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UMA LEITURA DOS BÚZIOS


ESBOÇO PARA TRABALHO DE ATRIZES E ATORES

de MONICA SANTANA
dramaturgismo de gustavo melo cerqueira e marcio meirelles

2022

Personagens (por ordem de aparição)


Rainha Dona Maria I
Desembargador Costa Pinto
Luiz Gonzaga
João de Deus
Lucas Dantas
Manuel Faustino
Frei Carmelita Descalço
Corpo estilhaçado
Luís Pires
Pátria Brasil - Narradora
Mulheres Narradoras
Enteados
Miliciano Pardo
Ganhadeira
Homem Escravizado
Freiras
Pescador
Carcereiro ou Mordomo da Prisão
Interrogadores

Domingos Lisboa
Ana Rommana
Luiza Francisca
Governador Fernando Portugal de Castro

ABERTURA - EXU

O CORTEJO FÚNEBRE

Todo elenco em cena. Cortejo fúnebre dos quatro condenados na Praça da Piedade
(Salvador - 4 de novembro de 1799). Música de entrada e instalação do sacrifício
exemplar.

CARTELA:
4 DE NOVEMBRO DE 1799

PATRIA BRASIL:
Canto para Exu
E IMBARABÔ AGÔ MOJUBÁ E MACOXÉ
E IMBARABÔ AGÔ MOJUBÁ E MABÉ CÓ E CÓ
E IMBARABÔ AGÔ MOJUBÁ E LEGBARA
2

EXÚ LONÃ
E LEGBARA E LEGBARA
LEGBARA A GONGÓ ONGÓ
E LEGBARA LEGBARA
A GONGÓ ONGÓ
ARA UM BEBE TIRIRI LONÃ
EXÚ TIRIRI
MOJÚ LEGBÁ O KINIJÃ
MOJÚ LEGBÁ O KINIJÃ
AO AO KINIJÃ
AGO MAJIXÓ KINIJÃ
INÁ INÁ MOJUBÁ MOJUBÁ
XÔ XÔ ABÉ XÔ XÔ ABÉ
ADABÁ CORO BI EJÓ
LAROIÊ XÔ XÔ ABÉ
ADABÁ CORO BI EJÓ
EXÚ A XOROQUÊ
LEGBARA KARAÓ
OTIM NIBÉ FUM FUM
OTIM NIBÉ ODARÁ
A MOJÚ LEGBARA
XEQUETÉ
DAGO LONÃ AKUÊ UMBÓ
DAGO LONÃ E

CORO: 1
Mater divina gratia, ora pro nobis.
Mater purissima ora pro nobis.
Mater castissima, ora pro
nobis. Mater inviolata, ora pro nobis.
Mater intemerata, ora pro nobis
Mater amabilis, ora
pro nobis. Mater admirabilis.
ora pro nobis. Mater creatoris.
Mater Salvatoris.
Virgo prudentissima
Virgo veneranda.
Virgo predicanda
Virgo potens
Virgo Clemens
Virgo fidelis.
Speculum justifiae sedes sapientiae
Cauza nostrae letitia
vas Spirituale
vas honorabile
Vas insigne devotionis
Rosa mystica

1
No caderno de Luís Gonzaga das Virgens há diversas orações, receitas, trechos de livros, preces,
anotações diversas. Este canto oração foi extraído de um destes cadernos. FUNDAÇÃO PEDRO
CALMON, Edição Comemorativa 220 Revolta dos Búzios. Arquivo Público da Bahia - Salvador:
EGBA, 2022, p. 140.
3

Turris Davidica
Turris ebornea
Domus aurea
Toederis arca
Janua Coli
Stella Matutina
salus infirmorum
Refugium peccatorum
Consolatrix afflictorum

RAINHA:
O castigo deve ser exemplar:
o que significa ter a medida certa
para provocar estupor e temor.
Inspirar mais covardia
que coragem.
Exemplar
para que se recue qualquer novo gesto
semelhante
e o corpo todo se contraia
em respeito.
O castigo não deve insuflar o ódio
ou vontade de vingança
Por isso, a medida certa.
Não pode ser tão vil que,
onde deveria brotar respeito,
se entranhe a revolta.
Para todas as coisas,
as boas e as pérfidas,
há que se ter medida.

DESEMBARGADOR:
São eles
indivíduos da mais baixa classe dos homens pardos,
qualidade que lhes era odiosa
pretendendo por isso extingui-la
por meio de indistinta igualdade
a que aspiravam,
fazendo disseminar ideias livres
e sentimentos antipolíticos
entre aqueles que supunham mais capazes e dispostos a segui-los.
As imaginárias vantagens
e prosperidades
de uma república democrática,
onde todos seriam comuns
sem diferença da cor e nem da condição,
onde eles ocupariam os primeiros Ministérios,
vivendo de abundância e contentamento.
O inquérito concluiu como culpados
estes infelizes e desgraçados réus.
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A justiça de Nossa Senhora ordena que sejam levados a forca


para que nela morram de morte natural para todo sempre,

CARTELA
Os condenados Luiz Gonzaga das Virgens, Lucas Dantas de Amorim, João de Deus
Nascimento, Manuel Faustino dos Santos Lira e o ausente Luiz Pires

Lucas Dantas de Amorim,


João de Deus Nascimento,
Manuel Faustino dos Santos Lira,
e o ausente Luís Pires.

Ao execrável réu Luiz Gonzaga das Virgens,


homem pardo,
natural desta cidade de Salvador,
é ordenado que seja cortada sua cabeça
e separadas suas mãos.
E ficarão postadas no lugar da execução
até que o tempo as consuma.

O acórdão do Tribunal da Relação também ordena


a confiscação dos bens para o fisco e câmara real.
Declaramos infame a memória desses homens,
de seus filhos e netos.
Ordenamos a demolição das suas casas
e que elas sejam salgadas para não mais se edificar.

FREI CARMELITA:
É estranha a festa da justiça
diante da projetada revolução.
Não sou eu quem chamo a salvar estes homens,
só Deus com sua graça.
Peço à Virgem Maria que ela possa conceder a misericórdia
que os homens da terra não foram capazes de lhes oferecer.

Eu tenho como fé, que são muitos os culpados do mesmo delito


que só esses quatro pagarão com a pena última.

CORO:
Carnes e ossos retalhados na Praça
que não tem Piedade de ninguém

FREI:
Deus, olha por esses quatro pequenos réus.
Mas também abraça estes
que olham com desprezo
para este palco.
Permita assim que a misericórdia se faça.
5

CORO:
Carnes e ossos espalhados nas ruas
com nomes de santos
que não salva ninguém

Nesta cidade
Salvador
Que não salva ninguém.

Carnes e ossos adornam as janelas e portas


de onde os homens viveram
Para os olhos dos vivos não esquecerem
do destino dos que ousam
Para o olfato dos vivos não esquecerem
do cheiro da vida desfeita
Para que a morte dance nas ruas
junto com as moscas e a vergonha
que cobre esta cidade

UM CORPO ESTILHAÇADO:
Um corpo estilhaçado
deixa de ser um corpo.
Apenas um corpo.

CORO:
A dor que resta se estilhaça no tempo
Até hoje quantos ais

UM CORPO ESTILHAÇADO:
Um corpo estilhaçado
pode ser uma ideia que se espalha.

CORO:
A dor que resta se estilhaça no tempo
Até hoje quantos ais

UM CORPO ESTILHAÇADO:
Vingança.
Revolta.
Lembrança.
Inspiração.

CORO:
A dor que resta se estilhaça no tempo
Até hoje quantos ais

UM CORPO ESTILHAÇADO:
As ideias são estilhaços do corpo.
E são maiores que a morte.
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O sacrifício dos quatro homens é feito. O funeral transforma-se num cenário de


revoltas coloniais.
ATO I . JOÃO DE DEUS NASCIMENTO
ALFAIATE
1771 - 1799

ATO I . CENA 1 - SOBRE A HISTÓRIA

Paisagens de revoltas, motins, estratégias coletivas de resistência. Brasil,


América afora.

Cartela: Brasil, 1500

ATRIZ CABOCLA:
Desde quando o Fim do Mundo chegou aqui
navegando em caravelas
a gente luta com braço lança dentes unhas fuga
eles com pólvora sarampo varíola navio açúcar ouro exército espelho trator avião
veneno bomba milícia pastores
notícia falsa

Todo dia houve guerra motim batalha


Sem nome
sem quadro bonito no museu cemitério
sem lembrança nos livros que vocês estudam.

Houve um tempo sim, que comemos eles


Mas rápido ensinaram que era pecado
Só não disseram que nos comeriam tanto e tão rápido que mal conseguem mastigar

São diferentes as histórias:


as dos negros da terra e as dos negros do mar
Mas são histórias
de como uma gente pouca gasta gente muita
Veloz gasta
E não é porque vocês enxergam paz onde não tem
que ela existe2
viu?

NARRADORA 2:
A história é escrita longa.
Escrita com muitas mãos,
documentos,
páginas de jornais.
Escrita nas memórias daquelas
e daqueles
que não constam nas páginas

2
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
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nem dos autos.


A história se escreve nos pais
que um dia ficaram ausentes,
nos corpos não encontrados.
Também na comida que falta.

NARRADORA 3:
Hora de estabelecer os pactos dessa obra:
denunciamos a narrativa
Nesta denúncia te lembramos daquilo que você já sabe:
muitas mãos disputam a história
Nós colocamos nossas mãos
pés
joelhos
coxas
olhos
corpo inteiro
na disputa
Porque a história nos declara ausentes
de quase tudo
na maior parte do tempo

Presentes estamos para contar de novo


de outro jeito.
E não
não somos neutras
Nenhum narrador é

NARRADORA 1:
Existe em nós,
ecos das vozes
que não foram escutadas3
Ainda há
Ecos das vozes emudecidas
Ainda há
Ecos das vozes
Que ousaram perguntar
Ainda há
Por isso, eu canto
O canto das vozes que ousaram falar
E das que não puderam
Eu canto
E eu ouço
Os ecos das vozes sob máscaras de flandres,
sob açoite,
sob forcas
3
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In Obras escolhidas Vol 1 - Magia e técnica; arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1987.
8

Eu ouço
Os ecos das vozes nos camburões
Eu ouço
E eu canto

NARRADORA 2:
As revoltas não duram para sempre.
Elas duram o tempo de nos lembrar da nossa força.
Elas nos lembram que o poder,
assim como nós,
tem medo.

As revoltas são movidas a raiva e esperança.


E mesmo que elas sejam furiosamente sufocadas
com violência descomunal
seu germe atravessa o tempo.

O passado nunca dorme – ainda que queiram.


O passado e o futuro nos gritam: coragem.
Nem os mortos estarão em paz se eles ganharem outra vez.

Pra que haja futuro.


Eu sei.
Aqui vamos escovar a história a contrapelo4
E fazer um apelo aos ouvidos de quem nos escuta:
as rebeliões olham o futuro
é a nossa vez.

ATO I . CENA 2 - AS PARTES DA PIRÂMIDE - DA RAINHA E DO REGENTE

O caos se dissolve e monta-se a paisagem colonial, convivendo entre planos:


a Coroa Portuguesa, acima do chão; as elites coloniais ou a confederação dos
enteados e as classes baixas e racializadas.

