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Entrevista de ACHILLE MBEMBE a Arlette Fargeau
Vocé poderia nos apresentar, por ocasiao do langamento de Critica da
razao negra, as grandes linhas do seu projeto intelectual?
Minha preocupagao é contribuir, a partir da Africa em que vivo e trabalho,
para uma critica politica, cultural e estética do nosso tempo, o tempo do
mundo. E um tempo marcado, entre outras coisas, por uma profunda crise
das relagdes entre a democracia, a meméria ¢ a ideia de um futuro que
possa ser compartilhado por toda a humanidade. Essa crise é agravada pela
confiuéncia entre capitalismo e animismo, por um lado, e a recodificagao
em curso de todos os campos de nossas existéncias, no seio e por meio
da linguagem da economia e da neurociéncia. Essa recodificagao levanta
ddvidas sobre a ideia que fazemos do elemento humano e das condigdes de
sua emancipagao desde pelo menos 0 século XVIII.4
5
Uma das teses centrais de seu novo ensaio é a de que um dos efeitos
do neoliberalismo é universalizar “a condigdo negra”. Como vocé define
“neoliberalismo”?
O pensamento contemporaneo se esqueceu de que, para seu funcionamento,
0 capitalismo, desde suas origens, sempre precisou de subsidios raciais. Ou
melhor, sua fungao sempre foi produzir nao apenas mercadorias, mas tam-
bém ragas e espécies. Defino como neoliberalismo a época em que o capital
pretende ditartodas as relagdes de filiagao. Busca se multiplicar numa série
infinita de dividas estruturalmente insolviveis. J nao ha distncia entre fato
e ficgo. Capitalismo e animismo se tornam uma coisa s0. Em vista disso,
os riscos sistémicos aos quais somente os escravos negros foram submeti-
dos na primeira fase do capitalismo representam agora, se nao a norma, ao
menos a parcela que cabe a todas as humanidades subalternas. HA, portanto,
uma tendéncia a universalizagdo da condigdo negra. Ela é acompanhada pelo
surgimento de praticas imperiais inéditas, uma rebalcanizacao do mundo e
a intensificagado das agées de zoneamento. Essas praticas constituem, no
fundo, um modo de produgdo de novas subespécies humanas fadadas ao
abandono e a indiferenca, quando nao a destruicao.
Seu ensaio se abre a uma declaracao retumbante que praticamente equi-
vale a um manifesto. Vocé afirma que a Europa ja nao representa o centro
de gravidade do mundo. A despeito disso, vocé nao deixa de recorrer a
seus arquivos. Por qué?
Somos obrigados a nos confrontar com esse arquivo. Ele contém uma parte
de nés mesmos e, justamente por isso, também é nosso. Em se tratando
de mundos euro-americanos, néo podemos nos dar ao luxo da indiferenca
nem consentir com a ignorancia. A ignorancia e a indiferenga sao privilégios
dos poderosos.
Por que esse desvio passando pelo Ocidente no momento mesmo em
que sua hegemonia, na perspectiva que vocé mesmo expés, esta
comprometida?Nao se trata de um desvio. Trata-se de ocupar essa tradigao, pois, de
todos os modos, ela nao nos é alheia e nds nado somos alheios a ela.
Desempenhamos um papel essencial no processo de sua constituigao.
Seria, portanto, uma enorme perda nos apartar daquilo que contribui-
mos para que existisse. Penso nos afro-americanos, por exemplo, ou nos
afro-europeus. Eles sao ocidentais de pleno direito. No que se refere aos
africanos, o desafio é habitar varios mundos e formas diversas de inteli-
gibilidade ao mesmo tempo, nao em um gesto de rejeicdo gratuita, mas
de vaivém, que autoriza a articulagaéo de um pensamento da travessia,
da circulagao. Esse tipo de pensamento acarreta imensos riscos. Mas
esses riscos seriam ainda mais sérios se tratassemos de nos isolar no
culto a diferenga.
O que vocé condena no pensamento europeu?
