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Colônia Horror

Contos de fundação e morte


Colônia Horror
Contos de fundação e morte
Agradecimentos

Os organizadores gostariam de agradecer:


À Lei Rubem Braga e à Prefeitura de Vitória, pelo patrocínio
a este livro. Leis de incentivo à cultura são fundamentais para
nossa sociedade e devem ser valorizadas sempre.
À Faculdade Saberes, pelo apoio cultural e confiança.
Ao perfil FantasiaLP do Wattpad, com quem firmamos
parceria para a realização de um concurso de contos que
escolheria o quarto texto para a antologia. A todos os
embaixadores do Wattpad, muito obrigado.
Ao Darcy Alcantara, pelas ótimas leituras e sugestões.
À Mariana Eler, pelo incentivo e estima.
À Maria de Lourdes Nascimento Gaze, Athie Gaze, Mauricio
Gaze e Michel Gaze.
A Wolmyr Aimberê Alcantara (Pai), Wolcy Iberê Alcantara,
Márcia Bernardino Alcantara (In memoriam), Marly Bernardino
do Rego (In memoriam).
Aos nossos alunos.

Os Organizadores.

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Apresentação

Bem-vindo à Colônia Horror. De imediato, é preciso dizer


que o título não se refere a uma colônia de férias invadida por
mortos-vivos. A parte dos mortos-vivos, no entanto, está correta.
A colônia é que é outra coisa. Trata-se do Brasil, quando vivia
sob o domínio de Portugal, entre 1500 e 1822.
Os contos deste livro se passam todos nesse período. Neles,
há índios em busca de vingança, padres não tão castos, piratas
ambiciosos, guerreiras negras, e por aí vai. Mas a ambientação
é um pouco diferente daquela contida na história oficial, já que,
como sabemos, aqui, os mortos levantaram e estão com fome.
O livro que você tem em mãos é parte de um projeto que
inclui também um curta-metragem. Para mais informações você
pode acessar www.coloniahorror.blogspot.com e www.facebook.
com/coloniahorror/.
Além disso, recentemente foi aventada a proposta de um
jogo de videogame que se passe no universo deste livro. Padre
Anchieta lutando com um lança-cruzes? Cenas dos próximos
capítulos. Isso é para o futuro...
Por enquanto, boa leitura!

Os Organizadores.

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Contos

11 | Marcas de um passado sangrento


37 | Corpos místicos
57 | A santa do morro
85 | Ódio
Marcas de um passado sangrento

Felipe Gaze1

[Parte 1: Capitania do Espírito Santo, 1585]

Nunca indaguei se ele era de fato filho genuíno da nobreza


portuguesa ou se o Dom veio depois, talvez pela posição que
conquistou na Capitania, talvez por simples deboche. De
Simão de Castelo-Branco, o D. Simão, soube que aportara
na Capitania junto a outros degredados da frota de Vasco
Coutinho no ano de 1535. Delitos contra a Coroa levaram
o fidalgo ao exílio na Colônia, sentença marcada nas linhas
duras das Ordenações Manuelinas. Era a deportação ou a
guilhotina em Portugal.
Lapidado nas sombras das batalhas e infortúnios, Simão de
Castelo-Branco testemunhou aqui o que em Portugal eram apenas
mitos, rumores, histórias fantasiosas de exploradores recontadas
para entreter as pessoas e colocar medo em crianças tolas. Homem
de grande estatura, magro, ombros pontudos e extensos. Tinha o
rosto longo, lupino, contornado por uma densa barba de mechas
brancas. Entre as grossas sobrancelhas, dois sulcos profundos na
pele denunciavam o peso de um tempo que não venceu uma força
conservada em um corpo rijo de andar firme.
1 Natual de Cachoeiro de Itapemirim (ES) e desde 2013 professor da rede
estadual, lecionando em Serra (ES). É um dos criadores do universo Colônia
Horror. No curta-metragem é roteirista, produtor e animador 3D. Codiretor,
roteirista e animador de Esta noite tem peleja (2009) e Victor (2015). Em época
passada se aventurou em um mestrado em Engenharia Ambiental e atualmente
cursa graduação de Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do
Espírito Santo (Ufes).

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Nobre ou não, houve uma época em que se valeu de sua
posição dentro da Capitania para planejar alianças com os
índios e em mais de uma oportunidade liderou ofensivas
contra os franceses e espanhóis. Na batalha dos quatro
mil arcos, D. Simão testemunhou a horda desmedida dos
semimortos esfomeados devastarem a aldeia dos temiminós,
desguarnecida de defesa após um recente combate contra os
tamoios e os franceses, seus aliados.
Fossem outros os tempos diria que estava nos traçados do
destino encontrá-lo naquelas areias açoitadas pelas ondas de
um oceano fatigado do fardo de lavar os pedaços dos corpos
apodrecidos e o sangue escuro impregnado nos rochedos,
espectadores da última carnificina. Um ataque inesperado aos
goitacás que vieram em busca de alimentos e armas. Poderia
acreditar que se concretizava a última profecia do pajé Arapoã,
pronunciada em sua morte. Mas não agora, não nesse mundo.
Culpo o acaso, e apenas ele. Se não a sorte, o que faz um jovem,
uma criança, ser batizado com sangue, se entorpecer por uma
vida com o odor da carne podre e saber que aquele mundo
equilibrado de deuses generosos se extinguirá com as ruínas
cinzentas da memória dos antepassados?
Herdei um mundo em que são raros aqueles que recebem
da morte a compaixão. O privilégio de percorrer, no fim, um
caminho menos tortuoso, imperfeito. A regra é a morte que vem
do encontro às mandíbulas daqueles que arrastam seus restos
frios e pestilentos. Um destino menos cruel do que submeter-se
à própria morte inacabada. O corpo pálido, cavo de sentidos,
guiado apenas por um instinto primitivo, faminto por carne.
Pajé Arapoã morreu dormindo, um fortuito ato de
generosidade da morte. O corpo magro e os ralos cabelos pardos,
a testemunha de um mundo em que a doença ceifou as aldeias

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e fez o velho xamã abandonar suas ervas e infusões e aprender o
manuseio do arco e da zarabatana. Ainda assim um fim digno ao
homem que um dia resgatou aquela criança solitária, embebida
num sangue negro, fétido, e outro vermelho, quente, da própria
mãe, abandonada com o filho na obscuridade da noite quando a
horda de criaturas já ocupava a oca.
Nunca acreditei que encontraria a paz definitiva, talvez a
consolação de um sossego temporário e o desafogo de parte do
peso comprimido ao peito. Pouco mais de vinte anos deveria
ser tempo suficiente para se curar uma chaga. Para entender
que num mundo bagunçado, torto, homens tomarão atitudes
sem a glória ou o orgulho, e que o julgamento já não poderá ser
como antes. Mas algumas recordações são como a lança banhada
no curare. Rasga a pele, a carne, injeta o veneno que corre às
veias carregando a dor descomunal, angustiante, a paralisia que
domina todo um corpo após seu último arrojo de força. Ainda
que se escape do alívio da morte, há um gosto azedo, adormecido
num canto da boca. A cicatriz. Uma parte da pele áspera. A
marca que te acompanhará ao leito e trará a lembrança quando
estiver perdida.
A morte do pajé me levou de volta às andanças para o
litoral. Após algum tempo cruzando a mata que ladeia a costa,
cheguei ao pé do despenhadeiro talhado à fúria de um mar que
o golpeava com suas cristas brancas de espuma. Alcancei seu
topo e encontrei a maloca que um dia pertenceu a ele. Envolvi
seu corpo sem vida numa rede clara e o acomodei no recinto. O
sopro forte que bradava do oceano logo alastrou a chama que
acendi. O fogo consumia a maloca e reduzia às cinzas o corpo
do velho índio.
Enquanto o ardente fulgor tocava meu rosto, observava,
absorto, a dança das labaredas com uma estranha expressão

