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Severino Elias Ngoenha

RESISTIR À
ABADOM
FICHA TÉCNICA
Índice
Agradecimentos...........................................................................................................................4
Dedicatória...................................................................................................................................5
PRÓLOGO...................................................................................................................................6
Apocalipse 9.........................................................................................................................6
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................10
1. A GLOBALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA................................................................................12
2. PORQUÊ A GUERRA?.........................................................................................................17
3. PENSAMENTO CRÍTICO....................................................................................................23
4. POR UMA EPISTEMOLOGIA ARQUITETA......................................................................47
5. O USO SOCIAL DA BIOLOGIA......................................................................................52
6. O USO POLITICO DAS RELIGIÕES...............................................................................59
7. O USO IDEOLOGICO DA FILOSOFIA...........................................................................67
8. O LUGAR DA GUERRA NAS SOCIEDADES................................................................79
9. ABADOM NO TRONO CELESTIAL................................................................................85
10. NÓS, COMO PODEMOS RESISTIR A ABADOM?..........................................................94
A. A dimensão global das guerras locais............................................................................95
B. O que faz com que os moçambicanos sejam tão permeáveis à guerra?........................100
C. Por uma participação mais activa dos cidadãos............................................................114
CONCLUSÃO.........................................................................................................................127
BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................129
Agradecimentos

Ao Alcido Moniz Godi Nhumaio,

Carlos Carvalho

José de Matos Neves

Esmé Joaquim

Luís Cipriano Manuel

4
Dedicatória

Aos meus filhos

Jonas

Wesselia

5
PRÓLOGO

APOCALIPSE 9
Ouvir
1
 E o quinto anjo tocou a sua trombeta, e vi uma estrela que do céu caiu na terra;
e foi-lhe dada a chave do poço do abismo.
2
 E abriu o poço do abismo, e subiu fumaça do poço, como a fumaça de uma
grande fornalha, e com a fumaça do poço escureceu-se o sol e o ar.
3
 E da fumaça vieram gafanhotos sobre a terra; e foi-lhes dado poder, como o
poder que têm os escorpiões da terra.
4
 E foi-lhes dito que não fizessem dano à erva da terra, nem a verdura alguma,
nem a árvore alguma, mas somente aos homens que não têm nas suas testas o selo de
Deus.
5
 E foi-lhes permitido, não que os matassem, mas que por cinco meses os
atormentassem; e o seu tormento era semelhante ao tormento do escorpião, quando fere
o homem.
6
 E naqueles dias os homens buscarão a morte, e não a acharão; e desejarão
morrer, e a morte fugirá deles.
7
 E o parecer dos gafanhotos era semelhante ao de cavalos aparelhados para a
guerra; e sobre as suas cabeças havia umas como coroas semelhantes ao ouro; e os seus
rostos eram como rostos de homens.
8
 E tinham cabelos como cabelos de mulheres, e os seus dentes eram como de
leões.
9
 E tinham couraças como couraças de ferro; e o ruído das suas asas era como o
ruído de carros, quando muitos cavalos correm ao combate.
10
 E tinham caudas semelhantes às dos escorpiões, e aguilhões nas suas caudas; e
o seu poder era para danificar os homens por cinco meses.
11
 E tinham sobre si rei, o anjo do abismo; em hebreu era o seu nome Abadom, e
em grego Apoliom.
12
 Passado é já um ai; eis que depois disso vêm ainda dois ais.
13
 E tocou o sexto anjo a sua trombeta, e ouvi uma voz que vinha das quatro
pontas do altar de ouro, que estava diante de Deus,

6
14
 A qual dizia ao sexto anjo, que tinha a trombeta: Solta os quatro anjos, que
estão presos junto ao grande rio Eufrates.
15
 E foram soltos os quatro anjos, que estavam preparados para a hora, e dia, e
mês, e ano, a fim de matarem a terça parte dos homens.
16
 E o número dos exércitos dos cavaleiros era de duzentos milhões; e ouvi o
número deles.
17
 E assim vi os cavalos nesta visão; e os que sobre eles cavalgavam tinham
couraças de fogo, e de jacinto, e de enxofre; e as cabeças dos cavalos eram como
cabeças de leões; e de suas bocas saía fogo e fumaça e enxofre.
18
 Por estes três foi morta a terça parte dos homens, isto é pelo fogo, pela
fumaça, e pelo enxofre, que saíam das suas bocas.
19
 Porque o poder dos cavalos está na sua boca e nas suas caudas. Porquanto as
suas caudas são semelhantes a serpentes, e têm cabeças, e com elas danificam.
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 E os outros homens, que não foram mortos por estas pragas, não se
arrependeram das obras de suas mãos, para não adorarem os demônios, e os ídolos de
ouro, e de prata, e de bronze, e de pedra, e de madeira, que nem podem ver, nem ouvir,
nem andar.
21
 E não se arrependeram dos seus homicídios, nem das suas feitiçarias, nem da
sua fornicação, nem dos seus furtos.

7
Imagine there's no heaven
It's easy if you try
No hell below us
Above us only sky
Imagine all the people
Living for today... Aha-ah...
Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion, too
Imagine all the people
Living life in peace... You...
You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will be as one
Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people
Sharing all the world... You...
You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will live as one

John Lennon

8
A coragem do filósofo é pensar por si mesmo, é não se deixar
possuir pelas modas e pelas correntes da época.

9
INTRODUÇÃO

A violência é a matriz das sociedades, o pecado


original da condição humana - Alexandre Sanguinetti

Os telejornais tornaram-se espaços da partilha dos horrores do nosso mundo.


Não há dia que passe sem que nos informem sobre uma nova onda de violência que
explode algures no planeta: ataques em Muxúngue - Moçambique, guerra no Congo, no
Sudão, ataques no Quénia, na Nigéria, violência doravante sistemática no médio oriente,
conflitos na Cachemira, no Afeganistão, ataques das FARCs na Colômbia e, depois do
11 de Setembro, morticínio numa discoteca em Paris, num comboio em Madrid, numa
Maratona em Boston...
Estas violências são acompanhadas por outras, a morte de refugiados em
Lampeduza, o frio que passam os sírios refugiados no inverno europeu, o nascimento de
novas fronteiras de arame farpado na Hungria; violência política que leva à destituição
de governos legítimos; administrações que não podem aplicar os programas para os
quais foram eleitos por imposições economicistas e antidemocráticos do FMI e da
comunidade europeia (Grécia, Espanha, Portugal); desemprego galopante, fim do estado
social. Tudo isto se vem juntar a uma violência ainda maior, a fome de que padecem
milhões de seres humanos pelo mundo fora.
Estas afrontas são independentes umas das outras ou terão um denominador
comum? Questão que pode parecer absurda. O que terão em comum as guerras de
Muxúngue e Santugira em Moçambique com os ataques de 11 de Setembro nos EUA ou
com uma discoteca em Paris ?
Não haverá nenhuma relação entre as mandiocas arrancadas aos camponeses a
preço de usura em Nampula para a produção de cerveja e a fome e o alcoolismo que
assolam as populações? Alguma relação entre a corrupção galopante e as cobranças nas
escolas, nos hospitais e nos sectores públicos? Alguma entre as séries televisivas e a
violência doméstica? Entre a posse de armas e os assaltos à mão armada, os sequestros e
os assassinatos com AK47s?
Não haverá relação entre as estratégias e os interesses dos ditos aliados, na Síria
e no Médio Oriente no incremento da onda terrorista? Entre os sistemas de exploração
do Ocidente e o renascer da Jihad; entre o comércio de armas e as guerras em África;
entre o bombardeamento das cidades e o nascimento do Estado Islâmico, entre a

10
produção de armas, minas, bombas no Norte e os aleijados de guerra no terceiro
mundo ? Entre os fabricantes de armas e o bombardeamento de populações inocentes;
entre as discrepâncias no sistema económico mundial e os refugiados?
Toute proportion gardée, estamos numa época em que, como diziam os estóicos,
o pudor, a justiça e a verdade voaram em direção ao olimpo, fugindo à guerra que
apareceu nos caminhos. Estas são linhas de Marco Aurélio, das mais pessimistas que a
história nos legou. Encontramos sentimentos semelhantes em Séneca e em Epicteto, o
que impele muitos historiadores a taxarem os estoicos de pessimistas. Tem, no entanto,
que se ver, nestes sábios austeros, testemunhas de uma época conturbada e sem
referências, como a nossa, contra a qual, a filosofia levanta uma barreira.

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1. A GLOBALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA

O livro de Ulrich Beck (2001), saído à luz já há alguns anos, contém asserções
fundamentais para a compreensão da vida hodierna. Na “Sociedade de Risco”, Beck
pintou uma geração, a nossa, que atingiu níveis de prosperidade inauditos e capazes de
satisfazer as necessidades do conjunto da população do planeta, criando ao mesmo
tempo riscos incalculáveis e pondo em perigo a vida do homem.
À primeira vista, as ameaças são essencialmente ecológicas : buraco de ozono,
aquecimento do planeta, progresso da desertificação, desaparecimento de espécies,
demografia galopante, nalgumas zonas (…). Todavia, torna-se cada vez mais evidente
que os alarmes da globalização são sobretudo humanos. Basta pensar no número de
emigrantes que, quotidianamente, expondo-se à morte, tentam chegar à Europa – a
maioria deles são de origem africana. Estes episódios, porém, imediatamente visíveis e
estigmatizáveis já não impressionam nem comovem a muitos indivíduos que, ao invés,
se comportam como mero espectadores.
O alastrar da catástrofe toca, todavia, também aqueles que, num eufemismo
discutível, são ditos expatriados. Na verdade, trata-se de pessoas que não têm trabalho
nos seus países de origem. Algumas delas sobem o avião no aeroporto da Portela em
Lisboa, como mecânicos e desembarcam em Maputo já engenheiros; outras em
Malpensa, Milão, como enfermeiros e chegam médicos à Beira; outras ainda, de Charles
de Gaulle, em Paris, desempregados, entram em Nampula cooperantes, para não falar
dos muitos que da China, prisioneiros, descem empresários em Quelimane. Ao inverso,
imigrantes saem de Dakar, Lagos, Kinshasa como engenheiros e, apesar de executarem
em Paris trabalho de médicos e arquitectos, têm de contentar-se com o salário de
operário (…).
Como diz Nadine Gordimer, a coisa mais perversa do colonialismo é
transformar esfarrapados em lordes, e, vice-versa, manter gente educada do sul em
situação de subalternidade.
Para Beck, o processo global que sofremos hoje, compreende a massificação dos
riscos e não a das riquezas. Eu quero defender, neste trabalho, em primeiro lugar, que o
maior risco global é a violência nas suas múltiplas facetas; vai da fome que padecem
milhares de seres humanos, da opressão económica ao desemprego, às desigualdades
aos assaltos, lutas de gangs, máfias nacionais e transnacionais, terrorismo de grupos

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fanáticos e de estados, mesmo democráticos. Em segundo lugar, que a maior das
violências é a guerra, aquele monstro que se alimenta das vidas e das fazendas e tanto
mais come, tanto menos se farta (P. António Vieira)

Depois do 11 de Setembro o jornal francês “Le Monde” escreveu: “os EUA


acabam de entrar na globalização”, pretendendo com isso dizer que a violência
exportada para outros países e continentes acabara por atingi-los a eles também;
deixavam assim de ser um país de (cocanha) excepção para alinharem na normalidade.
Nesta afirmação, está implícita a identificação que o jornal faz da globalização com a
violência. Aliás, a reação vingativa dos Estados Unidos, que atingiu uma forma de
terrorismo de Estado, não fez senão confirmar o facto. Não pretendo apoiar qualquer
antiamericanismo primário. Aliás, Robert Taft, alcunhado de “senhor Republicano”, na
conferência que fez no Canyon College subordinada ao tema “Não ao julgamento de
crimes de guerra com leis de retaliação”, advertia: “vingança raramente é sinónima de
justiça”.
A superioridade da força militar tinha alimentado o mito de uma
invulnerabilidade absoluta. Parecia lógico que a violência se praticasse nos países do
Sul e sobretudo em África, continente que, desde os eventos do Congo de Lumumba, se
tornara um dos principais teatros de guerra, de experimentação de novos armamentos e
técnicas até de exércitos de crianças.

Só que o feitiço acabou voltando-se contra o feiticeiro e as armas contra os


fabricantes. Com efeito, era ingénuo pensar que todo o material que exportam explodiria
só no exterior do mundo ocidental e este ficaria reserva ou ilha protegida; que se
globalizaria tudo menos a violência, sobretudo quando sabemos que a globalização é
essencialmente económica e conhecemos o lugar do comércio das armas neste processo.
Esquecia-se que toda a acção entra no jogo das trocas e escapa rapidamente à
intenção e à vontade dos seus autores, mesmo a eficiência pode ser forte no início, e
diminuir com o tempo sem que ninguém a consiga controlar.
Uma astúcia da razão quis que as armas, produto de exportação, passassem a ser
de consumo interno. Hoje é quase mais seguro voar na LAM que na Delta, atravessar o
aeroporto de Chimoio que o de Heathrow, viajar num Tchopela que num TGV.

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A violência manifesta-se sob muitas formas, algumas latentes, escondidas, mas
nem por isso menos devastantes. É um cancro que se insinua no corpo social e nos
atinge lá onde menos esperamos. Foi este o drama do homem Guebuza que, apesar da
sua riqueza e potestade, não conseguiu proteger-se a si e aos seus - da ira que se tornou
estrutural na nossa sociedade - nem sequer dos juízos negativos dos compatriotas até
mesmo nos momentos do seu maior drama familiar.
As culturas humanas, diante da morte, têm, de uma maneira geral, uma atitude
de simpatia, de solidariedade, de compaixão: muitas barreiras caem, muitas
animosidades se atenuam. O óbito recente da Valentina Guebuza não produziu nenhuma
solidariedade nem mesmo quando todos reconheciam a dor estampada na cara do pai e
nos soluços da mãe. O que acontecera? A raiva, a revolta, a frustração e até o ódio que
se tinha ao antigo presidente fez com que, mesmo no cemitério, diante da morte, não
nascesse um mínimo de simpatia, de compaixão.
As pessoas viam nos factos uma espécie de castigo divino? As redes sociais,
veículos desta animosidade, com a distância que criam entre o locutor e o receptor,
facilitam a agressividade ou a indiferença, que não se manifestaria noutras
circunstâncias.
Um estudo recente do Instituto de Investigação Científica de Moçambique revela
que os telemóveis e redes sociais são utilizados para instigar a prática da violência. Na
verdade, certos médias, como o jornal “Factos” ou o programa “Balanço Geral” da
Miramar regozijam-se por atormentar o público com os episódios mais cruéis e
horrendos da violência quotidiana.
Theodor Adorno e Max Horkheimer, da Escola de Frankfurt, tinham
denunciado, nos meios de comunicação, o perigo da alienação. O Presidente Obama,
esquecendo que foi o primeiro cyber-candidato e cyber-Presidente, diante do que ele
considerou de mentiras que contribuíram para a vitória de Trump em detrimento da
Hillary Clinton, falou da necessidade do uso responsável das redes sociais. Porém, os
meios de comunicação nunca se preocuparam, in primis, com a responsabilidade; eles
foram sempre um veículo de interesses, de propaganda, de manipulação até mesmo para
caucionar ou para justificar a violência.
A distância que a técnica cria entre os interlocutores faz desaparecer a dimensão
do sentimento humano. Diante das lágrimas de uma mãe ou do sofrimento de um pai, há
emoções humanas de empatia de compaixão que se impõem naturalmente. Mas a

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distância, o facto de eu não ver o olhar e a dor do outro, pode engendrar mais
objectividade mas também maior indiferença.
Nas guerras tradicionais, quando um soldado tinha que matar com uma faca ou
uma catana um outro, manchar as suas mãos com o sangue, ouvir os gritos da vítima,
ver o sofrimento, o acto não lhe podia ser completamente indiferente, afectava-o na sua
humanidade. Quando a guerra actual se limita a bombardear ou enviar drones, a acção é
mais fácil e deixa indiferentes os ouvintes da rádio ou videntes da televisão.
Um militar nazi dizia que o facto estético mais notável ao bombardear uma
povoação, era sobrevoar depois o lugar em chamas. Foi também muito mediatizado o
piloto americano que sobrevoando Bagdad, que ardia durante uma das guerras de golfo,
comparou aquele  sublime espetáculo  a uma árvore de natal. Esta ideia da estética da
guerra é frequente. Francis Ford Coppola (realizador do Apocalypse Now) falava da
sedução da guerra: deve haver uma beleza e uma sedução na guerra, caso contrário as
pessoas não a quereriam fazer. Aliás, a guerra serve de pano de fundo para muita
literatura e muito cinema. E depois, a semântica do bellum, em latim, que se traduz
guerra em português, não é de muita ajuda.
Contudo, a tragédia da Valentina Guebuza encerra em si diferentes facetas da
violência que vivemos no quotidiano: a violência doméstica que se tornou banal nas
famílias; a posse e circulação de armas por pessoas não autorizadas; os desequilíbrios
sociais; o uso da pancadaria, como método privilejihado para a solução de diferendos.
A razão dos ressentimentos contra Valentina era a associação que se fazia entre
o seu sucesso de empresária e a posição do pai. Se a desproporção de meios é por si
mesma um facto violento, ela é-o ainda mais, e provoca ressentimentos, se percebida
como ilegal e injusta, porque baseada na diferença de oportunidades, no uso e abuso do
status, de informações não acessíveis a todos para ganhar concursos por exemplo, e
ainda pior, se com desvio de bens públicos.
O cume deste ressentimento manifestou-se quando o Presidente Guebuza foi
vituperado no cemitério por adolescentes desfavorecidos. Aquela cena não simbolizou
só a manifestação mais agressiva contra o antigo presidente, foi também a descida da
função presidencial, mesmo se a posteriori, do seu pedestal.
Nós tivemos Machel, incarnação da função por excesso, o que diminuiu muito
com a presidência Chissano. Para isso, contribuíram não só as diferenças de carácter e
de carisma, mas também o redimensionamento da função presidencial por acção da
guerra. Guebuza, o do primeiro mandato, tentou re-machelizar a função presidencial,

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mas só nos aspectos excessivos de Samora, sem ter nem o seu carisma nem a sua
concepção do posto e talvez nem sequer os seus valores.
A descida ao inferno, porém, que teve o lugar mais alto no simbolismo do
cemitério, dessacralizou e, por consequência humanizou, a função presidencial, o que é
sempre um bem para a democracia. De facto, nunca mais voltaremos a ter um presidente
sacrossanto. Para atingir esse bem democrático, tivemos que passar pela violência dos
excessos presidenciais, pelas denúncias virulentas nos médias – como a carta do Castelo
Branco – até aos vitupérios dos vendedores de água e flores no cemitério.
Já que esses miúdos também vendem água para limpar as tumbas e regar as
flores, pergunta-se como é, apesar da violência do processo, enterrar os excessos da
função salvaguardando,  limpando e regando a função presidencial? Como sair do
espectro do uso da força conservando a maior consciência política, democrática e a
vigilância crítica que ela engendrou ? Quem diz presidente da República diz a primeira
figura do Estado. Então fica outra questão: como é que apesar das contradições recentes
do Estado vamos continuar a tê-lo como garante da justiça e da paz? Qual é a condição
para conjurar a violência?
Este foi o problema que Kant se pôs diante dos eventos da revolução francesa:
como sair da violência revolucionária sem abdicar da República que ela trouxe?

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2. PORQUÊ A GUERRA?

Quando me propus tratar da guerra (da violência) muitos interlocutores


pensaram, que eu limitar-me-ia a casos de conflitos sucessivos que assolam o nosso
país. Talvez elas até tenham sido, inconscientemente, o ponto de partida. Mas uma
conjugação de factores, como as guerras que têm assolado o mundo, desde os ataques
dos jihadistas, nos países africanos, ao sequestro de crianças na Nigéria pelo Boko
Haram, passando pelos ataques terroristas a civis nas discotecas, aos bombardeamentos
dos chamados aliados e da Rússia na Síria, determinou que eu me interessasse poe este
problema sociopolítico que se tornou um dos mais importantes de hoje.
A maior parte do continente africano nada nas águas turvas. No Congo, as
guerras eternizam-se; na Nigéria, multiplicam-se os ataques; o Sudão, contrariando a
única lei da OUA que funcionou, dividiu o país em Norte e Sul. A guerra é o verdadeiro
fenómeno global, num duplo sentido: ela está em todos os lugares e, quando aparece
localmente, é ainda universal.
A primeira das nossas foi a guerra colonial. Mas ela não tinha como
protagonistas unicamente a FRELIMO e o exército português. A FRELIMO estava
associada às outras colónias, ao bloco socialista e à Tanzânia; por sua vez, o exército
colonial à NATO, à RSA, à Rodésia do Sul. Também não se pode falar da guerra dos
dezasseis anos sem imediatamente pensar-se na Rodésia de Smith e na África do Sul do
Apartheid de um lado, e na guerra fria, do outro.
Por isso, feliz ou infelizmente, a guerra não é apanágio de Moçambique e não
pode ser dissociada de conflitos e interesses que ultrapassam de longe a geopolítica
local.
Um estudo fenomenológico pode demonstrar, quer se parta de um ponto de vista
da cronologia quer do da geografia humana, que a guerra constitui a diferença específica
da globalização da violência. As formas e os protagonistas mudaram – depois de
impérios, reinos, estados ou tribos, hoje são também feitas por gangs e grupos religiosos
fanáticos. Mudaram os pretextos – de razões imperiais, religiosas, coloniais, nacionais,
ideológicas, passou-se a justificações morais, o bem contra o mal. Mudaram os meios:
depois das guerras convencionais, hoje com a robotização e o cyber, fala-se de cyber-
sabotagens, de cyber-espionagens, de cyber-ataques.

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O exemplo do Cyber mostra que as guerras já não se fazem simplesmente, e por
exércitos que se põem frente a frente. O objecto já não é prioritariamente a conquista de
novos territórios, mas o acesso a espaços não-terrestres e em princípio pertencentes a
todos: o mar alto (as águas internacionais), o ar (espaço aéreo internacional), o espaço
extra-atmosférico e os ciberespaços. Tornaram-se necessários para a projeção das forças
militares: já não há expedições sem satélites de comunicação. Estes condicionam
também a viabilidade e a prosperidade económica já que o essencial das trocas
mercantes se faz por seu intermédio. Isto parece confirmar a tese de Clausewitz: a
guerra é um camaleão cujas cores variam em função das circunstâncias históricas.
Mudam os meios, os protagonistas, os pretextos, mas o que permanece constante é a
guerra “mesmo quando ela já não ousa dizer o seu nome” (Pierre Hassner). Aliás, o
facto de o já citado jornal francês situar a entrada dos EUA na globalização depois de 11
Setembro mostra que esta é a forma preponderante da violência global.
A guerra é a forma extrema da violência, não só porque atenta diretamente
contra a vida humana, mas também pela sua capacidade de provocar a destruição das
infra-estruturas, o aumento da pobreza, da fome e da subida da corrupção. Ela é extrema
porque banalizando o mal e esvaziando progressivamente o sentido e o valor da vida
através do incremento da força bruta nas suas diversas formas: assassinatos, desarmonia
doméstica, justiça sumária – até com pneus a arder –, esquadrões da morte, indiferença
face à dor e ao sofrimento do outro, e como se isso não bastasse, ela suscita sentimentos
agudos de vingança que, materializados, aumentam o ciclo infernal. Em breve, o tinir
das armas aumenta a fúria no próprio homem e banaliza o mal.
Para Hannah Arendt, questionar-se sobre o mal significa, antes de mais,
responder à questão sobre o que nos torna indiferentes face a ele, um pouco por todos os
lugares do mundo. Esta questão é intrigante para um mundo que se alimenta da ilusão
de se ter desembaraçado do mal histórico por excelência, a queda do muro de Berlim e
do comunismo. Talvez mesmo por isso, o retorno da guerra faz-se acompanhar por um
renovado interesse filosófico sobre a questão do mal. Basta pensar nos trabalhos de Jean
Nabert, Paul Ricoeur, Myriam Renaut, Bernard Sichère.
Uma certa filosofia e uma certa classe de intelectuais, suposta defensora dos
direitos humanos e da civilização, identificou nesse mal o retorno do que considera
barbárie e deu-se como missão denunciá-la e edificar baluartes contra ela. Assim, foram
publicados, quase ao mesmo tempo as obras “A barbárie com vulto humano” de

18
Bernard-Henry Levy, “A barbárie” de Michel Henry e “A Derrota do Pensamento” de
Alain Finkielkraut.
O termo “barbárie”, herdado dos séculos XVIII e XIX, significa uma espécie de
regressão histórica da civilização segundo um esquema evolucionista. O seu cerne não é
só o sentido da história. Montesquieu e Hegel, refletindo sobre o telos da história
humana, fazem da barbárie uma passagem. A evolução do seu desdobramento pertence
à antropologia, ciência que se apoia no evolucionismo biológico.
Partindo da premissa de que os diferentes modos de evolução da humanidade
podem alinhar-se segundo uma lógica de progresso, teóricos diferentes como Herbert
Spencer, Morgan, Taylor aparecem não tanto e só como ideólogos do Ocidente, mas
defensores de uma tese intocável: a unidade da humanidade, desde as suas formas
inferiores até às mais elevadas.
Os termos barbárie e barbaridade que, contudo, permitiram aos iluministas
integrar culturas diferentes numa linha única do progresso histórico, poderão ser
retomados tal e qual, sem que isso comporte novas formas de etnocentrismo, admitidas
pelos colonizadores do século XIX? Eles não se vão substituir a uma nova forma mais
hipócrita de sentimento da diferença, um elitismo que tenderia a desqualificar o não-
ocidental sob cobertura de uma nova oposição entre a barbárie e a cultura?
Algumas posições desesperadas, como “A derrota do Pensamento” de
Finkelkraut, são de uma tal imprecisão, que parecem um reconhecimento tardio do
etnocentrismo que continua a cegar certas elites; imprecisão que se traduz numa
amálgama entre uma espécie de relativismo cultural, denunciado por Levy Strauss, e
uma espécie de agnosticismo céptico ou mesmo de confusão de valores.
A teoria do relativismo cultural aparece como uma espécie de código de boa
conduta para todo aquele que quer atingir um ideal científico pré-estabelecido. Do ponto
de vista de valores, Lévi-Strauss recusa duas interpretações tentadoras: uma, etno-
centrada, supondo que o mundo vai em direção ao ocidente como um rio ao oceano;
outra, eclética e pós-moderna, que faz da cultura universal um simples somatório das
contribuições das diferentes culturas.
Com efeito, relativizar o olhar permite um melhor discernimento das identidades
culturais e não as confundir. O Ocidente é orgulhoso de estar na origem do direito e da
filosofia (não obstante as pesquisas de Cheik Anta Diop e Molefi Asante), de ter
estendido a sua cultura ao novo mundo, de ter iniciado a revolução industrial. Raça e
história relativizam este quadro: a civilização grega prolonga a egípcia, cruzamento

19
entre a África e o Oriente. As culturas do novo mundo, anteriores à instalação
espanhola, influenciaram enormemente os colonos. Enfim, a Revolução Industrial,
segunda revolução técnica depois do neolítico, sucede séculos de trocas comerciais na
África, no Ocidente e no Oriente e só se pode compreender como resultado destas
parcerias.
Não é pela raça que o Ocidente domina o planeta e expulsa os outros do cimo da
cultura. A raça é o resultado terminal de uma seleção prolongada; tudo é composto.
Michel Serres acrescentaria que o escuro vive no claro, o claro no escuro, tudo é
mistura.
A derrota do pensamento não consegue valorizar o que está em causa: a
capacidade aleatória que certas criaturas mostram de resistir ao tempo e de adquirir uma
dimensão universal. A cultura é, neste sentido, a segunda natureza do homem da qual, já
falavam Platão e Herder. Ela não pode ser o veículo na cruzada contra a barbárie.
Há cento e cinquenta anos atrás Dostoievsky escrevia: quanto mais amo a
humanidade em geral, tanto menos gosto das pessoas. Esta saída do escritor russo é
atual. Hoje é corriqueiro exaltar o amor profundo pelos direitos humanos, defender a
necessidade de sair da ditadura, quando simultaneamente, se tem um desprezo profundo
pelos indivíduos concretos. Enquanto o outro for abstracto, tudo vai bem; mas basta que
ele tome uma configuração mais viva, para cairmos na conta que é difícil viver com ele
em carne e osso; então o outro, de repente, aparece menos digno no nosso acolhimento e
da nossa solicitude. Torna-se inimigo, obstáculo. A presença física vem anular os
melhores élans de altruísmo. Assim, os grandes ideais devem tornam-se álibis para os
egoísmos.
No seu romance, “Os Demónios” (2013), Dostoievsky descreve perfeitamente
este momento: detestamos o outro pela sua própria presença física. Num restaurante,
uma das personagens come e a outra olha para a que se deleita: Petr Steparovitch não
tem pressa, mastiga com prazer, pede um pouco mais de mostarda e depois cerveja,
continua a não dizer nada (…). Lipoutine acaba por odiá-lo mas não tem força para
desviar o olhar. Ele conta cada pedaço que o outro engole e detesta a sua maneira de
abrir a boca, de saborear os pedaços mais espessos, ele chega a sentir repugnância até
pelo bife. No fim, tudo se mistura nos seus olhos; a cabeça começa ligeiramente a girar;
tremuras de calor e de frio correm-lhe nas costas.
Esta é a verdade humana que se exprime hoje com novas palavras. O inferno do
outro comporta três círculos. Em primeiro lugar, os condenados de ontem reivindicam o

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direito a beneficiar-se do resultado do seu trabalho e dos produtos da terra eis o sentido
profundo do Renascimento Negro, diretamente herdado do Sinn Fein irlandês. Em
segundo, a sensação da agressividade ambiente que se exprime na impressão de que os
outros têm algo contra nós. Uns lamentam a crise da civilização e outros a febrilidade
que mina as relações. O ultra-capitalismo, a concorrência e a competição intensificam
este processo.
Em terceiro lugar, está aquele círculo descrito por Jean Paul Sartre em  “O Ser e
o Nada” (2014): o olhar do outro que vos coisifica e vos objectiva numa coleção de
qualidades fixas, psicológicas, morais, sociais. Esta tendência enriqueceu-se com novos
instrumentos – máquinas, vídeos, redes que difundem a vossas imagens num abrir e
fechar de olhos. Passar despercebido, permanecer incógnito é cada vez mais difícil.
No fundo, toda a filosofia do século XX e XXI, até agora, é atravessada por uma
tensão ligada à questão do outro. Descobre-se, em primeiro lugar, que o alter-ego, não é
nem uma coisa nem eu próprio. Entre as duas guerras mundiais, desenvolve-se uma
corrente que podemos apelidar de pensamento dialógico. Edmund Husserl,
posteriormente seguido por Emmanuel Lévinas, lança as bases de uma teoria filosófica
que faz do encontro com o outro a experiência constitutiva da nossa relação com o
mundo.
Martin Buber publica em 1923 uma obra fundamental sobre o sujeito,  “Eu e
Tu”. Critica a tradição filosófica e defende que os exercícios, a meditação não têm nada
de comum com o facto original e simples do encontro. Para ele, há que explorar, para
além do mundo da experiência, o da relação. Esta apologia do tu deve afrontar os
etnocentrismos onde o tu é negado em nome das teorias da raça, da classe ou da figura
do inimigo.
Em 1943, Sartre publica O Ser e o Nada e no mesmo ano a peça Huis Clos. O
seu Juízo é categórico e sem apelo : a verdade, trivial, “o inferno são os outros”. Hoje,
esta máxima é de grande atualidade. Em nome da preservação da civilização ameaçada,
descobre-se a figura do inimigo a qual se injuria com todos os defeitos e males. A nível
político, adversário torna-se inimigo: hoje o inimigo, o mal, é, para a FRELIMO, a
RENAMO, como para o MPLA, a UNITA, para o Ocidente, depois da URSS, a Jihad
islâmica.
Pode evitar-se o angelismo sem cair na bestialidade? A Resposta encontra-se no
teórico da literatura Mikhail Bakhtine. Nos problemas da poética de Dostoievsky e
François Rabelais, na cultura popular da Idade Média e do Renascimento, ele descobre

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um modelo polifónico e carnavalesco. Sobretudo recorda-nos que os outros não estão lá
para nos confortar, apoiar, ainda menos, para se parecerem connosco. A relação com os
outros não pode ser monológica e pacífica, obedecer a uma norma. Ela é por essência
polifónica, quer dizer, deixa ao outro a liberdade de não corresponder ao que eu espero
dele.

