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NO CIRCO

Avelino Foscolo

[Folhetim da LANTERNA (1) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 213]

I
José de Aquino, meu pai, era o rábula mais atamado de Vila
Rica.

(...)

[Folhetim da LANTERNA (2) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 214]

O homem, pensei comigo em muitos transes agoniosos da vida


em que devia ser forte, mas que atravessara abatido, é filho da
criança. Na virilidade se estampam mais fortemente as avarias
morais da infância e raros… bem raros são os que se libertam dos
vícios adquiridos com uma educação defeituosa.
O pusilânime, criado em mim pela injustiça e a série de
humilhações sem nome, devia crescer e progredir para fazer-me
um covarde sempre, um desgraçado também.

(...)

[Folhetim da LANTERNA (3) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 215]

(...)

[Folhetim da LANTERNA (4) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 216]

(...)

[Folhetim da LANTERNA (5) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 217]

(...)

[Folhetim da LANTERNA (6) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 218]

II
Importava-me bem pouco agora a ameaça de epidemia e morte
voltejando em torno da cidade augusta como dominadora
bruma. Morrer, desaparecer para sempre, como o outro que lá
ficara, me era completamente indiferente naquele momento.
Porque tal apatia, um pessimismo tão agro na mocidade
florente? Seriam saudades de Vila Rica, dos meus, ou, quem
sabe? Despeito angustioso pelo prazer que eu não quisera gozar
e outro para frui-lo mais livremente me desterrara?

A noite dominadora envolvera tudo. Vozes misteriosas,


parecendo falar através das trevas, me chegavam eivadas de
uma amargura intensa. Grilos estridulavam, constantemente, lá
fora; no pátio, o cão prosseguia no seu uivar soturno e o
condutor, deitado a um lado, roncava estrondosamente
expelindo da glote um assobio incômodo. Uma coruja piara no
jataí fronteiro, corpulento e anoso, e gargalhava lugubremente.
Adormeci entorpecido pela melancolia da roça, pela pena
íntima.

A via férrea, abicada três dias depois, após o monótono


peregrinar por campinas e montes imutáveis, não me produziu
sensão alguma estranha; a Corte, de que eu ouvira boquiaberto
contar maravilhas, não acordou em mim surpresa nem
admiração: eu vinha bestificado por uma coisa que não era
verdadeiramente saudade, um sentimento indefinível,
participando do tédio e do pesar, da recordação e da desgraça.
Atravessei a Babilônia caminhando com a inconsciência do
fatalista que se julga arrastado por força oculta.

III
Na casa Braga, Sarmento & C., o gerente, o Braga, um português
baixote, socado, rosto cheio e rubro, bigodes espessos, olhos
empapuçados e sonolentos, mostrou-se muito amável à vista da
carta de “seu Barros”; quanto à outra, a que eu levava para o
Vale, o comanditário, tendo um caráter de correspondência
particular, só poderia ser entregue no dia seguinte em mãos
próprias.

— Mas havemos de arranjar tudo. — Disse-me o Braga.


Abolete-se por aí e não se incomode: almoço às dez, jantar às
quatro.

— Sim senhor! Balbuciei timidamente.

— Acho-o um pouco grandote para o balcão; mas há de se fazer


o que for possível. Já sabe alguma coisa?
— Sim senhor; um pouco de francês, português, desenho e toco
flauta de orelha… — Respondi desastradamente.

— Bem! Bem! — Interrompeu ele, avincando a fronte para


abafar um risinho indisciplinado que se abrigava no rosto dos
caixeiros. Suba! Conversaremos depois.

Subi e achei-me só, no segundo andar, numa saleta quase sem


móveis, rodeada de cubículos divididos por tabiques. Ali no seio
daquela vida de colmeia, daquele romurejar enorme, jamais
visto por mim, ainda me senti mais isolado, mais solitário do que
dias antes no pousio melancólico da raça.