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de júbilo voraz. Lá embaixo, na encosta, uma embarcação que
aportava na praia desviava minha atenção. Era um barco pequeno,
sem velas. Devia vir de alguma das vilas ao sul e ancorava em
busca de água fresca. A escassez de recursos assolava várias
vilas, levando colonos e índios buscarem provisões em outras
terras. Negociavam, saqueavam.
Cinco homens saíram do barco. Um deles era D. Simão, que,
junto com um índio, amparava nos braços o castelhano Filipe
Guillen, outro aventureiro da frota de Vasco Coutinho. Parecia
enfermo, desfalecido. No braço esquerdo uma atadura maculada
de sangue envolvia uma ferida. Na testa um suor se rompia até
delinear-se por sua fronte.
Corri ao pé da encosta. No alto, o fogo lançava seus últimos
braços na luta contra o barro seco e as taquaras que um dia
suportaram a casa do pajé. Os outros dois tripulantes, dois
índios jovens que atracavam o barco, se aproximaram do doente.
Houve uma agitação. Um dos índios ameaçava desferir uma
lança no moribundo. O bafejo intenso do mar privava meus
ouvidos do vozear daqueles homens, rompido pelo estalar do
arcabuz disparado ao céu por D. Simão, que protegia o amigo
banhado em suor.
O estouro da arma e a morrinha de peixe exalada do barco
atraíram um pequeno bando de andarilhos famintos. Talvez
o mesmo que devorou o grupo dos goitacás, à espreita de um
novo banquete para satisfazer sua insaciável voracidade por
carne humana.
Acobertados pela mata, a investida das criaturas foi impetuosa.
Algumas armas estavam no barco e os homens não conseguiram
apanhá-las. Resistiram com bravura enquanto puderam. Eram
guerreiros experientes, treinados para sobreviver diante desse
espectro retorcido da morte. Perfuraram alguns crânios com

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suas lanças, esfacelaram outros com machadinhas e troncos,
a única maneira conhecida de derrubar aqueles que vagueiam
desguarnecidos dos sentidos e da razão.
Mas a dura resistência foi logo vencida, esfolada nos dedos
imundos e nas bocas execráveis das bestas errantes. D. Simão,
acuado, lutava para carregar seu arcabuz ante a ofensiva de uma
das aberrações. As pernas dilaceradas e a carne corroída até o
crânio eram o reflexo defeituoso do mais hórrido aspecto da
morte. Próximo, me coloquei contra o vento, enchendo meus
pulmões com o ar nauseabundo de peixe e corpos deteriorados.
Tomei da cintura meu pequeno punhal. Há tempos o tinha. A
lâmina de ferro afilada, serrilhada na base, era uma eficiente arma
para penetrar o músculo retesado e rachar o mais duro dos ossos.
Refutei. Não parecia o momento de usá-lo, não estava numa
boa posição. Carregava algumas flechas. Posicionei uma ao
arco e estiquei o cipó, espreitando com esmero o alvo. A seta
rasgou o ar até repousar na cabeça carunchenta da criatura,
que desabou inerte na areia. Os seres que ainda restavam foram
neutralizados por golpes de lanças e pelos tiros certeiros da
espingarda de D. Simão.
Encarei, agora de perto, o rosto lupino do fidalgo. Na face
direita, próxima ao olho, partia uma cicatriz longilínea que
riscava o rosto até falhar uma parte da barba de mechas brancas.
De volta encaravam-me dois olhos turvos, trêmulos, sob as
grossas sobrancelhas que pareciam luzir como o fogo no meio do
bambuzal. Acenamos um ao outro sem trocar palavras e estendi
minhas mãos para que ele se reerguesse.
Filipe Guillen, próximo, caia em letargia. Não se distinguia sua
voz baixa, entrecortada. A tez pálida, a febre e o suor extremo os
últimos sintomas que antecediam a transformação. Sobre os olhos
sem brilho duas covas gêmeas de uma escuridão insondável.

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− Não lhe resta muito tempo, você sabe.
D. Simão nada respondeu, apenas olhou fixamente para
mim. Um olhar melancólico.
− O jovem tem razão, meu amigo.
Foram as poucas palavras que distingui da voz atravessada
do moribundo, quase num sussurro
– A sentença se cumpre. Morte por ello!
O riso trêmulo e a tosse seca se confundem antes do
castelhano pender inconsciente.
O sol derramava-se sobre os morros baixos ao oeste. Alertei
que não havia muito tempo para o anoitecer e com ele a escuridão
que intensificava as ameaças já tão pavorosas durante o dia.
− Ficaremos a salvo no barco. Encarregue-se dele.
A voz um tanto embargada de D. Simão fez o pedido parecer
uma súplica.
Passar a noite no barco parecia uma boa alternativa. Não
eram incomuns errantes morosos, desprendidos da horda,
vagando solitários em busca das migalhas desprezadas pelo
bando. Transformado em besta, até o mais exímio dos nadadores
perdia sua habilidade de atravessar as águas. O incômodo de
uma noite sob as sacudidas e pancadas das ondas no assoalho
do barco compensava a segurança que nos trazia.
D. Simão percorreu a praia até a rocha de ancoragem da
embarcação. Passos fortes, formando depressões na areia
e riscando uma linha sinuosa entre os corpos putrefatos.
Alguns deles pareciam obstinados em lutar contra a peste para
conservar a essência, a beleza que um dia desfrutaram. Irmãos
que me afastei há tanto tempo e que não me reconheceriam
ainda que não lhes roubassem a razão. Mulheres, crianças.
Filhos bastardos invisíveis a qualquer herança, deserdados à
própria sorte.

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De Guillen encarreguei-me da única maneira que se enfrenta
àqueles em que a pele já cinzenta que antes ardia em febre passava
para uma pele fria prisioneira de um sangue morto e estagnado.
Desencravei a flecha que se conservava no crânio morto, agora na
sua plenitude, da criatura que momentos antes escancarava suas
mãos eivadas e mandíbula asquerosa num ataque a D. Simão. Na
lança um sangue espesso e escuro escondia a ponta ainda afiada.
Foram dois ou três golpes que Guillen recebeu, anestesiado em
seu torpor.
− A morte foi rápida?
− Morreu antes de qualquer golpe.
− Não houve dor, imagino.
− Não. Seu corpo estava frio. Não respirava.
Estávamos acomodados no barco ancorado em uma praia
a poucos metros dali para escapar da atmosfera nauseante
dos restos podres que serviriam de banquete aos caranguejos
à espreita em suas tocas. D. Simão poupava as palavras. Nas
poucas que lhe escaparam, contou-me sobre o infortúnio de
Filipe Guillen, surpreendido por um errante solitário quando
fizeram uma atracação não prevista numa das ilhas próximas
que julgavam estar salva da peste.
– Estava difícil navegar com o mar revolto e os mantimentos
já não eram suficientes.
Os peixes que estavam no barco exalavam o odor da carne
que se estraga e foram lançados ao mar. Nossa parca alimentação
limitou-se a alguns beijus, nacos de peixe ressecados no sal
e umas doses de bagaceira que ajudavam a esquentar o corpo
cerrado pelo frio da noite. As horas arrastaram-se silenciosas
sob a pálida escuridão do horizonte embaladas por um mar
estranhamente calmo, como quem lembra que há batalhas que
até o mais bravo guerreiro, extenuado, clama por trégua.

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Nem mesmo o crepúsculo que iluminava o que estava no alto
e enegrecia o que estava embaixo era anestésico suficiente para
o sono capturar o corpo. D. Simão ajeitava seus objetos em um
velho surrão de pano. No compartimento maior estavam roupas,
enquanto, no menor, lascas do peixe ressecado, grãos e uns
punhados de cereais. Conservava a arma ao colo e mantinha a
visão fixa na praia que respirava uma clemente quietude naquelas
primeiras horas negras da noite. Retirou do seu alforje uma bolsa
menor com parte dos seus suprimentos de comida e me ofereceu.
Era a sua forma de se mostrar grato. Para homens embrutecidos
aos solavancos da guerra e das lutas que marcam o corpo e corrói
por dentro o espírito, a gratidão não costuma estar nas palavras.
− Fique também com as flechas. – falou, percebendo que eu
também não dormia e indicando com o olhar um canto do barco
em que repousavam algumas lanças – Serão úteis para onde vá.
Não sei usá-las bem, de qualquer forma.
− Seguirei para o Oeste, para além das serras. Vim ao litoral
só para velar o corpo do pajé, como era seu desejo.
A escuridão que já tomava todo o horizonte não permitiu o
fidalgo enxergar muita coisa quando mirou o alto da colina onde
jaziam as últimas cinzas da maloca do pajé Arapoã, umedecidas
pelo alento surdo da maresia.
− Já tenho minhas provisões. Pegarei apenas algumas flechas.
Gosto de viajar com pouca coisa e sozinho.
− Também desejo ir para o interior da Capitania, mas antes
preciso encontrar uma pessoa. Falaram-me de um índio que
poderia me servir de guia.
− Aqui já não há lugares que se possa ir. Aproveite o barco e
vá para longe, para o norte. Aqui o único destino é a morte.
− Procuro um homem que atende por Joaci. – sentenciou,
ignorando meu conselho.

