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N· 28 - 1982 - Cr$ 250,00

A Filosofia
de Descartes

Os Evangelhos·
Apócrífos

a Importância
do Trabalho
UrnCentro
de Estudos .
_Filosóficos . .
para ~ern busca
. viver filosoficamente,
. ~ .

.CURSOS CONFERENCIA.S
CICLOS CULTURAIS CON
CE·RTOS BIBLIOTECA FIL
MESEXPOSIÇOESCORAL
Rua Leôncio de Carvalho, 99 - Paraíso
São Paulo - SP- Fone: 288-7356
EDITORIAL

Em face da violência desenfreada que, como um brioso corcel en-


THOT, divindade eglpcia, fi talvez o
mais misterioso e menos compreen- louquecido, não escolhe rumo nem se detém ante nenhum obstáculo,
dido dos deuses do antigo "Kem". E o
slmbolo da sabedoria e da autoridade. vemos levantar-se a voz das nações clamando pela Paz. Organizam-se
E o escrlba silencioso que, com sua ca- congressos, comissões, editam-se projetos, esboçam-se pactos, alianças,
beça de Ibis, a pena e a tabuleta, regis-
tra os pensamentos. palavras e atos
dos homens, que mais tarde seria pe-
compromissos de frágil consistência, pois é difícil prever os próximos
sados na balança da Justiça. PlatSo diz passos e satisfazer interesses tão polarizados. Estudam-se leis du-
que THOT foi o criador dos números,
da geometria e das letras. A cruz (Tau, rante dias, meses, anos, e nada .. , nada consegue pôr rédeas ao en-
no Egito) que tev« em sua mSo fi o slm-
bolo da vida eterne, emblema da sabe- furecido corcel.
doria divina.
Eclesiastas de todas as religiões e de todas as seitas exortam seus
EDITORES fiéis, pedem reflexão, apelam à consciência dos povos, suas vozes en-
A•• oc/.çlo PALASATHENA do B,.111
LI. DI.trln rouquecem de tanto falar, mas o corcel não ouve, não escuta; parece
B•• fllo P.w/ow/cz
Primo AUIIU.'o G.rb811i muito débil o murmúrio daquelas vozes. Artistas e intelectuais de todo
CHEFE DE REDAÇÁO o mundo, sem barreiras de língua nem de cor, reúnem-se na busca de
ZlIdo T"I.no de Luc.n.
uma fórmula capaz de aplacar tamanha barbárie e sem-razão.
PRODUÇÃO Se os homens que detêm o poder, cuja palavra temforça de lei, as-
Urg/o M.rque.
EQUIPE THOT
sessorados por grupos de esclarecidas mentes, informados através de
Emfllo MouII/"'ga sr. complexos e precisos sistemas de comunicação, dispondo de meios su-
LOe/. Benll/tII
Lúci. B,.nd.o S.ft ficientes para persuadir populações inteiras, com corpos diplomáticos
D.vld COMn
M.", Novallo treinados na arte das negociações, se estes homens pouco ou nada
~~:l g~u::::~f,ho conseguem, poderíamos perguntar-nos: "O que fazer? A paz é uma
G."".,.
Lu/. Car/o. Andrad. S.nlo.
Bo•• h.rd utopia? Estamos condenados a viver com a nuvem do ódio pairando
FOTOLlTO CAPA acima de nossas cabeças? A vida não é mais que horror e miséria? É
PoIychrom
o homem genuinamente um criminoso em potência?"
COMPOSiÇÃO Não, mil vezes não! Enquanto houver uma só criatura que acredite
C.mlnho Edltorl.I Lld•.
no amor e na bondade ingênitos na obra do Senhor, a paz será sem-
IMPRESSÃO
Centro Editor d. AllocJeç'o PALAS pre uma campina onde as sementes de tempos vindouros poderão
ATHENA do Br.111
cultivar-se e onde seguramente o iracundo corcel encontrará os tenros
Não publicamos matérias redacionais pastos que aplacarão sua violência faminta de sossego.
pagas. Permitida reprodução. citando
origem. Os números atrasados são
vendidos ao preço do último numero
As guerras, com suas cargas de ódio e sede de vingança, são a ex-
~ublicado. Assinatura anual: pressão patente dos ódios que armazenamos, cada um de nós, em nos-
A~dc;aOçOã~OpÃli~':..~~E~~ ~~~~a~~ sos corações; são a conjuração dos ressentimentos e impotências, o
rua Leôncio de Carvalho, 99 - CEP
04003 - Paralso - São Paulo - SP. somatório de nossa própria animalidade, da mentira com que costu-
Teletone: 288.7356. A responsabili-
dade pelos artigos assinados cabe aos mamos vestir nossas fraquezas.
autores. Matrrcula n9 2046/Reglstro no
DCDP do Departamento de Policia Fe- Enquanto esteja distante aquela campina, enquanto se mantenha
deral. sob n' 1586 P 209/73.
oculto o sol por trás das tempestades, não alimentemos nós, com o
nosso graveto, a fogueira da violência, não participemos no cresci-
Alloc/.ç,o •• mento das discórdias; amassemos o pão cotidiano com altruísmo e ge-
PALAS ATHENA
do Bra,/1 .
nerosidade para que, como límpidos espelhos, possamos refletir as
ainda pálidos raios desse sol, que aguarda os ventos da boa vontade
Centro de E.tudo. F/lo.ótlco. capazes de dissipar as nuvens que o escondem.
Uma palavra rude que morreu em nossa boca, um sentimento hostil
CAPA: estátua em bronze de Palas
A/henB. oeuse gregB oe sebedorie. Fi- que se desvaneceu, uma agressão que não criou asas, um gesto irado
lha de Máti. (a oeus« de Prud~ncle) e
de Zeus (o senhor todo-poderoso do que se consumiu na compreensão, são o nosso tributo, a nossa contri-
Cnimpo}, representava exatamente a
harmonia entre essas duas qualidades: buição, a nossa parcela de brisa a substituir as tormentas, que em ver-
a prudência equilibrando a força. Este dade já começaram a fenecer em nosso coração.
101 O idesl perseguido por P/s/áo em
sus tormuteçêo oouuce, contorme nos
mostra o prot« Jorge L. Garcla Ventu- LIA DlSKIN
tini, no artigo que começa ti página 19.

-INDICE-
A Filosofia da Descartes O Anel do Nibelungo, de Wagner (4' Parte)
- A. Vergez e D. Huisman 2 - Emílio Moufarrige Jr. 24
As Escolas Filosóficas da India (2' Parte) Os Evangelhos Apócrifos
- Lia Diskin
As Três Transformações
8 - David Cohen
Os Instrumentos de Arco (2' Parte)
...,
28

- Nietzsche 15 - Ivan Barbosa Rigolin 32


Bergson: Os Caracteres Cômicos Da Importlncia do Trabalho
- Elba Novello 16 - Zildo Trajano 37
A PollticaSegundo Platlo
P~gina dos Leitores 40
- Jorge L. García Venturini 19
A Filosofia de
Descartes

Extraído do livro "História dos Filósofos Ilus-


trada pelos Textos", de A. Vergez e Ó. Huis-
man; Ed. Freitas Bastos, Rio de Jaheiro, 1976.

René Descartes (7596-7650)

Sua vida viajar, em ver cortes e exércitos, conviver


com pessoas de diversos temperamentos e
condições" .
Descartes, nascido em 1596 em La Haye Após alguns meses de elegante lazer
- não a cidade dos Países-Baixos, mas um com sua família em Rennes, onde se ocupa
povoado da Touraine, numa família nobre com equitação e esgrima (chega mesmo a
- terá o título de senhor de Perron, pe- redigir um tratado de esgrima, hoje per-
queno domínio do Poitou, daí o aposto "fi- dido), vamos encontrá-lo na Holanda en-
dalgo poitevino". . gajado no exército do príncipe Maurício
De 1604 a 1614, estuda no colégio je- de Nassau. Mas é um estranho oficial que
suíta de La Flêche. Aí gozará de um re- recusa qualquer soldo, que mantém seus
gime de privilégio, pois levanta-se quando equipamentos e suas despesas e que se de-.
quer, o que o leva a adquirir um hábito clara menos um "ator" que um "especta-
que o acompanhará por toda sua vida: me- dor": antes ouvinte numa escola de guerra
ditar no próprio leito. Apesar de apreciado do que verdadeiro militar. Na Holanda,
por seus professores, ele se declara, no ocupa-se sobretudo com matemática, ao
"Discurso sobre o Método", decepcionado lado de Isaac Beeckman. É dessa época
com o ensino que lhe foi ministrado: a filo- (tem cerca de 23 anos) que data sua miste-
sofia escolástica não conduz a nenhuma riosa divisa Larvatus prodeo. Eu caminho
verdade indiscutível. "Não encontramos aí mascarado. Segundo Pierre Frederix, Des-
nenhuma coisa sobre a qual não se dis- cartes quer apenas significar que é um jo-
pute". Só as matemáticas demonstram o vem sábio disfarçado de soldado.
que a f i r m a m : " A s m a tem at i c as Em 1619, ei-lo a serviço do Duque de
agradavam-me sobretudo por causa da Baviera. Em virtude do inverno,
certeza e da evidência de seus raciocí- aquartela-se às margens do Danúbio. Po-
nios". Mas as matemáticas são uma exce- demos facilmente imaginá-lo alojado
ção, uma vez que ainda não se tentou apli- "numa estufa", isto é, num quarto bem
car seu rigoroso método a outros domí- aquecido por um desses fogareiros de por-
nios. Eis por que o jovem Descartes, de- celana cUJOuso começa a se difundir, ser-
cepcionado com a escola, parte à procura vido por um criado e inteiramente entre-
de novas fontes de conhecimento, a saber. gue à meditação. A 10 de novembro de
longe dos livros e dos regentes de colégio, 1619, sonhos maravilhosos advertem que
a experiência da vida e a reflexão pessoal: está destinado a unificar todos os conheci-
"Assim que a idade me permitiu sair da su- mentos humanos por meio de uma "ciên-
jeição a meus preceptores, abandonei in- cia admirável" da qual será o inventor.
teiramente o estudo das letras; e resol- Mas ele aguardará até 1628 para escrever
vendo não procurar outra ciência que um pequeno livro em latim, as "Regras
aquela que poderia ser encontrada em para a direção do espírito" (Regulae ad di-
mim mesmo ou no grande livro do mundo, rectionem ingeniii. A idéia fundamental
empreguei o resto de minha juventude em que aí se encontra é a de que a unidade do

2 THOT
FILOSOFIA

espírito humano (qualquer que seja a di- "Os Princípios de Filosofia", dedicado à
versidade dos objetos da pesquisa) deve princesa palatina Elizabeth, de quem ele é,
permitir a invenção de um método univer- em certo sentido, o diretor de consciência
sal. Em seguida, Descartes prepara uma e com quem troca importante correspon-
obra de física, o "Tratado do Mundo", a dência. Em 1644, por ocasião da rápida
cuja publicação ele renuncia visto que em viagem a Paris, Descartes encontra o em-
1633 tomá. conhecimento da condenação baixador da França junto à corte sueca,
de Galileu. É certo que ele nada tem a te- Chanut, que o põe em contato com a rai-
mer da Inquisição. Entre 1629 e 1649, ele nha Cristina.
vive na Holanda, país protestante. Mas Esta última chama Descartes para junto
Descartes, de um lado é católico sincero de si. Após muitas tergiversações, o fi-
(embora pouco devoto), de outro, ele an- lósofo, nao antes de encarregar seu editor
tes de tudo quer fugir às querelas e preser- de imprimir, para antes do outono, seu
var a própria paz. "Tratado das Paixões" - embarca para
Finalmente, em 1637, ele se decide a pu- Amsterdam e chega a Estocolmo em outu-
blicar três pequenos resumos de sua obra bro de 1649. É ao surgir da aurora (5 da
científica: "A Dioptrica", "Os Meteoros" e manhãl) que ele dá lições de filosofia car-
"A Geometria". Esses resumos, que quase tesiana à sua real discípula. Descartes, que
não são lidos atualmente, são acompanha- sofre atrozmente com o frio, logo se arre-
dos por um prefácio e esse prefácio foi que pende, ele que "nasceu nos jardins da
se tornou famoso: é o "Discurso sobre o Touraine", de ter vindo "viver no país dos
Método". Ele faz ver que o seu método, ursos, entre rochedos e geleiras". Mas é
inspirado nas matemáticas, é capaz de pro- demasiado tarde. Contrai uma pneumonia
var rigorosamente a existência de Deus e o e se recusa a ingerir as drogas dos charla-
primado da alma sobre o corpo. Desse tães e a sofrer sangrias sistemáticas ("Pou-
modo, ele quer preparar os espíritos para; pai o sangue francês, senhores"), mor-
um dia, aceitarem todas as conseqüências rendo a 9 de fevereiro de 1650. Seu ataúde,
do método - inclusive o movimento da alguns anos mais tarde, será transportado
Terra em torno do Sol! Isto não quer dizer para a França. Luís XIV proibirá os fune-
que a metafísica seja, para Descartes, um rais solenes e o elogio público do defunto:
simples acessório. Muito pelo contrário! desde 1662 a Igreja Católica Romana, à
Em 1641, aparecem as "Meditações qual ele parece ter-se submetido sempre e
Metaflsicas", sua obra-prima, acompanha- com humildade, colocará todas as suas
das de respostas às objeções. Em 1644, ele obras no Index.
. publica uma espécie de manual cartesiano,

o método c) A terceira, é a regra da síntese: "con-


cluir por ordem meus pensamentos, come-
çando pelos objetos mais simples e mais
fáceis de conhecer para, aos poucos, as-
Descartes quer estabelecer um método cender, como que ~or meio de degraus,
, universal, inspirado no rigor matemático e aos mais complexos'.
em suas "longas cadeias de razão". d) A última é a dos "desmembramentos
a) A primeira regra é a evidência: não tão completos ... a ponto de estar certo de
admitir "nenhuma coisa como verdadeira nada ter omitido".
se não a reconheço evidentemente como Se esse método tornou-se muito célebre,
tal". Em outras palavras, evitar toda "pre- foi porque os séculos posteriores viram
cipitação" e toda "prevenção" (precon- nele uma manifestação do livre exame e
ceitos) e só ter por verdadeiro o que for do racionalismo.
claro e distinto, isto é, o que "eu não tenho Ele não afirma a indepêndencia da ra-
a menor oportunidade de duvidar". Por zão e a rejeição de qualquer autoridade?
conseguinte, a evidência é o que salta aos "Aristóteles disse" não é mais um argu-
olhos, é o que resiste a todos os assaltos da mento sem réplica! Só contam a clareza e
dúvida, uma evidência-resíduo, o produto a distinção das idéias.Os filósofos do sé-
do espírito crítico. Não, como diz bem culo XVIII estenderão esse método a dois
Jankélévitch, "uma evidência juvenil, mas domínios de que Descartes, é importante
quadragenária" . ressaltar, o excluiu expressamente: o polí-
b) A segunda, é a regra da análise: "divi- tico e o religioso (Descartes é conservador
dir cada uma das dificuldades em tantas em política e coloca as "verdades da fé"
parcelas quantas forem possíveis". ao abrigo de seu método).

THOT 3
FILOSOFIA.

Por outro lado, o método é racionalista da razão que percebe diretamente os pri-
porque a evidência de que Descartes parte meiros princípios é a intuição. A dedução
não é, de modo algum, a evidência sensível limita-se a veicular, ao longo das belas ca-
e empírica. Os sentidos nos enganam, suas deias da razão, a evidência intuitiva das
indicações são confusas e obscuras, só as "naturezas simples". A dedução nada mais
idéias da razão são claras e distintas.O ato é do que uma intuição continuada.

A Rainha Cristina Cercada de Sábios, entre eles Descartes. Quadro de Dumesnil, Versalhes.

A metafisica sentidos, uma vez que eles freqüentemente


nos enganam, pois, diz Descartes, nunca
No "Discurso sobre o Método", tenho certeza de estar sonhando ou de es-
Descartes pensa sobretudo na ciência. tar desperto! (Quantas vezes acreditei-me
Para bem compreender sua metafísica, é vestido com o "robe de chambre", ocu-
necessário ler as "Meditações". pado em escrever algo junto à lareira; na
19 - Todos sabem que Descartes inicia verdade, "estava despido em meu leito").
seu itinerário espiritual com a dúvida. Mas Duvidemos também das próprias evi-
é necessário compreender que essa dúvida dências científicas e das verdades matemá-
tem um outro alcance que a dúvida metó- ticas! Mas quê? Não é verdade - quer eu
dica do cientista. Descartes duvida volun- sonhe ou esteja desperto - que 2 + 2 = 4?
tária e sistematicamente de tudo, desde Mas se um gênio maligno me enganasse, se
que possa encontrar um argumento, por Deus fosse mau e me iludisse quanto às
mais frágil que seja. Por conseguinte, os minhas evidências matemáticas e físicas?
instrumentos da dúvida nada mais são do Tanto quanto duvido do Ser, sempre posso
que os auxiliares psicológicos de uma as- duvidar do objeto (permitam-me retomar
cese, os instrumentos de um verdadeiro os termos do mais lúcido intérprete de
"exercício espiritual" . Duvidemos dos Descartes, Ferdinand Alquié).

