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Coordenação de Flávio Moreira da Costa

OS TRABAI.iHADORES DO MAR
Victor Hugo

TRÊS CONTOS
Gustave Flaubert
RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS
F. Dostoievski

Tradução, introdução e notas


L:€DO IVO

3~ EDIÇÃO

) f

Francisco
Alves
UMA TEMPORADA NO INFERNO
(

Outrora, se bem me lembro, mi~ha vida era um


festim onde se abriam todos os corações, onde todos os
vinhos corriam.
Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. - E
achei-a amarga. - E injuriei-a.
Armei-me contra a justiça.
Fugi. ó feiticeiras, ó miséria, ó ódio, a vós é que
meu tesouro foi confiado.
Consegui fazer desvanecer-se em meu espírito toda
a esperança humana. Sobre toda alegria, para estran-
gulá-la, dei o salto surdo da fera.
Chamei os carrascos para, perecendo, morder a co-
ronha de seus fuzis. Chamei as calamidades, para me
sufocar com a areia, com o sangue. O infortúnio foi o
meu deus. Estendi-me na lama. Sequei-me ao ar do
crime. E preguei boas peças à loucura.
E a primavera me trouxe o pavoroso riso do idiota.
Ora, muito recentemente, quando eu estava quase
nas últimas, pensei em procurar a chave do antigo fes-
tim, onde eu recobraria talvez o apetite.
A caridade é essa chave. - Esta inspiração prova
que sonhei.
"Permanecerás hiena, etc ... " exclamou o demônio
que me coroou de tão gentis papoulas. "Ganha a morte

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com todos os teus apetites, e o teu egoísmo e todos os
pecados capitais."
Ah! foi 0 que fiz e por demais! - Todavia, ~ar.o
'
1

satã, por favor, tende para mim um olhar menos irn-


tado! e enquanto ficais à espera de u~~s tantas ~ovar­
diazinhas em atraso, e já que apreciais no ~scntor a
ausência das faculdades descritivas ou instrutivas, des-
taco para vós estas poucas hediondas folhas de meu
caderno de réprobo. SANGUE RUIM

De meus antepassados gauleses tenho os olhos azuis,


a fronte estreita, a falta de jeito na luta. Penso que mi-
nha maneira de vestir é tão bárbara quanto a deles.
Mas não unto os cabelos.
Os Gauleses eram os esfoladores de animais, os quei-
madores de ervas mais ineptos de seu tempo.
Tenho deles: a idolatria e o amor ao sacrilégio;
-- oh! todos os vícios, cólera, luxúria, - magnífica, a
luxúria; - sobretudo mentira e indolência.
Tenho horror a todos os ofícios. Patrões e operários,
todos são camponeses; ignóbeis. A mão que segura a
pena vale tanto quanto a que empurra o arado. - Que
século manual! - Não usarei jamais as mãos. Além do
mais a domesticidade conduz a muito longe. Os mendi-
gos, com a sua honradez, exasperam-me. Os criminosos
repugnam-me como se fossem castrados: quanto a mim,
estou intacto, e isto pouco me importa.
Todavia! quem fez minha língua de tal modo pér-
fida que ela orientou e protegeu até aqui minha indo-
lência? Sem me servir de nada, nem mesmo de meu
corpo, e mais ocioso que o sapo, tenho vivido em toda
parte. Não há uma família da Europa que eu não co-
nheça. - Falo, naturalmente, de famílias como a minha,
que devem tudo à Declaração dos Direitos do Homem.
- Conheci cada filho de família!

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* ln~~~ :tn:l~e:! .~~oibiam! Geografia, cosmografia, mecâ-
* *
Tivesse eu antecedentes num ponto qualquer da A ciência, a nova nobreza! O progresso O mundo
história da França! marcha! Por que não haveria ele de girar? ·
Mas não, nada. É a visão dos númer En ·
Espírito. Falo com a certe~~ de :irruru;amlo-nos para o
É evidente que sempre fui de uma raça inferior. do e não sabend . oracu o. Compreen-
Não posso compreender a revolta. Minha raça não se ferirta calar-me. o explicar-me sem palavras pagãs, pre-
rebelou jamais, a não ser para a pilhagem: como os lo-
bos que atacam o animal que não mataram.
_Evoco a história da França, filha mais velha da *
Igreja. Devo ter feito, como camponês, a viagem à Terra * *
Santa; tenho na memória as estradas das planícies suá-
bias, panoramas de Bizâncio, muralhas de Jerusalém; o
culto de Maria, a compaixão do Crucificado despertam e O ~angue_pagão retorna! O Espírito está perto
que Cristo nao me aJ·uda d d 'por-
em mim entre mil magias proianas. - Sentei-me, le-
proso, sobre os vasos quebrados e as urtigas, junto a um
- a minha alma? Ah 1 E ' an °
nobreza e liberdade
,o Evangelho! · · o vangelho passou1· o Evangelho !
muro roído pelo sol. - Mais tarde, cavalariano, devo
ter dormido ao relento, nas noites da Alemanha.
-tod Espetro J?eus avidamente. Sou de raça inferior
Ah! mais ainda: danço o sabá numa rubra clareira, a a e ermdade. , por
entre velhas e crianças.
Aqui estou na praia arm .
Não me lembro de nada que ultrapasse esta terra e se iluminem à ~oite. Meu dº ~nc8:1'1ª· ~ue. as cidades
-pa. O ar marinh . ,1a rmmou. deixo a Euro-
o cristianismo. Jamais terminaria de rever-me neste pas-
sado. Sempre só, porém; sem família; além do mais, perdidos bronze~ãdu~x::ra meus pulmões; os climas
que língua falaria? Não me revejo nunca nos concílios ·-caçar, sobretudo fumar be~ p~e. Nadar, pisar a erva;
do Cristo; nem nas assembléias dos Senhores, - repre- sem metal derretido ' er co:es fortes como se fos-
sentantes do Cristo. · passados em torno dofu~~~o faziam esses caros ante-