Dormi atordoado pelo rumor dos bondes e outros veículos


parecendo rolar-me sobre a cabeça. Quando acordei no dia
seguinte, muito cedo, despertado por uma temperatura a que
não estava habituado e pelo movimento brutal das carroças,
sentia um prurido em todo o corpo e olhando-me à luz
esmaecida da manhã, vi-me empolado, com a epiderme
pintalgada de roséolas. O medo da morte me assaltou então:
julguei-me presa já das varíolas, ou de alguma dessas moléstias
que são o terror da Corte, lá fora. Preocupações de outra espécie
se dispersaram ao temor e ergui-me sem saber o que poderia
fazer, desejando fugir, desaparecer, para me livrar daquele foco
pestilencial.

O primeiro a se despertar, o caixeirinho da vassoura, um ilhéu


amarelo, roído de pesar e de recordações, talvez como eu, me
encontrou naquela posição, com o rosto pálido, apavorado a
contemplar as manchas rubras e salientes que me tatuavam o
corpo. A desgraça endurece o coração dos homens. O pobre
desterrado, um infeliz de certo, fitou-me com ar de espanto e
com um olhar tal, pintando tão bem o terror, que me capacitei
de estar completamente perdido.
Veio depois outro empregado, sadio, corado, trazendo roupa de
banhista (Fora um dos que riram quando eu contei as minhas
prendas,) deu-me os bons dias alegremente e, encarando-me,
disse apontando para as empolas:

— Já pagou o primeiro tributo, hein?

— Já, sim! — Respondi trêmulo. Que devo fazer? Ir ao médico?

— Seria um nunca acabar, meu charo; em poucos dias se


habitua e nem caso faz disto.

— Não é então muito grave? — Interroguei ansioso.

— E; mas irremediável também, a menos que se queira sujeitar


a morrer assado envolvendo-se todo nos lenços. Mas, que diabo!
Parece que os pernilongos lhe acharam o sangue saboroso:
puseram-no como morfético.

— Ah! São os afamados mosquitos da Corte que me reduziram a


este estado? — exclamei tranquilizado já do primitivo terror.

— São. Vá no banheiro refrescar-se e melhora.

Não fui. Eu não tinha o hábito da água fria, em Vila Rica, e


achava-o extravagante até. Vesti-me sossegadamente e
postei-me à sacada.

O Vale, um português corpulento, alto, pesado, de vastas suíças,


muito brancas, de andar moroso, veio às dez horas. Leu a carta
do vovô, olhou-me de frente, fez uma careta de mau agouro;
mas lhe vieram, talvez, recordações de outrora, dos tempos de
imigrante nos porões do navio veleiro, a vida de sofrimentos, nos
primeiros anos, numa terra estranha em que o empregado de
comércio era quase um escravo, ou, quem sabe? Considerações
puramente mercantis atuaram sobre ele modificando a má
impressão, porque virando-se para o Braga:

— Acho-o velhote já; — disse, designando-me — mas que a


vontade dos amigos seja feita.

E assim entrei para o comércio. O trama em que se tecem as


transações mercantis era mais complicado do que eu supunha.
Conheci, então, a nihilidade da ciência, que eu bebera no Liceu e
que me dava interiormente fumaças de um sábio, naquela casa
de molhados e comestíveis. Havia muito a aprender ainda: a arte
de mentir com seriedade e nobreza, dando às palavras um tom
de honradez impecável; de apresentar amostras de uma
mercadoria e mandar outra; de introduzir entre as conservas
alimentícias, que o freguês compra, certa quantidade de gênero
já deteriorado; de fazer do vinho espanhol, vinho de segunda,
misturando-o ao português, mais encorpado, uma combinação
lucrativa; de saber empregar com discrição a água, o campeche,
o sabugueiro e o álcool.

Eu considerava tudo aquilo muito comercial e muito honesto,


apesar de ser executado num recanto do armazém e do
primeiro caixeiro me admoestar:

— A alma do comércio é o segredo: o que se vê aqui fica


sepultado entre nós.

