnicos, que talvez fossem
os únicos que os protagonistas conheciam. Isso fez com que o grande esforço
levado a cabo pela Frelimo, já durante a luta de libertação nacional, era fazer
coincidir a nacionalidade cultural com a nacionalidade política.

Todavia, há ainda na nossa política um resíduo de etnicidade, que vai de


uma espécie de geopolítica eleitoral que tem assegurado incondicionalmente a
vitória da Frelimo no Sul e da Renamo e do MDM no centro e algumas partes
do norte. Este resíduo étnico manifestou-se no surgimento das associações dos
amigos de Gaza, Sofala ou Nampula, que disfarçam mal uma mistura entre
tribalismo e regionalismo. Aliás, foi numa cerimónia dos amigos de Cabo
Delgado, claro, sempre no Maputo, que o antigo ministro da defesa, Alberto
Chipande, empossou o candidato Nyusi como legítimo sucessor do presidente
Guebuza.

Se estas formas de etnicização política têm ainda um carácter fraco, não


se pode dizer a mesma coisa do que aconteceu no interior mesmo do partido

77
Terceira questão

Frelimo nas últimas eleições: o facto de ter apresentado como candidatos só


indivíduos do centro e do norte –Nyusi de Cabo Delgado, Pacheco, de Sofala,
Vaquina de Nampula, e os da última hora, Luísa Diogo e Aires Ali de Tete e
cabo Delgado respectivamente- significa ter assumido a existência de um
problema étnico-regional. Tratou-se, de facto, de escolher um candidato que não
fosse do sul. O que quer dizer que, quaisquer que fossem as qualidades e
competências de um homem meridional, ele tinha um defeito intransponível que
o excluía da corrida: o facto de ser do sul; como outrora, Marcelino dos Santos,
por duas vezes, não tenha, talvez, podido ser presidente por não ser negro.

Durante muito tempo, o termo negro foi usado para fazê-lo corresponder
à cor da pele, a uma dita raça. Sabemos, contudo, que o conceito de raça não é
cientificamente defensável. Aliás, ele corresponde a uma categoria zoológica.
Quando foi mobilizado e transferido, abusivamente, para o campo social, pela
escola das formas em Göttingen no século XIX32 e depois retomado por
pensadores franceses como Gobineau, suscitou muitas reações, entre as quais a
de A. Firman33. Este tema constava do primeiro congresso pan-africano de
1900, depois que a França retirou o tema da agenda de debate sobre as raças que
se devia ter realizado durante a exposição universal.

No Brasil, depois da Lei Lula sobre as ações afirmativas, o número de


negros ou candidatos a negros aumentou. Nasceram os pardos, os negros
brancos com olhos azuis, etc. O que se tem que compreender é que, finalmente,
o termo negro ganhou a sua verdadeira dimensão, que é social. Se no Lourenço
Marques colonial, em Pretória, ou Salisbúria, havia placas nas entradas dos
hotéis e restaurantes proibindo a entrada aos negros, hoje, esses escritos

32 Bernal , Martin. Black Athena, Rutgers University Press, 1991.

33 Enquanto Goubinou escreveu “As desigualdades das Raças Humanas” (Essai sur
l'inégalité des races humaines, 1855, Paris) , A. Firman respondeu com “ As Igualdades das
Raças Humanas” (Paris, 1885)

78
Terceira questão

desapareceram e no seu lugar, foram fixados os preços, que, na verdade,


determinam quem tem ou não acesso.

Os novos negros, não no sentido do filósofo Alain Locke, deixam de ter


uma conotação biológica que passa a ser social. Existem hoje negros pretos,
mulatos, indianos, brancos, que não podem aceder a certos lugares. Da mesma
maneira que há pessoas com a pele escura (os obamas, as condolezas, os dos
santos, as graças) que não encontram nenhuma porta que se lhes feche.

Da mesma maneira, o conceito de etnicidade ou cidadania étnica tem que


ser repensado na sua dinâmica no campo politico.

Devemos aos gregos o conceito de polis. Porém, quando os gregos falam


da polis, referem-se à morada de pessoas de uma determinada estirpe, ao lugar
onde os cidadãos têm as suas raízes. Na língua grega, o termo polis ressoa
imediatamente de um forte enraizamento. A polis é o lugar onde determinados
individuos, especificos por tradições, por costumes, por língua têm o próprio
ethos. Então a pertença, a cidadania (política) depende do meu genos. Mesmo
quando se estabelecem pactos entres diferentes polis (foedera) para fazer face a
pressões externas, ou nos encontros festivos das olimpíadas, não desaparece o
carácter isolado, diferencialista, ilhéu, porque nenhuma das cidades gregas pode
integrar o diferente. Quem é livre, mas não pertence à estirpe, tem a condição
do meteco, hóspede.

O próprio logos tinha para os gregos um significado étnico, não era um


simples instrumento. Aliás, caracterizava-os enquanto helenos em relação aos
bárbaros. Um dos elementos do ethos grego é a língua, que tem as
características de medida, de articulação, de riqueza; e é a única que pode falar
com franqueza e liberdade (parresia); o único logos capaz de fazer diálogos. A
nomos, a lei ( com raízes terrenas, de pastar) é o processo através do qual se
divide a terra, e essa divisão tem de ser submetida a um princípio de justiça.

79
Terceira questão

Porém, a justiça declina-se sempre em relação à polis, quer dizer, aos próprios
cidadãos.

Não há, em Moçambique, nada que se pareça à polis grega. Mesmo as


etnias mais pequenas ou mais fechadas têm sempre elementos de diferenciação,
do outro, de abertura. A pureza genética é algo que não conhecem, nem as
nossas culturas nem os nossos processos políticos. Contudo, vale a pena ver a
distinção numa outra origem histórica, a romana.

A determinação ontológica e genealógica da polis grega é completamente


ausente no conceito da civitas romana. Para os romanos, a civitas 34 é o que é
produzido para permitir o viver juntos sob as mesmas leis. Até o mito fundador
de Roma reza que é o confluir, o convir entre pessoas de diversas raças, etnias,
para concordar as leis que permitiu a fundação da cidade. Ė o grande mito da
concórdia romana que domina Tito Lívio e os posteriores. Quando se lê o
primeiro livro da história de Roma Ab urbe condita, isto transparece
imeditamente. O primeiro deus a quem vem dedicado um templo é Asylum.
Roma funda-se através da obra de varões que até tinham sido banidos de outras
cidades, que eram refugiados, fugitivos, expulsos. Com a famosa constituição
antonina de Caracala, nas primeiras décadas do século III depois de Cristo,
todos os habitantes livres que vivem no interior das fronteiras tornam-se
cidadãos, independentemente da proveniência ou da religião.

A questão seria então saber para que lado deve pender a nossa concepção
de cidadão, conferir-lhe um valor fortemente étnico ou então entendê-la no
sentido de civitas? Não podemos esquecer que, para os romanos, alguém se
torna cidadão de pleno título, com os mesmos direitos (e deveres),
simplesmente porque aceita sujeitar-se às leis comuns. A razão fundamental
desta invocação é que ela junta cidadãos de diferentes origens, mas com
objetivos comuns.
34 Cf. Massimo Cacciari, La Cittá, 2004.

80
Terceira questão

O significado que eu queria dar à tribalização da política é ainda outro.


De facto, existem novas tribos ligadas aos aparatos, são as tribos do cartão
vermelho (Frelimo), azul e branco (MDM), acinzentado (Renamo). Quem
quiser singrar na carreira, ocupar lugares cimeiros na sociedade, na
administração estatal ou mesmo no privado, já que o aparato no poder é também
o redistribuidor das oportunidades, tem que ter um cartão vermelho. Emerge
assim uma tribo que goza de uma cidadania, a cidadania da cor vermelha.
Chamo isto de tribo (no sentido romano), pois nela podem aderir todos,
independentemente das ideias, convicções, posicionamentos políticos,
ideologias, origens, cor da pele, moralidade, etc. A única coisa que conta é que
se adira, se participe na fortificação do aparelho e em contrapartida -como toda
a cidadania tem os seus deveres, mas também os seus direitos- goza-se o
fundamental destes direitos que são as oportunidades.

Uma das consequências nefastas das lutas entre aparatos é que num pais
como o nosso, com um número de quadros e de recursos humanos muito aquém
do necessário, os muito poucos quadros que temos, não podem ser todos,
devidamente utilizados, pois só são bons os que são úteis à causa dentro do
prisma da confrontação aparatocrática. A lógica da confrontação entre aparatos
reza que quem não está conosco é contra nós, o que comporta uma lógica de
exclusão.

Desde a independência, o país pautou pela massificação da educação. O


objetivo era dotar o país de quadros na luta contra o subdesenvolvimento. Este
investimento tem sido, durante décadas, consequente. Seria um desperdício que
uma parte desses mesmos quadros não fosse utilizável para a causa comum,
devido às suas inclinações partidárias. Aliás, isso iria mesmo contra aquilo que
se supõe a educação fazer: dotar os indivíduos de capacidades intelectuais e de
qualidades humanas. Edgar Morin fala de saber ser, saber estar e saber fazer;
Kant fala de autonomia, isto é, da capacidade de decidir por si mesmos, de fazer

81
Terceira questão

escolhas livres e responsáveis para a própria vida, mas também para o bem da
sociedade. Toda a educação que tendesse a uma finalidade diferente seria um
endoutrinamento, seria pré-determinar os indivíduos, não para actuarem como
futuros cidadãos responsáveis, mas sim como indivíduos alinhados numa
determinada ideologia.

Dado que a ideologia de 1975 foi abandonada a favor de uma oposta, o


endoutrinamento consistiria em levar os discípulos a serem fiéis à tribo,
independentemente dos desvios, das incongruências, das contradições que se
produzam no seu seio. Assim os professores seriam teólogos, missionários,
evangelistas, catequistas, o que explicaria todo o desvio à dogmática do aparato
como heresia. Isso justificaria também que os aparatos tivessem uma censura e
inquisição, encarregadas de estabelecer as verdades de fé, zelar pela sua
manutenção e punir os galileus desviantes, mesmo que tenham razão quando
defendem o heliocentrismo.

O papa Urbano VIII pergunta a Galileu quem lhe garantia que, com a sua
pequena cabeça de homem, podia ele chegar a verdades mais importantes do
que aquelas que foram reveladas? Se Urbano VIII estivesse aqui entre nós,
perguntaria quem és tu para questionar as directrizes do aparato? Brecht, na
famosa peça, Galileu Galilei, põe simplesmente como resposta na boca do
florentino: Eppure se muove (…). A verdade da ciência, do saber, do
conhecimento, que se supõe a universidade ensinar, deve subordinar-se à
teologia e ao dogma dos aparatos.

Então o professor, o estudante, os nossos possíveis futuros galileus, são


obrigados a pautar não pela convicção, mas pela conveniência. Mesmo que você
não acredite, que não esteja de acordo, é conveniente, por exemplo, ter o cartão
vermelho para não ser excluído, estigmatizado e por consequência perder as
oportunidades. A esta atitude de falsidade, de hipocrisia, de mentira estão

82
Terceira questão

sujeitos todos os cidadãos. Transforma-se, assim, a vida social numa farsa, faz-
se de contas que todos os adjetivos eticamente reprováveis e contrários aos
princípios sobre os quais se devia basear a relação entre indivíduos na
sociedade.

A inquisição, porém, não limita a sua ação às instituições de ensino, às


universidades, mas estende-a ao controlo de toda a opinião. Falou-se muito nos
últimos tempos de mídias que eram comprados por indivíduos
aparatocratamente alinhados, o que na realidade significa a aquisição desses
meios pelos aparatos. Falou-se muito de um dito cujo – melhor dizer dito sujo-
G40. Isto não é nada de anormal, pois a lógica dos aparatos tem no seu ADN o
controlo e a manipulação.

Controlo e manipulação estendem-se às áreas da justiça e dos órgãos


eleitorais. A paródia a que assistimos, quando da eleição do presidente da CNN,
foi exemplar, com o eis presidente a candidatar-se à sua própria sucessão em
nome de uma ONG que não o reconhecia; e com o novo a ser apresentado por
um presidente de uma outra ONG que não estava informada. Tratou-se de facto
de manobras e manipulações dos aparatos, com a finalidade de controlo.