Que era eu no século passado: só hoje é que torno Voltarei, com uma saúde de ferro a ele e .
a encontrar-me. Não mais vagabundos, nem guerras va- .,aa, o olhar selvagem· pela minha ', p seur~1-
gas. A raça inferior espalhou-se por toda parte - o que sou de ' mascara, pensarao
povo, como se diz, a razão; a nação e a ciência. brutal. As m~::r;:~~~~:·d~:\~~~ !~f~~:so e
r~tornam dos países quentes. Envolver- · q~e
Oh! a ciência! Tudo recomeçou. Para o corpo e a -cios políticos. Salvo. me-e1 nos nego-
alma, - o viático, - tem-se a medicina e a filosofia,
- os remédios de boas mulheres e as canções populares . Agora estou amaldiçoado, tenho horror à minha , -
bem arrumadas. E os divertimentos dos príncipes e os tria. O melhor a fazer é dormir, bAbed
e . pa
o, na praia.
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o céu azul e o trabalho florido do sua
* fatalidade nas cidades. Ele tinha mais força que um san-
* * to, mais bom senso que um viajante - e ele, só ele!
, . Retomemos os caminhos daqui, como testemunho de sua glória e de sua razão.
Não ha part1d,a.. - vício ue deitou suas raízes de Nas estradas, em noites de inverno, sem abrigo, sem
carregando meu v1c~od o desdeqa idade da razão - que roupas, sem pão, uma voz me oprimia o coração gela-
sofrimento ao meu a .º' . a me ao chão e me arrasta. do: "Fraqueza ou força: vê, é a força. Não sabes nem
sobe ao céu, bate em mim, JOg - , .
. A . , ltima timidez. Esta dito. para onde vais, nem por que vais; entra em toda parte,
A· última mocencia e ªd u tos e minhas traições. responde a tudo. Não te matarão mais do que se fosses
Não expor ao mundo meus esgos um cadáver." De manhã eu tinha o olhar tão vago, e
o fardo, o deserto, o desgosto a fisionomia tão morta que não me viram talvez aqueles
vamos! A marcha, com quem m~ encontrei.
e a cólera. ?
~ ? A ue animal é preciso adorar. Nas cidades a lama me aparecia subitamente ver-
A quem me al~gar. ln
vestir? Que corações que-
Contra que santa. imdagemsustentar? - Em que sangue
melha e negra, como um espelho quando uma lâmpada
circula no quarto vizinho, como um tesouro na floresta!
brarei? Que mentira evo Boa sorte, gritava, e via um mar de chamas e de fu-
caminhar? maça no céu; e, à esquerda, à direita, todas as riquezas
lh r a fazer é ter cuidado com a justiça. - ardendo como um bilhão de raios.
O me o imento simples, - erguer, com
A vida dura, o er:ibrutec a de um esquife, acomodar- Mas a orgia e a camaradagem das mulheres me
º punho endurecido, adta~p ·m não haverá velhice nem eram vedadas. Nem mesmo um companheiro. Eu me via
se nele morrer sufoca o. ss1A ' diante de uma turba exasperada, defronte ao pelotão de
perigo;: o terror não é frances. fuzilamento, chorando a infelicidade de eles não me te-
~ ~:pato:: :~e t~i:n~d~m~~o:~~:e p~:~
,;
rem podido compreender, e perdoando! - Como Joana
- Ahna- d'Arc! - "Padres, professores, patrões, enganai-vos en-
reço, a
a perfeição. . . tregando-me à justiça. Jamais pertenci á este povo; ja-
- , minha caridade maravilhosa!. mais fui cristão; sou da raça que cantava no suplício;
ó minha abnegaçao, o não compreendo as leis; não tenho o senso moral, sou
. '
aqui neste mundo, to d avia. um bruto; vós vos enganais ... "
. b ·11
De profundis Domine' como sou im ec1 . Sim, tenho os olhos fechados à vossa luz. Sou um
animal, um negro. Contudo, posso ser salvo. Sois falsos
* negros, vós, maníacos, sanguinários,, avarentos. Mer-
* * cador, és um negro; magistrado, és um negro; general,
és um negro; imperador, velha sarna, és um negro; be-
. ·rava o sentenciado intratá- beste um licor de contrabando, da fábrica de Satã. -
Criança amd~, eu ad~echam as portas da prisão; Este povo está inspirado pela febre e pelo câncer. En-
vel sobre quem sempre se pensões que ele teria san- fermos e velhos são de tal modo respeitáveis que pe-
visitava as estalagens e as. . com 0 seu pensamento· dem para morrer em água fervente. - O melhor a fazer
tificado ao hospedar-se nelas, via
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. . d loucura ronda em busca amor terrestre, morrer de devotamento. Deixei almas
é deixar este continente, ~n ~ ª. Entro no verdadeiro cujo sofrimento aumentará com a minha partida. Vós
de reféns para estes m1seraveis.
reino dos filhos de Cam. . me escolhestes entre os náufragos; são meus amigos os
? onheço-me a mim mes- que ficam?
Ainda conheço a naturez:. c ltei os mortos no meu
Salvai-os!
mo? - Chega de palavras. 1~ça dança dança! Nem
ventre. Gritos, tambor, dança, ho~ens br~ncos desem- A razão nasceu em mim. O mundo é bom. Aben-
sequer vejo a hora em .que, os çoarei a vida. Amarei meus irmãos. Não são mais pro-
barcando, cairei no vazio. messas infantis. Nem a esperança de escapar à velhicv
nça, dança, dança, dança.
Fome, sede, gritos, da e à morte. Deus fez minha força, e eu louvo Deus.