Alguns condenam seu solipsismo, sua obsess&o com a ficgao segundo a
qual o Outro seria o avesso de nds mesmos. Ou ainda sua incapacidade em
reconhecer que existem cronologias plurais do mundo que habitamos e que
a tarefa do pensamento é atravessar todos esses feixes. Nesse gesto que
implica a circulagao, a tradugao, o conflito e também os mal-entendidos,
existem quest6es que se dissolvem por si S6s e essa dissolugao autoriza
que surjam, com relativa clareza, demandas comuns: demandas por uma
possivel universalidade. E é essa possibilidade de circulagdo e de encontro
de distintas inteligibilidades que o pensamento-mundo exige.
Existe um pensamento europeu?
N&o existe “um” pensamento europeu. Ao contrario, existem relagdes de
forca no seio de uma tradigao que, alias, nao para de se transformar. E, no
esforgo em curso, especialmente no Sul, para produzir uma reflexdo que cor-
responda verdadeiramente 4 dimensao do mundo, nosso trabalho consiste
em tirar proveito dessas relagGes de forga e fazer presso sobre essas fric-
Ges internas, nao para aprofundar a distancia entre a Africa e a Europa ou
para a “provincianizar”, mas para ampliar as brechas que permitem resistiras forgas do racismo, que sao, no fundo, as forgas da violéncia, do enclau-
suramento e da exclusdo.
Em sua opiniao, onde se situa em relacao a isso o pensamento francés
em especifico?
Apés a descolonizagao, a Franga se retraiu sobre si mesma e perdeu grada-
tivamente sua capacidade de desenvolver um pensamento que correspon-
desse a dimensdo do mundo. Hoje, ela encontra dificuldades para escapar
a questao da identidade, para confrontar a questao da relagdo, dos elos
relacionais, do “em comum’”.
Devemos apresenta-lo como um teérice do pés-colonialismo?
O fato de ter escrito uma obra intitulada “A pés-col6nia” nao faz de mim um
tedrico do pés-colonialismo nem um adepto dessa corrente de pensamento.
Somente alguém que nao leu nada do que escrevi poderia me apresentar
como um tedrico do pés-colonialismo.
Na Franga, porém, vocé é visto como parte dessa corrente. E 0 que ocorre
também na Africa.
Quem faz isso raramente sabe do que est falando. Muitos opositores dos
estudos pés-coloniais na Africa mobilizam argumentos ideoldgicos em lugar
de uma andlise critica rigorosa e disciplinada das obras a que pretendem
se opor. Na verdade, inexiste critica melhor da corrente pés-colonial do que
a propria corrente pds-colonial. Na Franga, sdo indmeros os que preferiam
que féssemos mudos, incapazes de falar, sobretudo entre nds mesmos. Eles
poderiam, assim, construir nosso discurso por nds e continuar a nos clas-
sificar. 0 pensamento pés-colonial veio embargar esse poder exclusivo de
classificagao. Por isso é que incomoda.
Até recentemente, vocé havia trabalhado com sequéncias histéricas
relativamente curtas. Com a Critica da Razao Negra, vocé voltou a ser
um pouco historiador. Como explica essa inflexao?
A prdpria natureza do tema exigia um retorno a longa duracdo. O Negro é umainvengdo daquilo que no livro chamo de “primeiro capitalismo”.! 0 periodo
do primeiro capitalismo - ao menos da forma como 0 concebo - é dominado
pelo Atlantico. A era moderna propriamente dita comega com a expansao
europeia, a dispersdo dos povos e a formagao de grandes diasporas, um
movimento acelerado de mercadorias, religides e culturas. O trabalho do
escravo negro desempenha um papel de destaque nesse proceso. Era pre-
ciso, pois, interpelar essa longa duracao, sem a qual nada se compreende
da realidade contemporanea.
0 “negro” nfo passa de uma invengao do capitalismo atlantico? Que
lugar vocé reserva aos mundos indico e drabe-transaariano em sua
fabricagao?
