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LB III (Romantismo) – Prof.

Vagner Camilo

LUÍS GAMA

1) Na tradição da sátira ibérica, a que se filiou a brasileira, desde a época


colonial, a questão da origem racial constituiu uma tópica: o topos de nação
(natio), que podia vir associado ao topos de origem (genus), relacionado à
extração social do tipo satirizado. Foi o que demonstrou João Adolfo Hansen (A
sátira e o engenho) a propósito da poesia de Gregório de Matos (que forneceu
muitas das epígrafes das Primeiras Trovas Burlescas, de Luís Gama, vulgo
Getulino). Enquanto topos, os termos negro e mulato, que nada tinham de
necessariamente referenciais, podendo ser aplicados a brancos, como
desqualificação e insulto, eram sinônimos de bestialidade.
Já em Luís Gama, a questão da origem racial parece ser tratada de modo muito
distinto, no que diz respeito ao alvo e à razão da investida satírica. É o que se
observa, por exemplo, em poemas satíricos intitulados “Soneto” e “Quem sou
eu?” reproduzidos, a seguir.

2) A indagação presente desde o título do famoso poema satírico de nosso Orfeu


de Carapinha pode ser relacionada a uma das questões ou preocupações centrais
do Romantismo brasileiro, que encontraria desdobramentos posteriores,
sobretudo no Modernismo. Atente-se ao sentido da generalização da
“bodorrada”1 presente na sátira de Luís Gama, vulgo Getulino.

A BODARRADA [QUEM SOU EU?] Crocodilos disfarçados, Na suprema eternidade,


Que se fazem muito honrados Onde habita a Divindade,
Quem sou eu? Que importa quem? Mas que, tendo ocasião, Bodes há santificados,
Sou um trovador proscrito, São mais feros que o Leão Que por nós são adorados.
Que trago na fronte escrito
esta palavra "Ninguém!" Fujo ao cego lisonjeiro, Entre o coro dos Anjinhos
A.E. Zaluar - "Dores e Flores" Que, qual ramo de salgueiro, Também há muitos bodinhos.
Maleável, sem firmeza O amante de Siringa
Amo o pobre, deixo o rico, Vive à lei da natureza Tinha pêlo e má catinga;
Vivo como Tico-tico; Que, conforme sopra o vento, O deus Mendes, pelas costas,
Não me envolvo em torvelinho, Dá mil voltas, num momento Na cabeça tinha pontas;
Vivo só no meu cantinho; O que sou, e como penso, Jove, quando foi menino,
Da grandeza sempre longe Aqui vai com todo o senso, Chupitou leite caprino;
Como vive o pobre monge. Posto que já veja irados E segundo o antigo mito
Tenho mui poucos amigos, Muitos lorpas enfunados Também Fauno foi cabrito.
Porém bons, que são antigos, Vomitando maldições, Nos domínios de Plutão,
Fujo sempre à hipocrisia, Contra as minhas reflexões. Guarda um bode o Alcorão;
À sandice, à fidalguia; Eu bem sei que sou qual grilo, Nos lundus e nas modinhas