4 THOT
FILOSOFLt

29 - Existe, porém, uma coisa de que


não posso duvidar, mesmo que o demônio
queira me enganar. Mesmo que tudo o que
penso seja falso, resta a certeza de que eu
penso. Nenhum objeto de pensamento resiste o Cogho de De.carte. nlo " como I'
à duvida, mas o próprio ato de duvidar é indu- .e dI••• , o ato de na.c/mento do que
bitável. Penso, cogito, logo existo, ergo sumo chamamo. Ideal/.mo (o .u/e/to pen-
Não é um raciocínio (apesar do logo, do unte e .ua. Id"a. como fundamento
ergo), mas uma intuição, e mais sólida que de todo conhecImento), ma. de.co-
a do matemático, pois é uma intuição me- berta do dom/n/o ontol6glco: e.te. ob-
tafísica, metamatemática. Ela trata não de Jeto. que .10 a. evld'nc/a. matem'tI-
um objeto, mas de um ser. Eu penso, Ego ce. remetem a e.te .er que' meu pen-
cogito (e o ego, sem aborrecer Brunsch- .amento.
vicg, é muito mais que um simples aci-
dente gramatical do verbo cogitare). O co-
gito de Descartes, portanto, não é, como
já se disse, o ato de nascimento do que, em Deus e Deus me garante a evidência! Mas
filosofia, chamamos de idealismo (o su- não se trata da mesma evidência. A evi-
jeito pensante e suas idéias como o funda- dência ontológica que, pelo cogito, me
mento de todo conhecimento), mas a des- conduz a Deus fundamenta a evidência
coberta do domínio ontológico (estes obje- dos objetos matemáticos. Por conseguinte,
tos que são as evidências matemáticas re- a metafísica tem, para Descartes, uma evi-
metem a este ser que é meu pensamento). dência mais profunda que a ciência. É ela
39 - Nesse nível, entretanto, nesse mo- que fundamenta a ciência ~m ateu, dirá
mento de seu itinerário espiritual, Des- Descartes, não pode ser geometra l).
cartes é solipsista. Ele só tem certeza de 49 - A quinta meditação apresenta uma
seu ser, isto é, de seu ser pensante (pois, outra maneira de provar a existência de
sempre duvido desse objeto que é meu Deus. Não mais se trata de partir de mim,
corpo; a alma, diz Descartes nesse sentido, que tenho a idéia de Deus, mas antes da
"é mais fácil de ser conhecida que o idéia de Deus que há em mim. Apreender a
corpo"). . idéia de perfeição e afirmar a existência do
E pelo aprofundamento de sua solidão ser perfeito é a mesma coisa. Pois uma
que Descartes escapará dessa solidão. perfeição não-existente não seria uma per-
Dentre as idéias do meu cogito existe uma feição. É o argumento ontológico, o argu-
inteiramente extraordinária. É a idéia de mento de Santo Anselmo que Descartes
perfeição, de infinito. Não posso tê-Ia ti- (que não leu Santo Anselmo) reencontra:
rado de mim mesmo, visto que sou finito e trata-se ainda aqui, mais de uma intuição,
imperfeito. Eu, tão imperfeito, que tenho a de uma experiência espiritual (a de um in-
idéia de Perfeição, só posso tê-Ia recebido finito que me ultrapassa) do que de um ra-
de um Ser perfeito que me ultrapassa e ciocínio.
que é o autor do meu ser. Por conseguinte,
eis demonstrada a existência de Deus. E Deus, a ciência e o livre arbítrio
note-se que se trata de um Deus perfeito,
que, por conseguinte, é todo bondade. Eis Acabamos de ver que a evidência me-
o fantasma do gênio maligno exorcizado. tafísica transcende a evidência científica.
Se Deus é perfeito, ele não pode ter que- Para Descartes, o Deus criador transcende
rido enganar-me e todas as minhas idéias radicalmente a natureza. Deus foi "intei-
claras e distintas são garantidas pela vera- ramente indiferente ao criar as coisas que
cidade divina. Uma vez que Deus existe, criou". Não se submeteu a nenhuma ver-
eu então posso crer na existência do dade prévia. Em virtude do poder de seu
mundo. O caminho é exatamente o inverso livre arbítrio, criou as verdades. Eis por
do seguido por São Tomás. Compreenda- que Deus quer que a soma dos ângulos de
-se que, para tanto, não tenho o direito de um triângulo seja igual a dois ângulos re-
guiar-me pelos sentidos (cujas mensagens tos.
permanecem confusas e que só têm um va- Acrescentamos que, para Descartes,
lor de sinal para os instintos do ser vivo). Deus criou o mundo instante por instante
Só posso crer no que me é claro e distinto (é a "criação contínua"). O tempo é des-
(por exemplo: na matéria, o que existe ver- contínuo e a natureza não tem nenhum po-
dadeiramente é o que é claramente pensá- der próprio. As leis da natureza só são o
vel, isto é, a extensão e o movimento). Al- que são a cada momento, em virtude da
guns acham que Descartes fazia um cír- vontade do criador. É importante com-
culo vicioso: a evidência me conduz a preender que essa transcendência radical

THOT 6
FILOSOFIA

de Deus possui duas conseqüências funda-


mentais. O livre arbítrio humano e a inde-
pendência da ciência.
O homem não é uma parte de Deus. A "pen.o, logo ex/.to" n'o • um r.-
transcendência do criador afasta qualquer clocln/o (ap•• ar do logo), ma. um, In-
panteísmo. O homem, simples criatura ul- o tulç'o, e mal. sólida que a do matem'-
trapassada por seu criador (concebo Deus tlco, po/. • uma Intulç'o metaff./ca,
porque descubro em mim a marca de sua metamatem'tlca.
infinitude, mas não o compreendo), re-
cebe, assim, uma autonomia que será per-
dida no sistema panteísta de Spinoza. O Nem tudo tem o mesmo valor na obra
homem é livre, pode dizer sim ou não às científica de Descartes. Se sua ótica e suas
ordens de Deus. É certo que, na Quarta considerações sobre a expressão algébrica
Meditação, Descartes fala da liberdade es- das curvas (ele é, juntamente com Fermat,
clarecida, dessa liberdade que não pode o inventor da geometria analítica) consti-
tratar da verdade ou do bem, dessa liber- tuem incontestável contribuição cientí-
dade que é antes um estado de libertação fica, sua física (dada, aliás, mais como uma
do que uma decisão pura, situada além de possibilidade racional do que como a ver-
todas as razões. Mas nos "Princípios" e so- dade certa) não passa de um romance.
bretudo nas "Cartas ao Pe. Mesland " de 2 Mas o espírito dessa física e da fisiologia
de maio de 1644 e 9 de fevereiro de 1645~ cartesiana - que não passa de um capítulo
Descartes afirma radicalmente o livre da física - nada mais e do que o espírito do
arbítrio, o poder de recusar a verdade e o mecanicismo. Quando Descartes declara
bem até mesmo na presença da evidência que os animais são máquinas, ele coloca,
que se manifesta. Esses textos esclarecem em princípio, que é possível explicar as
a teoria do juizo presente na quarta medi- funções fisiológicas por intermédio de me-
tação. O entendimento concebe a verdade canismos semelhantes àqueles que fazem
e é a vontade que dá as costas a ou afirma mover os autômatos que vemos "nos jar-
essa verdade. Deus propõe e o homem, por dins dos.nossos reis". O detalhe das expli-
tntermédio de seu livre arbítrio, dispõe. cações não passa de um sonho. Mas a dire-
Desse modo, Deus não é o culpado dos ção tomada é a da ciência moderna. Para
meus erros nem dos meus pecados. Sou eu Descartes, o mundo físico não possui mis-
que me engano, sou eu que peco. Meu li- térios. As coisas se determinam reciproca-
vre arbítrio me faz merecedor ou culpado. mente (leis do choque), por contato direto,
Do mesmo modo, a transcendência de num espaço em que não existe o vazio.
Deus vai tornar possível uma ciência pura-
mente racional e mecanicista da natureza. DISCOURS
A natureza, segundo Descartes, já o vi- DE LA METHODE
mos, não possui dinamismo próprio. Todo
dinamismo pertence ao criador. Na me- POlir bicn conduire ia r:ufon,& chcrchcr
dida em que a natureza é despojada de Ia veritc dans lcs Icrcnces.
toda profundidade metafísica, Descartes I' l

pode el iminar as noções aristotélicas e LA DIOPTRIQVE.


medievais de forma, alma, ato e potência.
Toda finalidade desaparece e a natureza é L E S M E T E O R E S.
reduzida a um mecanismo inteiramente LT

transparente para a linguagem matemá- LA GEOMt:TRIE.


tica. A natureza nada tem de divino, é um §!.!!/!Orif des tj,m de em ME TI/O o E.
objeto criado, situado no mesmo plano da inte-
ligência humana, e, por conseguinte, inteira-
mente entregue à sua exploração. Isto con-
siste, ao mesmo temno.na rejeição de todo
naturalismo pagão (a natureza não é uma
deusa) e na fundamentação metafísica do
racionalismo científico.

.\ I E \ " (

De l'Imprimcricdc rA~ M A I R z.
Frontísplclo de prlmelre edlçlo de "O Discurso sobre o r 1 :1 1, r x xx V f J.

Método", de 1637, AHfC TTll4Jitgt.

THOT
FILOSOFIA

liA verdadeiragenero.'d.ade con.l.te,


em parte, na con.cltnc/a de que nada
no. pertence verdade/rament., exceto
a livre dlaposlçto d. noaaas vontac:lea
...
e em parte no .entlmento ,de uma firme
e' con.tante re.o/uçto de bem u.'-Ia,
I.to " ~e nunca no. fe"ar vontade para
empreender e executar toda. a. co/•••
que Julgarmo. melhore., o que' .egulr
a vIrtude perfeitamente".

o problema do homem. A 'moral

No "Discurso sobre o Método". a) Consideremos o homem enquanto


Descartes adota uma moral provisória - espírito, enquanto liberdade: o valor su-
pois a ação não pode esperar que a filoso- premo é a generosidade. "A verdadeira
fia cartesiana engendre uma nova moral! generosidade que faz com que um homem
Recordemos seus três preceitos: se estime, no ponto máximo em que ele
a) Submeter-se aos usos e costumes de pode legitimamente estimar-se, consiste,
seu país. em parte, na consciência de que nada lhe
b) Antes mudar os próprios desejos que pertence verdadeiramente, exceto essa li-
a ordem do mundo e vencer-se a si próprio vre disposição de suas vontades... e em
do que à fortuna. parte no sentimento de uma firme e cons-
c) Ser sempre firme e resoluto em suas tante resolução de bem usá-Ia, isto é, de
ações; saber decidir-se mesmo na ausência nunca lhe faltar vontade para empreender
de toda evidência, à semelhança do via- e executar todas as coisas que julgar me-
jante perdido na floresta que, ao invés de lhores, o que é seguir a virtude perfeita-
ficar fazendo voltas, adota uma direção mente" .
qualquer e nela se mantém! (O cartesianis- b) Se considerarmos o homem enquanto
mo.antes de ser uma filosofia da inteligên- espírito unido a um corpo, somos obriga-
cia é uma filosofia da vontade). dos a levar em conta as paixões, isto é, a
f: certo que a moral definitiva de Des- afetividade em sentido amplo. Paixão é.
cartes não apresenta uma unidade per- para Descartes. tudo o que o corpo determina
feita. Influências estóicas, epicuristas e na alma. E ele, que nada tem de asceta,
cristãs estão presentes nela. Mas, na reali- acha que devemos antes dominá-Ias do
dade, essa complexidade reflete a própria que desenvolvê-Ias. Isso porque ele se co-
complexidade da condição humana. No loca do ponto de vista da felicidade. O
plano das idéias claras e distintas, Descar- bom funcionamento do corpo, as ligações
tes separa claramente as duas substâncias, harmoniosas entre os espíritos animais e os
alma e corpo: a essência da alma é pensar; pensamentos humanos são altamente de-
a do corpo é ser um objeto no espaço. E no sejáveis. A moral surge, então, como uma
entanto, o pensamento está preso a esse técnica de felicidade e, nessa técnica, a medi-
fragmento de extensão. A alma age sobre cina desempenha importante papel. A moral
o corpo e este age sobre ela. (Para Descar- surge aqui como uma aplicação direta do
tes, o ponto de aplicação da alma ao corpo mecanicismo cartesiano.
é a glandula pineal, isto é, a epífise). Mas
isso não esclarece a união da alma e do
corpo, que é um fato de experiência, pura-
mente vivido e ininteligível.
Na medida em que Descartes considera
o homem no que ele tem de essencial, en-
quanto espírito, ou quando se ocupa do
composto humano, sua moral assume as-
pectosdiferentes:

THOT 7
A escola Purv« Mimllnsll enflltizll o velor do ritual, do ce-
rimonial e o sentido do s8crifTcio védico. Na foto, o banho
ritual no rio Gllnges.

AsEscolas I'

Filosóficas da India
2!Parte
lU - Puna-Mimansa
pode ser descrita, então, como a busca da
o que caracteriza este sistema, em com- idéia escondida atrás da palavra, vale di-
paração com os outros até agora conside- zer, busca da solução para o importante
rados, é a sua adesão aos Vedas como au- problema que representa a relaçao entre
toridade infalível. Neste sentido, a Mi- discurso e pensamento. A partir do mo-
mansa coloca os Vedas, ou sruti, como fun- mento em que considera a linguagem
damento seguro de si própria. como sendo independente do uso indivi-
Com respeito ao lugar que concede à ra- dual, participa este sistema nas discussões
zão, é suficiente observar que, mesmo relacionadas com a psicologia social ou
quando autoritária em seu próprio direito, popular. Essas questões psicológicas con-
a verdade revelada chega a nós por inter- têm elementos valiosos para a moderna
médio de palavras, cuja interpretação não ciência da Semântica, o ramo do conheci-
é fácil. Daí a necessidade de mimansa, ou mento que se ocupa com o significado das
seja, a investigação dos princípios de palavras em relação à sua forma lingüís-
acordo com os quais devem ser interpreta- tica. A esse respeito, a Mimansa atua
dos os textos. Somente quando assim assis- corno o necessário complemento do
tidos pela razão, é que os Vedas desvelarão Vyakarana, ou Gramática, cujo tratamento
sua real importância. A meta principal da das palavras é principalmente formal. A
Mimansa, como ramo do conhecimento, vantagem indireta que daí resulta para a

8 THOT
FILOSOFIA.

psicologia e filologia representa um dos as- dos últimos expoentes da Mimansa, de


pectos mais importantes do estudo da Mi- colocá-Ia lado a lado com os outros siste-
mansa. As leis de interpretação formula- mas de pensamento e não permitir que per-
das por Jaimini e seus sucessores são manecesse como simples discussão litúr-
muito abrangentes e podem ser aplicadas gica em torno de ritos, que, nessa época,
tanto a trabalhos sem relação com os Ve- se encontravam já mais ou menos mortos.
das quanto às investigações em torno Qeste O câmbio não teve lugar nos Kalpas-
antigo texto. Na realidade, essas leis se tor- -sutras, mas está exposto claramente nos
naram amplamente comuns e são utiliza- tratados de Upavarsa e Savarasvamin, os
das para se alcançar a correta interpreta- primeiros comentaristas do Sutra de J ai-
ção dos textos antigos, particularmente os mini, sendo muito comum em seus suces-
tratados legais [dharma-sastras}. sores. O aspecto darsana é, portanto, com-
De um modo geral, pode-se afirmar que parativamente tardio, embora o seu
a Mimansa concede maior importância às espírito especulativo, no que se refere aos
Brahmanas do que aos Mantras, o que sig- Vedas, não seja novo, de vez que se encon-
nifica encarar os Vedas essencialmente tra nos Upanishads e nas interpretações
como livros rituais. Subordina não apenas alegóricas de ritos das próprias Brahma-
os Mantras mais antigos, mas também os nas.
Upanishads tardios. Sua própria designa- O tipo especial de teoria filosófica que
çao, Purva Mimansa, faz referência a este agora representa segue outras sendas; não
último aspecto, significando ocupar-se deriva da filosofia dos Mantras, nem tam-
com os ensinamentos daquelas partes dos pouco continua a especulação dos Upani-
Vedas que vêm antes dos Upanishads; a shads. Suas origens podem ser encontradas
darsana que se ocupa com estes últimos se em outras fontes, não sendo, portanto,
chama Uttara- Mimansa. . uma religião natural nem uma filosofia do
A questão referente aos sacrifícios, que absoluto. Alguns de seus princípios meno-
constitui o tema fundamental da Mimansa, res podem ser associados ao que se encon-
é sem dúvida muito antiga, representando tra nas porções filosóficas dos Vedas; po-
o propósito principal dos Srouta-sutras e rém, por estranho que pareça, a maior
sendo encontrado até nas Brahmanas. Dú- parte deles, os mais importantes, foram to-
vidas e discussões em torno do ritual são mados do sistema Nyaya-Vaisesika. O pro- ,
naturais, especialmente depois de passada pósito das Brahmanas era superar a sim-
a etapa incipiente. A Mimansa somente ples adoração natural dos Mantras; a in-
amplia os aspectos da questão, fazendo-a tenção da Mimansa totalmente desenvol-
mais sistemática. Mas não se deve inter- vida é a de superar os rituais ensinados
pretar, em vista disso, que se ocupa com os pela Brahmanas e sistematizados pelos
sacrifícios como são precisamente ensina- Srouta-Sutras. Sem embargo, a superação
dos nas Brahmanas. Separa-se destas por não é completa, sendo que a Mimansa, tal
várias gerações, embora demarque o seu como conhecemos agora, é uma mescla do
apogeu e decadência em sua concepção de racional e do dogmático, do natural e do
ritual. Na realidade, reinterpreta e, desta sobrenatural, do ortodoxo e do hetero-
forma, modifica consideravelmente o ve- doxo.É o aspecto darsana do sistema o
lho sistema de ritos. Além disso, apresenta que trataremos agora, e não suas teorias ri-
uma modificação muito mais importante: tualístícas ou seus princípios exegéticos.
a subordinação da idéia de sacrifício à A primeira fonte autorizada a respeito
idéia de moksha. deste sistema é o "Mimansa-Sutra", de Jai-
A meta que originalmente se havia conce- mini, que se acredita tenha sido escrito em
bido para a vida era, em termos gerais, al- 200 d.e. Os sutras são em número superior
cançar o céu (svarga). A substituição desta a 2.500, divididos em doze capítulos, com
meta pelo ideal de moksha representa uma um total de sessenta seções, onde são
radical transformação da doutrina, por abordados quase mil tópicos, o que situa
meio da qual a Mimansa deixa de ser mero esta obra como a mais extensa entre os su-
comentário ao ritual védico para se tornar tras filosóficos.
uma darsana. Desse modo, em sua forma Temos ainda uma segunda escola, que
presente se diferencia em muito daquilo durante muito tempo superou a primeira,
que o seu outro nome, Karma-Mimansa, e onde encontramos adequado material de
pode sugerir. A ênfase que se dava ao referência: a enorme obra de Kumarila,
cumprimento dos ritos se tornou agora se- totalmente impressa. Este importante tra-
cundária. Esta mudança fundamental tal- balho consiste em uma parte geral ou filo-
vez tenha resultado do desejo, por parte sófica, intitulada "Sloka Vartika", além de

THOT 9
FILOSOFIA

outras duas: "Tantra- Vartika" e "Tup-


-Tika". A relação cronológica entre as duas
escolas é ainda motivo de controvérsia, o m./o direto d. IIbereç'o .e deduz
porém, em linhas gerais, pode-se dizer que d. cr.nça g.n.rallz.d. n. fndla. e com-
esta última, chamada escola Prabhakara, é p.rtllhed. p.'. M/m.n•• , de que o
a mais antiga e a que melhor preserva a k.rm. • cau.. de .prl./on.m.nto.
orientação da Mimansa original. Quando. cau•••• lImln.d., c•••• n.-
A Mimansa considera a pluralidade de c•••• rl.m.nt. o .fe/to, ••• b.t.nçfo
atman. Segundo Kumarila, atman é con- do karma r•• ult.rl. .utom.t/c.m.nt.
cebido não só como agente (karta), mas n••.•• tltulç.o do •• r .0 ••u •• t.do orl-
também como desfrutador (bhokta), gln.l.
admitindo-lhe ainda mudanças de forma e
de lugar, ou seja, o sistema reconhece a com seus respectivos objetos. O conheci-
possibilidade de câmbios modais no ser. mento obtido é um tanto vago e indefinido
Apesar de ser passível de modificações, é e se chama alocana, como na Sankhya-
considerado eterno, de vez que Kumarila -Yoga. A primeira parte deste processo é
rechaça a idéia de que os câmbios internos descrita como "indeterminado"
excluam ou contradigam a idéia de perma- (nirvikalpaka), e a segunda como "determi-
nência. A experiência nos coloca diaria- nado" (savikalpaka). Crianças e animais,
mente diante de coisas que se modificam a cujo crescimento mental é incompleto ou
cada instante, mantendo, sem embargo, imperfeito, atuam somente em função do
sua identidade. Jnana, o conhecimento, é que se encontra sugerido nessa etapa pri-
um modo de ser. É descrito como um ato mitiva da pe rc e p âo , ou sej a, o
ç

(kriya) ou processo (vyapara) e é natural- nirvikalpaka nao é uma mera hipótese for-
mente considerado como supra-sensível, mulada para dar significado a um aspecto
desde que se encontra em uma "substân- conhecido da experiência, mas sim é parte
cia" tão etérea como é o ser. Esta mu- da própria experiência. Assim como a
dança ou distúrbio que se produz no at- Nyaya-Vaisesika, a Mimansa também re-
man provoca uma espécie de relaciona- conhece manas como um sentido (indriya),
mento com o objeto conhecido. O ser, que se junta aos cinco outros admitidos
sendo por hipótese onipresente, está ne- comumente, e cuja cooperação é impres-
cessariamente relacionado com todos os cindível para todo jnana.
objetos existentes; mas esta relação não é Os sentidos, incluindo manas, propiciam
a mesma que estamos considerando agora, as condições externas causadoras das mo-
pois, se assim fosse, jnana estaria presente dificações no ser, constituindo o conheci-
em todos os objetos durante toda sua exis- mento; e é a dissociação deles em moksha
tência. A relação resultante de jnana é o que liberará o ser, como na Nyaya-
única, e é descrita como "compensação" -Vaisesika,
(vyaptr-vyapyatava). O ato ou processo de Outro tema que deve ser abordado é o
jnana é considerado transitivo, ou seja, o modo pelo qual nos apercebemos de nosso
seu resultado tem de ser achado em al- "eu", o que é uma decorrência direta do
guma outra coisa e não onde se manifesta. aham-pratyaya, ou a "noção do eu". Sendo
O ato de cozinhar, por exemplo, é visto um ponto importante da doutrina, requer
como o agente (sujeito), mas seu resultado explicações. Kumarila entende a "cons-
- a brandura do cereal cozido - se encon- ciencia do eu" literalmente e considera
tra no alimento, quer dizer, no arroz (ob- que o eu pode ser, ao mesmo tempo, su-
jeto). Quando jnana se apresenta no ser jeito e objeto - o conhecedor e o conhe-
relacionando-o a um objeto, este é afetado cido (jada-bodhatmakai, mencionando·
de tal modo que a experiência, em sua to- como evidência o dito comum "eu me co-
talidade, não se restringe a uma modifica- nheçr-". A atribuição desse caráter apa-
ção subjetiva, senão que também há uma rentemente contraditório ao eu está de
modificação objetiva que lhe corresponde. acordo com o princípio dominante neste
O objeto se torna "iluminado" iprakasa- sistema de pensamento, qual seja o de que
-visistav; e assim podemos concluir que a natureza das coisas não pode ser rigida-
jnana esteve anteriormente presente no mente determinada tbhedabheda-vadas. A
ser. Jnana pode revelar outros objetos, consciência do eu é constante e acompa-
mas não tem o poder de manifestar-se. nha todos os estados de consciência, es-
Uma outra causa de percepção que tando ausente somente no estado de sono
resulta em conhecimento direto profundo, quando não há objeto conhe-
(visadavabhasa) é o contato dos sentidos cido. Por conseguinte, quando dizemos