* *
* * *
h- 1 É preciso sub-
os brancos desembarcam. O can a 0 . O tédio não é mais meu amor. O furor, a devassi-
meter-se ao batismo, andar vestido, trabalhar. dão, a loucura, dos quais conheço todos os impulsos e
-o o toque da graça. Ah! não o calamidades - todo o meu fardo foi arriado. Apreciemos
Recebi no Coraça
sem vertigens a extensão de minha inocência.
tinha previsto! , .
. . 1 0 dias vão ser face1s para Não serei mais capaz de pedir a consolação de uma
Jamais prat~quei 0 m~ ·se:á poupado. Não terei tido bastonada. Não creio que esteja numa festa nupcial, ten-
mim, o arrependimento m . morta para o bem, na qual do Jesus Cristo como sogro.
os tormentos da alma quase orno os círios funerários.
d ovo a luz severa c Não sou prisioneiro de minha razão. Disse: Deus.
sobe e n . d f 'lia esquife prematuro cober-
0 desti:io ~o fllh? .e amise~ dúvida, a devassidão é Quero a liberdade na salvação: como obtê-la? Os gos-
to de llmp1d~s. la?n~:;s~·do· é preciso jogar de lado a tos frívolos deixaram-me. Não tenho mais necessidade
estúpida, o v1c1~ e e~ ~~1 h~ra da dor pura é que o re- de abnegação ou de amor divino. Não lamento o século
podridão. Todavia, so batado como uma dos corações sensíveis. Cada um tem sua razão, desprezo
lógio deixará de. tocar! Vou s~r a;;~uecido de todas as e caridade: guardo meu lugar no alto desta angélica
criança, para bnncar no para1so, escala de bom senso.
desgraças! .
ºd ? impossível dormir en- Quanto à felicidade estabelecida, doméstica ou
Depressa! há outras Vl as. - 'blico Só não. . . não, não posso. Sou muito dissipado, muito fra-
. A · eza sempre foi um bem pu · co. A vida floresce pelo trabalho, velha verdade: no
tre nquezas. nqu d ciência. Vejo que a
o amor divino concede as chav:~ u~o de bondade. Adeus, meu caso, minha vida não é bastante pesada, ela voa
natureza não passa de um espe ac e flutua longe, acima da ação, esse precioso centro do
quimeras, idéias, erros! mundo.
· lva- Que solteirona estou me tornando, perdendo a co-
0 canto judicioso dos anjos ergue-se do navio sa do
dor: e, o amor dºIV1nO.
. - Dois amores! posso morrer ragem de amar a morte!

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edesse a calma celestial e aérea,
se Deus me cone os santos' for-
- omo os antigos santos. - _ · .
a oraçao, - c artistas de uma espécie nao mrus
tes ! os anacoretas,
necessária!
Minha inocência me faria chorar.
Farsa contínua!
todos devem representar.
A vida é uma farsa
* NOITE INFERNO
* *
Basta! eis a punição. - Para a frente! Traguei um bom gole de veneno. - Seja três vezes
_ . as têmporas latejam! A abençoada minha resolução! - Minhas entranhas ar-
A.h! os pulmoes qu;:mamp~r este sol! o coração ... dem. A violência do veneno contrai-me os membros, des-
noite rola em meus o os, figura-me, arroja-me ao chão. Morro de sede, sufoco, não
os membros .. · posso gritar. É o inferno, as penas eternas! Vede como
b te? Sou fraco! os outros
Ir para para o com a . tempo! ... o fogo se levanta! Queimo-me, como convém. Vai, de-
avançam. Os equipamentos, as armas. . . o mônio!
• 1 Lá' ou me entrego. - Co- Eu percebera a conversão ao bem e à felicidade,
Fogo! fogo sobre rmm. . diante das patas dos
vardesl - Eu me mato! Jogo-me a salvação. Possa eu descrever a visão, o ar do inferno
cavalos! não tolera os hinos! Eram milhares de criaturas encan-
tadoras, um doce concerto espiritual, a força e a paz,
Ah! ... as nobres ambições, e que mais?
_ Habituar-me-ei a isto. As nobres ambições!
· h o da honra'.
Seria a vida francesa, o carmn
E é ainda a vida! - Se a danação é eterna! Um
homem que se mutila deliberadamente é um danado,
* não é? Creio estar no inferno, então estou nele. É a exe-
* * cução do catecismo. Sou escravo do meu batismo. Pais,
fizestes a minha desgraça, e também a vossa. Pobre ino-
cente! - O inferno não pode investir contra os pagãos.
- É ainda a vida! Mais tarde, serão mais profundas as
delícias da danação. Um crime, depressa, que posso cair
no vácuo, por imposição da lei humana.
Fica em silêncio, cala-te! ... Aqui é a vergonha, a
reprovação: Satã diz que o fogo é ignóbil, e que minha
cólera é terrivelmente estúpida. - Basta! ... Erros a

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que me induziram, magias, perfumes falsificados, m~-­ - Querem cantos negros, danças de huris? Querem que
sicas pueris. - E dizer que possuo a verdade, que ve30 eu desapareça, mergulhe em busca do anel? Querem?
a justiça: tenho um julgamento são e firme, estou pron·· Fabricarei ouro, remédios.
to para a perfeição. . . Orgulho. - Meu couro cabe-
Confiai em mim, então, a fé alivia, guia, cura. Vin-
ludo se resseca! Piedade! Senhor, tenho medo. Tenho
de, todos - até as criancinhas - que eu vos posso con-
sede, tanta sede! Ah! a infância, a relva, a chuva,? lag?
sobre as pedras o luar quando o sino tocava meia-noz- solar ~ entre vós distribuir seu coração, - o coração
, M.' mar~v1lhoso!. - ~obres homens trabalhadores! Não peço
te ... o diabo está no campanário, nessa hora. ana.
oraçoes; serei fellz aipenas com a vossa confiança.
Virgem Santa! ... - Minha estupidez causa-me horror.
- E pensemos em mim. Isto me faz lamentar pou-
Lá embaixo, não estão almas honestas, que me de- co o mundo. Tenho a sorte de não sofrer mais. Minha
sejam o bem? ... Vinde ... Tenho um travesseiro sob:e vida não foi senão doces loucuras, o que é lamentável.
a boca, elas não me ouvem, são fantasmas. Além do .mais,
~

ninguém pensa nunca nos outros. Não se aproximem Ora isso! façamos todas as caretas imagináveis.
de mim. Cheiro a carne tostada, é certo.
Estamos, decididamente, fora do mundo. Não se
As alucinações são inumeráveis. É, sem dúvida, o ouve nenhum som. Meu tato desapareceu. Ah! meu cas-
que sempre tive: falta de fé na história, o esqueci~en~o telo, minha porcelana de Saxe, meu bosque de salguei-
dos princípios. Silenciarei sobre isto: poetas e VlSlona- ros. As tardes, as manhãs, as noites, os dias. . . Como
rios ficariam enciumados. Sou mil vezes o mais rico, se- estou cansado!
jamos avaros como o oceano. . · Eu deveria ter um inferno para a minha cólera, um
Isto, agora! o relógio da vida acabou de parar. Não mferno para o meu orgulho, - e o inferno da carícia·
1
estou mais no mundo. - A teologia é uma coisa séria, um concerto de infernos. '

o inferno está certamente embaixo - e o céu no alto.