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3. PENSAMENTO CRÍTICO

Face à banalidade do mal (Hannah Arendt), sob forma de massacres, de


opressão, de exploração, mentira, engano, genocídios, perseguições, totalitarismos e
subdesenvolvimento programado (Sabeli e Jorge), violência organizada e muitas vezes
institucionalizada, guerras, outras correntes filosóficas deram-se, como missão,
diagnosticar causas e formas e identificar antídotos. Esta perspectiva emergiu no
contexto da Escola de Frankfurt, no grupo de pensadores como Max Horkheimer,
Theodor W. Adorno e Herbert Marcuse.
Não se trata de uma perspectiva catastrofista, pessimista, orientada a denúncias,
à suspeição e incapaz de apresentar alternativas para um progresso histórico, mas sim de
um esforço para desconstruir e elucidar os mecanismos do mal organizado tais como as
ideologias guerreiras, os próprios exércitos, que se apresentam como algo de racional,
de bom, de necessário, de inevitável e por conseguinte, prever uma outra sociedade,
uma outra política, uma outra economia, um outro mundo.
Há que auscultar e reconhecer os sofrimentos dos miseráveis e militar para o seu
processo de soltura; libertar sem fazer dos opressores novas vítimas, como postula a
filosofia Ubuntu : libertar ambos opressores e oprimidos. Amílcar Cabral, em “A Arma
da Teoria” (1980), defende que a luta anti-colonial não vai contra uma raça, um povo,
mas contra um sistema de opressão que se instalou na história dos homens como carraça
que deve sacudir-se da pele da humanidade.
Desde sempre, o “viver juntos” e em harmonia constitui o âmago da reflexão
filosófica. Se tem que recorrer-se à guerra, às armas, à violência seja de que tipo for,
atualiza-se a derrota da filosofia. Então, olhando para o lugar que as guerras ocupam na
história, podemos depreender que a filosofia viveu sempre nas margens; não conseguiu
impor a razão, o diálogo, a tolerância como tónica dominante da relação entre os
homens. Aliás, muitos filósofos (Grotius, John Locke) defenderam, impulsionaram e até
incentivaram as guerras. O último, na ordem do tempo, foi Bernard Henry Levy na
guerra contra a Líbia.
Outros como Sepúlveda, Vitória, Soares defenderam guerras justas (Ius ad
Bellum), conceito que data da antiguidade, atravessa a Idade Média e foi recentemente
retomado, primeiro, por Habermas durante a guerra da Jugoslávia e depois por Michael
Walzer numa publicação de 1977. Partindo do conflito do Vietname, contra o qual

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militou, passando pela operação americana no Panamá, chamada “Justa Causa”, pela
guerra dos seis dias, até à intervenção no Golfo, Walzer interroga-se sobre a realidade
moral na guerra. Para ele, a guerra não é alheia à Ética, não está para além do bem e do
mal, antes supõe o exercício de um julgamento. Por isso, quando dois campos se
afrontam não podem ambos pelejar na parte justa, e é possível determinar qual deles
tem razão. Só é justo combate quando consiste em defender-se de um ataque ou se trata
de socorrer um Estado irmão agredido.
O seu livro pretende opor-se ao discurso, quer daqueles que defendem que numa
situação de guerra nenhuma moral prevalece dado que tudo se resume a uma questão de
estratégia, quer dos pacifistas que recusam pegar em armas independentemente das
circunstâncias.
Quanto à questão do respeito pela integridade territorial, ele defende que se
populações são massacradas ou deslocadas, isso pode constituir um imperativo maior do
que o respeito pelas fronteiras, à sombra das quais as ditaduras se acolhem. Tratar-se-ia,
por conseguinte, de uma intervenção humanitária.
Mas como se fazem os aliados? Quando os meus, no Médio Oriente, por
exemplo, são os principais financiadores do terrorismo internacional, regimes
teocráticos e até esclavagistas, qual pode ser a base ética de uma aliança com eles? Não
estaria esta aliança perversa na origem da violência que uma guerra justa iria combater?
Em outras palavras, alianças criminosas, porque feitas com regimes criminosos podem
dar lugar a uma guerra justa? Se toda e qualquer aliança com um regime colonial como
se fez com o Portugal de Salazar, com o regime de apartheid e até com a Alemanha de
Hitler, pode levar a uma guerra justa, então de que justiça se fala?
Na sua crítica a J. Rawls, Walzer defendeu o comunitarismo. Mas esse
comunitarismo intra murus é a miopia e justificação das relações e guerras que o estado
democrático faz; leva necessariamente à dualidade moral. Se assim é, isso anula
também a tese sobre as intervenções humanitárias. A luta pela democracia deveria
fazer-se in primis, junto daqueles com quem se tem ou se pretende fazer alianças. Aliás,
deveria ser a conditio sine qua non para estabelecer entendimentos honestos. A tese da
guerra justa parece ser um pretexto para dar uma cobertura moral ao escândalo da
proliferação das guerras.
No livro “Momento Moçambicano: notas estéticas” (2016), relevei o imperativo
de expulsar os poetas como condição para o surgimento da filosofia para Platão. Mas
porquê os poetas tinham que ser expulsos? O essencial do combate de Platão era uma

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educação ligada ao exemplo dos heróis, o que comportava em si as ideias da vingança,
da lei de talião e da guerra. Com efeito, os helenistas não nos dizem o suficiente sobre a
educação espartana e o espírito de vingança dos gregos. Eles limitam-se a pintar-nos a
Hélade como terra da sabedoria, harmonia, beleza, serenidade, retórica e democracia.
Infelizmente, esse país nunca existiu e Nietzsche foi o primeiro a denunciar esta
impostura.
Pode parecer paradoxal, mas os pais da sabedoria eram também campeões da
guerra, como se sabedoria e guerra devessem caminhar juntas; como se a filosofia não
se dissociasse radicalmente da guerra. De facto, a guerra é inata na consciência grega
pois a Paideia, isto é, a cultura helénica antiga, não repousa, como a cultura cristã, sobre
o perdão mas sobre a obrigação da vingança. O grande educador grego, Homero, criou
heróis que são antes de mais combatentes e não recusam nenhuma atrocidade. O Canto
XIII da Odisseia é um autêntico teatro de humilhações, torturas, linchamentos,
massacres, onde a ferocidade de Ulisses, digno do melhor membro do KKK do
Mississípi Burning, não conhece nenhum limite.
Esta exaltação da guerra e da ferocidade está no coração dos egeus e é celebrada
quer por gregos quer por troianos. Encontramos em Homero as mil maneiras de desferir
o golpe fatal, o conhecimento das partes mais vulneráveis do corpo, a arte de fazer saltar
o olho da sua órbita, de cortar a cabeça com um só golpe de espada, de partir uma
vértebra cervical, mas também a de atingir o coração. Nem os cadáveres são poupados.
Estas lições de Homero engendraram, na cultura grega, uma predileção pelas
cenas de guerra, de tal maneira que os cronistas gregos posteriores falam só disso.
Heródoto é o historiador das guerras médicas, Tucídides das do Peloponeso, Políbio das
conquistas romanas, Plutarca das expedições de Alexandre. Assim, a história aparece
como o teatro de um eterno conflito armado.
Talvez não se possa confiar muito nas narrativas destes memorialistas. Todavia,
eles fazem-nos tomar consciência da omnipresença da guerra na antiguidade. No
essencial, a historiografia moderna segue os mesmos trilhos. Apesar dos esforços
empreendidos desde a École des Annales, as histórias dos países são narrativas de
combates e conquistas.
Platão quer uma educação centrada sobre a verdade. O que é que esta ideia
comporta? Uma diferente atitude do homem em relação ao outro, mas sobretudo encerra
a noção de justiça, o que não pode, de nenhuma maneira, confundir-se com vingança.

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Aliás, a referência constante que Platão faz de Sócrates tem que ver com o seu
distanciamento do ethos que até então tinha governado Atenas.
Nos diálogos com os jovens, Sócrates demonstra a inconsistência das
concepções tradicionais veiculadas pelos poetas e incarnadas pelos heróis, dos quais a
cidade faz a promoção. Deste modo, ele distancia-se desse tipo de ethos e introduz uma
sabedoria em que o indivíduo tem que ir buscar os fundamentos da sua ação a uma
meditação profunda e à razão. Trata-se de avaliar com rigor se os valores que
reclamamos aguentam um exame crítico e se as opiniões tradicionais, transmitidas pelos
poetas, resistem a um exame racional.
Sócrates inaugura assim uma atitude fundada sobre a autonomia da razão em
nome da qual não hesita pôr em causa os costumes e os valores ancestrais, entronizadas
pela tradição e pela autoridade de certos poetas, nomeadamente Homero e Hesíodo.
O método de Sócrates não se limita à introspeção, uma vez que o conhecimento
necessita de mediador, de um tu. A verdade e a sabedoria não pertencem a ninguém, só
se podem descobrir numa busca comum. A verdade apresenta-se assim como caminho
que temos que fazer juntos. A filosofia não é uma actividade que se faz no isolamento
da leitura ou da meditação, mas uma busca que se faz em comum.
Os filósofos, para proporem um diálogo, conversam com as sociedades nas quais
vivem, mas também entre eles, para estarem à altura de sugerir soluções aos problemas
de todos. Quando são habitados por um qualquer etnocentrismo – ou elitismo – só
podem sugerir soluções de um universalismo etnocêntrico e até justificar violências e
guerras.
Assim, a verdade e não os subterfúgios sofistas e as estratégias militares,
constitui o fundamento da Basileia que Platão pretende construir. Alicerçar a polis sobre
a verdade significa pôr, por cima do panteão axiológico, o valor justiça que só se pode
atingir num processo de diálogo. Aliás, é nisto que consiste a pedagogia de Sócrates e o
espírito filosófico dela decorrente.
Assim, Sócrates aparece como a figura emblemática do conflito original entre a
filosofia e a cidade, conflito inevitável, já que, em virtude da sua missão crítica, cabe à
filosofia questionar o bem fundado dos valores, das opiniões e das crenças sobre as
quais há-de fundar-se a cidade. Trata-se do substrato da filosofia como um contra poder
para o funcionamento da democracia. Esta é a maneira filosófica de exercer uma
influência política.

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Ter sempre presente que a filosofia não é a sabedoria, mas a procura dela. Isto
significa que ela não a possui. Por isso mesmo, se desconfia dos que pretendem ensiná-
la sem ter que a procurar. Ser filósofo é antes de mais desconfiar dos sábios.
Então os belicistas, os defensores primários da guerra justa, os que recusam o
diálogo e o esgrimir de ideias, os que possuem a verdade, os que têm absolutamente
razão, confrontam-se com o espírito filosófico e seus métodos.
Sentir-se chocado diante de certos eventos é normal e humano. Aliás é bom que
assim seja. Contudo, transformar a própria indignação em apologia de uma razão
vingativa é renunciar ao pensamento e à filosofia. O discurso sobre a guerra é uma das
maneiras de fazer face aos problemas humanos. A guerra é por natureza antifilosofia e a
filosofia, por natureza, antiguerra.
Por isso, o espírito filosófico supõe que se saia de todo e qualquer introspecção,
de todo e qualquer espírito ilhéu, de parâmetros de causas etnocêntricas para poder
navegar-se em direcção aos confins da humanidade e colocar-se nos espaços externos
que intervêm para além das fronteiras; viajar em entorno de todo o continente humano
acima das crenças, das civilizações, dos costumes.
Maquiavel não hesitou em fazer da sua filosofia um conselho ao príncipe. No
nacionalista século XIX, muitos filósofos fizeram filosofias nacionais; na época das
ideologias, alinharam-se e dividiram-se entre esquerdas e direitas. Hoje; filósofos
tornaram-se defensores e alguns mesmo apologistas de guerras justas, civilizacionais e
mesmo do bem contra o mal.
Esta falta de cordialidade (Adela Cortina) no olhar que lançamos para o outro
torna impossível a razão deliberativa (Habermas) pois a verdade deixa de ser um fruto
maduro que poderia cair no diálogo (Gadamer) e torna-se um dogma a ser imposto por
uma das partes. A não ser que os procedimentos de busca de justiça, válidos no interior
de uma cultura e civilização, percam a sua validade quando se trata de estendê-los à
dimensão da humanidade e nunca terão que ser impostos. O que fica aqui hipotecado é a
própria justiça. O que seriam guerras justas num mundo que tivesse hipotecado a
justiça? Uma filosofia que não soubesse ser supra-partes como outrora com Grotius,
Locke (...) saberia estar ao serviço da humanidade e não se tornar um sistema de
legitimação de um apartheid planetário?
A filosofia contemporânea renunciou à ideia de posse da verdade e de corrigir
aqueles que não a possuem, mas não à preocupação de procurá-la; à busca humilde, à
formulação rigorosa e laboriosa de proposições mais certeiras (ou menos falsas) que

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outras. Isto impele o filósofo a um engajamento intelectual, não para defender causas.
Ela engaja-se nos processos de avaliação de todas as proposições e de todas as
injunções.
Trata-se de um compromisso não de causas, mas da complexidade contra a
simplificação ambiente, que não se deve confundir com opacidade, maneira perversa de
esconder, sufocar os problemas reais debaixo de questões parasitárias. O filósofo já não
tem de dizer o que é bem e o que é mal, mas também não se pode situar para além do
bem e do mal.
Então como conciliar as guerras justas com o imperativo filosófico que quer que
a única verdadeira guerra, o único combate legítimo da filosofia (Sócrates, Platão,
Voltaire, Kant) seja fazer reinar a razão, a paz e a justiça entre os homens ? Não será a
guerra justa por si mesma uma aceitação da derrota da filosofia ? Quando a filosofia se
acomoda e até justifica a violência e a guerra em nome de seja do que for: raça, nação,
civilização, não trai os seus princípios primeiros e a si própria ?
Contudo, se, de um lado, filósofos como Hegel, de Maistre, Proudhon viram na
guerra uma atividade providencial com “virtudes redentoras”, outros como Kant e
Swift, passando pelos enciclopedistas, nunca pararam de denunciar os seus horrores, as
suas atrocidades, os seus absurdos. Isto significa, de uma ou de outra forma, que a
guerra nunca parou de invadir o campo do pensamento. Merleau-Ponty, no
“Humanismo e Terror” (1958), interroga-se se as divergências e os contenciosos
políticos não podem ter outra saída senão a guerra.
Em 1795, Kant publica o “Projeto de Paz Perpétua”. Este projeto não se funda
sobre nenhuma ideia filantrópica, mas sobre princípios rigorosos de direito. Este projeto
não é indiferente ao terror provocado pela Revolução Francesa e à questão principal:
como concluir a Revolução sem voltar à monarquia? O projeto quer demonstrar, por um
lado, que se a Revolução levou, por vias injustas, a uma melhor ordem social, por outro,
não se deve fazer retroceder o povo para uma antiga constituição. Assim, a Revolução
Francesa é criticada porque os revolucionários não sabiam o que pôr no lugar do que
destruíam. Por outro lado, o que se passou é irreversível, não pode ser modificado.
O conjunto da reflexão política de Kant e uma parte da sua filosofia moral
constituem uma resposta à questão da relação entre o progresso das luzes e a
moralidade. Esse foi o ponto de partida de Rousseau na época, no “Discurso sobre as
ciências e as artes”. Como amigo do iluminismo, convencido que o progresso das artes
mecânicas como dos costumes fazem parte das pré-condições do progresso do direito

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até mesmo da compreensão do destino moral da humanidade, Kant não podia aderir à
posição de Rousseau que parecia levá-lo a duvidar da própria razão.
Assim ele posiciona-se ao lado de Hume e defende que a combinação moderna
entre o apaziguamento dos costumes, a difusão do comércio e o progresso do direito
darão origem a um mundo que, não obstante as suas imperfeições, é superior às
sociedades de outrora, na medida em que essas transformações eram a base para o
reconhecimento da igual dignidade dos homens e da autonomia da vontade. Nesta
perspectiva, ele era fiel ao pensamento que vai das Cartas Inglesas de Voltaire aos
Ensaios Políticos de Hume. Contra Rousseau, Kant, como Voltaire e Diderot, via no
desenvolvimento das forças mecânicas, das belas artes e das ciências, a alavanca que ia
favorecer o avanço do direito e da moral através de um adoçamento dos costumes, o que
levaria à paz perpétua.
Entretanto, a preponderância até hoje da guerra e da violência significa a
desaprovação da fé nesse emancipador da Razão e, concomitantemente, de Kant e
companheiros, a favor do genebrino: o desenvolvimento da ciência e da técnica, a
proliferação do comércio não significou um avanço dos costumes, da moral e do direito.
Hoje, assistimos a um avanço tecnológico sem precedentes na história da
humanidade, mas isso não se traduz em paz, nem no avanço do direito e da moral. Aliás,
a tecnologia é uma das facetas mais evidentes da violência contemporânea: os tanques e
os bombardeiros da primeira guerra mundial, as bombas atómicas da segunda, os
patriotas da guerra do golfo, os drones obamianos, o prematuro Nobel da paz que, com
estilo e elegância, matou mais do que o seu famigerado predecessor, são uma clara
demonstração disso.
Se Kant e Diderot viam no comércio as premissas da paz, eles não podiam
prever, apesar do sobreaviso que a escravatura e o tráfico de homens lhes fazia, que o
comércio mais rentável seria a guerra. Com efeito, desde o primeiro conflito mundial
(1914 a 1918), os industriais descobriram que o comércio das armas era mais rentável
que todos os outros. Por isso, Os Senhores da Guerra (aliás, o título fiel do conteúdo do
filme de Nicolas Cage devia ser “O Desprezo do Ocidente pela África”) asseguraram
que houvesse sempre guerra em algum ponto do planeta.
Se a guerra – que produz mais monstros do que aqueles que elimina – é o
comércio mais rentável da nossa época, então estamos naquilo que Jacques Maritain
chamou de crise do humanismo (ateu). Esta crise encontra a sua primeira manifestação

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no Maquiavel do Príncipe e desdobra-se, do ponto de vista teórico, em três direcções:
Grotius (contra os peles vermelhas), Colombo (Ius ad bellum), Hobbes (Leviatã).
Voltaire crê que o progresso não está assegurado por nenhum princípio superior
ou metafísico. Ele é céptico quanto ao triunfo da razão, que deverá sempre lutar contra a
desordem e os interesses particulares dos privilegiados. Por isso, o aperfeiçoamento da
sociedade é sempre precário e frágil. O mundo no qual ele projecta o seu Candide é
caracterizado por guerras, fanatismos, catástrofes naturais (terramoto de Lisboa); um
espetáculo desolador do mal e de injustiças, não muito diferente do descrito pelos
nossos jornais e televisões diariamente. Com Candide, Voltaire opõe-se ao optimismo
de Leibniz e à sua ideia “do melhor dos mundos possível”.
Diante da violência e das injustiças, ele é a favor de um engajamento filosófico,
de uma luta sem tréguas contra todas as formas de intolerância, quer sejam religiosas,
políticas ou teóricas. O seu objectivo é criar uma opinião pública ou fazer nascer um
espaço público para uma discussão racional e crítica. Por isso, apela para os sentimentos
de indignação contra a injustiça a fim de que cada um possa adquirir um espírito
republicano e ouse propor reformas.
Nos escritos de Voltaire, a palavra guerra é recorrente. Trata-se, porém, de uma
guerra filosófica, uma guerra ao serviço da razão, da verdade, dos direitos do homem e
de um certo ideal de cosmopolitismo. Voltaire (Dictionnaire Philosophique, 1987)
acusa os dirigentes de então de não estarem à altura do avanço tecnológico: “sendo os
homens que lideram hoje os governos mais instruídos, é uma vergonha que a sociedade
não esteja mais aperfeiçoada em proporção às luzes adquiridas”.
Se o triunfo da razão moral e política defendida por Voltaire estava longe de
assegurado no seu tempo, parece ainda menos assegurado hoje. De facto, o que justifica
a fome que padecem milhões de seres humanos? O que explica as injustiças, os
fanatismos, as violências? Voltaire ficaria horrorizado com a estatura política e moral
dos homens que dirigem o mundo de hoje, com a inadequação das instituições às
realidades socioeconómicas, com os fanatismos, a corrupção (Brasil, Coreia...), a dupla
moral e o cinismo feito razão governativa.

No século XIX, enquanto a filosofia desce do seu pedestal, um novo discurso


ganha terreno: a geopolítica (Kjellen, Ratzel, Haushofer, MacKinder). A partir de então
a teoria do poder e as tensões internacionais tomam em conta dados complexos: a
geografia, a economia, as populações, as religiões, etc. Assim se impõe a ideia de que as

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modalidades que regulam as relações entre os estados não se limitem ao terreno
estritamente militar, que o mais forte não é necessariamente aquele que pode alinhar o
melhor exército, o melhor armamento, mas aquele que integra outros meios entre os
quais o controle estratégico de diferentes campos.
Lenine tem, a este propósito, uma posição sui generis na dialética. A procura de
um equilíbrio de antagonismos de Maquiavel cede espaço à necessidade da eliminação
do termo negativo da contradição. Daí, o partido como máquina de guerra de classes.
Lenine parte do pressuposto de que a política é um exercício de tipo militar,
onde o bloco dominante detém os aparelhos de coerção diante dos quais são vãos a
palavra ou o sufrágio da maioria. Esta visão leva a que se negligencie o terreno da
representação a favor da acção e que esta concretize não os imaginários do discurso,
mas « O partido traduz interesses, não representa sujeitos, vontades individuais ou, se
quisermos, o partido não diz nada, não proclama, não manifesta, não declara, luta»
(LENIN 2005).
Aqui não se trata de usar manha de uma maneira maquiavélica, mas, dado que a
confrontação entre blocos deve levar ao desaparecimento da classe ilegítima, a luta é
total e os meios radicais. As violências espontâneas devem transformar-se num terror de
massa. Trata-se do que Lenine chama um poder de ferro que tudo cria destruindo.

A posição teórico-prática de Henry Kissinger vai no sentido inverso e é um


modelo do género. À partida, os interesses intelectuais dele pareciam ter uma dimensão
filosófica. O seu trabalho de dissertação – um calhamaço de mais de trezentas páginas –
tratava da questão do fim da história, tema caro aos filósofos contemporâneos da
história (ver K. Lowith, Ideia e Fim da História). Porém, se Hegel, ao ver Napoleão
passar gritou, “o espírito do mundo montado a cavalo”, para Kissinger, no seu livro
programático A World Restored, publicado em 1964, a responsabilidade de guiar o
mundo (o espírito do mundo) cabe aos Estados Unidos.
O seu ponto de partida é a averiguação de que a cena política mundial mudou
radicalmente desde a segunda guerra mundial tornando caducos, inaptos e perigosos, os
quadros teóricos e institucionais em que a paz tinha sido pensada até então.
Ele ataca, em primeiro lugar, o problema filosófico e conceptual. O exercício do
poder não faz mudar necessariamente de filosofia política. Desse ponto de vista, quem o
exerce sai como entrou. O problema principal de quem é investido de poder é a

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articulação com o saber; este é o problema da governação. Por isso, para ele, governar
hoje, é reger segundo a paz.
O mundo dá-se conta permanentemente de crises que ameaçam a estabilidade de
uma ou outra região, e de crises estruturais que minam o equilíbrio geopolítico do
mundo. Umas e outras invocam a uma crise mais fundamental que emerge na década
sessenta: a crise da governamentalidade. Segundo Kissinger, quaisquer que sejam os
problemas que ameacem a paz e a segurança – corrida ao armamento, crises regionais,
só terão uma resposta adequada na medida em que forem tratados como problemas de
governação – de nações ou do mundo, e devem constituir ocasião para instaurar uma
nova forma de governabilidade.
Numa era em que todo o conflito regional é internacional, onde toda a questão
nacional é mundial tem que se encarar qualquer crise na perspectiva da instauração de
um novo tipo de governamentalidade, isto é, de alinhamento com os princípios de uma
razão governamental.
Os princípios desta nova razão governamental devem ser determinados por um
imperativo categórico, o único e verdadeiro imperativo moral: evitar a guerra nuclear e
com ela a destruição da humanidade.
Deste imperativo ele retira o princípio da responsabilidade histórica dos Estados
Unidos, futuro garante da paz mundial. Eles, os Estados Unidos, devem desempenhar o
papel que foi o da Inglaterra no século XIX. Esta nova responsabilidade marca a
passagem, para os Estados Unidos, à idade da maturidade.
Daqui se deduz a responsabilidade específica dos Estados Unidos e do homem
de Estado: ser responsável em primeiro lugar diante da história, e só em seguida, diante
do seu povo. O homem de Estado deve fazer com que o povo americano realize o seu
destino histórico e geopolítico. É sobre isto que a história o julgará e este é o único juízo
que vale e que ele aceita. Os Estados Unidos só podem realizar esta responsabilidade
diante da história ultrapassando a própria crise de governabilidade que resulta da crise
do consenso nacional e da sua burocracia administrativa. Para isso, eles devem inventar
novos instrumentos de governabilidade.
Em nome desta nova razão governamental, Kissinger denuncia a maneira errada
de conduzir as políticas: governar segundo a moral, que consiste em acreditar numa
harmonia natural, na crença que o mundo estaria dividido em duas partes opostas como
o bem e o mal, e que os Estados Unidos teriam simplesmente que manifestar o próprio
poder para conter o mal nas suas fronteiras. Erro do juridismo, que consiste em acreditar

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que é suficiente criar uma estrutura jurídica, assinatura de acordos e de tratados, para
que os problemas sejam resolvidos; erro psicológico, que consiste em tratar as questões
politicas em termos de boas intenções, e na redução dos termos de uma confrontação
entre as personagens que os incarnam e perscrutar a sua boa ou má vontade; erro
economicista, herdado do Welfare e do plano Marshall, que consiste em aceitar que os
problemas políticos se resolveriam à medida do desenvolvimento económico.
Estas falácias derivam, em primeiro lugar, de uma ilusão pragmatista que isola
os problemas e os trata um a um à medida que se apresentam; o que não tem em conta
que, no mundo atual, todo o problema particular é geral, e todo problema local,
mundial. À ilusão pragmatista, Kissinger opõe o conceito de linkage, de interacção,
interdependência como princípio de análise e fundamento de todo o cálculo estratégico.
Jogar aqui para ter um efeito acolá. Ver em cada problema particular uma perspectiva
global, mundial.
Em segundo lugar, os erros derivam do desconhecimento da natureza das forças
que se confrontam no mundo de hoje. Na era da arma nuclear e da ideologia, o poder
não se reduz ao canhão e a noção de fronteira já não é pertinente para identificar as
forças em presença. Ao conceito de poder (militar), Kissinger opõe o conceito de
relações de forças de diferente natureza.
O terceiro erro deriva da crença de que o estado natural do mundo é a paz e que
a guerra viria perturbar esta ordem naturalmente harmoniosa; a crença de que a paz seria
a ausência da guerra e que o seu restabelecimento se põe em termos de vitória e derrota.
Enquanto na realidade, a paz resulta de um equilíbrio de forças perpetuamente
instaláveis e perpetuamente a preservar. O equilíbrio, mesmo se é a condição da
estabilidade, não tem a sua razão de ser em si. Nisto, Kissinger aproxima-se do Kant da
paz perpétua – que ele cita continuamente – com a diferença de que o projecto de
alcançar a paz desaparece. Com Kissinger, estamos num processo interminável e não à
procura de uma destinação final.
Assim, neste projecto, a paz não é um objectivo em si. Ao imperativo da paz,
opõe-se o imperativo da segurança, princípio da razão governamental; razão de um
mundo onde forças rivais e interdependentes se confrontam perpetuamente, ameaçando
o equilíbrio e do qual se deve continuamente manter a estabilidade. O pensamento de
Kissinger gravita em volta dos termos: forças (ou poder), equilíbrio, estabilidade,
interacção (linkage). Eles definem uma concepção geopolítica do mundo.

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A razão governamental que Kissinger propõe define um mundo sem destinação,
onde se desvaneceram as finalidades morais, à parte este único imperativo, evitar a
guerra nuclear. É uma razão que, em nome da paz, não só não se proíbe a guerra, mas se
aplica a fazê-la com uma eficiência cada vez maior e sem outros limites que aqueles que
a guerra mesma exige. Kissinger foi um daqueles teóricos que teve a sorte (e o azar para
milhões de vitimas) de pôr em prática, a ferro e fogo, as suas teorias, primeiro como
conselheiro de segurança nacional e depois como secretário de Estado.
Assim como, para Hegel a verdade da intenção é o ato, assim também a verdade
da paz atómica são as guerras limitadas e os massacres locais: a guerra do Vietnam, a
invasão do Camboja – e seu derivado de Pol Pot –, os golpes de estado (Operação
Condor) no Chile, Argentina, Brasil, Uruguai, Coreia, com as suas miríades de mortos.
A lógica da razão governamental esteve na origem do sistema dos golpes de estado e
dos assassinatos políticos em África. O mesmo espírito, por detrás do apoio a Mobutu
no Congo, ao regime de Smith na Rodésia, ao apartheid na RSA e, por consequência, às
guerras de Angola e de Moçambique.
Os actuais bombardeamentos na Síria, com os EUA de um lado e a Rússia do
outro, mostram que esta lógica de forcas rivais e interdependentes que se confrontam
continuamente prevalece ainda hoje. Quantos mortos faz isto tudo? De quem é a
responsabilidade? Onde ficam os direitos humanos?
O maléfico equilíbrio e a razão governamental transferiram o campo de batalha
para o Sul, onde os antagonismos se podiam exercer sem que isso comportasse um
perigo para os territórios e os povos dos verdadeiros beligerantes. O número de mortos
durante a guerra fria foi, de longe, superior ao das guerras quentes.
Como escreve Raymond Aron, “a impossibilidade de um conflito mundial
favorece conflitos regionais. Circunscreve a guerra para limitá-la. As pequenas
guerras salvam a humanidade da bomba atómica – esta é a solução que foi adoptada
desde as explosões de Hiroxima e Nagasaki” (ARON, 1969: 167).

Não se trata simplesmente da inversão, como faz Karl Kraus, da famosa


afirmação de Von Clausewitz, da guerra como continuação da política por outros meios,
para a política como continuação da guerra por outros meios; mas da deslocação das
estratégias guerreiras para o sul como campo de batalha.
Os conflitos locais (ditos tribais, civis), independentemente do número de
pessoas que matam, aparecem como condição necessária para a paz atómica. Assim, o

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mundo contemporâneo pode fazer cumprimentarem-se a tranquilidade da paz com os
horrores da guerra. Os massacres já não são separados no tempo, mas simplesmente no
espaço, aliás muito elástico. Às vezes, a distância mede-se em termos de continentes,
outras, em províncias (Moçambique) e até em quarteirões (Líbano). De facto, o mundo
pode estar oficialmente em paz com dezenas de guerras em curso. O ex-presidente de
Moçambique, Guebuza, recusou-se terminantemente a admitir que o país estivesse em
guerra durante o seu último mandato, preferindo, ao invés, a expressão “instabilidade
militar em pontos localizados”.
Alain Badiou, em referência a Trump, fala de um “fascismo em tempos
democráticos”. O que dizer daqueles que exacerbaram e continuam hoje o cinismo da
razão governamental, quando os mesmos outrora se insurgiram contra Hitler e
Mussolini em nome dos valores da liberdade, da democracia, dos direitos humanos, e
entretanto, sempre fizeram questão de princípio: negá-los aos outros homens e povos?
Contudo, as lógicas da morte começaram a dar sinais de retorno ao lugar de
concepção quando os militares franceses, durante a guerra da Argelia, quiseram invadir
Paris para desesperadamente impedirem o processo de independência daquele povo
africano que De Gaulle se sentia obrigado a conceder.
Nos últimos anos têm-se propagado também para o Ocidente as guerras como as
da Jugoslávia, da Chechénia, da Ucrânia, os ataques de 11 Setembro, os atentados nas
discotecas de Paris, na Maratona de Boston, na estação de Madrid. Estas formas de
confrontação (locais, regionais) têm um apelativo simples e estereotipado – terrorismo
–, aliás já usado contra os combatentes pelas liberdades em África, os irlandeses,
curdos, judeus nos anos trinta, contra os palestinos ou ANC e Mandela na RSA:
terroristas. Este estigma omite a questão sobre as causas e, sobretudo, permite justificar
novas ondas de terror em nome da civilização.
De facto, “terrorismo” é um conotativo semântico-político que se refere a actos
de força que, por sua vez, justificam novas ondas de terror, através de um apelativo da
emoção em detrimento da razão. Este postulado tomou formas radicais com Reagan e
Thatcher. Primeiro apostrofa-se e estigmatiza-se os adversários de terroristas sem a
prévia interrogação quanto às razões: tribalização do médio oriente depois da queda do
império Otomano, acordos de interesses com a Arábia Saudita desde a década 30, apoio
incondicional ao colonialismo israelita (SCAGLIONE, 2016). Logo a seguir decreta-se
que com os doravante terroristas não se fala. Então a única linguagem contra o terror

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dos terroristas é o terror dos antiterroristas que provoca a reacção terrorista, das vítimas.
Cai-se assim no círculo vicioso infernal do terror.
O que leva a que não haja espaço para o diálogo é a presunção de se ter sempre a
razão da sua parte. Cai-se assim numa contenda de princípios, o bem contra o mal. Com
efeito, é comum, no conflito atual, como foi nas guerras do Iraque, ouvir-se falar de
uma luta contra o mal, pelo menos da parte do governo dos EUA. O recurso a estes
conceitos metafísicos corresponde a uma retórica de sofisma político e não à busca da
verdade.
Contrariamente a um lugar-comum, esta linguagem não é moderna, mas remete-
nos aos conflitos das cruzadas medievais que se faziam em nome do bem contra o mal
(ius ad bellum). Evidentemente que o nós, independentemente do lado em que se está,
corresponde ao bem e o eles ao mal. Trata-se, na verdade, de razões pretextuais que
escondem as razões dos diferendos, dos problemas e das causas reais que estão na
origem dos conflitos.
Nas guerras actuais, a razão e as razões não têm espaço. Os meios de
comunicação com as suas simplificações e o culto do tempo real, não se limitam a fazer
um inventário dos horrores, põem-nos também a vivê-los em direto, numa espécie de
pedagogia de retaliação – pedagogia da vingança, didaticamente preparada para não
suscitar emoções diante da morte de muitos inocentes que a lei de talião vai provocar.