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Há tempos que não ouvia esse nome. Quando não há quem o
chama, um nome não tem serventia. A vida solitária, errante, às
vezes leva a gente esquecer a própria identidade.
Limitei a encarar, em silêncio, aquela face cortada pela cicatriz.
− Se o conhece, peço que me indique onde encontrá-lo. Se
não, conte para seguir meu caminho.
− Eu sou Joaci. E você, acredito, é D. Simão.
Os olhos que se cerraram sob a escuridão e o juntar das
sobrancelhas, ainda que levemente, denunciaram a mal disfarçada
surpresa do português quando pronunciei o seu nome.
E continuei:
− Lembro-me de você aqui na Vila, há muitos anos, quando
vieram os primeiros engenhos, na época em que a doença ainda
não tinha se alastrado.
− Faz muitos anos desde que deixei a Vila, e a Capitania...
− Pelo menos vinte anos, creio. Muitos deixaram, ao menos
os que sobreviveram.
− Não tinha muita esperança em te encontrar. Julguei que
estivesse no interior, talvez morto, ou, pior...
− E para onde quer ir o fidalgo?
− Serra das Esmeraldas.
Não contive o riso, uma gargalhada seca quando D. Simão falou
da Serra das Esmeraldas. Expliquei que era mais uma história
criada para levar portugueses imprudentes a desbravarem nossos
sertões. Mas o fidalgo acreditava na existência da Serra, disse que
Guillen passou muitos anos nas terras a Oeste e confiava que
encontraria as esmeraldas entre dois grandes rios da Capitania
do Espírito Santo.
− Rumores dizem que Cabeza de Vaca prepara expedições
para o local. Quero chegar antes, fazer uma pequena fortuna e
rumar para as colônias espanholas para viver os anos que ainda

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me restam. – dizia, para depois oferecer ouro e prata para guiá-
lo até os morros entre os rios.
Disse a ele para poupar o ouro, que já não valia mais do que
o ferro bruto, mas concordei em acompanhá-lo até próximo aos
limites das terras cortadas pelos rios Guasisi e Guasisi-mirim. A
fadiga era grande e a floresta já não era mais a mesma de outros
tempos. Viajar na companhia de alguém habituado a batalhas
era, naquele momento, uma opção.
− De lá seguirei meu destino. – falei – Mas receio que não
encontrará entre os rios nada além de uma floresta densa e
sombria capaz de afrontar o mais pavoroso dos seus medos.
D. Simão aceitou minhas condições e aproveitamos as poucas
horas ainda não consumidas pela noite e descansamos para a
jornada que se iniciaria no outro dia.
Os primeiros traços da manhã vieram com um céu ainda
pálido, como é comum nesses dias de calor menos intenso e
noites mais longas. Empurramos o barco até um banco de areia
próximo ao rochedo. Tirei da cintura meu punhal e com ele
cortei um pedaço da corda que amarrava o barco para levarmos
na viagem.
– Sua arma... Parece-me familiar. – disse D. Simão curioso,
tomando o punhal e pressionando a extremidade do dedo
indicador esquerdo na sua ponta e girando o cabo sobre o seu
eixo com a mão direita. Ele conferia o fio que se mantinha
afiado, apesar do tempo, e a base serrilhada.
– Pertenceu a um português, há muitos anos. Muitas lâminas
como essa foram trazidas para cá, por vocês, quando chegaram
a nossas terras.
– Não vejo uma arma assim desde a batalha dos quatro mil
arcos. – sentenciou D. Simão, pensativo.

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[Parte 2: Carta de Belchior Azeredo a Mem de Sá, 1563]

Senhor Governador Geral,


Necessitas caret lege (a necessidade não tem lei).
Sabemos muito bem o valor do tempo despendido na escolha
das palavras de um pronunciamento, de um decreto ou mesmo
de uma escritura ou fala àqueles que diretamente serão por
elas perturbados. Abrandar um discurso, moldá-lo para não
descortinar o real interesse das vozes que lhe dão corpo é, se não a
maior, ao menos a primeira lição que se devem ter os que ocupam
e assim pretendem permanecer nas cadeiras como esta que hoje
senta o senhor.
A mim nunca foi reservado esse dom e, ainda que o tivesse,
receio que não seria a ocasião para exercitá-lo, uma carta que
se ousei suprimir o tratamento de “Excelentíssimo” que lhe é
reservado por direito e merecimento, foi para deixar claro se tratar
de uma correspondência pessoal para um velho conhecido a quem
muito apreço tenho.
Se renuncio aos círculos intrincados de um discurso oficial e
faço expor as certezas sem máscara das minhas intenções, não é
por alardear minha lealdade à sua figura e à Coroa tão dignamente
representada por ela, mas por entender que existem ocasiões que
escapam ao regramento destinado às situações comuns. Aflige-me
estarmos agora vivenciando um desses momentos excepcionais em
que os contornos das sagradas letras das leis portuguesas parecem
pouco robustos aos episódios que se anunciam tão claros quanto o
sol que brilha por aqui.
Estou convencido de que tudo de relevante que acontece na
Capitania chega a seus ouvidos. E tenho muito mais convicção
que sob tal condição única, excepcional, sua autoridade agirá com
o mesmo acerto manifestado em outros momentos que também

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se fizeram necessárias medidas malvistas por àqueles que não
conhecem os meandros de uma administração política.
É certo que está a par dos relatos dos jesuítas que, em suas
andanças, nos contam de terras dominadas por corpos sem almas,
encarniçados em guerra e entregues a seus vícios, tão obstinados
pelo mal, tão cevados em encher suas queixadas com carne
humana como verdadeiros manjares, como revelam as próprias
palavras de padre Manuel da Nóbrega na volta de sua última
visita à Vila de São Paulo.
Sabíamos do que nos aguardava no além-mar, a terra inóspita,
os índios, as doenças. Mas imaginar que neste lugar tão longínquo
se espalharia uma peste ainda mais terrível do que a que muitos
conheceram na Europa há alguns anos, me faz crer ser fruto de
um delírio dos homens de batina, exaustos por arrastarem seus
pesados panos por longas horas debaixo desse sol.
Julgo, pior, estarem os padres jesuítas sendo objetos de uma
artimanha ardilosa de um complô de invasores que tentam desviar
nossa atenção e, assim, nossas forças, para levarem adiante a
conquista das nossas terras ricas em pau-brasil e minérios e férteis
ao plantio da cana que nossos engenhos breve serão insuficientes.
Não foram poucos os índios que escaparam floresta adentro
e colonos que fugiram para as Vilas ao norte temerosos com
os relatos dos jesuítas e de alguns dos nativos. Nossa produção
já começa a sentir a falta de pessoal e nossas frentes e fortes se
desguarnecem de suas defesas.
Fontes seguras me garantem que desde que Cunhambebe
assumiu a liderança dos tamoios, reforçou-se a aliança com os
franceses, tomaram parte de São Vicente e se voltaram para
a conquista da Guanabara. Estou convicto de que a Capitania
do Espírito Santo será o próximo alvo e, fosse hoje, fatalmente
seríamos dominados e expulsos.