Morro de cansaço. É o túmulo, vou-me para os ver-
- Êxtase, pesadelo, sono em um ninho de chamas.
mes, horror dos horrores! Satã, farsante, queres dissol-
Quantas burlas na vigília campestre. . . Satã, Fer- ver-me com os teus encantos! Protesto. Protesto! um
dinando, corre com as sementes selvagens ... Jesus ca- golpe de forcado, uma gota de fogo. ·
minha sobre as sarças purpúreas, sem curvá-las ... Je-
Ah! voltar de novo à vida! Lançar os olhos sobre
sus caminhava sobre as águas irritadas. À luz da lanter- nossas monstruosidades. E este veneno, este beijo mil
na, ele nos surgiu de pé, de branco e de trigueiras tran- vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade do mundo!
ças, no seio de uma onda de esmeralda ... Meu Deus, piedade, Qcultai-me, não estou em condições
Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religio- de proteger-me! - Estou escondido e não o estou.
sos ou naturais, morte, ;nascimento, futuro, passado, É o fogo que se ergue, com o seu danado.
cosmogonia, o nada. Sou mestre em fantasmagorias.
Escutai! ...
Tenho todos os talentos! - Não há ninguém aqui,
e há alguém: eu não gostaria de distribuir meu tesouro.

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"Sou escrava do Esposo infernal, aquele que levou
à perdição as virgens loucas. É realmente um demônio.
Não é um espectro nem um Quanto a mim,
que perdi a sabedoria, e estou danada e morta para o
mundo, - não me matarão! - Como o descrever para
vós! Não sei mais nem falar. Estou de tenho medo.
Um pouco de frescura, Senhor, por favor, enca-
recidamente!
"Estou viúva ... - Eu estava viúva ... - mas sim,
DELíRIOS fui bem respeitável antigamente, e não nasci para tor-
nar-me um esqueleto! ... - Ele era quase uma crian-
I ça
"
... Suas misteriosas
'
delicadezas tinham-me seduzido.
Esqueci todos os meus deveres humanos para segui-lo.
VIRGEM LOUCA Que vida! A verdadeira vida está ausente. Não estamos
no mundo. Vou para onde ele vai, é preciso. E muitas
o esposo infernal vezes eu, a pobre alma, sofro a investida da cólera que
ele lança contra mim. O Demônio! - É um demônio,
sabeis, não é um homem.
Ouçamos a Confissão de um companheiro de in-
femo:
"Ele disse: "Não amo as mulheres: é notório que
- rec useis a did
con- o amor está para ser reinventado. Tudo o que elas po-
"ó divino Esposo, meu Senhor, nao dem querer é uma situação segura. A posição alcança-
. -o da mais triste de vossas servas. Estou per a.
fissa ºd 1 da, coração e beleza são postos de lado: só resta hoje
Estou bêbeda. Estou impura. Que VI a. o frio desdém, o alimento da vida conjugal. Então vejo,
"Perdão divino Senhor, perdão! Ah! perdã~. Quan- desde o primeiro instante devoradas por brutos sensí-
tas lágrima;! E mais tarde, quantas lágrimas amda, es- veis como fogueiras, mulheres dotadas do signo da feli-
cidade, e das quais eu poderia fazer boas camaradas ... "
pero!
"Mais tarde, conhecerei o divino Espos?! Nasci ~ub­ "Eu o escuto fazendo da infância uma glória, da
missa a Ele. - O outro pode bater em nnm agora. crueldade um encanto. "Sou de uma raça longínqua:
meus pais eram escandinavos: eles se trespassavam as
"Atualmente, estou no fundo do .mundo! ó~~~~ costas, bebiam o próprio sangue. - Farei incisões por
. ' não não sois minhas amigas ... Jamais todo o corpo, tatuar-me-ei, quero tornar-me horroroso
armgas · · · · ' Q t idez 1
lírios ou torturas semelhantes . . . ue es up · como um Mongol: verás, uivarei pelas ruas. Quero tor-
"Ah' sofro, grito. Sofro realmente. Entretanto, tu~o nar-me louco de raiva. Jamais me mostres jóias, eu me
me é pe~mitido, a mim que carrego o desprezo dos mais arrastaria. pelo chão e me contorceria sobre o tapete.
Minha riqueza, eu a quereria toda manchada de san-
desprezíveis corações.
gue. Jamais trabalharei ... " Várias noites, seu demônio
"Enfim façamos esta confidência, que posso repe- agarrando-me, rolávamos juntos, eu lutava com ele!
tir vinte ve~es mais - tão morna e insignificante é ela!
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Mas que queria ele com a mínha existência descorada
Muitas vezes, à noíte, ele se posta, bêbedo, nas ruas ~u e covarde? Não a tomaria melhor para mím, a menos
nas casas, para assustar-me mortalmente. - "Torce~ao que me fizesse morrer! Tristemente despeitada, disse-
realmente meu pescoço; será "repelente". Oh! esses dias Jhe algumas vezes: "Eu te compreendo". Ele encolhia
em que ele quer andar ostentando um ar crimínoso! os ombros.