1. N.T.: Na lingua francesa, o termo négre se reveste, especialmente em seu uso como substantivo, de
um cardter pejorative de extragao colonialista @ racista para se referir aos negros, a despeito dos es-
forgos de intelectuais da négritude de recuperaro vocabulo e promover uma dimensao positiva para seu
uso, O temo corrente para se referir aos negros sem essa carga depreciativa é noir. Quando utilizado
pelo autor num sentido que abarea essa etimologia infame, o termo é grafado com inicial maitiscula.
Aescravidao atlantica foi 0 Gnico complexo servil multi-hemisférico que
chegou a fazer das pessoas de origem africana mercadorias. E nesse sen-
tido que se trata da tinica a ter inventado o Negro, isto 6, uma espécie de
homem-coisa, homem-metal, homem-moeda, homem plastico. Foi nas
Américas e no Caribe que os seres humanos foram transformados, pela
primeira vez na hist6ria universal, em criptas vivas do capital. 0 Negro é 0
protétipo desse processo.
Vocé confere uma posigao bastante central a historia diaspérica, em
especial afro-americana. insiste particularmente na ambiguidade das
relagdes entre os afro-americanos e a Africa.
Ahistoria das pessoas de origem africana nos Estados Unidos, em par-
ticular, é uma histéria que sempre me fascinou. O afro-americano é,em
grande medida, o ressurgente da modernidade. A historia dos negros nos
Estados Unidos deveria ser ensinada com destaque em todas as escolas.
da Africa.Vocé dedica longas passagens ao concelto de “raga” e de “racismo”. Na
sua opiniao, onde se revela o racismo?
Oracismo é 0 sintoma de uma neurose fobica, obsessiva e, por vezes, histé-
tica. O racista 6 a pessoa que se afirma pelo ddio, construindo o Outro néo
como seu semelhante, mas como um objeto ameagador do qual seria neces-
srio se proteger, se desfazer ou ao qual caberia simplesmente destruir, em
virtude de nao o conseguir dominar inteiramente. Em grande medida, 0
racista 6 uma pessoa enferma, carente de si mesma e falha.
O capitulo mais poético do livro, mas também o mais perturbador, é
intitulado “Réquiem para o escravo”, Esse capitulo representa o subsolo do
livro. Nele, o esforgo é explicar como, na Africa e nas coisas negras, revol-
vem-se intensamente duas forgas ofuscantes, ora argila intocada pelo escul-
tor, ora animal fantastico, e sempre figura hieratica, metamérfica, capaz de
desencadear explosdes em cadeia. O esforgo é também para mostrar como
0 escravo negro foi, no fundo, um sujeito plastico, isto é, um sujeito subme-
tido a um processo de transformagao por meio da destruigéo.
Demonstro especialmente que nao foi se desgarrando da forma-escravo
e assumindo a condigdo de ressurgente que 0 negro foi capaz de conferir a
essa transformacgao por meio da destruigdo um significado orientado para
o futuro. E, para tratar disso tudo, sou obrigado a recorrer a uma escrita
figurativa, que oscila entre a vertigem, a dissolugdo e a dispersao. E uma
escrita feita de circuitos cruzados e cujas arestas e linhas se encontram no
ponto de fuga. O termo “Réquiem” é, na verdade, dissonante. 0 Réquiem 6
cantado para os mortos. Ou, no caso, trata-se nao de cantar aos mortos,
mas de celebrar os ressurgentes, isto 6, os sujeitos de uma transfiguracao.
O titulo desse capitulo participa, portanto, de um desalinho.
A que se dedicam suas pesquisas atuais e qual sera o tema de seu pré-
ximo livro?
Minhas pesquisas estdo voltadas aquilo que chamei de “afropolitanismo”.Entrevista de ACHILLE MBEMBE a Catherine Portevin
Asua Critica da Razao Negra faz referéncia explicita a Critica da Razao
Pura de Kant. Por qué?