10 THOT
FILOSOFIA

que o eu é conhecido em todas as expe-- todesenvolvimento da realidade. Qualquer


riências, não se deve compreender que é que seja o estímulo requerido para que tal
conhecido como o sujeito do ato de co- câmbio ocorra, procede o karma passado
nhecer. O fato de conhecer é, em si de cada um dos seres que estão peregri-
mesmo, desconhecido naquele momento, nando pela vida nesse momento. Isto signi-
e tem de ser deduzido depois. Não pode- fica a abolição da idéia de Deus criador, o
mos, portanto, conhecer o eu caracteri- que em verdade é um estranho princípio a
zado por ou devido a tal conhecimento, ser sustentado por uma escola que se pro-
que é o que significa o termo sujeito. Sem clama ortodoxa por excelência.
embargo, o eu não pode ser desconhecido, Para caracterizar a concepção global
já que isto seria contrário à identidade pes- em poucas palavras, podemos dizer que a
soal da experiência de cada um; em vista Mimansa é puro empirismo, à exceção de
disso, é explicado como sendo o objeto da um único aspecto, a saber, o reconheci-
consciência do eu. mento de uma esfera supranatural do ser e
De acordo com Kumarila, a consciência de uma autoridade revelada por cujo inter-
do eu implica não somente uma diferença médio se pode obter o seu conhecimento.
interna - o eu que está em oposição a si Em relação à outra esfera - a da experiên-
mesmo como um objeto -, mas também cia comum - esta doutrina supera qual-
uma diferença externa - um eu que é dis- quer outra escola naturalista de pensa-
tinguido do não-eu. mento conhecida na história. De fato, a
A Mimansa é realista e seu realismo principal objeção contra a Mimansa, pelo
possui alguns aspectos próprios. Contra- menos em certa etapa de seu desenvolvi-
riamente a Sautrantika e à Vaibhasika, por mento, foi a de ser totalmente materialista
exemplo, admite a existência de dravyas em sua visão.
permanentes, que são o substrato de quali- A Mimansa é também pluralista e acre-
dades e não simplesmente agregados de dita que a variedade se encontra na raiz do
dados sensórios impermanentes. Até aqui universo físico. A escola de Kumarila
a doutrina está de acordo com a Nyaya- aceita as nove dravyas conhecidas da
-Vaisesika; mas difere desta em não admitir Nyaya-Vaisesika e acrescenta mais duas:
que uma dravya possa ser produzida de tamas, ou "treva", e sabda, ou "som". O
novo, reconhecendo, por seu turno, o tempo é perceptível, significando isto que
princípio de mudança. Cada dravya é toda experiência de percepção, não im-
eterna e permanente, não obstante suas porta através de qual sentido, inclui uma
formas ou atributos poderem sofrer modi- referência a este elemento. Sem embargo,
ficações. A argila que vemos agora à nossa o tempo não pode ser apreendido por si
frente pode, em dado momento, tornar-se mesmo, mas somente junto com algum ob-
jarra, em outro momento, fonte; pode ser jeto. Outras dravyas também são considera-
marrom agora e vermelha mais tarde, po- das como perceptíveis, excetuando so-
rém, em todas essas transformações, per- mente manas, que é conhecido mediata-
siste o mesmo material. A dravya perma- mente. Resulta curioso que a treva deva
nece, apenas os seus modos aparecem e contar-se entre as dravyas positivas, em
desaparecem. Esta observação e comparti- oposição à idéia da Nyaya-Vaisesika, que a
lhada pela escola Sankhya-Yoga. considera como ausência de luz. A razão
Importante diferença entre essas duas apontada - de que a treva está caracteri-
doutrinas é que, para a Mimansa, as dra- zada por cor e movimento, o que é próprio
vyas cambiantes são, em última instância, unicamente das dravyas - é um apelo por
múltiplas e não apenas uma. Outra notável demais ingênuo.
diferença é que a Mimansa estende a no- A mescla do racional com o dogmático
ção de transformação modal até o atman, que percebemos nos ensinamentos teóri-
o qual é absolutamente estático e passivo cos da Mimansa é igualmente notável em
para a Sankhya- Voga. A mudança que ca- seus aspectos práticos. Até onde chega a
racteriza a realidade física está em cons- moral ordinária, a doutrina adota um
tante progresso: nunca começou e não ponto de vista severamente secular e ex-
terá fim. A Mimansa não reconhece a cria- plica a virtude como um ajuste - cons-
ção (sisti) nem a dissolução (pralaya) do ciente ou semiconsciente - da conduta ao
universo como um todo. "Nunca houve interesse. Sábara afirma que os atos de ca-
tempo", afirma, "em 'l.ue o mundo fosse ridade, como prover água e alojamento,
coisa diferente do que e agora". As coisas embora em benefício dos outros - e, por-
individuais, sem dúvida, vêm e vão; mas tanto, bons atos - não são ainda dharma.
isto acontece em virtude do caráter de au- Isto é, a Mimansa considera a conduta

THOT 11
FILOSOFIA

desde um ponto de vista utilitário; não é


egoísta, no entanto, e está fundamentada
na realização da natureza social do ho-
mem. Um esquema de moralidade com
base em tal princípio tem paralelos na his-
tória da Ética, mas o que é peculiar da Mi-
mansa é que se nega a colocar tal morali-
dade como o ideal mais elevado da vida.
Assim como na metafísica, aqui também
concebe outra esfera de atividade, cuja
significação é extra-empírica e com a qual
confina o dharma. A moralidade comum é
um assunto puramente empírico que só os
curtos de entendimento não podem enten- nado momento de sua história. Nesse pri-
der. A verdadeira espiritualidade consiste meiro período, somente dharma, artha e
em fixar a própria atenção no dharma ou kama (tri-varga) eram aceitos como valo-
tais atos de dever que levem ao sucesso na res humanos; o quarto, moksha, é poste-
vida futura. Poderia parecer que esta rior. Em geral. dharma é ainda o mais alto
transferência da atenção da vida presente ideal nos Kalpa-sutras, porém a doutrina
para a futura, arrojaria a moralidade na atual parece havê-Ia substituído pelo ideal
sombra, reduzindo assim o seu valor aos de moksha. Esta transformação significa o
olhos do homem. Não ocorre nada disto, virtual abandono de muitos dos ritos ensi-
porque, tal como concebida pela Mi- nados nos Vedas.
mansa, a vida cerimonial não exclui a mo- Como nas outras doutrinas, o abandono
ralidade comum, pelo contrário se funda- da pompa mundana e a fé nos ensinamen-
menta nela. "Os Vedas não purificam ao tos são necessários também como condi-
injusto". Embora não seja vista como o ções preliminares. Sem isto, não é possível
mais elevado, a pureza ética é estimada nenhum esforço sério para assegurar a li-
como condição prévia e necessária para a beração final. O meio direto de liberação
vida religiosa ou espiritual. As poucas oca- se deduz da crença generalizada na índia,
siões em que a moralidade ordinária pa- e compartilhada pela Mimansa, de que o
rece ser negligenciada, como por exemplo karma é causa de aprisionamento. Quando
na imolação de um animal em rito, são ex- a causa é eliminada, cessa necessaria-
plicadas como exceções que confirmam a mente o efeito, e a abstenção do karma re-
regra. Na verdade, as explicações que ten- sultaria automaticamente na restituição do
tam justificar esses atos são pouco convin- ser ao seu estado original. Sem embargo,
centes, deve-se admitir que os Vedas geral- os karmas de que há que se abster são so-
mente apresentam imposições éticas que mente aqueles dos tipos opcional (kamya)
não admitem exceções. No caso presente, e proibido (pratisiddha). O cumprimento
por exemplo, proíbe explicitamente inju- do primeiro origina méritos, o do segundo
riar aos seres vivos: "Na himsyat sarva deméritos; assim, ambos criam laços e de-
bhutani". vem ser evitados por aquele que busca a li-
Quando o dharma é interpretado nesse beração. Um terceiro tipo, o nitya karma,
único sentido, requer igualmente um deve ser cumprido mesmo pelos que pro-
único panorama para ser conhecido: os curam moksha, pois, caso contrário, esta-
Vedas. Enquanto o padrão de julgamento riam desobedecendo a lei védica. Desse
para a moralidade comurr ..é humano, o do modo, esta disciplina se apóia em um
dharma é supra-humano. "Devemos dis- princípio duplo:
tinguir", diz Kumarila, "entre o que cor- }9 - Abstenção dos atos opcionais ou
responde ao dharma e moksha - que se proibidos;
conhece por intermédio dos Vedas - e o 29 - Cumprimento dos atos obriga-
que corresponde a artha e kama - que se tórios.
aprende no intercâmbio mundano". Os seguidores de Prabhakara concor-
Em um aspecto muito importante o ob- dam quanto a esse aspecto, não admitindo,
jetivo da Mimansa é diferente dos demais porém, nenhum propósito alheio ao fato
sistemas: "Não se deveria perseguir o ideal de obedecer ao chamado do dever no
de moksha, mas sim o de dharma, tanto cumprimento do nitya-karma. Explicita-
como um meio para se atingir um fim mente estabelecida fica também a necessi-
quanto como um fim em si mesmo". Esta dade de jnana como meio de liberação.
parece haver sido sua meta até deterrni-

12 THOT
FILOSOFIA

IV - Vedanta

o monismo particular ensinado por San- quanto a Advaita supõe que derivam dos
kara é muito antigo e sua forma final rece- elementos, mais em concordância com
beu deste mestre uma importante contri- Nyaya-Vaisesika. O órgão interno
buição. O aspecto mais característico de (antahkarana) também é aqui concebido
sua teoria é a concepção de Nirguna Brah- como bhautica e constituído de todos os
man como a última realidade, com a I cinco elementos, embora predomine o ele-
crença implícita na doutrina de maya, na mento tejas, pelo que às vezes é descrito
identidade do jiva com Brahman e na con- como taijasa ("feito de tejas"). Conse-
cepção de moksha como emergindo do pri- qüentemente participa muito do caráter
meiro para o segundo. Quanto ao lado prá- deste elemento e é instável - sempre dis-
tico, advoga por karma-samnyasa, ou com- posto a alterar sua forma. Isto é, o antah-
pleta renunciação, com a implicação de karana está sempre ativo, a não ser no es-
que jnana e somente jnana possibilita a li- tado de shushupti, quando se torna latente.
beração. Cada uma das formas que adota, ao exer-
Os pontos principais da filosofia de San- cer essa atividade, é conhecida como
kara - os princípios básicos, tais como a
inaplicabilidade da noção de causalidade à
realidade última - se encontram no Karika
de Gaudapada, que se propõe a resumir os
ensinamentos do "Mandukya Upanishad",
mas que chega muito além, oferecendo um
admirável resumo da Advaita.
O mais importante dos trabalhos de San-
kara é o bhasya a respeito do "Vedanta-
-Sutra", notável não somente pelo encanto
de seu estilo, mas também pela consistên-
cia lógica de seus argumentos. Além deste,
Sankara escreveu comentários sobre os
principais Upanishads e sobre o "Bhagavad
Gita". Especialmente os comentários so-
bre o "Brhadaranyaka" e o "Chandogya
Upanishad" são de imenso valor para a
compreensão e apreciação da doutrina ad-
vaita.
A doutrina de Sankara foi defendida e
ampliada em alguns detalhes por pensado-
res posteriores, o que deu lugar a algumas
opiniões divergentes entre seus apreciado-
res. De tais diferenças resultaram duas es-
colas: a Vivarana - que tem suas origens
no "Panca-padika", fragmento de um co-
mentário ao Sutra Bhasya, de autoria de
Padrnapada, discípulo de Sankara - e a es-
cola Bhamati, ligeiramente posterior, re-
presentada por Vacaspati (c. 841 d.C.).
A Advaita nos recorda a Sankhya- Voga
quanto a sua concepção do veículo físico,
admitindo também a teoria do conheci-
mento representativo. A diferença é que, A Vedanta identifica o ser humano com a realidade pri-
de acordo com Sankhya- Voga os dez senti- meira e última e expõe as vias introspectives para realizar
dos são relacionados ao aham-kara, en- esse identificaç/Jo.

THOT 13
FILOSOFIA

o aapecto mala caracterfaflco da teo-


ria de Sankara é a concepçlo de
Nlrguna Brahma como a realidade úl-
tima, com a crença Implfclta na dou-
trina de maya e na Identidade do ho-
mem com Brahma.

vriui, como na Sankhya-Yoga. A explicação porque Suresvara havia sido previamente


de que todos esses órgãos são bhautica é um mimansista, não sendo, portanto, com-
importante se se leva em conta o caráter petente para realizar essa tarefa. Sures-
indispensável dos elementos físicos para a vara, agastado, escreveu um tratado intitu-
manifestação da consciência. Mesmo lado "Naiskarmyasiddhi". Sobre este foi
quando indispensável, porém, sua distin- elaborado um tika por Padmapada, mas o
ção do elemento físico não é ignorada. Na manuscrito se queimou na casa de seu tio.
realidade, de acordo com Sankara, é a as- Sankara, que uma vez o. havia lido, recitou-
sociação desses dois incompatíveis - -o de memória e Padmapada o escreveu
como se deduz da experiência comum - o novamente.
que forma o núcleo do problema filosó- Outro importante tratado, escrito em
fico. verso, sobre os principais ensinamentos
É difícil definir o momento em que os contidos no bhasya de Sankara é o
Brahma Sutras foram escritos, mas como "Samksepasariraka" de Sarvajnatma Muni
contêm a refutação de quase todos os ou- (c. 900), e que foi posteriormente co-
tros sistemas, mesmo do Budismo Sunya- mentado por Kamatirtha. Sriharsa (1190
vada (de acordo, logicamente, com a inter- d.C") escreveu o seu "Kahn dana-
pretação de Sankara), não podem ser de khandanha dya", o mais célebre trabalho
época muito precoce. Acreditamos não es- sobre a dialética vedantina. Citsukha, de
tarmos longe da verdade quando supomos época pouco posterior a Sriharsa, fez um
que datam aproximadamente do século II comentário sobre este tratado e depois pu-
a.C. Em 780 d.e., Gaudapada reviveu os blicou seu próprio trabalho sobre a dialé-
ensinamentos monistas dos Upanishads tica, conhecido como "Tattvadipika", o
comentando o "Mandukya Upanishad'' em qual, por sua vez, também foi comentado
seu tratado intitulado "Mandukyakarika". mais tarde por Pratyagrupa, em seu tra-
Seu discípulo Govinda foi o mestre de tado "Nayanaprasadini",
Sankara. Com os comentários de Sankara As obras mencionadas fazem parte de
sobre os Brahma Sutras teve início uma uma lista de alguns dos mais importantes
verdadeira hoste de comentaristas e estu- trabalhos sobre a Vedanta, e servirão de
diosos do vedantismo, de grande originali- referência para futuros estudos.
dade e vigor filosófico. Anandagiri, discí-
pulo de Sankara, escreveu o
"Nyayanirnaya", e Govindananda o
"Ratna-Prabha", Vacaspati Misra, que nas- Seleçé'1o e compilação de
ceu por volta de 841 d.C., escreveu o LIA DISKIN
"Bhamati"; Amalananda (c. 1250) nos
deixou o seu "Kalpataru", e Apyayadiksita
(c. ISSO) o seu "Kalpataruparimala ", co-
mentando o anterior.
Discípulo de Sankara, Padmapada -
também chamado Sanadana - comentou
a obra de seu mestre no "Pancapadika".
Pelo modo como começa o livro, seria de BIBLIOGRAFIA
se esperar um comentário sobre a totali-
dade do bhasya de Sankara, mas termina 1. Dasgupta, Suredranath: "A History of lndian
abruptamente ao final da quarta sutra. Philosophy", volume I; Motilal Banarsi-
Madhava (c. 1350) conta uma interes- dass, Delhi, 1975.
2. Hiriyanna, M.: "Outlines of lndian
sante história a esse respeito: Suresvara Philosophy"; George· Allen Unwin Ltd.,
havia recebido permissão de Sankara para Bombain, 1973.
escrever uma vartika sobre o bhasya, mas 3. Blavatsky, H.P.: "Glosario Teosôfico"; Edi-
outros discípulos objetaram o trabalho torial Glem, Buenos Aires, 1975.

14 THOT
FILOSOFIA

As Três
Transformações
Extraído do livro Assim Falava Zaratustra, de F. Nietzsche; Hemus, S. Paulo, 1977.

