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Essa crise é agravada pela confiuéncia entre capitalismo e animismo, por um lado, e a recodificagao em curso de todos os campos de nossas existéncias, no seio e por meio da linguagem da economia e da neurociéncia. Essa recodificagao levanta ddvidas sobre a ideia que fazemos do elemento humano e das condigdes de sua emancipagao desde pelo menos 0 século XVIII. 4 5 Uma das teses centrais de seu novo ensaio é a de que um dos efeitos do neoliberalismo é universalizar “a condigdo negra”. Como vocé define “neoliberalismo”? O pensamento contemporaneo se esqueceu de que, para seu funcionamento, 0 capitalismo, desde suas origens, sempre precisou de subsidios raciais. Ou melhor, sua fungao sempre foi produzir nao apenas mercadorias, mas tam- bém ragas e espécies. Defino como neoliberalismo a época em que o capital pretende ditartodas as relagdes de filiagao. Busca se multiplicar numa série infinita de dividas estruturalmente insolviveis. J nao ha distncia entre fato e ficgo. Capitalismo e animismo se tornam uma coisa s0. Em vista disso, os riscos sistémicos aos quais somente os escravos negros foram submeti- dos na primeira fase do capitalismo representam agora, se nao a norma, ao menos a parcela que cabe a todas as humanidades subalternas. HA, portanto, uma tendéncia a universalizagdo da condigdo negra. Ela é acompanhada pelo surgimento de praticas imperiais inéditas, uma rebalcanizacao do mundo e a intensificagado das agées de zoneamento. Essas praticas constituem, no fundo, um modo de produgdo de novas subespécies humanas fadadas ao abandono e a indiferenca, quando nao a destruicao. Seu ensaio se abre a uma declaracao retumbante que praticamente equi- vale a um manifesto. Vocé afirma que a Europa ja nao representa o centro de gravidade do mundo. A despeito disso, vocé nao deixa de recorrer a seus arquivos. Por qué? Somos obrigados a nos confrontar com esse arquivo. Ele contém uma parte de nés mesmos e, justamente por isso, também é nosso. Em se tratando de mundos euro-americanos, néo podemos nos dar ao luxo da indiferenca nem consentir com a ignorancia. A ignorancia e a indiferenga sao privilégios dos poderosos. Por que esse desvio passando pelo Ocidente no momento mesmo em que sua hegemonia, na perspectiva que vocé mesmo expés, esta comprometida? Nao se trata de um desvio. Trata-se de ocupar essa tradigao, pois, de todos os modos, ela nao nos é alheia e nds nado somos alheios a ela. Desempenhamos um papel essencial no processo de sua constituigao. Seria, portanto, uma enorme perda nos apartar daquilo que contribui- mos para que existisse. Penso nos afro-americanos, por exemplo, ou nos afro-europeus. Eles sao ocidentais de pleno direito. No que se refere aos africanos, o desafio é habitar varios mundos e formas diversas de inteli- gibilidade ao mesmo tempo, nao em um gesto de rejeicdo gratuita, mas de vaivém, que autoriza a articulagaéo de um pensamento da travessia, da circulagao. Esse tipo de pensamento acarreta imensos riscos. Mas esses riscos seriam ainda mais sérios se tratassemos de nos isolar no culto a diferenga. O que vocé condena no pensamento europeu? Alguns condenam seu solipsismo, sua obsess&o com a ficgao segundo a qual o Outro seria o avesso de nds mesmos. Ou ainda sua incapacidade em reconhecer que existem cronologias plurais do mundo que habitamos e que a tarefa do pensamento é atravessar todos esses feixes. Nesse gesto que implica a circulagao, a tradugao, o conflito e também os mal-entendidos, existem quest6es que se dissolvem por si S6s e essa dissolugao autoriza que surjam, com relativa clareza, demandas comuns: demandas por uma possivel universalidade. E é essa possibilidade de circulagdo e de encontro de distintas inteligibilidades que o pensamento-mundo exige. Existe um pensamento europeu? N&o existe “um” pensamento europeu. Ao contrario, existem relagdes de forca no seio de uma tradigao que, alias, nao para de se transformar. E, no esforgo em curso, especialmente no Sul, para produzir uma reflexdo que cor- responda