Se me aproximo de Kant, é em sua postura critica diante da razdo. De minha
parte, queria explorar as condigdes nas quais essa racionalidade inventou
um sujeito que chamo de “sujeito racial” ou, dito de outra forma, um sujeito
de quem nao se sabe qual é a parte humana e qual é a correspondente ao
animal, 4 coisa ou 4 mercadoria. Em seguida, procurei saber como esse
sujeito, de quem nos é dito que nao se trata de um sujeito, pode organizar
seu “retorno a humanidade”, segundo a bela expressdo de Frantz Fanon.
Mas se faco referéncia a Kant, é sobretudo ao fundador do Iluminismo, da
racionalidade ocidental moderna e desse universalismo em nome do qual
foram concebidas as categorias inferiores da humanidade. Sabemos, ora,
que essa ideia causou indmeros estragos fisicos e psiquicos no mundo ao
longo dos séculos. O préprio Kant, 0 grande filésofo da razdo, perde a razio
ao falar da Africa. Quero, portanto, com esse titulo, dar a entender que a
hist6ria do lluminismo permanece incompleta se nao se escreve ao mesmo
tempo a historia do seu lado noturno, obscuro e obsceno.
Vocé recupera a palavra “Negro” em termos préprios. Nao para enaltecer,
como Senghor, a beleza da negritude, mas para construir uma filosofia
do sujeito “para além da raga”. Como fazer isso utilizando a prépria cate-
goria que a vinculou a raga?
Nao basta se desvencilhar do conceito de raga, ou rejeita-lo, para que ele
deixe de ser efetivo ou para que o racismo desaparega. E preciso em vez
disso tentar fazer que ele exploda de dentro para fora. Eu queria compreen-
der em que, por que e como “o Negro” se tornou, tanto para o pensamento
ocidental quanto para a critica moderna de origem africana e diaspérica,
uma forma de dizer o mundo, de instituir uma certa ordem. Esse termo
tpossui uma longa historia € remonta ao surgimento do capitalismo no século
XV, cuja pulsao primitiva consiste em buscar eliminar toda e qualquer distin-
cdo entre os seres humanos e as coisas. A tragédia da Europa que inventou
esse termo foi a de se comprazer com a autocontemplagéo no momento
mesmo em que se langava ao encontro de “novos mundos”. Confrontada a
esses mundos distantes, a Europa nao se colocou nada além de uma Gnica
questo: esse Outro “é uma pessoa diferente ou algo diferente de uma pes-
soa?” E por isso que digo que grande parte da filosofia ocidental pensa o
mundo em termos da relagao do mesmo com o mesmo, do recolhimento a
simesmo e jamais, ou muito raramente, em termos da coabitagdo de todos
no mesmo mundo, Ela pensa em termos de compartimentos, diferencia-
Ges, classificagdes e, no fim das contas, segregacéo. Essas designagoes
de “ragas”, de “espécies” e de “Negros” sao toda a parte repulsiva, prima-
tia, dissimulada, que acompanha em paralelo 0 discurso moderno sobre
0 homem, o humano, a humanidade, o humanismo, os direitos humanos.
Nessa economia, um lugar especifico é reservado a Africa. Ela representa
——— -—_—_
fantasmaticamente a terra natal do homem vinculado a sua dimenséo ani-
mal. O Negro liberta as pulsdes irracionais que nao deixaram de irrigar 0 lado
delirante da modernidade. Como ressaltou Gilles Deleuze, “ha sempre um
negro, um judeu, um chinés, um grao-mongol, um ariano no delirio”.
Livrar-se do fardo da raga é um projeto que, para vocé, envolve tanto os
oprimidos quanto os opressores?