CARTELA:
Coroa de Portugal: Rainha D. Maria I, Regente Dom João VI e Ministro Marinha e
Ultramarino D. Rodrigo de Souza Coutinho.

DONA MARIA I:
Esse trono não é tão grande que possa caber toda essa gente sentada, caralho... É
gente demais. Por favor, peço que saiam. É que a porra da coroa já tomba. Ela está
decaindo da minha cabeça. Com a coluna torta não consigo sustentar a coroa na
cabeça. É pedra demais. É ouro demais. É sangue de gente demais nessa coroa.
Ela está decaindo. Saiam antes que a merda da coroa tombe. Ela não vai se
sustentar.
4
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In Obras escolhidas Vol 1 - Magia e técnica; arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1987
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DOM JOÃO VI:


Ordeno que vasculhem os cantos, à procura dos ratos franceses, eles se fingem de
nobres, mas são só burgueses querendo invadir os aposentos.

D. MARIA I:
É homem demais passando as mãos pelas minhas costas, segurando meus pulsos.
É gente demais. Saiam, buceta. Saiam para que eu possa fechar os olhos. Porra.
Quando acordar, serei coerente, eu prometo. Eu…

DOM JOÃO VI:


Para Maria:
Sou seu servo, minha mãe. Sou seu servo. Sou suas mãos e sua boca. Sou seu
cérebro lúcido. Seu filho. Aquieta e descansa. Apenas.
Para Rodrigo:
É preciso que mandem queimar os livros como quem queima roupas tocadas pela
peste. Queimem todos os livros franceses que encontrarem na Colônia. Monitorem
a chegada dessas ideias pestilentas, cultivadas em São Domingos. Não permitam
que esses bárbaros franceses se infiltrem nos portos do Brasil. Nem que eles
envenenem as elites com arroubos de traição. Não se criarão aqui! Nem lá!
Por fim, Dom Rodrigo, traga os relatórios sobre as exportações e cobranças das
taxas o mais depressa. É preciso saber a quem podemos pedir empréstimo no
Brasil. Se aos comerciantes ou às freiras.

DOM RODRIGO:
Minha recomendação para o equilíbrio das finanças da coroa, vossa majestade é a
reforma fiscal nas colônias, mantendo o controle em nossas mãos para evitar
emancipação das colônias e trocas entre si. Há morosidade na cobrança dos
impostos, diminuição das receitas alfandegárias com as cobranças de tributos feitas
pelos colonos, além da falta de controle ideológico. Reformas conservadoras,
controle, austeridade e redução da carga fiscal são as minhas recomendações,
majestade. E claro, também a modernização no sistema de distribuição de terras na
colônia...

DOM JOÃO VI:


Vossa senhoria me diga: como faremos reformas que não amanhecerão revoltas?

ATO I . CENA 3 - AS PARTES DA PIRÂMIDE - DOS ENTEADOS

CARTELA
Corporação dos Enteados5 ou senhores e senhoras de consideração da Velha Bahia

NARRADORA 4:
Homens de condição, da Ordem de Cristo,
com papéis na administração régia da Capitania da Bahia,
tinham uma habilidade grande
em negociar com a Coroa e preservar seus interesses.
5
VALIM, Patrícia. Corporação dos enteados: tensão, contestação e negociação política na
Conjuração Baiana de 1789. Salvador: EDUFBA, 2018.
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Os enteados não são filhos


são enteados: próximos, mas não amados..

Como num programa de debates televisivos, tal qual um Manhattan Connection,


ricos senhores liberais discutem sobre economia, animadamente.
ENTEADO 1:
O agro é tudo! A Coroa tem muito que agradecer à Bahia por toda riqueza que
geramos. Oferecemos muito mais que o açúcar de outros tempos. As commodities
que produzimos são fundamentais para o movimento das engrenagens do conjunto
dessa terra. Nós diversificamos nossa produção com fumo, couro, arroz, algodão,
cacau, aguardente.

ENTEADO 2:
Além do tráfico de africanos, produto dos mais valiosos nesse mundo.

ENTEADO 3:
Somos mais que velhas plantations. E é por tudo isso, que muito lamentamos que a
Coroa não reconheça nossa prosperidade e força econômica, mudando a capital da
colônia para o Rio de Janeiro, que de longe não produz as mesmas riquezas.
Somos o mais próspero porto das Américas!

ENTEADO 4:
Somos uma comunidade mercantil importante, emprestando altas quantias para
Portugal e em troca recebemos o que? A estrutura engessada que a Coroa nos
impõe não nos parece justa, já não é de agora. Desprestigiados, explorados e
supervisionados por estruturas que atravancam nossa expansão, nós somos
taxados de queixosos.

ENTEADO 5:
É chegado o fim do tempo das queixas: é hora da liberdade. Liberdade de ver
nossos produtos alcançarem outras praças europeias, quiçá asiáticas! É hora dessa
capitania mostrar para a Coroa que ela depende de nós mais do que o contrário.

ENTEADO 3:
Não há em nossa fala arroubos golpistas.

ENTEADO 2:
Somos leais à Coroa!

ENTEADO 4:
Entretanto, a Coroa nos proibiu de ter desenvolvimento industrial. Esses
ministroszinhos portugueses vêm com um papinho de modernização, mas aquilo lá
também nem é moderno.

ENTEADO 3:
Modernos somos nós! E somos tão leais à Coroa que até poderíamos vender
nossos produtos por meio de contrabando, comprar produtos manufaturados de
outras potências econômicas, muito mais evoluídas, mas não fazemos...

ENTEADO 5:
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E diante disso tudo, eles ainda apontam para nós questionando privilégios no
controle da terra. Mas o que será desse país, se de repente, todo mundo achar que
pode comprar sua terra livremente, sem passar por nós?! Por outro lado, querem
retirar de nós o papel de cobrar as taxas e dízimos aos comerciantes locais,
alegando que cobramos valores abusivos. Ora, falam até em quem tem mais, pagar
mais...

ENTEADO 2:
Nos chamam de abusivos.

ENTEADO 5:
Abusivos são eles que impedem o nosso crescimento! É disso que falamos aqui,
senhoras e senhores. Falamos de liberdade! Livre comércio! Livre pensamento!
Livre circulação!

ENTEADO 6:
Quero voltar ao ponto dos privilégios. Qual é o privilégio que nós temos? Privilégio
de vender toda nossa riqueza para uma única praça? Quando o mundo nos quer?

ENTEADO 5:
A França nos quer!

ENTEADOS:
A França nos quer!

CORO:
Allons enfants de la patrie
Le jour de glorie est arrive!

ATO I . CENA 4 - AS PARTES DA PIRÂMIDE - DE TODOS PRETOS E TODOS


PARDOS
CARTELA:
Pessoas negras em Salvador do Séc. XVIII

MILICIANO PARDO:
Sou pardo. Sou forro, sim. Eu e minha mãe somos forros. Meu pai deu a carta. Sei
ler, sei escrever.
Sou forro, mas não sou livre. Escute bem o que digo. Não sou livre. Nenhum
miliciano é. Miliciano desta época aqui é diferente do tempo de vocês. Os milicianos
existiam pra fazer a proteção da Bahia. Antes de existir polícia.
Um miliciano da minha cor, não prospera na função. Sendo pardo ou sendo crioulo
não prospera, nem vai longe.
Me pegaram pra isso. Eu nem queria. Nunca quis. Fugi duas vezes, tentei me meter
no mato, ir pra longe. Me trouxeram de volta. Me castigaram e muito, porque eu
desertei.
Escute o que lhe digo: a gente trabalha na base de 14 horas de relógio, às vezes,
15 horas de relógio. É pesado, é brabo. Tem vez que tem soldo, tem vez que não
tem.
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Um soldo que me paga um quarto muquifo, uma cama de madeira cheia de cupim.
A gente passa o dia todo recebendo ordem dos branco mais encardido, que nem
fosse capataz.
A gente apanha e ainda tem que viver garantindo ordem. Ora, veja: ordem. Xingam
a gente o dia todo. Insolente, preguiçoso, burro.
Por melhor que eu seja, dentro da milícia, eu não posso crescer. Nenhum de nós
pode. Só os brancos.
Ouvi dizer que tem gente lá na Coroa que acha uma infâmia ter pardo e preto nas
milícias. Que é perigoso porque a gente mexe com armas.
Mire e veja. Eu queria é que a gente tivesse coragem pra pegar as armas e virar pra
eles.

MULHER NEGRA:
Minha mãe rezava às vezes
pedindo que o de comer fosse tão abundante
quanto era o castigo
Pra ela não foi.
A reza da minha mãe não fez crescer o prato dela. Mas sua reza me trouxe sorte. É
bem verdade que não acho que gente como a gente tem sorte.
O negócio é que me deram pro filho do dono do engenho e vim pra cá pra cidade da
Bahia e deixei a Vila de Cachoeira.
Sou ganhadeira. Tenho que vender e prestar conta do que ganho pro senhor no final
da semana. E o que sobra, eu guardo. Guardo desde que cheguei. Vou ser forra
logo, logo.
Eu subo e desço, carregando de vender, andando pelo chão desta cidade inteira.
Até que vendo tudo. E aí, finalmente, a cabeça se alivia do peso do balaio e do
trabalho.
O homem diz que me dá a carta quando eu juntar o dinheiro.
E vou continuar no ganho pra ajudar meu irmão a ser forro.
E assim é: na vida a gente tem que ter visão.
Não posso guardar domingo nem dia santo.
Todo dia é dia de preta ganhar.
E enquanto tenho luz nos meus olhos, tenho gana de liberar um a um.
A rua é melhor que a roça, é melhor que ficar na casa do senhor.
Na rua, eu tenho boca, olho e ouvido.
Aqui o rio sou eu também. Na minha cabeça, eu levo os barcos. Levo as minhas
ideias, que não são poucas.
O que tem nos balaios não é meu, eu sei. Mas o que está na minha cabeça, sim. E
na minha cabeça, eu já sou livre. Ser livre é meu trabalho.

HOMEM ESCRAVIZADO:
Meu senhor me aluga pras pessoas. Pra gente que não tem muita condição de ter
um escravo. Que não tem dinheiro e nem mora em casa que possa ter mais gente.
Então, eu sou alugado pra essa gente. E aí eu faço o serviço pra eles. Eu faço
entrega pros alfaiate.
Vim de Angola menino. Já não lembro como era lá. Tratei de esquecer. Coisa boa é
esquecimento. Esqueço tudo. Ouço muito e logo esqueço. Guardar lembrança não é
bom. Falar muito também não é. Vive mais quem fala menos. Vive mais quem não
se vê. Quem passa batido, escondido. Passa a si. Passa os papéis. Passa as
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ideias. Vive mais quem olha baixo. Coragem demais chama atenção. Morre cedo.
Prefiro que me deixem quieto, ruminando minhas coisas.
Guardando tudo e esquecendo o que convém.
Eu próprio nem sei de mim. É melhor assim. Não lembrar. Eu nem existo.
Vendo a paisagem colonial, com pessoas brancas sentadas confortavelmente
e pessoas negras carregando o peso da cidade nas costas, João de Deus
cruza a cena e diz em tom de desabafo.