"Apresento-lhes três transformações do nho, como animal escamoso de fulgor áu-


espírito: como o espírito se transforma em reo' e em cada uma das suas escamas bri-
camelo, o camelo em leão, e o leão, final- lha ,em douradas letras: "Tu d eves ", .
mente, em criança. Valores milenários cintilam nessas esca-
Há muitas coisas difíceis para o espírito, mas, e o mais poderoso dos dragões assim
para o espírito sadio, sólido, respeitável. A fala:
força deste espírito está clamando por coi- "Em mim cintila o valor de todas as coi-
sas pesadas, e das mais pesadas. sas".
Há algo que seja pesado? - pergunta o Todos os valores já criados foram, e eu
espírito sólido. E ajoelha-se como camelo sou todos eles. Para o futuro não deverá
e quer que lhe dêem boa carga. Que há de existir o "eu quero"! Assim disse o dragão.
mais pesado, heróis - pergunta o espírito Meus irmãos, que falta faz o leão no
sólido - a fim de eu o deitar sobre mim, espírito? Não bastará a besta de carga que
para que minhas forças se deleitem? renuncia e cultua?
Não será o sofrimento afronta para o Criar novos valores é coisa que o leão
nosso orgulho? Deixar transparecer a ainda não consegue; contudo criar uma li-
nossa loucura para zombarmos da nossa berdade para a nova criação, isso o conse-
prudência? gue o poder do leão.
Ou será separarmo-nos da nossa causa Para instituir' a liberdade e um santo
quando ela comemora a sua vitória? Esca- não, mesmo perante o dever; para isso,
lar altos montes para procurar o que nos meus irmãos, é necessário o leão.
tenta? Adquirir o direito de instituir novos va-
Ou será alimentarmo-nos com bolotas e lores é a mais terrível apropriação aos
ervas do conhecimento e passar fome na olhos de um espírito sólido e respeitoso.
alma por amor à verdade? Para ele isto é uma verdadeira rapina e
Ou será estar enfermo e despedir os coisa apropriada de um animal voraz.
confortadores e travar amizade com sur- Como o mais santo, amou em seu tempo
dos que não ouvem nossas queixas? o "tu deves" e agora tem que ver a ilusão e
Ou será submergirmo-nos em água suja a arbitrariedade até no mais santo, a fim
quando esta é a água da verdade, e não de conquistar a liberdade à custa do seu
afastarmos de nós as rãs frias e os sapos amor. E indispensável um leão para esse
quentes? feito.
Ou será amar os que nos repudiam e es- Digam-me, porém, irmãos: que poderá a
tender a mão ao fantasma que nos quer as- criança fazer que não haja conseguido fa-
sustar? zer o leão? Para que será indispensável
O espírito sadio sobrecarrega-se de to- que o altivo leão se transforme em
das estas coisas pesadíssimas; e, à seme- criança?
lhança do camelo que corre carregado A criança é a inocência, e o esqueci-
pelo deserto, assim ele corre pelo seu mento, um novo começar, um brinquedo,
deserto. uma roda que gira sobre si, um movi-
No deserto mais isolado, porém, efetua- mento, uma santa afirmação.
-se a segunda transformação: o espírito Sim; para o jogo da criação, meus ir-
torna-se leão; quer conquistar a liberdade mãos, é necessária uma santa afirmação: o
e ser senhor do seu próprio deserto. espírito quer agora a sua vontade, o .que
Procura então o seu último senhor, quer perdeu o mundo quer conseguir o seu
ser seu inimigo e de seus dias; quer lutar mundo.
com o grande dragão para derrotá-Io. Três transformações do espírito vos ex-
Qual é o grande dragão a que o espírito pus: como o espírito se transforma em ca-
não quer chamar Deus, nem Senhor? melo, o camelo em leão, e o leão, final-
"Você deve", assim se chama o grande mente, em criança."
dragão; porém o espírito do leão diz: "Eu Assim dissertava Zaratustra. Nessa
quero" . época residia na cidade que se chama
O "tu deves" está plantado no seu cami- "Vaca Malhada".
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THOT 15
BERGSON: -
LITERATURA

Os Cal'atel'es Cômicos
o Inltrumento de que nOI lervlmos para conhecer a vida,
legundo Henrl Berglon, é a Intulçlo, a qual percebe clara-
mente seu objeto sem a ajuda da Inteligência. E a intuJçio "é
o Inltlnto tornado conlclente de Ii mesmo, delintereuado,
capaz de refletir sobre leu objeto e ampliá-Io indefinida·
mente". Inllltlu ele no elforço que deve ser feito para retirar
01 hébltol mentall orlundol do comércio com 8S coisas e
com a linguagem, a fim de atingir a fluidez do tempo real em
seu fluxo indivislvel.
Podemol perceber Ilto nitidamente em sua obra "O RIso",
uma anéllse pllcol6glca que nos coloca no palco como ato-
rei, dramétlcol ou c6mlcos, ao mesmo tempo em que nos
desmascara.
Ap61 dedlcar-Ie 30 anos ao tema, Bergson elabora três
enlalol lobre o rllo, em que o analisa como algo que vive e
que nlo pode ser encerrado nos limites de uma defln~ção.
Nelte artigo, nos prenderemos mais ao último desses en-
saios: Os Caracteres Cóm/cos.

pre o riso de um grupo, é como se hou-


Bergson parte da idéia de que, além da vesse uma cumplicidade entre os que riem,
esfera propriamente humana, não existe sejam reais ou imaginários esses "outros".
nada cômico. Uma paisagem pode ter Em um teatro, quanto maior for o público
vários atributos: ser bela, feia, sublime, po- com tanto mais constância o riso será pro-
rém não será nunca ridícula. Se rimos de vocado na platéia.
um animal é sempre porque ele está to- "As atitudes, os gestos e os movimentos
mando atitudes ou imitando um ser hu- do corpo humano provocam riso na exata
mano. O homem é não apenas o único ani- medida em que tal corpo nos dá idéia de
mal que ri (como afirmou William Wite- um simples mecanismo". Por exemplo,
head) mas, segundo Bergson, também o quando um corpo cai por não haver perce-
único que provoca o riso. Por outro lado, bido um obstáculo.
só ri a pessoa que está insensível, que está Há estados de espírito que comovem e
tranqüila, ou melhor, sem emoções. contagiam mal se tenham manifestado:
Se estivermos participando de uma seja tristeza, alegria, piedade, horror. São
cena, procurando sentir exatamente o que sentimentos que logo repercutem, encon-
os outros sentem, agindo da mesma forma, tram eco em outras almas. Tudo isto con-
as coisas mais fúteis se tornam graves; se cerne à vida, é sério, muitas vezes trágico.
em seguida, porém, passamos de intérpre- Porém, quando o próximo já não consegue
tes a espectadores, a mesma cena, de comover-nos é que tem início o cômico. É
drama, se transformaria em comédia. Bas- uma espécie de vingança contra a rigidez
taria tapar os ouvidos em um baile e da vida social. Todo personagem que se
acharíamos ridículos os bailarinos. O que aliena e segue um caminho diverso, pro-
seria considerado como sério e grave, nos voca riso. Por outro lado, todos os peque-
acontecimentos humanos, se tirássemos a nos grupos dentro da sociedade, procuram
música dos sentimentos que os acompa- de certa forma, através do riso, suavizar a
nham? O inimigo do riso é, pois, a emoção, rigidez dos hábitos contraídos. Um exem-
e o cômico exige uma espécie de anestesia plo é o trote aplicado aos calouros pelos
do coração para produzir efeito, para veteranos da Universidade, que também
dirigir-se à inteligência pura. Também se procuram dar um corretivo àquele que se
faz necessário que esta inteligência esteja isola em uma torre de marfim, sem se
em contato com outras inteligências. O amoldar ao meio ambiente, e este corre-
riso precisa de um eco. Nosso riso é sem- tivo se constitui em expô-lo ao ridículo,

16 THOT
o drama ocupa-se de indivtduos, e a comédia, pelo con-
trário, refere-se aos tipos generalizados, caracteres que
já vimos muitas vezes e que continuaremos vendo. (De-
talhe de Les Comédiens Italiens, de Watteau).

Qual a finalidade, portanto, da arte? Se


nossa consciência e nossos sentidos fossem
tocados diretamente pela realidade, se
fosse possível a comunicação direta com
as coisas e conosco mesmo, a arte seria
desnecessária, ou todos nós seríamos artis-
tas, porque nosso espírito vibraria cons-
tantemente em uníssono com a natureza.
Todo o mundo emocional e belo transmi-
tido pelo artista, seja através de pintura,
escultura, música ou poesia, encontra-se
ao nosso redor, porém não o percebemos
com clareza. Entre nós e a natureza, e en-
tre nós e nossa própria consciência,
interpõe-se um véu quase transparente
para o artista, mas denso demais para o
homem comum. Por que fada foi tecido
esse véu e por que impulso foi guiado?
Pela amizade ou pela malícia? A vida im-
põe que as coisas percebidas guardem re-
I provocando risos, o que é sempre humi- lação com nossas necessidades. Viver é
lhante. Isto explica a ambigüidade do cô- trabalhar; viver é receber dos objetos a
mico, que não pertence nem à arte nem à sugestão útil. Creio ver quando olho, creio
vida. Não riríamos de muitos fatos se não ouvir quando escuto, creio ler em meu co-
os estivéssemos observando como simples ração quando estudo a mim mesmo. Po-
espectadores, são cômicos tão-somente rém o que vejo e ouço do mundo externo é
porque para nós representam uma comé- apenas o que meus sentidos extraem dele
dia. Uma comédia no palco vem sempre para melhor dirigir minha conduta. Só co-
com uma segunda intenção; a de humilhar nheço de mim mesmo o que aflui à superfí-
ou de dar uma lição, pelo menos externa- cie, o que participa das ações. Meus senti-
mente. Por isso a comédia está mais pró- dos e minha consciência não me fornecem
xima da realidade que o drama. A vida real outra coisa a não ser uma realidade simpli-
oferece cenas tão ridículas que poderiam ficada. Retiram as diferenças distantes e
ser levadas ao palco sem lhes alterar uma reforçam as semelhanças práticas que sur-
única palavra, e sem dúvida provocariam gem como se traçadas de antemão, como
muitos risos, passando por comédias. Por- pegadas sobre as quais eu devo marchar.
tanto, os caracteres cômicos contêm os Por estas pegadas já passou toda uma hu-
mesmos elementos, tanto na vida real manidade, e as coisas foram classificadas
quanto no teatro. segundo o proveito que delas se podia ob-
Costuma-se dizer que os leves defeitos ter. É esta classificação o que percebemos
do próximo é que nos provocam o riso, po- melhor, mais até do que a forma e a cor
rém é muito difícil traçar fronteiras entre o das coisas, e só por isto o homem é supe-
"~rave" e o "leve" dos defeitos. Talvez rior aos brutos.
nao nos façam rir por ser leves, mas os Na maioria das vezes não conseguimos
consideramos leves porque nos fazem rir, ver as coisas em si mesmas, pois nos limita-
de vez que o riso é a melhor forma de de- mos a ler os rótulos que lhe são colocados,
sarmar algo. Podemos sustentar, no en- isto como decorrência da necessidade prá-
tanto, que alguns defeitos nos fazem rir tica, e a linguagem acentua ainda mais esta
não obstante sua gravidade, como a ava- generalidade, porque, a não ser os nomes
reza de Harpagão (personagem da peça próprios, todas as palavras designam gêne-
teatral O Avaro); ademais, por doloroso ros.
que isso nos possa parecer, também as À semelhança das coisas exteriores, nos-
boas qualidades nos provocam o riso. A sos estados de alma também escapam ao
honradez de Alceste nos resulta cômica nosso conhecimento, especialmente na-
não apenas por sua extravagância, mas quilo que encerram de pessoal, de sublime
também por torná-Io insociável. É mais fá- e original. De nossos sentimentos só
cil ridicularizar a rigidez de uma virtude apreendemos sua face impessoal, aquela
que a flexibilid.ade de um vício. A rigidez que a linguagem determinoi..
inspira suspeita à sociedade. Sob o fascínio da ação, somos por ela
A comédia elevada tem por objetivo envolvidos no campo em que ela escolheu
pintar caracteres, ou seja, tipos comuns. para nosso proveito. A individualidade

THOT 17
LITEJUTUJU
-
desaparece, vivemos em um terreno fe- vendo. a personagem comico é sempre
chado onde medimos nossas forças com um distraído, rodeado de outros com as
outras forças. De quando em qua. -ío a na- mesmas características. a drama, por-
tureza engendra almas menos apegadas à tanto, ocupa-se dos indivíduos, e a comé-
vida e à ação. Não se faz referencia aqui dia, dos tipos.
ao desapego premeditado, surgido após a poeta ou autor de um drama, não
uma profunda reflexão ou através de uma passa a viver os seus personagens. Ele não
filosofia, e sim ao desapego natural, nas- precisa viver uma paixão para poder
cido junto com a estrutura dos sentidos ou transmiti-Ia. Shakespeare não foi um
da consciência, algo virgem, que descobre Otelo, um Romeu, um Hamlet, para
o mundo sem se prender à ação. É o artista descrevê-los depois. A imaginação poetica
que surge. Porém a Natureza também não não é outra coisa que uma visão mais com-
tira seu véu totalmente ao artista, porque, pleta da realidade. Não é uma observação
se assim fosse, todas as artes estariam reu- exterior, ao passo que a comédia é exata-
nidas em uma. Esta é, pois, a razão da di- mente fruto desta observação. A comédia
versidade das artes e artistas: a alguns, é- está entre a vida e a arte, atua na vida so-
-lhes revelada a magia das cores; a outros, a cial como um veículo próprio. a absurdo
magia das formas; a outros a dos atos e das que se encontra no cômico não é um ab-
palavras, ou a magia dos sons, etc. surdo qualquer, mas é um absurdo bem
A única missão da arte, então, seja na definido. É efeito e não causa; efeito do
pintura, na música ou na poesia, é a de reflexo da natureza, o que pretende mos-
afastar os símbolos convencionais corren- trar. Tomando como exemplo D. Quixote,
tes, aceitos de maneira generalizada pela que é um tipo generalizado de absurdo
sociedade, encobertos com máscaras, e risível: ele amolda os objetos às idéias, e
mostrar a verdadeira realidade. Entretanto, não as idéias aos objetos; vê diante de si o
a obra do artista só contém realismo que pensa, em vez de pensar no que vê.
quando em sua alma existe idealismo; só a Isto ocorre freqüentemente conosco. O
força de um ideal permite ao artista o con- obstinado amolda as coisas à suas idéias,
tato com a realidade. seguindo, pois, o caminho da ilusão.
A arte dramática não faz exceção. Bergson fala-nos ainda acerca de um es-
Se, por um lado, foi necessário que a so- tado do espírito, imitação cabal dalou-
ciedade calasse ou dominasse seus instin- cura, onde existem associações de idéias
tos, criando leis éticas, em benefício de si idênticas às da alienação mental e uma ló-
própria, por outro lado os sentimentos gica singular como a da idéia fixa: é o es-
passaram a ter um caráter superficial, es- tado de sonho. No sonho, o espírito, quase
condendo o fogo interior. Assim como a enamorado de si mesmo, busca no mundo
Terra apresenta repentinas explosões, externo só um pretexto para dar corpo às
através de seus vulcões, rompendo a ca- suas fantasias. Quem sonha, em vez de re-
mada fria que encobre o fogo e a força dos cordar tudo que conhece para interpretar
metais, assim também em relação ao ho- o que seus sentidos percebem, se serve do
mem: o drama tem essa finalidade, revela que percebe, para materializar suas recor-
I algo que está oculto em nosso ser, e que dações preferidas.
podenamos chamar o elemento trágico de Percebendo que o sonho tem r. mesma
nossa personalidade. lógica do cômico, chega Bergson à conclu-
a drama tende sempre para o indivi- são de que, como o sonho, o riso possui ou
dual. a fato de um sentimento ser conside- tem como efeito o repouso, 0U, antes, é
rado genericamente, não implica em uma um impulso de repouso, nos faz descansar
generalidade desse sentimento. Por exem- da fadiga intelectual.
plo, o personagem Hamlet é algo de muito As ondas chegam à superfície do oceano
singular, também ateio e Macbeth. Por sem cessar, embora no seu seio profundo
que os aceitamos? Como reconhecemos reine a paz. As ondas estão buscando seu
que tais personagens são verdadeiros? Isto equilíbrio até chegar à areia, e, ao colher
sucede pelo esforço a que nos obrigam, sua espuma, só nos fica na mão algumas
pelo nosso desejo de ver sinceridade. Não gotas de água, mais amarga e salgada do
os vemos do mesmo modo que o artista que a onda que a deixou. Assim como a es-
que os criou, porém o esforço que ele fez puma, brota o riso. Nós o chamamos ale-
para levantar o véu nos obriga a imitá-lo. gria; porém o filósofo, ao recolher essa
Toda obra deve ser medida pela eficácia alegria para saboreá-Ia, sentirá uma boa
da lição que transmite. dose de amargura e uma reduzida quanti-
A finalidade da comédia é outra. É dade de matéria.
apontar generalidades, caracteres que já
vimos muitas vezes e que seguiremos ELBA NOVELLO

18 THOT
FILOSOFIA POLfTICA

A
Política
Segundo Platão
Na Grécia, obviamente, houve pensa-
mento político antes de Platão. Se se hou-
Seu Ideal de Justiça, sua exaltaçlo vesse conservado para a posteridade a
do Bem e da Verdade, como modelos obra dos pré-socráticos, seguramente
supremos, sua convlcçlo de que exIste teríamos de deter-nos por muito mais
um códIgo moral que rege as re/aç"és tempo no estudo desses autores. Não obs-
humanas e a conduta polftlca dos clda- tante, podemos afirmar que, antes de Pla-
dIas, bem como a clara condenaçlo de tão, não chegou a haver uma verdadeira fi-
toda forma de tIranIa, constItuem losofia política, algo mais que a simples
principIas de prIncipIas, que nlo devem alocução de algumas idéias ou conceitos
ser olvIdados, que se formularam nos sobre a política concreta. Nem nos gran-
albores de filosofia, porém para sem- des poetas épicos, Homero e Hesíodo,
pre. fontes permanentes de tantas reflexões, in-
clusive de ordem política; nem em legisla-
dores do porte de Solon; nem em políticos
A cidade excessivamente idealista de' PIatão necessitará, ativos da significação de Péricles; nem em
em muitos pontos, o contrapeso do realismo de Aristóte-
les. PIatão e Aristóteles: detalhe de A Escola de Atenas, filósofos do nível de Heráclito ou Demó-
de Rafael. crito; nem mesmo no orador Isócrates ou
no historiador Xenofonte, contemporâ-
neos de Platão, ambos altamente preocu-
pados com os problemas políticos. De
qualquer forma, é tarefa do historiador
continuar desentranhando elementos sig-
nificativos nos muitos autores que prece-
deram o filósofo da Academia, porque, se
nesse aspecto não é pouco o que já se fez
até hoje, é possível que ainda reste muito
mais por fazer.
Quanto aos sofistas, e ao próprio Sócra-
tes, não é possível pôr em dúvida a sua
contribuição à matéria que nos ocupa, e
pode até ser válida a opinião que lhes atri-
bui algo assim como a fundação, ou pelo
menos o intento, de uma ciéncia polztica.
Claro está que, como já havemos dito tan-
tas vezes, em filosofia de um modo geral,
ou em qualquer de seus ramos, não há fun-
dadores nem livros inaugurais, mas isto
não invalida a opinião de que, com estes
professores ambulantes, as assim chama-
das "ciências humanas" tenham tido um
avanço significativo. Acerca dos sofistas,
no entanto, praticamente só possuímos re-
ferências de terceiros, o que nos impede
de emitir a seu respeito um juízo mais afi-
nado. Sobre Sócrates (470 - 399 a.C.) em
particular, digamos que não expôs uma

THOT 79
FILOSOFIA pOLir/CA

teoria p,olítica (é ele o principal porta-voz


dos dialogos de Platão, e o que pode haver
pensado ficou englobado no pensamento Platlo compreendeu a nece •• ldade
platônico), mas demonstrou enorme inte- de fundamentara polft/ca em prlncfplos
resse pelos assuntos públicos, considerou a .6I1do., multo além - ou, talvez, multo
política como um apostolado e foi um aquém - de todo o emplrl.mo ou utlll-
enérgico defensor da majestade da lei, a terl.mo. A polftlce, definitivamente, n'o
ponto de preferir morrer injustamente é outra co/.a .enlo o exere/c/o da vir-
para não ter de, fugindo, violá-Ia. Sua tude, .uprema virtude, .Inte.e da. de-
morte para sempre o transforma em mo- mal. virtude •.
delo de um grande repúblico.