Seja como for, esse é 0 objeto da critica de origem africana desde o fim do
século XVIII. Especialmente para Frantz Fanon, esse projeto se assemelha a
uma rejei¢ao da castracao. Fanon aconselha ao colonizado dar as costas a
Europa, isto é, comecar por si mesmo, manter-se ereto do lado de fora das
categorias que o mantiveram prostrado. A dificuldade nao é somente ter sido
designado a uma raga, mas ter interiorizado os termos dessa designagao;
ter chegado a desejara castracao. O que Fanon propde é um verdadeiro
caminho de cura, que comega pela e na linguagem. Essa cura requer um
trabalho colossal em si mesmo e, eventualmente, a pratica da violéncia emVe
reqaQeet ds
oposigao ao sistema colonial. Sem a liberagao do desejo e seu redireciona-
mento a novas afeigdes, nao é possivel, ao menos na ldgica fanoniana, se
livrar do fardo da raga. Porém, noutras situagdes - penso especialmente nos
Estados Unidos -, libertar-se do racismo passa por uma miriade de prati-
cas de refiguragao e de insubmissgo. Foi o esforco que empreenderam os
antigos escravos imediatamente apés a Proclamagao da Emancipagao ou
apés a Guerra Civil, ou entao quando das grandes mobilizagées dos anos 60
pelos direitos civis, ou ainda em meio a experiéncia dos Panteras Negras. A
meta, a cada vez, é escapar de uma representagao estalicade simesmo e
dos incessantes vaivéns entre o ddio e ofasciniooressentimento. eo desejo
de vinganga. Todas essas substituigdes, essas tentativas de assumir uma
nova aparéncia, um novo nome e uma nova vida tém certamente uma dimen-
sdo politica, mas também espiritual, onirica e artistica. Trata-se de adquirir
Os meios para sonhar diferente, para passar a um outro tipo de produgéo
desejante. Nisso consiste, alids, uma das fungdes das indmeras igrejas afro-
-americanas ou de géneros musicais como 0 jazz e o blues. Essa refiguracdo
de si somente tem sentido se desemboca num
como um todo. No caso sul-africano, essa recomposigao da cidade sé é
possivel se o opressor e 0 oprimido empreenderem juntos um processo de
reabilitacao. Pois 0 racismo destrdi tanto quem 0 pratica quanto
sofre, Sendo 0 sujeito racista um sujeito falho, o retorno a uma relagao de
reciprocidade é uma das condigées para a saida do “estado racial”. Essa é,
para mim, a contribuigdo decisiva da experiéncia sul-africana. Da Africa do
Sul nos vem a ideia segundo a qual somos condenados a viver expostos uns
aos outros, os algozes e suas vitimas, nao raro no mesmo espago. Sera pre-
ciso, consequentemente, pensar a democracia para além da sobreposi¢ao
das singularidades, da mesma forma que para além da ideologia simplista
da integracao. Além disso, a democracia do futuro sera construida sobre
a base de uma clara distingao entre “o universal” e “o em comum”. O uni-
versal implica a inclusdo em uma entidade qualquer ja estabelecida. 0 em
comum pressup6e uma relagao de co-pertenca e de partilha, de mutuali-
dade - a ideia de um mundo que é 0 Gnico que temos e que, para que seja
Re coor gre) A K20
24
duradouro, deve ser compartilhado por todos aqueles que a ele tém direito.
Para que essa partilha se torne possivel, a demanda porjustiga e reparagao
éincontornavel.
Como se deu sua radicagao na Africa do Sul e o que o prende ld atualmente?