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Para evitar atritos com a Ordem dos jesuítas, o senhor
sabiamente se distanciou do acordo que traçamos com o líder
temiminó Maracajá-guaçu, que se comprometeu a recrutar e
treinar um grande grupo de índios, desde àqueles das suas aldeias
a escravos que Maracajá reunia a um preço que não ouso revelar
para não macular a integridade política que o senhor conserva e,
assim, te preservar de uma possível oposição da Ordem.
Maracajá-guaçu sabia da necessidade de se manter uma
defesa forte e o senhor consentia a certas manobras no erário
para financiar o líder temiminó, consciente da sinuosidade que às
vezes precisamos fazer na lei em nome de um bem maior para a
Capitania.
Hoje, a tropa do líder temiminó conta com quatro mil exímios
arqueiros, um bando forte, imprescindível para nossa defesa
contra os tamoios. Mas temo pelo futuro da guarnição. O medo
da possível peste e a baixa de recursos da Capitania atingem
diretamente os homens de Maracajá. Além de equipamentos que
faltam a eles, não há disponíveis embarcações suficientes para
os guerreiros descerem o rio e aportarem na costa do litoral, se
necessário um deslocamento de urgência.
Sei que o senhor conhece a importância de continuarmos com o
controle da Baía de Guanabara e da Capitania do Espírito Santo,
não apenas para as terras que sou donatário, mas pensando em
toda a extensão da Colônia. Certo das justas providências que
tomará em breve, antecipei o contato e deleguei a função ao
melhor homem para tratar dos acordos com Maracajá-guaçu:
Simão de Castelo Branco.
Desta Vila Nova, da Capitania do Espírito Santo, aos 31 de
agosto de 1563.
Belchior Azeredo
Capitão-mor da Capitania do Espírito Santo

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[Parte 3: Capitania do Espírito Santo, 1585]

Decidimos seguir pela parte mais densa da mata e encontrar


a margem do rio a Oeste, nas extensões mais montanhosas da
Capitania, onde se podia achar algum barco ou canoa perdidos
para subir as águas. A região onde o rio e o mar se encontravam
era mais descampada, sujeita aos ataques das bestas famintas.
Sem animais para transporte, a floresta seria o melhor caminho.
Percorremos as primeiras milhas sem imprevistos. Uma
pequena tempestade nos surpreendeu nos primeiros dias.
Deixando o solo meio encharcado e um pouco pesado para se
caminhar com mais destreza, deixaria também os errantes longes,
ou ao menos desnorteados com os estrondos e a confusão dos
sons dos golpes da chuva nas árvores e na terra. Sabíamos que
logo que a tempestade se fosse, poucos dias seriam suficientes
para a terra absorver as sobras de água e deixar o solo firme de
novo e as plantas e frutas mais frescas nas terras mais ao longe.
Seguimos a passos firmes, um ritmo cadenciado. Por vezes
intensificava a caminhada, quando o terreno se aplainava, ou
nas ocasiões em que barulhos que sugeriam que uma horda
estaria perto eram ouvidos. D. Simão não acusava cansaço,
seguia acompanhando até minhas passadas mais ligeiras. Havia
momentos em que eu aumentava o ritmo só para testar seu
limite. Ainda que em algumas vezes uma expressão de dor e uma
respiração fatigante denunciasse exaustão, ele seguia resistente,
sem titubear ou se queixar.
De longe vimos uma fumaça magra que nos trazia o odor
da caça abrasada, indicando que estávamos próximos a um
pequeno agrupamento de umas poucas pessoas. O aroma
agradável da carne queimada me fez lembrar o quanto eu não
me servia de um bom banquete além das lascas de peixe seco e

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algumas raízes mirradas. Lembrava-me o sacrifício que passou
a ser apreciar uma carne quente e suculenta sem o medo de
se ver transformado em presa pelas mandíbulas esfomeadas e
asquerosas dos errantes.
Não era um pequeno grupo, mas um grande número de
índios e filhos bastardos que se refugiaram num extenso terreno
protegido por alguns picos montanhosos. Foi difícil saber
quantos eram os que por lá viviam e a extensão das terras da
tribo. Passamos pouco tempo com eles e muitos estavam fora a
procura de alimento e terras férteis para o plantio. Ofereceram-
nos carne de anta, caju, banana e outras frutas, além de peixes
frescos. Comemos com satisfação, menos ávidos do que alguém
que há muito não sabia o que era uma boa refeição poderia se
permitir, embora muito mais do que um espírito afogado em
vinte anos de inquietudes talvez consentisse.
Mais tarde ajudamos a recolher algumas caças e peixes e
descansamos. Foi divertido ver os curumins curiosos com a
pelugem grisalha que brotava do rosto de D. Simão, tão incomum
aos pequenos. O céu já estava negro quando as crianças ainda
puxavam com suas mãos sebosas as barbas do fidalgo, que se
mostrava paciente mesmo perdendo raras horas de descanso.
No meio da noite, naquelas horas de escuridão fria que traz o
alento esfumaçado e pesado do ar da floresta, caminhei. O corpo
pedia descanso, mas o cansaço que mais me afligia não se curaria
nem com incontáveis noites de sono prolongado. Fui a um canto
da aldeia, até ao pé de uma grande árvore que recebia uma fraca
luz de uma fogueira onde, próximo, alguns índios cantavam
baixo aos sons de seus maracás e tambores, retumbando na
mesma pulsação sedenta que socava meu peito.
Eram os sons de outros tempos que chegavam novamente até
mim. O grave dos tambores se juntava ao ranhar estridente das

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sementes da cabaça para sustentar as vozes suaves dos homens e
mulheres que se reuniam na madrugada. A música que um dia
ofegava quietude, despertava, na floresta dos refugiados, uma
melancolia sublime que alimentava os impulsos primitivos de
um coração que espalhava do peito uma fúria longínqua. Por
um instante fiquei ali, sentado numa pedra áspera que me servia
para afiar o punhal, me entorpecendo nos sentimentos, agora
tão distintos, dos velhos ruídos.
– Os ossos dos doentes são frágeis como a casca seca do
bambu, não creio que precise de uma lâmina tão afiada.
Depois de alguns golpes do fio do punhal na rocha, Maíra,
uma índia mais velha, se aproximou.
– A colheita foi generosa e as caças nos servirão por muitos
dias ainda. Hoje cantamos. Vivemos.
E me convidou para dançar com os índios. Fui com ela até
próximo ao grupo e observamos aquela festa tão bela dos que
ainda conservavam no espírito uma esperança ingênua.
– As águas que cortam essas montanhas são as mesmas que
se contorcem pela floresta e se lançam ao mar – disse Maíra.
Aqui o sol também arde e se esfria e amacia as terras para as
ervas brotarem. Nem a mais perversa das doenças é capaz de
contaminar todo o corpo. Ainda que padeça, confinada em sua
dor pela morte que avança, a vida persiste. Ela sempre persiste,
em algum lugar, assim como a andorinha escolheu não conhecer
o frio, abandonando seu ninho para, no primeiro sopro gelado
que corta suas penas, seguir o rastro dos ventos quentes e um
dia retornar, sabendo que o frio não é eterno e que o sol sempre
volta a esquentar a noite. Um corpo vivo não precisa suportar
um espírito tragado pela escuridão fria e entregue à morte mais
do que naqueles em que a doença apodreceu a carne e sepultou
suas escolhas.

| 26 |
Escolhe-se abandonar o frio na primeira rajada gelada no
corpo. Não há escolhas quando se nasce mergulhado num rio de
trevas, apodrecido com sangue morto, tão largo que as margens
não estão à vista e os pés se afundam no lodo pegajoso do fundo,
soterrando nas profundezas da alma a esperança de ser guiado
pelos ventos quentes do verão.
– Os mais antigos chegaram aqui ainda antes da doença se
alastrar, na época dos primeiros engenhos. – a índia sentou-se
num tronco próximo sem deixar de observar a dança dos índios.
Pequenas cinzas escapavam da fogueira e atingiam seu rosto
e cabelo – Antes dos doentes de carne fria, foram homens tão
pouco desnudos que mal se viam suas peles enrugadas e claras
que contaminaram nossas terras, golpearam com a cruz nossas
aldeias e acorrentaram e exauriam nossos corpos em trabalhos
perpétuos para alimentar a ganância de um deus.
– O mesmo tempo que esvai as lembranças em fragmentos
confusos na memória, alimenta os sentimentos pesados que
resistem no peito. – a fogueira estava baixa e poucos índios
dançavam quando falei à Maíra – Não sei até onde Cunhambebe
subiu com os franceses para além da Guanabara, não sei quantos
eram os errantes naquela noite turva e sangrenta, mas sei que
quatro mil arcos não lançaram suas flechas, adormeceram na
guerra ao comando traidor de um Maracajá-guaçu que serviu
a quem o escravizava para lamber um punhado de migalhas
jogado ao chão. Ferida e abandonada para morrer, ela cravou no
rosto do homem que a deixara uma marca de punhal que nem o
tempo poderia fazer confundir o seu olhar.
– Talvez o próprio Arapoã não soubesse o que aconteceu
antes de te encontrar sufocado em sangue, ao lado do corpo
da sua mãe. Na escuridão tudo é muito confuso. A doença não
extermina somente o espírito, a carne que apodrece, os ossos

