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Augusto dos Anjos

O POETA DO HEDIONDO

Sofro aceleradíssimas pancadas


No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!

Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultrainquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas!

Quanto me dói no cérebro esta sonda!


Ah! Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...

Eu sou aquele que ficou sozinho


Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!

ANJOS, Augusto dos. Eu. Outras poesias. Poemas esquecidos.


31 ed, Rio de Janeiro, Livraria São José, 1971.p. 203

Notas
hediondo - sórdido, imundo, repulsivo, sinistro, medonho
coalescência - união de partes originalmente separadas; é um
termo técnico da física: denomina o fenômeno de crescimento de um
gota de líquido pela fusão com outras gotas
neurona - a forma dicionarizada é neurônio, célula nervosa.

BUDISMO MODERNO

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte


Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!


Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contacto de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida


Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;
Mas o agregado abstracto das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

ANJOS, Augusto dos. Eu. Outras poesias. Poemas esquecidos.


31 ed, Rio de Janeiro, Livraria São José, 1971.p. 84

Notas
Budismo - sistema religioso e filosófico segundo o qual a sabedoria
conduz ao nirvana, estado de paz e plenitude e de ausência de
sofrimento. No texto, o nirvana é obtido com a dissolução material e
a permanência na forma de realização poética.
diatomácea – micro-organismo aquático dotado de carapaça rígida
criptógama - diz-se da planta desprovida de flores, que se reproduz
por meio de órgãos reprodutores inaparentes; na atual classificação
botânica, as criptógamas estão divididas em vários subgrupos.

A IDÉIA

De onde ela vem?! De que matéria bruta


Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta


Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,


Chega em seguida às cordas do laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebra a força centrípeta que a amarra,


Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No mulambo da língua paralítica!

ANJOS, Augusto dos. Eu. Outras poesias. Poemas esquecidos. 31 ed,


Rio de Janeiro, Livraria São José, 1971.p. 61

O DEUS-VERME

Factor universal do transformismo.


Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme - é o seu nome obscuro de batismo.
Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.

Almoça a podridão das drupas agras,


Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...

Ah! Para ele é que a carne podre fica,


E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!

ANJOS, Augusto dos. Eu. Outras poesias. Poemas esquecidos. 31 ed,


Rio de Janeiro, Livraria São José, 1971.p. 66

Notas
psicogenética - referente à psicogênese, que estuda a origem e
evolução das funções psíquicas
encéfalo - conjunto de órgãos do sistema nervoso central contidos na
caixa craniana
absconso - escondido, oculto; secreto
mulambo - a forma dicionarizada é molambo - trapo, farrapo, roupa
rasgada
teleológico - relativo à teleologia, doutrina que vê na realidade um
sistema de relações entre meios e fins; no caso, trata-se da relação
entre a matéria e a sua finalidade, a decomposição
contubérnio - familiaridade, convivência, camaradagem
antropomorfismo - aplicação de atributos típicos do homem a outros
elementos da realidade
drupa - fruto carnoso dotado de núcleo muito duro, como o pêssego
hidrópico - que tem hidropisia, ou seja, que sofre de acumulação de
líquido em tecidos ou partes do corpo

APÓSTROFE À CARNE

Quando eu pego nas carnes do meu rosto,


Pressinto o fim da orgânica batalha:
_ Olhos que o húmus necrófago estraçalha,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto...

E o Homem - negro e heteróclito composto,


Onde a alva flama psíquica trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tacto, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!
Carne, feixe de mônadas bastardas,
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,

Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,


Em tua podridão a herança horrenda,
Que eu tenho de deixar para os meus filhos!
ANJOS, Augusto dos. Eu. Outras poesias. Poemas
esquecidos. 31 ed, Rio de Janeiro, Livraria São José, 1971.p.
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NOTAS
apóstrofe - figura de linguagem que consiste em interpelar uma
pessoa ou ente, real ou imaginário
necrófago - que se nutre de cadáveres
diafragma - no texto, músculo que separa a cavidade torácica da
cavidade abdominal
heteróclito - singular, excêntrico, extravagante
mônada - organismo simples, espécie de unidade mínima da vida; é
um termo hoje desusado
flâmeo - flamejante