verdadeiramente 4 dimensao do mundo, nosso trabalho consiste em tirar proveito dessas relagGes de forga e fazer presso sobre essas fric- Ges internas, nao para aprofundar a distancia entre a Africa e a Europa ou para a “provincianizar”, mas para ampliar as brechas que permitem resistir as forgas do racismo, que sao, no fundo, as forgas da violéncia, do enclau- suramento e da exclusdo. Em sua opiniao, onde se situa em relacao a isso o pensamento francés em especifico? Apés a descolonizagao, a Franga se retraiu sobre si mesma e perdeu grada- tivamente sua capacidade de desenvolver um pensamento que correspon- desse a dimensdo do mundo. Hoje, ela encontra dificuldades para escapar a questao da identidade, para confrontar a questao da relagdo, dos elos relacionais, do “em comum’”. Devemos apresenta-lo como um teérice do pés-colonialismo? O fato de ter escrito uma obra intitulada “A pés-col6nia” nao faz de mim um tedrico do pés-colonialismo nem um adepto dessa corrente de pensamento. Somente alguém que nao leu nada do que escrevi poderia me apresentar como um tedrico do pés-colonialismo. Na Franga, porém, vocé é visto como parte dessa corrente. E 0 que ocorre também na Africa. Quem faz isso raramente sabe do que est falando. Muitos opositores dos estudos pés-coloniais na Africa mobilizam argumentos ideoldgicos em lugar de uma andlise critica rigorosa e disciplinada das obras a que pretendem se opor. Na verdade, inexiste critica melhor da corrente pés-colonial do que a propria corrente pds-colonial. Na Franga, sdo indmeros os que preferiam que féssemos mudos, incapazes de falar, sobretudo entre nds mesmos. Eles poderiam, assim, construir nosso discurso por nds e continuar a nos clas- sificar. 0 pensamento pés-colonial veio embargar esse poder exclusivo de classificagao. Por isso é que incomoda. Até recentemente, vocé havia trabalhado com sequéncias histéricas relativamente curtas. Com a Critica da Razao Negra, vocé voltou a ser um pouco historiador. Como explica essa inflexao? A prdpria natureza do tema exigia um retorno a longa duracdo. O Negro é uma invengdo daquilo que no livro chamo de “primeiro capitalismo”.! 0 periodo do primeiro capitalismo - ao menos da forma como 0 concebo - é dominado pelo Atlantico. A era moderna propriamente dita comega com a expansao europeia, a dispersdo dos povos e a formagao de grandes diasporas, um movimento acelerado de mercadorias, religides e culturas. O trabalho do escravo negro desempenha um papel de destaque nesse proceso. Era pre- ciso, pois, interpelar essa longa duracao, sem a qual nada se compreende da realidade contemporanea. 0 “negro” nfo passa de uma invengao do capitalismo atlantico? Que lugar vocé reserva aos mundos indico e drabe-transaariano em sua fabricagao? 1. N.T.: Na lingua francesa, o termo négre se reveste, especialmente em seu uso como substantivo, de um cardter pejorative de extragao colonialista @ racista para se referir aos negros, a despeito dos es- forgos de intelectuais da négritude de recuperaro vocabulo e promover uma dimensao positiva para seu uso, O temo corrente para se referir aos negros sem essa carga depreciativa é noir. Quando utilizado pelo autor num sentido que abarea essa etimologia infame, o termo é grafado com inicial maitiscula. Aescravidao atlantica foi 0 Gnico complexo servil multi-hemisférico que chegou a fazer das pessoas de origem africana mercadorias. E nesse sen- tido que se trata da tinica a ter inventado o Negro, isto 6, uma espécie de homem-coisa, homem-metal, homem-moeda, homem plastico. Foi nas Américas e no Caribe que os seres humanos foram transformados, pela primeira vez na hist6ria universal, em criptas vivas do capital. 