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desfalecidos, mas também a capacidade de distinguir o mal.
Os olhos cinza opacos não são cegos, são olhos domados por
um ódio que aponta para qualquer coisa que cruza sua visão.
Excluídos em sua própria terra, tomados pela peste, os doentes
enxergam o mal nos homens que os escravizaram e nos irmãos
que compartilham no corpo as marcas vermelhas do urucum.
Na madrugada não se ouviam mais tambores e maracás,
mas um gemido suave do vento e o cheiro acre dos troncos
queimados da fogueira.

[Parte 4]

Depois que deixamos o grupo de Maíra, em poucos dias


encontramos o rio que serpenteava até na Serra das Esmeraldas
e, nele, uma canoa que julgamos abandonada. D. Simão, afastado
e com fortes dores na cabeça, efeito da longa caminhada sob
um sol escaldante e das infusões que tomamos no dia anterior,
não percebeu que na canoa havia um errante encoberto por um
pano manchado com nódulos de sangue. O homem revirava-se
inquieto no barco sem conseguir se libertar da mortalha que o
cobria por inteiro, inclusive o rosto. Na certa se achava ali há
muitos dias, no corpo que se definhava e que mantinha um resto
de carne sisuda agarrada aos ossos. Retirei o homem do barco
e o lancei nas águas que o tragaram correnteza abaixo, lavando
as manchas velhas de sangue da sua mortalha e afogando um
passado de sofrimento.
Um dia antes ouvimos murmúrios ao longe que não eram
dos ventos que contornavam as árvores e se desvaneciam pela
floresta. Eram grunhidos e um rastejar pesado na terra que
pareciam errantes que se aproximavam. Caminhamos num

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ritmo acelerado quase um dia inteiro e sem descanso até os sons
não nos alcançarem. À noite, exaustos, nos recolhemos sobre
um pequeno monte rochoso.
Apanhei algumas ervas para preparar uma infusão que
ajudaria a nos recuperar da fadiga e das dores no corpo que se
queixava D. Simão. O capim tremulava na água borbulhante
até formar um líquido escuro e um vapor que jogava no ar um
cheiro áspero. Coloquei um pouco do licor numa cuia e bebi
algumas doses ainda quentes antes de oferecer ao fidalgo, que
bebeu num só trago o líquido amargo.
D. Simão transpirava forte, as gotas de suor que brotavam do
seu rosto escorriam até morrer no colarinho da camisa. Disse
que era um efeito comum da infusão, que depois de uma noite
de sono estaríamos recuperados e livres da fadiga. O português
sentia também tonturas e recostou as costas numa pedra antes
de jogar a cabeça entre as mãos, respirando fundo e devagar.
Acomodei o restante dos pertences num canto próximo, as
provisões, as flechas e o punhal. Também me recostei numa
pedra enquanto tomava os últimos goles do licor para tentar
repousar daquele dia penoso.
O chá quente ainda atravessava meu peito e eu já sentia nas
veias um calor relaxante que espalhava pela minha carne. Um
torpor agradável que adormecia um pouco as dores da exaustão
e uma sensação de um ar mais leve para respirar. Mesmo com
dores na cabeça, D. Simão parecia mais disposto e perguntou,
depois de um tempo olhando meus pertences e se queixando do
mal-estar:
– Por que ainda carrega essa arma tão velha, com tantas
outras abandonadas por aí? – ele falava do punhal.
Continuei calado e tomei a dose derradeira daquele licor
amargo, ignorando sua indagação.

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Só depois falei:
– Acredita mesmo que vai encontrar ouro nessa Serra das
Esmeraldas? Poderia ter fugido para longe, para o Norte, ou
direto para as colônias da Espanha. Talvez já tenha feito isso,
uma vez...
D. Simão me encarou por um tempo que pareceu maior do
que realmente foi. Fitava-me sério, imóvel. O olhar amputado
pela velha cicatriz manifestava um pressentimento pasmo que
dizia saber que eu conhecia aquele episódio sombrio do passado.
Depois de um longo silêncio, foi, então, que falou. Achei
que se manteria calado toda a viagem, dissimulando qualquer
esforço de reviver aquela lembrança. O motivo não importava,
mas o homem frio, habilidoso nas tramas da guerra e do poder,
expôs uma passagem de uma outra época.
– Havia uma jovem índia, há alguns anos, quando Belchior
Azeredo estava no comando da Capitania e me convocou para
negociar o apoio de Maracajá e seus arqueiros contra as invasões
de Cunhambebe. Ela me falou de uma doença que se espalhava.
Mas eu já sabia da doença, mesmo negando na época. Muitos
sabiam, na verdade. Entre eles, Belchior, que também negava e
escondia dos documentos oficiais para afastar o risco de perder
as finanças do Governo Geral.
– Mas Maracajá-guaçu não atacou o exército de Cunhambebe
e nem tentou salvar a aldeia da horda dos semimortos. – falei,
interrompendo D. Simão. – Rendeu-se aos arranjos do capitão-
mor e escoltou só os poderosos em troca de um pedaço pobre
de terra afastado da Vila. Muitos morreram, entre índios e
bastardos, inclusive a jovem mulher.
D. Simão serrava os lábios e voltava a transpirar forte.
– Ao menos era a história que se contava à época. – continuei
– Embora hoje não faça muita diferença.

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– Nem os franceses, nem Cunhambebe nunca foram além da
Guanabara. Não creio nem que um dia tiveram essa intenção,
não até saberem da doença, ao menos... E eles sabiam, e o
líder tamoio entendia que manter a tensão de uma invasão em
Vila Nova lhe permitia continuar explorando mais para o sul,
onde diziam também ter ouro e prata. Eu cuidava da defesa da
Capitania e negociava o apoio de Maracajá. Mas nem ele e seus
homens puderem conter o ataque de uma horda de errantes na
aldeia. Os arcos, em vão, lançaram suas flechas sem conseguir
derrubar aquelas criaturas esfomeadas que continuavam a
devorar toda a carne humana à frente. Todos fugiram na batalha.
Todos, menos a índia, que se recusou a deixar a aldeia.
– E ela foi abandonada enquanto os doentes miseráveis
arruinavam a vida que ainda resistia aos engenhos.
– Ela não quis deixar a aldeia. Na ocasião, só tive tempo de
lhe dar um punhal como esse que você carrega. Disse para mirar
a cabeça.