Estudaremos a Platão (427-347 a.C.) em todo seu sistema e diretamente vincu-


procurando captar e expressar em matéria lada à metafísica; percebe-se isto de ma-
política, o mais fecundo e atual deste for- neira inequívoca na "República", onde am-
midável filósofo, de quem já se disse acer- bas as especulações aparecem combina-
tadamente que "carrega o Ocidente sobre das. Este livro foi escrito em uma época de
suas amp,las espáduas". decadência política - embora não ainda
Os dialogos platônicos costumam mes- cultural - de Atenas. Em 399 Sócrates ha-
clar diversos temas, e a preocupação polí- I via sido impelido a beber a cicuta, após a
tica assoma com freqüência em vários de- derrota de Atenas na Guerra do Pelopo-
les, manifestando-se mais plenamente em neso e o governo dos Trinta Tiranos; não
três: no "Poliüco", nas "Leis" (ambos está longe o momento em que o poderio
diálogos da velhice) e, especialmente, na macedônico, com Felipe e Alexandre, ve-
"República", obra esta patriarca da filoso- nha a dar fim à polis grega em aras do im-
fia, a que melhor exibe o pensamento do pério. A "República", como todo livro fun-
autor sobre ternas fundamentais, incluída damental, é criador de palavras e de hábi-
a teoria das idéias. tos mentais em que se apóia o pensamento
A "República" é um trabalho da madu- do Ocidente, embora isto não o saibam to-
rez de Platão, anterior aos dois acima dos os que pensam ou dizem pensar.
mencionados, conquanto seu primeiro
capítulo pertença, com certeza, à juven- O que primeira e principalmente quer
tude do filósofo. O título original do livro é dizer Platão no nível da filosofia política (e
"Politéia", isto é, "República" (e não "Es- que reitera em várias obras) é que a política
tado", como, às vezes, toscamente se tra- e uma ciência, um elevado saber, e que não é
duz), sem esquecer que esta é uma palavra independente da ética. Nada menos que es-
latina (res publica), de origem ciceroniana. sas duas coisas, que com tanta freqüência
"Politéia" possui originariamente três sen- são olvidadas ou que não se souberam ja-
tidos: uma forma de governo (isto espe- mais. A política não é mera práxis, mas
cialmente a partir de Aristóteles); a socie- algo vinculado a valores permanentes e
dade política como tal; e regime ou go- transcendentes, o que coincide com toda a
verno da polis, qualquer que seja sua cosmovisão platônica, a partir da teoria
forma. Somos propensos a acreditar que das idéias. A política é, categoricamente,
foi esta terceira acepção a que Platão ado- algo que tem a ver com a verdade e o bem.
tou, sem descartar a segunda. República, Estas afirmações têm sua razão de ser e
ainda hoje, embora mais nitidamente há sua oportunidade, pois os sofistas vinham
alguns séculos atrás, é sinônimo de socie- de relativizar os valores morais e políticos.
dade política (polis para os gregos), inde- Sócrates os havia enfrentado em nome da
pendentemente da forma de governo em verdade, e, mestre de Platão, merecera
vigor. Em vista disso, estimamos que esta do discípulo os juízos mais laudatórios,
tradução do título é válida por si mesma, e como, por exemplo, quando o considera
não apenas por fidelidade à tradição. Os "o homem mais justo de seu tempo"
diálogos platônicos via de regra apresen- ("Carta VIr), ou quando o qualifica como
tam um subtítulo, que no caso presente é "um dos poucos atenienses, talvez o único,
Acerca da justiça. a cultivar a verdadeira arte da. política, e
Platão se sentiu profundamente atraído que pronunciava seus discursos não para
pelo problema político durante toda sua agradar, mas sempre tendo em vista o
vida, após haver ensaiado, com pouco maior bem" ("Górgias", 521d).
êxito, a práxis política. Ainda mais, sem- Platão compreendeu a necessidade de
pre viu a política intimamente integrada fundamentar a política em princípios sóli-

20 THOT
A Acr6pole, para os gregos, representa o intento de per- apenas no aspecto social, mas principalmente no Intimo
feição, onde cada uma das partes se harmoniza com o de cada indivlduo. (Na foto, reconstituição de um dos ên-
todo. Na "República", PIatão busca essa perfeição não gulos do Pertenon}.

dos, muito além - ou, talvez, muito aquém as ações políticas devem ser confrontadas
- de todo empirismo ou utilitarismo. A com a justiça arquetípica. Toda a obra pla-
política, definitivamente, não é outra coisa tônica está, em definitivo, destinada a fa-
senão o exercício da justiça, suprema vir- zer esta nobre proposta.
tude, síntese das demais virtudes. Não há Por outro lado, e como conseqüência do
alternativa. Toda transgressão à justiça im- que foi dito, a vida em sociedade, para Pla-
plica em uma desvirtuacão da atividade tão, se subordina ao que chamaríamos
política. Assim, a política se transforma na uma lei natural ou - mais nos agrada -
aplicação da justiça arquetípica à socie- cósmica, e não ao capricho da vontade hu-
dade. mana ("Leis", 889d e ss), pronunciando-se
Estes postulados básicos constituem o assim contra as posteriores teorias do
legado permanente de Platão. Era neces- "pacto social". Platão é claro a esse res-
sário estabelecer certas pautas e relações, peito quando diz que as leis positivas "que
e Platão o fez. Poder-se-á dizer que isto se baseiam na natureza, são tão naturais
não é suficiente; poder-se-á dizer que a de- quanto a natureza mesma, posto que são
finição da justiça como "a relação harmô- fruto da razão" Ç'Leis" X, 890).
nica entre os três setores que integram a Os aspectos assinalados - que represen-
polis" (produtores, guerreiros e magistra- tam o mais importante da filosofia política,
dos: Rep., 476c e ss), hoje, resulta algo tão- e mesmo jurídica, de Platão - têm um
-somente declamativo; poder-se-ão dizer sólido sustentáculo ontológico, já que são
muitas outras coisas (1). Mas em momen- forçosas inferências da teoria das idéias,
tos inaugurais do pensamento científico sua metafísica.
ocidental - e após o relativismo sofístico,
especialmente o protagórico, a respeito da Mas Platão nos deixou também a conhe-
política - a contribuição platônica se cida sucessão dos diferentes regimes de
constitui em algo fundamental e perma- governo. A formulação foi feita com um
nente: há uma ética transcendente, a polí- certo sentido histórico, conquanto não
tica é parte da ética, a justiça é a virtude surja claramente a intenção do autor de fa-
suprema e deve ser buscada por si mesma, zer uma análise da história. Muito já se es-

THOT 21
FILOSOFIA POLfTICA

creveu a esse respeito, mas em nosso pare- da cidade" (Rep., 473c). Chama a atenção
cer o primordial não está na sucessão cro- que Platão fale de "filósofos" quando se-
nológica dos regimes, e sim no enunciado guramente deve ter pensado nos sábios em
dos mesmos, por duas razões: em primeiro geral. Não acreditamos que haja usado o
lugar porque .nos mostra o significado que termo "filósofo" como o entendemos
tinham, no século IV a.C,, certos termos hoje, mas, de qualquer forma, os que nos
fundamentais da ciência política; em se- ocupamos de filosofia temo-nos sentido
gundo lugar, porque Platão esboça assim sempre muito lisonjeados com a famosa
como que a primeira classificação ou tipo- sentença platônica.
logia das formas de governo com que con-
tamos, embora, a rigor, não seja isto. E acerca do "comunismo" de Platão? O
O governo ideal é, obviamente, o dos me- que primeiro devemos dizer é que Platão
lhores, o dos sábios. A este Platão denomi- não tem absolutamente nada a ver com o
na, com todo o rigor semântico, aristocracia, comunismo no sentido político atual do
logo aclarando que assim o designa quando termo, nem é tampouco precursor dos re-
são vários os govemantes, ao passo que, quan- gimes totalitários conforme consideram al-
do é um só, chama-se reino (Rep., 445d). Em guns autores, como Karl Popper, por
seguida vêm as diferentes formas que se exemplo, para citar o que nos parece mais
afastam progressivamente do ideal: a destacado.
timocracia ou timarquia (timo significa Esse qualificativo resulta de uma das
"honor", "preço", "valor"), governo dos tantas transferências lingüísticas ou distor-
enriquecidos, geralmente guerreiros, am- ções semânticas a que assistimos diaria-
biciosos de honores e de poder, mas que mente. Platão é um construtor de ordens
não abandonaram de todo a sabedoria; a ideais, desde a teoria das idéias (sua me-
oligarquia, literalmente "governo' de pou- tafísica) até a concepção de sua cidade
cos", expressa o poder de um grupo de ideal, de uma polis surgida muito mais da
adinheirados que se desinteressa dos de- pura razão, e mesmo da imaginação, que
mais; a democracia, regime em que há li- da realidade em si. E o filósofo diz que se-
berdade para todos, mas uma liberdade ria benéfica a comunidade de bens e até da
desenfreada, sem respeito pelas hierar- família (475 e ss), o que não condiz com a
quias e pelos valores fundamentais; final- melhor tradição ocidental; porém, deve-
mente, a tirania, extrema degradação do mos recordar que essa prescrição é desti-
processo político e o pior de todos os regi- nada tão-somente à classe dirigente (para
mes, o da submissão aos caprichos do dés- que possa cumprir melhor sua função de
pota (Rep., VII). governar), e, em que pese aceitar-se que
Como se pode perceber, termos como algumas expressões da "República" deixam
aristocracia, oligarquia e tiraniu- já tinham estropiada a propriedade privada, e que o
em Platão o mesmo si~nificado que basica- estado aparece hipertrofiado, Platão está
mente conservam ate hoje; timocracia se bem longe do comunismo e facismo mo-
perdeu, e democracia tem sofrido várias' dernos. Toda sua cosmovisão, sua espiri-
mudanças em sua significação. tualidade, seu sentido transcendente, o
Independentemente desta prototipolo- fato de que o estado, mesmo em seus ex-
gia, há que se destacar algumas notáveis cessos, esteja ao serviço do indivíduo e
referências platônicas sobre o tema. não à inversa, bem como sua explícita con-
Desde logo, as palavras que dedica ao ti- denação do despotismo, o colocam como
rano nas últimas páginas do VIII e no IX antípoda de qualquer regime totalitário.
capítulos da "República", constituem uma Por outro lado, é bom que se diga, nas
caracterização de valor permanente. Outro "Leis", embora tenha acentuado certos
pensamento formidável é a~uele em que, controles oficiais, Platão revisou e mode-
recordando um verso da "Iliada", diz Pla- rou notoriamente suas idéias acerca da
tão: "Porque as constituições das cidades propriedade comum, convencido de que a
não procedem dos carvalhos nem das ro- condição humana é bem outra que a idea-
chas, mas sim dos costumes dos membros lização exagerada, que o óbvio utoJ,Jismo,
que as integram, e da orientação que esses com que havia trabalhado na "Republica"
costumes imprimem a tudo o mais" (Rep., (2).
433 b). Outras considerações, como, por exem-
Convém recordar também a conhecida plo, aquelas acerca da eugenesia, que com
opiniãode que "a não ser que os filósofos certeza também. chocariam à moderna
governem. .. ou os governantes filoso- consciência moral, não são o fundamental
fem ... Não haverá trégua para os males do sistema platônico e são próprias de sua

22 THOT
FILOSOFIA. POLfTICA.

Toda t•.•n.gr •••• o •• Ju.tlça Implica


.m uma d•• vlrtuaç.o da atlvldad. poU-
t/ca. A•• /m, a polltlca •• tran.torma na
apllcaç.o da Justiça arqu.t/plca •• so-
c/edad •.

mentalidade pagã. Este modo de pensar, sentido aristocratizante da vida. Seu ex-
praticamente comum a todos os pensado- cessivo idealismo necessitará, em muitos
res não judeus ou cristãos, leva-o a uma es- pontos, o contrapeso do realismo aristo-
pécie de divinização da cidade ou socie- télico. Não se nos ocultam os aspectos ne-
dade (que em tempos mais modernos se gativos de sua política, porém, na conti-
traduziria em uma divinização do estado nuidade do pensamento ocidental, Platão
ou, em outros casos, da pátria), nada sau- representa algo assim como a pedra funda-
dável para uma concepção humanista da mental, desde onde necessariamente se
política. Isto sim é importante, mas tal tem de partir. Nem tudo o que afirmou em
concepção, que hoje resulta ou deveria re- seu momento pode hoje ser aceito, mas
sultar chocante, é compreensível em um seu ideal de Justiça, sua exaltação do Bem
filósofo pagão do século IV a.C. e da Verdade como modelos supremos,
No que concerne às referências porme- sua convicção de que existe um código
norizadas acerca da polis (quer dizer, a so- moral que rege as relações humanas e, por
ciedade política autônoma, ou, como se conseguinte, a conduta política dos cida-
diz habitualmente, a cidade-estado), que dãos (a política é parte da ética), assim
não deveria exceder o limite de aproxima- como a clara condenação de toda forma
damente cinco mil famílias, carecem de de tirania, constituem princípios de princí-
significação para este trabalho. pios, que não devem ser olvidados,que se
Platão construiu uma cidade ideal, deri- formularam nos albores da filosofia, po-
vada de sua metafísica idealista e de seu rém para sempre.

(I) Autores como Kelsen consideram que Pla- (reconhecida por Platão em 473b) não nega
tão não chegou a definir a justiça - o que é a primeira, própria do estilo e da metodo-
discutível -, mas queremos, por isso logia platônica em toda sua filosofia. Por
mesmo, destacar o decisivo que é vincular isso nos parecem oportunas as reflexões de
a atividade pública à idéia arquetípica da Alexandre Koyré quando adverte - contra
justiça, independentemente de sua precisa outros intérpretes - que não há contradi-
definição. ção entre o título do livro (que faz referên-
(2) Não somos dos que consideram uma trans- cia à cidade e à política) e o subtítulo, que
formação radical nas "Leis" em relação à se refere à justiça. "Por que ver um divór-
"República". Não estamos, por exemplo, cio entre ambos?", pergunta Koyré. "Pla-
com Paul Janet, que chega a imputar a tão está isento da idolatria do estado, Ce
Aristóteles o não haver visto (o que é qui préocoupe Platon, ce n'est pas I'État, mais
certo) as "notórias diferenças" entre am- l'homme, construir uma cidade justa na
bas as obras. Porém tampouco estamos en- qual possam viver homens como Sócra-
tre aqueles que, como Jean Touchard, esti- tes". São de interesse as reflexões de Koyré
mam que as intenções mais realistas são sobre a cidade perfeita segundo Platão
apenas aparentes. Acreditamos, sim, que a (Int. á Ia Lécture de Platon, N.Y., 1945).
respeito da propriedade privada há uma
mudança significativa de atitude. Não
compartilhamos, além disso, a opinião de
Pabon e F. Galiano, de que a "República"
não é primordialmente a construção ideal
de uma sociedade perfeita de homens per- JORGE L. GARCIA VENTURINI
feitos, senão "a remedial thing", um tratado
da medicina política para aplicação sobre (Extrafdo do livro "Politeia"; Editorial
os regimes existentes. Esta segunda atitude Troquei S.A., Buenos Alres, 1978).

THOT 23
ARTE

° ANEL DO NIBELUNGO,
de Wag:ter
4ª Parte

° Crepúsculo dos Deuses


É noite. Encontramo-nos à vista do bar- premo e abrigando sob seus ramos e raízes
ranco que conduz ao abismo da Mãe- todas as criaturas, até o momento do
-Terra. Nele, as três Nornas ou Parcas som- crime de Alberico. Ao chegar aqui, po-
brias, filhas da primordial Ur-Vala, tecem rém, desgastado de horror pela recorda-
e cortam,cada uma por seu turno, os fios de ção daquele filho do Odio e da Inveja, que
ouro de todas as existências. O tema au- maldisse o próprio Amor, o fio se rompe.
gusto da natureza eterna enche de mistério A ciência das sibilas se dissipa com a luz
aquele ambiente, raiz universal de tudo do nascente dia, e as Nornas, consterna-
quanto vive. Como ali não há passado nem das, retomam ao seio de sua mãe. En-
futuro, deslizam, uma após a outra, todas as quanto isso, Brunhilda e Sigfrido saem da
peripécias que deram lugar ao Anel do Ni- gruta de seus amores e, estando ele dis-
belungo, ou seja: a luz astral, os anais akási- posto a empreender novas façanhas prote-
cos, onde está escrito o drama da vida, gido por seu elmo que o torna invisível,
desde que a Árvore do Mundo fincara suas como prova de fidelidade deixa a Bru-
raízes no Illus da Matéria Prima, erguendo nhilda o mágico Anel, para protegê-Ia, em
sua copa até o infinito do Espírito Su- sua solidão de fada, naquele ígneo e en-
cantado recinto.
A cena anterior se desvanece; estamos
todos na terra dos vulgares mortais, na
morada dos poderosos Gibichingos, entre
duas colinas junto ao Rena. Seus reis são
Gunther e sua irmã Gutruna. Ao lado, está
Hagen, irmão bastardo de ambos, como fi-
lho que é da mesma mãe e do perverso Al-
berico, que engendrou Hagen sem amor,
com o fim exclusivo de obter, através de
tal filho, um novo instrumento de vingança
contra os deuses e heróis, apoiados por to-
dos aqueles infelizes e ignorantes que inte-
gravam o povo de Gibich, entre os dólmens
e menires, consagrados à servil adulação
religiosa a Wotan, Donners e Frika.
Em Gunther e Hagen, espécie de Esaú e
Jacó dos Eddas, está representada toda a
A idéie de redençDo que emene de cene tinet de O Cre-
púsculo dos Deuses evolui em direçDo e ume expressõo
raça humana vulgar, alguns ignorantes e
mels mlstlce e mels religiose ne ópere Parsifal (ne foto, suceptíveis, outros perversos e bastardos
cenério do primeiro sto). instrumentos dos ele mentais do mal.

24 THOT
Numa conversa íntima com seus irmãos, e
orgulhoso de seu poderio terrestre, Hagen
diz que apesar de grande e invejável sua
glória não está completa, pois sabe de
imensos tesouros ainda não conquistados;
há também o fato de ele ainda não ter uma
çompanheira, e tampouco Gutruna despo-
sou alguém. Fala ainda de uma mulher
perfeita, chamada Brunhilda, cuja morada
é uma montanha rodeada de chamas, e Cenário do segundo ato de O Crepúsculo dos Deuses:
Bayreuth, 1936.
que ninguém poderia conquistá-Ia a não
ser o predestinado Sigfrido, um welsungo,
o matador do dragão Neidhole que cui- este lhe respondera que não, pois a única
dava do tesouro dos nibelungos, tesouro mulher que poderia fazê-lo feliz habitava
bastante para torná-lo um senhor do uma montanha inacessívei, rodeada pelas
mundo. chamas, Sigfrido propõe então conquistá-
Nisso ressoa alegre a tocata da trompa -Ia em troca da mão de Gutruna, sem sa-
de Sigfrido. O herói vem com sua barca ber que quem iria conquistar era nada
Reno acima, navegando contra a corrente mais nada menos que o seu nume, a antes
como só ele pode fazer. Então, Hagen ter- adorada Brunhilda.
mina recomendando a Gunther que se es- Os dois guerreiros terminam de selar sua
force por fazer o herói apaixonar-se por fraternidade com o pacto do sangue: fin-
Gutruna. Para tanto, bastará fazê-lo tomar cam as espadas em seus respectivos bra-
de um só gole aquela beberagem mágica ços, deixando correr o sangue na taça de
do esquecimento. vinho que bebem em conjunto. Hagen,
Sigfrido chega à margem do rio, com que se encontra entre ambos, sem querer
seu cavalo Grane, cedido por Brunhilda, o participar do juramento por sua condição
único que esta conservara do perdido es- inferior de bastardo, rompe a taça com sua
plendor de valquíria. A trompa do herói espada, enquanto Sigfrido e Gunther es-
desperta as chorosas filhas do Reno. Gun- treitam fraternalmente as mãos e partem
ther e Hagen recebem-no pomposamente, rumo às margens do rio, de onde Sigfrido
conduzindo-o depois até o imponente palá- segue em demanda da projetada con-
cio. Gutruna, púdica e ao mesmo tempo quista. Hagen, ao longe, saboreia infame o
prendada, se oculta. Ao chegarem, Sig- fruto cruel de sua vileza, digna da raça ni-
frido propõe a Gunther o dilema de luta- belunga.
rem ou tornarem-se amigos, diante do que Brunhilda, desconhecendo totalmente
este se oferece como incondicional aliado. tudo o que acontece, encontra-se sentada
Através do pacto de eterna fraternidade, à entrada da gruta,contemplandoabsorta e
unem-se estes irmãos de armas, bebendo beijando mil vezes a prenda do seu amor: o
uma taça de vinho na qual foram previa- anel de Sigfrido. Nesse momento, ressoam
mente mesclados os sangues de suas veias. pelos ares os relinchos bélicos da valquíria
Gutruna, então, apresenta-se ruborizada e Waltraute, que chega apreensiva. Cor-
terna, trazendo ao herói outra taça na qual rendo o risco de provocar a cólera do pai,
Hagen havia vertido algumas gotas do li- vem para prevenir sua infeliz irmã do imi-
cor do Leteo, o rio das águas do esqueci- nente perigo que a ameaça: se não devol-
mento. ver prontamente às desoladas filhas do
O efeito é instantâneo; Sigfrido, que Reno o maldito anel, este virá a ser a causa
brindara por Brunhilda, sua amante, de todos os males e ruínas que ameaçam
esquece-a no exato momento que retira a os deuses e o mundo. Enamorada e feliz,
taça dos lábios, ficando cegamente apaixo- alheia por completo à desgraça que se avi-
nado por Gutruna. O jovem declara impe- zinha, esquecendo-se de tudo quanto sabia
tuosamente seu amor; e como, ao pergun- em sua condição anterior de virgem-
tar se seu novo irmão tinha companheira, -guerreira, Brunhilda nega-se absoluta-