"As vezes ele fala, numa espécie de gíria suavizada, "Assim, mínha aflição renovando-se sem cessar, e
da morte que traz o arrependimento, dos infelizes _que achando-me mais conturbada diante de meus próprios
realmente existem, dos trabalhos penosos, das partidas olhos - como ante o olhar de todos quantos tivessem
que despedaçam os corações. Nas tavernas onde nos em- desejado fixar-me, não estivesse eu para sempre conde-
bebedávamos, ele chorava, considerando aqueles que nos nada ao esquecimento de todos! - eu tinha cada vez
rodeavam, míserável rebanho. Nas ruas negras, ele le- mais fome de sua bondade. Com seus beijos e abraços
vantava do chão os bêbedos. Possuía a piedade de uma amigos, era sem dúvida num céu, num céu sombrio, que
mãe perversa pelos seus filhinhos. - Era gracioso como eu entrava, e onde desejaria ser deixada, pobre, surda,
uma garota de catecismo. - Fingia andar. informado muda, cega. Já estava ficando habituada a isto. Eu nos
v~a como a duas boas crianças, às quais se dera permis-
a respeito de tudo, comércio, arte, medicina ..Eu o seguia,
sao de passear no Paraíso da tristeza. Entendíamo-nos
pois era preciso! mutuamente. Emocionados, trabalhávamos juntos. Con-
"Eu via todo o cenário de que ele mentalmente se tudo, após uma penetrante carícia, ele dizia: "Como
cercava: roupas, lençóis, móveis; emprestava-lhe armas, .acharás estranho tudo por que passaste, quando eu não
e um outro aspecto. Eu via tudo o que lhe chamava a estiver mais aqui. Quando não tiveres mais meus braços
atenção, como ele teria querido criar para si mesmo. sob tua nuca, nem meu peito para repousares nele, nem
Quando ele me parecia estar com o espírito inerte, eu esta boca sobre teus olhos. Pois será preciso que eu parta
um dia, para muito longe. Além do mais é preciso qu~
0 seguia, eu, nas ações estranhas e complicadas, longe,
boas ou más; estava convicta de jamais penetrar em seu eu ajude os, outros: é meu dever. Embora isto não seja
mundo. Junto ao seu querido corpo adormecido, quan- nada agradavel. . ., cara alma ... " Imediatamente eu me
tas noites passei acordada, querendo saber porque ele imaginava, ele tendo partido, presa de vertigem, precipi-
tada na sombra mais terrível: a morte. Fazia-lhe prome-
queria tanto evadir-se da realidade. Jamais um homem
ter-me que não me abandonaria. Esta promessa de aman-
teve semelhante desejo. Eu reconhecia, - sem temer te, ele a fez vinte vezes a mím. Era tão frívola quanto
por ele, - que podia ser um sério perigo para a socie- minha frase que lhe dizia: "Eu te compreendo".
dade. - Ele tem, talvez, segredos para mudar a vida?
Não, só faz procurá-los, replicava eu. Enfim, sua cari- "Ah! jamais senti ciúmes dele. Não me deixará creio.
dade é enfeitiçada, e sou a prisioneira dela. Nenhuma Tomar-se o quê? Não tem uma relação; não trabalha-
outra alma teria bastante força, - força de desespero! rá jamais. Quer viver como um sonâmbulo. Sua bon-
- para suportá-la, - para ser protegida e amada por dade e sua caridade, sozinhas, dar-lhe-iam direitos no
ele. - Aliás, eu não o imaginava com outra alma: ve- mundo real? Por instantes, esqueço o estado miserável
mos nosso Anjo, nunca o Anjo dos outros, - creio. Eu em que caí: ele me tomará forte, viajaremos, caçaremos
estava em sua alma como num palácio que esvaziaram nos desertos, dormiremos nas calçadas das cidades des-
para que não se visse uma pessoa tão pouco nobre quan- conhecidas, sem preocupações ou cuidados. Ou desper-
to nós: eis tudo. Ai de mim! dependia bastante dele.
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tarei, e as leis e os costumes terão mudado, - graças ao
seu poder mágico, - o mundo, continuando o mesmo,
me deixará entregue aos meus desejos, alegrias, desma-
zelas. Oh! a vida de aventuras que existe nos livros in-
fantis, será ela uma dádiva tua, uma recompensa pelo
muito que sofri? Ele não pode dá-la. Ignoro seu ideal.
Disse-me ter queixas, esperanças: isto não deve relacio-
nar-se comigo. Será que ele fala a Deus? Talvez eu de-
vesse dirigir-me a Deus. Estou no mais profundo do abis-
mo, e não sei mais rezar. DELíRIOS
"Se ele me explicasse suas tristezas, eu as com-
preenderia mais que suas zombarias? Ele me ataca, passa
horas fazendo-me ter vergonha de tudo quanto me emo-
ciona neste mundo, e fica indignado se choro. ALQUIMIA DO VERBO
"-Vês este elegante rapaz, entrando na bela e cal-
ma residência: chama-se Duval, Dufour, Armando, Mau- A mim. A história de uma de nu"nhas 1oucuras.
rfo;io, que sei eu? Uma mulher dedicou-se a amar esse
perverso idiota: morreu, agora é certamente uma santa Há m~to tempo que eu me vangloriava de ossuir
no céu. Tu me farás morrer como ele fez morrer aquela ;o~:sdas pais~gens possíveis, e achava ridículas ~ cele-
n a es da pmtura e da poesia modernas.
mulher. É nosso destino, de nós que somos corações ca-
ridosos ... " Ai de mim! Havia dias em que todos os ho-
mens em atividade lhe pareciam os títeres de delírios
grotescos; durante muito tempo ele ria horrivelmente.
Eu amava as pinturas idiotas estof
cenários, lonas de saltimbancos tabuletas os ie ..
portais,
!ºri~as populares; a literatura 'forà de zdo~aª~~~s ~-
- Depois, voltava às suas atitudes de jovem mãe, de 1greJa, yvros eróticos sem ortografia roman ' d m e
irmã amada. Se fosse menos selvagem, estaríamos sal- sas avos,. c?ntos de fadas, livrinhos fnfantis c~s e _nos-
vos! Mas sua doçura também é mortal. Estou subme- lhas, estnb1lhos piegas, ritmos ingênuos. ' operas ve-
tida a ele. - Ah! estou louca!
. Eu soni:ava_ com cruzadas, viagens de descoberta
"Um dia, talvez, ele desaparecerá maravilhosamen- C~J_as narraçoes JªI?~is foram feitas, repúblicas sem his-
te; mas é preciso que eu saiba, se ele deve subir a um tonas, guerras relig10sas sufocadas, revoluções de cos-
céu, que eu veja algo da assunção de meu amiguinho!" t~es, deslocamentos de raças e de continentes. eu acre
Que estranho casal! ditava em todos os encantamentos. · -
Inventei a cor das vogais! - A negro E branco l
vermelho, A azul, U verde. - Regulei a fo~a e o mo~­
mento de cada consoante e, com ritmos instintivos nutri
~- esperan,ça de inventar um verbo poético que serta um
rndac~ss1vel a todos os sentidos. Eu me reservava sua
t ra uçao.