***

Fiquei até o amanhecer imóvel, embora a noite se passou por


inteira sem ter me permitido um único instante de sono. Nem
o chá que esquentava o peito da madrugada fria, nem um canto
lancinante, bem ao longe e quase surdo, e que há muito eu não
ouvia, de um urutau, puderam mais acalmar e adormecer o meu
corpo. O berro longo e lento da ave suavizava o mesmo roçar na
terra das batidas afinadas que se ouviam no dia anterior.
E que voltavam, embora D. Simão, que se teve seu momento
de sono (é uma dúvida que levarei para sempre comigo), não
percebia. A exaustão e a dor forte que ainda sentia na cabeça por
certo não deixava o fidalgo distinguir os compassos que a terra

| 31 |
trazia dos passos distantes que passei a acreditar que sempre
estiveram ali, ainda que a música suave, de um rio que deslizava
sereno naquelas margens, afogassem as batidas.
Na canoa que estava o doente lançado ao rio, repousava
também um par de remos que mergulhamos entre as barreiras
de pedras cobertas pela água. Ainda que exaustos, conseguimos
subir uma grande distância contra a correnteza até onde a água
corria mais depressa, de um rio que começava a acordar e a
rosnar mais forte. Era uma fúria intempestiva das águas do
Guasisi que crescia quanto mais o rio explorava a mata densa
que envolvia a Serra das Esmeraldas, que chorava sua ira como
quem quisesse lançar para longe qualquer ameaça à riqueza
daquela terra bruta.
Entre as pedras escondidas nas águas inquietas do Guasisi e
as grossas raízes da vegetação que se entrelaçavam nas margens,
a canoa bateu com violência mais de uma vez. A impressão
era de que a qualquer instante ela se partiria em duas. Num
solavanco mais forte perdemos os remos, no outro o barco foi
parar na borda, atarracado entre dois troncos.
Nesse último movimento de sorte conseguimos deixar
a canoa e pisar em terra firme, carregando os pertences
encharcados da surra do rio. A canoa deixamos presa a um dos
troncos por algumas fibras de cipó.
Hoje eu ignoro o tempo e a distância que percorremos
depois entre as depressões e as terras planas junto às margens
do Guasisi quando D. Simão disse que percebia uma vibração na
terra, pequenos tremores que lembravam passos preguiçosos, e
que escutava um gemido perdido entre os ventos.
– Apenas alguns animais em bando.
Falei, mesmo sabendo que não havia animais por ali, e que há
dias aqueles passos nos perseguiam e os murmúrios medonhos

| 32 |
que iam abarrotando nossos ouvidos eram de uma horda em
algum lugar próximo.
As águas esgueiravam-se entre margens agora mais estreitas,
e as terras entre os rios alongavam-se num campo verde e com
árvores. No vale as colinas se perdiam até se transformarem
em serras baixas que riscavam um horizonte sobre o fundo de
um sol que se deitava. Caminharíamos mais alguma distância,
enquanto o dia permitisse enxergar o topo das serras.
Sentei-me à beira do rio para beber e apanhar umas doses
de água até sentir que se arrastava contra meu pescoço a lâmina
fria do punhal que imaginei ter perdido nas sacudidas do trecho
turbulento do rio. D. Simão pressionava contra mim o fio do
metal me causando arranhões e alguns cortes mais profundos,
que sangravam. As palavras que se seguiram foram mais
inesperadas do que aquele movimento abrupto do fidalgo.
– Era com essa lâmina que me apunhalaria para largar meu
corpo morto nessas matas e virar o banquete daquelas criaturas
miseráveis e esfomeadas? O punhal que há mais de vinte anos
rasgou minha carne, deformou meu rosto, é o mesmo que agora
você planeja tirar minha vida para levar sozinho o ouro e as
pedras dessas serras. Eu lembro de você, índio. Você é o filho
de Kaolin. O olhar daquela criança assustada, naquela aldeia
tomada por aqueles monstros, é o mesmo que o de hoje. Mas
onde tinha medo, eu vejo apenas ódio.
A lâmina afiada machucava mais fundo as feridas e as mãos
pesadas do português pressionavam forte meu pescoço até quase
me faltar o ar.
Ainda assim, eu disse:
– Ouro e esmeraldas já não valem nada para mim. Falei que
te acompanharia até próximo às Serras e de lá continuaria o meu
caminho. E é isso que farei.

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– Você mente, desgraçado! Esse era o seu plano, terminar o
que Kaolin não conseguiu.
– Ela nunca quis te matar. Sabia que se o fizesse os colonos e
os homens de Maracajá-guaçu castigariam ainda mais a aldeia
que vocês abandonaram, e matariam também o seu filho. Kaolin
o golpeou com esse punhal para marcar o seu rosto. Ela sabia
que a história não acabava ali. Só não sabia que o seu rosto já
estava marcado muito antes do corte da lâmina.
Foi com uma dificuldade menor do que eu supus que
consegui atacar e me livrar das mãos que me estrangulavam e
cortavam o pescoço. O ar que já não alcançava meus pulmões
sem muito esforço, a lâmina que se embrenhava mais fundo nas
feridas e me fazia perder mais sangue e os andarilhos que se
ouviam próximos não me davam outra escolha que não fosse
tentar afastar da minha garganta aquele punhal.
O golpe fez a lâmina ser atirada para longe, no lado oposto
ao qual empurrei D. Simão. O português se desequilibrou, mas
continuou de pé e tentou mais de uma vez correr para aonde
estava a arma. Contive suas investidas com toda a força que se fez
necessária. Na última o arremessei com violência nas margens
do rio, o que lhe custou, pelos seus gritos de dor, uma perna
quebrada e escoriações quando se arrastou sobre as rochas e os
arbustos espinhosos do leito e da margem.
O português, caído nas margens do Guasisi e preso à lama
e ao mato que envolvia o rio, me observava e pedia socorro
enquanto as águas açoitavam seu corpo.
Peguei o punhal e o observei de volta.
A terra tremia com a horda dos andarilhos que parecia agora
bem perto.
Ele gritava.
O chão úmido asfixiava os passos que se aproximavam,

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arrastando-se e esmurrando as terras próximas às margens do
rio que já não abafavam aquela batida surda cada vez mais perto.
Por um instante D. Simão desistiu de livrar o corpo preso nos
arbustos e na lama, por certo pela inutilidade de suas tentativas
que não lhe rendiam mais do que dor na perna quebrada.
Enquanto eu guardava meus utensílios e as águas desmanchavam
o sangue que escorria das suas feridas, ele me espreitava. E falou:
− Vai mesmo me deixar aqui, índio?
Eu nada respondi. Encarei aquela face, seu olho que
interrompia a cicatriz que dividia as rugas que o tempo fez
dobrar em seu rosto.
E ele continuava. Ainda mais alto. Forte. Saquei o punhal
de base serrilhada e lancei-o próximo a ele, numa distância que
bastasse um esticar de braço para alcançá-lo.
− O que farei com isso? – ele perguntou, ainda me encarando,
ainda acossado pelas correntezas e a vegetação que prendia sua
perna quebrada.
− Os arbustos estão verdes e fortes, mesmo que consiga cortá-
los vai lhe tomar muito tempo, e a fratura em sua perna não te
deixaria ir muito longe, de qualquer forma. Se der sorte é apenas
uma horda pequena, alguns andarilhos fracos, consumidos pela
fome que não foi saciada, descarnados e reduzidos a quase um só
amontoado de ossos podres. Mire a cabeça.
Não distingui as injúrias que D. Simão lançava ferozmente
contra mim, das palavras que caíam como um golpe atrás do
outro. Não pela voz desarranjada da rouquidão que se acentuava
quanto mais ele impelia com anseio o ar pelos pulmões, menos
ainda por ela se confundir com os gemidos e grunhidos cada
vez mais nítidos, sustentados pelas batidas abafadas dos passos
próximos que chegavam sem pressa. Na minha mente só tinha
espaço para um pensamento, na ocasião. A preocupação de não

| 35 |
ter atado bem o nó que prendia a canoa e o rio a ter levado para
longe. A esperança dela ainda estar lá, pois eu não podia perder
tempo e, sem os remos, esperar que lá embaixo o rio estivesse
menos turbulento e a correnteza firme para uma viagem de
volta.