THOT 25
ARTE

mente a renunciar ao anel. A valquíria anunciam-lhe fatidicamente que muito em


Waltraute retorna consternada, voando breve uma mulher gloriosa, verdadeira re-
para o Walhalla, enquanto o cego Sigfrido dentora do mundo e que sabe compreen-
cruza impávido as gigantescas chamas pro- der melhor do que ele os decretos do Des-
tetoras, ocultando sua cabeça sob o elmo tino, irá restituir-Ihes o maldito anel,
mágico, por força do qual assumira a pró- sendo tudo isso inevitável, pois ele conhe-
pria forma e semblante de Gunther. Hor- cera as ruínas da lança Wotan, que rom-
rorizada ante essa agressão ao seu pudor pera com sua espada.
por parte de um desconhecido temerário, As ondinas desaparecem no rio, e logo
Brunhilda resiste através dos mágicos po- em seguida Gunther, Hagen e seus compa-
deres do anel. Porém, o fingido Gunther o nheiros de caça encontram finalmente Sig-
arranca e penetra com ela na gruta, invo- frido. O guerreiro narra-Ihes sua infrutí-
cando sua espada Nothunga como símbolo fera corrida e seu encontro com as ondi-
representativo do respeito com que vai nas. O bastardo Hagen, que já havia pre-
. tratar no leito e em toda parte o pudor da meditado por completo um sombrio plano
formosura roubada de Brunhilda (uma es- de morte para o herói, pergunta-lhe se é
pada colocada no leito entre um homem e certo, como se afirma, que ele entende o
uma mulher poderia, com efeito, .assegurar canto das aves. O jovem responde que
a esta o mais perfeito respeito do cava- esqueceu-se do canto dos pássaros desde
leiro, acima de toda paixão, conforme as que escutou o das mulheres. Gunther, en-
augustas leis da cavalaria, o que, em nossa tretanto, simples e bom, e além disso total-
época de grosseiro materialismo, não con- mente alheio à traição do bastardo, é to-
seguimos entender). _ mado de uma tristeza avassaladora, sem
A traição de Hagen, o filho bastardo de saber por quê. Sigfrido, para elevar o es-
Alberico e digno êmulo de seu pai, co- tado de ânimo de seu irmão de armas, re-
meça, como se vê, a dar seus frutos e,as- nova com ele o pacto de sangue, derra-
sim, na simbologia desta obra wagne- mando na taça de vinho seu sangue gene-
riana, a Taça de Hagen vence a Espada. roso, que transborda e se verte na mãe-
Perseguindo certo dia um urso que se -terra. Querendo distraí-Io ainda mais, co-
lhe escapou durante a- caça, Sigfrido meça a contar-lhe sua história de heroís-
depara-se, por entre um bosque e um mos, desde que o gnomo Mimo o criou,
abrupto promontório de rochas junto ao até que matou o monstro Fafner e também
Reno, com as três formosas ondinas, filhas o gnomo traidor. Porém no momento em
do Pai-Re no , Estas, como sempre, que iria comentar a descoberta de Bru-
mexiam-se sugestivas e tentadoras à su- nhilda na rocha encantada, circundada
perfície das águas, sob a pálida luz da Lua, por chamas, parte-se o fio da narração
lamentando-se da triste noite que continua porque lhe faltam as recordações anterior-
reinando nos profundos domínios aquáti- mente apagadas pelo encantamento de
cos, de vez que o ouro sagrado havia dei- Hagen. Este, porém, intervém, nesse mo-
xado de ser o Sol daqueles abismos. Cheias mento, e oferece-lhe uma segunda taça em
de ansiosa esperança, invocam sem cessar que colocara o suco de outras ervas, propí-
à casta Diana para que lhes envie o herói cias a despertar até as mais longínquas
tanto tempo esperado, o qual lhes restitui- lembranças. Sigfrido deixa assim sua con-
ria o ouro. Travam então sugestiva con- dição de esquecido e readquire a clarivi-
versa com Sigfrido, que perdera a pista do dência perdida, e reenceta o curso de sua
urso perseguido. Inicialmente com do- narrativa, a respeito da virgem Brunhilda,
çura, depois em tom ameaçador, pede-lhe seu descobrimento, a cena do recíproco
o trio a devolução do anel, para que seja amor entre ambos e a história do anel.
afastada a maldição de Alberico. Bem longe estava de imaginar que com ta-
O herói, desconfiado a princípio, resiste manhas revelações acarretava para si
em devolver-Ihes o anel, pois nele vê o mesmo a morte inevitável.
símbolo de Amor, conquistado pelo Des- Ante semelhante imprudência o castigo
tino como herança do mundo. Em que não se faz esperar muito. A revelação que
pese não discernir claramente seu inapre- acabava de fazer sobre a já. prometida de
ciável valor, já que bebera da taça do es- Gunther, seu irmão de armas, era con-
quecimento, não se decide a renunciar trária ao pacto de sangue que acabavam
nem a maldizer o Amor, paralizado com as de ratificar, e com isto se fazia credor de
travas de seus imortais inimigos: o temor e morte por perjúrio. Em dado momento,
o medo. As ondinas, já desesperadas, saem do matagal voando e grasnando dois

26 THOT
Sigfrido, Gutruna e Gunther. personagens de "O Crepúsculo dos Deuses".

fatídicos corvos, as aves de mau agouro, Terra libertada e apta a inaugurar a nova
que revoluteiam sobre a cabeça de Sig- Idade de Ouro ...
frido; quando o herói se volta para Em seguida, monta de um salto o seu fiel
contemplá-l os, Hagen, o traidor, ataca-o cavalo Grane, e ambos se lançam sobre a
pelas costas vingativamente, sem que ardente pira que os consome e dissolve o
Gunther pudesse impedi-Io. anel maldito, restituindo os seus puríssi-
Sigfrido, o herói sem par, o redentor do mos elementos ... O fogo cresce, cresce,
mundo, morre assim entre os tristíssimos assume proporções gigantescas, e atinge
acordes da mal chamada Marcha Fúnebre, finalmente as alturas do Walhalla, cujo pa-
que em verdade representa a solene mar- lácio de orgulho começa a arder até
cha do triunfo sobre a morte, com as nos- desfazer-se em cinzas. As águas sagradas
tálgicas entradas do Canto da Primavera. do Reno, o Pai-Rena eterno, dilatando-se
Ela e os subseqüentes Lamentos de pelos âmbitos do Universo, ascendem gi-
Brunhilda são os temas que se apresentam, gantescas até apagar no seio de suas ondas
enquanto os seguidores de Gunther con- os restos de todo aquele incêndio cós-
duzem o cadáver sobre o escudo em dire- mico ... As filhas do rio avançam transfigu-
ção à montanha. radas e solenes recolhendo de novo o ouro
Gutruna, desolada, recebe do próprio purificado; duas delas afogam entre seus
Hagen a notícia da morte de seu amado braços o infame Hagen, que, enlouque-
sob as garras de um feroz javali. Gunther, cido por ver escapar sua presa, lança-se às
por sua intuição, percebe a perfídia de Ha- águas, para recolher o anel. Floshilda,
gen e a inocência de Sigfrido. Maldiz o a irmã maior das ondinas, radiante de
crime daquele bastardo que se vangloria júbilo, qual divina Custódia, levanta no
publicamente de ser o assassino vingador e alto o ouro reluzente, abafando com os úl-
de ter, portanto, o direito de possuir o timos acordes da orquestra o tema glo-
anel. No instante, porém, em que vai rioso de Sigfrido, o da Maldição de Albe-
arrancar-lhe dos dedos, aparece Brunhil- rico. Surge então o canto da Majestade do
da,radiante como uma nova deusa. Todos, Walha lia , o rutilar do Fogo Encantado, o
então, maldizem o bastardo, e Brunhilda dulcíssimo Canto de Woglinda e o amargo
manda erguer uma pira funerária seme- Crepúsculo dos Deuses, e finalmente o
lhante a um trono, retira o rutilante anel e, canto inefável da Redenção pelo Amor, sem
ateando fogo na pira, pronuncia, com a qual retornaria muito em breve ao Caos
acentos de Sibila iluminada pelo entu- todo o edifício do mundo ...
siasmo da sua já consciente divindade, a
magna profecia: a divinização do Homem
redimido, a queda dos deuses, a devolução
do anel fatal às ondinas primordiais e a EM/LlO MOUFARRIGE
chegada da aurora de um novo dia apo- Baseado no livro "vVagner, Mit61ogo y Ocul-
calíptico, no qual a eterna tirania dos deu- tista", de Mario Roso de Luna; Editorial Glem,
ses sobre os homens já não existirá sobre a Buenos Aires, 1 958.

THOT 27
RELIGIÃO

OS EVANGELHOS I'

APOCRlFOS

Aumenta, hoje em dia, o Intere_ pela pesqulla dOI


textol blbllcol ap6crlfol, elpeclalmente 01 que se referem
ao perlodo englobado pelo Novo Teltamento. Em lual
orlgenl, o termo ap6crlfo Ilgnlflcava "colla elcondlda",
"oculta", servindo na antigüidade para dellgnar .lIvrol de
UIO privado de adeptol de seltallnlclétlcal e daI escolal de
mllt6rlo da Gr6cla e de Roma, como, por exemplo, 01 IIvrol
Slblllnoa e o lua Pontltlcum. Posteriormente, 01 crlltãol
paliaram a dellgnar com elte termo eertes IIvrol de
autorel desconhecldol e temal ambfguol, ainda que
conllderadol de caréter lagrado. Somente tempol depoil é
que a palavra velo a Ilgnlflcar algo IUlpeito de herelia,
lendo, portanto, pouco recomendével.

Entre os primeiros cristãos, contudo, diversas.


não existia um consenso a respeito desses Assim como os livros canônicos, os apó-
livros hoje considerados não-canônicos, crifos dividem-se em quatro grupos:
que eram divulgados por uns e condena- evangelhos, atos, epístolas e apocalipses. Os
dos por outros. São Lucas já dizia que dois primeiros são os mais numerosos, e
- "muitos empreenderam narrar os fatos ainda hoje encontram-se em sua língua
que entre nós se verificaram ... " (Lc 1,1), original, o grego, além de várias traduções
mostrando que a vida e o ensinamento de latinas ou orientais, por exemplo em
"Jesus sempre foram objeto de escrituras copto, siríaco, armênio, árabe e eslavo.

Os Evangelhos Apócrifos Neotestamentários

Tratam da vida e doutrina de Jesus, bem c) Apócrifos da infância: Pseudo Tomás


como de seus antecedentes familiares. Grego (o principal), Evangelho Árabe da In-
Dividem-se geralmente em ci-nco tipos fância, História de José, o carpinteiro, Evan-
principais: gelho Latino da Infância, etc.
a) Textos fragmentados: restos de apó- d) Apócrifos da paixão: narram a des-
crifos perdidos que nos legaram os escrito- cida aos infernos e a ressurreição de
res eclesiásticos dos primeiros séculos, Cristo. Existem os fragmentos do
bem como coleções de ágrafas, frases atri- Evangelho de Pedro e do Evangelho de
buídas a Cristo mas que não constam nos Bartolomeu.
evangelhos canônicos. e) Apócrifos da Assunção, que tratam
b) Apócrifos do nascimento: Proto- da Virgem, como o Livro de São João Evan-
-evangelho de Santiago e suas reelaborações gelista, a Homilia de João de Tessalônica,
latinas, chamadas de Pseudo Mateo e De Narrações de José de Arimatéia, etc.
Nativitate Mariae. Além destes livros, existe a correspon-

28 THOT
RELIGIÃO

dência apócrifa mantida entre Jesus e Ab-


gero, rei de Edesa, e a chamada Carta de Foi grande a Influência dos ap6crltos
Domingo. na mentalidade dos povos orientais, em
A influência dos apócrifos foi grande na virtude de preencherem um vazio dei-
mentalidade dos povos orientais, em vir- xado pelos evangelhos can6n/cos no
tude de preencherem um vazio deixado que se refere. vida e a doutrina de Je-
pelos evangelhos canônicos no que se re- sus.
fere à vida e à doutrina de Jesus. Com o
passar do tempo, foram sendo enriqueci- Fra Angélico e Giotto, assim como a senti-
dos. mos na "Divina Comédia" de Dante, no
Entre os Santos Padres observavam-se "Paraíso Perdido", de Milton, entre ou-
duas atitudes distintas, uma liderada por tros. Após o Concílio de Trento, esta lite-
São Jerônimo, o qual, percebendo as con- ratura passou a ter menor influência na
tradições, extravagâncias e até frases de Igreja ocidental.
mau gosto em alguns apócrifos, optava Tendo em vista a limitação de espaço
pela abolição direta de todos eles; a outra, que um artigo nos impõe, apresentaremos
mais tolerante, de Santo Agostinho, admi- apenas um resumo e trechos de dois dos
tindo que, embora não fossem canônicos, principais apócrifos, o Proto-evangelho de
encontrava-se neles algo de verdadeiro. Santiago e o Evangelho do Pseudo Tomás.
Não obstante, alguns escritores orientais
como Clemente de Alexandria, Eusébio,
Santo Epifânio, Santo André Cretense,
São João Damasceno e mesmo as Igrejas
ocidentais e orientais, valeram-se diversas •
vezes de citações dos textos apócrifos.
Muitas das várias festas e Iiturgias cristãs
não encontram o seu porquê fora desses
textos apócrifos.
A antigüidade de alguns deles remonta
ao século lI, e refletem o sentir maravi-
lhoso das primeiras comunidades cristãs
em relação a Cristo, a sua pessoa e família.
Sua influência foi enorme. Os nomes
atribuídos aos pais da Virgem, Joaquim e
Ana, cujas festas respectivas celebra a li-
turgia romana a 16 de agosto e 26 de julho;
a festa da apresentação da Virgem menina,
fixada no calendário bizantino e romano
em 21 de novembro; o nascimento de
Cristo numa caverna, em que nunca fal-
tam o boi e o asno; a fuga ao Egito com os
ídolos que se derrubam; os três reis magos,
com seus nomes de Melchior, Gaspar e
Baltazar; a história dos ladrões Dimas e
Gestas, o nome do soldado que atravessou
com sua lança a Cristo, a quem chamam
de Longinos; a história de Verônica, que Exemplo de pergaminho; neste caso, o C6diee Vatieano,
enxugou com seu lenço a testa de Cristo em grego, datado de 350 d.e., onde se reproduz Me 10.
na rua da Amargura ... são detalhes tão li- 24-46.
gados à nossa maneira de sentir que muitas
vezes resistimos à idéia de que não têm ou- Proto-evangelho de Santiago
tro fundamento histórico a não ser os apó-
crifos. É o mais antigo de que se tem notícia e,
Os artistas revelaram a influência dos ao mesmo tempo, no que se refere ao nas-
apócrifos nas igrejas e catedrais. O papa cimento de Maria e de Cristo, o mais di-
Sixto IH, em 435, fez decorar o arco triun- fundido. O título se deve a Guilhermo Pos-
fal de Santa Maria com motivos tirados em tal (1581), o qual, ao constatar que o
sua maior parte do Proto-evangelho de mesmo era lido nas igrejas do Oriente,
Santiago e do Pseudo Mateus. Na Idade pensou falsamente que ali fosse conside-
Média tivemos esta influência através de rado canônico, tomando-o primeiramente

THOT 29
RELIGIÃO

como prólogo ao Evangelho de S. Marcos, E recebeu-a o sacerdote, que, depois de havê-


vindo daí o título de Proto-evangelho. Orí- -Ia beijado, bendisse-a e exclamou: "O Se-
genes conhecia-o pelo nome de Livro de nhor engrandeceu teu nome por todas as ge-
Tiago (Tiago, São Tiago, Santiago), cuja rações, pois ao fim dos tempos manifestará
autoria é atribuída a Santiago, o me- em ti uma redenção aos filhos de Israel". E
nor, irmão de Jesus, mais conhecido como Maria permaneceu no templo como uma
filho de Zebedeu. pombinha, recebendo alimento das mãos de
um anjo (7, 1-8, 1).
Segundo contam as histórias ... havia um Porém, ao chegar aos doze anos, os sacer-
homem muito rico chamado Joaquim, que fa- dotes se reuniram para deliberar, dizendo:
zia suas oferendas em quantidade dupla. Che- "Eis que Maria cumpriu seus doze anos no
gou a grande festa do Senhor ... e Rubem templo do Senhor ... que haveremos de fa-
plantou-se frente a Joaquim dizendo-lhe: Não zer?" E disseram ao sumo sacerdote: "Tu
te é lícito oferecer primeiro, pois não tiveste que tens o altar a teu cargo, entra e ora por
um descendente em Israel". Joaquim ficou ela ... " E o sumo sacerdote entrou e orou
aflito e não compareceu frente a sua mulher por ela. Mas eis que um anjo do Senhor apa-
mas retirou-se para o deserto... e jejuou receu, dizendo-lhe: "Zacarias, sai e reúne to-
quarenta dias e quarenta noites, pensando dos os viúvos do povo ... aquele sobre quem o
consigo mesmo: "Não sairei daqui nem se- Senhor fizer um sinal estranho, desse será
quer para comer e beber, enquanto não me Maria mulher." Saíram os arautos por toda a
visite o Senhor. meu Deus; que minha oração região de Judéia ... (8, 2-8, 3).
me sirva de comida e bebida" (1, 1-1, 4). E José, deixando csu machado, uniu-se a
E Ana. sua mulher, lamentava-se... di- eles ... e se puseram a caminho, em busca do
zendo: "Chorarei minha viuvez e minha este- sumo sacerdote. Este ... pôs-se a orar, ... e
rilidade. Oh, Deus de nossos pais. ouve-me e eis que saiu uma pomba que se pôs a voar so-
bendize-me, da mesma maneira como ben- bre sua cabeça (José). Então, o sumo sacer-
disseste o seio de Sara, dando-lhe como filho dote disse: "A ti coube a sorte de receber sob
Isaac" (2, /-1, 4). tua custódia a Virgem do Senhor". José res-
"Ai de mim! A quem me assemelho? Não pondeu: "Tenho filhos e sou velho, enquanto
às aves do céu, pois elas são fecundas em tua que ela é menina; não quisera ser objeto de
presença, Senhor. Ai de mim? Com quem riso por parte dos filhos de Israel". Ao que o
posso me comparar? Nem sequer com essas sacerdote replicou: "Teme ao Senhor teu
águas. pois ainda elas são férteis ante Ti, Se- Deus. e tem fresente o que fez com Datan,
nhor ... " (3.1-3.3). Abiron e Core: como abriu a terra eforam se-
E eis que se lhe apresentou um anjo de pultados nela por sua rebelião ". E ele, cheio
Deus dizendo: "Ana, Ana. o Senhor escutou de temor, recebeu-a sob sua proteção ... e
os teus rogos: conceberás e darás à luz e de disse-lhe: "Tomei-te do templo, agora deixo-
tua prole se falará em todo o mundo". Ana -te em minha casa e vou continuar minhas
respondeu: "Se chego a ter algum fruto de construções ... O Senhor te guardará" (9,
bendição, seja menino ou menina, o levarei 1-3).
como oferenda ao Senhor. e estará a seu ser- Certo dia, tomou Maria um cântaro e foi
viço todos os dias de sua vida" (4.1). enchê-lo d'água; mas eis que se deixou ouvir
E cumpriu-se a Ana o seu tempo, e ao nono uma voz que dizia: "Deus te salve, cheia de
mês deu à luz. E perguntou à parteira: "A Graça. o Senhor é convosco, bendita sois vós
quem dei à luz?" E a parteira respondeu: entre as mulheres ... " Logo um anjo do Se-
"Uma menina". Então Ana exclamou: "Mi- nhor apresentou-se-lhe e disse: "Recebeste
nha alma foi hoje enaltecida". E reclinou a graça ante o Senhor Onipotente e vais conce-
menina no berço. Havendo transcorrido o ber por sua palavra ... o fruto santo que há
tempo marcado pela lei. Ana purificou-se. deu de nascer de ti será chamado filho do Altís-
o peito à menina. e colocou-lhe o nome de simo" (11. 1-3).
Maria (5,2). ... E dia a dia seu embaraço ia aumen-
... E ao chegar aos dois anos, disse Joa- tando. e, cheia de temor, marchou para sua
quim a Ana: "Levemo-Ia ao templo do Se- casa a se esconder dos filhos de Israel.
nhor para cumprir a promessa que fize- Quando sucederam estas coisas. tinha ela 16
mos ... " Ana respondeu: "Esperemos ainda anos (12, 3).
até que cumpra os três anos, para que a me- Ao chegar ao sexto mês de gravidez. voltou
nina não tenha saudades de nós ... " Ao che- José de suas edificações, e ao entrar em casa
gar os três anos. disse Joaquim: "Chama as deu-se conta de que ela estava prenhe. . . vi-
donzelas hebréias que estão sem mancha e rou o rosto e lançou-se à terra e chorou amar-
que tomem caminho ... " E assim fizeram ... gamente ... E levantando-se José chamou

30 THOT
RELIGIÃO

Maria e disse-lhe: "Predileta como és de apear ... dizendo: "Onde poderia eu levar-te
Deus, como fizeste isto? Esqueceste do Se- para resguardar teu pudor?" (17, 1-3).
nhor, teu Deus?" E ela chorou dizendo: E encontrando uma gruta introduziu-a, e,
"Pura eu sou e não conheço homem algum" havendo-a deixado com seus filhos, foi-se em
(13, 1-3). busca de uma parteira hebreia, na 'região de
Mas eis que um anjo do Senhor lhe apare- Belém (18, 1).
ceu em sonhos, dizendo: "Não temas por esta Ao chegar ao lugar da gruta parara, e eis
donzela, pois o que leva em suas entranhas é que esta estava sombreada por uma nuvem lu-
fruto do Espírito Santo. Dará à luz umfilho e minosa . .. de repente brilhou uma luz tão
lhe colocarás o nome de Jesus ... " (14, 2). grande que os olhos não lhe podiam resistir
E veio uma ordem do imperador Augusto, (19,1).
para que se fizesse o censo de todos os habi- Então sobreveio um grande tumulto em
tantes de Belém da Judéia ... e, aparelhando Belém, pois vieram uns magos dizendo:
seu asno, fez acomodar-se Maria sobre ele, "Onde se encontra o nascido Rei dos Judeus?
enquanto seu filho ia adiante, levando a besta Porque vimos uma estrela no Oriente, e vie-
pelo cabresto ... E ao chegar à metade do ca- mos para adorá-Io ". E naquele momento a
minho (de Belém}, disse Maria a José: estrela ... voltou de novo a guiá-los até que
"Baixa-me porque o fruto de minhas entra- chegaram à gruta, e pousou-se na entrada
nhas está por vir a luz ". E ajudou-a a desta (21,1-4).