JOÃO DE DEUS6:
É muito bom ter dinheiro, como vai aquele ali que vai repimpado em sua cadeira7,
E eu que não tenho dinheiro, ando à pé;
E por acaso, haverá tempo em que todos andarão a pé,
Sem serem carregados por criaturas?
Haverá tempo em que as criaturas poderão andar sem carregar outros homens nos
ombros?
Haverá tempo em que poderemos ser grandes à vontade, independente da cor da
pele, da cor do pai, do avô, da mãe... haverá?
Não sei se é o sol forte, mas essas visões me deixam de cabeça quente
E de cabeça quente, começo a praguejar: a falar pra todos ouvidos que queiram
ouvir
É chegada a hora da festa da revolução!!!
A hora de derrubar os infames coroados, os infames encostados, os infames que
nos dão ordem
É hora de espalhar a notícia: cativos, estão prontos para lutar por liberdade?

LUIZA FRANCISCA:
João de Deus, a língua solta ainda te mata homem

JOÃO DE DEUS:
É que eu não sei ser pequeno, caber pequeno, falar baixo, olhar pro chão
Eu quero a cor vermelha, o terno de veludo, o sapato com fivela brilhante
A gravata de seda, a cartola
Eu nasci para ser grande e tudo que me comprime: eu rasgo
Pois vos confesso: eu já tenho talhado o traje da festa, para a noite em que a estrela
da liberdade vai raiar no céu
Já tenho bem cortado.
Costuro pacientemente o melhor tecido
Já abri conta no bar e tão logo ordeno: bebam por minha conta
É chegada a hora da revolução!
Os repimpados cairão nessas pedras, posso ver!
E não mais será preciso apertar para caber
E te anuncio, não estou só. Tenho muitos comigo.
Bordando pacientemente esse estandarte: animai-vos!

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SACRAMENTO, Flávio Márcio Cerqueira do. De pardo infame a herói negro: o mestre alfaiate João
de Deus do Nascimento. Cachoeira: UFRB, 2016.
7
Depoimento de Ricardo Bernardino Guedes, homem branco que depõe o dia 25 de outubro de
1798, dizendo que João de Deus do Nascimento havia questionado um homem sendo carregado
numa cadeira de arruar. Ver: FLEXOR, Maria Helena (org.). Autos da devassa da Conspiração dos
Alfaiates (ADCA). Salvador, APEB/ Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, 1998, v. I, 1998.
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ATO I . CENA 5 - O JANTAR DE CARNE NA SEXTA-FEIRA SANTA - ACORDOS

CARTELA:
O JANTAR DE CARNE NA SEXTA FEIRA SANTA ou sobre desobediências

Em cortejo, representantes das distintas classes sociais de Salvador, saem


pelas ruas na noite de Sexta-feira Santa, comendo carne, tomando vinho e
cantando em tom de deboche.

CORO:
Igualdade, e liberdade,
No Sacrário da razão,
ao lado da Justiça.
Preenchem o meu coração

FREI:
Tomai e comei todos vós
Esse é meu corpo que é dado por nós

LUIZ GONZAGA:
De todas as tradições dessa cidade,
essa é a mais saborosa:
Jantar carne na Sexta-Feira Santa!
Deliciosa heresia!

DOMINGOS:
Nosso lugar na antessala do inferno
já está guardado
Ardendo em brasas
Somos um maravilhoso rebanho de hereges!

FREIRA:
Piedade, senhor, Piedade.
Jejum, silêncio, beatitude, penitência.
Piedade, senhor, Piedade
Esposa do Senhor, eu sou, nós somos

OUTRO FREI:
Tomai e bebei todos vós
Esse é meu sangue, o sangue
da nova e da velha aliança
Que é dado por vós

ESCRAVIZADO:
Eu que já vivo de jejum em jejum,
Já não tenho alma mesmo
Me alegra comer carne boa e farta
Beber vinho bom
E ouvir essa gente boba
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falando sobre liberdade

PESCADOR:
Meu velho, e cá? eu que vivo de peixe
dia sim dia também
Já tenho farto crédito com Jesus
E na Bíblia sempre tem um negócio
de cordeiro sendo assado
Deus já gosta disso!

ESCRAVIZADO:
Pra quem já está no inferno,
todo mato é cachorro.
Eu quero é mais!

PESCADOR E ESCRAVIZADO:
Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo,
tende piedade de nós!

FREI:
Cuidado com as blasfêmias, meu filho!

JOÃO DE DEUS:
Quieta com isso, frei!
Quando vier a revolução,
a igreja não poderá atrapalhar!

FREIRA:
Longe da igreja querer atrapalhar a revolução.
Se depender de nossa ordem,
até financiamos, meu filho!

FREI:
O sangue da nova e eterna aliança!

TODOS:
O sangue da nova e eterna aliança!

NARRADORA ou CARTELA:
Por três anos, foram promovidos jantares de carne
na sexta-feira da Paixão
Uma farra tão grande incomoda a coroa.
Devassas são abertas
para averiguar os efeitos perniciosos desses encontros
nos eventos conspiratórios que avançam.

NARRADORA 1:
Igualdade, e liberdade,
No Sacrário da razão,
ao lado da Justiça.
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Preenchem o meu coração

ATO II - LUIZ GONZAGA DAS VIRGENS E VEIGA - SOLDADO


1761 - 1799
xangô . a palavra

ATO II . CENA 1 - O DESENROLAR DA CONSPIRAÇÃO

NARRADORA 2:
O Professor Francisco Muniz Barreto de Aragão tinha uma biblioteca,
cadernos com poemas copiados de poetas
sobre igualdade e liberdade.
Domingos Lisboa tomou alguns desses livros emprestados.
Sabia falar francês.
Assim como Luís Gonzaga das Virgens: ele lia,
anotava em seus cadernos,
compartilhava suas ideias.

NARRADORA 4:
Chegavam de fora notícias,
Também os senhores de terra e consideração
faziam suas leituras,
afinal: algumas ideias francesas refrescavam os anseios
por expansão econômica e a busca das tão faladas luzes.
Na colônia, a imprensa ainda não era permitida.
Portanto, também não era livre a circulação de obras
e materiais impressos.
Pior ainda: os livros eram combatidos
Eram um problema de Estado
Como uma peste a ser extirpada:
certas leituras eram consideradas crime,
até mesmo heresias, atentados contra a coroa.

NARRADORA 3:
As ideias não eram somente aquilo que chegavam de fora.
As ideias perigosas e mais pestilentas
eram aquelas que brotavam nas cabeças das pessoas pardas e pretas.

NARRADORA 1:
Cadernos, cartas, bilhetes, sopros
Jantares na casa dos bem-nascidos
Jantares na casa dos não tão abastados assim
Tavernas, reuniões, planos
Tempo de semear, cultivar e fermentar um levante

NARRADORA 3:
Para os enteados,
Romper o jugo da Coroa Portuguesa
Frear as propostas de ajuste fiscal da Coroa
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E brigar contra as mudanças na titulação das terras para os ricos senhores,


Quase senhores feudais, com propriedades maiores que países europeus.

NARRADORA 4:
Para a grande maioria:
Melhores condições de vida
Salários justos,
condições de trabalho
Liberdade efetiva
Não só de nome e papel

NARRADORA 2:
Para alguns mais ousados,
Sonhar com igualdade
Entre todas as cores.
E liberdade
para quem entrasse na luta…
Para outros, ainda mais ousados,
liberdade para toda a gente escravizada.

ATO II . CENA 2 – DISTRIBUIÇÃO DOS PANFLETOS / BOLETINS

CORO:
Cidade alta. Cidade baixa
Ladeiras, ladeiras, ladeiras
Passo, Carmo, Portas do Carmo,
Portões da Piedade
Direita do Palácio,
Câmara de Vereadores
Praça da Sé, Misericórdia, Piedade
Cruz do Pascoal, Cruz de São Francisco
Rua do Açougue, Rua dos Ossos, Rua do Cabeça, Rua da Forca
Direita do Carmo, Direita da Piedade
Fontes: Nova, Gravatá, Contorno
E o Desterro, o Aterro, o Dique
Tantas ruas, becos, vielas, travessas
Ladeiras e mais ladeiras se despencam no mar
E quem sobe a ladeira da Preguiça a pé?
Quem sobe levando carga que chega na cidade comercial da colônia
Quem leva carga dos navios para dentro da cidade da colônia
Engenhos e mais engenhos
Unhão, Guaíba, Desterro
Pedras, casarões, açúcar, aguardente, fumo
Sonho.
É manhã de agosto
A cidade acorda.
Paisagem de porto, sobe desce, caixas e mais caixas.

CARTELA
18

Manhã de 12 de agosto de 1798

GANHADEIRA:
Manhã cedinho, eu estava enchendo o cesto quando vi o povo lendo o papel que
estava na parede da quitanda de Dona Preta Benedita8. Leram pra mim, porque não
me deram esse dom de ler.

CORO:
O Poderoso,
Magnífico Povo Bahinense Republicano
desta cidade da Bahia Republicana
considerando os latrocínios praticados em
tributos e direitos que são celebrados por ordem da Rainha de Lisboa
e no que diz respeito a inutilidade da escravidão do mesmo Povo
tão sagrado e Digno de ser Livre.

GANHADEIRA:
De tanto que o moço repetiu pra gente entender,
que guardei na mente.
E digo que não vou esquecer.
Não sei se liberdade é tudo a mesma coisa
pra toda gente...
Mas mesmo que seja diferente,
achei bom esse negócio que escreveram.
Porque nunca vi papel falando de liberdade na parede pra toda gente que sabe ler,
poder falar alto pra gente - que não sabe - poder ouvir.

Eu sei que um homem de bem


chegou na quitanda e arrancou o papel da parede e levou com ele .
Disse que ia dar parte e que isso não ia prestar.
Enchendo meu cesto eu tava,
enchendo meu cesto, eu fiquei.
Me fiz de boba, sem tomar parte e peguei meu rumo.
Eu sei que as frases vão ficar na minha cabeça,
por dentro das tranças apertadas,
por dentro do torso.
Até que
um dia quem sabe
eu e mais gente saibamos o que fazer com elas.

HOMEM BRANCO COMERCIANTE:


Quem escreveu isso aqui
Foi muito ousado
Colocar uma ameaça assim na igreja!
Na casa de Deus,
anunciar que será punido com sentença de morte,
o padre que no púlpito ou mesmo no confessionário,
falar de forma contrária à liberdade, igualdade e fraternidade!
Eles têm uma escrita meio confusa,
8
TAVARES, Luiz Henrique Dias. Sedição intentada na Bahia em 1798. Salvador: EDUFBA, 2016.
19

mas com muita empáfia, cheia de ordem:

CORO:
O Povo Bahinense Ordena
e quer para o futuro
seja feita nesta cidade
a sua memorável revolução.