1 Dentre os sentidos pejorativos do termo “bode”, Antônio Houaiss registra:


5 (1899) Regionalismo: Brasil. Uso: pejorativo. Diacronismo: obsoleto: “mestiço de preto com branco; mulato,
cabra”;
5.1. Derivação: por extensão de sentido. Regionalismo: Brasil. Uso: pejorativo: “indivíduo cujos pais são de
raças diferentes”;
6. Derivação: por analogia (da acp. 1). Uso: informal, pejorativo: “pessoa que cheira mal”.
Das manadas de Barões? De maçante e mau estilo; São cantadas as bodinhas:
Anjo Bento, antes trovões. E que os homens poderosos Pois se todos têm rabicho,
Faço versos, não sou vate, Desta arenga receosos Para que tanto capricho?
Digo muito disparate, Hão de chamar-me tarelo Haja paz, haja alegria,
Mas só rendo obediência Bode, negro, Mongibelo; Folgue e brinque a bodaria;
À virtude, à inteligência: Porém eu que não me abalo Cesse pois a matinada,
Eis aqui o Getulino Vou tangendo o meu badalo Porque tudo é bodarrada!
Que no pletro anda mofino. Com repique impertinente,
Sei que é louco e que é pateta Pondo a trote muita gente.
Quem se mete a ser poeta; Se negro sou, ou sou bode
SONETO
Que no século das luzes, Pouco importa. O que isto pode?
Os birbantes mais lapuzes, Bodes há de toda casta MOTE
Compram negros e comendas, Pois que a espécie é muito vasta...
Têm brasões, não - das calendas; Há cinzentos, há rajados, E NÃO PÔDE NEGAR SER MEU PARENTE!
E com tretas e com furtos Baios, pampas e malhados,
Vão subindo a passos curtos; Bodes negros, bodes brancos,
Fazem grossa pepineira, E, sejamos todos francos, Sou nobre, e de linhagem sublimada,
Só pela arte do Vieira, Uns plebeus e outros nobres. Descendo, em linha reta, dos Pegados,
E com jeito e proteções. Bodes ricos, bodes pobres, Cuja lança feroz desbaratados
Galgam altas posições! Bodes sábios importantes, Fez tremer os guerreiros da Cruzada!
Mas eu sempre vigiando E também alguns tratantes...
Nessa súcia vou malhando Aqui, nesta boa terra, Minha mãe, que é de proa alcantilada,
De tratante, bem ou mal, Marram todos, tudo berra; Vem da raça dos Reis mais afamados;
Com semblante festival Nobres, Condes e Duquesas, – Blasonara entre um bando de pasmados.
Dou de rijo no pedante Ricas Damas e Marquesas Certo povo de casta amorenada.
De pílulas fabricante Deputados, senadores,
Que blasona arte divina Gentis-homens, vereadores; Eis que brada um peralta retumbante;
– “Teu avô, que de cor era latente,
Com sulfatos de quinina Belas damas emproadas
“Teve um neto mulato e mui pedante!”
Trabuzanas, xaropadas, De nobreza empantufadas;
E mil outras patacoadas. Repimpados principotes, Irrita-se o fidalgo qual demente,
Que, sem pingo de rubor Orgulhosos fidalgotes, Trescala a vil catinga nauseante,
Diz a todos que é DOUTOR! Frades, Bispos, Cardeais, E não pôde negar ser meu parente!
Não tolero o magistrado, Fanfarrões imperiais,
Que do brio descuidado, Gentes pobres, nobres gentes
Vende a lei, trai a justiça Em todos há meus parentes.
- Faz a todos injustiça - Entre a brava militança
Com rigor deprime o pobre Fulge e brilha alta bodança;
Presta abrigo ao rico, ao nobre, Guardas, Cabos, Furriéis
E só acha horrendo crime Brigadeiros, Coronéis
No mendigo, que deprime. Destemidos Marechais,
- Neste dou com dupla força, Rutilantes Generais,
Té que a manha perca ou torça. Capitães de mar-e-guerra
Fujo às léguas do lojista, - Tudo marra, tudo berra -
Do beato e do sacrista -
Termos de época/Referências em “Quem sou eu?"
 Bodorrada: Dentre os sentidos pejorativos do termo “bode”, Antônio Houaiss registra: 5 (1899) Regionalismo: Brasil.
Uso: pejorativo. Diacronismo: obsoleto: “mestiço de preto com branco; mulato, cabra”;5.1. Derivação: por
extensão de sentido. Regionalismo: Brasil. Uso: pejorativo: “indivíduo cujos pais são de raças diferentes”; 6.
Derivação: por analogia (da acp. 1). Uso: informal, pejorativo: “pessoa que cheira mal”.
 Torvelinho = redemoinho (corrupção);
 Pletro = 30 metros: medida (poética)? (pleito? = discussão, defesa ponto de vista)
 Mofino = que não demonstra alegria; infeliz, desafortunado
 Birbantes = vadio, vagabundo
 Lapuzes = grosseiros, ordinários
 Calendas = no antigo calendário romano, primeiro dia de cada mês; dia que jamais chegará; us. em port. no
provérbio ficar para as calendas gregas 'nunca, em tempo algum', do lat. ad calendas graecas (Suetônio, c69-
c128) 'id.', porque os gregos não tinham calendas'.
 Tretas = ação que se vale de astúcia; ardil, estratagema, manha; palavreado para iludir,enganar
 Pepineira = fonte fácil de lucros, de compensações; mamata.
 Arte do Vieira = Enganar;
 Súcia = reunião de indivíduos de má índole ou de má fama; malta, bando
 Trabuzanas = bebedeiras, desordem, melancolia, maçada
 Lorpa = imbecil, idiota, palerma, boçal; ingênuo, simplório, rústico
 Enfunado = estufado, inflado.
 Grilo = pessoa aborrecida, sujeito intratável, amolante
 Arenga = discussão alterada; discurso cansativo, fastidioso
 Tarelo = tagarela
 Mongibelo = nome cultista com que em italiano designava-se, em italiano, o vulcão Etna.
 Pampas = que tem qualquer parte do corpo de cor diferente daquela predominante (diz-se de cavalo); pampo; que
tem cara branca (diz-se de animal.
 Emproadas = pretensiosas, vaidosas
 Empantufadas = mostrar-se orgulhoso; envaidecer-se, pavonear-se, ensoberbecer-se
 Furriel = graduação militar superior a cabo e inferior a sargento
 Jove = Júpiter
 O amante de Siringa = alusão a Pã. Conta a lenda que deus Pan se enamorou pela ninfa Siringa que passeava
nos bosques dançando e caçando com seu arco e flecha. Um dia Pan perseguiu-a até que o rio Ladón lhe cortou
o caminho. A ninfa vendo-se ameaçada pediu socorro às naíadas que a transformaram numa cana. Pan, muito
desconsolado, verificou que o vento sibilava ao passar pela cana e pensou serem os lamentos da ninfa. Decidiu
cortar a cana e uniu vários pedaços com cera, construindo assim a sua siringa (flauta) para a tocar quando a
paixão e o desejo o possuíam.
 O deus Mendes = A figura emblemática do Bode de Mendes de Eliphas Levi foi uma das primeiras, senão a
primeira, que associou o bode ao ídolo Templário. É muito provável, dada a condição de sacerdote católico do
Abade Alfonse Louis Constant, que a imagem Bíblica do sacrifício do Bode Expiatório tenha lhe servido de
inspiração. O bode no Egito, entretanto, não possuía um significado religioso grande, exceto por este culto
sacrificial, promovido na cidade de Mendes. Daí a denominação escolhida por Levi, o Bode de Mendes.