Contudo, o caso de Moiana foi pitoresco. Ele chega à CNN candidatado


pela Renamo. O que o aparato Renamo espera dele é que ele jogue
incondicionalmente a seu favor. Moiana não o fez, por isso é imediatamente
considerado traidor. Terá traído? Na lógica dos aparatos, não há dúvida que sim.
Foi posto lá para obedecer a uma lógica que ele acabou traindo.

Numa entrevista que concedeu a um dos semanários locais, Moiana


defendeu-se dizendo que votou em consciência pela validação das eleições. O
que Moiana não equacionou foi que, na lógica dos aparatos, não há lugar para a
consciência; ela não existe nem deve existir. Terá Moiane sido aliciado,
cooptado por um outro aparato diferente daquele que o candidatou? Se foi esse

83
Terceira questão

o caso, o grande jogador do xadrez (como diria Stefan Zweig) mediático que é
Moiane tornou-se um xadrezista dos aparatos. Moiane votou em consciência?
Então a única coisa que podemos fazer é nos congratularmos com ele e tirar o
chapéu sempre que o virmos passar. Isto significaria que existiriam ainda, na
nossa sociedade, resíduos de moralidade, homens e mulheres que pautam por
valores da honestidade.

Mas, supondo que seja inteiramente verídico o episódio que acabamos de


descrever, exclusão dos não “yes mans”, isto é, daqueles que têm a veleidade de
pensarem com a própria cabeça e ter posições autónomas; a instauração de uma
sociedade de receio e de medo, controle dos meios de comunicação e
instauração não de fazedores de opinião, mas de propagandistas de dogmas;
controle da justiça, controle dos órgãos eleitorais, incremento de máquinas de
guerra e repressivas; a pergunta que se impõe é, o que resta da democracia? O
filósofo Rob Riemen fala do eterno retorno do fascismo.

A partir desta afirmação, alguém se poderia escandalizar, se ofender,


sentir-se insultado, ultrajado, desrespeitado, agredido: eu fascista?! A única
resposta seria que, em nenhum momento, eu teria tido a intenção de ofender
fosse quem fosse. Todavia, vejo um paralelismo entre estas práticas e aquilo que
comummente se chama de fascismo. Por conseguinte, eu poderia retorquir:
afinal de contas o que é o fascismo? Neo patrimonialismo seria mais brando?

Quanto à interrogação sobre o que resta da democracia, vale a pena fazer


um percurso socio-histórico. Nas últimas décadas, em todas os países
democráticos do ocidente, repete-se a mesma ladainha. Cada partido que sobe
ao poder, vai com a tese da reforma das instituições (França, Portugal, Grécia,
Espanha). Mas o caso mais emblemático é a Italia.

Nesta península, desde a queda do comunismo e mesmo antes, não se


consegue resolver o problema da pobreza no sul, não se consegue

84
Terceira questão

desembaraçar-se da mafia e da convivência entre a política e a criminalidade


organizada, não se consegue resolver o problema da emancipação da justiça.
Antigos democratas cristãos como Andreotti e Aldo Moro foram eleitos com
esta finalidade. Socialistas como Craxi, antigos fascistas como Fini, ex-
comunistas como D´Alema, neo-liberais, como Monti, mas os resultados não
mudam. E, como se isso não bastasse, a certa altura, a corrupção, ligada ao
monopólio mediático e à indústria do divertimento lançou Berlusconi na arena
para defender diretamente os seus interesses.

Chamar a isto conflito de interesses é ser macio demais na linguagem. Se


não tivesse receio de ser mal educado, falaria de um estado mafioso, onde a
ilegalidade se instaura em regra e a anormalidade campeia. Por isso, quando, no
contexto moçambicano, se fala de fraude, tenho a impressão que há problemas
de linguagem e de discurso...

A nossa anormalidade-normalizada, ligada, doravante, ao nosso direito


consuetudinário, mas negada, teoricamente, pelo nosso direito positivo, não se
resume às reais ou supostas fraudes eleitorais, mas está ligada à génese e à
história da nossa democracia. Desde a origem, a maneira violenta e de
imposição externa (democratismo) como ela emergiu, a natureza e o estatuto
dos novos atores sociais: os novos partidos, a sociedade civil, a imprensa
independente, etc. falam por si.

Eu já tinha invocado este problema nos tempos da filosofia. Mas, na já


citada intervenção de Chipande, na festa do seu décimo quinto aniversario, o
que me pareceu relevante não foi ter celebrado Nyusi como o herdeiro legítimo
do presidente Guebuza, nem o quadro – associação dos amigos de Cabo
Delgado-, nem mesmo a afirmação segundo a qual a Frelimo tem um plano para
governar o país nos próximos cinquenta anos. O que me pareceu relevante foi

85
Terceira questão

ele se ter dirigido a uma entidade não especificada dizendo: eles, nos países
deles, também tiveram oliquarquias e pobreza…

Quem são esses, que parecem o alvo principal de Chipande e da Frelimo?


No fundo da sala, via-se Marcelino dos Santos numa clara atitude de
conivência. Como disse nos tempos da filosofia, parece que o adversário
principal da Frelimo não é, in primis, a Renamo, mas uma identidade anónima,
decerto externa. Este espírito ou espantalho que ronda nas sombras, aumenta o
grão de anormalidade da nossa vida política e das nossas instituições.

8. A NECESSIDADE DE FORTALECER A DEMOCRACIA

A normalização da situação política não se resume simplesmente em


reformas institucionais. Já tentamos, com Óscar Monteiro, escangalhar o
aparelho colonial; depois, com o Banco Mundial, entramos nos ajustamentos
estruturais. Mas esses dois processos pecam pela sua visão administrativa e
conjuntural do problema. Etounga Manguelle 35 fala da necessidade de fazer um
ajustamento cultural. Só que ele se refere a uma concepção antropológica da
cultura. Ao invés, a cultura que se deve alterar tem a ver, em primeiro lugar,
com a dimensão moral da nossa vida política, e em segundo lugar, com uma
refundação em profundidade das nossas instituições democráticas.

Como vimos, os filósofos da escola de Frankfort, Adorno e Horkheimer,


tinham prevenido sobre o perigo alienatório dos meios de comunicação de
massa. Esta tese foi contestada por Gianni Vattimo, que ao contrário via neles,
uma possibilidade de emancipação.

O que me parece importante, num quadro político dominado pelo conflito


entre aparatos, não é a alienação ideológica das massas, quanto ao facto de

35 L'Afrique a telle besoin d'un programme d'ajustement culturel?, París 1991.

86
Terceira questão

estes, na sua confrontação, da qual a mídia é um dos meios, alienarem-se


completamente do povo.

Vista da parte do povo, se esta alienação comporta um distanciamento em


relação aos aparatos e às suas ideologias de sempre maior potência, até seria um
bem. Só que os aparatos, filhos decadentes de partidos pós-políticos, são ainda
confundidos e identificados com os partidos, e estes com o governo, e este com
a política. O resultado é uma crescente desconfiança e descrédito em relação a
toda a democracia. Então corre-se o risco não só de haver democracias sem
democratas, mas também sem povo; o que justifica que, ao invés de se falar de
democracia, se deva falar de aparatocracia.

Teríamos então duas entidades ontológicas distantes e até contrapostas:


de um lado, o que Frantz Fanon apelidou de condenados da terra, do outro, os
eleitos aparatocráticos.

Visto do lado do povo, o nós, os condenados da terra, seria uma categoria


existencial quase identificável. Mas o “eles” constituiria, ainda uma nebulosa,
um enigma a ter que ser desvendado. Quem são “eles”, os outros do povo?
Como já mencionei, o perigo é que esse eles, numa análise descuidada, e até por
razões óbvias ligadas à promiscuidade, transborde os aparatos e atinja outros
níveis da sociedade.

A maior parte das pessoas confundem a Frelimo aparato com a Frelimo


partido, como outrora confundiram a Frelimo partido com a Frelimo – Frente de
Libertação. Da mesma maneira, confundem a Renamo aparato com a Renamo
Resistência Nacional e outros a Resistência com a Voz da África Livre ou com
os Madjakaisssas.

A não clarificação da transformação socio-ideológica dessas identidades


movediças leva muita gente a identificar os fautores das independências de
ontem com os aparachiques de hoje; os auto designados pais da democracia de

87
Terceira questão

ontem com os aparatocratas de hoje. Esta miscelânea é perigosa, na medida em


que a Frelimo e a Renamo não são só e historicamente, as principais forças
políticas do país -e sem omitirmos os quinze anos de guerra-, são os
protagonistas dos acordos de paz, antigos e recentes, os protagonistas e atores
da democracia multipartidária.

Se eles se tornam nos outros do povo, é toda a nossa democracia que


fica hipotecada. Isto significa que a simbiose ou a não diferenciação entre os
aparatos e os partidos, pode levar ao descrédito e até mesmo ao desencanto
daqueles (muitos), que, confundindo os aparatos com os partidos, e estes com a
democracia -da qual têm sido os principais fautores-, acabam levando o seu
descrédito e o desalento à própria democracia.

Por outro lado, o povo pode ter a percepção que, quer a guerra quer a paz
dependem do bom querer desses aparatos-partidos. Mas, ao mesmo tempo, são
esses mesmos que legislam –quer seja legalmente no parlamento, quer
abusivamente na Joaquim Chissano-, que determinam todos os poderes da
soberania do Estado, que governam, etc. Então, o descrédito e o desencanto,
estendem-se automaticamente a todo o governo e a toda a classe politica.

Era comum, durante o processo eleitoral, ouvir pessoas (mamanas no


mercado, chapeiros) dizerem que não iam votar porque aquilo era um problema
entre partidos; que as votações não mudavam nada nas próprias vidas; elas
precisavam de se ocupar daquilo que dava pão aos filhos. Ou mesmo, durante as
hostilidades, dizerem que eles têm que falar, que eles têm que se pôr de acordo,
que eles têm que acabar com a guerra: Eles...

Mas, ainda mais, o significado do eles pode-se alargar perigosamente a


outras camadas sociais. Como vimos, a natureza dos aparatos é aglutinar,
fagocitar todos aqueles que podem servir a causa. Já não se trata de um simples
matrimónio neoliberal entre a política e o dinheiro, mas até as elites intelectuais

88
Terceira questão

se encontram doravante, engolidas pelos aparatos, fornecedores de


oportunidades. Então nos eles, encontram-se incluídas todas as elites -politica,
económica, intelectual- do país.

O eles ganha uma nova extensão e passa a incluir as elites, os


privilegiados, os novos-ricos, os novos brancos diante dos quais as portas não se
fecham. “Eles” passa a significar aqueles que não conhecem a nossa miséria
senão pelo posto de televisão. Aliás, eles ganham dólares glosando sobre o
estádio da nossa miséria absoluta; fazendo projetos sobre a nossa pobreza e
indigência. O que seria deles se nós deixássemos de ser pobres, de ter sida, se
diminuíssemos a nossa mortalidade infantil? O que fariam, se deixassem de
fazer debates sobre o estádio da nossa pobreza absoluta. Muitos deles deixariam
de ter trabalho, de fazer discursos, pior, de poder ir mendigar dinheiro no
estrangeiro em nome da nossa desgraça.

Se tivéssemos que interpretar isto, numa chave da filosofia histórica,


teríamos que convocar o defunto Marx, sempre mais reabilitado36, sobretudo
depois do Espectro de Jacques Derrida. Porém, invocar Marx depois do recente
livro do filósofo moçambicano Alberto Ferreira37, requer que se faça uma
separação entre o Marx filósofo, o Marx sociólogo, o Marx economista e o
Marx militante político. O Marx do marxismo, mas de que marxismo? O dos
textos, mas de que textos? Textos de Marx provenientes ou influenciados pelo
idealismo alemão, pelo socialismo utópico francês e pela economia política
anglo-saxónica; ou as interpretações autoritárias do leninismo, filosóficas de
Althusser, políticas de Gramsci?

