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Última flor do lácio, inculta e bela Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
És, a um tempo, esplendor e sepultura Morte ao burguês de giolhos,
Ouro nativo, que na ganga impura cheirando religião e que não crê em Deus!
A bruta mina entre os cascalhos vela Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Amo-te assim, desconhecida e obscura Ódio fundamento, sem perdão!
Tuba de alto clangor, lira singela
Que tens o trom e o silvo da procela Fora! Fu! Fora o bom burguês!..
E o arrolo da saudade e da ternura
Ode triunfal
Amo o teu viço agreste e o teu aroma Fernando Pessoal (Álvaro de Campos)
De virgens selvas e de oceano largo
Amo-te, ó rude e doloroso idioma À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da
Em que da voz materna ouvi: "meu filho" fábrica
E em que camões chorou, no exílio amargo Tenho febre e escrevo.
O gênio sem ventura e o amor sem brilho Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza
disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos
Ode ao burguês antigos.
Mário de Andrade (In: Pauliceia desvairada)
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
o burguês-burguês! Em fúria fora e dentro de mim,
A digestão bem-feita de São Paulo! Por todos os meus nervos dissecados fora,
O homem-curva! o homem-nádegas! Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um
Eu insulto as aristocracias cautelosas! excesso
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques De expressão de todas as minhas sensações,
zurros! Com um excesso contemporâneo de vós, ó
que vivem dentro de muros sem pulos; máquinas!
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o Em febre e olhando os motores como a uma
francês Natureza tropical —
e tocam os “Printemps” com as unhas! Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força
—
Eu insulto o burguês-funesto! Canto, e canto o presente, e também o passado e
O indigesto feijão com toucinho, dono das o futuro,
tradições! Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
Fora os que algarismam os amanhãs! E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das
Olha a vida dos nossos setembros! luzes eléctricas
Fará Sol? Choverá? Arlequinal! Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio
Mas à chuva dos rosais e Platão,
o êxtase fará sempre Sol! E pedaços do Alexandre Magno do século talvez
cinquenta,
Morte à gordura! Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do
Morte às adiposidades cerebrais! Ésquilo do século cem,
Morte ao burguês-mensal! Andam por estas correias de transmissão e por
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi! estes êmbolos e por estes volantes,
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano! Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo,
“– Ai, filha, que te darei pelos teus anos? ferreando,
– Um colar… – Conto e quinhentos!!! Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa
Mas nós morremos de fome! só carícia à alma.
“Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma! Ah, poder exprimir-me todo como um motor se
Oh! purée de batatas morais! exprime!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas! Ser completo como uma máquina!
Ódio aos temperamentos regulares! Poder ir na vida triunfante como um automóvel
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia! último-modelo!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados! Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo
Ódio aos sem desfalecimentos nem isto,
arrependimentos, Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-
sempiternamente as mesmices convencionais! me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões Ouro terra amor e rosas
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável! Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Fraternidade com todas as dinâmicas! Sem que volte para lá
Promíscua fúria de ser parte-agente
Não permita Deus que eu morra
Do rodar férreo e cosmopolita
Sem que volte pra São Paulo
Dos comboios estrénuos,
Sem que veja a Rua 15
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
E o progresso de São Paulo
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das as meninas da gare
correias de transmissão! Oswald de Andrade