Depois de meus estudos em Paris, lecionei nos Estados Unidos entre 1988 €
1996. Tendo deixado o continente africano muito cedo, eu queria voltar para
acompanhar as transformagdes em curso a época e, se possivel, participar
delas. Foi assim que me engajei no Conselho para o Desenvolvimento da
Pesquisa em Ciéncias Sociais na Africa (CODESRIA), em Dacar, antes de
ingressar em 2001 no Wits Institute for Social and Economic Research da
Universidade do Witwatersrand, em Joanesburgo. Desde entdo, vivo entre
Joanesburgo, os Estados Unidos (onde leciono no outono) e Paris, que visito
sempre que posso. A cidade de Joanesburgo é u ira 6rio pri-
vilegiado de uma urbanidade “afropolitana”, isto é, prentincio. do que seré.o
século XXI africano - uma urbanidade altamente materialista, multicolorida,
———a
aaa . es nomen
crioula, transnacional e plastica. A Africa do Sul é um pafs complexo, fruto de
uma hist6ria ao mesmo tempo sombria e espléndida. Viver ld é ser confron-
tado cotidianamente com esse passado funesto e seus incontaveis vestigios
no presente, com a maneira como a Besta (0 racismo, as desigualdades e
a exploracdo) continua a se metamorfosear, produzindo incessantemente
novas metastases no corpo social. Também é ser solidério com as lutas que
ali so travadas, algumas delas sob formas inteiramente novas. Com fre-
quéncia, sente-se a claustrofobia, a impressao de viver num pas de milhares
de potencialidades, mas acometido pela atrofia da imaginagao. 0 mais ater-
rorizante 6 a sensagdo de que esse pais possivelmente nao estard a altura
da ideia que Ihe deu origem.
Na esteira de Foucault e de Fanon, a psicanilise e a lit ao
multo presentes em seu trabalho. Por qué?
ener eeannae . 5
Tendo crescido nos Camarées, num ambiente em que - tinha conscién-
cia disso - os fendmenos psiquicos relacionados ao mundo da noite e doa)
23
invisivel fazem parte da vida cotidiana, era natural que eu me interessasse
pela psiquiatria e pela psicandlise, mas também pelas artes, literatura e
misica. Foi para mim uma forma de prestar atengdo ao modo como as pes-
soas experimentam as superficies e as profundezas, 0 mundo das luzes e
das sombras, ciente de que os sentidos derradeiros precisam ser buscados
no lado tenebroso da vida, nos lugares em que a linguagem se faz proficua:
a miisica, a danga, as mascaras, a ornamentagao, a decoracao, a profusdo
de signos e objetos. Também por isso que Michel Foucault e Frantz Fanon,
ambos to sensiveis ao psiquismo, as questées da dominagdo vinculadas
&s quest6es do autointeresse, abriram-me campos que somente a razaio
pura” nao seria capaz de abarcar. Creio que o legado grego da filosofia, que
ademais tanto marcou as ciéncias sociais, centra-se demais nas questdes
ontologicas do ser e da identidade. Nas tradigdes africanas ancestrais e
na experiéncia contemporanea, 0 ponto de partida da interrogagao sobre
a existéncia nao é a questo do ser, mas a da relagdo e da composigdo;
0s nédulos e os potenciais situacionais; a jun¢ao das multiplicidades e da
=e SE
circulagdo. Essa plasticidade nao se tornou objeto de uma problematizacao
consistente no discurso filoséfico. Por outro lado, a literatura (0s romancis-
tas Amos Tutuola, Sony Labou Tansi, Efoui Kossi, Mia Couto...), a mlisica e
as artes em geral sao repletas de situagdes paradoxais de transformacao
sem ruptura, que pressupdem uma eximia arte de acomodacao dos opostos.
Por mais que se afirme laico, de que forma a teologia o inspira?