*Vale mencionar que o bode, do mesmo modo que o carneiro, sempre foi símbolo de fertilidade, de libido e força vital.
Contudo, enquanto o carneiro assume características solares, o bode se relaciona às lunares. Em outras palavras, costuma-
se relacionar carneiros ou cordeiros como símbolos de aspectos considerados “positivos” das divindades, enquanto aos
bodes estariam reservados os “negativos”. Assim, se, àqueles, convencionou-se associar uma imagem de pureza, vida e
santidade, a estes são associados luxúria, sacrifício e perversão. Em ambos os casos, contudo, importa salientar que tanto
o carneiro quanto o bode são claros símbolos de divindades solares, sendo que no primeiro tem-se a exaltação da
divindade, enquanto que no segundo a expiação e morte do deus.
NO CEMITÉRIO DE S. BENEDITO
Da cidade de S. Paulo
Também do escravo a humilde sepultura
Um gemido merece de saudade:
Ah caia sobre ela uma só lágrima
De gratidão ao menos.

DR. BERNARDO GUIMARÃES

Em lúgubre recinto escuro e frio,


Onde reina o silêncio aos mortos dado,
Entre quatro paredes descoradas,
Que o caprichoso luxo não adorna,
Jaz de terra coberto humano corpo,
Que escravo sucumbiu, livre nascendo!
Das hórridas cadeias desprendido,
Que só forjam sacrílegos tiranos,
Dorme o sono feliz da eternidade.

Não cercam a morada lutuosa


Os salgueiros, os fúnebres ciprestes,
Nem lhe guarda os umbrais da sepultura
Pesada laje de espartano mármore,
Somente levantado em quadro negro
Epitáfio se lê, que impõe silêncio!
– Descansam neste lar caliginoso
O mísero cativo, o desgraçado!...

Aqui não vem rasteira a vil lisonja


Os feitos decantar da tirania,
Nem ofuscando a luz da sã verdade
Eleva o crime, perpetua a infâmia.

Aqui não se ergue altar ou trono d’ouro


Ao torpe mercador de carne humana.
Aqui se curva o filho respeitoso
Ante a lousa materna, e o pranto em fio
Cai-lhe dos olhos revelando mudo
A história do passado. Aqui nas sombras
Da funda escuridão do horror eterno,
Dos braços de uma cruz pende o mistério,
Faz-se o cetro bordão, andrajo a túnica,
Mendigo o rei, o potentado escravo!