36 Le Magazine Littéraire: Marx Les raisons de’une renaissance, nr479, Octobre, 2008.

37 Ferreira, Alberto. Totalitarismo e Democracia, Lisboa: 2014, Edições Paulistas.

89
Terceira questão

Sobretudo, ocorre recordar que Marx nunca foi marxista e que sobretudo,
o fim do marxismo tornou Marx filosoficamente frequentável. O que o faz
frequentável e torna a sua análise actual é que cada vez que o capitalismo
atravessa crises económicas, Marx ganha uma nova juventude.

Para Derrida, existem poucos textos, na tradição filosófica, talvez


nenhum outro, cuja lição seja hoje tão urgente. Nunca a violência, as
desigualdades, a exclusão, a fome, e por isso a opressão económica afectaram
tantos homens na história da terra e da humanidade38.

No nosso contexto, valeria a pena reler as teses do terceiro congresso da


Frelimo e o relatório do comité central ao quinto congresso, para ver as
metamorfoses do marxismo moçambicano.

Perante a distribuição desigual dos níveis de vida pelo país, o eles pode
ganhar ainda outras proporções mais preocupantes. O eles pode tornar-se o eles
do Sul (ou das cidades), do Maputo, da Nação. Não é o que se diz nas
províncias? O centro dos aparatos, das instituições do poder da corrupção (a
nova Roma), o centro da riqueza (a nossa Wall-street), o que justificaria que as
províncias, as periferias se levantassem contra esta nova Atenas. Não é o que
insinua Manuel de Araújo, edil de Quelimane, quando diz que “não nos
libertamos (da ditadura) de Maputo para sermos comandados a partir da Beira”?
Mas até onde pode ir esta vontade de emancipação do Maputo-centrismo?

Mas o que é Maputo (no conjunto das cidades moçambicanas), uma


metrópole grega ou romana? Não são os elementos genéticos que caracterizam
os habitantes das nossas cidades. Aqui não vivem nem Platão nem Aristóteles,
ciumentamente ligados a um gene e a um ethos. Aqui vivem raças, culturas,
costumes diferentes. São do Maputo aqueles que vivem no Maputo. Mesmo os
amigos de Sofala, da Zambézia, vivem e constituíram as suas associações no

38 Le nouvel Observateur, Outubro, 1993

90
Terceira questão

Maputo. São romanos que se querem fazer valer dos seus genes atenienses para
tirarem benefícios político-económicos.

Os membros dessas associações, nas suas províncias de origem, só


têm interesses económicos e casas de férias. Nunca vimos ninguém, mesmo
aqueles que deixam os seus cargos de governaçãoo, voltar para as terras das
quais são tão amigos. Aliás, os que são nomeados fora do Maputo, assim que
cessam as funções, precipitam-se para a capital. Do Maputo são todos os
habitantes da cidade, muitos dos quais, não obstante terem um ethos não
ateniense, usufruem melhores condições de vida, aqui, do que aquelas que
teriam no sentido grego, um ethos local; e é bom que seja assim, é bom que as
condições sociais não estejam ligadas a nenhum ethos. Mas também é
importante abandonar a hipocrisia de querer fazer-se passar por ateniense
quando se vive em Roma…

Aliás, durante as últimas hostilidades, a certa altura, a Renamo ameaçou


alargar a guerra para a zona Sul, e mesmo para Maputo. Quem ficou com medo
e quem não ficou? Se tivessem sido lançadas bombas nas escolas das cidades,
teriam sido escolhidos os changanas, os rongas e poupados os chonas e ou os
senas?

A era pós-politica, inaugurada com a queda do muro de Berlim, começou


da pior maneira - talvez mostrando que existe uma diferença entre a pós-política
e a pós-história. A primeira coisa foi a desagregação da URSS, não por causa de
ou graças a Gorbatchov – segundo os ângulos em que se posiciona-, mas porque
a aparatocracia soviética, completamente cega na sua luta contra os aparatos
ocidentais, não viu que a sua dinâmica lhe tinha alienado o povo; que o espaço
geopolítico não tinha nada a ver com as vontades que muitas vezes respondem
às necessidades. Então, à primeira oportunidade, e houve inversão da marcha:
da liberdade- opressão do eles, passou-se à opressão-liberdade do nós. Se a

91
Terceira questão

desagregação se faz com uma violência limitada, nas repúblicas bálticas e na ex


Checoslováquia, o processo também comportou graves focos de violência que
ficam ainda por resolver. As situações de conflito, no antigo território da
Jugoslávia, ainda não têm uma solução.

Mas esta dinâmica não se limita aos países do bloco comunista. Vimos
recentemente emergir veleidades de separação na Escócia e ainda com mais
força na Catalunha. O que dizem os catalães? Não queremos continuar a ser
comandados por Madrid; exatamente o que diz Manuel de Araújo, o
zambeziano.

Em África, uma coisa que a OUA conseguiu fazer, com relativo sucesso,
foi manter o respeito pelas fronteiras coloniais. Porém, os conflitos dos aparatos
-políticos e religiosos- levaram à divisão do Sudão, com a bênção ou mesmo
com o patrocínio daquilo que, Deus sabe lá porquê, se continua a chamar de
comunidade internacional.

A nossa história política recente, feita de um esforço contínuo de unidade,


primeiro dos proto movimentos nacionalistas, depois numa dinâmica contínua
nas três repúblicas sucessivas, vive hoje uma crise de identidade e de unidade
que não é étnica nem regional. Até pode parecer tratar-se de uma divisão entre
cidade e campo. No fundo, tem a ver com a vida e a dinâmica dos aparatos que
aceitem no seu interior malabaristas que, em nome de compromissos
aparatocráticos, se sintam com o direito de reivindicar espaços políticos em
Roma em nome da pertença a Atenas; direitos económicos nas zonas com
recursos em nome de um genos ou ethos. Se permitirmos isto, estaremos
remando exatamente no sentido ao oposto (unidade nacional) do que temos
vindo a defender há muitas décadas.

92
Terceira questão

À força de me repetir, parece-me que o que nos pode aproximar do povo


é a aproximação das instituições. Esta aproximação não pode fazer a economia
do espaço, da geografia. Não há hoje nenhuma razão que faça com que o
conjunto das instituições de soberania esteja encurralado no espaço restrito do
Maputo. Ė preciso recordar que Maputo foi capital para proteger-se o porto dos
Bóeres. Hoje, esse perigo não existe. Aos que temem perder a sua importância,
recordo que a posição económica do Maputo é ligada ao facto de ela ser um dos
quintais da Africa do Sul. Nós só somos lázaros que beneficiam das migalhas
que caem da mesa do senhor. Por isso, a transferência de alguns órgãos de
soberania aproximaria as instituições do Moçambique real, mas os Lázaros
continuariam no quintal do senhor...

Aproximar as instituições das pessoas significa também e sobretudo


fortificá-las, independentizá-las, a fim de que o povo possa ver nelas autoridade
e benefício e, acreditar que existe um Estado independente dos aparatos e ao
serviço da justiça. Apesar da sua importância, quando digo justiça não me
refiro, em primeiro lugar, à polícia, aos juízes, aos advogados e a toda a
máquina judicial que tem a ver, em primeiro lugar, com o direito. Quando digo
justiça, refiro-me à preocupação última da filosofia enquanto busca do bem
comum, refiro-me, como já defendi em outros escritos, a uma justiça costureira,
capaz de usar fios diferentes, díspares, e com um trabalho paciente, meticuloso
produzir um tecido comum. Quanto mais fio metermos na malha de uma
camisola, mais ela é sólida, mais ela resiste as intempéries, as vicissitudes do
tempo, às diatribes da existência. Ela não só resiste mais, mas também aquece
melhor. Ė isso a moçambicanidade.

Fortalecer as instituições significa torná-las capazes de exercer com


seriedade, serenidade, liberdade e responsabilidade as suas funções.

93
Terceira questão

Por exemplo, vejamos a questão do diálogo no centro Joaquim Chissano


entre a Frelimo e a Renamo. Nenhum moçambicano de bom senso ousaria
menosprezar a sua importância. Estão aí compreendidos os elementos
constitutivos de uma discussão séria: proporcionalidade nas delegações,
respeito, e ainda mais importante, reconhecimento recíproco. Na Joaquim
Chissano vê-se que cada partido defende as próprias posições, mas também é
evidente, que o espírito que anima as conversações leva a que cada uma das
partes, na busca do consenso (Cf. Jurgen Habermas), ceda em muitos pontos
para se encontrar a plataforma de entendimento. A filósofa espanhola Adela
Cortina, falaria de uma razão cordial.

Depois dos eventos bélicos de um passado recente, ninguém poderia


hesitar em afirmar que este diálogo deva continuar, deva contradistinguir a
nossa vida política; eu falei até do único método lícito e legítimo de
confrontação na nossa democracia.

Porém, o diálogo na Joaquim Chissano comporta um paradoxo. Primeiro,


ele não compreende todos os protagonistas da vida política nacional, nem
mesmo todos os partidos com representação parlamentar, isto porque ele é
consequência, não da evolução democrática, mas da necessidade de parar as
confrontações entre os dois aparatos militarizados.

Dada a importância e o impacto destas conversações, poderia parecer,


como aliás insinuou um membro sénior do MDM, que o protagonismo político,
a possibilidade de ser ouvido, de participar no verdadeiro debate, passa
necessariamente por se possuir um aparato militar; transformam-se assim as
armas em garante de participação.

A segunda anomalia é que o diálogo se faz em detrimento do parlamento


-constitucionalmente, o verdadeiro parlatório público- que se torna uma simples
caixa-de-ressonância. A discussão, o debate, as conversações, passam-se na

94
Terceira questão

Joaquim Chissano entre indivíduos que não têm legitimidade democrática e


constitucional, mas poderio militar. E o parlamento, limita-se simplesmente a
assistir a algo que parece absurdo em democracia.

É como se a nossa paz e democracia, e quem diz democracia refere-se


também às instituições que garantem o seu funcionamento, fossem subordinadas
a uma instância não democrática. Então seria a não democracia a garantir a
democracia.

A Joaquim Chissano é necessária, mas enfraquece o parlamento. Então a


questão é como manter o necessário diálogo sem enfraquecer as instituições?
Aqui temos nós (os intelectuais) que ser criativos, inventivos: criar, legitimar,
institucionalizar, legalizar o que é necessário para o bom funcionamento da
nossa democracia e não deixar que ela seja uma nebulosa estranha e estrangeira
às instituições que acreditamos zelarem pelo seu funcionamento.

9. AS INCONGRUÊNCIAS DO NOSSO MODELO POLÍTICO E


ELEITORAL

Para além da aparatocracia e da crise da moral (como sobejamente


mostrei com o exemplo de Atenas), outra constatação, que se pode depreender
das últimas votações, é a inadequação do modelo político, demasiado oneroso,
para as nossas condições económicas e sociais.

Eu gostaria que algum economista nos dissesse qual é o orçamento anual


das cinco províncias mais pobres do país, e quanto gastamos com as eleições
terminadas há pouco. Sem contas, mas olhando só para o número de cartazes
que pintaram literalmente o conjunto do país, as horas pagas nas antenas de
televisão, os meios de transporte terrestre e aéreo, o número de comícios com
bandas musicais, as publicidades nos jornais, as camisetas distribuídas, as forças

95
Terceira questão

policiais mobilizadas, da formação das pessoas para as mesas do voto, os hotéis


e casas alugadas, os salários para os funcionários do STAE, os subsídios de
campanha para os partidos, os meios técnicos (computadores, telefones, GPS,
rádios, etc.), parece-me poder afirmar, com uma certa probabilidade, que o
custo das eleições -falo do gasto do conjunto das forças em presença-, foi
demasiado elevado para aquilo que é o nível de vida dos moçambicanos.

Se já são um autêntico escândalo as cifras das eleições americanas em


cada quatro anos, e trata-se do país mais rico do mundo, esse escândalo torna-se
ainda maior e insustentável, quando se trata do mais pobre do mundo.