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63
escrevia silêncios, Deves, Vênus, abandoná-los,
imples est u d o. Eu Os teus coroados Amores,
Foi, antes, s. . , el Fixava vertigens. Por esses bons trabalhadores,
noites, anotava o mexpnnuv .
De um rei babilônio vassalos.
*
* * Banho de mar ao meio-dia
a estava eu bem distante Vão tomar os trabalhadores.
De joelhos na charnec ' ~ideãs Que bebia Dá-lhes, Rainha dos Pastores,
,
Dos passaros, rebanhos e ecw. de aveleiras
• .
be1as, Dessa aguardente que alivia.
No rio envolto em bO~~~i: após 0 meio-dia?
E em névoa morna e i *
te Q"se rio infante, * *
Que podia eu ~e:r :i:os se~ 'voz, céu nublado - A poética fora de moda desempenhava um bom pa-
- Relv~:~d:r n~s cabaças amarelas, pel em minha alquimia do verbo.
Longe 'd algum licor dourado. Habituei-me à alucinação simples: via realmente
A fonte de suor e
a a ·oe1hado. uma l]lesquita no lugar de uma fábrica, uma escola de
1 de albergue eu lemb rav , 3 tambores feita por anjos, carruagens nas estradas do
Torta P aca e'ul A-nós escurecer céu, u~~_1)Jií,_Q._I10 fundo de um lago; os monstros, os mis-
- T empestade no, c · dosr-bOsques se perdia. térios; um título de comédia musical suscitava terrores
Na areia pura a Dagua nos charcos esparzia. diante de mim.
Gelo o vento de eus
. _e não pude beber. Depois expliquei meus sofismas mágicos com a alu-
Chorando, eu via o ouro cinação das palavras! · -
* Terminei achando sagrada a desordem de meu es-
* * pírito. Eu era um ocioso, presa de incômoda febre: in-
t da manhã estival. . vejava a felicidade dos animais, - as lagartas, que re-
Qua ro de amor permanece. ! presentam a inocência dos limbos, as toupeiras, o sono
o sono da virgindade!
Nos arbustos desapar~e
0 perfume do festival. Meu caráter tornava-se azedo. Eu dizia adeus ao
mundo, em certos tipos de romances:
Ao sol das Hespérides v~
os carpinteiros, na ro~u:ia CANÇÃO DA TORRE MAIS ALTA
D distante e vasta oficina. -
a Em mangas de camisa estão. Venha, venha o tempo
Que nos enamora.
Calma e rugosa solidão .
ndo os prec10sos De pacientar tanto /
É a deles, f aze . céus fantasiosos
Lambris, nos qua~ Para sempre esqueço.
Os citadinos fitarao.
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J
'
i

Temores e dores
Aos céus já se foram. Voltai, minhas fomes P .
N0 · asta1
E a sede malsã prado dos sons
A trai o alegre ·
Me obscurece as veias.
Venha, venha o tempo Veneno das câmpanuias.
Que nos enamora. Come1· os seixos quebradi
As velhas pedras d 9os,
as e.rmidas·
Assim a campina 0 ~ ca1haus dos velhos dil , . ' /
Entregue ao olvido,
Extensa, florida, Paes Vindos dos vales esc~;~~~;:>
De incenso e de joios,
Ao zumbir sinistro
*
* *
Das moscas imundas.
Uiva. o lobo nas folhagens
Venha, venha o tempo ~uspmdo belas plumagens
Que nos enamora. e aves fora seu repasto· .
Tal como ele ass1·m .
1' ' me gasto.
Amei o deserto, os pomares abrasados, as lojas de- Os legumes, as frutas
cadentes, as bebidas tépidas. Eu me arrastava pelos be- Esperam só a colheita'
cos fedorentos e, de olhos fechados, me oferecia ao sol, E, a aranha do tapum~
deus de fogo. So come violetas.
"General, se ainda há um velho canhão nos teus· É preciso que eu durma f
baluartes destroçados, bombardeia-nos com blocos de Nos altares de Salomão e erva
terra seca. Investe contra as vitrinas das lojas resplan-
decentes! contra os salões! Faze com que a cidade coma
Corre a fervura na fem
E se mistura ao rio Cedr_gem,
sua própria poeira. Enferruja as torneiras. Enche os tou- ªº·
cadores de ardente poeira de rubis ... " Enfim, ó felicidade ó razão
azul, que é negro, e vi~i d ' eu separava do céu o
Oh! a mosca embriagada no mictório da taverna, turaz. Cheio de alegria ~u ouract~ centelha de luz na-
apaixonada pela borragem, e dissolvida por um raio de burlesca e alucinad ' assum!a uma expressão t-
a quanto poss1ve1: ao
sol! 'y

/ Ela, a Eternidade
FOME Foi reencontrada.'
É 0 mar misturado
Só me agrada almoçar Ao sol.
Comendo pedra e chão. Cumpre tua jura
Apetec&µ-me o ar, A!ma, eternamente
Rocha, ferro, carvão. V~va, seja o ardente
Dia ou a noite pura.
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Ficas livre, então,
De humanos aipoios, um caminho de perigos minha f
Entusiasmos vãos! confins do mundo e da Ci , . r~q~eza me levava aos
turbilhões. mena, patna da sombra e dos
E voas segundo ...
Jamais a esperança . Tive de viajar, para distrair
mdos no cérebro Sob os encantamentos
E jamais orietur. re o mar que am
1avar-me de uma· mancha avilt . ava como se fosse
Ciência e paciência, consoladora. Eu tinha sido ante; via erguer-se a cruz
O suplício é certo.
A Felicidade era minha fat ~~a~diçoado pelo arco-íris.
Nem dia seguinte, verme; minha vida seri a a e, meu remorso, meu
Brasas de cetim, sa para ser dedicada à af sempr~ demasiadamente imen-
. orça e a beleza
Que vossa paixão A Felicidade 1 Seu d t , ·
É obrigação. ao canto do ga.Io. - ad ~ae, d?ce a morte, advertia-me
- nas mais sombrias cidadt~~mum, no Christus venit_,
Foi reencontrada!
- Que? - a Eternidade.
É o mar misturado ó castelos, ó tempos 1
Ao sol. Qual ª alma sem defeitos?
)(