A primeira vítima destas pedagogias de guerra é a verdade. Como buscar a


verdade quando se dá primazia à emoção sobre a razão? Como buscar a verdade quando
a emoção-guia é motivada e teleguiada pela manipulação dos eventos e não pelo
pensamento? Como dizia J.P. Sartre, “quando todos os caminhos estão barrados, a
consciência se precipita no mundo mágico da emoção, ela precipita-se toda inteira
degradando-se (...). A consciência que se emociona parece-se muito com a consciência
que se atormenta (SARTRE, 1939). Como falar ou buscar então a verdade?
Esta pedagogia favorece a supressão da distância entre o sujeito e o objecto e
impede o recuo necessário ao pensamento. Ela priva-nos do tempo de reflexão e de
debate, ela impõe-se de tal maneira que toda a consciência se torna emoção. Ela é a
principal inimiga da razão. Ela não tenta compreender, sente. Degrada-se assim o
sentido crítico e a procura da verdade. O que prevalece neste tipo de antagonismo é a
razão da força e não a força da razão. O que C. H. Kane chamou de arte de ganhar sem
ter razão. Existe algo mais antifilosófico do que isto?

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Neste caso, o dilema do filósofo é entre o nacionalismo e a razão, a pertença
particular e a razão universal, uma velha questão diante da qual a filosofia ou os
filósofos têm sempre que se definir; saber se são, in primis, cidadãos do mundo ou
conselheiros do príncipe.
A valorização das emoções torna-se um terreno fértil dos ciber-intelectuais. Face
à tensão militar de Muxúngue, um iminente sociólogo local sentenciou a necessidade de
se matar Dhlakama, assim como também o eminente filósofo Bernard-Henry Levy
exortou a expedição à Líbia. Eis as falsas evidências.
Renunciar a evidências obrigatórias impostas e ficar vigilantes. Uma vigilância
permanente de espírito que permita opor-se a toda a imposição de enunciados, como
também aos excessos de dúvida que dogmatizariam a atitude crítica.

A pedagogia da vingança pode atingir níveis de teatralização extraordinários. O


cinema hollywoodiano depois de ter alimentado, durante décadas, os imaginários com a
figura do inimigo soviético, no 11 de Setembro, descobriu a figura do jihadista. O
primeiro era compreensível, mas estava claramente errado. O segundo é pior do que o
primeiro porque é claramente incompreensível, irracional.
Na França, para celebrar a morte das vítimas dos atentados de Bataclan, o
governo organizou um funeral de massas no Palais des Invalides, lugar simbólico onde
foi enterrado Napoleão Bonaparte. As vítimas eram invocadas uma a uma, pelo nome,
apelido, idade, profissão (...). Diante daquele espectáculo de emoção, não era só a
recordação, a condenação, o escândalo, a pergunta do porquê da barbárie desses actos;
sobretudo, legitimava-se a vingança que se estava a preparar: é a fobia anti-muçulmana
e a xenofobia em geral cujo ápice foi a proposta, submetida ao parlamento francês, da
retirada da nacionalidade aos duplo-nacionais que fossem apanhados a cometer crimes.
Descobria-se assim a diferença de nacionalidade dos franceses: nem todos os nacionais
são iguais; alguns são mais nacionais do que outros.
Estes processos de tipo novo, guiados por panos brancos, símbolos da paz e
com crianças símbolos da inocência, são acompanhados por um dispositivo teatral de
células de ajuda psicológica: manifestam e valorizam a figura da vítima, detentora de
todas as virtudes à qual se rende absoluta e incondicional homenagem. O tour de passe
está feito: as vítimas tornam-se heróis posicionados no lado do bem e os jihadistas, o
símbolo mesmo do mal que se tem de combater com todos os meios. Então se justifica
que num estado democrático, defensor da igualdade de todos diante da lei e da

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presunção de inocência, os serviços secretos (em Moçambique são algumas ONGs e
alguns jornais) se substituam aos tribunais; que eles identifiquem os culpados e, sem
lhes darem o direito à presunção de inocência, os condenem e os executem.
Mutatis mutandis, este teatro de emoções, com a sua veleidade de vingança
repete-se sob formas diferentes do outro lado. A cada enterro de uma vítima dos
bombardeamentos ocidentais, assiste-se à sua canonização sob as insígnias do martírio e
o grito da Jihad para vingá-lo. Desta vez, o bem e o mal mudaram de posição, mas a
lógica da opacidade subsiste. Esta lógica não tem outra saída se não exacerbar a
confrontação e a guerra.
Nutrem-se assim as guerras pela afirmação de bens antagónicos, uns mais
ecuménicos que outros. Só se pode fazer a paz quando se descobre que esta guerra é um
mal maior que os bens que a motivam.
Na verdade, quando se vai para a guerra quer dizer que a política baseada no
diálogo e na busca de consenso falhou, que, de certa maneira, a filosofia falhou.
Caucionar ou justificar guerras, muitas vezes com interesses duvidosos, é para a
filosofia falhar uma segunda vez; é sair do seu campo e optar por uma postura
maquiavélica de conselheiro do príncipe, independentemente do nome, da forma ou da
postura que, com a evolução dos tempos, esse príncipe ou esse conselho tome.
No impasse a que assistimos hoje entre verdades absolutas contrapostas, o papel
da filosofia é procurar as condições que podem levar à plataforma de entendimento. Se
a filosofia e o filósofo pautam por um não-alinhamento de princípio, as controvérsias
entre partes podem ser encaradas como o substrato a partir do qual têm que ser
procuradas as possibilidades e as condições do diálogo.
Quando os participantes se interrogam quanto à validade das normas jurídicas
internacionais, a justiça que rege a relação entre os povos, a moralidade dos meios
usados na resolução dos diferendos, está a surgir no horizonte uma questão filosófica.
Se há contradições de carácter religioso sobre a liberdade, a representação, a justiça,
estamos claramente no mesmo campo.
A função da filosofia é ainda mais importante e pertinente, quando as partes não
têm uma base comum a partir da qual a conversa se possa engodar. Cabe à filosofia
encontrar a mesa a partir da qual as partes se podem encontrar e dialogar. Mas para isso,
não se pode confundir com politiquices, com manipulações mediáticas, nem sequer se
pode reduzir a uma espécie de apologia nacionalista ou civilizacional que é sempre
tendenciosa e parcial.

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Levanta-se aqui a questão de saber se todas as posições e opiniões têm o mesmo
valor e se devem ser respeitadas em nome da tolerância, quer elas sejam pessoais quer
partilhadas pela maioria na sociedade, ou opinião pública.
Em si, todas as opiniões têm que ser consideradas. Diz a célebre frase de
Voltaire, “eu não estou de acordo com o que tu dizes, mas lutarei para que possas dar a
tua opinião”. Aliás, a liberdade de opinião é um dos pilares da Declaração dos Direitos
Humanos. Porém, convencionemos que a liberdade de opinião deve ser garantida a
todos, na condição que os que beneficiam dela não a utilizem para prejudicar a
liberdade dos outros. Isto é, que não se use a tolerância para aniquilar a tolerância.
A livre opinião não pode ser travada, mas não se tem necessariamente que
respeitar o que não podemos impedir. Uma opinião, para ser respeitada, tem que ser
respeitável. Mas a quem cabe decidir sobre a respeitabilidade de uma opinião?
Apesar de ela se querer dar uma imagem do saber de uma maneira
filosoficamente rigorosa, a opinião é um juízo que não surge do conhecimento nem
necessariamente do sistema de valores que a engendrou; ela não tem nenhum
fundamento rigoroso e verificável. Toda a opinião é duvidosa e sujeita a erros e até pode
ser perigosa, uma vez que tenta impor-se como legítima e verdadeira, quando, na
verdade, não se fundamenta sobre nada de concreto.
Mas o que levanta problemas não é a opinião em si mesma. Cada um é livre de
pensar o que quer, desde que isso não extravase o espaço privado. Porém, quando acede
à esfera pública, quando é partilhada, proclamada e, às vezes, defendida, ela transforma-
se: de conceptual, torna-se concreta e até mesmo alienante para aqueles que são
expostos a ela. Com isso, ela pode até transformar-se na negação de opiniões contrárias.
Assim, a própria opinião pública tornar-se numa espécie de intolerância.
A questão é então saber o que leva certos homens, grupos, comunidades a
enveredarem por opiniões e atitudes intoleráveis e inaceitáveis como assassinatos,
bombas humanas, ataques a lugares públicos e outros? Alguns padecem de demências
que os psicólogos chamariam de esquizofrenia ou paranóia. Outros, de fanatismos
dogmáticos de origem religiosa, política ou ideológica. Porém, não se pode generalizar
e etiquetá-los todos com o estigma, é necessário ouvir seriamente as suas razões. Para
isso, o pensamento moçambicano propõe uma dupla atitude: desarmar as mentes (José
Castiano) e apagar as minhas luzes para bem perceber as luzes do outro (Mia Couto).
Alguns “terroristas lúcidos, como Amílcar Cabral, defendiam que as suas lutas
visaram a conquista da paz, o progresso e a felicidade dos povos. Outros, como

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Mandela, lutavam pela igualdade de todos os homens. Arafat pela justiça. Com que
argumentos morais alguém se oporia a um tal programa, a ponto de levar a que os seus
defensores se vejam forçados a recorrer a meios de terror para concretizá-los?
É necessário verificar se certas práticas de descriminação, exploração, injustiça
são ou não propensas a levar homens e grupos ao desespero e depois à intolerância. A
tolerância não pode conviver com a indiferença sobre a vida e a sorte dos outros, o que é
uma outra forma da intolerância.
Então, contentar-se em eliminar ou combater esta, sem se preocupar com as
causas, não é compreender o fundo da questão e resolvê-lo. Não serão os conflitos de
hoje a continuação e o resultado das injustiças seculares que permitem em contra-
distinguir a relação entre os povos? Aqui surge a questão da responsabilidade directa ou
indirecta dos conflitos em causa, responsabilidade daqueles que escondem bombas em
espaços públicos ou se fazem explodir sobre populações civis, provocam novas
vinganças e alimentam o ciclo infernal da violência.
Quem teria de prestar contas pelas crianças mortas em Bagdad e em Paris? Pelas
vidas destruídas em Madrid e em Damasco? Pelas infra-estruturas arrasadas em
Benghazi e Nova Iorque?
A consciência civil, em função da qual somos obrigados a reparar os danos
causados a terceiros) dita que cada homem que comete um erro tem a obrigação de
repará-lo. Porém, a universalidade deste princípio é enganadora. Com efeito, esta
disposição é construída sobre a oposição entre a ideia de causa e a de erro: só são
reparáveis os danos causados pelo homem e ainda é necessário que sejam devidos a um
erro. Isto adopta não o ponto de vista da vítima que se deveria socorrer mas o do autor
do dano.
Não há responsabilidade sem erro. A filosofia subjacente ao direito celebra as
núpcias da moral com este. Tal casamento impediu, durante muito tempo, de se pensar
na culpabilidade do Estado. O soberano, por princípio, não poderia cometer um erro já
que é ele quem faz as leis. Só um funcionário pode cometê-lo e só na medida em que sai
fora das suas funções.
Nos últimos anos, assiste-se a um divórcio progressivo entre o erro e o direito. A
razão deste divórcio reside na realidade dos acidentes (de trabalho). Descobre-se que a
vida moderna é repleta de desastres que não se podem imputar aos seus autores sem se
cometer injustiça A solução foi encontrada na noção do risco proveniente do corpo de
seguros: os acidentes têm de ser pensados não como erros mas como riscos ligados a

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uma actividade. As actividades industriais, que beneficiam a todos, não se podem
realizar sem os danos a que os riscos estão associados. O acento vem assim transferido
da sanção do culpado para a reparação à vítima. As técnicas das seguradoras tomam a
dianteira sobre os procedimentos judiciários e as actividades militares ganham
cobertura.
Esta filosofia do risco inspira hoje os direitos sobre a responsabilidade
administrativa, a globalização da violência e da guerra. Aliás, ela revela as
particularidades dos conflitos hodiernos que – apesar de usarem instrumentos
avançados, tanques, aviões, bombas, minas, mísseis - agora estão em voga os drones - e
talvez por isso provocam desastres colaterais inauditos: morte de milhares de inocentes,
destruição de escolas, hospitais, infra-estruturas, sem comparação com as pretéritas
guerras chamadas convencionais.
A ideia de inocentes é também problemática na medida em que parece legitimar,
ou pelo menos justificar a morte de militares, de pessoas fardadas. Isso seria omitir que
muitos dos jovens fardados foram obrigados a alistar-se por mobilizações obrigatórias
uns, outros, como último recurso para a sobrevivência, e ainda os que, forçados por
regimes totalitários, sequestrados e obrigados à força, não tiveram alternativa. Este foi o
caso de muitos jovens durante a guerra dos dezasseis anos (e das duas de Muxúngue)
em Moçambique. Mas ainda há os que, manipulados por ideologias ou fanatizados por
um nacionalismo exacerbado, como foi o caso de muitos jovens americanos depois do
11 de Setembro, marcham inocentemente para a carnificina.
A função do Estado é a busca do bem comum e a protecção dos seus cidadãos.
No exercício desta nobre missão, muitos podem ser sacrificados ou sofrer danos, como
sucede, por exemplo, nos casos de guerra. Se o bem comum não pode ser alcançado sem
os danos colaterais que lhe são associados, incumbe ao Estado organizar uma
compensação, não porque tenha cometido algum erro, mas porque é o garante da
solidariedade nacional. Quando, porém, esses danos são causados a outros povos ou a
cidadãos de outras nações, a responsabilidade cabe a quem?
As consequências disto são enormes. Ligam-se à aceitação do risco e à
capacidade de indemnizar. Aos militares, já que se tornaram assalariados,
(mercenários), o contrato prevê e compreende os riscos e até a morte. Então,
contrariamente à posição de Mandela e Tutu durante o processo de reconciliação na
África do Sul, a vida humana tem um preço, e os juízes o direito de estabelecer o
montante do custo dela.

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Quanto mais aumentam as exigências da reparação, mais diminui a penalização
dos mesmos factos. Assim se consuma o divórcio entre a responsabilidade e a
culpabilidade. Pode se então ser responsável sem que isso implique o reconhecimento
do erro. George Bush é responsável pela carnificina do Iraque? Sim, mas não é culpado.
Tony Blair pode reconhecer o seu erro, mas isso não o transforma em culpado da morte
de milhares de homens, mulheres e crianças, da destruição de um país e do nascimento
de uma guerra civil e religiosa que dura já há anos. Tratou-se, dizem, simplesmente de
um erro de cálculo. Guebuza é responsável do início da terceira guerra civil? Sim, mas
também não é culpado.
Para os homens do poder, a amnésia coincide com a ascensão: quanto mais alto
sobem, mais a imunidade lhes é garantida. Quando fazem o mea culpa, não estão a
reconhecer nenhuma responsabilidade. Neste prisma de impunidade é até honroso
exprimir a sua contrição, pois isso se traduz num sentimento de nobreza. Por isso, não
há responsável político que se preze que não reconheça os seus erros e, em acréscimo,
não denuncie as atrocidades do passado: “o nunca mais isto” da Europa depois da
segunda guerra, as desculpas pelo passado esclavagista de Clinton em Durban ou o
pedido de desculpas do Papa João Paulo II nos EUA por conta dos abusos sexuais do
clero, o arrependimento pelos erros de cálculo no Médio Oriente de Tony Blair ou,
recentemente, o pedido de desculpas de Obama nas cidades do Japão.
Nesse mesmo prisma, os monumentos de memória pululam pelas cidades:
museus da Shoah em Berlim, muro das lamentações em Israel, museu de genocídio no
Ruanda, Museu do Apartheid em Joanesburgo ou monumento da invasão da RSA do
apartheid na Cidade da Matola, ao mesmo tempo que os cemitérios continuam a encher-
se de vítimas inocentes.
Como dizia Hannah Arendt, é quase agradável sentir-se culpado quando não se
fez nada. Este arrependimento histórico e não freudiano apresenta-se, implicitamente,
como uma lição que se dá à geração precedente, da qual se assume por procuração o
mea culpa, nunca pronunciado. Quando um governo faz acto de arrependimento, ele age
como se fosse possível responder colectivamente aos erros da geração precedente só
quando ela desapareceu. De que é que se arrepende? Dos actos cometidos por outros há
um século? Ou da impunidade que lhes foi oferecida colectivamente?
Nietzsche reflecte, a partir da palavra alemã Schuld, culpa, que compreende ao
mesmo tempo o erro e a responsabilidade. Esta palavra tem um sentido literal que

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reenvia a uma esfera jurídica. Schuld é a dívida, o empréstimo contraído contra a
promessa de o devolver.
O conceito de erro tem a sua aplicação na esfera do direito contratual. Aquele
que pede emprestado deve ao credor; esta dívida é de sua responsabilidade, da qual ele
se torna garante e por causa da qual ele deve responder. A schuld é algo que devemos
reter no presente para restituir no futuro. As noções que vêm colorir a consciência de ter
que prestar contas, as noções do bem e do mal sobrepõem-se do ponto de vista jurídico
pois a responsabilidade passa a constituir uma categoria do direito de obrigação.
Da ideia da dívida, como significante do erro moral, resulta a de uma
compensação, caução ou garantia oferecida em penhor para responder à sua fiabilidade.
Damos a nossa cabeça a cortar quando apostamos ou prometemos. Então, não basta
pedir perdão. O conceito de contrição encerra em si a necessidade de reparação, explica
as reticências de certos ofendidos em perdoar; serve para recordar a vigilância
necessária da nossa humanidade e o perigo constante da tragédia do irreparável. É talvez
também esse o dever da memória que não pode ser um simples ritual concordado. Por
outro lado, o arrependimento só têm sentido e é útil se incorpora a culpabilidade para
que esses actos não se repitam.
A ideia de risco implica a de responsabilidade daquele que o fez correr aos
outros. Neste sentido, Blair e Bush deveriam ser responsabilizados, em primeiro lugar,
pelos riscos que fizeram correr aos seus próprios concidadãos e correlativamente a
outros.
A ideia da fatalidade não desculpa nada, não inocenta ninguém. Hoje, com o
princípio de precaução (Hans Jonas), exige-se a discriminação entre os riscos aceitáveis
e os não aceitáveis, o que tem a ver com o problema da decisão e, por consequência,
com a responsabilidade. Porém, isto pode também esconder uma ratoeira perigosa e
mesmo maquiavélica. A lógica actual é: se fosse enviada a infantaria na invasão à
cidade (Iraque ou Siria), evitar-se-ia a morte de muitos inocentes, a destruição de outros
e a guerra terminaria mais depressa; mas o risco é que soldados nossos morreriam.
Então, enviam-se drones que vão “metralhar” cidades, matar inocentes, prolongar os
conflitos. Ou seja, a precaução nacional compreende a destruição dos outros como risco
necessário e inevitável. Não é uma nova forma de criar desigualdade quanto ao valor da
vida humana?
Por outro lado, este tipo de lógica provoca o ódio e torna radicais aqueles que
viram os seus pais e irmãos morrer sem culpa. Pior, muitas vezes, esses mesmos pais e

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irmãos sucumbiram outrora à tirania de regimes ditatoriais. Como fazer que essa
geração distinga entre as balas dos ditadores e os bombardeamentos dos democratas?
Como evitar o círculo vicioso do terror?

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4. POR UMA EPISTEMOLOGIA ARQUITETA

Para Beck, a sociedade ocidental não se limita a produzir riscos, fabrica também
a argumentação sobre eles. Isto quer dizer que a própria ciência não é neutra. O FMI e o
BM fazem análises económicas muito sérias, só que elas beneficiam sempre e
constantemente os países financiadores do sistema e provocam autênticos desastres
sociais nos outros. Exemplo: a ordem da privatização da indústria do caju em
Moçambique.
O essencial das nossas produções científicas depende do Ocidente, nos métodos,
nas epistemologias e até mesmo nos programas de investigação. Quando o que está na
moda é o género, as nossas Universidades viram-se para o género, quando são os
direitos humanos, a ecologia, o bio fazemos o mesmo. Isto não é só devido aos
financiamentos para a investigação e aos meetings internacionais em que as nossas
propostas e presença são aprovadas pelo facto de se adequarem aos interesses e ao
espirito da conferência, mas também a uma certa incapacidade de ter projectos e
programas auto-centrados.
Apesar dos esforços levados a cabo há décadas pelo CODERSIA o essencial das
investigações africanas não tem nenhuma autonomia nem epistémica nem de orientação.
Não se trata de defesa ou apologia de uma pretensa ciência africana que deveria
ser dissociada da que é praticada por outros. Existem dimensões universais em termos
epistémicos, como defende Bachelard, mas os problemas – e as perspectivas – de que a
ciência trata são ou podem ser diversos, o que deveria levar a outras orientações. O
mesmo aconteceu com a produção de métodos de leitura e de interpretação susceptíveis
de iluminar os problemas e procurar soluções adequadas. Em breve, se continuarmos a
nos contentar em conhecer Bourdieu, Boudon, Elias para fazermos a análise social do
nosso país e continente, corremos o risco de ficarmos aquém da realidade.
Hoje mais do que nunca, não só pela dimensão dos processos, mas pelos
discursos e vias de comunicação que o facilitam, começou-se a falar cada vez mais da
era global (McLuhan): agir localmente para que a acção tenha um impacto global,
invenções locais com impacto global.
Os filósofos têm que pensar no homem em geral por isso na dimensão do global.
Mas estudos recentes têm demonstrado a impossibilidade de conceber qualquer global

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sem uma plataforma subjacente antropológica, social, linguística num lugar concreto,
num local.
Aliás a história da filosofia é repassada desta dialética (muitas vezes confusão)
entre as duas dimensões. De um lado, fala-se do homem, da sua dignidade e até mesmo
dos seus direitos, do outro, muitas filosofias limitam-se ao local, ao circunstancial,
ignorando o homem (global).
Na esteira de Leibniz, a filosofia, se quer manter-se fiel à sua vocação, não pode
ignorar as linguagens através das quais os homens dão razão à existência. O avanço das
disciplinas heurísticas permite saber que esse homem já não pode ser abstracto mas tem
conotações humanas precisas. Não se trata de pensamento fraco, pós moderno que
abdicaria do universal, de que a filosofia sempre se reclamou, a favor de um relativismo
cultural, mas de re-mobilizar as linguagens, os saberes e as epistemologias que o
universalismo etno-centrado tinha historicamente descartado. Sobretudo pensar na
aventura universal da humanidade a partir dos lugares onde se digladiam os principais
valores com ferocidade, drama e sangue.
O desafio, que temos pela frente, é de dupla valência : catapultarmos a nossa
relação com o mundo e transformarmo-nos em importadores de benesses e não de
riscos. Para tal, é necessário sermos criativos na produção, nas invenções locais
susceptíveis de impacto global.
Do ponto de vista epistemológico, trata-se de deixarmos de ser importadores dos
discursos para aprender uma leitura social nossa e autónoma. Isso exige uma avaliação
crítica dos pressupostos teóricos a partir dos quais, os nossos discursos, isto é, a nossa
ciência, se fundam. Não estou a apostar numa teoria afrocêntrica que se oporia ao
eurocentrismo que tem caracterizado todo o período moderno.
Também não estou a defender a existência de uma epistemologia do sul, filha de
um pós-modernismo que acarreta consigo o perigo do relativismo cultural. Com efeito,
a teoria de um pensamento fraco defendida por Vattimo e Romitti, na revista Il Pensiero
Debole, apesar das boas intenções que parece compreender, dar espaço às expressões e
saberes que a modernidade no seu ímpeto universalista tinha marginalizado, contém ela
também o perigo do relativismo.
Não me refiro a uma defesa desenfreada dos saberes locais, se são entendidos,
como a criação de uma museografia que exibiria os saberes africanos num contexto em
que eles são passados e ultrapassados. Os saberes locais só têm sentido na medida em
que forem mobilizáveis para fazer face e solucionar os problemas do presente. Por

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exemplo, no campo do direito. Enquanto o positivo tem tendência a dividir, a maneira
como o direito consuetudinário é praticado, pode recriar as relações sociais. O exemplo
próximo é da comissão de reconciliação da Africa do Sul ou ainda do Ruanda.
Há alguns anos atrás, quando ia dar aulas na defunta UFICS, entrava na UEM
pela avenida Julius Nyerere onde estavam em construção as embaixadas da Alemanha e
da China. Os trabalhadores não sabiam o que estavam a construir, nem em termos de
função ainda menos de arquitectura. Eles eram simples pedreiros que metiam os blocos
e o cimento lá onde lhes era indicado. O único que sabia o que se estava a construir era
o arquitecto. A ciência como a temos praticado parece-se muito com os pedreiros. Os
pressupostos teóricos, os paradigmas de análise e de interpretação, os postulados são
sempre buscados no exterior, esquecendo que elas são resultado da maneira como uma
determinada sociedade olha para os problemas com que está confrontado.
Algumas das aplicações acríticas destas teorias às nossas realidades, deformam a
compreensão e até falsificam a própria realidade. Como diz Derrida, o filósofo (que
para ele não devia ter passaporte) faz discursos universais, mas ele parte de uma
realidade concreta, exprime-se numa língua, numa linguagem. Então, o desafio
epistemológico que temos pela frente, é deixarmos de ser pedreiros para nos
transformarmos em arquitectos. A inserção disciplinar não quer dizer uniformismo
epistémico mas também descontinuidade. Aliás, o progresso das ciências e do saber
estão intrinsecamente ligados a esta descontinuidade…
Depois do processo de massificação, necessário, nas nossas instituições de
ensino, urge que pautemos por uma formação capaz de fazer de nós produtores e não
simples consumidores, difusores do saber, mas maus intérpretes da realidade social ou
com pouco ou quase nenhuma atinência à realidade. Os exemplos mais evidentes disso
estão na agricultura e na arquitectura …

Contudo, como a biologia estuda a vida, e a antropologia o homem, doravante o


risco guerra tem também a sua ciência específica: a Polémologia. Segundo Gaston
Bouthoul (Magazine Littèraire, 1979), iniciador desta ciência, a Polémologia estuda não
só os aspectos múltiplos, as motivações e a periodicidade dos conflitos armados, mas
também as relações que a violência, em todas as suas formas, entretém desde sempre
com a vida humana. Trata-se de averiguar a função que a guerra desempenha, as suas
múltiplas aparências, os factores que a regem: da parte da economia, da biologia, da
agressividade individual e colectiva, da demografia, do espaço, da comunicação, etc.

47
Para Gaston Bouthoul, a sociedade sem conflito, na qual alguns vêem o modelo
da paz ideal, só existe nos cemitérios. O casal guerra-paz, com as suas múltiplas
passagens e alternâncias, constitui um facto social ainda enigmático. Por isso, não se
pode direccionar o olhar unicamente para a paz ignorando a guerra, deve-se olhá-los
como complementares e esclarecedoras uma da outra.
As investigações sobre as causas complexas da paz e da guerra, sobre a sua
alternância na história, levam Bouthoul a interrogar-se se a paz seria o estádio normal
da sociedade ou se o homem é o lobo hobbesiano que devora o outro homem.
Freud opunha o Thanatos – instinto de morte e pulsão destruidora – ao Eros. O
Thanatos que culmina no homicídio e as pulsões suicidárias, maiores manifestações da
agressividade, são comuns a todas as sociedades? O mesmo Freud insistia no carácter
essencialmente conflitual do homem. Apoiando-se na biologia da comunicação, a
polemologia tenta avaliar se o bombardear de informações, de valores e crenças
contraditórias a que estamos sujeitos não multiplica as ocasiões de desacordo, de
competição e de revindicações.

A polemologia estuda a paz como uma cura ou uma imunização mais ou menos
durável contra as crises da violência colectiva; a maneira como a paz pode ser
construída como higiene preventiva. Mas o objectivo final é entrever modelos de
sociedade bellifuges, isto é, mais ou menos imunizadas contra a violência colectiva e
cujos conflitos não degenerem em hostilidades armadas e sangrentas.
Do ponto de vista metodológico, não se trata de buscar uma definição da guerra
baseada em critérios científicos incontestáveis, que excluam todos os preconceitos
éticos ou ideológicos, mas de criar barómetros que permitam detectar a aproximação
das guerras, a analisar os seus sintomas, procurar todos os indícios de eventuais
beligerâncias, estudar os processos através dos quais a paz encoberta as guerras.
A complexidade das noções de violência e de conflito requerem da polemologia
o uso acentuado da interdisciplinaridade. Assim, ela mobiliza saberes da psicologia
social, da psicanálise, da etnologia, da filosofia, da demografia, da biologia, da
economia (...). Neste trabalho, vamo-nos centrar sobre três saberes disciplinares, mas
nas suas manipulações cientistas para justificar as guerras de hoje: o uso social da
biologia, o uso político das religiões, o uso ideológico da filosofia.

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5. O USO SOCIAL DA BIOLOGIA

São raros os exemplos de uma teoria científica que tenha atravessado


rapidamente as fronteiras disciplinares e tido tão grande impacto, nas ciências naturais e
nas sociais e humanas, como foi a da “origem das espécies” (1860) de Charles Darwin.
Esta teoria triunfa ainda hoje entre os biólogos oferecendo um rico caminho explicativo
que liga as investigações desde a perspectiva hereditária até ao desenvolvimento do
sistema nervoso, passando pela origem do homem, do ambiente e, até do
comportamento animal.
Não obstante, a sua recepção fora do campo das ciências biológicas é deveras
ambígua. De um lado, ela continua a esbarrar com a oposição dos criacionistas; do
outro, a sua instrumentalização ideológica e o seu uso por parte de certas correntes da
economia, da política, e até a criação de paradigmas anti-filosóficos de defesa e
justificação de desigualdades, incluindo a da violência ou mesmo a da guerra, provocam
vivas controvérsias.
Com efeito, a essência de uma ideologia social com fundamentação científica é
contaminar diferentes ordens do discurso. O Darwinismo revela-se traduzível em
diferentes idiomas sociopolíticos e oferece uma língua franca versátil capaz de exprimir
uma variedade quase infinita de opiniões sobre sujeitos públicos. O darwinismo,
prolongamento do esforço teórico de Darwin, não é social.
O naturalista inglês ocupa-se de animais e plantas de corais, de flora útil ao
homem, da domesticação das plantas úteis ao homem, da origem das espécies na
natureza em analogia com a domesticação (selecção artificial), da herança zoológica da
espécie humana (a descendência do homem); mas não se ocupa do homem. Por isso, é
legítimo interrogar-se quanto ao bem fundado do uso social dos seus enunciados.
A teoria de Darwin foi muitas vezes mal interpretada e conduzida a apresentar a
selecção natural como a simples sobrevivência dos mais fortes. Esta formulação
simplista pode dar caução a derivas, como o darwinismo social.
Ora, este compreende dois períodos: primeiro, a racionalização – explicação e
justificação – do individualismo liberal  marcado pela concorrência e pela vitória dos
melhores. Depois de 1900, dominou uma visão colectivista, na qual a competição
opunha classes, nações ou raças e valida a colonização, o imperialismo e o eugenismo.