Como era corpulento, julgaram-me forçoso e ocuparam-me em


remover os quintos de vinho, sempre que se tinha de “cortar” a
agradável bebida. Nos primeiros dias, não havia educado ainda a
minha virilidade, não consegui com facilidade o manejo e o
primeiro caixeiro, o Nobre, plantou-me o pé… sabeis onde.
Traguei a afronta silencioso e submisso. Eu estava condenado,
via-o bem, a ser um histrião, constantemente no Circo, ora
arrancando hilaridade pelo ridículo, ora recebendo chibatadas e
motejos.

Notei, também, o afã entre a caixeirada de se sobrepujar


mutuamente e a preferência dada pelos patrões aos
portugueses. Falei ao rapagote gordo, o Serpa, palestrando à
noite, sobre estas averiguações que ia fazendo. Explicou-me,
então o maquinismo de uma casa comercial, mostrando-se
amável como no dia em que me tirara o terror das empolas.

— Aqui no Rio, meu velho, — disse-me ele — é onde se vê


encarniçadamente a luta pela vida: cada qual se esforça mais
por salientar-se, porque a fortuna no comércio vem por
hierarquia: sobe-se gradativamente de um posto a outro, até
galgar-se o de sócio — o ideal de todos nós. Além do combate
entre companheiros, nos esgrimimos, também, com os patrões
nestas casas portuguesas. Talvez com o pensamento de
transformarem completamente esta praça em lusitana, os
patrões se esforçam mais pelos patrícios, fazendo-os sobressair
à força de labor, mas levando-os rapidamente a associados. Um
brasileiro, como nós, raras vezes galga o pináculo.

— Porque permanece aqui, então?

— Vim pequeno, já consumi longos anos de vida… Se fosse d’


além mar estaria a estas horas em melhor posição. Sou um
idiota; não está em mim, não tenho gênio de tratar ninguém
com sobranceria e, fora do armazém, as mesmas maneiras
ostentadas consigo que devia estar na vassoura tenho com o
primeiro, caixeiro, esse enfatuado pulha.

— Porque é ele tão ríspido… mais do que os patrões?

— O Nobre? É interessado hoje e quer ser sócio amanhã. Não


poupa sacrifícios para subir: faz toda espécie de picardias com
os principiantes e roja-se como um capacho ante os patrões.
Veio de Trás-os-Montes, de tamancos e jaqueta, como o Vale, e
há de voltar milionário, garanto, porque nem a febre amarela o
quer.

— Não inimigos também. É meu superior, respeito-o, lá em


baixo; mas desejava, e não havia nenhuma quebra de dignidade
nisto, que usasse comigo das mesmas maneiras que tenho para
com os outros.

— São gênios! — Murmurei covardemente, evasivamente, sem


dar opinião alguma, temeroso de cair no desagrado de qualquer
deles.

[Folhetim da LANTERNA (7) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 219]

(...)

[Folhetim da LANTERNA (8) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 220]

(...)
[Folhetim da LANTERNA (9) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 221]

(...)
[Folhetim da LANTERNA (10) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 222]

(...)

V
(...)

O medicamento lá estava preparado sobre a mesa. Eu pus-me a


fantasiar, então, num castelar do louco em que havia muita
infâmia: penitenciou-me hoje, tardiamente, bem sei. Como
julgava, então, tudo aquilo! O Miranda, a quem eu prestava um
afeto hipócrita, abatido ao golpe brutal do emético, dormindo
sono longo de um organismo lasso; eu e Silvia a sós, em plena
liberdade, durante uma noite, saciando o cruciante desejo que
nos dominava, abrindo a porta ampla do gozo, completamente
franqueada com o ato inicial do crime. Ela me acompanhava no
mesmo vôo

[Folhetim da LANTERNA (11) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 223]

através do sonho, porque os seus olhos se encontravam com os


meus e neste órgão maravilhoso que concretiza em si todas as
faculdades dos outros eu via a reflexão dos pensamentos que
me formigavam no cérebro. Falando e escutando com a
telegrafia misteriosa do olhar, nós olvidamos quase o enfermo:
fomos despertados por um acesso de tosse que lhe sacudiu o
peito esquelético de tísico.