Quando invoquei a questão do modelo com alguns intelectuais locais, eles


tiveram uma reação análoga à dos intelectuais de Atenas; recusando o bem
fundado da democracia, no nosso contexto. Para uns, Moçambique ainda não
está pronto para a democracia, para outros, a democracia não se coaduna com
a nossa cultura - quer porque o nosso sistema cultural seria supostamente
patriarcal e supõe um pater familias, quer porque não é da nossa cultura,
dominada pela figura do ancião, ver um homem a exibir-se, dizendo, votem em
mim que eu sou o melhor; quer ainda – e aqui estamos na maior das
argumentações dos intelectuais gregos- porque, com mais de cinquenta por
cento de analfabetos, a democracia é irrisória, já que esses votariam de uma
maneira cega e sem conhecimento de causa.

A primeira objeção seria que a democracia não corresponde à nossa


cultura. Pode-se concordar, em princípio, com este argumento. Porém, de facto,
a democracia não corresponde à cultura de ninguém. Não há homens, países ou
povos que sejam geneticamente democratas. Mas também não há homens,
países ou povos que sejam antidemocratas por razões biológicas.

A questão se situaria então na dimensão cultural. Se fizermos a história da


democracia, vemo-la, como ideal-tipo, para fazer face ao dilema existencial e

96
Terceira questão

histórico do viver juntos ; entre, de um lado, a necessidade de autoconservação


e a satisfação dos interesses individuais, e do outro, a condição humana,
biológica e social de conviver. Mas, como vimos mais acima, os próprios
gregos foram de facto incapazes de instaurar a democracia na prática. Isto quer
dizer que o que eles nos legaram, ou o que nós devemos aos gregos não é um
exemplo de vida democrática, mas um ideal social: uma concepção teórica, uma
filosofia, até podemos mesmo dizer, uma utopia.

As elites de Atenas, porém, nunca foram democratas, e o elitismo, os


interesses e a separação da política da moral acabaram levando a democracia à
sua falência. A democracia de Atenas era uma democracia do apenas; apenas os
senhores, apenas as elites, apenas os homens. O apenas, que de facto alienou o
povo, acabou sendo o fator que condenou a democracia à falência. No fundo, a
democracia não só não estava inscrita nos genes dos atenienses, mesmo dos
mais conhecidos e respeitados, como Platão, Aristóteles, Demóstenes (…),
como também não estava ínsita na estrutura cultural do povo. O próprio Péricles
acabou demonstrando-se pouco democrata, pois não assumiu as implicações
ético-sociais da democracia. Insisto, foi exatamente porque Atenas não soube
relevar o desafio do balanceamento constante entre os interesses individuais e as
necessidades colectivas que sossobrou inexoravelmente.

A democracia, como é concebida hoje, nasce na Idade Moderna:


negativamente, pela necessidade de se libertar dos regimes monárquicos e
eclesiásticos que tinham caracterizado a vida politica na Idade Media;
positivamente, pela necessidade de encontrar um sistema que garantisse as
liberdades dos indivíduos. O facto mesmo que a democracia resulte de uma
rotura histórica com o período precedente, demonstra que ela não era intrínseca
às culturas europeias. Aliás, os primeiros contratualistas, Thomas Hobbes é um
grande exemplo disso: estavam à busca de um sistema que permitisse sair da
guerra, dos conflitos que opunham então as sociedades europeias, à procura de

97
Terceira questão

um sistema capaz de domesticar o homem, então considerado homo homini


lupus.

A solução da modernidade, como já tinha sido antecipado por Maquiavel,


está na existência de um Leviatã, que não tem nada de democrático, mas impõe,
de uma maneira autoritária, o respeito pelas leis.

Então a democracia tem que ser vista na procura de um sistema jurídico


capaz de fazer leis cada vez mais próximas do espírito de justiça, o único que
pode garantir o viver juntos. Ė neste sentido que se tem que ler o esforço
histórico que vai de Jean Bodin, passa por Locke e atinge o ápice no contracto
social de Rousseau e na separação de poderes de Montesquieu. O que garante a
emergência da democracia, não é nenhum ADN ou um qualquer tipo de
compatibilidade cultural, mas a criação de instituições robustas, orientadas a
preservar o bem comum, contra veleidades individualistas que nunca
abandonaram nenhum homem e nenhuma sociedade.

Aqui o papel dos intelectuais na procura de respostas teóricas e de


instituições capazes de garantir esse viver juntos, é fundamental. Trata-se de
uma espécie de intelectuais num misto entre a ideia hegeliana do pensamento
como o próprio tempo apreendido por conceitos, e o conceito marxista da
filosofia como transformadora do mundo. Este é o desafio com que o saber
esteve e está sempre confrontado.

Porém, a democracia é um processo, é um sistema atabalhoado, em luta


constante para se alimentar dos pressupostos culturais e sociais, mas também,
para formatar (democratizar) o homem e a sociedade através das instituições,
numa dialéctica constante e contínua. A democracia nunca foi o melhor sistema,
foi sempre o menos mau dos sistemas. Nunca foi o resultado de uma cultura,
mas participa a formatar as culturas. A grandeza dos intelectuais que a
produziram, consiste em terem, a partir das vicissitudes específicas do seu

98
Terceira questão

tempo e lugar, proposto instituições susceptíveis de serem modelos e fontes de


inspiração para outras sociedades.

Digo fontes de inspiração, pois, se na dimensão filosófico-teórica ou, se


quisermos, axiológica, a democracia vingou e constitui, doravante um valor
universal, ou se a separação de poderes continua a ser uma espécie de baluarte
para garantir o seu funcionamento, os modelos políticos foram sempre variados.
A Inglaterra, uma das mais velhas democracias modernas, compatibilizou o
sistema com a permanência de um rei, como fizeram a Espanha, os nórdicos, a
Holanda. A França matou o rei. No panorama internacional, temos regimes
presidenciais, semi presidenciais, parlamentares, etc. Isto quer dizer, que, se a
dimensão axiológica da democracia é unívoca e igual em todos os países, a
dimensão institucional tem a ver com a história e os processos sociais de cada
um.

Assim, a anomalia da nossa democracia não tem a ver com uma qualquer
incompatibilidade cultural, mas com o facto de não entendermos, que os
modelos democráticos são respostas históricas e culturais que as sociedades se
deram num momento determinado da própria história, a fim de responder à
exigência do viver juntos, quer dizer, aglutinando a universalidade da dimensão
axiológica e as particularidades da dimensão institucional.

Nós, como em geral o continente africano, limitamo-nos a imitar os


modelos ocidentais, alterando, cosmeticamente qualquer ponto e vírgula. Mas
os nossos modelos principais são exogénos, exteriores quer às culturas quer às
dinâmicas sociais.

Então, o que se torna incompatível com as culturas não é a democracia,


são os modelos: boas respostas de outros aos seus problemas históricos, mas
maus e até mesmo, problema suplementar, quando simplesmente transladados
para as nossas ou outras latitudes.

99
Terceira questão

Quero insistir em que a democracia, mesmo nos países que servem de


exemplo, nunca foi isenta de conflitos e mesmo de contradições, o que lhe
confere uma dimensão e um estatuto de processo. Apesar de ter sido excogitada
em nome da liberdade, a democracia moderna conseguiu artimanhas para
coabitar de uma maneira não democrática com escravaturas, colonialismos,
opressão, exploração.

No interior dos próprios países, conseguiu-se excluir cidadãos dos


sufrágios, reproduzindo, em parte, os traumas e incongruências de Atenas. Ė
preciso recordar que todo o século XIX discute, primeiro, quem pode votar e
depois, quem pode ser votado, num maquiavelismo que consiste em excluir
aqueles que os intelectuais gregos chamaram de massas. O voto das mulheres é
do século XX, e os direitos sociais são fruto indirecto da pressão que a antiga
União Soviética fez pesar sobre as democracias.

Se o argumento for a dimensão histórica, não podemos esquecer que as


contradições e fragilidades da democracia -Republica de Weimar- levaram
Hitler ao poder na década trinta do seculo XX, que, na década quarenta, a
França teve o governo de Pentain; que na década sessenta, os Estados Unidos
tiveram o Macartismo, verdadeiro sistema de terror no interior e no exterior do
país. Isto para não falar da guerra de Espanha, da democracia italiana que só
emerge com o fim do fascismo de Mussolini, ou, ainda pior, da Grécia que
acede à democracia com a queda do regime dos generais; da Espanha com a
queda de Franco ou de Portugal, que como diria Machel, foi democrático,
graças, em parte, às lutas dos povos colonizados. Então, a data do nascimento
da democracia portuguesa coincide com o período da conquista das nossas
independências. Pretender ver, na dimensão histórica, a justificação para as
democracias europeias também não me parece um argumento defensável.

100
Terceira questão

O outro argumento que se invoca é o nível de formação escolar da


maioria dos moçambicanos. Este argumento pode parecer pertinente na medida
em que uma das críticas que eu faço, neste livro, às eleições, é que elas foram
uma política sem ideias. Normalmente, as ideias políticas acabam inscrevendo-
se num programa. Então, a questão seria esta: se os partidos tivessem feito
programas bem articulados como nos habituaram as democracias mais
experimentadas, quantos moçambicanos estariam em condições de lê-los, e
entendê-los? Não estaríamos afinal a cair na aristocracia, na oliquarquia e a dar
assim razão às reticências dos filósofos e intelectuais de Atenas quanto ao bem
fundado da democracia?

A agora não faliu porque tinha analfabetos no parlamento, mas pela


petulância dos intelectualóides e dos falsos sábios. No modelo de Atenas, o
debate público e a participação direta eram possíveis, dado o número das
pessoas que participavam e à complexidade relativamente simples dos
problemas então tratados. Os não letrados não sabiam discutir o sexo dos anjos,
mas conheciam as suas necessidades, os seus problemas, as suas preocupações.
Foi porque estas necessidades não foram tidas em conta que o sistema faliu.

Nas revoluções Inglesa e Francesa, o número de letrados era pequeno. Ė


preciso recordar que a educação moderna começa na Alemanha com o
luteranismo, e na França, a educação livre e obrigatória só tem início com July
Ferry no século XIX.

A particularidade do processo democrático europeu reside na existência


de uma elite intelectual, engajada, idealista, utópica, comprometida com um
certo número de valores, valores esses, de carácter moral. O pobre, o não
escolarizado também têm direitos; também têm ideias, talvez não formuladas
com a mesma eloquência, mas não é por isso que são menos importantes e
pertinentes. A democracia moderna, ao mesmo tempo que foi abrindo espaços

101
Terceira questão

para que, em nome da igualdade de oportunidades, todos os cidadãos tivessem


acesso à escola, foi adaptando o sistema à possibilidade da participação de
todos, a todos os níveis da vida social. Assim, chegou-se a um processo
dialéctico, no qual a existência da escola para todos é fruto do processo
democrático, mas por outro lado, a democracia vai ser alimentada pelo processo
escolar e cria, idealmente o que Kant definiu como o iluminismo –sair da
condição de menoridade e tomar a palavra publicamente, aquilo que o mesmo
Kant, num outro contexto, chamou de autonomia.

Perto da nossa história, se voltarmos a Portugal, o nível de escolarização


dos seus cidadãos, no fim do fascismo, é dos mais baixos da Europa, mas isso
não impediu que enveredassem pelo caminho da democracia. Para além do facto
que todas as democracias são hoje no mundo representativas, o argumento que
me leva a pensar que podemos viver em democracia é ainda outro;

Tenho que concordar que a questão do nível de escolaridade é importante


e não pode ser tomado com ligeireza. Devo também concordar, como aliás
escrevi mais a cima, que os custos do funcionamento da nossa democracia são
excessivos para um povo cuja maioria vive na miséria; que assistimos a uma
pós-politica. Não posso, porém, aceitar que Moçambique recuse viver numa
democracia, que não esteja pronto ou à altura, ou ainda que exista uma qualquer
incompatibilidade genética ou cultural.