Euclides da Cunha

UMA FICÇÃO GEOGRÁFICA

A linha férrea corre no lado oposto. Aquele liame do progresso


passa, porém, por ali, inútil, sem atenuar sequer o caráter
genuinamente roceiro do arraial. Salta-se do trem: transpõem-se
poucas centenas de metros entre casas deprimidas; e topa-se para
logo, à fímbria da praça - o sertão...
Está-se no ponto de tangência de duas sociedades, de todo
alheias uma à outra. O vaqueiro encourado emerge da caatinga,
rompe entre a casaria desgraciosa, e estaca o campeão junto aos
trilhos, em que passam, vertiginosamente, os patrícios do litoral, que
o não conhecem.
Os novos expedicionários ao atingirem-no perceberam esta
transição violenta. Discordância absoluta e radical entre as cidades da
costa e as malocas de telha do interior, que desequilibra tanto o
ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo e perturba
deploravelmente a unidade nacional. Viam-se em terra estranha.
Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente. Outra língua mesmo,
articulada em gíria original e pinturesca. Invadia-os o sentimento
exato de seguirem para uma guerra externa. Sentiam-se fora do
Brasil. A separação social completa dilatava a distância geográfica;
criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria.
Além disto, a missão que ali os conduzia frisava, mais fundo, o
antagonismo. O inimigo lá estava, para leste e para o norte,
homiziado nos sem-fins das chapadas, e no extremo delas, ao longe,
se desenrolava um drama formidável...
Convinha-se em que era terrivelmente paradoxal uma pátria
que os filhos procuravam armados até os dentes, em som de guerra,
despedaçando as suas entranhas a disparos de Krupps,
desconhecendo-a de todo, nunca a tendo visto, surpreendidos ante a
própria forma da terra árida, e revolta, e brutal, esvurmando
espinheiros, tumultuando em pedregais, esboroando em montanhas
ruídas, escancelada em grotões, ondeando em tabuleiros secos,
estirando-se em planuras nuas, de estepes...
O que ia fazer-se era o que haviam feito as tropas anteriores -
uma invasão - em território estrangeiro. Tudo aquilo era uma ficção
geográfica. A realidade, tangível, enquadrada por todos os sucessos,
ressaltando à observação mais simples, era aquela. Os novos
campeadores sentiam-na dominadoramente. E como aquele povo
desconhecido de matutos lhes devolvia, dia a dia, mutilados e
abatidos, os companheiros que meses antes tinham avançado
robustos e altaneiros, não havia ânimo varonil que atentasse
impassível para as bandas do sertão misterioso e agro...
CUNHA, Euclides de. Obra completa - vol. II. Rio de Janeiro,
José Aguilar, 1966. p. 428 - 429.

NOTAS
campeão - termo popular usado para indicar afetivamente o cavalo
Krupp - canhão de fabricação alemã.

O texto que vamos ler e analisar é o início do terceiro capítulo da


segunda parte do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha.

III
(fragmento)

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo


exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela
o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura
corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo,
reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza,
sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de
membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida,
num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade
deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao
primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o
animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre
um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela.
Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e
firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que
parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E
se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um
cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo,
cai logo - cai é o termo - de cócaras, atravessando largo tempo
numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica
suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os
calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
É o homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em
tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar
desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência
constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendente do que vê-la desaparecer de
improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos,
transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer
incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O
homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos,
novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta,
sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e
forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa
instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e
da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o
aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num
desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.
Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo
o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja -
caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre
extremos impulsos e apatias longas.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 3 ed., São Paulo,


Cultrix, 1982, p. 99 - 100

Notas
Hércules-Quasímodo - Hércules é um herói da mitologia grega,
realizador dos famosos “doze trabalhos”. Quasímodo é o nome do
corcunda de Notre Dame.
espenda - parte da sela em que se assenta a coxa do cavaleiro
cócaras - ou “cócoras”; a expressão “de cócaras” significa sentado
sobre os próprios calcanhares
tabaréu - caipira
titã - gigante mitológico; símbolo de grandeza física, intelectual ou
moral

Trecho inicial do Capítulo II da última parte do livro Os sertões:

Deponhamos.
O fato era vulgar. Fizera-se pormenor insignificante.
Começara sob o esporear da irritação dos primeiros reveses,
terminava friamente feito praxe costumeira, minúscula, equiparada
às últimas exigências da guerra. Preso o jagunço válido e capaz de
agüentar o peso da espingarda, não havia malbaratar-se um segundo
em consulta inútil. Degolava-se; estripava-se. Um ou outro
comandante se dava ao trabalho de um gesto expressivo. Era uma
redundância capaz de surpreender.
Dispensava-a o soldado atreito à tarefa.
Esta era, como vimos, simples. Enlear ao pescoço da vítima
uma tira de couro, num cabresto ou numa ponta de chiquerador;
impeli-la por diante; atravessar entre as barracas, sem que ninguém
se surpreendesse; e sem temer que se escapasse a presa, porque ao
mínimo sinal de resistência ou fuga um puxão para trás faria que o
laço se antecipasse à faca e o estrangulamento à degola. Avançar até
à primeira covanca profunda, o que era um requinte de formalismo;
e, ali chegados, esfaqueá-la. Nesse momento, conforme o humor dos
carrascos, surgiam ligeiras variantes. Como se sabia, o supremo
pavor dos sertanejos era morrer a ferro frio, não pelo temor da morte
senão pelas suas conseqüências, porque acreditavam que, por tal
forma, não se lhes salvaria a alma.
Exploravam esta superstição ingênua. Prometiam-lhes não raro
a esmola de um tiro, à custa de revelações. Raros as faziam. Na
maioria emudeciam, estóicos, inquebráveis - defrontando a perdição
eterna. Exigiam-lhes vivas à República. Ou substituíam essa irrisão
dolorosa pelo chasquear franco e insultuoso de alusões cruéis, num
coro hilar e bruto de facécias pungentes. E degolavam-nos, ou
cosiam-nos a pontaços. Pronto. Sobre a tragédia anônima, obscura,
desenrolando-se no cenário pobre e tristonho das encostas eriçadas
de cactos e pedras, cascalhavam rinchavelhadas lúgubres, e os
matadores volviam para o acampamento. Nem lhes inquiriam pelos
incidentes da empresa. O fato descambara lastimavelmente à
vulgaridade completa. Os próprios jagunços, ao serem prisioneiros,
conheciam a sorte que os aguardava. Sabia-se no arraial daquele
processo sumaríssimo e isto, em grande parte, contribuiu para a
resistência douda que patentearam. Render-se-iam, certo, atenuando
os estragos e o aspecto odioso da campanha, a outros adversários.
Diante dos que lá estavam, porém, lutariam até à morte.
E quando, afinal jugulados, eram conduzidos à presença dos
chefes militares, iam conformados ao destino deplorável. Revestiam-
se de serenidade estranha e uniforme, inexplicável entre lutadores de
tão variados matizes, e tão discordes caracteres, mestiços de toda a
sorte, variando, díspares, na índole e na cor.
Alguns se aprumavam, com altaneria incrível, no degrau
inferior e último da nossa raça. Notemos alguns exemplos.
Um negro, um dos raros negros puros que ali havia, preso em
fins de setembro, foi conduzido à presença do comandante da 1 a
coluna, general João da Silva Barbosa. Chegou arfando, exausto da
marcha aos encontrões e do recontro em que fora colhido. Era
espigado e seco. Delatava na organização desfibrada os rigores da
fome e do combate. A magreza alongara-lhe o porte, ligeiramente
curvo. A grenha, demasiadamente crescida, afogava-lhe a fronte
estreita e fugitiva; e o rosto, onde o prognatismo se acentuara,
desaparecia na lanugem espessa da barba, feita uma máscara
amarrotada e imunda. Chegou em cambaleios. O passo claudicante e
infirme, a cabeça lanzuda, a cara exígua, um nariz chato sobre lábios
grossos, entreabertos pelos dentes oblíquos e saltados, os olhos
pequeninos, luzindo vivamente dentro das órbitas profundas, os
longos braços desnudos, oscilando - davam-lhe a aparência
rebarbativa de um orango valetudinário.
Não transpôs a couceira da tenda.
Era um animal. Não valia a pena interrogá-lo.
O general de brigada João da Silva Barbosa, da rede em que
convalescia de ferimento recente, fez um gesto. Um cabo-de-
esquadra, empregado na comissão de engenharia e famoso naquelas
façanhas, adivinhou-lhe o intento. Achegou-se com o baraço.
Diminuto na altura, entretanto, custou a enleá-lo ao pescoço do
condenado. Este, porém, auxiliou-o tranqüilamente; desceu o nó
embaralhado; enfiou-o pelas próprias mãos, jugulando-se...
Perto, um tenente de estado-maior de primeira classe e um
quintanista de medicina contemplavam aquela cena.
E viram transmudar-se o infeliz, apenas dados os primeiros
passos para o suplício. Daquele arcabouço denegrido e repugnante,
mal soerguido nas longas pernas murchas, despontaram,
repentinamente, linhas admiráveis - terrivelmente esculturais - de
uma plástica estupenda.
Um primor de estatuária modelado em lama.
Retificara-se de súbito a envergadura abatida do negro
aprumando-se, vertical e rígida, numa bela atitude singularmente
altiva. A cabeça firmou-se-lhe sobre os ombros, que se retraíram
dilatando o peito, alçada num gesto desafiador de sobranceria
fidalga, e o olhar, num lampejo varonil, iluminou-lhe a fronte. Seguiu
impassível e firme; mudo, a face imóvel, a musculatura gasta
duramente em relevo sobre os ossos, num desempeno impecável,
feito uma estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia quatro
séculos e aflorando, denegrida e mutilada, naquela imensa ruinaria
de Canudos. Era uma inversão de papéis. Uma antinomia
vergonhosa...
E estas cousas não impressionavam...
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 3 ed., São Paulo,
Cultrix, 1982, p. 365 a 367.