HOMEM BRANCO COMERCIANTE:


Coisa de gente afoita e precipitada
me pareceu.
Cheios de imperativos!
No final lá do boletim,
lembraram de dizer que os milicianos têm que receber 200 soldos!
Ora! É no que dá esses pardos fazerem parte de regimento.
Pensam que são mais do que são
e se colocam a discutir assuntos sérios.
É bem verdade que os tributos da coroa
e dos senhores ricos
pra cima de nós, pequenos comerciantes,
é uma indignidade.
Mas revolução vinda desses soldados malformados não é coisa que se leve à sério.

CAPITÃO BRANCO:
Fiquei atordoado.
Nunca li coisa assim.
Bem que nos alertam dos perigos dessas ideias sediciosas:
o corpo se comprime diante da leitura de palavras de desordem,
de desrespeito à coroa e aos desígnios superiores.
Mais olhos não podiam ler aquele texto!
A mesma vela que iluminou sua leitura,
deu fim ao malfadado papel.
Destruí o papel.
Que triste destino terá quem escreveu aquelas palavras:
ordens para uma revolução,
vantagens aos escravos que engrossassem
as fileiras da revolução,
com um pagamento para guerrear.
E pior: a liberdade aos escravos!
Felizmente fomos rápidos,
queimamos antes que essa conspiração se torne inspiração para os pequeninos.

CARTELA
11 boletins distribuídos nas ruas de Salvador
1 deles queimou sem pudéssemos saber o que dizia

CORO:
11 boletins escritos
10 atravessaram o tempo
20

Talvez mais papéis


tenham sumido antes
que se pudesse, soubesse
Na quitanda, no açougue,
nas igrejas,
nas paredes e portas
Ideias de uma república
brotaram cedo demais
na cidade da Bahia
Ideias de uma liberdade
que brotou cedo demais
na cidade da Bahia

CORO BRANCO:
Alto lá! Peraí!
Quem disse que foi esse o combinado?
Sim, queremos que o sistema colonial agonize
Pouco a pouco dia a dia
Queremos o reconhecimento da nossa importância
De onde foi que suas mentes infantis
Enxergaram ideias de igualdade
Onde já se viu civilização de iguais?
Civilização é: hierarquia, ordem, classe, regras, obediência
Assim as luzes da razão mandam
Alto lá! Vocês não fizeram parte do pacto:
Escravizados, crioulos, pardos
Ainda que queiram, ainda que sonhem
Que queiram…
Não será!

ATO II . CENA 3 - POR QUE BÚZIOS

CORO:
Ouvi dizer
Ouvi falar
Disse que disse que disse
Não vi, só soube
Não vi quem foi
Não sei quem colou,
Não li
Não vi, não sei
Cabe em todo lugar

D. MARIA I:
Não é mais possível o Governador Dom Fernando
fazer vistas grossas para o apreço de parte da sociedade baiana
aos ideais burgueses

D. JOÃO VI:
21

Já são dois anos de conversas, jantares, poemas, intenções vagas


E agora nas paredes das tavernas,
quitandas,
igrejas,
portas das ruas movimentadas
Correndo à boca pequena daquela cidade de 60 mil habitantes
Vontades de revolução

D. RODRIGO:
O governador da Bahia não quer,
é bem verdade,
mas terá que agir.

GOVERNADOR:
Eu, o Governador da Bahia Dom Fernando José de Portugal, ordeno abertura
imediata de uma devassa para descobrir os autores desses textos criminosos.
Serão interrogados todos que possam ter lido, visto, sabido, ouvido, tocado nesses
documentos.

Cumpra-se neste dia de 14 de agosto de 1798.


Vocês me ouviram? Cumpra-se!
Dessa vez, vocês estão me ouvindo? Cumpra-se imediatamente!

NARRADORA 1:
Ao povo da Bahia ordena-se
O povo da Bahia manda
Ao povo da Bahia prescreve-se
O povo da Bahia quer
Mudança
Mudança
Mudança
Apareça e não se esconda
Povo

NARRADORA 3:
Homens pardos, mulatos, crioulos, forros e escravizados.
Tomaram a frente
Impávidos,
inconsequentes,
corajosos sem dúvida
Ousados,
cheios de razão

LUCAS DANTAS:
É fácil reconhecer quem toma parte na vontade de revolução.
Com brinquinho na orelha, barba crescida até o meio do queixo, com um búzio de
angola nas cadeias do relógio.
Este é francês
e do partido da rebelião.
22

NARRADORA 1:
Búzios
Alfaiates
Milicianos
Escravizados
Búzios
Por que búzios?
Pardos, todos pardos
Crioulos, pretos
Por que búzios?
Alfaiates
Milicianos
Escravizados

NARRADORA 2:
Encruzilhada:
Búzios de Angola nas Orelhas.
Ideais franceses na boca e no texto
Entrocamento que conduz à palavra mais temida:
Liberdade

ATO II . CENA 4 - AS PRISÕES DOS AUTORES


CARTELA:
Segredo da Relação - 22 DE AGOSTO DE 1798

Domingos Lisboa é o primeiro homem preso, considerado autor dos boletins


sediciosos. Na cadeia do Tribunal da Relação, tenta convencer o carcereiro a dar
fim às provas que poderiam incriminá-lo.

CARCEREIRO:
Seu Domingos, isso não vai dar problema para mim não? Me verem indo em sua
casa?

DOMINGOS:
Não vai não. Vosmecê sabe ser discreto. Mais que eu, mais que nós todos. Dá
sumiço nos meus cadernos, dá sumiço nos meus livros, dá sumiço em tudo... por
tudo o que é mais sagrado. Homem, salva minha vida.

CARCEREIRO:
Você me falou que tem pra mais de dezenas de livros. Se eu for queimar tudo o que
me pedes, vai chamar atenção. Não tá vendo como isso aqui está movimentado?

DOMINGOS:
Mas se acharem os cadernos de poesia será meu fim! Estou já perdido... eles vão
acabar comigo…

CARCEREIRO:
Você está nervoso. Deixa eu ir embora que ficar aqui conversando contigo não é
bom.
23

DOMINGOS:
Tem no caderno o poema sobre Liberdade... tem as folhas em branco... tem tinta...
tem pena… tem minha letra espalhada pra todo lado...vão ver as petições que
escrevi… mas são todos muito burros... vão me guardar aqui sem saber comparar
direito... os papéis e a tinta são indícios que escrevo. Eu sou um homem morto...
bem morto... já sinto meu cheiro apodrecendo. Enforcado em algum novo patíbulo
da cidade. Vão me sangrar até que a vida dê seu último pio. Oh Deus, tem nome de
gente nas listas que estão em casa… os nomes dos mulatos todos! Eu já sinto a
morte comendo minha carne. Oh... que agonia... que não tem como eu não morrer
na mão dessa gente... ninguém terá piedade de mim.

CARCEREIRO:
Se acalme! Acharam mais dois boletins hoje! Mais dois boletins: um no Carmo e em
outra igreja que não consegui ouvir o nome. Se acalme! Vão ver que não foi você.
São uns malucos esses seus amigos, viu? Agora virão pra cima deles! Mas se
acalme! Você vai ser inocentado!

ATO II . CENA 5 – A PRISÃO DO AUTOR


ou A QUEDA DE LUIZ GONZAGA DAS VIRGENS
CARTELA:
Segredo da Relação - 24 de agosto de 1798

INTERROGADOR I:
Ora mas se já desertou mais de uma vez da milícia, por não achar justa a condição
dos pardos e questionar a diferença como os brancos eram tratados… bem se vê
que já estava, há muito tempo, tomado por essas ilusões de igualdade.

INTERROGADOR II:
Vosmecê escreveu aqui que:

LUIZ GONZAGA DAS VIRGENS:


Os homens pardos são obrigados a trabalhar nas milícias desde a adolescência até
perderem as forças, sem prêmio.

INTERROGADOR II:
Mas ele esperava receber um prêmio pelo quê mesmo?!

INTERROGADOR III:
Ele disse mais:

LUIZ GONZAGA:
Os pardos são objeto da escravidão e do desprezo.

INTERROGADOR II:
E que:

LUIZ GONZAGA:
24

Os brancos não têm motivos para maiores merecimentos, nada além da


nobiliarquia.

INTERROGADOR II:
Você escreveu isso mesmo, soldado? Escreveu essas palavras para o Coronel do
Regimento?!

Em outro plano, numa praça, João De Deus, Manoel Faustino, Lucas Dantas e
Luís Pires discutem o que fazer após a prisão de Luiz Gonzaga das Virgens.

JOÃO DE DEUS:
Agora é que foi. Ele não vai aguentar nada... logo logo vai entregar tudo.

MANOEL FAUSTINO:
Ele sempre foi reservado, dado às suas melancolias, suas manias, sua solidão. Mas
também foi sempre homem de luta.

LUCAS DANTAS:
Eu sei que ouvi mais de uma vez dele, que preferia morrer cedo do que continuar
sendo miliciano. Pode-se esperar tudo dele. Precisamos agir. E logo. Nossa cara já
está na rua. É hora de ação, meus caros.

LUÍS PIRES:
É tempo de ver a gente que temos ao nosso lado. Porque se for bastante, faremos o
levante. Vamos fazer uma reunião no campo do Dique do Desterro e fazer a revista.

A cena retorna ao plano da prisão, enquanto o investigado é interrogado


violentamente.

INTERROGADOR I:
Ele faz-se de louco. Parece. Vamos pedir uma avaliação do estado mental do
soldado.

INTERROGADOR II:
Mas o que é pedra infernal que ele escreveu aqui nesta página?

INTERROGADOR III:
Entre os papéis que estavam contigo, Sr. Gonzaga das Virgens, são reconhecíveis
as leituras que influenciaram a escrita dos boletins.

LUIZ GONZAGA DAS VIRGENS:


Não são meus esses papéis. São de João da Silva Norbonna.

INTERROGADOR I:
Quem é esse Norbonna que ninguém conhece?

LUIZ GONZAGA DAS VIRGENS:


É um grande amigo. Pode procurar saber. É dele esses papéis, essa caligrafia é
dele. Não sou eu o autor.
25

INTERROGADOR III:
Onde mora esse Norbonna para que possamos procurar?

Chega um pequeno grupo de ENTEADOS. Chamam o INTERROGADOR I que se


aproxima. Conversam.

LUIZ GONZAGA DAS VIRGENS:


É um sujeito muito instruído e inteligente.

INTERROGADOR II:
Onde mora esse senhor Norbonna?

LUIZ GONZAGA DAS VIRGENS:


Eu estive com ele ontem no Terreiro de Jesus. Acho que ele mora perto do cais das
amarras. Se não me engano.

INTERROGADOR III:
Mas nos cadernos, que são diários, que falam do dia a dia no Regimento, a
caligrafia é sua. O cotidiano é seu...

LUIZ GONZAGA DAS VIRGENS:


Não, não é. Esses requerimentos, esses poemas. É tudo dele. Ele também é o autor
das anotações. Sou apenas um soldado.

INTERROGADOR II:
E essa Gazeta de Lisboa aqui? Também é desse Norbonna?

LUIZ GONZAGA DAS VIRGENS:


Sim, senhor! Nada disso é meu. Sou apenas um soldado.