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Os primeiros autores a usarem socialmente o darwinismo foram os cientistas e
os intelectuais liberais empenhados em fazer reconhecer o lugar da ciência no progresso
da civilização. Em controvérsias sobre o sucesso da revolução industrial, eles utilizaram
o darwinismo para legitimar as desigualdades, a concorrência económica e para
defender o nacionalismo. Em 1862, J. D. Hooker usa a selecção natural para sustentar as
suas teses antidemocráticas. Ele afirma que o governo deve ser de um indivíduo, de uma
família ou de uma classe senão a selecção natural é falsa. Antes dele, Thomas Huxley
em 1860, tinha-se congratulado que o darwinismo assegurasse a dominação da ciência
sobre as regiões de pensamento nas quais ela não tinha ainda entrado.
Nos Estados Unidos, o darwinismo social emerge no período pós-guerra de
secessão, na qual o norte puritano e industrial tinha ganho contra o sul rural e
esclavagista. O tipo de homem forte, o mais apto na luta pela existência, é o homem do
norte, industrial, ecónomo, piedoso, que conta consigo mesmo para triunfar na vida.
Segundo William Graham Sumner, a alternativa é: liberdade, igualdade, sobrevivência
dos mais aptos; ausência de liberdade, de igualdade, sobrevivência dos menos aptos. A
primeira fórmula faz avançar a sociedade e favorece os membros mais dotados; a
segunda fá-la regredir e favorece os mais atrasados.
O darwinismo de Sumner é-lhe inspirado, não tanto pela Origem das Espécies
quanto pelas leituras de Malthus e Ricardo, que o convencem de que a caridade pública
ou privada não pode reduzir o número dos indigentes, mas pode encorajar a
imprevidência. Neste espírito, ele publica uma obra polémica contra o reformismo, o
estatismo e o socialismo que, na verdade, é uma amálgama de ideias económicas e
evolucionistas inspiradas em Haeckel, Huxley e, sobretudo, em Herbert Spencer.
De Malthus, ele retira a ideia da proporção da população humana versus terra
arável. Se a população ultrapassa em número a quantidade disponível de recursos
alimentares haverá fome, emigração, militarismo e imperialismo. Ele conclui pela
necessidade de privilegiar a mentalidade capitalista a qual considera a previdência face
às dificuldades da vida: é a posse de um capital que favorece, na luta pela vida, os que
poupam em relação aos imprevidentes.
A voga do darwinismo, na América puritana, confunde-se com o fervor das teses
evolucionistas, antes refutadas como ateísmo e depois introduzidas sob forma de
filosofia científica em geral e sociológica em particular (A. Comte, H. Spencer). Assim,
o conservador Sumner junta-se aos que contestam a dependência do homem a uma
providência divina ou do desígnio que os ferrenhos do criacionismo defendem contra

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toda a forma de filosofia da evolução. Assim, o darwiniano social, na América da guerra
de secessão, confunde-se com o esforço de fundar uma sociologia científica de
inspiração spenceriana, que precede a obra de Darwin.
Herbert Spencer, muito popular na América de então, apresenta uma síntese
enciclopédica de todas as ciências sob inspiração evolucionista e social. Ele partilha
com Sumner uma concepção liberal e anti-estatal da economia.
Desde Bentham, os utilitaristas acreditavam numa legislação social e nas
reformas. Spencer prefere a doutrina do direito natural, agente da supremacia dos
melhores e em conformidade com o optimismo evolucionista: progresso do inferior ao
superior. Ele é hostil às leis sobre a pobreza, a educação pública, a higiene, as
regulamentações e protecções que, a seu ver, vão contra a primazia da iniciativa
individual. Em 1851, opõe-se à legislação do Estado (social statics) que protege os que
a competição elimina em nome de um progresso superior.
É a ideologia americana da liberdade e do sucesso individual que se embrulha na
bandeira darwiniana. Explicar a história pela luta pela existência permite justificar a
vitória da burguesia e as desigualdades sociais
Contudo, o ponto de chegada do darwinismo social é sem dúvida a
sociobiologia, disciplina promovida principalmente pelo professor Edward O. Wilson
(1975) e que se define como o estudo das sociedades animais e humanas através dos
utensílios da biologia, ou mais exactamente, da teoria da evolução.
Apoiando-se na teoria da evolução, na genética, na etologia e na ecologia,
Wilson formula um conjunto de princípios capazes de fundar uma ciência geral do
comportamento não só animal, mas também humano. Aliás, todos os esquemas
formulados sobre os animais não humanos eram, para ele, aplicáveis ao homem.
A história da vida é assim a história de uma longa competição: os indivíduos
mais bem adaptados sobrevivem, enquanto os outros desaparecem. O que joga um papel
determinante é a capacidade de reprodução.
Compreender a história da vida é compreender esta longa luta pela reprodução.
Os autores principais são os genes (determinismo genético, predisposição genética).
Mas os genes são egoístas e só pensam em sobreviver e em multiplicar-se o mais
possível. Explicar um comportamento humano significa descobrir a estratégia genética a
que corresponde (DAWKINS, 1978). Por exemplo, e como o diz o próprio Wilson, a
xenofobia pode ter uma utilidade biológica, enquanto meio através do qual os

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portadores de certos genes se defendem de outros. Assim, o racismo ganha uma nova
justificação.
Mas Wilson e a sociobiologia pretendem também determinar o bem e o mal;
querem dar critérios para uma planificação social, o que os leva a preconizar o
eugenismo e aplicar a engenharia genética para resolver diferentes questões. Pierre-P.
Grassé não hesita em falar de uma sociobiologia nazista e americana, (MICHEL 1980).
Por exemplo, se na origem da deterioração das condições de vida de uma sociedade está
uma raça, porque não eliminar os seus membros por eutanásia ou a esterilização?
Wilson é formal, contrariamente ao que pensava Durkheim os fenómenos sociais
não têm nenhuma autonomia, nenhum dinamismo próprio. Como o justo, o social é
totalmente reduzível ao biológico. A sociedade resulta de uma soma de comportamentos
sociais, geneticamente condicionados. Por conseguinte, os peritos de genes são os
melhores intérpretes em matéria de história e sobretudo em matéria de política.
No plano ético, graças ao neo-darwinismo, à genética e à etologia, os
sociobiologistas podem formular os bons e verdadeiros ideais, pois eles são os únicos
que conhecem os comportamentos normais e podem, por conseguinte, definir as normas
às quais devemos obedecer. Como diz Wilson, a biologia é a chave.
As ciências humanas deixam de ter direito à palavra, pelo menos até que não
ajustem os seus procedimentos epistémicos à nova síntese. Em todo o caso, todas as
instâncias socioculturais são recusadas: as religiões, as sabedorias tradicionais, a
filosofia e as artes. Só sobrevivem os peritos em genes e os (reconvertidos) neófitos. Por
exemplo, os etnólogos já se puseram a trabalhar no quadro da sociobiologia e os bio-
economistas conseguiram demonstrar que o liberalismo é totalmente superior ao
socialismo...
A sociobiologia não é uma empresa cognitiva a ser julgada só com os cânones
do método experimental, mas apresenta-se também como uma doutrina, uma filosofia
moral e política, apesar de Wilson preferir a expressão de materialismo científico para
falar das diferentes mensagens ideológicas que difunde.
Admitindo que a sociobiologia seja uma ciência válida, dá-lhe isso o direito de
nos ditar um novo código ético e político? O que está em causa aqui, é o estatuto do
homem como sujeito moral e actor histórico.
A teoria da evolução oferece um quadro conceptual rigoroso para explicar a
evolução da diversidade humana. Porém, é importante ter presente que, de um lado, a

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evolução não tende à direcção de um ideal e, do outro, que a selecção natural não é
direccional invariante.
A sociobiologia não se interessa directamente pelos genes, mas pelos
comportamentos sociais. Isto levanta a questão do determinismo genético. Nos animais,
está estabelecido que ele é geralmente uma muito importante explicação. Mas pode o
comportamento social do homem ser visto e interpretado da mesma maneira que o dos
macacos ou das térmites? Aliás, a correspondência directa entre a genética e o
comportamento só muito raramente pode ser evidenciado.
A teoria da evolução permite, de facto, compreender muitos aspectos do
funcionamento das sociedades animais, por isso, a sociobiologia oferece conceitos úteis
para estudar sistemas gregários. Porém, existem muitas dúvidas quanto à sua
aplicabilidade no homem. Este animal distingue-se de todos os outros pelo seu domínio
da linguagem simbólica. A espécie humana é única na capacidade de aprendizagem e de
transmissão de informações.
A primeira objecção frequentemente avançada para refutar qualquer base
genética do comportamento humano é que a sociedade natural não seria operante hoje,
numa cidade, devido ao uso da ciência e da técnica. Outra objecção funda-se na grande
capacidade de aprendizagem do homem que lhe permite neutralizar muitos efeitos da
natureza. Contrariamente aos genes, os traços culturais que compreendem, entre outros,
as tradições, as religiões, os teoremas matemáticos podem ser transmitidos, não só
verticalmente de pai para o filho, mas também horizontalmente, entre indivíduos da
mesma geração. Esta transmissão horizontal permite o difundir de ideias muito mais
rápido do que pelos genes.
O debate sobre a importância relativa do elemento cultural e o genético no
comportamento humano suscita grandes controvérsias – com implicações sociais e
políticas – e desaguam, muitas vezes, em disputas ideológicas.
Diferentes especialistas concordam com a existência de interacções entre a
genética e as culturas. Porém, qualquer que seja a influência de factores genéticos, o
meio social continua sendo um factor primordial na influência e no desenvolvimento
dos seres humanos. Quaisquer que sejam os papéis dos factores genéticos, eles não
justificam, de nenhuma maneira, um comportamento, uma ideologia ou um costume. As
diferentes culturas não têm uma base genética e não existe nenhuma lei natural capaz de
dar directivas éticas ao homem.

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As ideologias biológicas ocupam, na história, um lugar particular, graças à
sinistra iluminação retrospectiva que os processos da dizimação dos índios, a
escravatura dos negros, o nazismo, o apartheid dão sobre o direito dos mais fortes,
fundado sobre a supremacia da raça.
Darwin postula uma natureza desprovida de toda e qualquer finalidade interna
ou de tendência ao progresso, deixando o acaso de combinações aleatórias decidir pela
sobrevivência e a reprodução. Mesmo se ela estabelece a sua validade no domínio da
história dos seres vivos, a teoria darwinista confronta-se indirectamente com questões
tão fundamentais como o sistema da natureza, o lugar de Deus e a essência do homem.
Nem ordem espontânea, nem arranjo planificado, nem previdência protetora. A
selecção natural anuncia um novo paradigma: a vida não tem significado, o homem já
não é aquele ser único, dono do seu destino graças à sua aproximação com o divino.
Para Nietzsche, pôr o homem no lugar de Deus ou a ciência no lugar da religião
poderia provocar a perda do sentido e com isso a emergência do mais inquietante dos
hóspedes, o niilismo: sucessão de rupturas, de destruições, de declínios.
Assim, no homem – submetido às mesmas leis naturais que os animais – as
guerras decorrem de uma lei natural, trata-se de um regulador do equilíbrio entre as
espécies. Nada de estranho que o darwinismo social seja utilizado como ideologia ou
apologia da força. Foi o que fez a Inglaterra no quadro das guerras coloniais. Mas a
pergunta mais pertinente e actual é: qual é o peso da sociobiologia na explicação das
guerras actuais?

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6. O USO POLITICO DAS RELIGIÕES

Os homens podem por eles próprios, chegar a uma compreensão do mundo que
os circunda e melhorar as suas condições sociais e culturais. Desde o século XVIII,
pensadores e revolucionários, uns depois de outros, afirmaram que o mundo estava em
progresso; os homens mais bem informados; os seus esforços e trabalho iriam
necessariamente trazer a prosperidade. No fundo, a biologia evolucionista parecia
confirmar estas concepções.
O homem moderno, senhor do seu materialismo conquistador, fascinado pela
ciência e pela técnica positivista renitente, certo das suas certezas, já não precisava de
Deus para encontrar a felicidade. A lei dos três estádios de Augusto Comte parecia ter
resolvido definitivamente o problema: a idade teológica, o recurso aos deuses fora a
manifestação da impotência do homem em descortinar os mistérios da natureza. Na era
positiva, ele estabeleceu uma relação inteligente e racional com o seu meio. Neste
sentido, surge o progresso como postulado de uma laicização conseguida do
conhecimento. É a positividade, o desejo declarado de uma inserção do ser num mundo
transparente.
Apesar dos esforços para desconstruir os conceitos herdados de Frazer e
Durkheim e demonstrar, que, ao invés de ser algo aleatório ao homem, o sagrado é um
dos seus ingredientes principais – pense-se nos trabalhos recentes de Mercea Eliade (a
história das religiões) e de René Girard (remodelação da antropologia) – a ideia de uma
emancipação de Deus fez o seu percurso: cada vez menos religião e cada vez mais
progresso, como se a relação entre os dois caminhassem a par e passo, como se o
desenvolvimento das técnicas confirmasse esta metamorfose. O saber tomava assim
prioridade, ascendência, sobre a transcendência, a técnica dominava a selvajaria do
mundo. Morte dos poderes ocultos e entrada em cena de uma racionalidade profana.
Daí, e como reacção, os títulos O retorno do sagrado (Dominique Grisoni), A vingança
de Deus (Gilles Kepel) fizeram história. A guerra de religiões, que na tradição
etnológica simboliza a impotência do homem primitivo em explicar o mundo soa, para
ocidental, a um anacronismo histórico.

Huntington, para o qual a razão histórica diferenciou e criou civilizações


distintas, hoje em conflito, regressa ao criacionismo. Isto é mais claro nos seus

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seguidores e colegas da Universidade de Princeton, os historiadores William Wallace e
Bernard Lewis. Estes retomam as críticas onde Fukuyama as tinha deixado e postulam
uma história futura feita essencialmente de choque de civilizações diferenciadas por
culturas religiosas, como já tinham sugerido Hobbes e Nietzsche.
No essencial, defendem que a divisão entre países pobres e ricos, entre
democracias e regimes totalitários não será decisiva nos conflitos futuros, dado que já
não existe um mundo desenvolvido diferente do mundo comunista e do terceiro mundo.
Os regimes políticos e as questões económicas continuarão a ter um papel, mas serão as
civilizações e os seus eventuais conflitos a dominar a cena mundial. O motivo é
simples: os homens pertencentes a estas diferentes civilizações têm uma visão
divergente da relação entre Deus e o homem, individuo e grupo, cidadão e Estado, pais
e filhos, marido e esposa; assim como da importância relativa dos direitos e das
responsabilidades, da liberdade, da autoridade, da igualdade e da hierarquia. As
diferenças resultam dos processos que se desenrolaram durante séculos e não estão
prestes a desaparecer.
Segundo Wallace, a linha que divide, de maneira mais significativa, a Europa do
Leste da do Oeste poderia ser a fronteira da cristandade ocidental do século XV. Esta
linha passa pelos limites que separam actualmente a Rússia da Finlândia e dos países
bálticos, corta a Bielorrússia e a Ucrânia Oriental Ortodoxa, faz um desvio a Oeste para
isolar a Transilvânia do resto da Roménia e depois atravessa a Jugoslávia seguindo
quase exactamente os limites entre a Croácia e a Eslovénia. Nos Balcãs, esta linha
coincide com a fronteira histórica dos impérios dos Habsburgos e Otomano.
Os povos situados no Norte e no Oeste desta linha são protestantes e católicos.
Percorreram o caminho do feudalismo, do Renascimento, da Reforma, do Iluminismo,
da Revolução Francesa, da Revolução Industrial e querem integrar-se numa economia
europeia. Os do Leste e Sul são ortodoxos e muçulmanos. A rede de veludo cultural
substitui a de ferro, ideológica.
Para Lewis, o conflito entre a civilização ocidental e a islâmica dura já há 1300
anos e é improvável que cesse ou se atenue. Então, aquilo a que assistimos seria o
prolongamento de um conflito secular entre civilizações religiosas. Esta liga-se à tese
popperiana da existência de inimigos da sociedade aberta, isto é, do Ocidente, do seu
modo de vida, dos seus valores. Esta tese é óbvia demais para ser verdadeira. Como
defendia Tocqueville: uma falsa ideia, mas clara e precisa, terá sempre mais poder no
mundo que uma ideia verdadeira mas complexa.

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É de uma evidência à la palisse que o mundo inteiro, no essencial, tende a imitar
o Ocidente ou pelo menos, a seguir os seus traços, sobretudo no âmbito técnico-
científico, o que leva certos intelectualoides a formular questões pedantes: se se pode
pensar fora do Ocidente?
No âmbito político, na democracia e no respeito dos direitos humanos, a questão
é mais problemática. No próprio Ocidente, a democracia – social – está em decadência,
ela é sempre mais aparente do que substancial. A finanço-cracia prevalece sobre a
vontade dos povos. A segunda tragédia da Grécia actual foi esclarecedora: de um lado, o
povo e do outro o dinheiro, representado pelo FMI e pelo ministro alemão das finanças.
Era uma disputa clara entre a democracia e a finanço-cracia. O epílogo foi revelador: o
povo tem sempre razão, na condição de que vote correctamente, e só vota correctamente
quando alinha no primado do dinheiro. Foi o que, em meus trabalhos anteriores, chamei
dólarcracia.
Em África, a presença de peritos internacionais, que viajam de continente a
continente impondo modelos políticos e económicos estandardizados, não está a
resultar. A organização de eleições (livres) às quais se reduziu o modelo democrático,
não trouxe nenhuma estabilidade política, sobretudo porque todo o processo se baseou
só na liberdade negligenciando as questões da igualdade e da justiça.
Por outro lado, a democracia ocidental convive bem com sistemas despóticos,
teocráticos na condição que tais estejam ao seu serviço: dá-se com as tiranias sauditas, a
do Kuwait, dos emirados, como outrora, se entendeu com Mobutu, Smith, Voster e
outros que tais.
Um argumento usado cada vez mais é o do fanatismo religioso. Esta tese não se
pode descartar; aliás, existem provas históricas evidentes: o bispo católico Lefevre
provocou um cisma depois do Concílio Vaticano II porque não podia admitir que negros
fossem consagrados bispos; algumas seitas têm-se notabilizado por suicídios em massa
(People Temple em 1978 em Jonestown, Solar Temple em 1974-97 no Quebec;
Heaven’s Gate 1997 na California; Adam House no Bangladesh); extremistas judeus
(falcões) são de um racismo primário contra os árabes e palestinos; o recente
documentário do realizador Barbet Schroeder exibido no festival de Cannes mostra o
retrato do monge budista, Wirathu, na Birmânia, pregando a eliminação dos
muçulmanos.
Hamed Abdel-Samad fala de um fascismo islâmico, que teria nascido na mesma
época que o italiano e o nacional-socialismo alemão. Para ele, o islamismo radical não é

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uma traição ou perversão recente de uma religião imaculada, mas a tara da sua tradução
para o campo político.
Como para o Islão, também se pode falar de um fascismo cristão, judeu, budista
e a história está repleta de exemplos. Pode-se também falar da tara da tradução do
religioso para o campo político na China com a estatalização de Confúcio, no
cristianismo com a conversão de Constantino no século IV, no judaísmo com o
nascimento do Estado de Israel.
Então a culpa não é da religião, mas do uso político que dela se faz. As razões
dos conflitos não devem ser procuradas nos diferentes credos mas sim, na manipulação
política deles.
De facto, a modernidade não ultrapassou o fenómeno religioso, mas substituiu as
religiões místicas e transcendentais por outras profanas, a começar pela própria ciência
que parte de axiomas não demonstráveis. Em outras palavras, a racionalidade e a ciência
podem ser camuflagem de uma atitude religiosa. O marxismo acreditava-se científico e
isso ajudava-o a camuflar a sua natureza mística e religiosa. O comunismo era uma
religião de natureza terrestre, como o FMI e o BM hoje são instituições místicas,
vocacionadas a salvar as almas.
De certa maneira, esta religiosidade está presente em todas as sociedades; basta
olhar para a solenidade no momento em que se cantam os hinos nacionais, a sacralidade
das bandeiras. O hino deixa de ser uma composição de notas e a bandeira; um tecido.
Quem ousa profanar esses símbolos pode incorrer em sanções graves. A primeira coisa
que se faz quando se odeia um país é queimar a sua bandeira. Isso provoca rancor e
raiva naqueles que se identificam com ela. O que está em causa, aqui, é todo o
simbolismo que lhe atribuímos, isso é que a torna sagrada; isto explica o ataque dos
lugares simbólicos do 11 de Setembro, nos Estados Unidos.
Em suma, o efeito religioso pode-se desenvolver fora das religiões oficiais. O
historiador Toynbee defendia que a nação é um conceito religioso, com os seus cultos,
os seus santos, os seus mártires, os seus sacrifícios, os seus ritos. Durante a guerra fria,
o conflito de interesses territoriais e económicos usou a camuflagem ideológica; hoje
mascara-se de lutas civilizacionais-religiosas.
Existe uma longa história desta manipulação. Já há 2500 anos, a sabedoria de
Confúcio, que mais tarde daria lugar ao confucionismo como crença, foi objecto de uma
enorme instrumentalização política. A leitura dos Entretiens (Conversas) a
documentação mais cientificamente fiável para a compreensão do personagem – sugere

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um Confúcio, observador atento dos costumes do seu tempo, e que recusa a petulância
das honras e da fama; irreverente e moralmente seguro diante do poder que não hesitava
em criticar, defensor de uma vida livre mesmo à custa da pobreza material. Ele inventa
um estilo de vida inédito, a existência nas margens, por causa do desgosto e desprezo
que sentia pela política do seu tempo. É por isso que manifesta admiração pelo eremita e
por todos aqueles que fogem do mundo, justificados pelo artificialismo da vida social.
Funda uma escola não para fazer carreira, mas onde qualquer um pudesse
aprender a realizar-se na companhia de amigos com a mesma aspiração de servir
debaixo de um regime corrupto. Foi erigido, dois séculos e meio depois da sua morte,
como figura central da ideologia imperial e patrono da casta dos letrados que pregavam
o sentido da obediência e de lealdade para com os superiores.
Nos Entretiens, seguindo uma longa tradição chinesa, comum a outras culturas,
Confúcio tinha exortado à piedade filial o que para ele significava não desobedecer.
Esta regra implicava também o respeito pelas autoridades, só que, na valorização do
confucionismo que o Estado faz como instrumento da unificação da China, este preceito
ganha uma nova dimensão: se o soberano ordena a morte do sujeito, não morrer
significa falta de lealdade...
O general Omíada, Tariq Ibn Ziyad, no seu discurso de exortação para a batalha
decisiva que abre as portas à conquista muçulmana de quase toda a Península Ibérica no
século VIII, apesar de mencionar amiúde o nome do profeta Maomé, deixa claro que o
objectivo não é nenhuma apologia religiosa, mas “trocar os áridos montes pelos campos
e cidades da Espanha”. Aos soldados ele promete: “como recompensa, não vos
oferecemos os desertos de África, mas sim os gordos despojos de toda a Europa”.
Na mesma linha se pronuncia o Papa Urbano II no início da guerra das cruzadas.
Depois de apelar a Deus e à “recuperação do santo Sepulcro”, remata: “porque esta
terra em que habitais, rodeada por todos os lados pelo mar e pelos picos das
montanhas, é demasiado exígua para a vossa grande população – mal alimenta os que
a cultivam. Por isso sois obrigados a assassinar-vos mutuamente e a pelejar, e muitos
de vocês morrerem em guerras civis”.
A primeira teorização do uso político do religioso vem de Maquiavel, hoje
celebrado como precursor da Realpolitik. O objectivo declarado do pensador florentino
é inventar um estilo teórico, orientado à resolução de problemas do presente e não à
contemplação de verdades intemporais. Esta tomada de posição a favor da acção

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política inscreve-se na continuidade da sua concepção da vida civil, das suas condições
e das suas finalidades.
Ele rejeita o modelo estóico-cristão ilustrado por Petrarca e pelo humanismo
literário e cívico, outra corrente do pensamento florentino do século XV. À apologia do
humanismo literário sobre a vida estudiosa, longe das vicissitudes sociais, ele opõe o
elogio de uma vida activa.
É neste âmbito que se opõe à moral cristã, a seus olhos culpada por pregar a
humildade. Para ele, a vida civil tem o seu fim último no desejo da grandeza e da glória,
nas virtudes políticas e na importância que se dá ao bem comum. As letras vêm depois
das armas; nas cidades, os capitães aparecem antes dos filósofos. Para ele o prazer
intelectual é nocivo e provoca a ilusão de ter a sua razão de ser nele mesmo; bastaria
amar a paz para viver em paz. Esta ilusão transforma o repouso conquistado com as
armas em preguiça e extingue as virtudes guerreiras.
Tem que se imitar Catão que vendo a juventude romana apegar-se aos filósofos
Diógenes e Carneiades, embaixadores de Atenas, e conhecendo o mal que esta
univocidade podia trazer para a pátria, fez com que nenhum filósofo pudesse ser
recebido em Roma.
A crítica ao ócio explica-se pelo pessimismo antropológico de Maquiavel: os
homens são comummente regidos pela vontade de se dominarem uns aos outros e pela
avidez de bens materiais.

No seio do estado de guerra permanente que caracteriza a relação entre os povos,


não há espaço para o prazer contemplativo dos filósofos. Este não só desvia os cidadãos
da consciência do perigo latente, como também, convidando a um retorno sobre si
próprios, exacerba as ambições privadas que constituem o sintoma da corrupção
pública. As causas da desunião das repúblicas são o ócio e a paz; as causas da união são
o medo e a guerra, sentencia Maquiavel. No Príncipe, o paralelismo entre a política e a
guerra fundem-se um no outro. Para além disso, ele defende explicitamente que,
governar é fazer guerra  e a essência do poder é a violência.
No caso em que o país fosse infestado por lutas de facções, o melhor remédio
seria provocar uma guerra contra um inimigo exterior sob um pretexto qualquer. Aqui o
fenómeno guerreiro preencheria uma tripla função; a exaltação do patriotismo de todos,
a união social e mão forte sobre os instintos. Assim, a guerra aparece como instrumento
privilegiado do príncipe e condição do respeito e da obediência do povo.

60
Maquiavel ocupou-se de questões do exército como secretário da segunda
chancelaria e da milícia, uma magistratura criada para organizar um serviço militar
obrigatório. No seu tratado sobre a “Arte da Guerra”, ele sublinha a necessidade de um
diálogo entre as armas e as letras, entre a teoria e a praxis, mas sobretudo recusa-se a
delegar a coisa militar aos especialistas.
Na “Arte da Guerra”, única obra que publicou vivo, ele defendia a imitação dos
antigos, a aplicação do modelo ganhador e prestigioso da Roma antiga à realidade do
seu tempo.
Ora, enquanto a educação antiga era orientada para a virilidade e para a honra, a
educação cristã coloca a humildade, a submissão e o desprezo pelas coisas humanas no
cimo da sua moral. Daqui derivam comportamentos contrários. De um lado, a
humildade dos sacrifícios modernos e, do outro, a ferocidade das cerimónias dos
antigos onde corria muito sangue de animais; espectáculo terrível que levava os
homens a se lhe assemelharem. As religiões antigas recompensavam só os homens
cobertos de glória terrena, os grandes capitães, os chefes das repúblicas, enquanto a
religião cristã glorifica os humildes e os contemplativos. Em oposição à religião cristã,
Maquiavel exalta a religião romana orientada para o amor da pátria.
Porém, ele faz uma distinção entre os valores do cristianismo e a maneira como
eles são vividos. Diz mesmo que se o cristianismo se tivesse mantido fiel ao espírito do
seu fundador, os estados e as repúblicas da cristandade seriam muito mais unidos.
Assim, os seus argumentos não se situam no plano da verdade das crenças, mas no dos
seus efeitos políticos.
Os discursos sobre a primeira década de Tito Lívio mostram que ele presta uma
atenção especial aos efeitos da religião na vida da sociedade, mais exactamente, na
capacidade que ela tem de suscitar nas massas, a moderação política, a obediência civil
e o respeito pelas autoridades. Nenhuma sociedade pode fazer face aos choques da
história se não tem nenhuma religião ou vive no desprezo dela. É neste sentido que se
fala de Maquiavel como o iniciador da sociologia da religião.
Nos escritos militares, que datam dos anos em que trabalhava na chancelaria, ele
mostra-se atento às pregações susceptíveis de criar a abnegação dos soldados.
Compreende que a fidelidade daqueles que são chamados a arriscar a própria vida pela
pátria, constitui um problema que não pode ser resolvido simplesmente por uma relação
jurídica.

61
Do ponto de vista histórico, Maquiavel compreende a importância política da
igreja romana. Todos os estados se governam com boas leis e boas armas – escreve ele
no Príncipe –, mas é obrigado em seguida a admitir, que a igreja, ainda que desprovida
de ambas (leis e armas), estava em altura de dirigir a política italiana e europeia de
então. É pois levado a sugerir, no domínio político, a necessidade de criar mitos para
melhor guiar a sociedade. O interesse de Maquiavel é direccionado para o aspecto
funcional da religião. Isto é, a capacidade que ela tem de agir como factor de coesão e
de auto identificação da comunidade. A questão da verdade das religiões é para ele um
falso problema ou problema sem interesse.

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7. O USO IDEOLOGICO DA FILOSOFIA

Diante dos horrores do 11 de Setembro, o novo filósofo, André Glucksmann,


exclamou: é Dostoiewsk em Manhattan. Depois acrescenta: está em curso a terceira
guerra mundial? O que a caracteriza? O ser ao serviço de uma vontade de
aniquilamento total. (LAFFONT, 2002).
Para a historiadora, Anna Geifmann (2005), o espectro que flutua sobre as ruinas
das “Twin Towers” apareceu há cem anos. Para o filósofo Leo Strauss (2004), a origem
do mal tem que ser procurada na cultura alemã, no combate de alguns contra a
civilização e o seu modelo de sociedade aberta, o que segundo, Jacques Ranciere (2005)
pode-se encontrar nos lugares menos afastados de nós.
O termo niilismo foi utilizado em ambientes culturais e disciplinares diferentes,
de tal maneira que muitos autores lhe reivindicam a paternidade. No âmbito filosófico,
foi para caracterizar correntes e posições, entre elas: ateísmo, egoísmo, solipsismo,
cepticismo, materialismo, pessimismo. Aplica-se, positivamente, a um movimento que
traz novos valores; negativamente, para denunciar sinais culturais de uma civilização
decadente.
A etimologia do termo niilismo, porém, não oferece grande ajuda para a
compreensão do seu significado. Saber que a raiz latina, nihil, significa nada, isso pouco
esclarece o que o niilismo é. Ao invés, para entender o termo, é necessário percorrer a
história do seu uso.
Numa carta a Fichte (1799), Jacobi inclui no niilismo a filosofia kantiana, os
românticos alemães, Novalis e F. Schlegel. Se Von Baader fala de um “niilismo”
cientista, já para Donoso Cortes, o socialismo francês, sobretudo de Proudhon, é um
niilismo. Foram também denunciadas como niilistas as críticas feitas a L. Feuerbach ou
o individualismo radical de Max Stiner.
Na Rússia, o termo foi utilizado, a partir de 1830, pelo movimento de crítica
literária liberal (Bielisky, Dobrolioubov). Para essa crítica, o movimento de
emancipação intelectual dos anos 1950, caracteriza o verdadeiro niilismo russo.
Tourgueniev, no Pais e filhos (1861), fará com Bazarov o retrato do niilismo.
Em França, o termo foi utilizado durante a revolução para designar os que não
estavam nem a favor nem contra. Paul Bourget associa o niilismo à decadência
(Baudelaire), Renan, ao diletantismo, Flaubert ao romantismo e Taine ao cientismo.