Notas
chiquerador - a forma dicionarizada é chiqueirador - chicote de
couro torcido
irrisão - zombaria, escárnio, mofa
chasquear - zombar, escarnecer
hilar - hilário, hilariante, que provoca riso ou gargalhadas
facécia - chiste, meio-termo entre a zombaria e o gracejo
pontaço - golpe com a ponta de um objeto, normalmente uma faca
rinchavelhada - gargalhada estridente, exagerada
jugulado - dominado, subjugado
orango valetudinário - orango é sinônimo de orangotango;
valetudinário significa muito fraco, debilitado, doentio.
antinomia - contradição, oposição recíproca

Trecho do segundo capítulo da última parte do livro Os Sertões.

O lento avançar dos assédios estacou, então, novamente.


Imobilizava-o pela última vez o vencido. Ademais a situação não
requeria maiores esforços. A vitória viria por si mesma. Bastava que
se conservassem as posições. Fechadas todas as saídas e
francamente batidas as cacimbas marginais do rio, o perdimento do
arraial era inevitável, em dous dias no máximo - mesmo admitida a
presunção de poderem, os assediados, por tanto tempo e naqueles
dias ardentes, suportar a sede que os flagelava.
Mas a resistência duraria uma semana ainda. Porque aquele
círculo maciço de batalhões começou de ser partido,
intermitentemente, pelos sertanejos, à noite.
Na de 26 houvera quatro ataques violentos; na de 27, dezoito;
nas dos dias subseqüentes, um único, porque já não intermitiram,
prolongando-se, contínuos, das seis da tarde às cinco do amanhecer.
Não visavam rasgar um caminho à fuga. Empenhando-se todos
ao sul atendiam à conquista momentânea das cacimbas, ou gânglios
rebalsados no Vaza-Barris. Enquanto o grosso dos companheiros se
batia atraindo para o âmago do arraial a maior parte dos sitiantes,
alguns valentes sem armas, carregando as borrachas vazias,
aventuravam-se até à borda do rio. Avançavam cautelosamente.
Abeiravam-se das poças esparsas e raras, que salpintavam o leito; e
enchendo as vasilhas de couro volviam, correndo, arcados sob as
cargas preciosas.
Ora, esta empresa, a princípio apenas difícil, foi-se tornando, a
pouco e pouco, insuperável.
Descoberto o motivo único daqueles ataques, os sitiantes das
posições ribeirinhas convergiam os fogos sobre as cacimbas,
facilmente percebidas - breves placas líquidas rebrilhando ao luar ou
joeirando, na treva, o brilho das estrelas...
De sorte que atingindo-lhes as bordas os sertanejos tinham, em
torno e na frente, o chão varrido à bala.
Avançavam e caíam, às vezes, sucessivamente, todos.
Alguns antes que chegassem às ipueiras esgotadas, reduzidas
a repugnantes lameiros; outros quando, de bruços, sugavam o líquido
salobro e impuro; e outros quando, no termo da tarefa, volviam
arcando sob os bogós repletos. Substituíam-nos outros, rompendo
desesperadamente contra os tiroteios, afrontando-se com a morte.
Ou, o que em geral sucedia, deixavam que se atreguasse a repulsa
enérgica e mortífera e se descuidassem os soldados vigilantes. Mas
estes, conhecendo-lhes os ardis, sabiam que tornariam outra vez em
breve. Aguardavam-nos, pontarias imóveis, ouvidos armados ao
menor ruído, olhos frechando, fitos, as sombras, como caçadores