Evangelho de Pseudo Tomás chegou-se a José e lhe disse: "Vejo que tens
um filho sensato e inteligente. Confia-o a
Tomás, suposto autor deste evangelho mim para que aprenda as letras. Eu lhe ensi-
da infância, não foi identificado como o narei toda classe de sabedoria e a arte de sau-
apóstolo de mesmo nome senão no século dar aos mais velhos ... "
IH, quando seu culto já se estendia por E lhe disse as letras com grande esmero e
todo o Oriente. Segundo alguns estudio- clareza, desde o alfa até o ômega. Mos Jesus
sos, seu autor deveria ser um cristão hele- fixou sua vista no rabino e disse-lhe: "Como
nizado, mas outros vêem neste apócrifo te atreves a explicar aos demais o Beta, se tu
fortes influências hindus, sobretudo em al- ignoras a natureza do Alfa? Hipócrita! Ex-
gumas narrações semelhantes às de plica primeiro o Alfa, se o sabes, e logo acre-
Krishna e Buda, e mesmo em certos estilos ditaremos no que disseres em relação ao
literários comuns ao Oriente. A redação Beta''. Depois começou a interrogar acerca
deste texto remonta ao século lI. da primeira letra, mas o rabino não pôde
Eu, Tomás Israelita, tendo julgado neces- responder-lhe (6, 1-3).
sário dar a conhecer a todos os irmãos prece- E enquanto os judeus se entretiam em
dentes da bondade da infância de Nosso Se- aconselhar Zaqueo, o menino começou a rir
nhor, e quantas maravilhas realizou depois de com muita vontade e disse: "Frutifiquem
nascer na nossa terra. O principio é como se agora tuas coisas e abram à luz os olhos dos
segue ... (1, 1). cegos de coração. Eu vim desde cima para
Este menino Jesus, que contava com cinco maldizê-los e chamá-Ios depois para o alto,
anos, encontrava-se um dia brincando num pois esta é a ordem d'Aquele que por vocês me
riacho. .. depois fez uma massa mole de enviou". Quando o menino acabou de falar,
barro, com a qual modelou doze passari- sentiram-se imediatamente sãos todos aque-
nhos ... Jesus bateu palmas e, dirigindo-se les que tinham caído sob sua maldição (8,
às figuras, disse-lhes: "Marchem". E os pas- 1-2).
sarinhos voaram todos, gorgeando (2, 1-5).
Já outra vez, atravessando um povoado, Estes pequenos excertos podem pôr de
um menino que vinha correndo chocou-se em relevo a importância de que estão revesti-
seu costado'. Irritado, Jesus disse-lhe: "Não dos os textos apócrifos para a história do
continuarás teu caminho" e imediatamente o Cristianismo. Devemos ver neles não ape-
rapaz caiu morto. Alguns que presenciaram o nas alguns dados conceituais, mas também
acontecido, disseram: "De onde terá vindo perceber, ainda que vagamente, o espírito
este rapaz, que todas as suas palavras termi- que existia na época, misto de religiosi-
nam em fatos consumados?" (4, 1). dade e crenças, mas que apontava para
... Certo rabino de nome Zaqueo ... uma única direção: o Reino dos Céus.
DAVID COHEN

THOT 31
-Os Instrumentos de Arco-
2~Parte
lismo". Que outra mentalidade! ...
A partir deste ponto, passaremos a des- Cordas de tripa, depois tripa e bordão,
crever as duas mais importantes famílias em geral de cobre; arcos frouxos, seguros
antigas dos arcos, que representam a feliz também pela palma da mão do executante,
culminância dos primeiros enumerados, e em oposição a técnica atual, braços largos
deram origem ao moderno quarteto de ar- e com trastes nas primeira posições (hoje o
cos, violino, viola, violoncelo e contra- quarteto de arcos não tem trastes), e, veja-
baixo; as violas da gamba, por um lado, e as -se, também de tripa! Cavaletes baixos e "
violas da braccio. sutis, finos estandartes, volutas trabalha-
Essas violas, abauladas ou abobadadas, das ... era a viola da gamba, uma grata com-
porque introduziam o tampo harmônico e binação de elementos. As caixas de resso-
o fundo abaulados, o que substancialmente nância eram harmoniosas, vez por outra
alterava (e refinava) a sonoridade, foram o com finos ornamentos, cabeças humanas
fator mais importante da música instru- esculpidas na voluta; excelentes madeiras
mental dos séculos XV a XVIII, em toda a em geral, lisas ou rajadas; grão fino,
Europa. Todas as formações, conjuntos, sensibilità di soglia muito alta (sensibili-
ensembles ou consorts foram empregues; a dade aos mais débeis impulsos), vernizes
músicâ era solística ou de conjunto, reli- ideais, simetria, polimento, eram perfeitos
giosa ou profana, instrumental apenas ou esses exemplares. pelas reconstituições
também vocal. que hoje se fazem, e se comerciam ampla-
As variedades das violas padrões, pro- mente, como as da Early Music Shop, de
fundamente inspiradas, orientadas pelo Bradford, na Inglaterra, ou pelas peças
muito fino senso artístico de artesãos, cha- conservadas em museus ou coleções parti-
mados o luthier ou o liutaio, ou seja, o culares, podemos imaginar como não se-
construtor de luth e de liúto, alaúde, que riam aquelas sessões de música, e qual o
po r exte n são c on struíam vio/as, espírito daqueles músicos, aqueles musi-
constituem a delícia do .musícista ou musi- cistas e aqueles artesãos, algo inteiramente
cólogo modernos, ou mesmo do estudioso diverso de tudo quanto hoje nos encurta a
amante da arte. Aliado aos resultados so- vida.
noros desses incomparáveis instrumentos, A característica que as tipificava, espe-
que era a sua finalidade última, eram eles cialmente às gambas, entre os restantes
peças tão preciosas como o produto do ou- instrumentos de arco, eram três: o número
rives ou do escultor; a música que para es- das cordas e a sua afinação (cordatura); os
sas peças era escrita era arte para execução trastes de tripa envolvendo o ponto e o
por obras de arte. A cordatura, ou seja, a largo braço; a maneira de tocá-Ias.
afinação das cordas desses instrumentos As cordas das gambas, que começavam
bem refletia o senso artístico de que eram a ter número certo e rígido, em relação à
frutos: acordes românticos, maiores, per- família dos violinos, ou violas da braccio
feitamente consonantes, harmoniosos. Li- (em alemão bratsche), eram maiores, mais
mitavam, é bem verdade, as possibilidades leves e menos tensas; o cavalete mais
técnicas de execução, como no caso de baixo e menos curvo; eram mais profundas
grandes escalas,' rápidas, ou acordes de que aqueles, especialmente os pequenos
grandes intervalos, e encurtavam a exten- instrumentos. Nao tinham forma rigorosa-
são total dos instrumentos, mas o timbre e mente definida, e cada artesão as fabri-
a doçura das cordas, tocadas singular- cava segundo seu gosto. Antes de passar-
mente ou em acordes, é até hoje inexcedí- mos mais especificamente às gambas,
vel - nunca foi igualada. Eram cordaturas lembremo-nos de que, já mais próximo de
para acordes, não resta a menor dúvida; nós que o rabab tunisino, e apresentando
talvez o espírito dos inventores fosse mais outra evolução, encontramos o predeces-
coletivo, o que nos instrumentos se refletia .sor imediato das violas <da braccio, o en-
como para proporcionar sinfonias, conso- cantador fiedel (ou fiddle, na Inglaterra, ci-
nâncias, não uma só linha solística, ou tado no início), que era, literalmente, um
mesmo um muito acendrado "individua- violino antigo, de cinco cordas, sem "CC"

32 THOT
ARTE

como os modernos violinos, caixa suave, às de língua inglesa, é associada a violino rús-
vezes adornada, cabeça cordiforme, ponto tico ou "rabeca".
curto, estandarte antecipando o das gam- A figo 25 mostra catorze arcos diferen-
bas, dois orifícios em "C", do seculo IX e tes, conforme a época e os instrumentos a
X. Fig. 24. A palavrafiddle hoje, nos países que se destinavam.

Século XII

Século XIV
Século X

Século XVI
Século XI

Desde o século XVII em diante, o arco se encaminha sempre mais para a forma
atual As principais mudanças. Que determinaram sue forma definitiva, podem
ser constatadas neste grMico:

Corelli 1700
Mersenne 7620

1-· )

Kircher 1640 Tartini 1740

Cramer 1770
Casrrovi/lari 1660

Bassoni 1689 viotti 1790

Fig. 24 - Fiedel Fig. 25 - Evolução do arco desde o século VIII até hoje.

Violas da gamba

A família era extensa e variada. As gam- full tenor 53 em, a da division bass 65 crn e
bas podiam ser sopranino (pardessus de da consort bass 71 em. O violone, descrito
viole), soprano (dessus de viole), alto (a pa- por alguns autores como um monstro, e
drão viole), tenor pequena, tenor grande curiosamente, pois que autores como
(high tenor ou full tenor), às vezes barítono, Bach escreviam normalmente para ele,
baixo (bass de viol: division bass ou consort soava uma oitava mais baixo que a viola
bass), contrabaixo (violone). A caixa da so- baixo. Assim, sua nota mais grave seria ré,
pranino tinha 28 em, a da soprano 36 em, a imediatamente inferior ao mi grave do mo-
da alto 40 em, a da high tenor 48 em, a da derno contrabaixo!

THOT 33
ARTE

A afinação das gambas era em geral a pernas do executante, pois não tinham,
seguinte (na França e Alemanha): como nosso moderno violoncelo, pontilhão,
sopranino (pardessus) - dó, mi, lá, ré, menos os violones que tinham um apoio
sol. muito similar aos atuais contrabaixos. Seu
soprano (dessus) - ré, sol, dó, mi, lá, ré. estandarte (peça que segura as cordas
alto - dó, fá, si, bemol, ré, sol, dó. perto do cavalete) era mais leve, mas sutil,
tenor (taille) - sol, dó, fá, lá, ré, sol. menos abaulado que os atuais e em geral
baixo (bass de vio!) - ré, sol, dó, mi, lá, baixo, madeira alaranjado-escura.
ré. Prendia-se-o ao botão, por uma corda de
Havia essas sutilezas, tenor pequena, te- tripa que passava por dois furos que ele ti-
nor grande, division bass, consort bass; a te- nha na frente, por dois nós. Todas as gam-
nor era chamada tail/e. Ás vezes se as de- bas serviram magnificamente aos compo-
nominava soprano-tenor, ou sopranino- sitores, como Bach, Vivaldi, Haendel ou
-alto, ou mesmo contrabaixo, ao invés de Corelli, que lhes dedicaram obras inex-
violone. Existiam baixos de sete cordas, de cedíveis, muita vez dificilmente substituí-
cinco, gambas com cordas simpáticas e veis por violoncelo; por exemplo, a ária,
mais um sem-número de aplicações. para baixo, Komm, siisses Kreuz, da
As mais altas podiam-se escrever em Paixão segundo São Mateus, de Bach, tem
clave de sol, as médias em clave de dó. e uma parte para viola da gamba que não
essa é sua clave característica, e as graves pode ser substituída, a não ser que se a
em fá. Eram tocadas e apoiadas entre as mutile miseravelmente.

Fig. 26 - viote da gamba Fig. 27 - Viola da gamba Fig. 28 - Viola de Klotz, Fig. 29 - Viola d'emore.
{padrão}. de Heel, 1 706. 1 734.

Violas da braccio
Também tratadas como familia dos violi- essa classificação é meramente referen-
nos, porque eram tocadas como violino, cial, comparativa, como assim seria "viola
apoiadas no ombro e seguras pelo pescoço pequena, média" ... A viola de hoje é o
e queixo do executante, tinham, é evi- magnífico contralto do quarteto, ao passo
dente, ainda, menor acessibilidade que as que a viola da braccio que tinha a sua afina-
gambas, pois na posição não é possível to- ção, dó, sol, ré, lá, aqui mencionada, é a
car uma viola barítono grande, ou uma soprano. Havia uma, mais rara, denomi-
baixo, nem mesmo um instrumento con- nada por um autor viole da braccio, que ti-
sideravelmente largo. Não obstante, assim nha a cordatura exata do violino atual, sol,
se diz da família: ré, lá, mio
soprano - dó, sol, ré, lá. A figo 26 é de uma viola da gamba pa-
tenor - fá, dó, sol, ré. drão, não pelo tamanho, pois é uma sopra-
baixo - si bemol, fá, dó, sol. nino, ou pardessus de viole, mas pelo for-
A quem está habituado à cordatura da mato. A figo 27 mostra a viola de Heel, de
moderna viola, esses dados são estarrece- desenho diferente mas sem alteração no
dores! Como podia um instrumento da que importa. A figo 28 é de uma viola
braccio ter a afinação daquela tenor, ou, alemã, de Klotz, magnífico exemplar de
muito pior, da baixo? Que volume poderia sete cordas, sem simpáticas. Importante:
ter, se mesmo a corda dó da moderna viola esta última já é uma viola da braccio. A figo
o' tem fraquíssimo, ainda que de extraordi- 29 é uma viola d'amore, com oito cordas
nária beleza? Percebe-se, também, que principais, digitáveis, e oito SImpáticas,

THOT
que passam no meio do cavalete, sob o
ponto, e prendem-se no mesmo cravelhal
daquelas.
As principais variações, algumas tão
aberrantes que quase refogem ao grupo,
são as seguintes:
Viola d'amore - já mencionada e ilus-
trada, seu nome deve provir de moure, ou
moro, árabe. Seria uma viola mourisca, de Fig. 32 - Viola pomposa, Fig. 33 - Arpeggione,
origem, e não uma viola de amor. como os lhadíssimo, para as simpáticas, e o outro
franceses a traduzem. Sua grande carac- simples, liso, para as principais; o crave-
terística são as cordas simpáticas, por lhal é imenso, triangular; a voluta tem às ve-
baixo do ponto das principais, quase sem- zes duas cabeças esculpidas; o estandarte
pre em número ímpar, em geral sete, que é artisticamente trabalhado; a profundi-
eram afinadas, como aquelas, no mesmo dade da caixa de ressonância é grande e o
acorde de ré maior. Escreviam os compo- som ... um mistério! Haydn compôs para
sitores para ela notáveis maravilhas, como ela mais de 170 peças. Fig. 31.
os concertos de Vivaldi, as obras de Bach Viola pomposa - ideada por Bach e
(a Paixão segundo São João tem também construída em 1.720 por Hoffmann, em
partes para ela) ou as lezioni-sonate de Leipzig, é uma viola da braccio mais mo-
Ariosti. Algumas cordaturas: lá, ré, lá, ré, fá derna, alto, que ao formato e cordatura da
sustenido, lá, ré; ré, fá sustenido, lá, ré, fá viola moderna apenas incorporava a corda
sustenido, lá, ré; ré, lá,' ré, fá sustenido, lá, mt do violino, como quinta corda. Difícil
ré, a última, portanto, um hexacordo. Sua de manejar, mas excelente instrumento,
clave era dó. para a qual compôs Bach sua VI suíte;
Quinton - ascendente direto do violino, hoje, a execução dessa peça em violoncelo
tinha cinco cordas e era menor que a viola é extremamente árdua. Fig. 32.
da braccio standard. Arpe~gione - viola da gamba ernforrna
Viola bastarda - também chamada lira- de violao, sem "CC", com trastes, seis cor-
- viola ou lira-da braccio. Tinha cinco cordas das e elegante voluta, abaulada. Schubert
no ponto e duas fora dele. Sua caixa era si- compôs para ela a célebre sonata
milar à do violino' moderno, mas não seu Arpeggione. Fig. 33.
cravelhal, em forma de pingente. Fig. 30. Viola da spalla - era uma viola similar
Seu baixo, não muito parecido, descrito em tamanho à moderna mas de ponto
adiante, era chamado lira da gamba, lirone, curto, outra cordatura e menor extensão.
arquiviola, acorde ou acordo. Não se a deve Mais rústica, devia ser de sonoridade
confundir com a lira de viola, antiga viola muito inferior à do violino piccolo. Fig. 34.
de três cordas, de caixa arredondada. Era usada pelos spalle das orquestras, ou
Barítono, baryton, viola de bordão ou viola seja os violinistas principais sentados à
paradon - é um esplêndido instrumento, frente e que devem orientar os demais.
hoje raro e de que se conservam alguns Violino piccolo - família dos violinos, afi-
exemplares em museus da Europa. Baixo navam uma terça menor mais alto que o
da viola de seis ou sete cordas essenciais violino moderno, portanto si bemol, fá, dó,
de tripa e dezesseis simpáticas, de aço. É sol, o que lhe conferia maior secura e me-
chamada bastarda impropriamente, já nor ressonância, além de timbre um pouco
que esse é um dos designativos da lira- nasal. Bach compôs excelentes trechos
-viola.Os cortes em "r' são duplos e os bra- para ele, como nos Brandemburgueses ou
ços, colocados lado a lado, são, um, traba- nas maiores cantatas. Fig. 35.
Fig. 30 - Lira da breccio. Fig, 31 - Bar/tono. Lira da gamba - magnífico instrumento,
baixo da lira-viola. Tinha quase vinte cor-
das no ponto larguíssimo, mais algumas
poucas fora dele. Era robusta, de belo for-
mato, seu c"a velhal parecia um grande co-
ração, e o cavalete, naturalmente chato,
quase reto, permitia tocar grandes acordes
de uma só vez, o que lhe- valeu a denomi-
nação, também, de acorde ou acordo. Fig.
36, lirone ou acorde de Tieffenbrucker.
Octobaixo - J. B. Vuillaume o construiu,
em 1~49; esse sim, era um monstro verda-
deiro. Quase quatro metros de altura, afi-
nava uma oitava abaixo do contrabaixo