Quero insistir em que a democracia tem uma dimensão axiológica e uma


dimensão institucional. O que se tornou universal é a dimensão axiológica, não
a institucional. Ė um facto que a maioria dos moçambicanos não têm formação
escolar para ler e compreender programas políticos. Mas isso não pode, de
nenhuma maneira, significar que não sabem o que querem, que não tenham
ideias, opções, valores. As pessoas sabem o que querem, conhecem os seus
problemas e muitas vezes até os caminhos para solucioná-los. O que emperra é

102
Terceira questão

o modelo que temos, que não permite uma participação adequada de todas as
massas no processo.

Os juristas aprendem, nas faculdades, as fontes do direito. Aprendem que


as fontes estão nas culturas, no direito consuetudinário, no direito positivo, nas
vicissitudes históricas ou culturais dos povos. O que fazem com essas fontes
quando elaboram leis? Simplesmente, eliminam tudo o que tem a ver com o
local, e baseiam-se unicamente nos direitos dos outros, muitas vezes já caducos
e fora do uso. Assim, ao invés de solucionarmos problemas, adicionamos mais
um problema. Não são as populações que se têm que adequar a um modelo
politico e jurídico parturido não se sabe donde e em que circunstâncias.

O facto de estudar, saber, tem que nos preparar para não ignorarmos a
maneira como as outras sociedades resolveram os seus problemas. Mas o ponto
de partida, para a elaboração dos nossos modelos políticos e constitucionais são
os imaginários coletivos das pessoas. Disse imaginários coletivos e não culturas
estáticas- aliás estas só existem em alguns maus livros de antropologia,- porque
nelas participam quer as tradições, quer costumes exógenos que, por razões
históricas (colonialismo ou marxismo) foram incorporados no nosso imaginário
coletivo.

Não se trata de ignorar ou desdenhar o direito do colonizador, por


exemplo. Mas nunca podemos esquecer que ele e a história são respostas
jurídico-políticas que os portugueses se deram num momento do seu passado.
Essas soluções, por mais extraordinárias que sejam ou tenham sido, não se
adequam necessariamente ao nosso contexto.

Não são as populações que se devem ajustar a modelos, são os


intelectuais que têm que ser capazes de propor estes, os quais, partindo dos
imaginários coletivos, alimentando-se de fontes diferentes, possam ser respostas
à necessidade de viver juntos de uma maneira pacífica e democrática.

103
Terceira questão

No fundo, uma certa desgraça resulta das peripécias que a nossa


democracia tem atravessado desde os acordos de paz de 1992. Se pensarmos na
democracia como um processo, podemos ver que nenhum país teve uma
democracia linear, sem acidentes de percurso, sem momentos de crise. Só que,
para os chineses, a crise é oportunidade para fazerem de uma maneira diferente.
É assim que devemos pensar o estádio atual da nossa situação politica. Isto
significa que devemos ter a coragem de nos interrogarmos em profundidade
sobre o que emperra para podermos perspectivar uma democracia melhor.

Numa recente entrevista ao Savana, Óscar Monteiro lamentava o facto de


não termos tido tempo, depois dos acordos de paz, de pensar no modelo. Estou
completamente de acordo. Contudo, penso que a tarefa principal da nossa
geração é exatamente esta: pensar num modelo mais adequado para a nossa
sociedade

104
Terceira questão

10. A NECESSÁRIA ACULTURAÇÃO E MORALIZAÇÃO DA POLÍTICA

Insistir em que as instituições e o modelo de sociedade têm que extrair o


essencial da sua forma no imaginário coletivo, reenvia-nos à questão do ethos.

Na origem da questão ética está a procura da felicidade pelos indivíduos.


Aristóteles começa a sua Ética a Nicómaco por uma passagem na qual revisita
as diferentes opiniões sobre a felicidade. Espinosa, que intitula a sua obra
principal com o nome de Ética, indica assim o sentido da sua empresa: busca de
uma felicidade suprema e incessante. Se existe algo que faz com que os homens
sejam iguais, não é tanto a questão cartesiana da racionalidade, nem mesmo a
questão da dignidade, nem mesmo a heideggeriana igualdade diante da morte.

A igualdade consiste no facto que cada pessoa, em todos os tempos e


lugares, buscou e busca a própria felicidade. As maneiras de conceber a
felicidade variaram no tempo e no espaço, e cada um de nós muda com o tempo
as suas concepções de felicidade. O que não muda é que todos buscamos a
felicidade com todas as forças e energias que temos. A questão é saber se em
nome da nossa felicidade individual podemos sacrificar as nossas relações
sociais. Ė aqui, entre o impulso egoísta e o elã altruísta, que reside a questão
moral.

Se não podemos criticar um homem por procurar e utilizar os meios à sua


disposição para ser feliz (de facto o cabrito come onde está amarrado), por outro
lado, esta busca deve fundar-se sobre a refutação da violência e uma certa
preocupação pela comunidade.

Aliás, os desejos do indivíduo não lhe são puramente particulares: a


maneira como ele se exprime, os objetos que ele se dá, dependem da
comunidade restrita (família) ou alargada (social) na qual vivemos. Os nossos
desejos depreendem-se dos hábitos da(s) nossa(s) comunidade(s), e são
determinados pelas tradições que nos orientam. Por conseguinte, encontramos

105
Terceira questão

os nossos objetivos e a matéria dos nossos projetos nos valores da nossa


comunidade. Saber o que queremos significa viver numa comunidade cujos
valores são suficientemente evidentes para que o individuo não se ponha
demasiados problemas.

O que faz com que tenhamos que solevar no nosso seio questões éticas, é
exatamente porque as orientações tradicionais da vida perderam a sua
evidência.

Quando, há quase vinte anos atrás, introduzimos a filosofia na UP, e por


via dela, nos liceus moçambicanos, a questão que colocámos aos decisores
políticos que no-lo tinham solicitado, eram os problemas aos quais a filosofia
deve ajudar a trazer respostas. Não obtendo resposta dos nossos interlocutores,
acabamos fazendo um estudo sociológico para edificar o lugar de incidência de
um curriculum que respondesse, não a uma simples preocupação de erudição e
enciclopedismo, mas ajudasse a organizar a cabeça (Edgar Morin), mas também
e sobretudo a participar na refundação moral da nossa sociedade.

Assim, nas principais linhas de pesquisa, ao lado da epistemologia e da


política, introduzimos a dimensão da ética. Com efeito, sem voltarmos à
passagem dos reinos africanos ao colonialismo, a viragem deste em
independência comportou uma espécie de revolução axiológica, na medida em
que as referências, em termos de valores, deixaram de ser os valores religiosos
das famílias tradicionais e passaram a ser os valores do novo Moçambique
independente. Porém, a guerra dos dezasseis anos veio desestruturar
ulteriormente essa base, que, apesar dos excessos, se queria profundamente
comunitária. No seu lugar, emergiu o indivíduo euclidiano, o homem como
medida de todas as coisas; com a sua gama de individualismo e mesmo de
violência. No Estado multipartidário, o homem democrático foi rasteirado, do
seu próprio interior, pelo homo economicus.

106
Terceira questão

Problema é o difícil equilíbrio existencial entre o pendente egoísta e da


auto conservação, e o altruísmo, condição do viver juntos. Esta crise acelerou e
invadiu o próprio ethos nacional, o que acabou insinuando uma dúvida nos
cidadãos, dado que as orientações são contraditórias e suspeitas.

Como continuar a acreditar na justiça das leis quando o país está


continuamente em guerra e quando cada dia que passa, cada catástrofe, cada
vitória só demonstram que a única lei que conta é a dos mais fortes? Porque é
que eu deveria continuar a respeitar a lei, a ocupar-me dos meus concidadãos,
quando o Estado e os seus representantes a violam continuamente? Se o Estado
só cumpre as suas promessas quando lhe convém, porque é que eu deveria
respeitar as leis, se posso manipulá-las em minha vantagem? Não será o Estado
o responsável do meu cinismo, uma vez que ele me dá o pior dos exemplos? A
religião, a justiça tradicional, a ordem moral, que impunha limites ao meu
egoísmo, são postas de lado.

A questão ética é, por conseguinte, uma questão do ethos, dos costumes


nos quais se incarnam os valores: isto é a moral. Surge quando esta moral é
marginalizada por novas práticas de existência, quer elas sejam devidas aos
conflitos militares, quer à modificação das relações sociais. No período atual,
quer o consideremos como um período de transição, quer de transformação ou
de decomposição, tudo parece possível.

Há que escolher, não de uma maneira absoluta, mas no quadro das


possibilidades e da liberdade que a sociedade dá. Ora, de um lado, os valores
comunitários são contraditórios. A nossa sociedade insiste sobre a igualdade de
todos indivíduos enquanto pessoas dignas de respeito, ou enquanto cidadãos.
Por outro lado, ela é uma autêntica fábrica de desigualdades, pois funciona num
modelo de privilégios para alguns, descriminação para outros, competição e
princípio de sempre maior acumulação. Neste sentido, a igualdade torna-se pura

107
Terceira questão

retórica, jogo de aparências sem nenhum fundamento real. Por outro lado, a
felicidade encerra-se no prazer, na riqueza, nas honras públicas, no poder, na
aparência. A questão, no fundo, é como conciliar uma existência que deveria
ser ao mesmo tempo solitária e solidária.

Tem que se conceber então uma hierarquia de bens, reconstruir um


sistema de valores, conservar o que é coerente e rejeitar o que é inconciliável
com os princípios, indicar em que medida as diferentes atividades são
correspondentes a uma vida equilibrada. É preciso fundamentar com razão
(racionalmente), isto é, com base numa filosofia verdadeira, a comunidade e os
seus valores; trata-se de um trabalho de alicerçamento filosófico. Mas isso
supõe uma teoria do homem, uma antropologia filosófica.

Se recuarmos um pouco em relação a esta perspectiva, a questão toma um


outro aspecto. Com efeito, se comparamos as instituições e os costumes
comunitários nos diferentes períodos recentes (época colonial, época da
democracia popular, época do multipartidarismo), podemos constatar a
pluralidade e a relatividade dos sistemas de valores e das filosofias que
justificaram cada fase: a falsa filantropia do sistema colonial, o homem novo do
comunitarismo socialista, a liberdade absoluta do indivíduo na fase atual.

Até pode parecer que estes sistemas de valores são equivalentes. Todos
têm a sua coerência e equilíbrio; então não se pode julgá-los. Ontem metia-se o
acento sobre a comunidade, mas isso parecia em detrimento das liberdades
individuais. Hoje, o acento está no individuo, desta vez, em detrimento da
comunidade. Dado que vivemos em sociedades historicamente situadas, o juízo
sobre a sociedade de ontem (não roubar, servir o povo, respeito pela
comunidade) e a de hoje (individualismo, corrupção…), as apreciações que
façamos apenas reflectem os valores temporais da sociedade. O bom cidadão de
ontem era aquele que se conformava com a filosofia de então, e o que sabe viver

108
Terceira questão

hoje é aquele que mudou de veste para se adequar à roubalheira e às fraudes


ambientes.

Aprovar ou criticar o sistema de vida ou as práticas de ontem ou de hoje


exprimiria simplesmente a minha simpatia para com um tipo de existência
particular, que não valeria nem mais nem menos do que as outras. Assim, todo o
juízo moral só exprimiria os hábitos e os interesses daquele que o pronuncia.

Se os sistemas de valores são todos equivalentes, se eles valem a mesma


coisa, quer dizer que, por eles mesmos, não valem nada; e por conseguinte, eles
são funcionais e utilitários. Como sistema de normas, de regras, de proibições,
eles permitem reprimir a natureza, as reivendicações, os anseios dos fracos a
favor dos fortes ( é a tese de Trasímaco na República de Platão), ou o anseio
dos fortes para com os fracos (é a tese de Cálicles no Górgias).

Se a questão for posta desta maneira, ela desaparece para deixar lugar a
uma crítica e a uma análise científica da moral. O que se pretenderia então, já
não seriam as instituições e as práticas onde se exprimem o génio, a
originalidade ou o espírito do povo, mas as regras e as interdições impostas a
esse mesmo povo, por aqueles que nelas encontram satisfeitos os seus
interesses. A psicologia, a história e a sociologia analisam assim a função
moral, eliminando a questão ética (ou moral). O problema destas disciplinas não
é saber como é que o individuo deve viver, mas estabelecer os factos e as
correlações entre eles.