INTERROGADOR I se afasta do grupo dos ENTEADOS. Volta ao interrogatório.

INTERROGADOR III:
Vamos procurar saber no Cais das Amarras se esse Norbonna já morou lá…

INTERROGADOR I:
Não percamos tempo com isso. É óbvio que esse senhor mente! E se finge de
louco, nos toma por idiotas! Não vamos perder tempo procurando quem não existe.

INTERROGADOR II:
Vamos pedir avaliação do estado desse homem e dar os encaminhamentos
necessários. Já temos o bastante.

Eles se afastam e saem de cena. Gonzaga das Virgens fica só, angustiado,
chamando os desembargadores.

LUIZ GONZAGA DAS VIRGENS:


Não sou eu o autor! Ouçam bem! Procurem saber de Norbonna. Espera um
pouco… Procurem saber...
26

Se recompõe e fala para o público, como uma confissão.

Nenhuma escrita é sozinha.


Ainda que possa ser solitária.
Nenhuma escrita é sozinha.
Ainda que me coloquem na testa a pecha de autor.
Que despedacem minhas mãos
pra mostrar para o mundo o que não fazer: escrever.
Não escrevi sozinho. Se é que escrevi, não foi só.
Foi tudo fruto das noites de vigília
num trabalho que nunca quis,
numa cidade que não me quer,
numa sociedade que não me gosta.
Não escrevi sozinho.
Escreveram os que me colocaram nesse lugar.
Escreveram sobre mim
os que me obrigam a pagar pela farda
e tirar da pouca comida, a farda que tenho a pagar.
Sim! Vão dizer que li livros,
que ouvi umas tais conversas
Tem também a minha fé,
as rezas que rezei e as cachaças que bebi.
Mas sobretudo, há a vida.
Ela é quem escreve sobre mim.
É a vida que grita pelos meus dedos.
Se é isso o que querem, toma: leva minha vida.
Cansei de lutar.

ATO III - MANUEL FAUSTINO DOS SANTOS LIRA - ALFAIATE


1775 - 1799
yemanjá - processo

ATO III
CENA 1 - A COROA NEM TUDO SABE

No plano da Coroa, chegam notícias de além mar.

DOM RODRIGO:
Soberana, Majestade!
Chegou ofício da Colônia da Bahia, informando sobre abertura de devassas para
averiguar a disseminação de ideias francesas e contrárias à coroa. Um grupo de
degenerados espalhou boletins manuscritos em pontos de alta circulação,
instigando revolta e traição à Coroa Portuguesa. A missiva veio por parte do
Governador Dom Fernando de Portugal.

DOM JOÃO VI:


Esses eventos foram na Província da Bahia?
27

DOM RODRIGO
Dom Fernando, ao meu ver, é frouxo demais com essa gente.
Não confio no gestor, tampouco nos magistrados.
Menos ainda no conteúdo do relatório enviado.

DOM JOÃO VI:


Quem estaria disseminando francezias na colônia?
Há conteúdos explicitamente contrários à Coroa?
Contrários à Religião?

D. MARIA I:
As ondas se agitam tanto entre lá e cá.
O bom é que o ouro da coroa é maciço: não se infiltra, nem enferruja com o cheiro
de maresia. Permita-me ler a merda do documento, estou curiosa.

DOM JOÃO VI
Senhora minha mãe, não gostaria que se envolvesse nesse tipo de situação
desagradável, cujo conhecimento só serviria para atrapalhar seu sono já tão frágil.

D. MARIA I
Ainda estou viva, caralho! Ainda tenho olhos, sei que poder de decidir já perdi, mas
deixa-me fingir que vocês ouvem o que digo.

DOM JOÃO VI:


Não dê ouvidos, Senhor Ministro.

D. MARIA I
Ele não me dá ouvidos mesmo, assim como você. Mas poderiam apenas fingir e me
dar para ler a porra da carta.

"Os papéis sediciosos mal organizados, posto que sumamente atrevidos e


descarados; o caráter e qualidade do seu autor e das principais cabeças que
trataram da rebelião, homens pardos, de péssima conduta e faltosos de religião.
Nesses atentados não entravam pessoa de consideração ou entendimento ou que
tivessem reconhecimento das luzes".

E como os pardos tiveram acesso às Luzes? Podem essas criaturas ler? Eles têm
iluminações próprias?

DOM JOÃO VI
Um arroubo de lucidez e perspicácia, minha mãe!
Esse governador não mentiria ou esconderia algo?

DOM RODRIGO
É possível que sim.
Os depoimentos estão sendo tomados, sobretudo de gente parda e preta
escravizados e trabalhadores de pouco valor.
E muito me causa espanto imaginar que esses miseráveis possam ler francês
ou ter acesso aos livros degenerados sem mediação de famílias de importância.
28

DOM JOÃO VI
Comunique ao governador que serão punidos com rigor exemplar os líderes desse
evento. Também é necessário averiguar pelas fontes de informações possíveis, se
há membros da elite baiana envolvidos com isso. Essa gente é queixosa,
insubordinada e gananciosa. Querem mais e mais poder e certamente, tem
interesses financeiros.

D. MARIA I
Um dia me chamaram de Dona Maria I, a Piedosa aqui dentro.
Dona Maria I, a Impiedosa lá fora.
Do inferno, ouço já o canto do meu pai,
nada me resta evitar,
se os demônios já se trançam nos fios do meu cabelo
Não há por que ter piedade dos que não têm alma.
Está determinado:
Que se corte a cabeça dos que ousaram pensar
e que isso sirva de exemplo para toda essa gente escura.

III. 2 – A REUNIÃO DO CAMPO DO DIQUE


ou SOBRE OS QUE NÃO FORAM

CARTELA:
RUAS DE SALVADOR NA MANHÃ DO DIA 25 DE AGOSTO

JOÃO, MANOEL E LUCAS:


Quer ser escravo ou ser forro?
Quer ser livre?
Se ponha pronto!9

E tu?
Quer ser escravo ou ser forro?
Quer ser livre?
Se ponha pronto!

Vosmecê quer ser escravo ou ser forro?


Quer ser livre?
Se ponha pronto!

Quando o sino tocar sete vezes


Estaremos no Campo do Dique
Para fazer ouvir a voz da liberdade
Para fazer o levante

LUIZ PIRES:
Se tivermos gente o bastante faremos o levante.

9
TAVARES, Luís Henrique. Sedição intentada na Bahia em 1798. Salvador: EDUFBA, 2016.
29

LUCAS DANTAS:
É tempo de vermos a gente que temos.

LUIZ PIRES:
Em não havendo, ficamos calados.
Desaparecemos como fumaça, ouçam bem.

JOÃO DE DEUS:
Eu tenho seguramente 280 homens comigo.

MANOEL FAUSTINO:
Teria uns 40…

JOÃO DE DEUS:
Por baixo, somando todos, alcançamos 500 homens de brio e ação.

MANOEL FAUSTINO:
O que faremos? Qual seria o plano?

LUIZ PIRES
Em noite de evento, fazemos um ataque na Casa de Ópera.
E ao mesmo tempo, roubamos as armas do Regimento.

LUCAS DANTAS
E libertamos Luiz Gonzaga!

LUIZ PIRES:
Se a reunião for bem-sucedida e se tivermos gente do nosso lado de verdade.
Se não, é hora de sumir na poeira.

LUCAS DANTAS:
Está pactuado. Vamos nos encontrar no Campo do Dique e ver quem está do nosso
lado. Assim, traçamos nosso plano de ataque. Hora de fazer acontecer.

EM VÍDEO O 1o AVISO: ANIMAI-VOS POVO BAHINENSE!

LUIZ PIRES:
Havia uma lista com os nomes e números descritos na casa de Luiz Gonzaga.
Esse papel foi apreendido.

CARTELA:
676 homens

CORO:
Somos: 676

CARTELA:
Noite de 25 de agosto no Campo do Dique
30

LUIZ PIRES:
Naquela noite, só foram 14 homens.

NARRADORA
Ao longo daquele dia,
enquanto faziam o chamamento dos homens
nas ruas da cidade
o tecido da traição era urdido.

NARRADORA 1:
Três Joaquins.
Cada um a seu tempo
por diferentes motivos
e com recompensas diversas
compareceram

NARRADORA 2:
O primeiro Joaquim titubeou, mas não falhou
Foi ao desembargador, ao coronel e ao governador
Contou tudo o que ouvira.

NARRADORA 2:
O segundo Joaquim conhecia bem das conversas
e foi denunciar o conhecido
Primeiro ao coronel, depois ao tenente
E pelo bom serviço ganhou cargo no Governo da Bahia

NARRADORA 3
O terceiro Joaquim quando confessou para outro soldado,
depois para outro
E só à noite para o governador
Já era tarde demais para ser considerado o serviço
Ganhou prisão e virou suspeito

CORO:
Algo não vai bem, cheira muito mal
São muitas ausências.
Na Reunião do Dique
Nomes confirmados não compareceram
Disseram que viriam não vieram não
Souberam alguma coisa qu’inda não sabemos
Avistaram o que não vimos
Corremos muito perigo
muito perigo muito cuidado
é pouco

MANOEL FAUSTINO:
Algo não está bem. Só viemos nós? 14 pessoas...?!

JOÃO DE DEUS:
31

Mas chamei tanta gente...


Vocês mobilizaram mais homens?

CORO:
Claro! O que terá havido? Estranho...

LUCAS DANTAS:
Eu tinha 60 homens mobilizados. Confirmaram que vinham e nos deixaram na mão?

MANOEL FAUSTINO:
Desgraçados miseráveis! Souberam de algo antes de nós.

CORO:
Pessoal, dispersar!
O Coronel-Tenente Alexandre Souza está vindo.
Seguimos do Gravatá até aqui.
Isso aqui é uma cilada... ele sabe e está vindo!

LUÍS PIRES:
No caminho vi o sujeito.
Gosto de sangue na minha boca!
Mirei minhas duas pistolas pra ele.
Não me viu.
A cabeça dele tava na mira... não atirei.
Ou foi pela coragem, ou foi pela prudência: não atirei.
É o que disse.
Noite de decidir: ou cair pra dentro, ou cair pra fora.
A resposta está dada. Ouve quem quer.

JOÃO DE DEUS:
Não sou homem de cair fora, Pires. Você me conhece.
Pra mim, é cair pra dentro sempre e cair de pé.

LUÍS PIRES:
Coragem é uma coisa bonita, assim como essa sua camisa, alfaiate.
Reluzente, veste bem, mas às vezes atrapalha o movimento.
Como disse, o recado está dado.

CORO:
Dispersar, homens.
Abortar a missão, logo.
É o que há pra fazer.
Cada um tomar o seu rumo.