O Valgas veio, apesar da borrasca. Trazia no bolso, como de


costume, jornais ilustrados com que mimoscou a dona de casa.

O jantar nesse dia não teve o encanto que esperávamos, era


bem de ver-se, com a chegada do intruso vindo desmoronar um
pouco o nosso castelo. Silvia mostrava-se muito amável com ele,
elogiando-lhe a dedicação amical — “coisa rara nesses tempos
de egoísmo!”

— Passou quase duas noites conosco velando ao lado do


enfermo. — Disse para mim enaltecendo assim o Valgas.

— Cá estou ainda hoje e estarei amanhã, pronto como sempre!


— exclamou ele ostentando as suas qualidade de amigo e
homem prestável.
— Seria muito abusar; — volveu Silvia — além disto temos hoje
um outro enfermeiro — e designava-me — conterrâneo, quase
um irmão e é bem que preste o caridoso auxílio.

— Mas eu é que não saio daqui — tornou ele manifestando-se


ainda mais dedicado.

— Não aceito o sacrifício. Quero poupá-lo: amanhã pode o


Miranda piorar e para quem recorrer, então? Digo mais: deve
recolher-se cedo, repousar, porque talvez seja longa a
campanha.

— Obedecer é ainda servir: curvo-me reverente às suas ordens.


Mas se vir que é necessário, não tenha dó de mim, chame-se a
qualquer hora, porque eu, não é gabolice, creia-o, daria o próprio
sangue para salvar a vida de um amigo.

E bateu no vasto peito de atleta com o orgulho soberano


daquela fidelidade — sua vanglória e seu galhardão.

O jantar findou-se triste como começara, como devia ser, por


certo, nessa atmosfera de morte em que o cheiro do fenol
casava-se com ar expirado por aquele peito em putrefação.
Fomos para a saleta junto à câmara do enfermo. O Valgas
entrou “a dar dois dedos de prosa”; eu e Silvia permanecemos
bem perto deles, mas tão apartados em espírito que o diálogo
travado lá dentro nos passou despercebido.

Lá fora, o céu plúmbeo fiava constantemente uma rede em que


os fios se confundiam e as tramas pluviais choravam sobre os
lajedos e sobre os telhados uma cantilena monótona e
melancólica. De quando em vez desfilava um carro e vultos
fantasiados — os funerais do carnaval — apareciam lá dentro.
Bondes com os negros encerados descididos passavam
funebremente com o seu tilintar tristonho. No passeio fronteiro
zig-zagueava um homem fantasiado, já sem máscara, todo
elameado, tropego, escorregando e cainho sobre as calçadas,
erguendo-se a custo e dirigindo obscenidades ao mau tempo.

Nós também amaldiçoamos esse temporal incômodo vindo


quebrar o idílio doce que a mente trefega ia criando sob a
inspiração fecunda do amor: nós nos enlaçávamos, fundíamos
ardentes beijos no crisol do gozo e o desabrochar de uma
esperança, vivida, realizável quiçá, era empanado por aquele céu
de chumbo servindo, talvez, de muralha ao nosso anseio,
impedindo o Valgas de se retirar.

Sentimos rumor na câmara do enfermo e corremos pressurosos:


o emético começara a sua ação revolucionária.

— Já lhe apliquei três doses: — disse-nos o Valgas — vejam que


resultadão. Daqui a pouco está limpinho por dentro como se
tivesse tomado banho.

— Julga que será necessário ainda mais? — Interrogou Silvia.

— Sem dúvida: é duma desobstrução completa que ele está


precisando.