Contudo, a questão continua a subsistir para o individuo enquanto tal. Ė


verdade que as transformações axiológicas rápidas e radicais por que passamos
em poucos anos, fazem com que os indivíduos não possam continuar a aderir de
uma maneira ingénua e acrítica a qualquer quadro axiológico que se lhe
apresente. Nas últimas mobilizações para o serviço militar a necessidade da
defesa da pátria não teve muitos aderentes. Os que vão são aqueles que vêem no

109
Terceira questão

serviço militar, possibilidade de fazer carreira, ganhar dinheiro, o que não


poderiam fazer noutras profissões. Os polícias, apesar de ouvirem falar do
combate à corrupção, fazem ouvidos de mercador; os funcionários só se
empenham se há alguém a vigiá-los.

A conclusão é que se deva rejeitar tudo? As pessoas podem recusar isto e


aquilo; podem recusar votar porque isso, supostamente, não muda nada as suas
vidas, não estudar porque isso não serve para nada e os diplomas se podem
comprar, elas não recusam tudo. Podem pretender revolucionar (como no
passado, ou como Dlhakama parece pretender fazer hoje) ou transformar
progressivamente a sociedade, mas não rejeitar o conjunto dos valores da
comunidade sem se condenarem a uma solidão total, à folia do misantropismo,
em suma, sem se afastar da vida. Deve então existir um certo critério, em nome
do qual nós aceitamos isto e recusamos aquilo.

Kant define esse critério, fundando a ação sobre o imperativo do dever.


Eu devo categoricamente respeitar o outro como indivíduo racional e a minha
própria dignidade de ser racional. Isso significa que eu devo querer o que pode
ser querido (pretendido) por todo o outro indivíduo humano, o que é
compreensível e aceitável para ele. Eu devo querer o que, erigido em máxima
universal de conduta, não introduza violência na comunidade, mas preserve a
sua coerência. Eu não posso querer manipular, enganar, aldrabar, dado que esta
vontade, supondo que ela seja partilhada por todos, levaria à luta de todos
contra todos, mesmo que isso fosse sob forma civilizada.

O individuo moral, neste sentido, deveria saber o que quer. Quem, de


entre os moçambicanos, não partilha os hábitos e os gostos com os outros
moçambicanos? Quem não sabe que as tradições da comunidade moçambicana
contribuíram para a sua formação? A consequência é que nenhum de nós
deveria rejeitar os valores comunitários; o que deveríamos rejeitar são os

110
Terceira questão

princípios e as leis que nos impelem a instrumentalizar os outros. A questão é


então saber, hic et nunc, em que é que consiste esse dever em relação a mim e
aos outros. Eu sou moral só na medida em que o meu agir se conforma ao dever.

Esta atitude não é insensata em relação à questão da felicidade. Nós


sabemos que o pregador, o professor, o intelectual ou o homem politico, às
vezes, defendem interesses pessoais. Nós sabemos que, com alguns
malabarismos, se difundem valores (e contra valores) com base em preferências
subjetivas. Esta moral não obriga o indivíduo a aprovar um projeto ou uma
visão de mundo, ela lhe indica em que casos ele tem o dever de dizer não. Ele
encontra então a felicidade em consonância (em acordo) consigo próprio.

Esta moral que ensina o individuo a dizer não, ensina-lhe, in primis, a


dizer não a si mesmo, põe-no numa constante vigilância em relação a si próprio
e aos próprios desejos (anseios). Isto pode levar a pensar numa moral na qual o
individuo estaria constantemente em conflito consigo próprio. Mas o sentido
mais profundo desta vigilância, longe de ser um conflito perpétuo consigo
próprio, é uma constante busca de reconciliação cada vez mais perfeita, do
individuo consigo próprio. Só um individuo reconciliado consigo próprio se
pode abrir ao outro, à alteridade e por conseguinte ao diálogo. Neste sentido, a
questão ética antecipa a questão da finalidade da política. O horizonte da
política seria reinstaurar a comunidade, e é por isso que a questão ética conduz à
questão politica. Aliás, nos tempos de Aristóteles, a política era uma ética, a
doutrina da moral social.

A maneira como se densenrola a nossa democracia (lutas de aparatos


onde os fins justificam os meios, ilícitos eleitorais, manipulações dos medias,
ameaças, democracia militarizada), aparece como uma política sem fundamento
moral. Na verdade, ela nega um dos postulados fundamentais da democracia, a
exigência de um bem comum objetivo, conhecido e perseguido por cada um e

111
Terceira questão

por todos os participantes da demos. Com isso, acaba-se negando a existência


de um próprio demos, o que nós chamávamos, na primeira república, o nosso
povo; um corpo político ou uma sociedade política que tenha também uma
existência objetiva.

De facto, o que emerge na nossa praxis democrática é um individuo com


a sua ordem de preferências; é um conjunto de indivíduos e de preferências
individuais que dá substância ao povo, mesmo que seja através de uma maioria
a quem compete a responsabilidade de definir, de vez em quando, a escolha
pública e de compor progressivamente, com a legislação, a ordem social.

O que se chama individualismo metodológico, que une pensadores de


craveira como Max Weber, Kelsen, Popper, etc.; tem pressupostos teóricos
sólidos. Todavia, é também claro que o individuo que age nesta praxis política,
é um individuo livre e igual, pelo menos na ordem politica. Porém, a liberdade
política é uma condição e não um fim. Quando se torna fim, como no nosso
atual liberalismo politico e económico, a democracia cai para o segundo plano,
torna-se um instrumento para o fim em que a liberdade se tornou. Assume-se
assim a liberdade como fim na sua essência de liberdade individual.

Por outro lado, o nosso sistema democrático acaba sobrevalorizando a


representatividade em detrimento da participação. O que de facto fazemos, é
participar num processo decisional que funciona de uma maneira restritiva
(elitista ou quase oligárquica), destinada a selecionar os governantes e controlá-
los, sem fazê-los depender de nós. Por isso, num processo como o nosso,
podemo-nos perguntar se faz sentido falar de democracia.

Se olharmos com atenção, podemos averiguar que, mesmo o núcleo


activo da maioria vencedora, isto é, a Frelimo, na verdade, é constituído por
uma classe política restrita (comissão politica, comité central...), que aparece
como o único agente do processo político. A mesma coisa se pode dizer das

112
Terceira questão

minorias, que elas se chamem Renamo ou MDM. Assim, a nossa democracia, e


o nosso sufrágio é necessariamente, uma democracia governada e não
governante, para utilizar a expressão de Raymond Aron 39; e só não se
transforma em autocracia por causa da concorrência que as minorias se fazem
para o exercício do poder.

O meu pai, preocupado com a paz, perguntou-me se a ideia de Dlhakama,


de a Frelimo e a Renamo governarem juntas não seria boa; se a ideia de um
governo chamado de gestão -ou o reconhecimento institucional do chefe da
oposição, que na realidade é um reconhecimento pecuniário-, não era uma coisa
boa?

Para a paz e a reconciliação, quem ousaria duvidar ou pôr em causa toda


a ideia que corroborasse esse fim? Todavia, existe o perigo que isso seja uma
forma de compromisso (como foi o caso entre o MPLA e a UNITA em Angola)
em que os principais partidos partilhem entre si as benesses. Não só não haveria
uma oposição credível, o que seria mau para a democracia, mas o maior perigo,
seria transformar a democracia numa oligarquia. Aliás, a análise de Robert
Michels sobre a teoria férrea das oligarquias se aplica ao caso de Moçambique,
pois, partidos que dominam a cena política nacional são instituições
oligárquicas.

É inútil acrescentar, qua a antropologia dos elitistas não-democráticos


corresponde quase, ad literam, às concepções políticas de um Maquiavel.
Alguns nossos príncipes não fazem outra coisa que pregar a paz. Porém, se eles
tivessem observado a paz, teriam perdido uns, o domínio do Estado, e outros, a
reputação, o protagonismo e a importância.

Por detrás do nosso tipo de regime democrático, existe uma concepção


epistemológica céptica quanto à possibilidade de o homem comum conhecer o

39 REiFFEl, Rémy. Op. Cit. p. 123

113
Terceira questão

seu próprio bem e ainda menos o bem comum; este conhecimento pertence
exclusivamente às elites, que, por isso, têm os requisitos para se apoderarem do
mando e exercê-lo.

Neste sentido, com a concepção elitista, o que está em causa não é só a


ruptura entre a moral e a política, mas mais profundamente, é a relação entre a
vontade popular e as instituições potestáticas do Estado. Representação não é
transmissão da vontade popular aos eleitos, mas um procedimento que consente
investir as oligarquias de comando, sob o véu de competição eleitoral. O próprio
parlamento vive das diretivas dos partidos, ou ainda pior, das mordomias que se
auto-outorga. Mais do que uma representação de corpo político, parece-se com
uma estrutura oligárquica-corporativa.

Ao invés de aceitarmos a separação factual entre a moral e a política,


temos que voltar ao ideal aristotélico da vida boa como finalidade da
convivência política. Então, a polis tem que ser vista como um processo de
escolhas coletivas, o que requer uma partilha de valores que se apresenta na sua
essência como uma trama de amizade civil, da qual se pode construir uma
autêntica comunidade. Ė imperioso abrir a competição democrática ao mundo
de valores e conectá-la com regras morais.

Pensar assim significa superar a atual ordem política para criar a


democracia na ordem social, a qual só pode organizar-se através de grupos e
formações sociais, capazes de controlar e influenciar as decisões políticas

Reinvocar os valores significa precaver-se para evitar que senhores todo


– poderosos se substituam a outros todos poderosos. Podemos até perguntar se
não está na hora de pensarmos num novo pacto, num novo contracto social,
político e cultural como motivo fundador de uma nova era, mais pacífica, mais
ordenada e mais justa.

114
Terceira questão

Em que poderia consistir um tal pacto? Quem deveria assiná-lo?


Deveríamos reservá-lo aos protagonistas da Joaquim Chissano ou alargá-lo aos
outros partidos? Fazer estados gerais?40

Nos seus manifestos eleitorais41, os três principais partidos deixam


transparecer algums linhas chaves e convergentes que poderiam servir de ponto
de partida para um debate mais alargado. No essencial, essas linhas podem ser
resumidas em quatro vertentes: a paz (dialógo e unidade nacional), a justiça, o
desenvolvimento económico e a melhoria das condições sociais das populações.

O manifesto da Frelimo, na linha três, fala de “consolidar a cultura de


paz, do diálogo, da democracia no país, na região e no mundo. No parágrafo
dois, a Renamo fala de “garantir a tolerância política e reconciliação nacional”,
e o MDM. no parágrafo primeiro fala, de “garantir a preservação da paz e da
democracia e consolidar a coesão nacional” .

No que se refere à justiça, os manifestos dos partidos resumem as


diferentes vertentes da justiça. Assim a Frelimo, no parágrafo número dez,
pretende “assegurar uma justiça célere e mais próxima do cidadão”; a Renamo,
no parágrafo quatro, pretende “garantir justiça acessível a todos os
moçambicanos, sistema judicial independente, isento e célere” e o MDM, no
parágrafo dois “reforçar a prevenção da corrupção a todos os níveis e reprimir o
enriquecimento injustificado no exercício das funções públicas”, no parágrafo
segundo “despartizar o Estado, proibindo o funcionamento de células de
partidos e o exercício de actividades político-partidárias nas instituições
públicas; no parágrafo quinto “Promover um modelo de crescimento económico
com uma equilibrada redistribuição da riqueza e inclusão social; no parágrafo
décimo terceiro “promover reformas constitucionais que permitam que os juízes

40 Esta ideia saiu da discussão já mencionda entre os intelectuais na A Politécnica

41 Publicados pelo Jornal Notícias em Dezembro de 2014.

115
Terceira questão

presidentes dos diversos tribunais sejam eleitos pelos seus pares com base na
competência técnica, integridade e probidade comprovados”

Os artigos 2,4,5,6,7, 13,14,15,16 da Frelimo; 5,11,14,16, da Renamo; 6,


7,8,9 são de caracter economico.