THOT 36
ARTE

Fig. 34 - Viola da spalla. Fig. 35 - Violino pie colo.

moderno! Tinha três cordas, com pedais e viola d'amore, o violoncelo tenor e o pie-
alavancas para permitir tocá-Io. A inten- colo, o violonceau, a violotta, a violet, a
ção do famoso violeiro era dotar a orques- violetta marina, a violetta piccola, a via/a di
tra do registro de 32 pés, que só o órgão fagotto, o violino tenor, a viola alta, a viola
possui, e Berlioz chegou a prescrever qua- baixa, o rebe/ à violino, o ribechino, o
tro deles como componentes de sua orquestra discant-geige, mas, entre confusões, sinôni-
ideal, de mais de duzentos e cinqüenta mos e imprecisões, nem é de bom alvitre
instrumentos; os resultados não o justifica- prolongar a enumeração, que parece não
ram, no entanto, e ele foi abandonado. ter fim. Foram esses últimos, antes de in-
Fig. 37. Teve o mesmo destino sua venções originais, confusões históricas, e
contra/to, curiosa viola larguíssima. ao estudioso nem se recomenda muita de-
Houve, além dessas, inúmeras tentativas dicação aos nomes, que só o irão confun-
de criar instrumentos originais, como o dir.
nail violine (violino de arame, feito de uma
roda de pregos), o violino-bengala, o vio-
IVAN BARBOSA RIGOLlN
lino dos mendigos, o violino de Savart, tra-
pezoidal, o violino de Chanot, os violinos
mudos, para estudo, sem caixa de resso- OBRAS CONSULTADAS:
nância, o violino d'amore, que era pequena 1. ACLAP (Associação Cremonesa de Liutai)
Fig. 36 - Ura da gamba. Fig. 37 - Oetobaixo.
- Il Liutaio, Libreria dei convegno, Cre-
mona, 1973.
2. Grove, Charles - Dictionary of Music and
Musicians, ç, I vol., 5~ ed., Mac Millan
3. Lopes Graça - Tomás Barba - Dicionário de
Música (Ilustrado), 2 vol.,· Lisboa
4. Otterbach, Friedemann - Schõne Musikins-
trumente, ed. Schuber Verlagsgemein-
schaft, Munique.
5. Pasquali, G. - Principe, R. - El Violin, ed.
Ricordi Americana, Buenos Aires, 1952.
6. Sachs, Curt - History of Musical1nstruments,
ed. J.M. Dent & Sons Ltd., Londres, 1977.
7. Buchner, Alexander - Colour Encyclopedia
of Musical Instruments, ed. Hamlyn, 1980.

36 THOT
FILOSOFIA

Da
Importância
do
Trabalho
o trabalho é amor feito visivel.
G.K. Gibran

No momento agudamente crítico em


que vivemos, já não constitui novidade a t necessário resgatar os valores pe-
completa derrubada daqueles valores e dagógicos do trabalho, capazes de fo-
instituições que nos são mais caros, deixan- mentar a cr/atlvldade e a dignidade -
do o homem à mercê de apelos instintivos, elementos essenciais à liberdade - e
lutando desesperadamente pela sobrevivên- capazes de fomentar o a/trufsmo e o
cia ao invés de lutar inteligentemente pela senso de responsabilidade - elemen-
vida. A essa derrocada de valores não es- tos Indispensáveis à fra ternlda de.
capou praticamente nenhuma atividade; a
arte, a ciência, a educação, a política, já semelhantes, fundir-se na divindade. Para
não existem como elementos que se conju- tornar possível tudo isso requer-se, eviden-
gam para permitir ao homem uma cami- temente, muito esforço, muito trabalho em
nhada mais segura, com uma definida pos- todos os níveis e sentidos, trabalho interno
tulação de objetivos e a adequada con- e externo. E as nossas obrigações cotidianas
quista e utilização dos meios para realizá- não representam outra coisa senão um as-
-Ios. O que existe hoje é a "arte pela arte" pecto, uma parcela desta grande obra que
(ou pelo dinheiro), a "ciência pela ciên- temos a realizar.
cia" (ou pelo poder), a "política pela polí- No entanto, o que percebemos atual-
tica" (ou pelo dinheiro e pelo poder ao mente é uma deturpação inteira do traba-
mesmo tempo), como se estas e outras ati- lho, à força de estarem-lhe invertidas as
vidades não tivessem todas um mesmo e características essenciais, aquilo que cons-
único objetivo: o aprimoramento do ho- titui o seu próprio fundamento. Principal-
mem. mente nos quatro aspectos que enumera-
O trabalho, como instituição, enfrenta mos a seguir:
problemas semelhantes. Esta é, talvez, a 1. Sempre se considerou que o trabalho
que se poderia considerar a atividade mais enobrece e dignifica o homem; atual-
própria do ser humano, já que pelo traba- mente, porém, em grande parcela, o traba-
lho lhe é permitido transformar em obras lho só contribui par-a transformar os ho-
concretas os imperativos da razão; pelo mens em miseráveis. Primeiro, devido às
trabalho, é-lhe permitido modelar a ma- condições subumanas no ambiente de tra-
téria conforme modelos configurados tam- balho, com higiene e segurança precárias;
bém na razão. E através de plasmar estes depois, o acesso demorado, difícil e pe-
imperativos e modelos é que o homem vai noso a esse mesmo ambiente; ainda, as dis-
conquistando a sua racionalidade, consu- torcidas relações entre patrões e emprega-
mando sua perfectibilidade, aproximando- dos, em que se patenteia a fórmula típica
-se à sua meta suprema que é o encontrar- de exploradores e explorados, facilmente
-se consigo mesmo, harmonizar-se com seus percebida por todos, sem que ninguém

THOT 37
FILOSOFIA

tome a iniciativa de fazer algo, sem que


ninguém se decida a fazer um esforço no
sentido de melhorar esse relacionamento. o trabalho traz em si a Idéia de Inven-
2. O trabalho traz implícita a idéia de in- tlvldade; ali também se deve manifestar
ventividade; ali também se deve manifes-
e de.envolver todo o potencial criador
tar e desenvolver todo o potencial criador do ser humano, 1I que é nesse aspecto
do ser humano, já que é nesse as~ecto - o - o da cr/atlvldade - que ele é 'elto â
da criatividade - que ele é feito a imagem Imagem e semelhança de Deus.
e semelhança de Deus. A atuação humana
deve ser uma co-participação na Criação possível viver isoladamente, seja por não
do universo. Entretanto, as grandes con- ser capaz de atender às suas necessidades
quistas tecnológicas, que deveriam propi- materiais, seja, sobretudo, por causa de
ciar ao homem mais tempo e melhores suas necessidades afetivas, e, ainda, por
condições para desenvolver sua imagina- sua própria índole social, por uma força
ção criadora, não fizeram mais que meca- estranha a fazer que os homens procurem
nizar e automatizar o trabalho humano. agrupar-se para construir algo em comum.
Hoje é por demais conhecida a afirmação Uma vei que vive em sociedade, o traba-
de que o homem se transformou em um lho do homem dirige-se sempre ao con-
apêndice da máquina - e os modernos sis- junto da sociedade. Assim, o sapateiro não
temas pedagógicos têm como objetivo fabrica sapatos somente para si, fabrica-os
principal a produção desses "apêndices", para os outros; não é o cientista, em suas
os quais, quando já não cumprem a con- pesquisas de laboratório, o único nem o
tento suas funções, são imediatamente maior beneficiário de suas descobertas,
substituídos por outros, simples peças de mas sim toda uma comunidade, toda a hu-
reposição. Não menos mecanico e auto- manidade; o médico trabalha com o cons-
matizado é o chamado trabalho burocrá- tante objetivo de mitigar o sofrimento dos
tico, em que primam a monotonia, a repe- outros, e assim sucessi 'lamente. Constata-
tição e a morosidade. -se, então, que cada integrante da socie-
3. A natureza do trabalho é essencial- dade trabalha para os outros e é benefi-
mente altruísta. Ao homem não lhe é ciário do trabalho dos outros, pelo que se
conclui que a natureza do trabalho é es-
sencialmente altruísta (de a/ter, o outro) e
comunitária; em nossa sociedade, porém,
o trabalho é egoísta e competitivo. Por
dois motivos: o primeiro, foi o advento do
"espírito mercantilista" ou "capitalista",
que nos faz ver tudo pelo prisma do di-
nheiro, e nesse "tudo" englobam-se coisas
e homens. Vivemos a época em que a obra
de arte, a descoberta arqueológica ou a
importante conquista tecnológica são sem-
pre avaliadas pelo que representam em va-
lor monetário: por outras palavras; valori-
zamos o preço das coisas, não as coisas em
si mesmas. O segundo motivo,' conse-
qüente ao primeiro, foi o advento \ia con-
cepção do trabalho como uma mercadoria,
mero objeto a ser comercializado em um
mercado sumamente desfavorável. A con-
junção desses dois fatores - o "espírito ca-
pitalista" e a comercialização do trabalho
- contribuiu para que houvesse uma verda-
deira inversão no objetivo básico do traba-
lho: não mais o trabalho como uma res-
ponsabilidade, como uma forma de cola-
borar com a comunidade, mas o trabalho
como meio de se adquirir riquezas e de se
Para os ceremistes gregos trabalho e arte se confun- auto-afirmar perante os demais. Assim, a
diam: um s6 8tO. em busce da perfeição. (Na foto. ân- realização profissional é medida pelo su-
fora do século VI 8. C; estifo Severo) cesso financeiro e não pelo bem realizar os

38 THOT.
FILOSOFIA

desígnios da profissão, ou exercê-Ia corre-


tamente, com dignidade, com autentici-
dade (não esquecer que a palavra profis-
são deriva do latim professione - ato ou
efeito de professar, declaração pública de
uma crença, de um sentimento; hoje con-
sideramos profissão tão-somente como a
atividade da qual se podem tirar os meios
de subsistência).
4. Por último, podemos dizer que o tra-
balho deveria cumprir uma função lato
sensu pedagógica. Através dele podem-se
desenvolver no jovem o sentimento de res-
ponsabilidade social, a formação do cará-
ter, o sentido de disciplina. E a procura do
aperfeiçoamento constante na atividade
que nos coube por destino ou por própria Albert Srhweitzer: exemplo de toda uma vida dedi-
escolha, é um reflexo da procura de auto- cada ao trabalho, humanitário e altruísta.
-aperfeiçoamento que está implícita na
própria evolução individual e que se cons- para o estabelecimento dessa verdadeira
titui em objetivo último da existência. O neurose dos dias presentes: a "ansiedade"
afã contínuo de aprimoramento em uma pelo feriado, pelo fim-de-semana, e a abo-
arte ou ofício é o que, de alguma forma, minação da segunda-feira. É como se se
indica ao ser humano quais os seus limites quisesse construir alguma coisa sem es-
e os meios de os ir superando. Essa supera- forço, sem a necessária parcela de energia
ção dos próprios limites representa, então, a ser queimada, transformada em uma
a verdadeira realização profissional, a rea- obra concreta. Vale ressaltar, no entanto,
lização plena da vida, permitindo ao ho- que não se encontra na história um único
mem professar os seus sentimentos, as suas grande homem que não tenha sido inflexí-
crenças, o seu modo habitual de ser. Esse vel madrugador, aproveitador de todas as
aspecto pedagógico não é levado em conta horas do dia e muitas da noite.
atualmente - ou o é em muito pequena es- Daí que, para se desencadear o processo
cala -, restringindo-se os objetivos do tra- de transformação em nosso mundo - o
balho à simples busca de sobrevivência que todos ansiamos - faz-se necessária
material. uma radical modificação em nossos con-
Por todos esses motivos é que dizemos ceitos e em nossa educação. Faz-se neces-
estar deturpada a nossa concepção acerca sário resgatar os valores da educação em
do trabalho. Em vez de ser considerado todas as suas possibilidades, aí incluindo-
algo natural e necessário, um instrumento -se os valores pedagógicos do trabalho, ca-
imprescindível para a consecução dos ob- pazes de fomentar a criatividade e a digni-
jetivos do homem na Terra, é encarado dade - elementos essenciais à liberdade -
como uma "carga", uma obrigação desa- e capazes de fomentar o altruísmo e o
gradável, que deve ser cumprida o mais ra- senso de responsabilidade - elementos in-
pidamente possível. Isto cria condições dispensáveis à fraternidade.

A arte, a ciência, a educaç'o, a polf-


tlca, Já nlo existem como elementos
que se conjugam para permitir ao ho-
mem uma caminhada mais segura, com
uma definida postulaçlo de objetivos
e a adequada utlllzaç'o dos meios para
reallzl-Ios. O que existe hoje , a "arte
pela arte" (ou pelo dinheiro), a "cltnc/a
pela cltnc/a" (ou pelo poder), a "polf-
tlca pela polftlca" (ou pelo dinheiro e
pelo poder ao mesmo tempo), como se
esta. e outras atividades n'o tivessem
toda. um mesmo e único obJetivo: o ZILDO TRAJANO
aprimoramento do homem.

THOT 39
3'ÁGINA
Prezados Senhores:
DOS LEITORES
Igreja se constituia verdadeiramente em um
I Tenho a honra de dirigir-me a V.Sas. no grande Estado espiritual: contava com um
sentido de oferecer-Ihes o trabalho anexo pontífice único e supremo, cinco patriarcas
("Normas de conduta de valor universal"), de (que residiam em Roma, Constantinopla, Ale-
cunho filosófico-intuitivo,que reputo de suma xandria, Antioquia e Jerusalém), os arcebispos
importância para todos os seres humanos no e um corpo episcopal (institutdo desde o sé-
que concerne à concórdia universal. culo 111).As primitivas irmandades eram assis-
Isto representa o resultado de minhas refle- tidas pelos presblteros e "governadas" pelos
xões, o qual submeto à apreciação dessa con- bispos.
ceituada entidade.
M.C. - São Paulo, SP. Correções
THOT: Apresentamos os nossos agradeci-
mentos ao leitor e comunicamos já ter sido en- l . No número anterior, por um lapso da re-
viada a matéria para a Comissão Editorial, para visão, não foi publicado integralmente o cré-
apreciação. De momento, aproveitamos para dito referente ao artigo "Os Seres Imagi-
manifestar todo o nosso apoio a iniciativas nários", que é este: "Extreldo de O LIVRO
como esta, pois, no nosso mundo tão dividido DOS SERES IMAGINÁRIOS, de Jorge Luis
e de tanta vioténcie. sempre serão bem-vindos Borges. Tradução de Carmen Vera Cirne Lima.
todo trabalho, toda reflexão e todo esforço que Direitos exclusivos de edição, em I1nguaportu-
tenham como objetivo a fraternidade guesa, da Editora Globo SA."
universal. 2. Corrigimos também o preço doi números
atrasados, que, na edição de n" 2 7, foi assina-
Prezados Senhores: lado como sendo Cr$ 200,00, por exemplar; o
Na oportunidade em que me congratulo correto é Cr$ 250,00, preço do número atual.
pela excelência do artigo ':,4 Cidade de Deus Encontram-se à disposição para vende os nú-
de Santo Agostinho", de autoria do prof? Igná- meros 12, 13, 14 e de 16 a 27.
cio da Silva Telles (THOT nQ 27, pp. 2 a 9), 3. No número 26, no artigo "Os Sólidos
gostaria, se possível, que me fosse satisfeita Platônicos" (p. 29), houve um equIvoco na ta-
uma curiosidade: na época de Agostinho, já se bela referente ao número de supertlcies, vérti-
encontrava inteiramente estruturada a Igreja ces e arestas dos poliedros regulares. O nú-
Cristã? mero de arestas do tetraedro é 6, e não 4
S.R. - São Paulo, SP
como erroneamente indicado, e no icosaedro o
THOT: Depois das dificuldades iniciais, das número de arestas é 30, e não 20 .. Isto se
perseguições contra os seus militantes, o Cris- pode perceber facilmente pelo teorema de Eu-
tianismo foi paulatinamente conquistando ter- ler, segundo o qual, em cada poliedro regular
reno, até que, durante o reinado de Constan- fechado, se dá a relação F + V = A + 2, sendo:
tino (306 - 337), alcançou a condição de reli- F - número de faces (superttcies):
gião estatal, consolidada pelo imperador Teo- V - número de vértices;
dôsio em 393. Em 311 o edito -de Gelério ter- A - número de arestas.
minava com as perseguições anticristãs e, em Então: A = (F + V) - 2. Para o tetraedro, o
313, o edito de Milão garantia aos cristãos o número de arestas A = (4 + 4) - 2 = 6; para o
direito de praticar livremente sua religião. Por icosaedro, A = (20 + 12) - -2 = 30.
essa época, as instituições básicas do Cristia- Houve engano também na descrição das fi-
nismo encontravam-se já bastante organiza- guras da página 30: a figura 2 representa o
das, sendo a Igreja universal dividida em múlti- icosaedro, e a figura 3 o dodecaedro, e não ao
plas comunidades submetidas à autoridade do contrário como sti se encontra.
bispado. Ainda com o incentivo do impera,dor
Constantino, realizou-se em Nicéia, na Asia Atenção leitores: as cartas devem ser dirigi-
Menor, em 325, o primeiro concílio ecumê- das à Revista THOT - Seção de Correspondên-
nico, que definiu o credo cristão contra as pri- cia e Assinaturas: rua Leôncio de Carvalho, 99
meiras heresias. - CEP 04003 - São Paulo - SP.
A época de Santo Agostinho (354 - 430), a

Assinatura THOT:
Para receber uma assinatura anual da revlata cuHural THOT (sela nú-
meros), envie cheque nominal, no valor de Cr$ 1.500,00, para AssoclaçAo
Palas Athena do Braall, Junto comaeu nome e endereço completoa.
Rua Le6nclo de Carvalho, 99 - Paralso
04003 - 810 Paulo - SP.

40 THOT
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INTRODUÇÃO AO
PENS~ME'NTO
FILOSOFICO
tTICA: espectos ético-filosóficos do Bramanismo e Bu-
dismo (leitura comentada de Bhagavad Gita. A
Voz do Silêncio e Dhammapada); o pensamento
ético de Aristóteles, Plotino, Kant e Bertrand Rus-
seI; a ética cristã.
FILOSOFIA DA HIST6RIA: introdução ao caráter geral da História; Iundemen- .
tos teoréticos; ciclos e ritmos históricos;. História e
Mitoiogia; teorias históricas de Cícero e PIatão.
S6CIO-PoLlTlCA: análise comparativa de indivlduo, sociedade e es-
tado, na visão clássica e moderna; a moral como
fundamento do direito social e do dever polltico;
estado liberal e estado dirigido.

.. IDADE MfN1MA: 18 ANOS INFORMAÇCES:


AULAS UMA VEZ POR SEMANA <; RUA LEONCIO DE CARVALHO, 99
DURAÇÃO: 22 AULAS PARAfso - SÃO PAULO - SP
•'" ,.:..':-
INIcIO TODOS OS MESES lf.·IS \1\\\.. FONE: 288.7356
,Graças ~ Deus,
tudopode
ser aperfeiçoado
nesta vida.

Vamos dar-nos u tempo para


auto-con,heciflnos, .
Vamos dar um.tempo aos nossos semelhantes, .
e conhecê-Ios.
VamoS melhorar acada dia nesta vida .

. 00 '0'·
.
• . F0TOLl~O POLYCHROM - AV. IMP.' LEOPOLDINA, 1434

, . V. HAMBURGUESA SP - 261-7199 - 261-7118.

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