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Corpos místicos

Francielli Noya Toso2

[I: 1553]

Uma noite estrelada iluminava uma aldeia ocupada por


missionários jesuítas, mas não havia nem padres nem curumins
contemplando o espetáculo. Todos, exceto a vigília, dormiam.
Três colonos e um índio estavam de prontidão, com os
olhos atentos ao entorno da aldeia. O que nenhum deles
podia imaginar era que a ameaça não despontaria de fora.
De dentro de uma das ocas um doente despertou com fome e
surpreendeu o companheiro ao lado, devorando seus membros
superiores com uma avidez que nenhum canibal já havia
demonstrado. Os gritos rasgaram a noite.
Despertos, colonos e guerreiros tupinambás se armaram
para a defesa, tentando detectar alguma invasão. Entretanto, não
tinham qualquer chance de vencer o ataque – apenas porque não
podiam entender o inimigo.
O inimigo não caía com uma flechada. Muito menos com
uma oração. O chefe Tibiriça, um tanto atordoado pelos gritos e
desequilibrado pelo sono, conseguiu carregar seu arco a tempo
e acertou a coluna de um colono. Mas não pôde fazer mais que
isso. Após o disparo, o pomo de adão do chefe fora arrancado
com dentes muito afiados.
2 Nascida no ES, tem carreira docente e artística, entre a sala de aula, escrita,
pintura e cinema – em simbiose. Publica história em quadrinhos, faz direção de
arte de animação, ilustra livros e escreve contos e roteiros de curta-metragem.
Aprecia a pesquisa artística e científica, por isso também é Mestra em Letras.

| 37 |
Havia mais de um esfomeado. Com o olhar vazio e a boca cheia
de dentes, foram estilhaçando os aldeões sem fazer distinção de
cor, lança, pólvora, água benta. Nem todos foram devorados, mas
nenhum seria salvo. Naquela noite, Deus não estava ali.

[II]

(...) Diz que quer ser cristão e não comer carne humana, nem
ter mais de uma mulher e outras coisas: somente que há de ir à
guerra e os que cativar vendê-los e servir-se deles, porque estes
desta terra sempre tem guerra com outros e andam todos em
discórdia. Comem-se uns aos outros, digo os contrários. É gente
que nenhum conhecimento tem de Deus, nem ídolos, fazem tudo
quanto lhe dizem (...)
Nas dependências do Colégio dos Meninos de Jesus, Padre
Manuel da Nóbrega redigia com decoro e sem jocosidade mais
uma carta ao El Rei Dom João III. Ao final da redação, entregou o
pergaminho para um dos irmãos que embarcaria na caravela de
Mem de Sá. Naquele dia, o padre Nóbrega também se preparava
para mais uma viagem. Há quatro meses, um membro da
Companhia tinha apaziguado uma aldeia de tupinambás ao Sul
e precisava averiguar se estava tudo em ordem, de acordo com as
Constituições. Sua expedição o aguardava para atravessar a mata.

[III]

Calor escaldante. Mata densa. Por alguma razão ele está


sozinho e isso o assusta. Olha para cima: não vê o sol, apenas as
folhagens de várias árvores provavelmente milenares.

| 38 |
Sempre dissera para si mesmo que o hábito não era a melhor
vestimenta para esta região. Mas o calor, desta vez, sufoca mais
que o normal: o hábito se transformara numa cobra que, sem
que ele se desse conta, já havia envolvido o seu corpo e agora lhe
aperta o pescoço. Não consegue respirar.
Calor escaldante, mata densa. As folhagens estão se fechando
contra ele. O ar vai acabar. Neste momento só é capaz de
questionar suas escolhas tão bem pensadas. O que poderia ser
pior do que aquilo, aquele mundo? O réptil o paralisa cada
vez mais, prendendo seus membros. Seus músculos estão
imobilizados pela força de uma jiboia gigantesca. Sua visão
começa a escurecer. Ele teme o bote, imaginando que em poucos
segundos ela vá quebrar seus ossos.
Ele, então, resiste. Consegue dar alguns passos cambaleantes
e vai parar próximo a uma cachoeira.

[I]

Na aldeia, alguns guerreiros brancos e vermelhos ainda


resistiam. O chefe Tibiriça teve parte da carne de seu
pescoço arrancada e uma das veias lançava um intenso jato
de sangue. Mas ele não caíra de imediato. Primeiro tentou
conter o sangue com as mãos, depois dobrou os joelhos
sobre a terra e, por fim, caiu, pedindo a Deus misericórdia.
A sua volta, os mortos-vivos marchavam com a cabeça manchada
de sangue e o corpo espetado de flechas.
As estrelas iluminam tudo, passivamente.

| 39 |
[II]

A expedição do padre Manuel da Nóbrega subiu com


dificuldade a serra de Paranapiacaba. Com isso, chegariam com
pelo menos 3 dias de atraso ao campo de Piratininga. A previsão
tinha sido baseada na premissa de que a trilha dos tupiniquins
estaria em boas condições, uma vez que aquele trajeto fora
atravessado por várias expedições em pouco tempo.
− Pelo menos não fomos emboscados, meu senhor − o noviço
José de Anchieta fazia parte da missão e auxiliava diretamente
seu superior.
− E-e-e que assim Deus nos permita continuar −
uma breve pausa em sua fala dava a impressão de que
lutava com as palavras − Vo-vo-vo-você sonha, irmão?”
Padre Anchieta manteve os olhos a frente – o que o outro queria
dizer? Dado o histórico político de Nóbrega, Anchieta temia
que aquela conversa se tornasse um confessionário fora de hora;
por isso julgou ser melhor guardar para si os eventos do sono.
Nóbrega, no entanto, insistiu com o assunto.
− Te-te-tenho certeza que esta terra é um sonho que Deus
sonhou para nós − padre Nóbrega falava lentamente, evitando
ecoar as sílabas. Para o seu interlocutor, aquele era um bom
momento para continuar ouvindo, sem dar satisfações sobre o
motivo de tanto salmo rezado de madrugada.
− Quem pode entender? Ontem sonhei que era escravo.

[III]

Vento suave. Mata aberta. De onde está pode ver algumas


pedras que contornam o rio, isolando a água, como uma

| 40 |
enorme poça. A superfície é calma, refletindo um céu azul, de
raras nuvens.
Vento suave, mata aberta. Mais à frente, a queda d’água – cujo
som parece música aos seus ouvidos. Dali sai um frescor, um
perfume sem perfume da natureza mais gentil. Quando puxa
aquele ar puro, percebe que não existe mais nenhuma cobra em
seu pescoço, nem mesmo um hábito. O padre está nu.
Alguns pássaros cuja origem ele desconhece cantam alguma
melodia daquela terra. Tentando identificar de onde vem o canto,
vislumbra uma entidade de pele rubra e cabelos envernizados
– uma índia tupiniquim assoviando para si mesma num ritmo
plácido. Repara que ela toca a água com os pés. Os pés estão
descobertos, assim como o resto do seu corpo. Não há nenhum
sinal de que ela estivera vestida antes. Mas isso, estranhamente,
não o assusta. Os pássaros fazem um coro conduzido pelo sopro
da mulher. Tudo é música, tudo é encantamento.
Ela ainda não percebeu a presença dele no ambiente. Talvez
esteja fingindo que está só. Talvez não se sinta só. Ela sabe que
é rainha daquele lago. Não é a natureza que lhe premia com
a beleza, é ela que toca a água e lhe dá as propriedades mais
castas. Há uma comunicação entre a índia e o rio que faz com
que seus seios se enrijeçam. Neste lugar, nada está parado. E
o vento balança suavemente seus cabelos. Tudo é dança, tudo
é encantado.
A pele dela brilha como se antes de chegar ali houvesse se
banhado em algum óleo sagrado, num ritual desconhecido. Suas
curvas são a própria fruta da árvore do pecado: lisas, vermelhas
e arredondadas. Ela mede a temperatura da água e parece
desencorajada; mas, depois de visualizar a cachoeira, um tipo
de energia faz com que tome impulso e salte de uma vez. Ela
desaparece na água.

| 41 |
Ele, um tanto surpreendido pelos movimentos dela, olha para
as próprias mãos e braços: são brancas e cheias de pelos. Mas não
é só isso. O corpo dele está quente novamente, com uma pulsação
diferente. Está excitado. A cena lhe contagiara, enchendo suas veias
de um fogo vivo. Agora é um homem descobrindo o novo mundo.
Ela, no entanto, não volta à superfície. Ou pelo menos não está
mais no campo de visão dele. As águas podem tê-la levado para
onde ele não alcançaria. Ela pode ter se chocado contra uma
pedra. Ou ter virado pedra. Ele talvez nunca mais volte a vê-la.
Engano seu. Os pássaros continuam cantando. Ela ainda existe.
Ele dá alguns passos na direção do lago, que parece não fazer
mais nenhum movimento. O som dos pássaros, entretanto, se
mistura a uma voz muito melodiosa, ainda que num volume
quase inaudível. Ele se aproxima mais do lago, onde não vê
nenhum sinal dos cabelos negros que a pouco submergiram. Ela
já deve ter voltado à superfície e agora canta. A voz, para seu
espanto, vem de dentro da água, como se as pedras fizessem um
coro distante. A excitação aumenta.
Ele não quer entender o fenômeno que embaraça seus
sentidos. Apenas quer voltar a ver a beldade do lago. Enquanto
olha para suas profundezas, pensa que um rabo de peixe fez um
estalo na superfície da água e já está fora das suas vistas.