Os artigos 9,12 da Frelimo, 6,7,8,9,10,12,13,15, da


Renamo;4,10,11,12,15 do MDM são de caracter social.

11. AS METAMORFOSES DA DEMOCRACIA MOÇAMBICANA

A história do Moçambique independente compreende dois modelos. O


primeiro, da democracia popular monopartidária e o segundo, da democracia
multipartidária. A história deste processo tem a ver com escolhas, com valores,
mas também com imposições da conjuntura política internacional. Não se pode
negar que o primeiro e o principal dos valores da democracia popular é a
determinação de lutar pela liberdade de todo um povo.

Na história africana, a liberdade teve fases diferentes (emancipação da


escravatura, integração social), a liberdade que se pretendia na década sessenta,
na realidade, depois do discurso de Nkrumah de 1945, é uma autodeterminação
política. Ora esta, no contexto moçambicano, teve que fazer face a dois
imperativos de carácter internacional, que não foram alheios à orientação
ideológica da primeira república. O primeiro tem a ver com a decisão de Salazar
de entrar na OTAN, o que, no quadro da guerra fria, levou a que o bloco
ocidental não apoiasse a luta justa que os povos da Africa de expressão

116
Terceira questão

portuguesa travavam contra o colonialismo. A consequência disso foi empurrá-


los, em bloco, para o campo socialista.

O segundo tem que ver com a conjuntura regional, dominada pelo


apartheid e a sua pretensão de criar uma zona branca na Africa Austral, e uma
política que J. Voster chamou de constelações de estados.

A nível africano, a reunião dos povos em Acra, em 1961, tinha-os


impulsionado não só à independência, mas também à necessidade da unidade
entre os movimentos em luta, por uma questão de eficácia.

Este duplo imperativo teve consequências no modelo político que se


acabou estabelecendo no contexto moçambicano. Primeiro e por razões de
eficácia, tratou-se de políticas de união, que acabaram confundindo aquilo que
era, justamente, a necessidade de união em prol de uma luta capaz de produzir
resultados em termos de independência, mas acabou, num segundo momento,
ofuscando as premissas de uma possível democracia multipartidária. Ė certo que
as circunstâncias de luta impunham uma união armada. Mas esse imperativo
acabou exigindo uma ideologia comum, excomungando, de facto, todos aqueles
que, apesar de serem pela independência, não comungavam a ideologia nem uni
partidária nem socialista que acabou se impondo.

O segundo constrangimento teve a ver com o alastrar da guerra fria ao


continente africano, que aliás levou à intervenção no Congo e introduziu as
práticas dos golpes de estado, a tribalização da politica, os assassinatos dos
dirigentes. Mais graveainda , demonstrou a falta de solidariedade dos estados
africanos, ou se quisermos, da determinação em manter, a todo o custo, as
independências ora conquistadas ou em vias de sê-lo. Enquanto Nkrumah apela
para uma intervenção solidária com o Gongo, da parte dos africanos, Senghor
pautava, pelo legalismo da OUA, da não intervenção nos assuntos internos.

117
Terceira questão

O mundo neocolonial viu que a Africa não conseguia fazer tudo o que
estava ao seu alcance para garantir de facto a liberdade dos povos.

A Rodésia e a África do Sul, aproveitando da conjuntura da guerra fria,


praticaram uma política de desestabilização, de agressão e acabaram matando o
tipo de democracia popular moçambicana. A primeira República moçambicana
caracteriza-se por uma constante política de defesa contra agressões externas. E
a associação da ideologia dominante, que emergiu durante a guerra, a
necessidade de opôr-se à política da constelação do apartheid e a necessidade de
defesa do país, acabaram dando a fisionomia e o carácter à primeira República.

Se a revolução francesa se fez com o lema de liberdade, igualdade, e


fraternidade42, a conjuntura espácio-temporal na qual a independência
moçambicana foi proclamada, acabou circunscrevendo-se no slogan politico:
unidade, trabalho, vigilância. Mais do que um slogan, tratava-se da dimensão
axiológica na qual a nova república teve que viver. Unidade já não era um meio
de eficácia na luta contra o colonialismo, mas transformou-se num imperativo
na defesa da unidade nacional. A vigilância era um valor essencial para evitar
que o país caísse no descalabro devido a invasões e penetrações externas. O
trabalho tinha a ver com a necessidade de responder às necessidades concretas e
primárias num espaço geopolítico hostil.

O corolário desta atitude de defesa foi a instauração de uma política de


desconfiança, mesmo na pós-independência, em relação a todos aqueles que
tinham ideias de organização diferentes. Foi a marginalização e o combate dos
que tinham colaborado com os chamados inimigos de ontem e de hoje. Sob o
ponto de vista de organização interna, tornou-se, negativamente, na instauração
de uma política de suspeição; e positivamente, de uma organização de trabalho
mais cooperativo.

42 Alguns filósofos tem manifestado a necessidade de mudar a ordem etendo fraternidade,


igualdade e liberdade.

118
Terceira questão

Se, por si, a ideia de defesa era legítima, o domínio político acabou
confundindo-se com um único partido que via a sua função numa luta não
terminada. Instaurou-se um regime político de comando militar e uma política
de suspeição, onde os serviços de controlo tinham uma grande preponderância.
Nisto, a boa e legítima organização democrática de massas – os chamados
grupos dinamizadores- que permitiam um debate politico em volta de questões
mais localizadas, em analogia a agora grega- confundiram-se, e em alguns
casos, diluiram-se em práticas demagógicas e denúncias arbitrárias, o que
acabou pondo em causa a sua legitimidade e a sua dimensão democrática.

A nível de trabalho, se o associativismo (as cooperativas, as aldeias


comunais) que, como ideias de organização da sociedade e do trabalho, até
podiam ser justificadas, a dimensão da politica de guerra acabou tornando-se
numa prática, que foi comparada com o estalinismo ou os gulags soviéticos por
uma certa imprensa internacional, o que justificava ainda uma maior ingerência
no quadro da guerra fria.

Estas contradições ofereceram um espaço de legitimação ao nascimento e


crescimento da resistência, quer para os atores externos, quer para os internos.
A dificuldade do diálogo e a impossibilidade de uma solução pacífica, que se
tornou guerra fratricida, foi devida à convicção dos governantes de serem os
únicos legítimos representantes do povo e, por outro lado, de estarem a
continuar um combate pela liberdade ameaçada pelos que não queriam a
independência.

Todavia, convém insistir que a democracia popular tinha e teve valores


extremamente positivos: arreigamento na unidade, a clareza do Estado como
artefacto político ao serviço de todos (comunidade) e não do individuo,
estruturas de participação democrática ( … ).

119
Terceira questão

Numa entrevista concedida ao parlamentar europeu Jas Gawronsky, João


Paulo II, a quem não se pode acusar de esquerdista, citando Leão XIII, dizia
que existiam também sementes de verdade no comunismo: essas sementes não
deveriam ser destruídas, não devem ser abandonadas ao vento (…). Os adeptos
do capitalismo, na sua forma mais extrema, têm tendência a negligenciar as
boas coisas feitas pelo comunismo;: os esforços de vencer o desemprego, a
preocupação pelos pobres....

A segunda república moçambicana nasce como liberal. Mas por liberal


tem que se entender a dupla valência que este conceito encerra: a dimensão
politica, com a criação de partidos, as liberdades de opinião, de imprensa, etc.
Mas também e sobretudo tem que se entender a dimensão económica. Aliás,
esta segunda acabou prevalescendo sobre a primeira, e da dimensão comunitária
da primeira, passou-se a uma república que excede pelo acento que põe sobre os
indivíduos. Em segundo lugar, a nível político, a primazia deixou de ser dada à
participação das pessoas em micro associações que facilitavam a participação de
todos, e o centro passou para o partido como máquina que se bate para ganhar
eleições. Isto explica que os partidos políticos, esvaziados de ideias, se tenham
tornado máquinas eleitorais para a conservação ou conquista do poder.

Por outro lado, a natureza histórica dos principais partidos e a maneira


como a democracia emergiu, com reticências e resistências quanto à sua
legitimidade, faz com que estejamos ainda a viver uma dualidade militarizada.

É significativo que os pomos de discórdia que levaram aos acordos de


Roma estejam ligados não ao povo, à parte de baixo, mas ao posicionamento e
ao lugar entre os partidos políticos.

Tem que se ver também que o que levou aos conflitos recentes, sob
ponto de vista axiológico, foi o não cumprimento de alguns pontos essenciais
dos acordos de paz de 92. Os comentadores têm falado da questão militar e é

120
Terceira questão

verdade que ela é importante. Quando digo questão militar, refiro-me ao facto
de a Renamo não ter entregue todas as armas e o Estado não ter integrado todos
os membros da Renamo. Refiro-me à questão da despartidarização do Estado e
dos órgãos eleitorais. Porém, penso que, a nível axiológico, o impecilho está
num outro lugar. O parágrafo sete dos acordos de Roma tinha falado do diálogo
contínuo. Eu escrevi algures que esse tem que ser entendido como um contrato
político, o único legitimado e lícito como forma de participação política.

Se precisarmos de uma prova do bem fundado disto, é que, quando houve


diálogo, a guerra parou. Então, não se trata de dialogar quando as coisas vão
mal para solucionar este ou aquele problema, mas de fazer do diálogo um
verdadeiro contrato de legitimação das práticas políticas; inseri-lo nos nossos
organigramas dos poderes públicos, sem que, o diálogo necessário e fundador
da dinâmica democrática, seja reservado a dois partidos, ou que vá em
detrimento do parlamento. Não se pode tratar de políticas de acomodação,
porque, se assim for, outros vão entender que a única maneira de serem ouvidos
é armarem-se; nem de partidos e de acomodações recíprocas, porque isso seria
em detrimento do povo, e a democracia passaria a oligarquia; um jogo de elites
que teria na força das armas a sua legitimidade.

É um facto que a nossa democracia tem problemas sérios e que o


modelo actual não é viável. Ela não pode viver sem ideias, nem os os partidos
tornarem-se máquinas (de guerra), nem a política alienar-se dos cidadãos
(mesmo os menos instruídos); os partidos não podem ser grupos elitistas que se
substituem no poder, fornecedores de mordomias e de oportunidades aos seus
aderentes, nem discriminar quem não sente como eles. A democracia não é
viável com o custo actual das eleições; nem pode ser uma maquina de
acomodação para quem incomoda; nem um encontro e diálogo entre pessoas
armadas: as armas têm de deixar de ser o meio para fazer ouvir a própria voz;
não pode ser um simples sufrágio cada cinco anos, etc.

121
Terceira questão

A democracia, em suma, não pode ser um jogo de elites em detrimento do


povo. Temos que reformar o nosso sistema democrático, não de uma maneira
cosmética nas pequenas coisas de conveniência. Trata-se de pensar num outro
modelo de democracia.

O fim da democracia popular, a crise da democracia multipartidária, a


aceleração vertiginosa da dinâmica económica e social, facilitada pela
descoberta de recursos, as novas exigências, sempre novas, sempre movediças
das populações, diante destas mutações sociais, temos a grande tarefa de dar
forma, e forma política, a este incessante proceder em direção ao novo e ao
ainda não.

O individualismo ambiente e dominante está exasperando a fragmentação


social e alienando a política do povo. A democracia militarizada
institucionalizou o anormal: violência, fraudes, engano, mentira, a falsidade;
introduziu o medo, o que pode levar até a conflitos étnicos e regionais,
facilitados pelos riquezas naturais descobertas. Por outro lado, a liberdade, em
favor da qual lutaram quer a Frelimo quer a Renamo, deixou de se
compreender, como reza a etimologia do termo (Liberdade =euleteria), no
sentido de pertença a um tecido social, a uma comunidade e transformou-se na
atomização dos indivíduos, e numa poliarquia. No fundo, o maior perigo da
nossa democracia está na brecha entre o povo e o estado, o povo e as elites, o
povo e os aparatos. Na origem da convivência social reside, como pacto de
união, o contrato social. Sempre que a fractura e os conflitos se evidenciam, é
de facto, o contracto social que se rompe.