0 Negro é 0 protétipo desse processo. Vocé confere uma posigao bastante central a historia diaspérica, em especial afro-americana. insiste particularmente na ambiguidade das relagdes entre os afro-americanos e a Africa. Ahistoria das pessoas de origem africana nos Estados Unidos, em par- ticular, é uma histéria que sempre me fascinou. O afro-americano é,em grande medida, o ressurgente da modernidade. A historia dos negros nos Estados Unidos deveria ser ensinada com destaque em todas as escolas. da Africa. Vocé dedica longas passagens ao concelto de “raga” e de “racismo”. Na sua opiniao, onde se revela o racismo? Oracismo é 0 sintoma de uma neurose fobica, obsessiva e, por vezes, histé- tica. O racista 6 a pessoa que se afirma pelo ddio, construindo o Outro néo como seu semelhante, mas como um objeto ameagador do qual seria neces- srio se proteger, se desfazer ou ao qual caberia simplesmente destruir, em virtude de nao o conseguir dominar inteiramente. Em grande medida, 0 racista 6 uma pessoa enferma, carente de si mesma e falha. O capitulo mais poético do livro, mas também o mais perturbador, é intitulado “Réquiem para o escravo”, Esse capitulo representa o subsolo do livro. Nele, o esforgo é explicar como, na Africa e nas coisas negras, revol- vem-se intensamente duas forgas ofuscantes, ora argila intocada pelo escul- tor, ora animal fantastico, e sempre figura hieratica, metamérfica, capaz de desencadear explosdes em cadeia. O esforgo é também para mostrar como 0 escravo negro foi, no fundo, um sujeito plastico, isto é, um sujeito subme- tido a um processo de transformagao por meio da destruigéo. Demonstro especialmente que nao foi se desgarrando da forma-escravo e assumindo a condigdo de ressurgente que 0 negro foi capaz de conferir a essa transformacgao por meio da destruigdo um significado orientado para o futuro. E, para tratar disso tudo, sou obrigado a recorrer a uma escrita figurativa, que oscila entre a vertigem, a dissolugdo e a dispersao. E uma escrita feita de circuitos cruzados e cujas arestas e linhas se encontram no ponto de fuga. O termo “Réquiem” é, na verdade, dissonante. 0 Réquiem 6 cantado para os mortos. Ou, no caso, trata-se nao de cantar aos mortos, mas de celebrar os ressurgentes, isto 6, os sujeitos de uma transfiguracao. O titulo desse capitulo participa, portanto, de um desalinho. A que se dedicam suas pesquisas atuais e qual sera o tema de seu pré- ximo livro? Minhas pesquisas estdo voltadas aquilo que chamei de “afropolitanismo”. Entrevista de ACHILLE MBEMBE a Catherine Portevin Asua Critica da Razao Negra faz referéncia explicita a Critica da Razao Pura de Kant. Por qué? Se me aproximo de Kant, é em sua postura critica diante da razdo. De minha parte, queria explorar as condigdes nas quais essa racionalidade inventou um sujeito que chamo de “sujeito racial” ou, dito de outra forma, um sujeito de quem nao se sabe qual é a parte humana e qual é a correspondente ao animal, 4 coisa ou 4 mercadoria. Em seguida, procurei saber como esse sujeito, de quem nos é dito que nao se trata de um sujeito, pode organizar seu “retorno a humanidade”, segundo a bela expressdo de Frantz Fanon. Mas se faco referéncia a Kant, é sobretudo ao fundador do Iluminismo, da racionalidade ocidental moderna e desse universalismo em nome do qual foram concebidas as categorias inferiores da humanidade. Sabemos, ora, que essa ideia causou indmeros estragos fisicos e psiquicos no mundo ao longo dos séculos. O préprio Kant, 0 grande filésofo da razdo, perde a razio ao falar da Africa. Quero, portanto, com esse titulo, dar a entender que a hist6ria do lluminismo permanece incompleta se nao se escreve ao mesmo tempo a historia do seu lado noturno, obscuro e obsceno. Vocé recupera a palavra “Negro” em termos préprios. Nao para enaltecer, como Senghor, a beleza da negritude, mas para construir uma filosofia do sujeito “para além da raga”. Como fazer isso utilizando a prépria cate- goria que a vinculou a raga? Nao basta se desvencilhar do conceito de raga, ou rejeita-lo, para que ele deixe de ser efetivo ou para que o racismo desaparega. E preciso em vez disso tentar fazer que ele exploda de dentro para fora. Eu queria compreen- der em que, por que e como “o Negro” se tornou, tanto para o pensamento ocidental quanto para a critica moderna de origem africana e diaspérica, uma forma de dizer o mundo, de instituir uma certa ordem. Esse termo t possui uma longa historia € remonta ao