63
No fim dos anos 1880, Nietzsche retoma o conceito e faz a síntese do conjunto
dos sentidos que o termo conheceu nos séculos precedentes: «o que eu descrevo é a
história dos dois próximos séculos. Eu descrevo o que virá, o que não pode não vir: o
evento do niilismo. Esta história pode ser já contada, pois a sua própria necessidade já
está em obra. Este devir manifesta-se em muitos sinais, este destino anuncia-se de todos
os lugares, todas as orelhas estão já à escuta desta música futura».
Com ele, o niilismo deixa de ser uma corrente filosófica, um movimento
literário, uma atitude política determinada: caracteriza a sociedade ocidental ou um
momento da sua história; o momento da morte de Deus e da decadência dos valores.
Nietzsche faz do niilismo uma categoria ontológica.
Mesmo se alguns autores consideram que a realidade do niilismo tenha nascido,
na época grega, com o cinismo e o cepticismo, o termo parece estandardizar-se e tornar-
se sinónimo de moderno e da modernidade. Apesar de ter nascido há dois séculos em
contextos diferentes que vão do círculo fichteniano de Iena, passando por Paris da
Revolução, até à Rússia da revolta literária; o mundo do individualismo democrático,
com o seu relativismo, o seu egoísmo, o seu gosto pelo dinheiro, a sua paixão pelo
efémero, a sua incapacidade de distinguir o pequeno do grande, corresponde ao que se
deu o nome de niilismo.
No século XX, Martin Heidegger, na esteira de Nietzsche, defende que a
metafísica, desde Platão, se definiu como o esquecimento do ser. A dominação tecno-
científica caracteriza o ocidente como niilista: “O niilismo é o movimento universal dos
povos da terra engolidos na esfera de Poder dos tempos modernos”, cujas ilustrações
mais evidentes seriam a paixão pela destruição que caracterizaram as duas guerras. A
estas se podem acrescentar outras destruições – Bush filho, dizia querer reduzir o Iraque
à idade da pedra –, as guerras dos bombardeamentos no Médio Oriente, as fabricadas
pelos exportadores de armas no chamado terceiro mundo, etc.
Qual destas figuras retóricas corresponde aos eventos a que assistimos?
Alberto Camus sai das sendas tradicionais e propõe uma nova leitura do niilismo
à revolta política inaugurada, segundo ele, pela revolução francesa (O Homem
revoltado, 1951).
A filosofia não ignora nem desdenha a via da revolta. Contudo, é necessário
distinguir a revolta política da revolta filosófica. Na filosofia, a revolta tem uma longa
tradição que vai de Diógenes a Sartre. Aliás, pode-se considerar, no essencial, toda a
filosofia latino-americana e a filosofia africana como de revolta.

64
Apesar de ser filho de um banqueiro, Diógenes conheceu a escravatura depois de
ser sequestrado pelos piratas. A sua revolta não se inscreve no quadro de uma revolução
política e colectiva, mas na esfera moral e individual. Em plena Atenas do século IV,
enquanto as pessoas deambulavam pela Agora nos seus afazeres quotidianos, um velho,
apoiado na sua bengala, embrulhado no manto ri e provoca os passantes: lanterna acesa,
em pleno dia, ele procura um homem verdadeiro, sem nunca o encontrar.
A sociedade ateniense tinha-se tornado lugar de todos os contrastes, de todas as
desigualdades: entre ricos e pobres, entre cidadãos e escravos, entre atenienses e
metecos, mas também entre homens e mulheres. Por ter conhecido na carne a
experiência da pobreza, Diógenes revolta-se contra uma sociedade injusta e opressora.
As raízes da revolta de Diógenes são profundas. Elas vão para além de uma
simples crítica de natureza política. Diógenes constata que, na realidade, os ricos que
têm tudo, não são mais felizes do que os pobres que não têm nada, e que, muitas vezes,
levados pelos seus apetites desordenados, são mais infelizes que os pobres.
Por detrás da sociedade helenista, o moralista, observador implacável dos seus
contemporâneos e de si próprio, encontra a natureza humana, os limites e o jugo que os
oprime. A revolta toma então outra dimensão. Ele compreende que o homem é escravo
das algemas inerentes à sua natureza: as paixões, que conduzem o mundo e nos
estragam a vida, como o desejo, a concupiscência, o orgulho, o medo que nos torna
escravos diante dos poderosos, o prazer que conduz a todas as loucuras.
Para além destes suplícios, Diógenes constata que cada um de nós se impõe
obrigações suplementares desnecessárias: renome, riqueza, cultura, respeito pelas leis e
pelos deveres sociais. Na verdade, essas obrigações são valores forjados arbitrariamente
e fixados pela civilização e pela vida em sociedade.
O filósofo denuncia todos esses esforços vãos que o homem empreende para
satisfazer estas exigências da civilização; o indivíduo agita-se e perde toda a lucidez e
não vê que a civilização o seduz com o conforto ou o prestígio para melhor o sujeitar.
Se o método de Sócrates era o diálogo, o deste é a subversão, a provocação na
maneira de vestir, a sujidade, masturbando-se ou fazendo amor com a sua mulher na
estrada à vista de todos e até intimando ao grande Alexandre que se afasta para que ele
possa continuar a gozar dos raios solares.
O homem a quem ele se dirige já não é o cidadão da polis que vivia num quadro
sociopolítico bem definido, mas o individuo, que, no alvor do que se chama a época
helenista, perdeu as suas referências tradicionais pois o seu universo se alargou

65
progressivamente às dimensões do mundo. É a época das grandes expedições
alexandrinas e com elas, o fim da distinção entre gregos e bárbaros.
A esse homem, o filósofo quer fazer compreender que lutar pela riqueza ou pelo
poder não faz a felicidade; que a verdadeira eudaimonia se funda sobre a liberdade, a
autarcia e a impassibilidade. Para alcançar este estádio, há que derrubar os valores
comummente admitidos e substitui-los por novos.
Os seus princípios estão enunciados numa obra que provocou muito escândalo,
República, orientada a desconstruir os tabus sociais e a destruir a obra civilizadora de
Prometeu, o ladrão do fogo. A sua República é regida por normas de vida segundo a
natureza; as armas não têm lugar. Completa, de certa maneira, as posições anti-
belicistas de Sócrates e Platão.
A filosofia, com Diógenes, segue o caminho da contestação e da revolta e põe
em causa os valores da sociedade em que vive, sem nunca usar o gládio ou tomar o
caminho da revolução. A espada que utiliza é o falar franco e directo. O seu método não
é a luta armada, não é a violência no quadro de uma qualquer revolução colectiva e
política, mas na esfera individual e moral. Quando faz ouvir a sua voz discordante não é
para apelar a nenhuma guerra, mas para inverter os imperativos da moral tradicional,
fazer explodir a esclerose social e apelar a uma conversão radical do indivíduo.
Ele critica Platão porque considera que a filosofia do mestre da Academia não
incomoda ninguém. Para Diógenes a filosofia e o filósofo devem incomodar não
acomodar-se. A filosofia não deve ser elitista, não está naquele que brilha
intelectualmente, mas é acessível a todas aqueles que sabem praticar a ascese. Assim, a
dimensão existencial tem primazia sobre a componente intelectual.
Por detrás do truão provocador, que faz tábua rasa de todos os valores, esconde-
se o filósofo com a sua lucidez, a sua coragem e o seu sentido profundo de liberdade.
Aquele que Platão definiu como um Sócrates que enlouqueceu, é a má
consciência do seu tempo, o indivíduo do qual chegam todos os escândalos. É um
mestre de sabedoria que ultrapassa de longe o quadro do seu tempo. De facto, ele se
opõe aos valores tradicionais do civismo e do patriotismo, declarando-se cosmopolita,
cidadão do mundo, em outras palavras, de nenhum lugar. Ele se sentia em casa em todos
os lugares onde ia e ia repetindo que era “sem cidade, sem casa e sem pátria.
A palavra-chave de Diógenes é non serviam. Não servirei a nada e a ninguém,
não me submeterei a nenhum dogma. Este imperativo-rebelde antecipa os libertinos
negadores de Deus e dos dogmas, os libertários defensores de uma liberdade sem

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contrição, os revolucionários e os utópicos; os niilistas detractores do poder dos pais e
da autoridade, da tradição e da razão clássica; os ateus, deístas e anunciadores da morte
de toda a transcendência, os anarquistas. Contra todos aqueles que serviram outra
consciência que não fosse a própria, ele reivindica um homem livre e liberto.
Contra quê ou quem se exerce o poder negador destas figuras sublimes? Contra a
ordem burguesa e a lei da maioria, a moral moralizadora, contra os que detêm a
autoridade, os patrões e os seus valetes, os reis, os príncipes, os esclavagistas, os
exploradores, os opressores, os colonizadores, os novos colonos, os ditadores, os que
acumulam o poder e dele usam e abusam, contra uma civilização voltada ao mercado e
ao dinheiro, contra o cinismo político-económico, contra o engano, contra a mentira.
Hoje é claro, até por razões de sustentabilidade, que o nível de vida ocidental
não é extensível ao resto do mundo. Os programas de ajustamento impostos aos países
do Sul foram um engano e uma mentira. Susan Jorge e Sabelli chamaram de
subdesenvolvimento programado.
A mentira, não é como dizia Santo Agostinho (Contra Faustum), a ausência, mas
o contrário da verdade. O elemento essencial da mentira é a vontade de dizer alguma
coisa de falso. Existe a parte activa e agressiva na mentira que joga na ignorância e/ou
inocência do outro. Mentir não é perceber a realidade de uma maneira errada, mas a
afirmação deliberada do que não é. A mentira resulta da intenção voluntária. Se pelo seu
sujeito, ela vem da vontade da acção, pelo seu objecto, baseia-se numa multiplicidade
de factos contingentes.
As acções humanas são quase sempre o resultado de uma intenção que poderia
ter sido diferente. É exactamente porque não estão cobertas por uma armadura de
necessidade racional que elas são a vítima designada de toda a espécie de deformações
deliberadas.
Se a acção da mentira se exerce em todo o arco da vida quotidiana, o seu terreno
de eleição é a história e a política, onde se encontram os factos humanos mais
significantes, mas também os mais precários. A simulação, que exprime um dos
aspectos normais do desenvolvimento das coisas humanas, não só não entra em conflito
com a razão, mas aparece até mais plausível e seduz o espírito.
Enquanto a mentira da vida quotidiana, não resiste muito tempo à prova dos
factos, a história e política dispõe de grande latitude para os factos, para assegurar a
coerência do seu esquema. Deixa de ser um episódio isolado, uma excepção; torna-se

67
princípio duradoiro de um processo, modo de agir regular que ordena outras mentiras de
maneira que apareçam como lógicas e coerentes.
O Sul não pode percorrer as estradas do norte; as dádivas que lhe são
dogmaticamente impostas são falaciosas e levam ao contrário do que prometem, isto é,
ao aumento da pobreza e da dependência: a um niilismo de facto. Todavia, aqui, quem
não está disposto a prosseguir um caminho que o condena, hipoteca a própria vida e
arrisca possíveis sanções económicas ou mesmo agressões militares.
Estas mentiras e enganos não hesitaram em criar estados tribais, em manter
situações permanentes de conflito (Síria-Líbano, Israel-Palestina), em fazer alianças
com regimes teocráticos (Koweit, Arábia Saudita), em manipular as diferenças
confessionais para provocar guerras (Irão-Iraque), em forjar provas sobre a posse de
armas de destruição massiva como pretexto para invasões militares (Iraque), em forjar
revoluções (Primavera Árabe), em invadir e destruir países estáveis (Líbia), em
transformar Estados em palcos de confrontações ideológicas e de interesses (Síria). O
resultado disto foi, de um lado, a destruição de todo o Médio Oriente e matança de seus
cidadãos, aos milhões; e, do outro, a usurpação das suas riquezas.
Há alguma surpresa em que, contra estas acções de terror da razão cínica,
levadas a cabo por estados que se reclamam de democratas, se erga a revolta?
Contra o intolerável – colonialismo, massacres, opressão, engano –
independentemente das legitimidades que se reivindicam, Sartre tentou fazer uma
filosofia da revolta que vai desde O Ser e o Nada até o Temos Razão de nos
Revoltarmos, passando pelo seu teatro. Esta filosofia encontra uma tradução política no
prefácio a Aden Arabie e no texto sobre Franz Fanon.
A revolta não é uma simples violência cega levada a cabo por marginais,
fanáticos, barbudos oriundos de camadas perigosas ou motivados por agitações de
intelectuais como já defendiam pensadores liberais como Herbert Spencer. Aliás, as
revoltas hodiernas, (terrorismo), mais do que niilistas, reclamam-se a dogmas.
A maior parte das guerras vindas do terceiro mundo são de revolta, mas sempre
chamadas de terroristas. Foram terroristas os irlandeses do Sinn Fein, os sionistas em
busca de uma terra, os freedoom fighters africanos, os palestinos, os curdos. O ANC era
terrorista para o regime do Apartheid e Freedoom Fighters para os ingleses ao mesmo
tempo que o Sinn Fein, que utilizava os mesmos métodos do ANC, era terrorista.

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Esta fácil estigmatização nunca se interroga quanto às causas e esquece que, no
fundo, toda a modernidade é caracterizada pela revolta ou, se quisermos, é feita de
revoltas.
Um dos terroristas mais lúcidos, Amílcar Cabral, que aliás privilegiava As
Armas da Teoria, dizia que a sua luta (revolta) era pela paz, o progresso e a felicidade
dos povos. Quem se poderia opor a um tal programa? Que razões e valores humanos
poderiam empurrar homens com tais ambições a se verem obrigados a usar meios de
terror para realizar esses ideais?
Camus dizia que o homem é feito de revolta. Mas todo o liberalismo, no sentido
de liberdades políticas, é feito de revoltas contra a opressão. Revoluções liberais são as
dos holandeses contra o colonialismo espanhol, as dos americanos contra a opressão
inglesa, dos franceses contra o despotismo da monarquia, as latino-americanas contra o
colonialismo espanhol e português, as africanas contra o inglês, francês, português e
belga, a revolução russa contra o Czar, a chinesa contra a opressão.
O paradoxo é que os homens e povos que se opõem à opressão, com todos os
meios possíveis, sem escrúpulos nem memória, tornam-se, por sua vez, fautores e
defensores da opressão sobre outros homens e povos. Não terão os novos oprimidos
razão, em nome da mesma lógica e princípios, de se levantarem também com todos os
meios possíveis, contra os antigos oprimidos tornando-se eles próprios seus novos
opressores?
Os meios usados na Holanda foram a guerra; na França, a guilhotina até contra o
rei; no início da revolução americana é aos gritos de às armas, às armas, que Patrick
Henry convence a Virgínia a aderir. Ao invés, no terceiro mundo, as revoltas
manifestaram-se, em primeiro lugar, de forma pacífica. A história das revoltas negras
são nisso muito exemplares: fugas do Zumbi para os Palmares no Brasil; para as
montanhas, a dos marroneiros na Jamaica; a deserção pelas linhas dos caminhos de
ferros nos EUA; os gritos de desespero no Jazz, de dor no Blues, a recusa no Hip Pop;
são a indignação na poesia, a denúncia no romance; as marchas pacíficas sempre
reprimidas com massacres e com opressão. Só o desespero de causa faz nascer a
insubmissão e a insurreição.
O texto do poeta combatente moçambicano (Armando Guebuza) é exemplar:

“Que fazer, Mãe


das almas tremendamente destruídas
da podridão ignóbil

69
de sofrimento?

Que fazer, Mãe


Das torturas terrivelmente praticadas
Sobre o corpo negro
Do teu filho amado?

Que fazer, mãe


Dos insultos imundos
Infamemente perpetrados
No coração d’Africa sensível?

Que fazer, Mãe


Das violações selváticas
Horrivelmente suportadas
Pelas belas virgens filhas tuas?

Que fazer, Mãe


De toda a baixeza humana
Camuflada no civismo cínico
Despejada no seu coração?

A resposta de um outro poeta combatente (Jorge Rebelo) resulta óbvia:

Mãe
Eu tenho uma espingarda de ferro

O teu filho,
Aquele a quem um dia viste
acorrentarem (e choraste
como se as correntes prendessem
E ferissem
as tuas mãos e os teus pés)-
O teu filho já é livre mãe
O teu filho já é livre mãe
O teu livre tem uma espingarda de ferro

A minha espingarda
Vai quebrar todas as correntes,
Vai abrir todas as prisões,
Vai matar todos os tiranos,
Vai restituir a terra ao nosso povo.

Mãe, é belo lutar pela liberdade


Há uma mensagem de justiça em cada bala que
disparo
Há sonhos antigos que acordam como
pássaros.

70
Nas horas de combate, nas horas de batalha
A tua imagem próxima desce sobre mim.

É por ti também que eu luto, mãe


Para que não haja lágrimas
Nos teus olhos.

Assim como outrora o holandês, assim também o francês e o americano; o


africano ou o árabe desesperados, já não se contentam em voltar a face, já não se
limitam à dissidência, mas acabam por interpelar e afrontar os fazedores do intolerável;
e procuram meios para levar a cada revolta lá onde eles são possíveis e disponíveis.
A radicalidade de Espártaco devia nos interpelar e advertir. Ou então como diz
André Breton; em matéria de revolta, ninguém precisa de antepassados.
Contudo, cada dia que passa, cada atentado que é cometido, cada bomba que é
largada tornam mais difícil falar da justiça, da paz, do diálogo e de reconciliação.
Porém, do ponto de vista teórico, o filósofo deve ousar, ao preço mesmo de incomodar
os demais, pensar por si mesmo e não se deixar levar pelas modas, correntes da época e
pelos lugares comuns. Do ponto de vista prático, ele deve revoltar-se contra a desordem
do mundo, contra as opressões, as desigualdades, as injustiças, a violência, a guerra mas
também contra a paz dos cemitérios; ele deve militar para a construção de uma basileia
fundada sobre a justiça, a única costureira que pode tecer os tecidos sociais globais e pôr
termo à violência.
Por isso, o terrorismo contemporâneo tem que ser analisado em todas as suas
facetas. Apesar do horror dos meios, o acento talvez não deva ser posto numa qualquer
vontade niilista de destruição; tornou-se a arma dos fracos e desesperados para atrair a
atenção sobre o seu sofrimento e sobretudo para fazer apelo à compaixão e
solidariedade entre os homens. O chamado terrorismo comporta, implicitamente, o
apelo ao reconhecimento de uma humanidade comum.
Eu era estudante em Roma quando explodiram, ao mesmo tempo, bombas nos
aeroportos desta cidade e de Viena. Por mero acaso, encontrava-me no aeroporto e a
minha vida poderia também ter corrido perigo. Porém, lembro ainda hoje as declarações
de um palestino detido depois dos atentados: nós vamos fazer sofrer os vossos filhos
para que vocês percebam o que sentimos quando lançam bombas sobre nossas casas e
matam os nossos.
Não se tratava de actos niilistas voltados à destruição, não eram sádicos
vocacionados a fazer sofrer; havia nas declarações dos autores dos atentados um apelo

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implícito através de um fenómeno de transferência: a dor que eu inflijo ao outro pode
levá-lo a compreender a minha, fazê-lo sair da sua indiferença em direcção a uma maior
solidariedade para comigo. Esta comunhão no sofrimento, deveria levá-lo a militar para
o fim do meu. A conclusão política disto seria um maior engajamento e vigilância no
seu espaço democrático para que os governos não se autorizem, em nome do povo, a
práticas de opressão, à criação de sistemas de terror que engendram, inelutavelmente,
enormes padecimentos. Não é essa a indiferença que se reprovará aos alemães do
Segundo Reich?
Face aos dramáticos horrores de hoje, torna-se infelizmente difícil descartar a
via militar para desarmar terroristas, o que não significa isentar os estados –
democráticos e aliados – das suas culpas e responsabilidades, que mesmo durante as
épocas de paz, fizeram mais mortos do que os terroristas. Por outro lado, deve-se
também afirmar veementemente que a guerra é um meio impróprio para fazer face às
questões da justiça. Por isso, ela não pode, de nenhuma maneira, ser considerada um
bem – um bom caminho – nem a única, nem a última voz. Ela pode parecer neste
momento necessária, mas continua sendo um mal.
É, por conseguinte, urgente que se vá às razões últimas do problema para que se
obtenha uma solução viável que não sirva de pretexto para novas guerras. Existem sem
dúvida fanáticos e terroristas. Porém, sozinhos, nunca conseguiriam pôr o mundo a ferro
e fogo como o têm feito. O que lhes permite ou facilita fazerem o que fazem é a adesão
de muitos jovens, cada vez mais vulneráveis a essas sedições por falta de valores
alternativos ao materialismo triunfante. Isso deixa-os à mercê de possíveis
endoutrinamentos de religiosidades fanáticas como únicas provedoras do sentido da
vida; são as injustiças, as descriminações e as intolerâncias de teólogos fanáticos do
norte e do sul que os reenviam às cruzadas; é a falta de esperança.
A solução tem que percorrer o caminho inverso: combater a fanatização, mas
depois agir-se pacificamente com seriedade e sem subterfúgios – como já se vem
fazendo há décadas – sobre verdadeiras causas. Isto só se pode empreender a partir da
justiça, a única capaz de trazer a esperança a todos os homens. O Ocidente, com a sua
rica história de opressão e disseminação do terror, tem uma profunda introspecção a
fazer e um longo trabalho para se redimir.
O género humano, em verdade, só subsiste a nível biológico. A globalização
liberal une o mundo no comércio, na economia e nas finanças. Culturalmente, porém,
essa unificação só se pode materializar suprimindo as desigualdades, os antagonismos,

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as adversidades e os conflitos que a natureza da competição capitalista provoca. Para
uma realização aceitável do homem, há que:
Abandonar o etnocentrismo de uma longa paz associada à guerra fria que
excluiu milhões de vítimas no chamado terceiro mundo;
Abolir – não deslocar fronteiras mentais ligadas a raças, civilizações, nações,
continentes;
Satisfazer as necessidades fundamentais de todos os homens, na ordem
socioeconómica, material ou espiritual.
Isso parece promover a reconciliação, o reconhecimento recíproco e até o
incremento da harmonia social.

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8. O LUGAR DA GUERRA NAS SOCIEDADES

Para além da plêiade de pretextos e explicações científicas e pseudo-científicas,


as guerras estão de tal mal imbricadas com as sociedades, todas, com as histórias, todas,
que estas acabam consubstanciando-se nelas.
Alguém diz que não são as nações que fazem as guerras, mas as guerras é que
fazem as nações. De Gaulle acreditava que a França se fez a golpe de espada. Até os
ritos fundadores são histórias (mitos) de violência e de guerra. Isto não é valido só para
os estados tradicionais mas é também verdadeiro para os estados modernos: Rómulo
que mata Remo; a teoria da pacificação americana contra os índios; Joana d’Arc em
França ou ainda o Guilherme Tell na Suíça.
Do ponto de vista material, as infra-estruturas do desenvolvimento das
sociedades, desde ruas e pontes romanas à internet e aos drones tudo é de origem
militar. A indústria bélica ocupa, hoje, nas economias dos países mais avançados um
lugar preponderante.
Do ponto de vista axiológico, educam-se os jovens, desde a paidéia até aos
marines no sentido da honra e esta é ligada, homerianamente, à razão da força, à
retaliação, à vingança.
Do ponto de vista social, o belicismo humano inunda os livros de história, as
praças públicas as imagens cinematográficas. A nossa grande arte maconde serviu para
participar no esforço da guerra; Mabunda, o artista mais conhecido do Moçambique
actual, fez o que fez da sua arte e reputação trabalhando sobre armas.
É à guerra que se pede sentido. A relação do homem com a vida, com a morte,
com a religião e tudo o que ela comporta de comunidade, de mitos, de representações,
com os tabus, as fascinações e proibições, pertencem à guerra. Aliás, as religiões
tradicionais ajoelharam-se diante desta meta-religião, desde os Capelões militares até
aos pregadores fanáticos nas mesquitas, nas sinagogas, nos templos e nas igrejas.
Os únicos momentos de unidade, nas diferentes nações, dão-se quando se está
em guerra contra um inimigo, real ou suposto. Esta tese, já defendida por Maquiavel, foi
retomada pelas chamadas grandes nações ao longo de todo o século XIX. Isto quer dizer
que é à guerra que pedimos uma comunidade. No último filme de Licínio de Azevedo,
Comboio de Sal e Açúcar, as relações entre os passageiros são distantes ou de conflito,
excepto quando os militares fazem uso das armas e do “chamboco” para pilhar e abusar

74
das mulheres. Os únicos momentos em que os viajantes se sentem unidos e fazem
comunidade, são aquelas em se sentem alvos de ataques.
Por isso, a guerra não precisa de ideologias ou de religiões, ela é lhes superior e
usa-as. Quando desaparecem umas, ela inventa outras; democracias contra o
capitalismo, ricos contra pobres, Norte contra o Sul, muçulmanos contra cristãos,
católicos contra protestantes, sunitas contra chiitas, sociedade aberta contra os seus
inimigos, o bem contra o mal e agora estados legítimos contra os autoproclamados. A
única coisa sem a qual a guerra não pode viver, os ingredientes essenciais para a sua
existência, são os contrários, os opostos, os antitéticos, em suma, os inimigos que se
opõem e mutuamente se defendem.
No século XX, ela apresentou-se com as máscaras do nacionalismo, depois, das
ideologias e hoje de guerras de religiões; em África, com as máscaras de guerras étnicas
ou tribais (Biafra, Ruanda, Inkata), civis, religiosas, políticas. As máscaras mudam, mas
a única constante é a guerra.
A guerra ganha sempre, criando constantemente novas necessidades, novos
inimigos, novos conflitos, novas ideologias, novas oposições, novos contrários. Neste
teatro dantesco quem perde sempre, em todos os lugares e em todo o tempo, é o homem.
Estas constatações exprimem-se em sentimentos de angústia, de abandono, de
absurdo para com a vida humana, que vão do ateísmo ao deicídio, passando por
acusações a um Deus que estaria ausente, longe e indiferente à sorte do homem. Neste
panorama de pessimismo intemporal, Leibniz, filósofo da harmonia e da justiça
universais, aparece como o defensor do status quo, de melhor dos mundos possível. A
sua tese acolheu, no arco do tempo, recepções bem distintas, sendo a mais conhecida os
escárnios de Voltaire no “Candide”. Porém, o seu pensamento exibe hoje uma nova
juventude, entre alguns.
Segundo ele, “a perfeição suprema de Deus, ao produzir o universo, escolheu o
melhor plano possível, onde existe a maior variedade e a maior ordem: o terreno, os
lugares, o tempo, as famílias; os melhores efeitos produzidos pelas vias mais simples; os
maiores poderes; os maiores conhecimentos, mais felicidade, mais bondade nas
criaturas. Pois todos os possíveis, pretendendo a existência no entendimento de Deus,
proporcionalmente as suas perfeições, o resultado de tudo isto foi o mundo atual o mais
perfeito possível. Sem isso, não se pode explicar porque é que as coisas foram neste
sentido e não no outro.

75
A ficção, portanto, mais célebre do melhor dos mundos situa-se na sua teodiceia.
O filósofo alemão constrói a sua narrativa a partir de um diálogo sobre o livre arbítrio
do humanista Lorenzo Valla. O oráculo de Apollo revela a Sextos que ele vai violar
Lucrécia e causar a queda da monarquia dos Tarquines em Roma. Diante de Sextos que
lamenta a injustiça da sorte que lhe é reservada, Apolo responde que a sua presciência
não é responsável pelas acções dele e que estas derivam da sua própria natureza de
pecador. Porém, não responsabiliza Júpiter criar tal natureza. Valla não vai mais longe,
e conclui que essa decisão é uma imagem do mistério incompreensível da providência
divina.
Isto não satisfaz Leibniz que pretende esclarecer a razão dos decretos divinos. É
por isso que acrescenta a sua própria fábula. O piedoso Teodoro surpreende-se que
Júpiter não tenha podido dar a Sexto uma outra vontade e Júpiter envia-lhe a sua filha
Pallas. Se no pequeno mito, Apollo significa a previsão divina e Júpiter a omnipotência,
Minerva é o entendimento iluminado que poderia dar razão da criação mostrando o
Palácio dos destinados.
Este palácio estranho representa não só o que acontece, mas também tudo o que
é possível. Nele, os mundos são ordenados segundo as diferentes situações que contêm.
O palácio é construído como uma pirâmide de possíveis, que se seguem até ao infinito.
A pirâmide parece inspirar-se na torre de babel com escadas e uma biblioteca, e contem
os apartamentos que são os mundos e espaço aberto compreendendo a vida de um dos
habitantes.
Em cada apartamento, Teodoro pode ver, num abrir e fechar de olhos, a vida de
um Sexto possível, um Sexto que não peca, um Sexto sábio. Mas o registo dos
destinados de cada quarto está numa lista dos indivíduos. Basta que Teodoro dê um
estalido de dedos sobre uma linha desta, para poder ir até aos detalhes fechados dentro
de cada vida prevista. Ele põe assim o dedo não no próprio Sexto, mas num outro
indivíduo que lhe corresponde, sobre o fio de toda uma série.
À medida que Teodoro sobe a pirâmide, chega a mundos cada vez mais perfeitos
e no último apartamento, o do mundo actual, Sexto comete o crime previsto desde toda
a eternidade, mas dependendo simplesmente da sua natureza. Neste mundo excelso, está
acumulado o máximo de diversidade e de perfeição.
Se voltarmos a percorrer a pirâmide, não na companhia do metafísico–teólogo-
cosmólogo e professor Pangloss, mas guiados pela epopeia macabra que a EMATUM
permite desselar, o resultado é toda uma outra fábula.

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As personagens são: franceses, que rejubilam pelas encomendas das naves;
banqueiros e especuladores suíços que emprestam dinheiro para a transacção; armadores
holandeses que transportam; libaneses e moçambicanos que adulteram as contas;
população moçambicana que tem de pagar as dívidas; militares que usarão as
embarcações de guerra e população que será metralhada por elas. Estas categorias
exibem-se piramidalmente alinhadas de baixo (maior imperfeição) para cima (mais
perfeição).
No andar de baixo, rés-do-chão, uma turba de anónimos, analfabetos,
esfomeados, indigentes, sem domicílio fixo porque obrigados quotidianamente a fugir
dos ataques, das bombas; pessoas que se sentem mais confortáveis na companhia dos
animais selvagens que dos homens, encontram-se em todos os lugares do planeta dos
condenados: em Muxúngue, em Santugira, Moçambique, no Afeganistão, na Síria, na
Palestina como outrora estiveram no Vietname ou na Chechénia.
No andar imediatamente acima, surgem os militares, alguns fardados, outros
esfarrapados, crianças com armas, jovens mobilizados à força pelos serviços de
recrutamento obrigatório, sequestrados, drogados e obrigados a usar a metralhadora,
fanatizados pelas ideologias cristãs, judias, islâmicas, hindus, confucionistas, marxistas,
anarquistas. Aquela massa de miúdos mobilizados à força para irem defender razões e
causas que desconhecem. Podem todos eles ser legais e legitimamente mortos segundo
as diferentes convenções de Genebra porque fardados com roupas que lhes foram
impostas e preferiam nunca ter usado.
No segundo andar vem a plebe, a massa de trabalhadores que há-de pagar as
ingentes dívidas externas, malta preciosa contra a qual a sociobiologia não pode fazer
nada; crianças que nascem para pagar os empréstimos, homens e mulheres que vivem
nas zonas suburbanas das cidades, labutam horas a fio no formal e no informal,
carregam sacos, fazem estradas por onde não podem passar, casas nas quais não
viverão, produzem comida que lhes é interdita. Por outro lado, alimentam-se de farinha,
peixe seco, de cerveja, de “tentação” e “boss”, de produtos geneticamente modificados,
e géneros fora de prazo. Mas são uma matula preciosa, porque sem eles o reembolso dos
juros da dívida não seria garantido. A falta deste pagamento traria inconvenientes
porque diminuiria a afluência às praias da Flórida, das Bahamas, da Costa Azul...
No andar superior, os pecuniocratas: aqueles para quem o taco é o totem
diante do qual se ajoelham; contraem dívidas ilícitas; fazem negociatas, especulam
sempre na condição de terem uma percentagem, uma comissão mesmo que seja a preço

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do sofrimento, da fome, da miséria, da indigência e até da morte dos demais. Não
sentem escrúpulos em deslocar as populações e beneficiar com o dinheiro dos
reassentamentos, em construir portagens pagas nos centros urbanos, em aumentar os
preços dos produtos de base, em vender o património do Estado, em esvaziar os cofres
dos bancos. São altas personalidades cujo valor, único, é a pecúnia. Ainda não puderam
vender o ar e o sol; mas já venderam água; não falta muito para que consigam o resto.
Mais acima, os traficantes: de bombas, minas, de produtos tóxicos, de órgãos
humanos, de drogas e produtos de contrabando; de prostitutas, crianças sequestradas,
emigrantes sem segurança e escravos (...). Eles são simplesmente a marinha mercante;
lockianos: ferrenhos defensores das liberdades políticas e económicas, mas orgulhosos
proprietários de navios negreiros.
Seguem-se noutro andar, os financiadores. Não perdem tempo com negócios
inúteis: a agricultura, o trabalho, a construção, os hospitais, as escolas – isso não é
rentável. Financiam prioritariamente o que está a dar e emprestam dinheiro a preço de
usura. Pagam as guerras, os massacres, como é acusado de ter feito o PNP no Ruanda.
Os seus parceiros em Moçambique já abriram ATM’s em quase todos os distritos, não
para favorecerem o trabalho, a produção, a agricultura, a economia, mas por temerem
que se lhes escapem as quinhentas dos pobres.
No vértice, os vencedores – segunda guerra mundial –, os membros do Conselho
de Segurança das Nações Unidas, ao mesmo tempo garantes da paz e maiores
fabricantes de armas. Eles são os únicos detentores legítimos de armas de destruição
maciça, através das quais consolidam as suas posições hegemónicas, zelam para que a
ordem piramidal – a melhor possível – não sofra alterações. Fazem-no, politicamente,
com vetos, economicamente com sanções e militarmente com intervenções e guerras
“justas”. Foi isso que sancionou a invasão do Iraque, é o que legitima as punições ao
Irão e à Coreia do Norte, é o que vai sancionar as carnificinas nestes últimos países,
para as quais os médias e a propaganda já nos estão a preparar.
Cada um no seu lugar: Fabricantes-credores-armadores-dinheirocratas-
devedores-utilizadores-vítimas. Este não é só o melhor – leibnizianamente falando –,
mas também o único mundo possível.