numa espera. E divisavam-nos, de fato, transcorridos minutos,
indistintos, vultos diluídos no escuro, na barranca fronteira; e viam-
nos, descendo lento e lento por ela abaixo, de bruços, rentes com o
chão, vagarosamente, num rastejar serpejante de grandes sáurios
silenciosos; e viam-nos depois, em baixo, arrastando-se pelo esteiro
areento do rio...
Seguravam as pontarias. Deixavam-nos aproximar-se, e
deixavam-nos atingir os estagnados que eram o chamariz único
daquela ceva monstruosa.
Então lampejava o fulgor das descargas subitâneas!
Fulminavam-nos. Percebiam-se, adiante quinze metros, gritos
dilacerantes de cólera e de dor; dous ou três corpos escabujando à
beira das cacimbas; correndo outros, espavoridos; outros, feridos,
em cambaleios; e outros desafiando o fuzilamento, pulando, sem
resguardos agora, das barrancas - e velozes, terríveis, desafiadores -
passando sobre os companheiros moribundos, arremetendo com a
barreira infernal que os devorava.
Um único às vezes escapava, às carreiras. Transpunha a
barranca de um salto, e perdia-se nos escombros do casario, levando
aos companheiros alguns litros de água que custavam hecatombes. E
era um líquido suspeito, contaminado de detritos orgânicos, de sabor
detestável em que se pressentia o tóxico das ptomaínas e fosfatos
dos cadáveres decompostos jazentes desde muito insepultos por toda
aquela orla do Vaza-Barris.
Estes episódios culminaram o heroísmo dos matutos.
Comoviam, por fim, aos próprios adversários.
Não raro, quando toda a linha de sítio, ao norte, estrugia os
ares em descargas compactas, sem que se distinguissem os tiros
singulares, num ressoar intenso lembrando o de represas
repentinamente abertas, e o bombardeio as completava, tombando
dos morros - os combatentes da linha central do acampamento,
arriscando-se aos projetis perdidos, borrifados pela refrega, faziam-
se espectadores de uma cena extraordinária.
Em muitos despontou, ao cabo, irreprimível e sincero
entusiasmo pelos valentes martirizados. Não o encobriam. O quadro
que se lhes oferecia imortalizava os vencidos. Cada vez que os
contemplavam tinham, crescente, o assombro:
A igreja sinistra bojava, em relevo, sobre o casario em ruínas;
e impávidos ante as balas que sobre ela convergiam, viam-se, no
resplendor fugaz das fuzilarias, deslizando-lhe pelas paredes e
entulhos, subindo-lhe pelas torres derrocadas ou caindo por elas
abaixo, de borco, presos aos blocos disjungidos, como titãs
fulminados, vistos de relance num coriscar de raios, aqueles rudes
patrícios indomáveis...
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 3 ed., São Paulo, Cultrix,
1982, p. 372 - 373

Notas
cacimbas - escavação na qual a água se acumula
gânglios rebalsados - gânglio é um pequeno corpo formado pelo
entrelaçamento de vasos linfáticos; rebalsado significa estagnado,
paralisado, afundado no lodo
ipueira - pequena lagoa, poça
bogó - recipiente de couro próprio para retirar água das cacimbas
sáurio - lagarto em geral
ceva - isca para atrair a caça
escabujando - esperneando, debatendo-se
ptomaínas e fosfatos - nomes de substâncias químicas

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