0 cristianismo desempenhou um papel inegavel em minha formagao,
incluindo a formacao politica. Eu me afastei de todas as praticas rituais ao
mesmo tempo que preservei o interesse pela vida intelectual do cristianismo,
de resto tao fecunda. Por outro lado, mantive-me atento aos trés motivos
teoldgicos da criagao, da crucificagao e da ressurreigao. Nao se trata, para
mim, de profissées de f6, mas de figuras ideais, de imagens fundamentais,
que me permitem encontrar um sentido para a historia atormentada da
Africa e dos povos de origem africana pelo mundo. Sao também categorias
politicas para fazer frente aos encantos do pessimismo, a toda tentacao de2 ressentimento ou de niilismo, de vinganga e melancolia. Elas me ajudarama
compreender que a critica do presente s6 faz sentido se abrir caminho para
uma politica do futuro. Esse alicercamento da esperanca num futuro aberto
a amplidao, eu o encontrei com énfases diversas em todos os intelectuais
de origem africana que me inspiraram, fossem tedlogos, filésofos e socidlo-
gos cristéos, como Jean-Marc Ela e Fabien Eboussi Boulaga, ou pensadores
laicos, como Paul Gilroy, Edouard Glissant, James Baldwin e, obviamente,
Césaire e Fanon. Eu o constatei também numa certa tradigao de pensa-
mento judaico, em diversos autores junto aos quais encontrei serenidade
e€ reconforto. No Ocidente, a historia dos judeus e a dos negros nao séo a
mesma histéria. Mas 0 que as aproxima é 0 fato de serem ao mesmo tempo
0 direito e 0 avesso da modernidade. A presenga dos negros e dos judeus
no Ocidente é muito antiga e, sem eles, a modernidade nao teria vestido a
roupagem que acabou por vestir. E, ao mesmo tempo, negros e judeus sao
ressurgentes, pois ambos os grupos foram expostos, em graus distintos, a
possibilidade concreta de desaparicao. Para os judeus, foi evidentemente
0 Holocausto. Para os negros, foram os quatrocentos anos de escravidao.
Ressurgidos de to longe, judeus e negros puseram a modernidade ques-
tdes muito radicais, ou mesmo extremas, que um Kant (mas nao sé ele)
jamais foi capaz de escutar, quanto menos de colocar. Além disso, 0 que
me impressiona - e 6 um ponto ainda intocado para a filosofia, ou ideolo-
gizado com demasiada frequéncia - s&o as convergéncias ou os ecos entre
os pensadores negros (Blyden, Dubois, Césaire, Senghor, Fanon, Glissant)
@ 0 pensamento judaico de tradigao aleméa (especialmente Rosenzweig,
Benjamin, Buber e Bloch).
Vocé nao estaria ultrapassando a questao “pés-colonial” para delinear
um sujeito pés-pés-colonial?
E preciso encontrar um ponto de equilibrio. Questionar-se a respeito da pés-
-colénia, que é para mim tanto um periodo especifico quanto uma forma-
cdo especifica do poder, nao é exatamente a mesma coisa que aquilo que
25 nos contextos anglo-sax6nicos é chamado de estudos pés-coloniais. Foi26
ar
nos Estados Unidos, no final dos anos 1980, que os descobri. Um contato
distante, para dizer a verdade. Na época, como de resto ainda hoje, eu os
considerava muito pobres em termos filosdficos, As teorias pés-coloniais
tém por caracteristica serem como um rio. de milltiplos afuentes. Para mim,
elas representam menos uma teoria que um conjunto de questdes criticas
€, ao contrario de alguns de meus amigos, entre eles Jean-Francois Bayart,
ndo nutro contra eles nenhuma hostilidade. Mas a corrente pds-colonial de
fato é parcialmente datada, nao pelas razdes apontadas por seus detratores
franceses, mas simplesmente porque sua argumentacdo se angi scien-
temente ou nao, numa Europa vista como o centro dg mundo. Ora, j nao é
mais esse 0 caso. Jé nao é preciso seguir a sugestao de Dipesh Chakrabarty
para “provincianizé-la”. Ela ha muito ja se “autoprovincianizou”. Esse é 0
acontecimento decisivo de nossa época e é preciso celebra-lo, porque pode-
mos enfim nos colocar outros tipos de questées ou entao revisitar as velhas
quest6es a partir de novos angulos. Assim, por exemplo, é preciso perguntar
se 0 declinio da Europa seré acompanhado de uma extingdo do racismo que
ela por tanto tempo sustentou ou se “o Negro” é uma categoria que jd sobre-
vive &queles que a inventaram. Pois 0 tipo de “raga” produzido pelo capita-
lismo da era neoliberal tem, no fundo, algo a ver com aquilo que constituia a
condicao negra entre os séculos XV e XIX. Trata-se de uma nova “raca”, que
transcende as questées relacionadas a aparéncia, cor da pele ou origem. 0
Negro j nao é apenas 0 homem negro, africano ou de origem africana, mas
todos os que hoje formam uma humanidade excedente em relagdo a lagica
econémica neoliberal. A questao j4 nao se limita aos seres humanos serem
tratados como mercadorias, mas que se instile no sujeito humano 0 desejo
de se vender a si mesmo, ou seja, de se converter em objeto. Desse ponto
de vista, assistimos a um devit-negro do mundo. Eisso volta a levantartodas
as velhas questdes da emancipagao, da alienagdo, da autoalienacdo. E a
propria ideia de sujeito que é preciso repensar no momento em que o drama,
para milhées de pessoas, ja nao é serem exploradas, mas de nao mais
serem explordveis. Na Africa do Sul, por exemplo, cerca 40% da populacao
esté desempregada. Como dar conta dessa produgao espetacular nao de28
29
um contingente residual ou excedente da humanidade, mas sim supérfluo?