Fitei, então, o mísero; que lastimável figura de mártir! O rosto de


um branco cirial estava perlado de grossas bagas de suor; os
olhos, luzindo sempre com um brilho intenso, banhavam-se de
lágrimas escorrendo-lhe pelos ângulos. Parecia mais calmo, de
fato: era, porém, a prostração produzida pelo golpe de maça do
medicamento na sua pobre carcaça, vergastada pela moléstia.
De quando em vez erguia-se com o semblante angustioso, o
tórax revolucionado nas convulsões brutais do emético, para
tombar de novo sobre o leito, mais abatido ainda, com o véu de
agonia no rosto, o corpo inundado naquela diaforese em que se
lhe evolava a existência.
Julguei vê-lo morrer ali, aos nossos olhos, num dos combates do
antimonial com o organismo, enquanto o Valgas, com a
teimosia de charlatão audaz, vendo-o quase expirante, veio
ainda com a funesta droga:

— Não lhe dê mais! — disse.

— Já estou habituado com isto, não se assuste: vem os arrojos


fortes e depois ele dorme que é um louvar a Deus.

Eu fitei Silvia e o mesmo pensamento faiscou-nos, de certo, no


cérebro aquele prognóstico de uma hipótese profunda; mas o
sentimento de pejo pela perfídia foi mais forte em mim e obstei
o carteiro de prosseguir na sua obra de morte.

O Valgas ficou despeitado, via-se-lhe nos gestos; nos olhos do


Miranda li uma frase de agradecimento e senti-me revigorado
para vencer o movimento covarde com que eu ia deixar o
campo livre ao charlatão. Momentos depois, na esperança que o
enfermo insistisse para ele ficar, para prosseguir no bárbaro
tratamento, volveu:

— A minha presença aqui é inútil: posso recolher-me aos meus


penates.

O Miranda descerrando os olhos, com voz amortecida,


murmurou:

— Podes ir… o Aquino fica… Estou mais aliviado agora, Deus


louvado.

Ele tomou o guarda sol e o chapéu.


— Espera a chuva minorar; — disse-lhe Silvia por um dever de
urbanidade.

— Necessito estar em casa hoje mais cedo: a minha falta fica


preenchida e vantajosamente! — frisou ele com ironia.

E saiu, ofendido no seu orgulho de sábio, sacudindo os ombros


com um gesto de quem lava as mãos sobre o bem e o mal.

O Miranda teve ainda novos assaltos; mas acalmou-se, fechando


os olhos na prostração hipnótica de organismo lasso de lutar.

A chuva tamborilava, incessantemente. O movimento morrera


nas ruas. Um despertador colocado sobre a cômoda dera dez
horas. Moscas zumbiam-me em torno dos ouvidos e eu me
sentia abatido, cansado também por aquela vigília, a que não
estava habituado, ao lado de um enfermo. O Miranda acordou
despertado por um acesso de tosse, espectou e fitando Silvia:

— Vai descansar, minha velha; — disse — deves estar


tresnoitada… O Aquino pode, também, recostar-se aí pelo sofá…
na sala… se eu precisar de alguma coisa chamarei…

Rebuçou-se bem, virou-se para o canto e pareceu adormecer de


novo; Silvia ergueu-se, então, veio a mim, naturalmente,
murmurando em voz baixa para não despertar o doente:

— Deito-me ali na alcova, deixo a porta aberta… precisando pode


lá ir.

Fiquei só. O Miranda dormia: ouvia-lhe o silvo da glote, o


fervilhar no peito daqueles pulmões em decomposição. A toada
monótona do aguaceiro, o zumbido incômodo das moscas
continuavam persistentemente. De instante em instante, vinha
da alcova de Silvia um ranger de leito como se ela se revolvesse
na cama, uma tosse muito branda para previnir-me, de certo,
que estava vigilante. Eu continuava imóvel, jungido pelo temor
estranho que me dominara sempre em todas as fases da vida.
Passaram-se minutos, horas talvez, e eu permanecia quedo,
com os olhos muito abertos e o organismo em luta entre o
desejo e o medo.