78
9. ABADOM NO TRONO CELESTIAL

No romance “Ziraili na Zirani”, do escritor tanzaniano William Mkufya, leitor


de Leibniz1, a personagem Professor Fikirini Zirani, ateu convicto, morre numa batalha
e vai para o inferno habitar num lugar reservado aos espíritos dos filósofos materialistas
que negaram a existência do Céu e do Inferno. Lá se encontram o fundador do partido
social-democrata alemão, August Babel, o socialista Ferdinad Lassalle, o tio Hu (Ho
Chi Minh), Mao Tse Tung, Bolsharin, o anarquista russo Pyotr Kropotkin, a activista
dos direitos da mulher Clara Zetkin...
Após algum tempo de ambientação, o professor Zirani consegue fazer uma
escapada para ao paraíso. Para sua grande surpresa, o trono está vazio: Deus
permanência, luteranamente, invisível, abscôndito. A única presença é a dos anjos e do
diabo em grande confraternização.
O professor Zirani é mesmo um distraído. Ele não ouviu dizer que, pelo
Descartes das “Meditações Metafísicas”, Deus foi mandado de férias (Deus ex
Macchina); não ouviu que o mesmo em Sevilha (Fedor Dostoievski dos irmãos
Karamazov) foi convidado a desaparecer e intimado a não voltar sob pena de ser
crucificado pela segunda vez. Não soube que, no Nietzsche do “Assim falava
Zaratustra” a ameaça tinha sido executada?
Mas então quem ocupa o trono que outrora fora de Deus? Marte, Ares ou
Belzebu? O Apocalipse propõe a figura de Abadom, o anjo do abismo, exterminador
que capitaneia a armada de cavalos terrificantes e aparelhados para a guerra. Sobre as
cabeças deles, coroas semelhantes ao ouro; têm rostos de homens, cabelos de mulheres,
dentes de leões,  equipados com couraças de ferro; os muitos cavalos, quando correm
para o combate, fazem ranger as ferragens.
Abadom, monstro do Apocalipse, aparece sempre com cara humana (Hitler, Pol
Pot, Idi Amin) para melhor usar os homens uns contra os outros. Ele seduz pela beleza:
cabelos de mulher, fardas militares, hinos nacionais, fanfarras e paradas grandiosas, a
elegância das marchas do exército vermelho, a ordem e a disciplina dos marines, o
garbo dos soldados de Napoleão, os aviões militares cruzando os céus com cores de
libelinhas e borboletas, os trajes requintados, da tecnologia de ponta.

1
Citado por Alena Rettova, numa conferência em Praga, Maio 2017.
79
Abadom seduz com o seu poder, a sua grandeza e a sua glória; as epopeias dos
seus grandes generais: o alemão Bismark, o francês Napoleão Bonaparte, o americano
Schwartzkopf, Samora Machel, Mouamar Kadafi, Fidel Castro.
Seduz com a sua riqueza (coroa de ouro). A sua linguagem é o terror, os
massacres, os homicídios, a guerra. Para remediar os ídolos da linguagem denunciados
por Francis Bacon, Leibniz tinha projectado criar um idioma universal. O verbo de
Abadom parece ser a resposta adequada. De facto, quando o essencial das artes, da
literatura, da pintura, da tecnologia, das crenças se orienta toda para a guerra, significa
que esta se tornou meta-linguagem, tornou a linguagem universal, o novo esperanto.
O próprio Leibniz não desdenha esta linguagem como prova num outro projecto,
a invasão do Egipto-otomano que propõe a Luís XIV. A invasão e ocupação do Egipto
otomano mudará o curso da história, fará a felicidade da humanidade, estenderá o
império do salvador desde o Egipto até às nações mais recuadas do globo, não somente
até ao Japão (...) mas (...) até as paragens mais desconhecidas da Austrália. Assim, a
idade de ouro renascerá para o Cristianismo e veremos a Igreja primitiva ressuscitar
florescente. Enfim, o sol da justiça dissipará pela clareza, nuvens e incertezas e
veremos uma moral perfeita, e a imagem da vida celeste, passar da imaginação dos
filósofos para a realidade da vida humana.
Esta falácia de conselheiro de príncipe visava deslocar as forças francesas
prontas a invadir a Holanda (1672) para o Egipto otomano. A guerra não é condenada,
mas transferida da Europa para a África, do mundo cristão para o mundo islâmico.
Abadom prevalece sempre.
Infelizmente Maquiavel tem razão. Nas cidades, os capitães vêm antes dos
filósofos, Leibniz, “conselheiro do príncipe”, antes do Leibniz filósofo, a guerra antes
da paz. O que pode, o que deve a filosofia, que é por essência antiguerra, face a esta
transmutação de valores, face à universalização e à omnipresença da guerra?
Nos diferentes filmes sobre a invasão do planeta por extraterrestres, temos
sempre os “Rambos” americanos prontos a salvar a humanidade. Para isso eles se
socorrem sempre do seu grande poderio tecnológico. Na luta que Abadom concede aos
homens, ele utiliza as tecnologias mais sofisticadas: do cavalo, ele subiu aos aviões, aos
submarinos; da espada, passou aos carros armados, aos mísseis, aos drones. Ele utiliza
técnicas inauditas: bombas humanas nas praças públicas para as quais as defesas
tradicionais são impotentes.

80
Andre Gluksmann, no seu segundo Discurso sobre a Guerra (GRASSET 2004)
– o primeiro data de 1968 – face à omnipresença do conflito, questiona-se sobre as
hipóteses de os homens escaparem dele, já que a guerra ganha sempre e em toda a
parte. A resposta deste novo filósofo é peremptória: a única coisa que o homem pode
fazer é resistir. A resistência aparece como uma das palavras-chave do nosso tempo,
como o novo nome da possibilidade da paz.
O seu primeiro discurso sobre a guerra saiu num momento em que o horizonte
estava ainda obscurecido pelo cogumelo de Hiroxima. Admitia-se, então,
unanimemente, que a bomba nuclear tinha mudado radical e definitivamente as
condições da guerra. Nascia assim a hipótese e o temor de que o mundo pudesse ser
arrasado do mapa, por uma catástrofe nuclear.
A bomba instalava-se no cruzamento de dois raciocínios: um formulava a ordem
que sustenta a desordem mesmo da guerra; o outro faz conceber a ordem que nasce da
desordem radical do pensamento político moderno realizado por Hegel. Nas guerras
anteriores, as legiões estavam prontas a usar todos os meios de que dispunham para
obter a vitória; depois de Hiroxima, a questão alterou-se completamente já que o uso
extremo da força não deixaria espaço a um vencedor e a um vencido.
O primeiro discurso sobre a guerra era completamente fundado sobre a primazia
do político; na manipulação da racionalidade do irracional, na partilha da folia ou da
razão. Hoje a situação mudou. Num longo prefácio intitulado Europa 2004,
Glucksmann corrige a perspectiva do seu livro e dá-nos um segundo discurso sobre a
guerra. A diferença entre 68 e 2004 é a evidência de que os regimes marxistas são
regimes como os outros, isto é, também fundados sobre o imperialismo; a evidência de
que as guerras de libertação desembocaram, de uma maneira geral, numa precarização
de vida, ainda maior para as populações; a evidência de que a guerra está em todos os
lugares e em todos os lugares ganha.
Então a questão já não é quem, entre o capitalismo e o socialismo, vai ganhar,
mas quem, no combate entre a guerra e os homens, vai levar a melhor. Até agora foi a
guerra, será que os homens têm chance face a ela?
O temor de Glucksmann é que depois das barbaridades totalitárias, os poderes
tecnológicos, científicos e políticos, cada vez mais desmedidos, possam provocar riscos
ainda maiores, catástrofes susceptíveis de pôr em perigo a humanidade inteira. Esta
desconfiança leva-o a distanciar-se da visão clássica das relações entre o bem e o mal e
até mesmo a toda a representação do bem. Este cepticismo referente à história, à

81
democracia, à técnica e ao capitalismo está na origem do seu XI Mandamento no qual,
contra os mestres da moral clássica, sobretudo do idealismo alemão, defende a
necessidade de enveredar pela moral provisória de Descartes e pelo cepticismo de
Montaigne. O discurso da catástrofe cerca-se da ideia de que o mundo é mau e que não
se pode fazer outra coisa senão seguir e sofrer os ciclos que retomam sozinhos o curso
do mundo.
Face a esta dupla tentação gnóstica e moralista, Glucksmann defende que, depois
da guerra de 14-18, estamos na linha da frente: vivemos a unidade na discórdia e não
saímos das trincheiras, senão para cedermos a novas utopias mais mortíferas. Aceitar
que não existe um espaçamento histórico da violência significa admitir que não existe
uma alternativa concebível ao mal, que temos que travar um combate permanente.
Então, o engajamento contemporâneo identifica-se com a resistência contra o mal.
Cada geração deve inventar por sua conta um movimento de resistência
histórica. Emerge aqui este termo – resistência – como uma das palavras-chave do
nosso tempo. Porém, dizer que a confrontação é entre a guerra e o homem equivale a
atribuir à guerra as prerrogativas de um sujeito, o que os linguistas chamam de
personificação – vontade e autonomia –, um pouco como animismo aplicado aos
mercados: “os mercados quiseram”, “aprovaram”, “reagiram”. Se admitirmos isso,
temos também que aceitar que esse Abadom usa os homens de maneiras diferentes e até
uns contra os outros: a uns leva-os a produzir os instrumentos de morte-, a outros
soterra-os; a uns dá a função activa; aos outros a passiva; uns são carrascos, outros
vítimas. Homens-pedras, colocados em partes diferentes no xadrez da guerra, chamados
simplesmente por forças (de defesa e segurança) contra os únicos homens, os que
orquestram, administram e lucram.
É que Abadom faz a guerra contra os homens usando os homens; mobiliza-os
contra outros homens colocando-os em posições diferentes no xadrez do conflito. Por
exemplo, os barcos da EMATUM foram uma grande oportunidade para salvar os
estaleiros franceses em perigo de falência: com os contratos foi possível garantir
trabalho e salvar famílias da angústia. Em contrapartida, as dívidas contraídas com a
operação EMATUM estão na origem das sanções económicas, da crise que piora
ulteriormente as condições de vida de milhões de moçambicanos, para não falar do uso
eventual das armas compradas nas nossas guerras perpétuas, com os seus corolários de
mortes e destruições.

82
Foi pela televisão que os moçambicanos descobriram uma nova faceta da sua
dimensão moral: eles eram benfeitores da humanidade. Então, a fome, a nudez e a
miséria de que padecem tinham uma nova dimensão, os seus sacrifícios ganhavam um
novo estatuto. Como outrora salvaram vidas (empregos) de portugueses, russos, alemãs
(RDA), búlgaros ou húngaros; agora salvam os franceses. Era a descoberta de uma nova
faceta do nosso internacionalismo (militante, diriam alguns). Isto até nos ajuda a ter
uma nova interpretação da nossa história.
Talvez sejamos todos vítimas, mas ocupando lugares diferentes no xadrez da
guerra. Uns produzindo armas, outros vendendo e financiando: uns disparando-as e
outros sendo os alvos padecendo com elas. Dados os lugares diferentes que ocupamos
nas encostas da morte, o tipo de resistência tem que ser necessariamente diferente.
No Ocidente, o lugar preponderante que a indústria de armamento ocupa na
economia constitui um dos factores principais da continuidade da guerra, um dos
maiores empecilhos à paz. Este fenómeno surgiu na primeira guerra mundial, quando os
industriais perceberam que a produção de armas era muito mais rentável que a produção
do café ou dos sempre presentes veículos automóveis. Agudizou-se na segunda guerra
mundial com a criação do império bélico-industrial. Hoje, até os chamados países
emergentes, os falecidos Brics, são produtores e exportadores de armas.
Entrar nesta lógica é mais fácil do que sair. O exemplo são os Estados Unidos
que, diante da proliferação das armas que matam as suas próprias crianças nas escolas,
não conseguem, face aos lobbies dos armamentos, proibir a sua livre e fácil aquisição e
circulação. Por isso, enquanto a guerra, nas suas multíplices facetas, for um dos maiores
provedores de emprego, de estabilidade e de crescimento económico, é impossível sair
dela. Enquanto as maiores transacções económicas e comerciais forem a venda de armas
– como foi recentemente o acordo milionário entre Trump e a Arábia Saudita – a guerra
continuará. Enquanto se fizer da indústria bélica o lugar privilegiado para as inovações
científicas, a guerra prevalecerá e terá primazia.
Como já defendia o liberal John Stuart Mill, é impossível que ocorram grandes
transformações positivas no destino da humanidade se não houver uma mudança de
peso na estrutura básica do seu modo de pensar. Então a questão situa-se no pensar, na
necessidade de uma revolução no pensamento; naquilo que o filósofo José Castiano
chamou da necessidade de desarmar as mentes. Glusksmann fala de uma resistência
geracional, isto é, de uma resistência sincrónica, feita por pessoas que pertencem à
mesma temporalidade, o que deixa de lado ser-se desta ou daquela nação. Entretanto, o

83
nosso mundo e as suas instituições estruturam-se em volta de territórios, o maior legado
histórico-político do belicista século XIX.
A ordem e os principais órgãos internacionais são filhos da guerra e colocam as
nações e os cidadãos em posições hierarquicamente diferentes. Não somos todos iguais
diante da lei e da orgânica que se supõe unir os povos. Existem os vencedores que são,
ao mesmo tempo, garantes da paz militarizada, zelosos guardiães da permanência da
desigualdade entre as nações, principais produtores e traficantes de armas.
Do outro lado, nós, estados bananeiros, falidos ou definhados, pátios de
operações para experimentação de novos fuzis, e novas tácticas; espaço de regulação de
contas entre os grandes. Torna-se evidente que temos o imperativo de resistir. Porém, é
ainda mais óbvio que o nosso tipo e nível de obstrução têm que ser particular,
específico. Para o Ocidente, tal resistência passa necessariamente pelo abandono do que
Cesaire chamou a traição dos seus princípios, Kesserling de dupla moral e Sloterdijk de
razão cínica.
Já Marx e Engels – nas suas primeiras obras conjuntas, A Sagrada Família e a
Ideologia Alemã, na esteira da crítica aos novos hegelianos, tinham iniciado a análise de
conceitos relacionados com a ideologia como alienação, re-ificação e a falsa
consciência. Por sua vez, a tradição do esclarecimento da escola de Frankfurt, denuncia
a ideia falsa da realidade, concebida como universalidade promovida por interesses
particulares.
No texto sobre a indústria cultural, Adorno e Horkheimer denunciam a
transformação do que aparece, como promessa de prazer em espectáculo. Até a ironia e
o riso, que antes eram utilizados pela crítica esclarecida como arte para desmascarar as
imposturas do poder, são apontados como alegria maldosa que se experimenta em toda
a renúncia bem sucedida.
A ironia dizia: isso pretende ser tal coisa. Mas é assim que é; hoje, todavia, na sua
mentira radical, o mundo apela ao facto de que as coisas são assim, e essa simples constatação
coincide, para ele, com o bem (ADORNO, 1979: 185).
Na esteira da teoria crítica contra as ideologias, Peter Sloterdijk enveredou pela
figura do cinismo, diferenciando o antigo do cínico contemporâneo. O que, no primeiro
(que tem no já citado Diógenes o seu protótipo) era eminentemente individual,
periférico e exterior às instituições, no contemporâneo, tornou-se difuso, universal e
inserido dentro da lógica da sociedade.

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A alteração fundamental que é colocada em operação pela actual estrutura cínica
é que, apesar de os sujeitos serem esclarecidos sobre os conteúdos ideológicos e sobre
os interesses particulares que sustentam certos argumentos universalizantes, mesmo
assim continuam a aceitar essa pretensa universalidade, mantendo-se inseridos na lógica
corrente. Este cinismo manifestou-se primeiro nas elites intelectuais: Maquiavel
aconselha o seu príncipe a não hesitar em promover guerras externas para garantir a
coesão interna, estratégia que foi inúmeras vezes usada, sobretudo no século XIX,
Leibniz tentara persuadir Luís XIV a desviar o alvo das suas armas da Holanda para o
Egipto otomano; Kissinger, coloca o cinismo (Camboja, Vietname, América latina) na
caput gubernabilitati mundi; Rorty tenta, desesperadamente, justificar as guerras justas.
A história de Isabel, a Católica, nos alvores mesmo do humanismo é exemplar.
Grande vencedora da guerra contra os moiros e contrariando os sábios de Salamanca
(Soares, Vitoria) põe à disposição de Colombo os navios que lhe permitem chagar às
Índias Ocidentais. Não se trata de uma temeridade ou epopeia científica, mas de uma
forma maquiavélica de se libertar dos militares mais incômodos; úteis para o exército
invencível durante a guerra, mas espinhos para a estabilidade e tranquilidade públicas
no fim das confrontações. Assim o acto da monarca espanhola aparece como uma
estratégia de libertar-se dos capitães problemáticos, convencida, como os cientistas de
então, que eles nunca chegariam às Índias.
A tentativa de diminuir possíveis focos de violência no Reino de Espanha, outra
coisa não fez que iniciar as relações globais no seio da violência. Foram esses
indesejados e truculentos, que a história quis como os iniciadores de relações globais.
Desde a chegada, a dimensão humana foi subordinada aos interesses; numa palavra, à
conquista.
No campo das ideologias dos intelectuais, hoje, o cinismo atinge o âmbito da
cidadania. O que Sizek chama de falsa consciência, a consciência não dialéctica, hoje
ainda distribuída entre as populações, entre os cidadãos.
Os parlamentos nacionais votam sanções, embargos, aumentam os orçamentos
militares, invadem países, fazem guerras. No quadro das democracias isto só pode ser
feito com a conivência e o consentimento dos cidadãos a quem os parlamentares
deveriam prestar contas.
A manifestação da ideologia cínica ocorre na acção; os cidadãos reconhecem as
práticas nefastas dos seus governos e dos seus representantes; continuam, porém, a votar
neles. Assim, a ideologia cínica se manifesta e a prática guerreira se naturaliza.

85
Os cidadãos não podem dizer que não sabiam. Aliás, onde há referendos, são os
cidadãos que votam directamente para manter nos próprios bancos, o dinheiro de
ditadores que estrangulam literalmente as populações; são os eleitores que decidem
aumentar os orçamentos militares. O raciocínio é simples, se a morte de populações
algures no Sul faz bem à nossa economia, então que seja. Nesta configuração, os
cidadãos são responsáveis pelo estado de guerra permanente.
Sabem que vivem no luxo porque caminham quotidianamente, como outrora
com a escravatura e o colonialismo, sobre cabeças e sangue de cadáveres; isto explica-o
a razão cínica. O sujeito e o cidadão cínicos têm perfeita consciência da distância entre a
máscara ideológica e a realidade, mas, apesar disso, continuam a insistir na máscara. Eis
que o próprio Sloterdijk, num acesso de sinceridade cruel, propusera uma mudança na
fórmula expressiva da ideologia para fazê-la adequar-se às condições contemporâneas.
Ao invés de afirmar que “eles não sabem, mas fazem”, ter-se-ia de dizer que “eles
sabem muito bem, e fazem na mesma”.
Neste contexto, a crítica torna-se inútil, pois não se pode subverter a falsa
consciência e ela já está esclarecida; os indivíduos sabem. Como releva Zizek, esta
“falsa consciência esclarecida torna inútil a crítica dialéctica clássica, cujo
procedimento consiste em desvelar o que está implícito (pressuposto) nas manifestações
explícitas (postas)” (ZIZEK, 2016: 54).
Nietzsche defendia que mesmo o mais corajoso de nós raras vezes tem a
coragem para o que realmente sabe. Resistir à guerra, sair da guerra significa ter a
coragem teórica e sobretudo prática para o que sabemos. Então, ao imperativo da
resistência deve acrescentar-se o da coragem.
Como declinar a dupla conceitualização, resistência e coragem, no nosso
contexto?

86
10. NÓS, COMO PODEMOS RESISTIR A ABADOM?

O justo diagnóstico de Gluskasmann é a omnipresença da guerra e a sistemática


derrota do homem. Moçambique, com os seus milhões de mortos, os seus órfãos,
diminuídos físicos, crianças da rua, deslocados, é um claro exemplo dessa derrota.
Aliás, à omnipresença da guerra nós podemos acrescentar a sua intemporalidade. Em
Moçambique, a guerra, não é só omnipresente, mas também intemporal com alguns
intervalos de tréguas, numa linha continuada de massacres humanos.
Os últimos cinquenta anos foram de uma estrondosa vitória da guerra sobre o
homo moçambicanus. Abadom apresentou-se com diferentes rostos : resistência colonial
- que só terminou quando os portugueses caíram na conta que também eles eram
vítimas; conflito ideológico, que desvenda a sua falsidade quando, depois dos acordos
de Roma os comunistas se manifestam capitalistas e os democratas dólar-cratas; a
seguir, apresentou-se sob a forma de revindicações políticas, que na verdade escondiam
interesses económicos.
A história recente de Moçambique confunde-se com a guerra. Aqui combateu-se
contra a opressão colonial, o que faz de Moçambique um dos últimos anéis da longa
cadeia que atravessa toda a modernidade, as revoltas contra os regimes de opressão.
Neste sentido, a guerra pela independência, inscreve-se, com todo o direito, no
programa libertário da modernidade, que sai dos levantamentos liberais, passa pelos
motins bolevarianos e prossegue até aos levantamentos africanos. Isso explica, aliás,
que o país tenha sido solidário com o Chile anti-Pinochet, com a Argentina anti-Vilela,
com o Brasil anti-regime militar, com a Fretilin, com os palestinos, com Sahara
Democrático, com a ZANU e a ZAPU, com o ANC.
Na guerra dos dezasseis anos, Moçambique foi simplesmente uma das muitas
arenas da confrontação ideológica entre os blocos da esquerda e da direita; um daqueles
espaços que, na governamentalidade de H. Kissinger serviam para estruturar o
equilíbrio entre as potências ou, como diria Raymond Aron: uma pequena guerra local
para evitar a maior, a nuclear.
Hoje, entre as chamadas hostilidades e os cessar fogos, somos, de novo, um dos
palcos da guerra pós ideológica, essencialmente constituída por conflitos de carácter
económico. De facto, por detrás das reivindicações políticas, escondem-se outros
interesses. A própria comunidade internacional, principal fautora do nosso

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democratismo, por detrás da sua retórica sobre direitos humanos e transparência, arruma
pretensões económicas postas à luz do sol para nós, pelos mananciais de gás e petróleo,
já por ela conhecidas previamente.
A periodização histórica de Moçambique independente segmenta o tempo quer
do ponto de vista político – mono e multipartidarismo – quer do ponto vista jurídico - as
diferentes constituições que o país conheceu. Se a periodização seguisse esse híper
fenómeno que é a guerra, poderia englobar o período dos 10 anos que precederam a
independência e teríamos: o período da revolta revolucionária contra a opressão
colonial, o período da guerra fria, e depois o período das guerras económicas.
Contudo, as guerras em Moçambique – é mais correcto que dizer as guerras de
Moçambique – apesar de diferentes, nos pretextos, nos meios, nos métodos, nas
estratégias – guerrilhas, exércitos convencionais, sequestro de pessoas obrigadas a
combater, crianças soldados, minas espalhadas pelo território, armas bacteriológicas,
massacres, destruição de infra estruturas, bombardeamentos de populações, terrorismo
de estado – têm duas constantes: a primeira relacionada com a dimensão global dessas
guerras supostamente locais. A segunda: elas resultam, manifestam-se ou são facilitadas
pela nossa permeabilidade e fragilidade histórico-social.

A. A DIMENSÃO GLOBAL DAS GUERRAS LOCAIS.

A historiografia oficial moçambicana reza que a guerra de libertação resultou da


vontade de uma geração de moçambicanos de chegar à independência política por um
lado, e da pretensão do colonialismo português em manter o que considerava os seus
territórios ultramarinos, por outro. Um olhar rápido e simplista pode levar-nos a ver nela
uma guerra localizada, que até mesmo em Moçambique se fez sentir de maneiras
diversas nas diferentes zonas do país.
Esta leitura histórica, apesar de conter verdades, omite alguns actores e
protagonistas fundamentais.
A luta contra o colonialismo pressupõe a existência de um colonizador. Ora
Portugal era simplesmente um minúsculo país no panorama da colonização quer
africana quer mundial. A colonização global dos continentes resultava do quadro
político da Conferência de Berlim que legitimava a divisão arbitrária do mundo.

88
A divisão de África resultara de um acordo global entre grandes potências, na
qual as potências europeias se arrogavam o direito de subjugar as populações e os
territórios africanos sem qualquer cuidado quanto à sua história e antropologia.
O colonialismo brota de um complexo civilizacional de certos regimes, mas
sobretudo de interesses económicos. Se a conquista da América teve como pretexto a
ius preadicandi envagelii em África, o colonialismo serviu-se do mito da missão
civilizadora. Na realidade, tratou-se de um processo de exploração de homens, terras e
seus recursos.
Roubo por si já violento, foi possível graças a uma violência ainda maior: a
superioridade militar.
A partilha de África pelas potências coloniais é um fenómeno do fim do século
XIX. Mas, repete-se, em pleno século XX, no que o almirante americano Alfred Thayer
Mahan chamou Médio Oriente. Depois da queda do Império Otomano, há o plano
Sykes-Picot (SCAGLIONE, 2016) que criou estados aparentemente multiétnicos e
multiconfessionais, mas que, na realidade, foram confiados ao domínio exclusivo de
uma etnia e de uma confissão religiosa, mesmo quando isso significava discriminação
ou até mesmo opressão e usurpação dos direitos dos outros. As consequências são as
fragmentações sócio-religiosas que estão na origem dos conflitos em curso no Médio
Oriente.
O pequeno Portugal não tinha meios para as suas lutas coloniais. Se pôde fazer a
guerra em cinco frentes, foi porque se beneficiou do apoio dos países da NATO.
Mobilizou, através da concordata, o apoio da Igreja católica, assinou pactos –
nomeadamente os acordos de Alcora (AFONSO, 2013) – com os regimes de Ian Smith e
do Apartheid, etc.
Mutatis mutandis, o processo da descolonização também se inscreve num outro
mais amplo que as únicas razões dos colonizados. As potências que emergiram depois
da segunda guerra mundial – EUA e URSS – não tinham sido contempladas na divisão
do continente em Berlim. Depois de vencerem o segundo Reich e se sobreporem aos
tradicionais colonizadores – Inglaterra, Franca, Bélgica, Portugal-, sentiam-se no direito
de reivindicar dividendos.
Por isso, na guerra pela independência, para além da determinação dos povos
colonizados, tem que se considerar a posição dos novos mestres do mundo, que eram
avessos ao colonialismo tradicional e não por razões angélicas.

89
O processo de descolonização obedeceu a lógicas concorrentes e heterogéneas.
Os antigos ocupantes, já que eram obrigados a sair, queriam fazê-lo nos espaços
geopolíticos da colonização europeia, para assim garantirem a sua hegemonia
económica. Por isso, foi necessário inviabilizar os projectos de unidade continental e
regional. Para as potências emergentes, o objectivo era aceder directamente aos recursos
e aos mercados africanos.
A África torna-se assim uma arena multifacetada da luta de interesses
estratégicos políticos e económicos na qual se vão digladiar antigos e novos
colonizadores. Estas práticas multiformes não hesitaram em manipular as diferentes
etnias e provocar guerras locais. É neste contexto que nascem novas formas no
continente africano, levadas a cabo pelos chamados senhores das guerras que alimentam
os seus exércitos com o tráfico de armas, diamantes, ouro, petróleo; serve-se
napoleonicamente de crianças. O filme, “O Senhor da Guerra” com Nicolas Cage é de
um cinismo revelador…
A posse de apetrechos atómicos fazia com que a extravasão dos conflitos, entre
os membros da NATO e do Pacto de Varsóvia, fosse improvável, para utilizar uma
expressão de Raymond Aron. Então a guerra quente fazia-se longe da Europa, do
Ocidente – em África e no resto do terceiro mundo – hoje, de preferência no Médio
Oriente e na Síria –, onde as grandes potências se podem afrontar sem pôr em perigo a
própria segurança.
O próprio anticolonialismo da FRELIMO também se inscrevia num vasto
movimento protagonizado em África. Isso explica a linha genética que vai de Nkrumah,
passa por Nyerere para chegar à fusão das frentes proto nacionalistas e a criação da
FRELIMO.
Porém, a coincidência temporal entre as lutas de libertação africanas e o
contexto da guerra fria aprisionou a revolta libertária no quadro do conflito ideológico
entre os blocos. Daí, a adesão aos princípios do não-alinhamento de Bandung, que, por
acção da conjuntura histórica e das relações de força acabaram não vingando. A lógica
da guerra fria digeriu no seu interior os projectos pan-africanos de não-alinhamento e da
própria OUA.
Assim, no essencial, a FRELIMO teve apoio dos chamados aliados naturais, o
bloco da esquerda.
A topologia da cidade do Maputo mostra claramente o seu alinhamento:
Avenidas Kwame Nkrumah, nunca Senghor; Agostinho Neto, não Jonas Savimbi ou

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Holden Roberto; Lumumba e não Mobutu Sese Seko ou Kassavobu; Mariam Nguabi
não Massamba-Débat; Lenine não Trotsky, czar ou mesmo Stalin; Marx não Adam
Smith; Engels e não Hegel; Mao Tse Tung e não Chiang Kai-Chek; Julius Nyerere não
H. Boigny.
Pode parecer paradoxal, mas o período que vai do fim da segunda grande guerra
até à caída do murro de Berlim é considerado, pelos politólogos ocidentais, como
período de estabilidade e de um mundo certo. O que dava estabilidade a esse período era
o equilíbrio nuclear e o temor recíproco das potências em provocar uma fatal guerra
atómica. No sul, os conflitos conduzidos em nome de necessidades estratégicas, de
combate contra o comunismo para uns e o imperialismo para outros, eram guerras que
se podem colocar no elenco de locais, regionais e até acidentes colaterais, apesar dos
seus milhares de mortos pelo mundo fora.
Este fenómeno de balcanização foi evidente na guerra dos dezasseis anos, uma
das tantas confrontações indirectas entre ideais e posições ideológicas antagónicas. De
um lado, o marxismo da FRELIMO e do outro o anticomunismo da RENAMO. Não é
um acaso que o termo da guerra fria tenha sentenciado o fim das hostilidades e os
acordos de Roma.
O Moçambique da guerra de Independência e da dos dezasseis anos era, pois,
um microcosmo onde se engajavam grandes forças político-militares do mundo. Por
isso, as nossas guerras não eram nossas. O nosso território era o espaço e nós
instrumentos de confrontação ideológico-militar.
A luta que não podiam travar directamente as grandes potências, devido ao
equilíbrio maléfico da posse de armas nucleares, faziam-na de maneira interposta e nós
éramos um dos palcos dessa confrontação. Foi a isto que chamaram guerra fria que na
verdade era quente para os condenados da terra: que vão da Argélia a Coreia, do Médio
Oriente, à América latina...
Porém, o cenário mais catastrófico materializou-se em África com as
experiências estratégicas e militares mais significativas no século XX: golpes de estado,
assassinatos de altas figuras, tribalização da política, senhores das guerras e, para
cúmulo, a infantilização.
O fim da confrontação ideológica no Ocidente marcou também o da guerra dos
dezasseis anos; mas não o fim. Os pretextos desta nova guerra são políticos, sim. Na
realidade, contudo, ela esconde uma competição económica que passa pela conquista do
poder, meio de acesso ao império económico do mercado.