Eu ~iz. 0 mágico estudo


* Da llllludível ventura.
* *
Tornei-me uma ópera fabulosa: vi que todas as cria- Saudemo-la, toda vez
turas têm uma fatalidade de felicidade: a ação não é Que cante 0 galo gaulês.
a vida, mas uma maneira de dissipar alguma força, um
Ah ·1 não te· rei· mais
· desejos:
depauperamento. A moral é a fraqueza do cérebro.
Pus em suas mãos minha vida.
Parecia-me ter direito a várias outras vidas, em cada
criatura. Este cavalheiro não sabe o que está fazendo: Tomou esse encanto alma e
é um anjo. Esta família é uma ninhada de cães. Düµ1te E os esforços dispersou. corpo
de vários homens, durante um momento conversei em
voz alta com uma de suas outras vidas. - Assim, amei ó castelos, ó tempos!
um porco.
Qu~do se for, ai de mim,
Nenhum dos sofismas da loucura, - a loucura que Sera a hora de meu fim..
leva ao hospício, - ficou esquecido por mim: eu pode-
ria repeti-los todos, tenho o sistema. ó castelos, ó tempos 1
Minha saúde ficou ameaçada. Surgia o terror. Pas-
sava dormindo vários dias e, acordado, continuava os *
mais tristes sonhos. Estava maduro para a morte, e por * *
Isto passou. Sei hoje saudar a beleza.
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Tendo recobrado dois vinténs de razão - isto pas-
sa depressa! - vejo que meus incômodos decorrem de
não me ter apercebido bastante cedo de que estamos no
Ocidente. Os pântanos ocidentais! Não que eu creia es-
tar a luz alterada, extenuada a forma, desviado o mo-
vimento. . . Bom! eis que meu espírito quer realmente
encarregar-se de todos os desenvolvimentos cruéis que
o espírito experimentou desde o fim do Oriente ... É o
que ele pretende, meu espírito!
o IMPOSSÍVEL ... Meus dois vinténs de razão acabaram! - O es-
pírito é autoridade, quer que eu esteja no Ocidente. Seria
. h 1·nfância a grande estrada preciso fazê-lo. silenciar para concluir como eu gostaria.
Ah! esta vida de mm
d
ª t ~i...'..·ente sóbrio mais
s tempos sobrena ur(:'4,.U.u ' Eu mandava para o diabo as palmas dos mártires,
para to os o ' lh dos mendigos orgulhoso de
desinteressado que 0 me or. que tolic~ era! - E só os raios da arte, o orgulho dos inventores, o ardor dos
não ter nem pátria nem amigos, saqueadores; retornava ao Oriente e à sabedoria primeira
agora observo isso! e eterna. - Parece que é um sonho de grosseria indo-
_ esses homenzinhos qu.e lência!
- Tive razao em des:p~e~r de uma carícia, paras1-
não perderiam a oport_udm d~ ~assas mulheres, hoje que Contudo, eu não pensava absolutamente no prazer
tas da limpeza e da sau e - de escapar aos sofrimentos modernos. Não tinha em
tão pouco de acordo conosco elas estao. vista a sabedoria bastarda do Alcorão. - Mas não é um
d d'ns· pois estou suplício real que, desde essa declaração da ciência, o
Tive razão em todos os meus es e .
cristianismo, o homem se divirta, exiba as evidências,
me evadindo! se encha do prazer de repetir essas provas, e não viva
senão assim? Tortura sutil, piegas; fonte de minhas di-
Evado-me!
vagações espirituais. A natureza poderia aborrecer-se,
Explico-me. talvez! O senhor Prudhomme (*) nasceu com o Cristo.
. . "Céu' somos bastante
Ainda ontem eu suspirava. · · .á tenho tanto Não é porque cultivamos a bruma! Ingerimos a
. b 1·xo' Quanto a mim, 3
malditos aqm em ª ·
d 1 conheço-os a
todos Reconhecemo-
·
febre com os nossos legumes aquosos. E a embriaguez!
tempo neste b an o. . dos outros. Desconhece- e o fumo! e a ign9rância ! e as devoções! - Tudo isto
nos sempre: e temos ~OJO uns polidos· nossas relações
mos a caridade. _Todavia, somt~,, Ach~ surpreendente? (*) Alusão a um tipo de pequeno burguês nulo e b81Ilal que se ex-
com o mundo sao bei:i corr7 .in ênuos ! - Não esta- prime através de uma linguagem solene, repleta de lugares-
A sociedade! os negociantes ..ºtss cgomo nos receberiam? comuns, e ostentando sempre um alto juízo de si mesmo. Criado
Mas os e1e1 o , . literariamente por Henry Monnier, em Scenes populaires (1830)
mos d esonrad os~ l - falsos eleitos, assim e no Mémoires àe Joseph Pruàhomme (1857), exaustivamente
, rabuJentas e fo gazas, , 1
Ha pessoas , . humildade para aborda- os. caricaturado e glosado, é tão familiar à vida francesa como o
precisamos de audac1as -ou - bençoam ! nosso Conselheiro Acácio, que tanto se lhe assemelha.
são os únicos eleitos. Nao sao os que ª
71
70
se acha bastante longe do pensamento, da sabedoria do
Oriente, da pátria primitiva? Por que um mundo mo-
derno, se venenos semelhantes podem ser inventados?
Os fiéis da Igreja dirão: Compreendemos. Mas que-
reis falar do Paraíso. Nada existe para vós na história
dos povos orientais. - É verdade; é no Paraíso que eu
pensava! O que esta pureza das raças antigas significa
para o meu sonho! O RELÂMPAGO
Os filósofos: O mundo não tem idade. A humani-
dade se desloca, simplesmente. Estais no Ocidente, mas
sois livres de habitar no vosso Oriente, tão antigo quan- O tr'.1ba~o .humano! é a explosão
quando, llumma meu abismo. que, de vez em
to queirais que ele o seja, - e morar nele confortavel-
mente. Não sejais um vencido. Filósofos, sois de vosso "Nada é vaidadA; rumo à ciência
Ocidente. · clama o moderno Eclesiastes, isto é T~ e para a frente!"
tudo os cadáveres do . ' do mundo. E con-
Meu espírito, toma cuidado. Nada de meios de sal- - s maus e oc10sos caem b
çao dos outros. . . Ah 1 d , . so re o cora-
vação violentos. Exercita-te! - Ah! a ciência não pro- baixo além da noite. epressa, mais depressa; lá em-
gride bastante para nós. ' · , essas recompensas fut te
nas. . . escaparemos delas? uras, e r-
- Mas me apercebo de que meu espírito dorme.
Se ele estivesse sempre desperto a partir daquele eia é- muito
Que posso
lenta fazer?
Q . Conhe_ ço o t rabalho; e a ciên-
momento, cedo atingiríamos a verdade, que talvez nos atroa ... eu ve:o b~e ?raç3:o an.da a galope e a luz
ª
calor; não precidarão ~·e E ~to sj1mples; e faz muito
0
rodeia com os seus anjos chorando! ... - Se tivesse fi-
cado acordado até este momento, eu não teria cedido obrigação· como vá . rm a a uda. Tenho minha
aos instintos deletérios, a uma época imemorial! ... la de lad~. nos outros, eu me orgulharei em pô-
- Se ele sempre tivesse ficado desperto, eu vogaria
Minha vida está gasta. Vamos' fin·
em plena sabedoria! ... mos os vadios ó piedade' E e . t· . Ja~r10s, banque-
sonhando a ' . xis iremos divertindo-nos
ô pureza! pureza! mentando-n~~r:sc~n°s:~doosos, univer~os.
.
fantásticos,
as aparenc1as do
la~
d
Foi este minuto de vigília que me deu a visão da saltimbanco, mendigo artista band"d mun o,
pureza! - O espírito conduz a Deus! meu leito de hospital' o cheir~ d . I o, - padre! No
rosamente: guardião' dos e mcenso voltou pode-
Dilacerante infortúnio! mártir. . . aromas sagrados, confessor,