surgimento do capitalismo no século XV, cuja pulsao primitiva consiste em buscar eliminar toda e qualquer distin- cdo entre os seres humanos e as coisas. A tragédia da Europa que inventou esse termo foi a de se comprazer com a autocontemplagéo no momento mesmo em que se langava ao encontro de “novos mundos”. Confrontada a esses mundos distantes, a Europa nao se colocou nada além de uma Gnica questo: esse Outro “é uma pessoa diferente ou algo diferente de uma pes- soa?” E por isso que digo que grande parte da filosofia ocidental pensa o mundo em termos da relagao do mesmo com o mesmo, do recolhimento a simesmo e jamais, ou muito raramente, em termos da coabitagdo de todos no mesmo mundo, Ela pensa em termos de compartimentos, diferencia- Ges, classificagdes e, no fim das contas, segregacéo. Essas designagoes de “ragas”, de “espécies” e de “Negros” sao toda a parte repulsiva, prima- tia, dissimulada, que acompanha em paralelo 0 discurso moderno sobre 0 homem, o humano, a humanidade, o humanismo, os direitos humanos. Nessa economia, um lugar especifico é reservado a Africa. Ela representa ——— -—_—_ fantasmaticamente a terra natal do homem vinculado a sua dimenséo ani- mal. O Negro liberta as pulsdes irracionais que nao deixaram de irrigar 0 lado delirante da modernidade. Como ressaltou Gilles Deleuze, “ha sempre um negro, um judeu, um chinés, um grao-mongol, um ariano no delirio”. Livrar-se do fardo da raga é um projeto que, para vocé, envolve tanto os oprimidos quanto os opressores? Seja como for, esse é 0 objeto da critica de origem africana desde o fim do século XVIII. Especialmente para Frantz Fanon, esse projeto se assemelha a uma rejei¢ao da castracao. Fanon aconselha ao colonizado dar as costas a Europa, isto é, comecar por si mesmo, manter-se ereto do lado de fora das categorias que o mantiveram prostrado. A dificuldade nao é somente ter sido designado a uma raga, mas ter interiorizado os termos dessa designagao; ter chegado a desejara castracao. O que Fanon propde é um verdadeiro caminho de cura, que comega pela e na linguagem. Essa cura requer um trabalho colossal em si mesmo e, eventualmente, a pratica da violéncia em Ve reqaQeet ds oposigao ao sistema colonial. Sem a liberagao do desejo e seu redireciona- mento a novas afeigdes, nao é possivel, ao menos na ldgica fanoniana, se livrar do fardo da raga. Porém, noutras situagdes - penso especialmente nos Estados Unidos -, libertar-se do racismo passa por uma miriade de prati- cas de refiguragao e de insubmissgo. Foi o esforco que empreenderam os antigos escravos imediatamente apés a Proclamagao da Emancipagao ou apés a Guerra Civil, ou entao quando das grandes mobilizagées dos anos 60 pelos direitos civis, ou ainda em meio a experiéncia dos Panteras Negras. A meta, a cada vez, é escapar de uma representagao estalicade simesmo e dos incessantes vaivéns entre o ddio e ofasciniooressentimento. eo desejo de vinganga. Todas essas substituigdes, essas tentativas de assumir uma nova aparéncia, um novo nome e uma nova vida tém certamente uma dimen- sdo politica, mas também espiritual, onirica e artistica. Trata-se de adquirir Os meios para sonhar diferente, para passar a um outro tipo de produgéo desejante. Nisso consiste, alids, uma das fungdes das indmeras igrejas afro- -americanas ou de géneros musicais como 0 jazz e o blues. Essa refiguracdo de si somente tem sentido se desemboca num como um todo. No caso sul-africano, essa recomposigao da cidade sé é possivel se o opressor e 0 oprimido empreenderem juntos um processo de reabilitacao. Pois 0 racismo destrdi tanto quem 0 pratica quanto sofre, Sendo 0 sujeito racista um sujeito falho, o retorno a uma relagao de reciprocidade é uma das condigées para a saida do “estado racial”. Essa é, para mim, a contribuigdo decisiva da experiéncia sul-africana. Da Africa do Sul nos vem a ideia segundo a qual somos condenados a viver expostos uns aos outros, os algozes e suas vitimas, nao raro no mesmo espago. Sera pre- ciso, consequentemente, pensar a democracia para além da sobreposi¢ao das singularidades, da mesma forma que para além da ideologia simplista da integracao. Além disso, a democracia do futuro sera construida sobre a base de uma clara distingao entre “o universal” e “o em comum”. O uni- versal implica a inclusdo em uma entidade qualquer ja estabelecida. 