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Por isso, a historiografia das guerras de Moçambique compreende três partes: a
(revolta) política, a guerra ideológica – comummente chamada a guerra de dezasseis
anos – e a guerra económica, que compreende o que Michel Cahen chamou a segunda
(2014-2015) e a terceira (2016…) guerras civis. Só que eu não vejo nada de civil nessas
guerras...
Aliás, de uma maneira geral, nos conflitos de hoje, a dimensão de interesses
estratégicos e económicos é mais do que evidente. Mas isto é válido não só para as
guerras de Moçambique; foi-o durante as do Iraque e da Líbia, em que o combate
escondia o saque do petróleo e de outros recursos e até mesmo de obras de arte. Por
conseguinte, existe um factor global nas diferentes guerras locais e sobretudo um
denominador comum entre elas: os interesses económicos.
Por sua vez, as consequências destas guerras são novos focos de violência que
vão do aumento da pobreza dos pobres e da fome às emigrações até aos movimentos de
terror de grupos e de estados, incluindo os democráticos. Mas sobretudo, sedimentam
sentimentos de ódio. Entra-se assim numa espiral de violência.
Mas o mais perverso destas guerras – sem vencedores nem vencidos – em que
intervêm mercenários interpostos é que acabam por desgastar o estado e as lutas não
servem para modificar o equilíbrio de forças. São instrumento de desordem contínua,
que mina lentamente a nação e ameaça o país de dividir-se, como recentemente
aconteceu no Sudão.

B. O QUE FAZ COM QUE OS MOÇAMBICANOS SEJAM TÃO PERMEÁVEIS À

GUERRA?

Não há nada de mais significativo como o grito craveiriniano de D. Jaime


Gonçalves:

Podemos tocar todos os tambores de uma só vez – ninguém nos vai


escutar.
Se Moçambique não acabar com a guerra, a guerra vai acabar com
Moçambique.

A nossa diferença específica na África austral não está na língua, únicos falantes
de um idioma latino, mas no nosso belicismo. Durante os últimos cinquenta anos,
nenhum País na SADC foi tão pugilista como nós; nós somos os campeões da tareia. A

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que se deve este triste recorde? (não podemos esquecer outro recorde que detemos,
desta vez mundial: vice-campeões mundiais da corrupção).
Devemo-lo ao facto de não sermos um povo reconciliado ou pior, não sermos
ainda um povo.
A literatura moçambicana tem-se ocupado muito da figura de Ngungunhana – e
do império de Gaza. Depois dos trabalhos de missionários como Liengme, antropólogos
como Junod, historiadores como Rita Ferreira agora são as letras propriamente ditas,
primeiro com Bakakossa e depois com Mia Couto a se interessarem pelo imperador (vd
Ualalapi e a trilogia As Areias do Imperador).
O que resulta é que as guerras ditas de pacificação, protagonizadas pelos
militares portugueses e a consequente derrocada do império de gaza, para além dos
aspectos da superioridade militar, foram favorecidas pelos conflitos internos,
nomeadamente entre Ngunis e Chopes. A pacificação de Mouzinho de Albuquerque foi
facilitada pelas controvérsias internas. Os chopes, outrora vítimas de Ngungunhana,
puseram-se ao lado dos portugueses. O resultado foi a submissão de todos e a nossa
terra ocupada.
Na guerra de libertação, a questão da unidade e do sentido de pertença foi uma
espinha constante para a luta. Os grupos e as populações que habitavam o espaço
moçambicano não eram um povo, não estavam conciliados, não tinham valores comuns.
Daí o esforço pela positiva de criar a unidade, de erguer valores comuns, um sentido de
pertença e até de fundar mitos como o de Eduardo Mondlane, pela negativa, os famosos
“abaixos” samorianos ao tribalismo, ao regionalismo, ao racismo.
Este esforço continuou depois da independência com os programas escolares,
com a necessidade de escrever uma história e uma memória comuns – o primeiro tiro de
Chipande, talvez nunca disparado –, com os festivais nacionais para fazer comungar
uma cultura comum.
Não obstante os esforços políticos então levados a cabo, foi exactamente a partir
da fragilidade dessa unidade e dessa reconciliação que se manipularam e usaram jovens
provenientes de certas zonas e etnias para despoletar a guerra dos dezasseis anos.
Esta, que essencialmente opunha duas ideologias em conflito, utilizou o país
como palco, serviu-se das nossas divisões e manipulou as pertenças étnicas, e
controvérsias históricas para o seu uso.
A fragmentação verifica-se ainda hoje nos mapas eleitorais. A FRELIMO ganha
sempre em Gaza e em Cabo Delgado e a RENAMO – ou quando ela não concorre, o

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MDM- na Beira. Isto quer dizer, paradoxalmente, que a democracia desvelou, mas
também agudizou e politizou a falta de unidade e de reconciliação nacionais.
Basta que um boateiro, um intriguista ou um qualquer traficante dizer que a
FRELIMO está a armar-se ou a preparar um ataque para a RENAMO cair em alvoroço
e reagir.
Basta um historiador ou politólogo de má-fé ou defensor de interesses obscuros
diga, “atenção, os Changanas querem dominar”, para nascer uma organização para
proteger dos Ndaus; que uma ONG, de não importa que serviços sugira que os beirenses
se preparam para abandonar o partido, para o MDM entrar em crise. Esta desconfiança
endémica torna-nos permeáveis à guerra, a quaisquer manobras de vendedores de
armas, de instrumentalizadores políticos, de manipuladores ou de caçadores de recursos:
Abadom chegou!
Então o primeiro e principal desafio da resistência é a reconciliação e a retoma
da confiança mútua. Mas, quais são as condições para erguer ou refazer a confiança
entre os moçambicanos?
Depois dos acordos de Roma, assistimos, repentinamente, à emergência de um
novo actor na cena social, que incrementa as divisões e a fragilização do tecido político:
o indivíduo.
Ao mesmo tempo que as esperanças revolucionárias esmorecem, que o estado
providência entra em crise, os dólar-cratas tomam as rédeas, cantam o espírito da
iniciativa, enaltecem o indivíduo e os seus prazeres.
O modelo deste homem seria Max Stirner autor do O Único e a Sua Propriedade:
segundo Stirner o Eu é sempre sacrificado a favor das necessidades da colectividade. É
preciso voltar ao eu na sua originalidade mais extrema, no que ele tem de próprio: é
verdadeiro o que é único e falso o que não me pertence. São falsos a sociedade e o
Estado, a quem damos a nossa força e nos explora.
Stirner faz uma crítica radical a todas as doutrinas, quer elas sejam religiosas,
filosóficas ou politicas. Ele denuncia o liberalismo burguês, que acusa de não se propor
o livre desenvolvimento da personalidade, mas a submissão à soberania da razão. A
liberdade que esse liberalismo reivindica não é para ele senão a simples submissão do
indivíduo às leis do Estado. Ele rejeita o universalismo de Hegel, o materialismo de
Feuerbach, o comunismo de Weitling, o anarquismo de Proudhon. Ele é hostil a todo o
partido e a todo espírito de partido. Em definitivo, nenhum ideal é aceitável pois uma
grande ideia, um sistema, uma causa a defender gera obrigatoriamente os seus mestres

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de escola e seus apóstolos. A consequência: o eu e os seus interesses egoístas são
destinados a desaparecer. Ora a causa do indivíduo não é a causa de Deus ou do
humano, nem do verdadeiro, do justo ou do bem. A sua única causa é o seu eu, a sua
particularidade, o único nele.
O indivíduo que emerge depois dos acordos de Roma parece-se muito com o
indivíduo de Stirner. Não se trata de um sujeito emancipado, mas de um indivíduo que
usa e abusa das suas relações e pertenças sociais para fins egoístas.
O individualista tenta subverter tudo o que exerce uma coerção sobre ele. A
ideia de povo deixa de existir, em nome dos direitos ilimitados dos indivíduos; a ordem
social pode ser ignorada, as instituições não respeitadas, as leis comuns que
materializam o viver juntos, ignoradas. Então, a corrupção aparece como um detalhe, o
desrespeito das instituições e da moral comum, um episódio.
De facto, o individualismo é uma tendência a negar, em nome da independência
individual: certas coisas que incarnam as condições indispensáveis para a sobrevivência
do ser humano e para dar sentido à sua existência: a sociedade, a nação, o Estado; mas
também as comunidades intermediárias como a família, as ligações de solidariedade
social com os outros homens. Com esta tendência de se subtrair da autoridade social,
Stirner prega, de facto, a sua rejeição e fomenta a sua dissolução. Esta atitude constitui
um niilismo.
A modernidade, que nasce com a irrupção do humanismo, deve ser entendida
como concepção e valorização da humanidade, como capacidade de autonomia. Quer se
situe a teorização dessa emergência em Descartes, em Giordano Bruno ou em Pico della
Mirandola, a verdade é que o homem moderno vai pensar-se como a fonte das suas
representações e dos seus actos, como seu fundamento (sujeito) ou ainda como autor.
Assim, as sociedades modernas são auto-instituídas, em oposição às sociedades onde
era a tradição que fundava a autoridade.
Na ideia do humanismo, a valorização da autonomia admite perfeitamente a
ideia de uma submissão à lei ou à norma: basta que elas sejam aceites livremente: é o
projecto do contratualismo que, no campo jurídico-político, passa pela submissão a uma
lei que nós próprios nos demos.
Em contrapartida, aquilo a que assistimos hoje pelo mundo fora, o
ultraliberalismo que tendemos a imitar, resulta de uma cultura que já não se acomoda a
uma tal limitação do eu e tende simplesmente a uma afirmação dele como valor

95
imprescindível. A normatividade auto-referencial da autonomia tende a ser substituída
por uma simples preocupação do eu.
O ideal humanista de autonomia requer de mim a definição de uma humanidade
comum, irredutível à afirmação da minha singularidade e à qual esta se deve submeter;
é o que o individualismo nega, postulando que só existem diferenças irredutíveis e que
são elas que devem fazer lei e definir o valor.
A busca de uma comunicação em volta das normas partilhadas tende a ser
substituída pela cisão entre público e privado, o culto da felicidade particular implica a
deserção do espaço público. Por isso deve-se fazer a distinção entre o humanismo e o
individualismo e, depois, entre ética da autonomia e ética de independência. Na
realidade, o individualismo é um momento negativo do humanismo na medida em que
comporta a dissolução da esfera da normatividade supra-indivíduo, em volta da qual, a
humanidade tenta constituir-se e reconhecer-se como tal.
A panela de Pandora que saiu dos acordos de Roma criou um grande mal-
entendido e libertou cheiros que não correspondem nem ao projecto liberal nem ao
desafio democrático; (esses partidinhos de indivíduos que pensam só em si, ou vêem na
inscrição oportunidade de existiram politicamente e trampolim para uma existência
abastada). A aposta do liberalismo, que caracteriza todo o período moderno, era soltar
os indivíduos das garras da natureza, das tradições e das crenças.
Mas o desafio democrático não é transformar os indivíduos assim libertados em
mónadas leibnizianas, realidades individuais independentes umas das outras, sem
janelas através das quais alguma coisa possa ser vista ou escondida.
A aposta do humanismo e da democracia é criar uma sociedade a partir dos
indivíduos assim libertados e através de valores e instituições por eles colectivamente
escolhidos e criados, para que possam partilhar o poder e governar juntos.
Os dólar-cratas que o Ocidente nos exibe nas televisões, esses endinheirados,
simples consumidores, que infelizmente nos servem de modelo, não correspondem nem
às ideias liberais nem aos valores democráticos.
Emil M. Cioran denuncia nesses indivíduos qualificando-os de traficantes,
boticários, especuladores.
O segundo eixo de resistência passa necessariamente pela revisitação dos
princípios filosóficos do liberalismo e da democracia, pela reformulação do nosso
projecto político e pela refundação das instituições.

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Pela negativa, parece óbvio que não se trata de subordinar a axiologia a nenhum
múnus tradicional, que seria necessariamente contrário ao espírito democrático que
norteia, doravante, os nossos valores e instituições. Todavia, não podemos ignorar o
espírito que guia essas tradições, o viver-comum; nem a linguagem a partir da qual as
populações dão razão à existência.
Não se trata de um retorno acrítico aos valores que nortearam a primeira
república. Isso seria anacrónico e em desconformidade com o espírito do tempo.
Mas também não se pode continuar no caminho do individualismo sem que isso
comporte um desfasamento ulterior dos tecidos sociais com riscos de roturas políticas
irremediáveis.
Então a questão é: como estabelecer um múnus axiológico e institucional a partir
dos nossos ambientes sócio-históricos sem nos alienarmos do espírito do tempo. Como
adequarmo-nos a esse espírito sem ceder aos seus excessos e incongruências?
Os principais estudos de perspectiva (COUNCIL, 2017) desenham cenários
catastróficos para o nosso futuro próximo. Os riscos de conflitos, até entre estados,
aumentaram consideravelmente nos últimos vinte anos devido às divergências entre as
grandes potências, às ameaças terroristas, à instabilidade nos estados frágeis e à
propagação de tecnologias letais e de ruptura.
As guerras que se anunciam têm razões e origens diferentes; porém, tudo leva a
crer que a África será de novo – como agora a Síria –, palco privilegiado de novos
conflitos internacionais. Já há sinais disso. Para além das tradicionais bases militares
francesas, os chineses acabam de abrir a sua primeira em Djibouti e os americanos estão
ainda à procura de uma Nacala para a sua AFRICOM.
A nível africano, as políticas de não ingerência e de respeito pelas fronteiras
coloniais entraram em crise com a divisão do Sudão; assim como vacilou também a
determinação de lutar contra o colonialismo a partir do momento em que se readmitiu
Marrocos na OUA sem que este país tenha abandonado a ocupação do Sahara
Ocidental. Quer isto dizer que o anticolonialismo deixou de ser prioridade absoluta,
tanto quanto o respeito pelas fronteiras coloniais.
Mas o abandono em relação ao colonialismo explica o seu regresso. Mário
Soares, depois dos acordos de Bicesse, disse: “tornaremos em condições melhores do
que saímos”. O retorno do colonialismo já não se esconde. Ele não se apresenta agora
em nome do filantropismo, mas da cooperação, doação, ajuda, interesses. Os melhores
de entre nós, os mais folgados, e entre estes muitos dos antigos libertadores, são

97
parceiros – de negócios – na exploração, na opressão e na colonização do maior
número;
As projecções mostram (Idem) por outro lado, que a intensidade das guerras em
África ocorre mais nos lugares onde há grandes recursos – o que coloca Moçambique na
vanguarda –, explorados por multinacionais, cúmplices (e até responsáveis) das guerras
aí vividas.
As tácticas usadas são sempre as mesmas, dividir uns contra outros: FRELIMO
contra RENAMO, Sul contra Norte, muçulmanos contra cristãos, tribo “A” contra “B”,
os moçambicanos de “gema” contra os moçambicanos de “clara”. Como resistir a estas
tácticas de Abadom?
Apesar dos nossos brados antigos que venham, que venham, não conseguimos
resistir às entradas do apartheid. O Iraque não susteve o exército dos Bush’s, Kadhafi
não sobreviveu a Sarkozy e aos seus comparsas, a Ucrânia sucumbiu às investidas de
Putin. Falharam porque favoreceram o lado material, militar, bélico. Nesse terreno não
temos nenhuma hipótese. Só podemos deter a força se formos um povo reconciliado.

O Pan-africanismo nasce também como movimento de resistência. Apesar de ter


as suas raízes na escravatura, ganha forma em 1900 com o primeiro congresso em
Londres. Na origem deste, o desfraldar de um racismo pseudo-científico que servia de
pretexto e cobertura à colonização. Foi em reacção ao livro do Comte de Gobineau
sobre as desigualdades humanas que Firman convocou esse encontro.
Por detrás do evento, havia uma preocupação política. A escravatura nos EUA
tinha sido abolida em 1865 e vinte anos mais tarde, a África era esquartejada em
Berlim. Para os antigos escravos, havia o receio, bem fundado, do retorno ao
sofrimento. Para além disso, as notícias que chegavam da RSA falavam de submissão e
massacre das populações. Esse congresso fora previsto para Paris, mas os franceses
deram o dito por não dito. Focalizou-se sobre dois temas que vão constituir o espírito do
movimento e nortear todo os outros congressos: unidade e resistência. A ideia principal
era já então a resistência, mas esta passava necessariamente pela unidade. É assim que
se tem de entender o “África Must Unite” de Nkrumah.
É essa unidade que não querem os opressores e, por isso, eles impedem que o
movimento cresça. De 1900 a 1919 os congressistas tinham decidido reunir-se de dois
em dois anos; mas foram impedidos de fazê-lo. Combate-se então a teoria da unidade a
favor das teses senghorianas dos espaços coloniais; impede-se por meio das armas a

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união do Senegal e da Gâmbia; apoia-se com armas também – já então com a
cumplicidade de regimes africanos a tentativa de fragmentação da Nigéria (guerra do
Biafra) e mais tarde do Congo.
Enquanto, de um lado, as tentativas de unidade vacilam e estão claramente em
retrocesso, (paz à alma do coronel Kadhafi); as fragmentações ganham espaço: Congo e
o Sudão.
A OUA teve só dois pontos firmes e constantes: o respeito pelas fronteiras e a
luta contra o colonialismo. Com o abandono da frente Polisário e a readmissão do reino
de Marrocos a luta contra o colonialismo deixou de ser prioritária. Então o que
impediria que ele volte?
Aceitando a divisão do Sudão, a ideia da integridade das fronteiras deixou
também de ser prioridade. É nesta linha que se podem compreender as reivindicações
territoriais da Suazilândia (Namaacha) e do Malawi (Lago Niassa). Por detrás destes
exercícios que parecem localizados existem outros mais insidiosos, como as pretensões
da França no canal de Moçambique.
Um povo reconciliado é menos permeável às solicitações e seduções dos
fazedores de conflitos. A estes não os podemos impedir, mas podemos resistir-lhes.
Existem os instigadores, sanguessugas, mensageiros da morte. Já disse: só
podemos resistir-lhes se estivermos unidos, se não cairmos na ratoeira das divisões, das
ganâncias, do credulíssimo, da suspeição recíproca. Uma tal atitude exige de nós fé
inquebrantável, confiança acima da abundância, do boato e das seduções de poder e da
riqueza – seja pelas praias do Algarve, seja pelos carros do Japão. Trata-se de uma
certeza de que o outro vai sempre privilegiar o contrato – ou pacto político – que de
antemão celebrámos juntos, de que nunca irá preterir-nos a favor das riquezas e do
poder.
Em suma, temos que comungar os mesmos valores e objectivos, o que não
significa cair no unanimismo. Uma equipe de futebol é composta (constituída) por
muitos jogadores com qualidades diferentes e alguns em concorrência entre eles. Apesar
disso, quando entram no campo poem os seus talentos ao serviço do colectivo pois têm
o meu objectivo, a vitória. Esta só pode chegar se cada um, no seu lugar, der o melhor
de si para o bem do colectivo.
A pertença a credos e religiões diferentes, a identidades etno-regionais
diferentes, as diferentes visões de como o pais pode ser desenvolvido e até a competição

99
política, podem ser salutares e benéficos se subordinados e orientados a um objectivo
comum.
Neste sentido, o nosso maior problema não são os outros, os que instigam as
guerras, mas nós próprios: ou seja, eu, tu e cada um de nós – com as nossas veleidades,
apetências e concupiscências – somos o maior perigo para a vigência do contrato.
O inimigo do presidente Guebuza não foi Dhlakama, mas as ambições
desproporcionadas do homem que acabaram ofuscando o seu interesse pelo povo,
acabaram alienando-o. O maior inimigo de Dhlakama (coitado, só queria ter um
mandato como Mandela) – como fora antes o de Savimbi em Angola – é a crença numa
predestinação presidencial.
Por isso, temos que repensar os nossos valores; cada homem ama-se e busca por
todos os meios a própria felicidade (eudaimonia); é bom e justo que seja assim. Em
nome da satisfação dos meus interesses, porém, posso sacrificar a relação com os
outros? Em outras palavras, a questão moral reside aqui, no equilíbrio instável entre a
legítima busca da minha felicidade e o limite que ela tem que encontrar em função da
relação com os demais. (O que vemos nos acordos de Moma, Montepuez, Prosavana é
um sacrificar total da relação, das populações em nome do meu ego).
Uma vez mais, uma comunidade é uma cum munia pessoas que partilham
valores como atenuar os nossos egocentrismos, as nossas divisões, rivalidades,
conflitos, lutas que sempre favoreceram as diferentes formas de opressão de que fomos
e continuamos a ser vítimas? Segundo o velho Sócrates, o segredo da mudança é focar
toda a nossa energia não em lutar com o antigo, mas em construir o novo.
Numa recente conferência sobre manifestos eleitorais, eu defendi que o único
espaço temporal sobre o qual podemos fazer incidir as nossas opções e acções é o
futuro; que as forças políticas devem rivalizar em propor futuros alternativos, melhores.
O porta-voz da RENAMO, António Muchanga, reagiu logo dizendo: os eleitores estão
interessados no passado e na memória de cada um. Não se trata de esquecer ou pôr uma
pedra sobre o passado, mas colocar o passado e a história no seu justo lugar.
A questão da memória é demasiado importante para ser deixada ao entusiasmo
ou à cólera. É preciso ter presente que a memória não se opõe ao esquecimento, mas a
restituição integral do passado é impossível. A memória é uma selecção: alguns traços
serão esquecidos, outros conservados, outros ainda progressivamente descartados. Por
isso, é paradoxal falar de memória dos computadores para referir-se à sua capacidade de

100
conservar a informação, pois lhes falta ainda o traço constitutivo da memória, a
selecção.
Conservar sem escolher ainda não é um trabalho de memória. A exigência de
descobrir o passado, de se recordar, não nos diz ainda nada do uso que faremos dele;
cada um dos actos do passado tem as suas próprias características e os seus paradoxos.
Porque cada memória é selecção, nós escolhemos, entre todas as informações recebidas,
de forma consciente ou não, aquelas que servirão para orientar o uso que faremos do
passado.
Na nossa concepção geral da vida pública, desde 1975, temos estado a fazer um
esforço para passar da heteronomia à autonomia, de uma sociedade cuja legitimidade
vinha primeiro da tradição e depois do colonialismo – algo que lhe era exterior –, a uma
sociedade regida pelo contrato consigo mesma. É óbvio que esse contrato não tem
nenhuma realidade histórica ou antropológica, mas fornece um modelo regulador das
nossas instituições. O recurso à memória e ao passado é substituído pelo consentimento
e pela escolha da maioria.
Se pensarmos na ciência, a que confiamos o desenvolvimento do país, ela
constitui-se no renascimento, libertando-se progressivamente da tutela da memória. As
ciências ganharam uma nova dinâmica só quando deixaram de repetir o saber
escolástico, a suposta sabedoria dos anciãos, o que implicou ignorar o sistema de
Ptolomeu e as classificações de Aristóteles. As ciências só conseguiram integrar as
descobertas geográficas numa nova visão, quando deixaram de pensar na antiga
representação do mundo. Nessa empresa, os trabalhos de Galileu Galilei na Física e na
Astronomia (por inspiração de Copérnico) foram fundamentais.
A cultura, no sentido que lhe dão os etnólogos, é essencialmente uma questão de
memória, do conhecimento de um número de códigos de comportamento e da
capacidade de se servir deles. Possuir a cultura moçambicana é, antes de mais, conhecer
a sua história, a sua geografia, os seus monumentos, as suas maneiras de agir e de
pensar. Todavia, não obstante esses conhecimentos, nós continuamos a colocar a
liberdade por cima da memória
A descoberta e o conhecimento do passado são necessários, mas isso não quer
dizer, de maneira alguma, que ele deva comandar o presente. Ao contrário, é o presente
que tem que fazer do passado o uso que quer. No entanto, o indivíduo não pode tornar-
se completamente livre do pretérito e usá-lo como entender, tanto mais que a sua
identidade presente é, em parte, tributária das imagens herdadas.

101
Américo Vespúcio, explorador e verdadeiro descobridor do continente
americano, depois de ter descrito os primeiros encontros dos europeus com a população
indígena, que oscilavam entre a colaboração e o confronto, reporta que os diferentes
grupos indígenas se dedicavam frequentemente à guerra. Para ele, a razão destes
conflitos contínuos não eram o poder, nem o alargamento do território, mas um ódio
antigo, instalado entre eles desde há muito. Se Vespúcio tiver razão, não seria correcto,
pois, almejar que tais populações se libertassem dos seus ódios e rancores e, desse
modo, vivessem em paz orientando essa energia para objectivos mais construtivos?
Outro exemplo cronologicamente mais próximo de nós. Uma das razões
avançadas pelos sérvios para justificar a sua agressão contra os outros povos da antiga
Jugoslávia provinha da história. Os sofrimentos que infligiam seriam vingança pelas
sevícias perpetradas pelos jugoslavos contra eles quer na segunda guerra mundial, quer,
num passado longínquo, durante o combate contra os turcos muçulmanos. Não foi isso o
que motivou a guerra do Biafra, o genocídio dos Tutsi? Não é, em parte, em nome
destes passados gloriosos, revolucionários ou reaccionários que se fizeram e se fazem as
guerras em Moçambique?
Isto mostra que nem todos os recursos à memória e ao passado são louváveis.
Aliás, como já dizia Plutarco, a política define-se como aquilo que retira ao ódio o seu
carácter, em outras palavras, que subordina o passado ao presente.
Haverá um uso bom do passado? A única maneira é julgar pelos resultados: por
exemplo, à guerra preferir a paz; utilizar o passado em vista do presente, servir-se da
lição, das injustiças sofridas ou cometidas outrora para as combater hoje.
De facto, é incoerente afirmar, de um lado, que o passado nos deve servir de
lição e, de outro, que ele é completamente diferente do presente. O que é singular não
nos ensina nada para o futuro, não pode ser utilizado como referência para uma outra
ocasião. Ao invés, se lermos, num evento de outrora, uma lição para o presente,
reconheceremos aos dois um traço comum.
Os que vendem hoje, literalmente, Moçambique com os homens, mulheres e
crianças que nele habitam, não são comparáveis àqueles que, no passado, venderam os
seus irmãos como escravos? As guerras fratricidas de hoje que facilitam a ingerência, a
perda de autonomia e o neocolonialismo, são diferentes das rivalidades entre o império
de Gaza e os chopes que facilitaram a entrada de Mouzinho de Albuquerque?
Em que é que os massacres de Mueda e Wiriamo diferem dos que Lagos Lidimo
perpetrou na Zambézia? Em que é que as explorações dos portugueses eram diferentes

102
das dos novos-ricos de hoje? Em que é que as matracas da polícia de choque portuguesa
são diferentes das da FIR sobre as populações e funcionários em reivindicação e
exercício dos seus direitos cívicos? Em que é que os sofrimentos provocados pelo
exército da FRELIMO são diferentes dos sofrimentos provocados pelos soldados da
RENAMO? Em que é que a privação das liberdades pela PIDE se distinguem das do
SNASP ontem e do CISE hoje?
Comparação abusiva? A rainha e o régulo de Nthoro (entrevista no Canal de
Moçambique) – Montepuez, Cabo Delgado –, escandalizados pelas práticas
esclavagistas diziam: depois da descoberta da pedra, o branco veio ocupar. Destruíram
casas e nós reconstruímos. Eles vieram destruí-las de novo. Não temos casas,
arrancaram as machambas e abriram covas. Nem o governo nos vem ajudar, somos
animais selvagens. Ficamos admirados, combinamos expulsar o branco colono. Este
branco de onde é que vem. A resposta é simples, basta perguntar quem são os sócios da
Montepuez Ruby Mining Limitada, quem o PCA da empresa que maltrata as populações.
O outro Samora Machel, o verdadeiro, deve estar a girar no seu túmulo...
Como não são aceitáveis a hipocrisia e a dupla moral de um Grotius, acérrimo
defensor da liberdade dos holandeses, mas apologista da submissão dos “peles
vermelhas”; de um Locke, fervoroso defensor do liberalismo, mas proprietário de
escravos; de um De Gaulle, brilhante combatente pela liberdade dos Franceses, porém,
durante muito tempo, oposto à liberdade dos argelinos, vietnamitas e até carrasco na
guerra do Biafra; dos EUA, defensores dos direitos humanos e dos princípios liberais
em casa, todavia torcionários no Vietname, no Afeganistão, em Abu Ghraib, em
Guantánamo. Também não são aceitáveis as miopias que nos tornam cegos e incapazes
de ver o sofrimento que fazemos passar às nossas populações em nome da história, de
princípios dúplices revolucionários-reaccionários, que na verdade escondem os nossos
egocentrismos.
Denunciar as atrocidades do passado faz-nos parecer ardentes combatentes pela
memória e pela justiça, sem nos expor a nenhum perigo de ter que assumir a nossa
responsabilidade face às penas e sofrimentos actuais. O ter sido prisioneiro político ou
ter sido torturado pela PIDE, (como disse o presidente Guebuza) ou ter lutado contra o
colonialismo, (como disse Chipande), não me autoriza a ser torcionário e carrasco do
povo. Comemorar as vítimas do passado – Machel, Magaia –, as vítimas dos outros, é
cómodo e gratificante, contudo, ocuparmo-nos das atrocidades de hoje perturba-nos. A

103
falta de uma acção real sobre o fascismo, a corrupção, a exploração de hoje, leva-nos a
denunciar unicamente os crimes e os excessos de ontem.
As memórias das nossas dores não nos podem impedir de ver as dos outros.
Recordar os sofrimentos – escravatura, colonialismo, massacres, xibalo, torturas –, não
pode desviar a nossa atenção dos de hoje, de que somos em grande parte responsáveis.

Os sérvios condenavam com insistência as injustiças de que foram vítimas os


seus antepassados e esta reminiscência lhes permitia ignorar as atrocidades que eles
próprios praticavam. Quantos ‘sérvios’ haverá entre os soldados e militantes tanto da
FRELIMO como da RENAMO? Quantos ‘sérvios’ habitam nas nossas elites políticas e
económicas? Quantos em cada um de nós? Quantas vezes o Abadom (violência, guerra)
para os outros não somos nós? Então, não se trata de abandonar a memória, mas de ir
buscar nela valores que possam ajudar a estruturar o nosso viver comum.
Os exemplos não faltam: a independência só foi possível graças ao enorme
esforço que se fez para unir os movimentos proto-nacionalistas e as diferentes tribos,
culturas, raças em prol de um ideal comum.
Aqui entramos numa questão axiológica. É necessário que tenhamos valores
comuns, partilhados, nos quais cada um se possa reconhecer e trabalhar em prol da sua
conservação e incrementação. O pressuposto necessário é a crença de que o pertencer
dos indivíduos à comunidade política e moral é tão importante como os seus direitos à
liberdade.

Há dias, o presidente Nyusi, num comício cujo resumo passou na TV durante a


hora do telejornal, queixava-se da falta de espírito patriótico por parte de
moçambicanos; disse que invejava os demais estados, pois as suas populações tomavam
a nação, a sua pertença ao Estado (patriotismo) como coisa superior a tudo, quando em
Moçambique, não. Porém, o que escapou à (ou já agora, excluiu da) memória do
presidente é que tal infortúnio é recente, tem data precisa e causa bem conhecida.
Bastou que a segunda República distinguisse, pela Constituição, o Estado e o
governo de um lado e, do outro, as formações partidárias, para que as legislaturas,
nomeadamente a do presidente Guebuza, ensinassem ao povo moçambicano que o
antigo amor e sacrifício pela pátria ou estado-partido, deviam ser tributados agora a um
governo, a um regime, de quem se diz “não é nosso”, “é do inimigo” e padecer todas as
sevícias daí decorrentes. Como que por contágio, os demais partidos foram apregoando

104
a mesma lição entre os seus militantes, cada um consoante a sua pujança política nas
diferentes esferas da economia do poder. Entretanto, em uma coisa coincidiam: amor e
sacrifício pelo sectarismo partidário da nação, em detrimento do amor à pátria.
O verdadeiro desafio para o presidente, pois, não é queixar-se, mas sim pôr mãos
à obra para que essa consciência se reponha, em diversos níveis, do topo à base, do
partido no poder aos demais em disputa, dos funcionários públicos à (já hipotecada) sociedade
civil. É preciso que as datas de comemoração da Nação não sejam abafadas nem manchadas
por querelas entre grupos ou organizações sociais de índole partidária, pior ainda, com a
actuação parcial das Instituições estatais à mistura, como foi o incidente de Quelimane nas
festividades do 7 de Abril neste ano.

C. POR UMA PARTICIPAÇÃO MAIS ACTIVA DOS CIDADÃOS.

Tive o privilégio de ser convidado ao parlamento pela comissão de ética.