Reconheço ali a só did d


infância. Depols ~ quê' r ªAte ucação que recebi na
' ·· · · ravessar os meu · t
anos, se os outros vão atravessar os seus ... s vm e

73
72
Não! não! agora eu me revolto contra a morte! ~
trabalho parece demasiado leve para ,º.meu -~rgulh~.
minha traição ao mundo seria um supllcw mm 0 ~u~ta·
No derradeiro momento, eu investiria para a direi '
para a esquerda ...
Então, - oh! - cara e pobre alma, a eternidade
estaria perdida para nós!
MANHÃ

Não tive eu uma vez uma juventude amável, he-


róica, fabulosa, para ser escrita· em folhas de ouro, -
sorte a valer! Por que crime, por que erro, mereci a
fraqueza atual? Vós que achais que animais dão soluços
de dor, que doentes desesperam, que mortos têm pesa-
delos, tratai de narrar minha queda e meu sono. Quan-
to a mim, posso explicar-me tanto quanto o mendigo
com os seus contínuos Pater e Ave Maria. Não sei mais
falar!
Contudo, creio ter terminado hoje a narração de
minha temporada no inferno. Era realmente o inferno:
o antigo, aquele cujas portas o filho do homem abriu.
No mesmo deserto, à mesma noite, meus olhos can-
sados sempre despertam sob a estrela de prata, sempre,
sem que se emocionem os Reis da vida, os três magos, o
coração, a alma, o espírito. Quando iremos, além das
praias e dos montes, saudar o nascimento do trabalho
novo, a sabedoria nova, a fuga dos tiranos e dos demô·-
nios, o fim da superstição, adorar - os primeiros! -
os primeiros! - o Natal sobre a terra?
O canto dos céus, a marcha dos povos! Escravos,
não amaldiçoemos a vida.

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74
Eu! eu que me considerei mago ou · .
qualquer moral voltei ao h- an10, isento de
b . , c ao, com um dever a cumprir
e o ngado a abraçar a áspera realidade!. Campones! A

. Ser~ que estou enganado? ·


mim, a irmã da morte? a candade seria, para

Enfim, pedirei perdão por me ter alimentado


mentira. E vamos embora. de
ADEUS
Nenhuma mão amiga porém! e onde encontrar o
socorro? '
Já é o outono! - Mas por que ter saudades de um
eterno sol, se estamos empenhados na descoberta da cla-
ridade divina, - longe das criaturas que morrem sobre
as estações? *
* *
Outono. Nossa barca vogante nas brumas imóveis
ruma para o porto da miséria, a cidade enorme do céu
manchado de fogo e de lama. Ah! os andrajos apodre- Sim, a hora nova é pelo menos muito severa.
cidos, o pão ensopado de chuva, a embriaguez, os mil Pois posso dizer que conquistei a vitória.
amores que me crucificaram! Ela não deixará nunca de
existir, essa vampiro que é a rainha de milhões de almas d~ de~tes, os silvos de fogo, os suspiros pestil~;:;g:~
a rfl;n .am. Desfazem-se todas as lembran as im
e de corpos mortos e que serão julgados! Revejo-me, a As ultimas queixas se afastam de mim ç . ~das.
mendigos, dos salteadores, dos amigos d~ mo~;eJ~ ~s
pele roída pela lama e pela peste, os cabelos e as axilas
cheios de vermes, e ainda por cima um gordo verme no
coração, estendido entre os desconhecidos sem idade, sem
sentimento. . . Eu poderia ter morrido lá. . . A terrível
dos aqueles_ que foram passados para trás. -
se eu me vingasse!
M
a i os,
l:t -
evocação! Execro a miséria. Devemos ser totalmente modernos.
E temo o inverno porque é a estação do conforto l
. r~da de cânti~os: não arredar o pé do terreno con-
- Algumas vezes vejo, no céu, praias infinitas co- qms a o. Dura noite! o sangue ressequido fume a no
bertas de brancas nações em júbilo. Um grande navio meu rosto, e nada tenho atrás de mim - g
horror b t a nao ser este
de ouro, acima de mim, agita suas bandeiras multicores toso ar uso!··· O combate espiritual é tão brutal
ao sabor das brisas matinais. Criei todas as festas, to- {.uan, o a batalh~ entre os homens; mas a visão da Jus-
dos os triunfos, todos os dramas. Tentei inventar novas iça e o prazer so de Deus.
flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Pensei
ter adquirido poderes sobrenaturais. Muito bem! devo d .Entretanto , é a v1g1 · 'li a. R ecebamos todos os iní1uxos
enterrar minha imaginação e minhas lembranças! Uma e v1dgor e de ternura real. E, ao romper da aurora arrna-
d os e uma grande ·A • '

bela glória de artista e de narrador destruída! didas cidades. pac1enc1a, entraremos nas esplên-
76
77
Falava a respeito de uma mão amiga? Já é uma
grande vantagem que eu possa rir dos velhos amores
ilusórios, e fazer com que se envergonhem esses casais
mentirosos, - vi o inferno das mulheres, lá embaixo; -
e me será permitido possuir a verdade em uma alma e
um corpo.

Abril-agosto 1873.

lLUMINAÇÕES
PAINTED PLATES

í8

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