É que, de facto, vivemos uma espécie de epistemologia céptica ou


relativista que nega todo e qualquer substrato axiológico como condição de
legitimação para a ação; que nega qualquer hipótese ao contrato social e

122
Terceira questão

portanto ao bem comum ou ao objetivo comum, ou ao sentido comum no agir


coletivo.

Trata-se então de procurar um quadro axiológico que supere o cepticismo


e o relativismo, que possa dar um fundamento moral às nossas acções, ao nosso
agir em termos de cooperação social como estrutura fundamental da nossa
sociedade (utilidade e justiça); um critério guia da nossa cooperação social
como motivo condutor da nossa associação política. Se é verdade que não
podemos descurar a ideia e o princípio da utilidade, o princípio de justiça é o
mais idóneo para governar a cooperação social.

A reconstrução de um fundamento moral da política passa


necessariamente através da comunicação entre todos. A dimensão social que
preside à politica é mais do que uma interação; é um agir essencialmente
comunicativo, no qual a estratégia discursiva não visa o poder e o domínio,
mas uma linguagem comum, através da qual seja possível um discurso comum.
Trata-se de uma visão horizontal (sociedade civil, meios de comunicação,
igrejas, associações, sindicatos, empresariado, operários, camponeses,
estudantes) da política, que não exclui a vertical, mas que constitui a condição
de base, que conectando os diferentes agires, favorece uma comunidade de
comunicação sem a qual a política perde as suas bases e abre espaço à
veleidades de dominação.

A política, como discurso comum, que toma decisões e torna possível a


tomada de decisões coletivas, corresponde à sobrevivência de uma esfera
pública na qual são ainda possíveis o debate e a confrontação quanto às
finalidades coletivas e aos objetivos comuns.

C): Programa Forte ou A Necessidade de uma Cidadania Democrática

123
Terceira questão

Amílcar Cabral, sem dúvida, um dos maiores teóricos da Àfrica de


expressão portuguesa, dividia o período de luta entre o que ele chamou de
programa fraco e de programa forte43.

Para Cabral, a luta armada, durasse muito ou pouco, seria


necessariamente o tempo mais breve, mais curto; passageiro, transitório e
mesmo o menos importante. A luta seria contra o colonialismo, mas também
contra o racismo, o tribalismo. O mais importante deveria necessariamente ser o
programa forte que consistia, para resumir, no desenvolvimento económico,
político e social.

Veleidades racistas, individualistas, acabaram separando a Guiné do Cabo


Verde, fazendo socumbir a Guiné num contínuo processo de golpes militares,
adiando, de facto, o advento do programa forte.

Em Moçambique, passamos da assinaturas de acordos à assinatura de


acordos: Lusaka, Inkomati, Roma e Maputo (o fim das hostilidades) o que quer
dizer que ainda não enterramos o programa fraco, e por consequência, ainda não
enveredamos pelo forte. A questão é como enterrar definitivamente o programa
fraco e em que deve consistir, concretamente, a passagem para o segundo, para
o mais importante.

O Nkrumah do Consciencismo acreditava na primazia do político,


(primeiro o reino político e o resto viria em acréscimo), Oruka, na Filosofia
Prática44, defendia a necessidade de um mínimo ético. Quando o político não é
acompanhado pelo ético é sempre política (Zuma, Mugabe...) e

43 Cabral, Amilcar, A Arma da Teoria : Unidade e Luta, Lisboa, Seara Nova, 1976, p. 36.

44 Oruka, Odera. Pratical Philosophy: In Search of an Ethical Minimum, East African


Educational Publishers, Westlands, 1997.

124
Terceira questão

economicamente (Moçambique, Angola) insuficiente. A interseção reside na


democratização do social.

Temos o mau hábito de confundir e reduzir a democracia à competição


entre os partidos para a tomada de poder. Na realidade, a democracia é um
processo que regride ou progride, essencialmente, em função do papel que a
cidadania joga no sistema politico, e na soldadura entre o sistema político e os
outros sistemas sociais, e entre todos estes sistemas e o conjunto das instituições
e potestades reunidas no Estado.

Por outro lado, a cidadania não se resume ao sufrágio, mas compreende


os direitos civis (direito à liberdade), os direitos políticos (a participação), os
direitos económico-sociais (gozar dos bens da vida) e os deveres
correspondentes. Trata-se então de reconstruir um centro moral que se deslocou
da solidariedade em direção à acumulação e ao egoísmo sem limites, e retornar
às virtudes sociais da sabedoria, da prudência, da amizade, da caridade e do
diálogo.

A cidadania democrática é ameaçada por forças que são tanto mais


ameaçadoras quanto mais cegas e animadas por instintos irracionais de
potência (poder) e de domínio. Mas como a democracia não tem alternativas
sob o plano de sistemas políticos, assim também a cidadania democrática não
tem alternativas sob o plano da complexa organização social.

O momento crítico, difícil, sob o ponto de vista teórico, é aceitar a


cidadania como centro moral da nossa vida democrática, como conjunto
regulador e prático do viver social. A cidadania democrática de que falo não é a
reafirmação kantinana da pessoa-fim e da sua dignidade e autonomia, mas é o
princípio activo da cidade, o metro da sua organização e do seu funcionamento.

A democracia só pode viver nas instituições democráticas, nos direitos e


deveres proclamados e realizados através de princípios ideais, institutos

125
Terceira questão

jurídicos e relações factuais que lhe desenham o vulto e afinam continuamente


a fisionomia.

A relação entre a cidadania e a cidade leva o indivíduo a transbordar no


coletivo, pois a pessoa-fim abstrata vive no coletivo, no sistema da acão social
que acolhe o agir individual como agir em vista do outro e que
progressivamente se estrutura no coletivo e por isso em ordenamentos sociais.

O principio democrático exige a arte de se associar como veículo da arte


de cooperação social, que não pode ser uma simples agregação de interesses,
mas uma busca de valores comuns. Isto exige o abandono da antropologia do
homem egoísta e egocêntrico que só conhece o seu interesse pessoal e o cálculo
instintivo da sua própria utilidade. Se a cooperação social continuar prisioneira
da razão utilitarista, isso condena-nos a procurar a nossa felicidade social
contentando-nos simplesmente com a satisfação das nossas necessidades
individuais e individualistas; enquanto o princípio da justiça nos permitiria
invocar processos de libertação do egoísmo social e caminharmos em direção à
construção de um bem, partilhado e partilhável.

Trata-se de tirar o Estado da sua auto-referencialidade e submetê-lo,


concretamente, ao controle dos cidadãos. Tal, pelo menos, responsabiliza os
líderes e os governantes diante do povo. Um exemplo enorme, já tratado acima,
é que se fazem guerras, negócios suspeitos, contra a vontade do povo e dos seus
representantes. Violam-se os princípios mais elementares da moral pública, e
não se é responsabilizado.

No quadro do nosso sistema, não temos nenhum controlo sobre o que se


faz em termos de políticas públicas, não há nenhuma discussão sobre o vasto
mundo da ação governativa e do uso dos recursos públicos. Nós somos mudos e
impotentes diante da articulação concreta da vida do Estado e não sabemos o
que se faz com o nosso dinheiro, com os nossos recursos. Os candidatos

126
Terceira questão

prometem dinheiro ao futebol. Muito bem, mas donde vem o dinheiro? Como é
que se definem as prioridades num país em que milhões de crianças não têm
pão? Mas é exatamente aqui, que a cidadania, enquanto coordenadora dos
deveres e direitos, deveria ter os seus princípios de verificação. É aqui que
deveríamos mudar a relação de submissão em relação de união; na passagem de
subordinados a cidadãos. Em suma, é aqui que a democracia encontra todo o
seu sentido.

Mas isso requer que ultrapassemos a democracia como simples


participação eleitoral e que se desenhem formas de participação e de controlo
social, através das quais os direitos, nas suas várias articulações, e os deveres
pelo que devem ser, encontrem um terreno de efetividade. Isso é válido não só
para o sistema político-administrativo, mas também para o sistema económico e
mesmo cultural. Isto significa que todos os sistemas, mesmo o económico,
devem submeter-se a um controlo democrático.

A cidadania democrática, síntese e exaltação de todas as cidadanias


parciais, é o espaço onde se pode constituir um equilíbrio entre os poderes
político, económico e social.

Se os acordos gerais de paz, assinados em Roma, sancionaram a entrada


de um novo actor político, a democracia multipartidária, é na dimensão da
cidadania democrática (programa forte) que o sistema de relações políticas,
civis e económicas deve continuar a desenvolver-se. É nesta perspectiva que se
deve afrontar o delicado momento que a nossa democracia atravessa.

No atual momento da crise das instituições, discute-se a relação entre a


Chissano-versus parlamento, o estatuto do chefe da oposição, acomodações, a
despartidarização da CNN e do inteiro aparelho do estado, o governo de gestão,
os recursos naturais, o desarmamento dos homens da Renamo, o estatuto das
forças armadas, etc. É obvio que cada uma destas questões tem a sua própria

127
Terceira questão

história, origem não necessariamente coincidentes, fatores diferentes e


diferentes causam.

Em boa parte, as incertezas e a confusão que dominam este debate têm a


ver com o entrelaçamento de tantos problemas e movimentos que sem
discernimento se sobrepõem entre eles e se agravam reciprocamente, até
criarem situações de instabilidade, de conflito de guerra.

Existe, contudo, um fio que liga todos estes problemas e que justifica que
sejam tomadas em conjunto: este fio é a necessidade de pensarmos um direito,
uma constituição, uma organização dos poderes públicos em adequação à
situação histórica e social que o país atravessa. Ė preciso não mudar um ou
outro artigo da constituição, para acomodações, adequações cosméticas, mas
pensar o substracto jurídico do nosso viver juntos a partir dos cidadãos, do
lugar e momento histórico em que esses cidadãos se encontram, dos problemas
com que estão confrontados, tendo em conta que essa história é pré-colonial, é
também colonial e pós-colonial; é também o Moçambique actual na sua
conjuntura nacional, regional, continental e mundial.

Existem tentações de engenharias jurídicas, como se bastasse uma


modificação da forma política e jurídica das relações institucionais para
caminhar-se em direção à cura do sistema democrático e a posições mais
equilibradas, atentas aos motivos de fundo do nosso mal-estar político-
institucional.

Porém, é preciso recordar que as constituições estabelecem princípios e


valores, atribuem e garantem direitos, em resumo, definem uma ordem não no
sentido puramente formal, mas no sentido substancial de regulativo da vida
associativa baseada sobre valores comunitários.

A questão, pois, nem sequer é a quantidade de direitos (de uma maneira


geral definidos como humanos) de que cada um goza ou em direção aos quais

128
Terceira questão

tende, nem a amplitude da plateia titular de tais direitos, numa tendência


inclusiva cada vez mais aberta; mas a maneira como tais direitos se cruzam
entre si, passando da categoria de pretendidos ou aspirados à categoria de
escolha de oportunidades, de possibilidades de vida, tornadas ou a tornar
efetivamente disponíveis. Desta maneira, a cidadania é o médium entre o
sistema político, sistema de interdependência entre os atores políticos e o
sistema social e institucional. Desta maneira, a cidadania vai para além da
liberdade liberal, para além da liberdade social, para além da simples liberdade
de participação nos pleitos eleitorais, porque ela solda todas estas liberdades
entre si e une-as numa visão unitária, verdadeiramente política .

Ninguém pode garantir que as reformas, mesmo radicais, da forma de


governo - gestão ou acomodação de Dlhakama e mesmo da inteira Renamo- vão
tocar o fundo dos problemas, se não se opera uma revisão profunda das relações
cívicas, ético-sociais e económicas.

Ė verdade que uma capacidade de decisão politica fraca seria de natureza


a incrementar a instabilidade nas relações de cidadania. Mas, por outro lado,
também não é hoje praticável, nem realista pensar que se pode continuar com
um sistema de decisões políticas unidirecionais e exclusivamente hierárquicas.
Por isso ocorre encontrar um sistema misto, em que o poder jerárquico exista e
seja forte, mas contrabalançado por um poder que parta de baixo para cima, e
em que os dois actuem numa contínua dialéctica.

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