Contrariamente a muitos lugares comuns, tratava-se de um exercício difícil. Primeiro
porque o fórum não é aquele a que eu me habituara como professor e tinha exigências
específicas nos conteúdos, na formulação e na apresentação. Longe de mim pensar que
os eleitos do povo não possuíam os apetrechos teóricos e intelectuais necessários para
entenderem o que eu me propunha partilhar com eles. Só que a linguagem dos fóruns
políticos é diferente da que se usa nas universidades; ainda mais, requer um acurado
exercício retórico para se fazer escutar com atenção por gregos, e troianos e pelos meio-
gregos e meio-troianos, de que o nosso parlamento está constituído.
Volvidos meses, recebi um convite da Academia Armando Guebuza para
ministrar um módulo de ética. A minha primeira reacção foi abster-me; depois vim a
certificar-me, porém, que se tratava de aulas para oficiais superiores, muitos dos quais
também académicos, instrutores e estrategas. Então a minha posição mudou
radicalmente.
Depois de me ter debruçado sobre a ética parlamentar era agora chamado a
interessar-me pela dos militares. O que seria falar de ética a quadros superiores do
exército?
As primeiras aulas recordaram-me os meus tempos de seminário onde reinava
uma disciplina herdada de Inácio de Loyola, que servira no exército como oficial e
fundador da academicamente respeitada Companhia de Jesus, vulgo Jesuítas. Desta
feita, porém, quer pelo espaço onde as aulas decorriam, um quartel com guardas
105
armados à entrada, quer pelo teor dos diálogos, eu estava a mergulhar no ambiente das
estratégias, das ambiguidades políticas, sobretudo, nas da ética milícia, da legião, um
exército criado para defender a soberania nacional mas que, no essencial, tinha sempre
feito guerra em Moçambique num perigar contínuo da vida e das pessoas a quem devia
proteger.
Entre os presentes, havia um professor de história militar que paulatinamente
nos ia introduzindo nas diatribes guerreiras do nosso país. Caía como uma verdade a la
palisse que, no essencial, a nossa história recente se confundia com a história militar.
Foram as armas que ditaram a queda dos últimos impérios africanos e reconquistaram a
terra com métodos extremamente violentos; chegámos à independência através de uma
luta armada. Desde então, a pan-presença militar tornou-se uma constante: guerra de
dezasseis anos, depois ataques da Rodésia de Iam Smith e seguidamente da RSA,
amnistias seguidas por outros conflitos, amnistias, guerras, tréguas seguidas por outras
guerras e outras tréguas...
Depois de um primeiro contacto algo frio e de suspeição, o ambiente distendeu-
se e entrámos numa relação de confidência com alguns e até mesmo de amizade. Para
isso também concorreram a eliminação das continências, das fardas, das hierarquias e
sobretudo a desmilitarização da sala de aulas e a sua consequente (re) academização.

Entre os temas tratados, para além das clássicas éticas de Aristóteles, Espinosa,
Kant, Levinas (...), dei um realce particular à pirâmide de Platão que punha os filósofos
no topo, numa espécie de distanciamento epistémico em relação ao poder. Em segundo
lugar, os políticos, a quem se imputava uma semi-racionalidade devido à ganância do
mando seguidos, estes na base da pirâmide, pelos militares e pelos operários, a quem
correspondia a dimensão de não pensamento, de irracionalidade e até de instintos quase
animalescos.
O tema, que despertou mais interesse, porém, foi o estudo de caso ligado à
decisão do então presidente francês, François Hollande, de galardoar oficiais, que
durante o governo colaboracionista de Vichy, desobedeceram às ordens e se recusaram
a enviar judeus para os campos de concentração; ao invés, esses militares tinham-nos
protegido e ajudado a fugir.
A questão era saber se os ditos militares tiveram razão em agir assim e
sobretudo, se o Estado gaulista fora justo em reconhecer e premiar os desobedientes às
ordens do poder estatal.

106
O sim foi unânime. Mas isso significa admitir, que, apesar da obediência que os
militares devem ao poder político, há momentos e circunstâncias em que é legítimo
desobedecer. Então em que momento e em que circunstâncias se pode ou se deve
moralmente desobedecer? Em outras palavras, quais são os limites morais da
obediência?
Os militares juram defender a pátria, a sua integridade. As guerras que
conhecemos em Moçambique desde a independência são intramuros, intra-
moçambicanas, subordinadas ao binómio, antigos revolucionários – reaccionários,
muitas vezes acarretando os chamados riscos colaterais que são a destruição de infra-
estruturas, massacre de crianças, de civis, de inocentes.
Os próprios oficiais acusaram, inúmeras vezes, as incongruências do poder
político a cujas ordens têm que obedecer: ambiguidades entre o mono e o pluri-
partidarismo, diálogo político e guerra, democracia real e democracia de fachada, bem
comum e interesses individuais ou de grupos, uso do exército para a defesa da soberania
e uso para a defesa de interesses particulares, subordinações do exército ao Estado e ao
partido.

Deve-se então obedecer, cegamente, a um poder político contraditório e


incoerente que leva os militares a se tornarem, não defensores da pátria, mas terroristas
e assassinos dos próprios concidadãos? Qual é o limite moral de uma tal obediência ?
Um exemplo escandaloso da criminalização militar veio dos próprios. Contaram
que, durante uma reunião em que manifestavam o seu descontentamento pelos
frequentes atrasos salariais, um generalíssimo lhes teria replicado nos seguintes termos:
desde quando um militar com arma passa fome e não tem dinheiro? A mensagem fora
sarcasticamente clara para todos os presentes.
É correcto seguir uma tal injunção perversa sem se cair na imoralidade e
transformar-se em semeadores de terror? Ou existe um limite moral, aliás imposto pela
própria deontologia militar, que deveria levar a uma desobediência?
É aceitável seguir a orientação do dito dirigente sem se cair na vigarice, no
pilharete e mesmo no assassínio? Se a base dicotómica dos nossos conflitos está na
antiga disjunção “revolucionários ou reaccionários” e estes últimos seriam bandidos
armados, o que seriam os militares que se servissem das armas, defensoras do povo,
para extorquir e até matar esse mesmo povo? Quem seriam então os bandidos?

107
Já que, de facto, os reaccionários sequestraram e, talvez ainda sequestrem,
obrigam pessoas a segui-los. Eles roubam, violam e matam e os revolucionários
também. Então, o que diferenciaria, aos olhos do povo, uns dos outros? A única coisa
certa é que as aldeias já durante a guerra dos dezasseis anos, tinham, por razões
fundadas, medo de uns e de outros…
Isto levanta outros problemas. A aceitação da desobediência levaria a uma
anarquia perigosa e transformaria os militares numa espécie de anti-poder, ou, no
melhor dos casos, em guardiães da moral política, mas sem a legitimação democrática
de que gozam os magistrados eleitos. Para que isso não ocorra, antes pelo contrário,
para que a democracia siga nos seus carris, devemos pagar, como preço ver os militares
transformarem-se em larápios, bandidos e assassinos?
Os homens íntegros e honestos encontram-se, por vezes, diante de um dilema
moral de difícil solução. Este foi o drama do ministro da defesa de Bush filho, Colin
Powel: seguir a sua consciência e negar que o Iraque tivesse armas de destruição maciça
ou, alinhar no engano, na invenção, tornando-se cúmplice do autêntico genocídio e a
destruição de todo um país, o Iraque. Aliás, esses factos não são também alheios à
emergência do radicalismo Islâmico que tem tido consequências devastadoras inclusive
para os próprios Estados Unidos.
Muitos países reconhecem, naqueles que não se sentem confortáveis com o uso
das armas, ou com a obediência cega ao poder político, a categoria “objectores de
consciência”, o que ainda não existe entre nós. A profissionalização do serviço militar
comporta também o perigo da “mercenarização”: profissionais que são pagos para
prestar serviços, não em nome de nenhum dever patriótico, mas de uma recompensa
pecuniária, de um salário. Existem exemplos históricos, como foram os militares suíços
que defenderam os reis da França: e que, ainda hoje serve às ordens do Vaticano, as
legiões estrangeiras, os mercenários sul-africanos que defendiam – ou ainda defendem –
embaixadas no Iraque ou as tristes epopeias de Bob Denard nas Comores...
Num dos nossos diálogos, os oficiais diziam estar prontos para a guerra, bastava
que lhes fosse ordenado. E acrescentavam, a possibilidade de fazerem carreira estava
ligada às proezas que pudessem demonstrar no campo de batalha, e isso, em detrimento
de quaisquer considerações de ordem moral.
Em nome desse salário, eu obedeço e sem escrúpulos, faço tudo o que me é
ordenado mesmo destruir escolas, hospitais, infra-estruturas; violar, torturar, matar –
tudo isso faço porque me pagam.

108
A história política africana mostra que o mercenariado está, muitas vezes, na
origem das catástrofes políticas que o continente conheceu. O primeiro crime de estado,
contra o governo legítimo de Patríce Lumumba, foi motivado pela falta de pagamento
dos salários aos militares, o golpista remediou com dinheiro da CIA. A partir de então,
assassinatos de governantes tornaram-se, no continente, norma e não uma excepção.
Este espírito profissional – e belicista – está implícito no estatuto de
privilegiados de que gozam as elites militares mundiais, de longe superiores aos
privilégios de outros funcionários públicos ou camadas sociais. Em Moçambique,
mesmo no tempo de grande carestia, os militares tinham lojas só para eles.
O que é uma sociedade – ou um mundo – que dá mais privilégios aos militares
do que aos professores, aos médicos, aos agricultores ou aos bombeiros ? Quem são
socialmente os mais importantes? Não os que produzem, ensinam, curam, apagam o
fogo, mas aqueles que dispõem de meios para destruir, matar, incendiar. O que é uma
sociedade que dedica a fatia mais importante do seu orçamento às armas? É a revelação
de um facto essencial: o lugar da violência nas nossas sociedades.
Se pensarmos no número de invenções que devemos aos militares, de todos os
tempos que vão da construção de estradas e pontes romanas até à Internet e aos drones,
somos obrigados a admitir o leninista papel do soldado na história. Mas temos que nos
contentar com isso? Os mesmos meios dados aos militares num clima de cooperação
não poderiam produzir resultados melhores, e mais, sem mortes nem destruições?
Se os soldados se limitam a obedecer, como rejeitar a teoria de Platão segundo a
qual eles não pensam? Ou pior, como diria Husserl, põem em epoché (entre parêntesis)
toda e qualquer consideração de ordem moral em nome de uma obediência cega, e da
carreira subordinada a façanhas corajosas.
A questão da obediência cega não se limita aos militares, ela é extensível a todos
os indivíduos da sociedade que, ao abdicar de um pensamento próprio, como ovelhas,
seguem religiosamente – seria melhor dizer cretinamente, o pastor do dia. Neste
panorama, qualquer passo fora da linha traçada, qualquer veleidade de pensar com a
própria cabeça e de harmonia com os próprios princípios e valores, é considerado uma
heresia e dá direito à excomunhão. Foi o que aconteceu com Dessange.
O último livro que publicou em vida, Tzvetan Todorov consagrou-o ao herético
Dessange e intitulou-o: Os Insubmissos, palavra que significa aqueles que não acatam
nem o poder da mentira, nem do dinheiro, nem mesmo do falso patriotismo que os

109
converte em cúmplices da morte de inocentes; aqueles que tomam a sério os valores e
os direitos humanos. Mas o preço a pagar pode ser alto.
O caso Dessange demonstra que o patriotismo tem limites e deve ser
diferenciado do fanatismo e da obtusidade. No centro histórico de Roma, ao lado do que
se chama o altar da pátria, há um edifício de estilo barroco conhecido por varanda de
Mussolini, lugar onde o  Duce empolgava o povo com as suas homilias fascistas.
Depois de uma visita ao amigo Adolfo, ficara impressionado com o patriotismo
dos alemães Mussolini tenta inculcar nos italianos o mesmo ardor pela pátria. Como
Hitler, ele lança uma pena de ave por cima da multidão com a proposta de que a pessoa
sobre quem ela caísse se suicidaria em demostração de amor à pátria e à sua causa.
Porém, como bom patriota, teve o cuidado de fechar a janela para que a pena não
escorregasse sobre si. Na praça, num silêncio de tumba; o Duce espreita pela janela, e o
que vê? Toda a turba entregue à tarefa de soprar, porque ninguém estava interessado em
honrar a pátria daquela maneira. Fora atingido o limite do patriotismo aceitável para
italianos.
No advento da modernidade, Hobbes levanta já o problema dos limites da
obediência. O filósofo inglês, para lutar contra a guerra de todos contra todos – Bellum
Omnium Contra Omnes –, postula a necessidade da existência de um Leviatã em quem
se delegariam os poderes da sociedade. De facto, não se trata de um verdadeiro contrato,
já que o que nos leva a depositar a nossa autoridade nas mãos de um soberano é o medo
do lobo que o outro homem representa para o seu semelhante, Homo homini lupus.
No pensamento de Hobbes, os cidadãos são obrigados a obedecer a este senhor
absoluto, detentor de todos os poderes. O único limite, isto é, o que poderia levar o povo
a desobedecer, seria o mostrar-se ele inábil para garantir a paz, a segurança e a
incolumidade dos seus súbditos. Neste caso, estes têm o direito de revoltar-se, de depô-
lo e substitui-lo por um outro.
Há quinhentos anos, em plena crise do massacre na Guiana de camponeses que
se tinham insurgido contra o imposto sobre o sal, um jovem, com a idade compreendida
entre os dezasseis e os dezoito anos publica um livro iconoclasta, não só para o poder
mas também para a filosofia política, que continua a interpelar-nos ainda hoje. Trata-se
de La Boétie e o livro se intitula-se, “Discurso Sobre a Servidão Voluntária”; terá uma
vida difícil e clandestina e só será definitivamente republicado em 1976 pelas mãos de
Miquel Abensour.

110
O jovem filósofo interroga-nos, sobre o segredo que nos leva a obedecer. Existe
uma retórica bem estabelecida sobre a indignação política. Basta recordarmo-nos da
condenação de Platão aos tiranos cruéis e mergulhados na luxúria, ou ainda dos
vitupérios de Tácito e Suetónio aos sanguinários imperadores romanos. Desde sempre, o
pensamento político foi severo contra os déspotas que ordenam massacres contra as
populações.
Com La Boétie, porém, o objecto da indignação muda de direcção. Como é que
o povo, pergunta-se o filósofo, se pode deixar assim dominar e até, servir com tanto
fervor aquele que o despreza e oprime? O enigma do político transfere-se: já não
importa interrogar a monstruosidade do dominador, mas a passividade do aceitante, que
ama até a própria servidão. Ecoa, neste texto, o Espinosa do tratado Teológico-Político
que se escandaliza ao constatar que, todos os dias miríades de pessoas combatem pela
própria servidão como se dela dependesse a felicidade. Foi uma autêntica revolução
copernicana no pensamento político: não é o poder que cria a obediência, mas esta que
cria o poder.
Para o autor, o que surpreende na servidão, é o desequilíbrio incompreensível
sobre o qual ela repousa: milhares de pessoas que se submetem à vontade de uma só,
uma massa enorme que aceita o domínio de um pequeno número.
O déspota não tem força suficiente para esmagar, sozinho, todo um povo. Isso só
acontece porque as massas participam e carregam o jugo. É sobre este ponto que La
Boétie se mostra incomodado acusando os súbditos dos “poderosos” de serem os
primeiros autores da sua dominação e negando ao povo oprimido o estatuto de vítima
perpétua do cinismo político.

O autor não aceita a asserção comum da dominação pela força. O despotismo


sobrevive porque é profundamente democrático, no sentido em que multiplica no corpo
social a cadeia da obediência. Não existe uma elite que subjugue uma massa de
dominados: o tirano põe a canga a uns por meio dos outros; cada escravo suporta a sua
condição como déspota para o outro escravo.
Segundo os contratualistas, o Estado, impondo a paz, corrige a desordem
primitiva que leva os homens a guerrearem-se continuamente. É a definição racional da
produção de uma unidade: passagem da confusão à harmonia, da desordem à ordem, das
paixões à razão pacífica, da turba dispersa e selvagem a um povo civilizado. A aparição

111
de uma autoridade legítima confunde-se então com a instituição racional. La Boétie
procura num outro lugar as raízes da nossa submissão.
Um monarca – déspota iluminado, tirano cruel, ou um presidente eleito, não
importa – é proclamado, antes de mais, pelo desejo de existir e prosperar de cada um. É
como se, através de um encantamento – da veneração idiota ou medo idólatra – cada um
tirasse o seu significado de existência da imagem fulgurante do todo-poderoso. Eu só
me sinto alguém, (súbdito do príncipe, de uma nação, membro de um nós) pedindo
emprestado um pouco da sua existência imaginária. Como fugir desta fascinação, desta
relação que nos torna cativos de uma auto-mistificação? Como fugir o pássaro ao
fascínio da serpente?
O texto do jovem filósofo não se limita a verificar as raízes subjectivas do poder
(cadeias de cumplicidades activas ou hipnose de um), ele oferece-nos as chaves da
emancipação, longe, contudo, das grandes retóricas revolucionárias isto porque para ele,
um povo armado só pode existir como tal, levantando um chefe único, autoritário e
rapidamente tirânico, no qual, pelo mesmo movimento, ele se reconhece e se aliena.
É então hora de conceder confiança à pluralidade: redes fraternas, grupos de
homens honestos, de amigos. É a paixão do diálogo, o gosto pelo debate, pela troca de
ideias, de opiniões. Cada um dispõe de uma parte de verdade que tenta completar, como
num puzzle, com o companheiro da palavra. Este exercício confiante do verbo, se
contém a amizade, leva necessariamente à liberdade.
Não se fala aqui, por conseguinte, de um apelo a nenhuma insurreição armada.
Ele não cessa de recordar que não protesta nem solicita actos de desobediência, tantas
vezes inúteis e perigosos. O seu único imperativo é que se cesse de se pôr paixão no
obedecer.
É também nesta perspectiva que se deve entender o que La Boetie diz a
propósito da liberdade. Para ele, é esta uma atitude interior que nos impele a sermos
vigilantes para connosco próprios e a quebrar a adesão às servidões externas. Para se ser
livre é necessário cessar de aderir à própria servidão.

O grande escritor russo Tolstoi, autor de “Guerra e Paz”, foi um autêntico


campeão da revolta contra todas as formas de opressão, mas também o maior defensor
da não-violência, o que inspirou Martin Luther King, Nelson Mandela e sobretudo
Gandhi.

112
No seu aniversário, Gandhi escreveu e nunca ninguém, antes dele, tinha falado
da não-violência de uma maneira tão magistral e com tanta penetração e perspicácia. Eis
o que disse: «não resistir ao mal com violência». Ele recusa a lei de talião. Não se trata
de ser indiferente ao mal ou de não se opor a ele, mas de lutar com outros meios, outros
métodos que não passem pela violência; nomeadamente a insubmissão às instituições da
força; abster-se de todo o acto contrário à consciência, isto é, de recorrer ao mal para
lutar contra o mal.
Da mesma maneira que o fogo não apaga o fogo, o mal também não pode apagar
o mal. Só o bem diante do mal sem ser atingido por este pode triunfar do mal.
Em 1909, um ano antes da sua morte começa com Gandhi uma correspondência
apaixonante. A última carta é considerada o seu testamento espiritual; o evangelho da
não-violência, segundo Romain Rolland.
Gandhi procura, junto do seu mestre, um apoio para a acção de resistência na
África do Sul a favor dos direitos da minoria indiana. Ele pede também a Tolstoi que
publique no seu jornal a famosa carta a um Hindu que o escritor russo acabava de
escrever a um correspondente indiano adepto da violência para lutar contra o império
britânico. Nesta carta, Tolstoi explica que são os indianos os responsáveis da sua
submissão pois eles só reconhecem a lei da violência.
Fortemente impregnado pelo discurso de La Boetie, sugere-lhes que não
participem em nenhuma forma de violência, contra acções da administração, dos
tribunais, dos cobradores de impostos e sobretudo, dos soldados. É esta estratégia de
não cooperação e de desobediência civil que Gandhi porá em prática no seu combate
pela independência da Índia.
Ele assume todas as afirmações do seu mestre, mas sobretudo organiza uma
acção política não violenta com o objectivo de libertar o seu povo da opressão colonial.
Não se limitou, a denunciar; agiu e construiu (acção positiva). A não-violência de
Gandhi não é sentimental, mas estratégica.
Na situação mundial actual e no quadro moçambicano, sobejamente marcados
pelo triunfo do indivíduo, este texto poderia parecer extemporâneo. Porém, nós
carecemos de liberdade, do uso livre da consciência e do pensamento, do uso da palavra
e do diálogo. Antepomos as armas à conversa; continuamos a obedecer, no interior dos
partidos políticos, às falácias do FMI, do Banco Mundial; às mentiras da sociedade do
ter mais, as várias formas de sedução com que Abadom nos cativa: prestígio, riqueza,

113
poder. Em nome destas obediências, vivemos continuamente armados, não só nas mãos
com Kalashnikovs, mas também nos pensamentos e vontades.

Contudo, a liberdade não é só a dimensão negativa da não obediência; ela exige


também acção, o abandono da apatia; e implica uma diferenciação entre o pacífico e o
passivo.
Durante as conferências intermináveis, dispendiosas e infrutíferas de Joaquim
Chissano, recordei-me de um conclave de Lazio, em que se devia escolher um papa. Há
certa altura, o povo, cansado das discussões barrocas em curso, decidiu fechar os
cardeais dentro sem água nem comida, com a intimação de que só sairiam de lá depois
de escolherem o novo pontífice. Não levou muito tempo para que o fumo branco saísse
do telhado: habemus papam.
Não estou a defender a desobediência civil, como também não aceitei a
desobediência militar. Mas, na esteira e em complemento a La Boétie, ao lado da
liberdade negativa – não obediência – proponho uma liberdade positiva: a participação
civil mais activa, mais viril, mais determinada. Uma sociedade mais dona da
democracia e, por conseguinte, do seu destino.
A proposta de uma acção comum mais ampla não tem que ver com nenhuma
violência, nem com o incumprimento da lei, mas com a necessidade de se criar – exigir,
reivindicar – uma democracia aberta, de todos no diagnóstico dos problemas e na busca
de soluções. Como dizia o pragmatista John Dewey: os problemas são de todos e só um
concurso democrático de todos pode fazer-lhes frente.
A voz do povo é dotada de sabedoria oculta, estranha, mas superior à razão.
Como diz Cícero, mesmo ignorantes, os povos são capazes de verdade, e eles
consentem facilmente quando vêem que um homem dotado de fé lhes diz o que é justo
(certo).
Enquanto eu escrevia este livro, Nyusi anunciou o que, para o meu gáudio, foi
confirmado pelo presidente da RENAMO, Afonso Dhlakama: um acordo de cessação de
hostilidades e a criação de comissões para a descentralização e para os assuntos do
exército. Porém, em nenhum momento foi dito em que consistiam. Se forem de
acomodações político-económicas, tais acordos podem resolver os problemas da
RENAMO e da FRELIMO, mas não necessariamente os das populações. Aliás, existe
ainda a possibilidade de se entender que, pelas armas, se podem obter mordomias, o que
seria de mau agouro para a paz e estabilidade nacionais.

114
Não obstante, o presidente, numa outra ocasião, pediu que todos apoiassem o
processo. Contudo, ele – ou eles – não acarinham a vontade de participação de outras
forças vivas da sociedade. Não há espaço de participação nem para o MDM (Simango é
simplesmente informado sobre o desenrolar das coisas), menos ainda para os partidos
extra-parlamentares, nem para a sociedade civil nas suas diferentes expressões; apesar
dos repetidos pedidos e exigências nesse sentido.
A paz é demasiado importante para ser deixada nas mãos de só dois partidos
políticos – neste caso dois exércitos. Não foram poucas as decepções que nos pregaram.
Além disso, resolver as tensões entre eles não significa solucionar os diferendos
políticos que há décadas se acumularam e minam as relações.
Organizar um processo de reconciliação nacional, sob qualquer forma, seria
solucionar não só os problemas actuais entre os beligerantes, mas antecipar todos os
focos dos nossos conflitos. Seria, sobretudo, inscrever no quadro jurídico e
constitucional, novas formas de deontologia e de praxis política: o diálogo e a
participação aberta de todos os cidadãos.
Se voltarmos ao nosso estudo de caso sobre os militares gauleses durante o
regime de Vichy, temos que admitir que eles agiram de maneira moralmente correcta,
não porque desobedeciam, mas porque as suas acções estavam em conformidade com a
Constituição, isto é, com o quadro dos valores que regem o viver dos franceses.
A questão, pois, no nosso contexto, seria se os militares, os administradores, os
governantes, os ministros, os funcionários públicos, são fieis à Constituição, ou se o são
aos paradoxos e às visões movediças e, muitas vezes, contraditórias dos partidos e do
governo.
A acção dos governantes só é legitima se conforme, de um lado, ao mandato do
povo e, do outro, à lei. Por isso, as liberdades activas devem ser confirmadas pela força
da Constituição. Entretanto, outra objecção se pode levantar: dado que algumas formas
desta participação activa, apesar de contempladas na lei, são hoje consideradas
ilegítimas e por isso mesmo proibidas e até punidas; quem é o intérprete ou juiz dessa
conformidade ou não da acção política com a lei?

O Estado moderno estabeleceu um poder que garante a conformidade da acção


política dos governantes e dos outros cidadãos com a lei. A recente anulação do decreto
Trump sobre os refugiados por parte dos juízes da corte suprema, nos EUA é uma clara
demonstração disso. Este ponto está directamente ligado à questão de uma verdadeira

115
divisão de poderes; não devem depender todos do presidente da República, quer ele se
chame Nyusi, Dhlakama ou Simango. Estes sistemas de descentralização e controlo
recíproco são também uma forma de resistência contra Abadom. Significa que nenhum
presidente ou autoridade poderia, por si só, decidir sobre a guerra ou a paz; quer isso
fosse por razões políticas, ideológicas ou pecuniárias.

No ângulo geograficamente recôndito e historicamente anacrónico do Maputo,


reside – espero que não seja ainda por muito tempo – o triângulo de Montesquieu: o
poder legislativo, o executivo e o judiciário. A democracia poderia funcionar se cada
lado cumprisse a sua função no controlo dos excessos dos abusos do poder que lhes foi
dado. É no equilíbrio deste triângulo que se joga o futuro da democracia moçambicana.

116
CONCLUSÃO

Como fazer uma nação autêntica capaz de parir um mundo reconciliado?


Recursos existem, possibilidades também, mas os interesses particulares
continuam a prevalecer e são a fonte principal dos conflitos e das guerras.
A filosofia e o filósofo revoltam-se contra a desordem do país e do mundo,
contra as opressões, as desigualdades, as injustiças, a violência. Ao mesmo tempo,
militam para a construção de uma família fundada sobre a justiça.

A Justiça é a única costureira que pode re-tecer as peças ou farrapos e pôr termo
à violência. Para isso, é necessário também conservar a ambição da verdade lembrando
que esta é sempre problemática; mas a justiça, como diz Derrida, é o que está à nossa
frente, o que temos que procurar.
Existe lugar e tempo para sonharmos novas utopias: alimentar a população,
democratizar a democracia, criar uma sociedade mais transparente e participativa,
transformar os partidos em proponentes de ideias e soluções (e não de conflitos),
abandonar, de uma vez por todas a guerra como meio de procurar o termo dos nossos
diferendos.
Jacques Derrida, n’“O Espectro de Marx”, dizia que o fim do comunismo tinha
libertado o filósofo. Hoje podemos ler e falar de Marx sem o assombrar com Estaline e
com Gulags. Da mesma maneira, os acordos de paz nos deveriam ter libertado de uma
leitura ideológica do nosso passado recente. Assim poderíamos ir procurar na história as
utopias do nosso futuro. Os ideais de unidade, trabalho e vigilância são valores que
podem nortear o nosso viver juntos.
A conotação da unidade deve ser pensada como comunhão cum munia, bens
partilhados – como justiça, como ainda necessidade de cozer as diferentes partes
separadas e dispersas de Moçambique num tecido comum. Quanto mais fio
acrescentarmos, mais sólido será o tecido; quanto mais cores das nossas diversidades
ajuntarmos, mais colorido e bonito se tornará. O importante é que, como numa equipe
de futebol, cada um ocupe com rigor e seriedade o seu lugar e dê o melhor de si próprio.
A pergunta do velho escravo Booker Washington deve continuar a nos
perseguir, a nos incomodar. O que é que a liberdade comporta como responsabilidade?

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O trabalho, a auto-responsabilidade, o depender das próprias forças, é a conditio sine
qua non para conservarmos a nossa liberdade, a nossa soberania, a nossa independência.
A vigilância, antes agir em relação aos outros, deveria ser uma atenção sobre nós
próprios para que, através da criação e consolidação de uma liberdade negativa (a não
obediência) e activa (uma maior participação cívica e económica) nos leve, através do
diálogo e cooperação, a uma liberdade maior: à liberdade de todos.
Tudo isto, que parece excessivo, é ainda, como diria Amílcar Cabral um
programa fraco. O objectivo, o programa forte é A PAZ – nós continuamos em guerra
–, O DESENVOLVIMENTO – nós somos ainda muito pobres – e a FELICIDADE DOS
POVOS – nós fazemos a infelicidade dos nossos povos.

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BIBLIOGRAFIA

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Colonialismo. Lisboa: Divina Comédia Editores, 2013.
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CAMUS, Alberto. O Homem Revoltado, Sao Paulo, 1951.
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Éditions Ramsay, Paris
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Sociobiology: the new syntesis. The BeltnapHarvard University Press1975
ZIZEK, Slavoj. A Europa à Deriva. Lisboa: Objectiva, 2016.

119
[atenção – o texto que vai abaixo deve ser colocado na capa posterior do livro, do lado de fora
como antípoda da face frontal da capa com o título]

No andar de baixo, rés-do-chão, uma turba de anónimos, analfabetos, esfomeados,


indigentes, sem domicílio fixo porque obrigados quotidianamente a fugir dos ataques, das
bombas; (…)
No andar imediatamente acima, surgem os militares, alguns fardados, outros
esfarrapados, crianças com armas, jovens mobilizados à força pelos serviços de recrutamento
obrigatório, sequestrados, drogados e obrigados a usar a metralhadora, fanatizados pelas
ideologias cristãs, judias, islâmicas, hindus, confucionistas, marxistas, anarquistas. (…).
No segundo andar vem a plebe, a massa de trabalhadores que há-de pagar as ingentes
dívidas externas, (…) crianças que nascem para pagar os empréstimos, (…). Mas são uma
matula preciosa, porque sem eles o reembolso dos juros da dívida não seria garantido. ...
No andar superior, os pecuniocratas: aqueles para quem o taco é o totem diante do
qual se ajoelham; contraem dívidas ilícitas; fazem negociatas, especulam sempre na condição de
terem uma percentagem, uma comissão mesmo que seja a preço do sofrimento, da fome, da
miséria, da indigência e até da morte dos demais. (…) Ainda não puderam vender o ar e o sol;
mas já venderam água; não falta muito para que consigam o resto.
Mais acima, os traficantes: de bombas, minas, de produtos tóxicos, de órgãos humanos,
de drogas e produtos de contrabando; de prostitutas, crianças sequestradas, emigrantes sem
segurança e escravos (...). Eles são simplesmente a marinha mercante; lockianos: ferrenhos
defensores das liberdades políticas e económicas, mas orgulhosos proprietários de navios
negreiros.
Seguem-se noutro andar, os financiadores. Não perdem tempo com negócios inúteis: a
agricultura, o trabalho, a construção, os hospitais, as escolas – isso não é rentável. Financiam
prioritariamente o que está a dar e emprestam dinheiro a preço de usura. Pagam as guerras, os
massacres, …
No vértice, os vencedores (…), os membros do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, ao mesmo tempo garantes da paz e maiores fabricantes de armas. (…) os únicos
detentores legítimos de armas de destruição maciça, através das quais consolidam as suas
posições hegemónicas, (…) com intervenções e guerras “justas”.

- - -

Face aos dramáticos horrores de hoje, torna-se infelizmente difícil descartar a via militar
para desarmar terroristas, o que não significa isentar os estados – democráticos e aliados – das
suas culpas e responsabilidades, que mesmo durante as épocas de paz, fizeram mais mortos do
que os terroristas. Por outro lado, deve-se também afirmar veementemente que a guerra é um
meio impróprio para fazer face às questões da justiça. Por isso, ela não pode, de nenhuma
maneira, ser considerada um bem – um bom caminho – nem a única, nem a última voz. Ela
pode parecer neste momento necessária, mas continua sendo um mal.

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