Em face dessas realidades, algumas categorias centrais sobre as quais se
apoiou a teoria critica para assentar seu projeto de alcangar a maioridade,
como dizia Kant, fazem greve,
Cidadao camaronés, formado na Franga, morando e lecionando nos
Estados Unidos e na Africa do Sul, historiador, mas também filésofo,
antropélogo, cientista politico... Vocé gosta de cruzar frontelras?
Durante toda a minha vida, tenho sido um passante. Nao um ndmade nem
um exilado, mas um passante, alguém que acampa nas fronteiras.
“Passante”, é como vocé também descreve ser african. Como define isso?
Da perspectiva da longa duragao, a histdria africana pode ser interpretada
a partir da tematica da passagem, do passante, do passador. As cultu-
ras da Africa se formaram na circulacdo e na mobilidade. E por isso que
as fronteiras e a sensagao de reclusdo que elas provocam sao vividas de
forma t4o traumatica, tanto no seio do continente quanto na relagao com
0 resto do mundo. Em sentido mais amplo, estou convencido de que o
passante representa 0 sujeito do amanha. Seria possivel imaginar uma
reconfiguragao do direito cosmopolita sobre a base da figura do pas-
sante. Esse novo direito garantiria a cada habitante da Terra 0 direito de
permanecer, sem necessidade de visto, ao menos temporariamente, em
qualquer lugar do mundo aonde a vida o levasse. Esse direito seria inato,
distribuido em proporgées iguais entre todos os habitantes da Terra. Os
direitos humanos, ao conceber 0 direito de asilo, por exemplo, fizeram-no
em decorréncia de um direito humano fundamental que é o direito de viver
onde se nasceu, 0 direito de viver “na propria terra”. No momento em que
tém lugar as grandes mobilidades humanas e a urbanizagao do mundo, o
direito de circulagao, igual para todos e em todos os lugares, deveria ser
onovo direito humano fundamental. Mas 0 perigo hoje é 0 oposto disso, 0
sonho de comunidades sem estrangeiros, esse desejo de apartheid que
assombra nosso mundo.Um sujeito cosmopolita, seria esse seu derradeiro aceno ha diregao de
Kant e de sua visao da hospitalidade?
Seria necessdrio ampliar seu projeto de “Paz perpétua” para um mundo que
mudou radicalmente e que nao é mais dominado pela Europa. Um mundo, 0
Unico que temos, ao qual todos temos direito ¢ que precisamos aprender a
compartilhar se quisermos que seja duradouro.
Tradugao de Sebastiao Nascimento
Achille Mbembe 6 considerado um dos mais agudds pensadores da negri-
le hoje. Na esteira de Frantz Fanon, vira do avesso os consensos sobre
descolonizacao e a identidade negra. Nascido nos Camarées, é profes-
sor de Historia e Ciéncias Politicas na Universidade de Witwatersrand, em
Joanesburgo, bem como na Duke University, nos Estados Unidos: acne
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