0 em comum pressup6e uma relagao de co-pertenca e de partilha, de mutuali- dade - a ideia de um mundo que é 0 Gnico que temos e que, para que seja Re coor gre) A K 20 24 duradouro, deve ser compartilhado por todos aqueles que a ele tém direito. Para que essa partilha se torne possivel, a demanda porjustiga e reparagao éincontornavel. Como se deu sua radicagao na Africa do Sul e o que o prende ld atualmente? Depois de meus estudos em Paris, lecionei nos Estados Unidos entre 1988 € 1996. Tendo deixado o continente africano muito cedo, eu queria voltar para acompanhar as transformagdes em curso a época e, se possivel, participar delas. Foi assim que me engajei no Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciéncias Sociais na Africa (CODESRIA), em Dacar, antes de ingressar em 2001 no Wits Institute for Social and Economic Research da Universidade do Witwatersrand, em Joanesburgo. Desde entdo, vivo entre Joanesburgo, os Estados Unidos (onde leciono no outono) e Paris, que visito sempre que posso. A cidade de Joanesburgo é u ira 6rio pri- vilegiado de uma urbanidade “afropolitana”, isto é, prentincio. do que seré.o século XXI africano - uma urbanidade altamente materialista, multicolorida, ———a aaa . es nomen crioula, transnacional e plastica. A Africa do Sul é um pafs complexo, fruto de uma hist6ria ao mesmo tempo sombria e espléndida. Viver ld é ser confron- tado cotidianamente com esse passado funesto e seus incontaveis vestigios no presente, com a maneira como a Besta (0 racismo, as desigualdades e a exploracdo) continua a se metamorfosear, produzindo incessantemente novas metastases no corpo social. Também é ser solidério com as lutas que ali so travadas, algumas delas sob formas inteiramente novas. Com fre- quéncia, sente-se a claustrofobia, a impressao de viver num pas de milhares de potencialidades, mas acometido pela atrofia da imaginagao. 0 mais ater- rorizante 6 a sensagdo de que esse pais possivelmente nao estard a altura da ideia que Ihe deu origem. Na esteira de Foucault e de Fanon, a psicanilise e a lit ao multo presentes em seu trabalho. Por qué? ener eeannae . 5 Tendo crescido nos Camarées, num ambiente em que - tinha conscién- cia disso - os fendmenos psiquicos relacionados ao mundo da noite e do a) 23 invisivel fazem parte da vida cotidiana, era natural que eu me interessasse pela psiquiatria e pela psicandlise, mas também pelas artes, literatura e misica. Foi para mim uma forma de prestar atengdo ao modo como as pes- soas experimentam as superficies e as profundezas, 0 mundo das luzes e das sombras, ciente de que os sentidos derradeiros precisam ser buscados no lado tenebroso da vida, nos lugares em que a linguagem se faz proficua: a miisica, a danga, as mascaras, a ornamentagao, a decoracao, a profusdo de signos e objetos. Também por isso que Michel Foucault e Frantz Fanon, ambos to sensiveis ao psiquismo, as questées da dominagdo vinculadas &s quest6es do autointeresse, abriram-me campos que somente a razaio pura” nao seria capaz de abarcar. Creio que o legado grego da filosofia, que ademais tanto marcou as ciéncias sociais, centra-se demais nas questdes ontologicas do ser e da identidade. Nas tradigdes africanas ancestrais e na experiéncia contemporanea, 0 ponto de partida da interrogagao sobre a existéncia nao é a questo do ser, mas a da relagdo e da composigdo; 0s nédulos e os potenciais situacionais; a jun¢ao das multiplicidades e da =e SE circulagdo. Essa plasticidade nao se tornou objeto de uma problematizacao consistente no discurso filoséfico. Por outro lado, a literatura (0s romancis- tas Amos Tutuola, Sony Labou Tansi, Efoui Kossi, Mia Couto...), a mlisica e as artes em geral sao repletas de situagdes paradoxais de transformacao sem ruptura, que pressupdem uma eximia arte de acomodacao dos opostos. Por mais que se afirme laico, de que forma a teologia o inspira? 