NARRADORA:
A conspiração do dia
maculou a conspiração da noite
A reunião se desfez,
cada um tomou seu rumo incerto
Longa noite daquele final de agosto
32

O amanhecer foi adiado

ATO III
CENA 3 – A CORPORAÇÃO DOS ENTEADOS E A PRONTA ENTREGA DE
ESCRAVIZADOS

CORO:
Aberta a temporada de pronta entrega dos escravos.
Escravizados entregues para averiguações
Escravizados entregues para entregar

NARRADORA 4
Outro Luiz Pires:
este, Luiz - da França - Pires
Escravizado de um dos senhores mais ricos da velha Salvador,
foi à reunião dizendo que queria ser feliz
Uma vez capturado, negou seu conhecimento por um dia.10

NARRADORA 1
Até que decidiu delatar o que sabia,
Desde que uma vez confesso
Não fosse punido com a pena última
Entregando a todos, fosse poupada a vida.
E assim foi feito.

NARRADORA I:
A cadeia da relação ficou abarrotada
com os 49 homens presos
Homens pretos e pardos
Nenhuma consideração.

NARRADORA II:
Os senhores da elite entregaram seus escravizados
E os forros que viviam nas suas cercanias
Numa operação delicada.
Se todos os fios da trama
entrelaçados nesse projeto
Não fossem bem conduzidos
Levariam aos tais senhores
os mesmos que entregaram seus negros e pardos

NARRADORA III:
Levariam
Futuro do pretérito do indicativo

10
VALIM, Patrícia. Da Sedição dos Mulatos à Conjuração Baiana de 1798: a construção de uma
memória histórica. Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em
História Social do Departamento de História da FFLCH, sob orientação do Prof. Dr. Carlos Alberto de
Moura Ribeiro Zeron. São Paulo: USP, 2007.
33

Levariam se os desembargadores fizessem as perguntas certas


Levariam se os mesmos homens não estivessem comprometidos com o lucro
Levariam se a justiça não fizesse vistas grossas

DOM RODRIGO:
A mim parece óbvia a frouxidão do seu governo, D. Fernando. Assim como a
corrupção do Tribunal da Relação, que permite a todos os poderosos conspirarem
coniventes aos seus interesses. Tudo isso debaixo de suas vistas grossas.

GOVERNADOR:
São falsas as acusações que me faz, como é falso que as pessoas principais da
capitania estejam envolvidas nesta conspiração. Como eles poderiam disseminar
ideias de liberdade e igualdade? Eles próprios estariam ameaçados, caso essa
gente inferior tivesse êxito. Como pode acreditar que senhores e escravos estariam
unidos num mesmo projeto?

NARRADORA IV:
Pressionado, o Governador
Alinhou seus desembargadores
Entregou os pequenos trabalhadores
A justiça foi feita

NARRADORAS:
Pressionado, o Governador
cumpriu seu papel
De esconder e se esconder
Negar e encobrir.

NARRADORA 3:
A arquitetura dessa narrativa teve êxito...

NARRADORA 4:
Por um tempo.

NARRADORA 3:
Mais especificamente, até a segunda metade do século XIX,
foi sustentada a noção de que a elite baiana não conspirou contra a Coroa
A elite baiana nunca cultivou ideias sediciosas.

NARRADORA 2:
Mas nós questionamos história como foi contada
O pesadelo da história não é só nosso:
Também é dos que venceram

NARRADORAS:
Não há sono tranquilo possível para os homens de bem
Nem pros de ontem e nem pros de hoje.

ATO III
34

CENA 4 - AS MULHERES E A CASA SALGADA


- AS MULHERES E A IGUALDADE TARDIA
CARTELA:
As devassas sobre a distribuição dos boletins e a reunião do Campo do Dique
inauguraram a escuta de mulheres em processos judiciais na Colônia.
Tribunal da Relação - agosto 1798 a outubro de 1799

CORO DE MULHERES:
Ouvir mulheres
Mulheres pardas, pretas, crioulas,
Algumas brancas,
Mulheres libertas, semi-libertas, escravizadas
Ouviram mulheres
Contar dos homens
Maridos, filhos, patrões, senhores, vizinhos
Presas para testemunhar, contar
Falar do outro11

NARRADORA 3:
Afinal, o que teria uma mulher para dizer de si mesma
Si mesma?
Mulher só existia para o outro
Nas devassas, 14 Mulheres testemunharam pra isso

NARRADORA 1:
As mulheres ouvidas, em sua maioria eram
Mulheres trabalhadoras
ganhadeiras, quituteiras, domésticas
Escravizadas de ganho

NARRADORA 2:
Não eram donas
Não tinham deferência
Não eram cidadãs
Não representavam nenhum poder econômico
Menos ainda prestígio
Eram força de trabalho, eram engrenagem, eram movimento
E existiam: mesmo que não tenham seus nomes próprios marcados nessa revolta
Mesmo que não tenham andado na avenida principal da conspiração
Seus trabalhos invisíveis calçaram o chão pros homens falaram de

CORO DE MULHERES:
Igualdade
Essa palavra pela qual ainda é preciso lutar

LUIZA FRANCISCA, PARDA FORRA, DONA DE CASA:


Nunca tinham perguntado de mim não. Na vida, acho que nunca. Só assim, por
educação. Eles vão perguntar sobre mim. Não mais por educação. Mas porque
11
DOMINGOS, Carlos Vasconcelos; LEMOS, Cícero Barthomarco Lemos; YGLESIAS, Edyala (orgs.)
Animai-vos povo, bahiense: A Conspiração dos Alfaiates. Salvador: Omar G, 1999.
35

querem que eu vacile: que eu solte algum fio que derrube a bainha da sua calça, pra
que ele tropece. Eles não sabem que sei costurar tão bem quanto aquele alfaiate.

NARRADORA 1:
Ana
Luísa
Tomázia
Clara
Mariana
Emereciana
Vicência
Joaquina
Testemunhas
Presas
Mais que servas,
mais que esposas,
mais que amantes
Elas eram
Elas mesmas

LUIZA FRANCISCA:
Eu, Luiza Francisca de Araújo, juro falar a verdade em nome do Evangelho. Juro
dizer a verdade, apenas a verdade, tão somente a verdade.
No sábado, meu marido saiu por três vezes.
Duas de manhã cedo e apenas uma vez, à noite. Ele se recolheu depois de jantar.
Eu disse a vocês. Eles não querem saber de mim. A minha voz só serve pra dizer
dele.
Meu marido convidou pessoas para uma reunião? Não sabia. Reunião de que?
Eu só vejo meu marido trabalhando. Às vezes, ele me pede pra trazer as
encomendas que precisa entregar. Os oficiais vêm aqui pegar os trajes. Eu fico
dentro de casa, que é meu dever.
Nunca percebi meu marido falando sobre liberdade, igualdade. Nem que preto,
branco, pardo é tudo irmão. Verdade seja dita. Nunca vi essas coisas na boca de
João.
Meu filho mais velho só tem 8 anos. Claro que ele ainda não sabe ler!
Essa pólvora aí, fui eu quem pedi a João pra trazer da rua. É pra fazer uma simpatia
pra tirar umas nódoas que tenho no corpo. Ele não tem arma.
Meu João só gosta de sair pra ver a lua.
Eu sou mãe de cinco crianças, moço! Eu tenho tempo pra quê?
Acabou. Não me perguntaram mais nada. Cansaram de me ouvir dizer que não sei.
Não sei, nunca quis saber, tenho raiva de quem sabe. Ora veja, se homem vai
conversar com mulher sobre igualdade. Me deixe!

NARRADORA 4:
As escravizadas também foram ouvidas.
Algumas trabalhavam na casa dos homens presos.
Sabiam pouco e cuidavam de mostrar que sabiam menos ainda.

COSTUREIRA PARDA E FORRA ANA ROMANA:


36

Ah, que é abusado a gente ser presa para dar conta de falar de gente que a gente
se arrepende de ter conhecido. De gente que a gente se arrepende de ter visto a lua
junto na praça, que a gente se arrepende de ter dividido a mesa, o prato, o lençol.
Gente que fez a gente passar vergonha na frente de todo mundo. Homem que bateu
no meu rosto, me xingou de nome sujo, me abandonou na rua e me fez sentir um
nada.
Tô presa por causa desse sujeito. Todo mundo sabe como ele é metido em
conversas francesas. Metido a valente, gosta de briga, de fazer, acontecer, tem
essas manias de grandeza. Ele gosta de falar bonito aos quatro ventos. Essas
coisas de igualdade, liberdade, fim do cativeiro, eu não sei, não ouvi, não escutei.
Não vou inventar.
Olhe, não tenho nada na vida. Só juventude e esse corpo que Deus me deu. Mas
dignidade eu tenho. Não sou mentirosa! João de Deus, não vi mais a cara! Nem
quero ver pintado! Eu, Ana Rommana, quero é cuidar de levantar minha cabeça,
isso sim!

NARRADORA 2:
Assim como os senhores de consideração,
As donas ricas e austeras não tinham que depor
Nem se abalar a ir ao Tribunal da Relação
Apenas seus escravizados e criados
E desse jeito, escreveu-se a história
Que a elite não conspirou, nem tramou contra a coroa

NARRADORA 3:
As mulheres nos seus depoimentos
também deixavam ver a si mesmas
A rotina de ganho ou de doméstica
A vida sempre da porta pra dentro das casadas
A da porta pra fora, das que mercavam e mantinham a si mesmas
A daquelas que trabalhavam nas casas alheias por horas a fio
Com a saúde maltratada, o corpo doente
Castigadas pela noite
As jovens talhadas pela beleza, cobiçadas como um troféu
Para desfilar afirmando o poder do homem que lhes desse o braço
Ou um teto para viver e vez por outra receber visita
Ao dizer do outro, aquelas mulheres disseram de si

NARRADORA 1
Ana
Luísa
Tomázia
Clara
Mariana
Emereciana
Vicência
Joaquina
Testemunhas
Presas
Mais que servas,
37

mais que esposas,


mais que amantes
Elas eram
Elas mesmas

ATO III
CENA 5 - AS DEVASSAS
E A MÁQUINA DE MOER GENTE

CARTELA:
Segredo do Tribunal da Relação - De agosto de 1798 até os primeiros dias de
novembro de 1799

NARRADORA 1:
Fugir, correr, rumar pro Recôncavo
Buscar uns engenhos
Amigos em outras praças
Sumir, escafeder-se, evaporar
Foi o que tentaram Manoel Faustino e Lucas Dantas,
Com outros soldados e escravizados em fuga.

NARRADORA 2:
Fugir, correr, rumar pro Recôncavo
Buscar uns engenhos
Amigos em outras praças
Sumir, escafeder-se, evaporar
Luís Pires saiu ainda na madrugada
Logo após a reunião
Nunca foi achado
Eram tantos Luís Pires
Tantos Luís escravizados desses ricos Pires de tanto sobrenome
Que Luís, o nosso, nunca mais se achou.

NARRADORA 3:
Ao comando do Governador,
as pessoas foram presas
Soldados, tenentes, escravizados
Nenhum senhor, nenhum religioso de alta conta,
Quase nenhum bem nascido, nenhum religioso
Ninguém da época dos jantares

NARRADORA 4:
Sim, foi preso o professor Francisco Muniz
O cirurgião Cipriano Barata e o Tenente Hermógenes Aguiar,
Entre os poucos brancos

NARRADORA 1:
Mesmo esses, eram pouco significativos para aquela velha Salvador,
Todos os presos eram interrogados e seus depoimentos confrontados
Um diante do outro, repetidas vezes
38

NARRADORA 4:
Entre os interrogados, o escravizado Antonio Simões

ANTONIO SIMÕES:
O levantamento seria atacar os guardas principais da cidade
e gritar logo pela voz da liberdade.
Queríamos fazer um governo democrático livre e independente.
Foi assim que me convidaram pra fazer parte e eu vim.