COLEIRINHO

Assim o escravo agrilhoado canta.


Tíbulo

Canta, canta Coleirinho,


Canta, canta, o mal quebranta;
Canta, afoga mágoa tanta
Nessa voz de dor partida;
Chora, escravo, na gaiola
Terna esposa, o teu filhinho,
Que, sem pai, no agreste ninho,
Lá ficou sem ti, sem vida.

Quando a roxa aurora vinha


Manso e manso, além dos montes,
De ouro orlando os horizontes,
Matizando as crespas vagas,
– Junto ao filho, à meiga esposa
Docemente descantavas,
E na luz do sol banhavas
Finas penas – noutras plagas.

Hoje triste já não trinas,


Como outr’ora nos palmares;
Hoje, escravo, nos solares
Não te embala a dúlia brisa;
Nem se casa aos teus gorjeios
O gemer das gotas alvas
– Pelas negras rochas calvas
– Da cascata que desliza.

Não te beija o filho tenro,


Não te inspira a fonte amena,
Nem dá lua a luz serena
Vem teus ferros pratear.
Só de sombras carregado,
Da gaiola no poleiro
Vem o tredo cativeiro,
Mágoas e prantos acordar.

Canta, canta Coleirinho,


Canta, canta, o mal quebranta;
Canta, afoga mágoa tanta
Nessa voz de dor partida;
Chora, escravo, na gaiola
Terna esposa, o teu filhinho,
Que sem pai, no agreste ninho,
Lá ficou sem ti, sem vida.

[Meus amores são lindos, cor da noite]

Pretidão de amor,
Tão leda a figura
Que a neve lhe jura,
Que mudara a cor.
CAMÕES - Endechas

Meus amores são lindos, cor da noite


Recamada de estrelas rutilantes;
Tão formosa crioula, ou Tétis negra
Tem por olhos dois astros cintilantes.

Em rubentes granadas embutidas


Tem por dentes as pérolas mimosas,
Gotas de orvalho que o inverno gela
Nas breves pétalas de carmínea rosa.

Os braços torneados que alucinam,


Quando os move perluxa com langor.
A boca é roxo lírio abrindo a medo,
Dos lábios se destila o grato olor.

O colo de veludo Vênus bela


Trocara pelo seu, de inveja morta;
Da cintura nos quebros há luxúria
Que a filha de Cineras não suporta.

A cabeça envolvida em núbia trunfa,


Os seios são dois globos a saltar;
A voz traduz lascívia que arrebata,
— É coisa de sentir, não de contar.

Quando a brisa veloz, por entre anáguas


Espaneja as cambraias escondidas,
Deixando ver aos olhos cobiçosos
As lisas pernas de ébano luzidas.

Santo embora, o mortal que a encontra pára;


Da cabeça lhe foge o bento siso;
Nervosa comoção as bragas rompe-lhe,
E fica como Adão no Paraíso.

Meus amores são lindos, cor da noite,


Recamada de estrelas rutilantes;
Tão formosa crioula, ou Tétis negra,
Tem por olhos dois astros cintilantes.

Ao ver no chão tocar seus pés mimosos,


Calçando de cetim alvas chinelas,
Quisera ser a terra em que ela pisa,
Torná-las em colher, comer com elas.

São minguados os séculos para amá-la,


De gigante a estrutura não bastara,
De Marte o coração, alma de Jove,
Que um seu lascivo olhar tudo prostrara.

Se a sorte caprichosa em vento, ao menos,


Me quisesse tornar, depois de morto;
Em bojuda fragata o corpo dela,
As saias em velame, a tumba em porto,

Como os Euros, zunindo dentre os mastros,


Eu quisera açoitar-lhe o pavilhão;
O velacho bolsar, bramir na proa,
Pela popa rojar, feito em tufão.

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Dar cultos à beleza, amor aos peitos,


Sem vida que transponha a eternidade,
Bem que mostra que a sandice estava em voga
Quando Uranos gerou a humanidade.

Mas já que o fato iníquo não consente,


Que amor, além da campa, faça vaza,
Ornemos de Cupido as santas aras,
Tu feita em fogareiro, eu feito em brasa.

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