0 cristianismo desempenhou um papel inegavel em minha formagao, incluindo a formacao politica. Eu me afastei de todas as praticas rituais ao mesmo tempo que preservei o interesse pela vida intelectual do cristianismo, de resto tao fecunda. Por outro lado, mantive-me atento aos trés motivos teoldgicos da criagao, da crucificagao e da ressurreigao. Nao se trata, para mim, de profissées de f6, mas de figuras ideais, de imagens fundamentais, que me permitem encontrar um sentido para a historia atormentada da Africa e dos povos de origem africana pelo mundo. Sao também categorias politicas para fazer frente aos encantos do pessimismo, a toda tentacao de 2 ressentimento ou de niilismo, de vinganga e melancolia. Elas me ajudarama compreender que a critica do presente s6 faz sentido se abrir caminho para uma politica do futuro. Esse alicercamento da esperanca num futuro aberto a amplidao, eu o encontrei com énfases diversas em todos os intelectuais de origem africana que me inspiraram, fossem tedlogos, filésofos e socidlo- gos cristéos, como Jean-Marc Ela e Fabien Eboussi Boulaga, ou pensadores laicos, como Paul Gilroy, Edouard Glissant, James Baldwin e, obviamente, Césaire e Fanon. Eu o constatei também numa certa tradigao de pensa- mento judaico, em diversos autores junto aos quais encontrei serenidade e€ reconforto. No Ocidente, a historia dos judeus e a dos negros nao séo a mesma histéria. Mas 0 que as aproxima é 0 fato de serem ao mesmo tempo 0 direito e 0 avesso da modernidade. A presenga dos negros e dos judeus no Ocidente é muito antiga e, sem eles, a modernidade nao teria vestido a roupagem que acabou por vestir. E, ao mesmo tempo, negros e judeus sao ressurgentes, pois ambos os grupos foram expostos, em graus distintos, a possibilidade concreta de desaparicao. Para os judeus, foi evidentemente 0 Holocausto. Para os negros, foram os quatrocentos anos de escravidao. Ressurgidos de to longe, judeus e negros puseram a modernidade ques- tdes muito radicais, ou mesmo extremas, que um Kant (mas nao sé ele) jamais foi capaz de escutar, quanto menos de colocar. Além disso, 0 que me impressiona - e 6 um ponto ainda intocado para a filosofia, ou ideolo- gizado com demasiada frequéncia - s&o as convergéncias ou os ecos entre os pensadores negros (Blyden, Dubois, Césaire, Senghor, Fanon, Glissant) @ 0 pensamento judaico de tradigao aleméa (especialmente Rosenzweig, Benjamin, Buber e Bloch). Vocé nao estaria ultrapassando a questao “pés-colonial” para delinear um sujeito pés-pés-colonial? E preciso encontrar um ponto de equilibrio. Questionar-se a respeito da pés- -colénia, que é para mim tanto um periodo especifico quanto uma forma- cdo especifica do poder, nao é exatamente a mesma coisa que aquilo que 25 nos contextos anglo-sax6nicos é chamado de estudos pés-coloniais. Foi 26 ar nos Estados Unidos, no final dos anos 1980, que os descobri. Um contato distante, para dizer a verdade. Na época, como de resto ainda hoje, eu os considerava muito pobres em termos filosdficos, As teorias pés-coloniais tém por caracteristica serem como um rio. de milltiplos afuentes. Para mim, elas representam menos uma teoria que um conjunto de questdes criticas €, ao contrario de alguns de meus amigos, entre eles Jean-Francois Bayart, ndo nutro contra eles nenhuma hostilidade. Mas a corrente pds-colonial de fato é parcialmente datada, nao pelas razdes apontadas por seus detratores franceses, mas simplesmente porque sua argumentacdo se angi scien- temente ou nao, numa Europa vista como o centro dg mundo. Ora, j nao é mais esse 0 caso. Jé nao é preciso seguir a sugestao de Dipesh Chakrabarty para “provincianizé-la”. Ela ha muito ja se “autoprovincianizou”. Esse é 0 acontecimento decisivo de nossa época e é preciso celebra-lo, porque pode- mos enfim nos colocar outros tipos de questées ou entao revisitar as velhas quest6es a partir de novos angulos. Assim, por exemplo, é preciso perguntar se 0 declinio da Europa seré acompanhado de uma extingdo do racismo que ela por tanto tempo sustentou ou se “o Negro” é uma categoria que jd sobre- vive &queles que a inventaram. Pois 0 tipo de “raga” produzido pelo capita- lismo da era neoliberal tem, no fundo, algo a ver com aquilo que constituia a condicao negra entre os séculos XV e XIX. Trata-se de uma nova “raca”, que transcende as questées relacionadas a aparéncia, cor da pele ou origem. 