NARRADORA 3:
Perguntaram diversas vezes quem o chamou para o levante
Ele nada disse em nenhuma das vezes.
Só falou que também convidaram Luís Pires, o nunca achado
E que esse tinha capacidade de juntar um punhado de gente
E que queria fazer um saque na Casa de Ópera
Enquanto outros atacariam as casas de Guarda
E que havia intenção de libertar Luís Gonzaga das Virgens
Confirmado por Antônio como autor dos papéis sediciosos

NARRADORA 4:
Afirmou que tinha gente opulenta já com homens e dinheiro
Tudo pronto pra fazer acontecer o levantamento.

LUIZA FRANCISCA:
Era o homem que estava na cela do meu lado morreu
depois de muito agonizar, muito gemer, muito vomitar
Eu, aqui presa, nada pude lhe ajudar
Ouço seu desassossego dentro de mim
Ele pedia água.
E continuava a vomitar, sem parar.
Ele era escravo: Antônio Simões.
Levaram pra cela dele uma marmita grande
Comida bem cheirosa
Carne bem passada.
Salivei e estranhei: por que essa comida toda
oferecida pra um escravo preso? Generosidade demais.
Ele tava bem de manhã cedo.
Deram de comer pra ele às 11h da manhã.
O tormento começou ao meio dia.
Só fez silêncio quando a agonia terminou por volta das nove horas da noite.
Eu contei as badaladas do sino.
Chamei por ajuda.
Nada.
Só oito da manhã tiraram seu corpo.
Tudo aqui cheirando a azedume de vômito.
Deram cabo dele.
Morrer assim…
O cheiro de morte não passa
Oxalá, me deixem ir pra casa.
39

NARRADORA 2:
Lucas Dantas tentou parecer mais jovem do que era
Do mesmo jeito que o grande amigo Manoel Faustino
Pediu curador, conseguiu
Sobre seus parceiros declarou:

LUCAS DANTAS:
Luiz Gonzaga das Virgens era o principal. Foi ele quem deu mente e corpo ao que
queríamos fazer. Foi ele quem me chamou, quem chamou outros de nós, trouxe as
ideias de liberdade, os questionamentos sobre o governo. Quem me falou pela
primeira vez que as diferenças das cores podia ter fim. Me disse que temos
dignidade para assumir qualquer emprego... foi ele quem ensinou tudo isso.

NARRADORA 1:
Já sobre o companheiro João de Deus, Lucas Dantas afirmou:

LUCAS DANTAS:
João de Deus já se considerava perdido, carregado de querelas. Ele contou que já
tinha gasto seiscentos mil reis com seu livramento. E ele disse que queria ir a
Angola. E essa é a razão de querer fazer parte do partido. Deu palavra que era
capaz de guardar segredo e tinha intenções reais de fazer o levantamento. Por isso,
entrou.

NARRADORA 1:
Depois de responder mais algumas perguntas,
Lucas Dantas foi se calando:
Ficando um pouco incongruente
E já não mais compreendia coisa alguma
Não mais se importava em responder às perguntas

DESEMBARGADOR
O senhor Lucas Dantas falta com a verdade!
O senhor foi à casa de Luís Pires no dia 25 de agosto?

LUCAS DANTAS
Não. Por que eu iria?

DESEMBARGADOR
Em seu último depoimento o senhor respondeu que esteve.
O senhor disse que estavam lá João de Deus e Cipriano Barata.

LUCAS DANTAS
Ah, eu disse?
Ah, então fica com esse depoimento aí.
Eu não sei mais de nada... já me equivoquei demais.

DESEMBARGADOR
Cipriano Barata também faz parte da conjuração?
40

LUCAS DANTAS
Não lembro se estava na reunião... não tenho certeza.

DESEMBARGADOR
Suas respostas estão cheias de contradição!

NARRADORA
Lucas Dantas não tinha desconforto em deliberadamente faltar com a verdade
A verdade já estava ausente e ele bem sabia disso

DESEMBARGADOR:
Passe a lista de todos que estiveram na reunião, por favor.

LUCAS DANTAS:
Já passei. O senhor já tem.

DESEMBARGADOR:
Esse poema aqui o senhor conhece?

LUCAS DANTAS:
Pratiquei várias vezes com o Professor Francisco.

DESEMBARGADOR:
Então o senhor sabe de cor?

LUCAS DANTAS fala e CORO canta:


Igualdade e liberdade,
no Sacrário da razão,
ao lado da Justiça,
Preenchem o meu coração

LUCAS DANTAS:
Quando os olhos dos Baianos
Estes quadros divisarem,
E longe de si lançarem
Mil despóticos tiranos.
Quão felizes, e soberanos,
Nas suas Terras serão!
Oh que doce comoção
Experimentam estas venturas,
Só elas, bem que futuras
Preenchem o meu coração.

NARRADORA 3:
Lucas Dantas se riu por dentro

CORO:
Acareações:
Cada interrogado frente a frente
Dizendo
41

Desdizendo o outro

CORO BRANCO:
Conhece?

CORO DOS CONDENADOS:


Não conheço

CORO BRANCO:
Ele esteve na reunião
Não?
Esteve na casa de Luís Pires
E na Cruz do Pascoal, esteve?
Conversaram juntos na Rua dos Ossos
No Batizado do seu filho,
Vocês conspiraram?
Conhece fulano?
Não conhece beltrano?

CORO DOS CONDENADOS:


Menos verdade

CORO BRANCO:
Menos verdade, alto lá!

CORO DOS CONDENADOS:


Menos verdade

CORO BRANCO:
Conhece ou não conhece?

CORO DOS CONDENADOS:


Não conheço

CORO BRANCO:
Jura dizer a verdade
Apenas a verdade?

CORO DOS CONDENADOS:


Não conheço
Não conheço
Não conheço

JOÃO DE DEUS:
Eu estava na casa de Ana Romana.
Não estive em reunião alguma, nem sei do que vocês falam.

DESEMBARGADOR:
Seu colega Lucas Dantas disse que estava na reunião e mobilizou homens. Outros
já disseram que foram convidados pelo senhor!
42

JOÃO DE DEUS:
Já disse que não! Até agora não sei por que estou aqui, nem o que os senhores
querem de mim.
Tenho cinco filhos! Sou pai de família! Já respondi tudo... posso ir embora?
Onde estão meus meninos? A mãe dele está aqui presa! Quem cuida das nossas
crianças?
Os senhores veem o que estão fazendo? Olha o que estão fazendo com minha
família?

DESEMBARGADOR:
Esse homem é impossível. Se faz de bobo todo tempo. É preciso examinar a
sanidade mental dele. Todos os carcereiros fazem queixa. Ele tem estado furioso.

JOÃO DE DEUS:
Por que vocês me prenderam?
Por que prenderam minha esposa?
E eu não deveria estar furioso?
Eu deveria estar como?
De que jeito vocês me querem?

NARRADORA 4:
Examinaram a sanidade de João de Deus
Mais tarde também dos outros três
tomados por líderes da conjuração
Porque ficaram todos loucos sem razão aparente
Aos olhos da justiça ficaram todos dementes,
Sofreriam de alguma enfermidade? Padecem de alguma moléstia?
Por que seus humores oscilavam tanto?

MANOEL FAUSTINO:
Constatem logo a verdade
Não sofremos de nada além de fúria

DESEMBARGADOR:
Eles sofrem apenas de fúria.
Não há nenhum embaraço para que se apliquem neles as sentenças dadas.

LUIZ GONZAGA DAS VIRGENS:


Nunca soube suportar tranquilo as injustiças dessa cidade. Já que minha sentença é
de morte, posso decidir o modo de partir? Sem a vergonha da praça pública.

NARRADORA:
As últimas horas foram seguidas de horror.
Para os presos e condenados, a espera da hora da morte
lhes parecia vã e sem sentido
Tentaram sem êxito, mais de uma vez,
ter autonomia sobre a própria vida e deixá-la.
Nenhuma decisão sobre suas vidas eram mais suas.
43

A RAINHA:
É dever do Soberano ou da Soberana determinar quem pode viver ou quem deve
morrer nesta porra. E ainda que atravesse o tempo, sempre haverá um poder
soberano que dispõe do poder de decidir que vidas valem mais do que outras.

MANOEL FAUSTINO:
Meu crime foi ser o aliciador para uma sublevação que ergueria uma República
Democrática, onde todos seriam iguais, onde os acessos e lugares representativos
seriam comuns.

DOM JOÃO VI:


É dever e direito do Soberano dispor sobre quem pode viver e quem deve morrer12!

JOÃO DE DEUS:
Minha condenação foi por não aceitar a minha insignificância imposta.

LUIZ GONZAGA DAS VIRGENS:


Quem são os loucos? Quem se enfurece ou quem fica manso?

LUCAS DANTAS:
Acabem logo com isso!

DOM JOÃO VI:


É dever e direito do Soberano dispor sobre quem pode viver e quem deve morrer!

À parte, Manoel Faustino se expõe exaurido para o público.

MANOEL FAUSTINO:
A minha boca denunciou que não tenho 17 anos, e sim 22. Dela, às vezes brota
raiva. Meu corpo é franzino, minha voz doce… mas a raiva que sai por entre os
dentes travados… essa não engana ninguém.
Não terei tempo de virar homem maduro daqueles que pensam antes de agir. Mas
também, pra quê? Gente como eu não vive o bastante pra envelhecer.
Eu queria saber como é virar homem. Queria saber como é ser gente. Não vai ter
tempo pra mim. Não me deixaram ter poder nenhum na vida e nem na hora de
minha morte.
Não pode ser a ordem das coisas
ter gente que nasce pra ser escravo de uma gente que não faz nada.
Não pode ser a ordem das coisas a gente não poder se defender.
Não pode ser... Até o mar se revolta todo mês de março.
Até as pedras mudam de forma. Até as águas da chuva fazem subir os rios.
Tudo é movimento... eu chamei os irmãos pra luta, sim.
Eu chamei eles pra pegar em armas, sim.
Eu queria ser uma onda arrebentando as portas dos casarões.
Eu não terei tempo de ter juízo e isso é tão triste.
Acho que minha cabeça está cheia de água.
Eu não vou ter tempo de virar homem. Ai, minha mãe, acuda.

12
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução
de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
44

Trevas. Fim do III Ato.


45

ATO IV - LUCAS DANTAS DE AMORIM TORRES - SOLDADO


1774 - 1799
yansã - final

ATO IV
CENA 1 – PACTO COLONIAL DEFINHA
CARTELA:
1799, quando D. João VI assume a regência de Portugal

D. MARIA I:
Foi o tempo que petrificou minhas articulações. Sinto que não me movo. Meus olhos
pesam. Estou contida. De mim, só os gestos autônomos: o mijo, o escarro, a fome,
a sede, as fezes, o grito. Posso gritar? Estou viva! Viva! Grito! Eu posso. Me
satisfaço. Mas não posso gritar tanto a ponto que me contenham mais e não me
sobre sequer a boca.