Ouvi passadas no corredor e Silvia reapareceu. Vinha em


mangas de camisa, com uma anágua apenas, o rosto envolto
num pequeno chalé de lá como para reguardar-se. Pude ver-lhe
os braços em sua nudez: torneados, alvos, bem feitos; pude
admirar-lhe a curva ondulante do seio pela abertura do manto e
a elevação sensual dos pombos na camisa; o rosto, bem que
anguloso, surdia-me de uma beleza insólita com o toucado
áureo dos cabelos adornando-lhe a fronte; e os próprios olhos,
de azul indeciso, tinham uma meiguice e um brilho
imantadores. Debruçou-se sobre o enfermo e vi, moldados nas
vestes, o contorno artístico das formas, a harmonia dos
membros. Ergueu-se, concertou a mantilha e em voz segredada
e trêmula:

— Podemos descansar agora — disse — naquele sono em que


está ficará imerso durante horas.

Saiu.

Que se passou em mim, então? Uma rajada de sensualidade


revolucionou-me o ser: ergui-me, pé ante pé, aberei-me do
Miranda, chamei-o e, não obtendo resposta alguma, com uma
audácia de felino, traiçoeiro, cauteloso, sai também e penetrei
na alcova de Silvia.

A infâmia que cometi permaneceu-me, sempre indelével,


dolorosamente, corroendo-me a consciência como úlcera
cancaroide. Num instante de loucura eu destruíra toda a minha
felicidade plantando no peito a eterna mácula que me havia de
agoniar então e para sempre.

Adormecemos enlaçados, ao lado do mísero, no espasmo de


volúpia. Despertei a um grito agudo de Silvia e o quadro que se
desenrolou a meus olhos, jamais se me apagou da memória.

No meio da alcova, em plena luz, com os membros esqueléticos,


mirrados, matraqueando os ossos, o rosto anguloso, devorando
pela tísica, semelhando uma caveira pavorosa, estava o Miranda.
Os olhos desmesurados, refletindo à claridade da lâmpada,
luziam de uma

[Folhetim da LANTERNA (12) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 224]

maneira horrível e o vulto que eu tinha ante mim, parecia uma


figura de pesadelo, essas visões terríficas dos sonhos que nos
asfixiam na inanidade da hipnose.

(...)

VI
(...)

[Folhetim da LANTERNA (13) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 225]

(...)

VII
A mãe de Silvia era uma senhora baixa e repolhuda, de rosto
cheio, olhos pardos, nariz adunco, excelentes dentes… colocados
por um perito americano. Um rosto em que os vincos cavados
pelos anos eram cuidadosamente tapados pelo “cold-cream”;
miraculosa água de “Jouvence” que empregava, de 3 em 3 dias,
na cabeça, dissolvia a neve dos cabelos dando-lhes um tom
seco e fulvo.

Falava pelos cotovelos, como se dizia, então, prosseguindo


numa continuidade de corrente sem fim o dialogar com que o
hábito de cena lhe saturara o cérebro. A idade lhe trouxera uma
rigidez de moral bem em desacordo com a vida de comediante
e o seu passado onde o escândalo pirilampeava,
incessantemente.

[Folhetim da LANTERNA (14) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 226]

(...)

[Folhetim da LANTERNA (15) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 227]

(...)

[Folhetim da LANTERNA (16) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 228]

(...)

[Folhetim da LANTERNA (17) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 229]

(...)

VIII
(...)

[Folhetim da LANTERNA (18) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 230]

(...)
[Folhetim da LANTERNA (19) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 231]

(...)

[Folhetim da LANTERNA (20) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 232]

(...)

[Folhetim da LANTERNA (21) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 233]

(...)

[Folhetim da LANTERNA (22) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 234]

(...)

[Folhetim da LANTERNA (23) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 235]

(...)

[Folhetim da LANTERNA (24) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 236]

(...)

[Folhetim da LANTERNA (25) Avelino Foscolo NO CIRCO ed 237]

(...)

Nada disto teria sucedido se eu não fosse um covarde criado na


escola da humilhação e do desprezo.

Libertei-me de todas as taras de educação atual, das sanies que


me amarguravam a existência e de criaturas que eram uma
trava à minha ascensão de ser livre: a minha fantasia veleja hoje
no oceano imenso da universal agonia em busca do sonhado
porto da liberdade, da solidariedade humana…

FIM

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