0 Negro j nao é apenas 0 homem negro, africano ou de origem africana, mas todos os que hoje formam uma humanidade excedente em relagdo a lagica econémica neoliberal. A questao j4 nao se limita aos seres humanos serem tratados como mercadorias, mas que se instile no sujeito humano 0 desejo de se vender a si mesmo, ou seja, de se converter em objeto. Desse ponto de vista, assistimos a um devit-negro do mundo. Eisso volta a levantartodas as velhas questdes da emancipagao, da alienagdo, da autoalienacdo. E a propria ideia de sujeito que é preciso repensar no momento em que o drama, para milhées de pessoas, ja nao é serem exploradas, mas de nao mais serem explordveis. Na Africa do Sul, por exemplo, cerca 40% da populacao esté desempregada. Como dar conta dessa produgao espetacular nao de 28 29 um contingente residual ou excedente da humanidade, mas sim supérfluo? Em face dessas realidades, algumas categorias centrais sobre as quais se apoiou a teoria critica para assentar seu projeto de alcangar a maioridade, como dizia Kant, fazem greve, Cidadao camaronés, formado na Franga, morando e lecionando nos Estados Unidos e na Africa do Sul, historiador, mas também filésofo, antropélogo, cientista politico... Vocé gosta de cruzar frontelras? Durante toda a minha vida, tenho sido um passante. Nao um ndmade nem um exilado, mas um passante, alguém que acampa nas fronteiras. “Passante”, é como vocé também descreve ser african. Como define isso? Da perspectiva da longa duragao, a histdria africana pode ser interpretada a partir da tematica da passagem, do passante, do passador. As cultu- ras da Africa se formaram na circulacdo e na mobilidade. E por isso que as fronteiras e a sensagao de reclusdo que elas provocam sao vividas de forma t4o traumatica, tanto no seio do continente quanto na relagao com 0 resto do mundo. Em sentido mais amplo, estou convencido de que o passante representa 0 sujeito do amanha. Seria possivel imaginar uma reconfiguragao do direito cosmopolita sobre a base da figura do pas- sante. Esse novo direito garantiria a cada habitante da Terra 0 direito de permanecer, sem necessidade de visto, ao menos temporariamente, em qualquer lugar do mundo aonde a vida o levasse. Esse direito seria inato, distribuido em proporgées iguais entre todos os habitantes da Terra. Os direitos humanos, ao conceber 0 direito de asilo, por exemplo, fizeram-no em decorréncia de um direito humano fundamental que é o direito de viver onde se nasceu, 0 direito de viver “na propria terra”. No momento em que tém lugar as grandes mobilidades humanas e a urbanizagao do mundo, o direito de circulagao, igual para todos e em todos os lugares, deveria ser onovo direito humano fundamental. Mas 0 perigo hoje é 0 oposto disso, 0 sonho de comunidades sem estrangeiros, esse desejo de apartheid que assombra nosso mundo. Um sujeito cosmopolita, seria esse seu derradeiro aceno ha diregao de Kant e de sua visao da hospitalidade? Seria necessdrio ampliar seu projeto de “Paz perpétua” para um mundo que mudou radicalmente e que nao é mais dominado pela Europa. Um mundo, 0 Unico que temos, ao qual todos temos direito ¢ que precisamos aprender a compartilhar se quisermos que seja duradouro. Tradugao de Sebastiao Nascimento Achille Mbembe 6 considerado um dos mais agudds pensadores da negri- le hoje. Na esteira de Frantz Fanon, vira do avesso os consensos sobre descolonizacao e a identidade negra. Nascido nos Camarées, é profes- sor de Historia e Ciéncias Politicas na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, bem como na Duke University, nos Estados Unidos: acne CN ccno Cie ao OMIM ee ele

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