JOÃO VI:
Defender quem amamos também é sobre provocar dor, mãe. E sobre nós pesa um
povo, pesam vidas. Pesa nossa dignidade perdida... nosso Império não é mais
glorioso.

D. MARIA I:
Você me fala sobre o peso das vidas... como se eu não soubesse. Como se eu não
sentisse o peso das vidas me agarrando aos tornozelos sem me deixar caminhar.

DOM RODRIGO:
Eles falam do peso da Coroa como se não gozassem dos prazeres da Coroa.
Queixam-se, mas não saberiam suportar a vida fora do palácio, com suas
contingências e humilhações. Servos por servos da Coroa, todos somos. Mas raros
sentem a delícia de servir à pátria tomando vinho bom e comendo carne macia.

DOM JOÃO VI:


Mãe, sinto muito. Mas a história é um sonho que vivemos juntos

D. MARIA I:
A história é um pesadelo do qual tento acordar todos os dias.
A história grita nas paredes desse palácio
e se enfia pelos meus orifícios me rasgando inteira.
Por isso grito tanto.
E o que mais me entristece, é que mesmo depois de morta,
A história ainda vai me tirar o sono e o descanso.

DOM JOÃO VI:


Somos bons cristãos, pessoas de fé e tementes a Deus.
Qualquer gesto nosso é para manifestação do poder de Deus na terra.
Por isso, fomos escolhidos por ele. Por isso, mãe, preciso contê-la.
Porque às vezes, já não é mais Deus que fala por sua boca.

D. MARIA I:
46

Essas ilusões morreram em mim com a razão, que me abandonou.


Só vejo fantasmas e a nossa ruindade vestida de boa fé.

DOM JOÃO VI:


Dentro de pouco tempo, assumirei a regência, amada mãe.
Suas obrigações já cessaram.

D. MARIA I:
Amém.
Sem obrigações, poderei enlouquecer em paz.
E não me preocupar com gerir, nem gerar coisa nenhuma.
Ficarei tranquila, tranquila.
Serei apenas mais uma mulher louca, culpada e contida.

DOM JOÃO VI:


E assim, a história será mansa contigo, minha mãe.

D. MARIA I:
A história nunca é mansa, Joãozinho

DOM RODRIGO:
Mansidão não é coisa que nossa coroa conhece.
A voracidade do consumo das riquezas na Colônia,
a sanha de exploração sem reciprocidade
vai nos levar a um impasse em curto espaço de tempo.
Somos a metrópole da mais rica colônia da América,
mas também somos perdulários e devedores incontestes da Inglaterra:
luto para sairmos dessa posição humilhante.
Mas sem que haja mudanças, ela será irreversível.
Por aqui e mar adentro, me chamam de reformista, sim... mas sem equilíbrio nas
taxas e impostos, não é possível evitar sonhos de revoltas.
Os exageros levaram à queda das cortes francesas.
Sem moderação além do mar, conosco não será diferente.
Trabalho ingrato o de recomendar o que ninguém quer ouvir.

NÚCLEO ENTEADOS
Em outro plano, o núcleo dos enteados celebra sua manutenção no poder.

ENTEADO 1
É um alívio vivermos numa terra em que já não se ouve mais discursos raivosos
contra a ordem natural das coisas e hierarquias.

ENTEADO 2
A cidade está mais leve, sem revoltosos, nem urubus. E a Coroa ficará muito
agradecida aos serviços do nosso governador D. Fernando.

ENTEADO 4:
Ficarão contentes com ele e conosco. Colaboramos com recursos e com nossa
fidelidade na pronta entrega de escravos.
47

ENTEADOS EM CORO
Seremos para sempre a classe dominante da capitania da Bahia, até depois de sua
independência, até quando ela continuar se chamando Bahia. Somos mais fortes e
perenes que a Coroa.

IV.2 – INVOCAÇÃO À LIBERDADE


CARTELA
Tempo entrelaçado: ontem, ainda a pouco, agora e o porvir
O Séc. XVIII ecoando no XIX e o XX que altera o XVIII

LUCAS DANTAS
Estima a liberdade e ser forro?
Estima a emancipação do cativeiro, estima?
Está pronto para lutar pra ser livre?
Estima levantar a cabeça? Estima a revolução?
Estima a igualdade?
Por que que quando somos nós que lutamos somos loucos?
Somos ignorantes, somos selvagens?
Por que quando os franceses que lutam são revolucionários?
Por que é bonito eles queimando palácios?
Por que é bárbaro quando minha gente fecha o punho?
Por que é bárbaro querer dignidade?
Eu tenho quatro vinténs, uma argola de búzio
Tive coragem pra lutar do meu jeito, com minha fé e minhas vontades
De onde estou, olho pro futuro e ainda faz sentido perguntar:
Estima a liberdade?
Aos ventos, eu peço passagem.

NARRADORA 1:
Soberano é quem controla a morte
e a vida como uma manifestação do poder

NARRADORA
Pros que são coisa, commodities, produto
A soberania dita o gasto
A morte
Mesmo que o soberano tenha caído
E reine o Estado
Pra esses corpos, essas cores
O Estado garante a morte
Como uma política permanente
Que ultrapassa o tempo13

NARRADORA 3
Novembro de 1799,

13
MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. Lisboa: Antígona, 2016.
48

quatro homens morreram


corpos despedaçados e espalhados pela cidade.
Suas casas salgadas,
seus bens recolhidos pelo estado,
sua prole banida.

HOMENS NEGROS
Cidade necrosada
Cidade onde a morte
dançou nas ruas
Novembro cinza, sim
Metrópole Necropolis
A morte ainda dança
Nas ruas

NARRADORA 4
Apesar do espetáculo macabro
encenado pelo Governo e pela Coroa,
a cidade não esqueceu o chamado ao povo bahinense.
Liberdade, igualdade e independência.
As revoltas não cessaram
guerra da independência,
Revolta dos Periquitos,
Revolta dos Malês,
Sabinada... revoltas e mais revoltas.

NARRADORA 1
Quilombos rurais e quilombos urbanos.
Compras de alforrias por
Sociedades de mulheres e homens pretos.
As revoluções cruzam o tempo:
o que elas movem, nem sempre se colhe no tempo presente
e sim, na permanência da luta dos que virão.

NARRADORA 2
Ainda disputamos a história
com todo corpo, voz, intenção
O século XX reviu o século XVIII14
A conjuração baiana é um dos acontecimentos fundadores desta nação.
A história não é sobre bondade, é sobre disputa.

NARRADORA 1

14
VALIM, Patrícia. Da Sedição dos Mulatos à Conjuração Baiana de 1798: a construção de uma
memória histórica. Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em
História Social do Departamento de História da FFLCH, sob orientação do Prof. Dr. Carlos Alberto de
Moura Ribeiro Zeron. São Paulo: USP, 2007.
49

A República do Século XX não queria heróis pardos 15.


E a partir de agora, vamos trocar esse termo.
A República não queria heróis

CORO
NEGROS
NEGROS
NEGROS

NARRADORA 2
Século XX
Anos 70
Movimento negro unificado e organizado
Blocos afros mostram que a estética é campo de batalha
Dança canto corpo festa
Terreiros de luta
A história se reescreve:
Revolta dos Búzios
Novo batismo
Os pardos infames são heróis negros

NARRADORA 1
Os Búzios ocupam o Carnaval da Bahia:
Olodum e Ilê Aiyê,
anos 80 anos 90.
O teatro entra na briga
O Teatro Negro Palmares Yñaron rebatiza a luta.

CORO
Revolta dos Búzios.

NARRADORA 4
Os búzios ainda caem nos tabuleiros
E a ventania ainda precisa sacudir as ruas,
ainda gente preta dorme ao relento
ainda espera por pão
ainda deita nos camburões navio negreiro do Estado
Repimpados ainda negociam as vidas negras
Soterradas de poeira
As marcas de sangue pisado
Os punhos marcados de algemas
Que a ventania derrube os castelos
de velhos senhores
Os búzios ainda estão no ar
para cair nos tabuleiros.
O tempo de revolta continua.
15
SACRAMENTO, Flávio Márcio Cerqueira do. De pardo infame a herói negro: o mestre alfaiate João
de Deus do Nascimento / Flávio Márcio Cerqueira do Sacramento. – Cachoeira, 2016
50

VI.4 EXU: PASSADO PRESENTE E FUTURO

CARTELA
Tempo espiralado ou as revoluções não tem ponto final

CORPO ESTILHAÇADO
Corpos estilhaçados
podem amedrontar
Podem encorajar
A indignação é condição
da mudança
Corpos estilhaçados
rompem limites
não são mais um só
E seus fragmentos
invadem as narinas
de quem pode respirar
o ar do seu tempo
As revoluções se alimentam
de esperança

LUÍS PIRES
Um corpo preto fechado é revolucionário
Um corpo preto em fuga mato adentro
Mundo afora, incapturável
Um corpo que se esconde, invisível
É revolucionário
Lutar sim, sempre com um plano de fuga
Um plano de ruptura
Respeito meus irmãos bravos
Mas eu não me deixei mártir,
Nem me deixaram.
Fugir é revolucionário!
Assim como ser tão comum
Tão ordinário me torna invisível
Luís Pires… igual a tantos e muitos
Só mais um.
E invisível rumino meu ódio
E trabalho minhas mudanças
Coragem, bravura, força
Eu gosto
de sumir e me sair
Um corpo preto em movimento
sempre vai ser revolucionário.
51

FINAL - VOZES ANCESTRAIS E EVOCAÇÃO PARA O PRESENTE

Em um tempo outro, os quatro mártires são vozes que convocam a ação


no presente:

MANOEL FAUSTINO
Permita que a história fale
Por onde a força e o açoite não alcançaram
Permita que as vozes insurgentes gritem
abrindo os poros
Permita que as nações mortas e esquecidas
Te roubem a tranquilidade da acomodação

LUIZ GONZAGA DAS VIRGENS


Permita ser a mão que age desfazendo as maldições
da própria história, desfazendo seus padrões
repetições
Permita que sua voz falante possa erguer as cabeças baixas
Descrentes, sem fé, nem forças

JOÃO DE DEUS
Há também uma história que se conta fora da vigília
fora dos livros, dos museus, dos documentos conservados
Uma história que sobreviveu às chacinas, aos documentos incendiados
Uma história que se acessa por outras vias
Tambor, sonho, dança, suor, canto, presença
comida, jogo, fé, banho, folha, água
pintura, respiração

LUCAS DANTAS
Se souberes escutar teu corpo, teus sonhos, pesadelos
se souberes onde te aperta a fome e o desejo
Ouvirá ecos dessa história
Ecos das muitas gentes gastas por sobre essa terra
Em nome deles: vai, canta, faz tudo o que for preciso

NARRADORA 1
O amanhã enviou
pássaros pra ontem.
Quando a gente
conhece o passado,
trabalha para que haja futuro
no presente a gente faz
a gente se assenta

LUZES

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