[I]

O ataque, enfim, cessou. Os que não morreram, agonizavam,


feridos. O céu, antes estrelado, agora está nublado. Mal se pode
ver o resultado da chacina. Provavelmente uma aldeia inteira
foi dizimada, pensou o único padre que sobrevivera. Ele, no
entanto, possuía uma ferida aberta nos pés que lhe fazia mancar

| 42 |
no meio do holocausto. Seus olhos semicerrados procuravam
uma alma viva para entregar a Deus – ou só para lhe fazer
companhia naquele momento de desespero.
Passou ao lado de um colono com um ferimento na cabeça e
que ainda respirava, mesmo sofregamente. Pensou em abaixar-
se na altura do conterrâneo e lhe perguntar o nome. Mas não
teria coragem de iniciar uma conversa com alguém sem rosto.
O homem caído era um conhecido que se tornara totalmente
irreconhecível. Além disso, parecia coberto de vômito. O padre
sentiu repugnância e temor. O medo, aquele veneno, lhe paralisava
mais que a dor da mordida que levara. Cada passo, uma ave-
maria, um pedido de socorro a Deus − que nada respondia.
O cheiro começava a ficar pútrido, nauseante. Seria possível
que os corpos humanos apodrecessem em tão pouco tempo?
O padre levou os dedos ao nariz, mal suportando o odor do
massacre. Devia se afastar dos corpos atrás de si, entretanto seu
pé não o levaria muito longe. Em vez de procurar algum vivo,
pensou, melhor caminhar até a oca onde os índios guardam
suas emulsões.
Agoniado com a dor, o padre inclinou-se para verificar o
estado da ferida. Na mesma hora, uma flecha passou próxima
a sua cabeça. Não houve tempo de reagir, de buscar a origem
da ameaça, pois imediatamente o padre vomitou. Prostrado,
vomitou muito. Seu estômago revirava em vômito. Não sabia
se vomitava de nojo, de medo ou de doença. Apenas expulsava
um caldo espesso numa quantidade improvável. Parecia que sua
alma ía embora pela boca.
O jovem Piquerobi estava escondido em cima do galho de
uma árvore. Uma das árvores mais altas da Mata Atlântica,
que os portugueses passariam a chamar de Jequitibá rosa.
Quando o ataque começara, o primeiro impulso de Piquerobi

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fora o de procurar um dos missionários jesuítas para matá-lo.
Antes de encontrar seu desafeto, no entanto, viu o seu irmão e
também chefe da aldeia ser atacado e em seguida defendido, mas
sem muito sucesso. O chefe tombara e seu defensor, um soldado
colono, era devorado avidamente por outro colono, que parecia
indiferente a qualquer investida.
Piquerobi, ao observar a luta perdida contra o mortos, pegou
seu conjunto de flechas e correu com destreza, contornando
toda a aldeia. Um branco que o visse correr daquele jeito logo
pensaria que o guerreiro estava fugindo. Mas todas as tribos
sabiam que o filho do Norte não teme a morte.

[II]

O padre Anchieta já havia superado o primeiro impacto em


relação à gagueira de padre Nóbrega. Os dois irmãos estavam
juntos na mesma missão e Anchieta aprendera muito com o
amigo, sobretudo acerca da pedagogia do amor. A doutrinação
dos gentios exigia deles muita disposição. Nóbrega já havia
fundado vários colégios desde que chegara à Colônia e agora
tratava de fiscalizar o andamento de alguns deles.
Na época em que desembarcou no Novo Mundo, Nóbrega
se assustou com o estado de depravação moral em que se
encontravam as vilas. Os colonos, em vez de civilizar os selvagens,
se deixaram influenciar pelos hábitos dos que não tinham deus.
Os brancos se despiram como os índios, despudoradamente. Em
suas cartas para a Corte Portuguesa, o padre denunciava cada um
dos colonos que não seguia os protocolos da Santa Madre Igreja.
O jesuíta estava ali para cobrir a todos com o tanto de algodão que
aquela terra podia prover. Nenhuma vergonha ia passar à vista.

| 44 |
Faziam parte da expedição ao campo de Piratininga os dois
padres, alguns soldados colonos, seis tupinambás catequizados
e um menino órfão que viera de Portugal para ser educado pela
Companhia. O órfão se chamava Antonio e logo seria enquadrado
como missionário. Padre Nóbrega frequentemente enviava
relatórios ao seu orientador detalhando o desenvolvimento dos
órfãos que ficaram sob os cuidados dos colégios jesuítas. A maioria
dos meninos não apresentaram bons resultados, mas Antonio
estava indo bem, de acordo com os preceitos do padre, e logo
poderia colaborar mais ativamente na doutrinação dos gentios.
Depois de quatro dias de caminhada, vislumbraram, ainda um
pouco distantes, o que deveria ser o campo de Piratininga, mas o
jovem padre Anchieta estava muito desconfiado. O mensageiro
que pediram para ir a frente para avisar sobre a chegada da
expedição não dera nenhum sinal e na trilha não esbarraram
com nenhum gentio ou colono. Continuaram. Cada um nos seus
pensamentos e passos.
Sonhos.
Nóbrega não costumava pensar neles durante o dia. Desde
que cruzara o oceano, não tinha mais imagens da terra natal
e sonhava apenas com o cenário da colônia, com questões da
colônia. Era como se contasse com a possibilidade de não voltar
mais. O que haveria para ele em Portugal? Sentira-se expulso
do ventre materno desde que fora reprovado nos exames para a
cátedra da Universidade. Por duas vezes. Seu texto era brilhante,
disseram eles, mas tinha uma dicção que não servia ao ensino.
As suas obras na Colônia dariam conta de enterrar essa derrota?
O órfão Antonio, que se adiantara, voltava correndo.
Aumentando as desconfianças de padre Anchieta, a criança
comunicou-lhe que a vinte metros de onde estavam havia uma
carcaça humana.

| 45 |
Padre Nóbrega não parecia incomodado com a notícia. A morte,
há algum tempo, lhe parecia indiferente.
− Senhor, havia também um baú.
− Um b-baú? − agora quem gaguejava era Anchieta. O padre
estava assustado − Ao menos conseguiremos identificar o corpo.
− E a sua a-a-alma entregaremos a Deus. − Nóbrega encarou
o outro padre − Irmão, escutes: aqui, os homens estão sempre
em discórdia e guerra. Nossa m-m-m-m-maior missão é trazer o
evangelho para os seus corações. O amor e o batismo vão civilizá-
los. Anchieta fez um gesto de concordância, mas sem conseguir
dissipar o temor.
O corpo estava agarrado a galhos, em cima de uma pedra.
Próximo dele, um córrego. Ele não estava exatamente na trilha, mas
o menino o encontrara seguindo o som da água. A intenção era
saciar a sede e reabastecer seu cantil. Quando chegou ao córrego,
Antonio se deparou com o baú e o corpo.
Não havia nenhum sinal de contato com os nativos.
− Parece um marujo que morreu doente − deduziu Anchieta.
Padre Nóbrega se aproximou do corpo para fazer um sinal
da cruz na testa ossuda. Um dos colonos que acompanhava a
expedição, no entanto, cochichou para outro:
− De onde ele veio?
Padre Anchieta, ao ouvir a pergunta, tentou levantar a tampa
do baú, buscando informações sobre a origem daquele sujeito. Não
conseguiu. Estava emperrada. Os colonos voltaram a cochichar.
Sentiam medo. Aquele baú não devia ter sido tocado, nem mesmo
o corpo. Era o que pensavam. Os índios que os acompanhavam
mantiveram-se impassíveis, como se não houvesse nenhuma
tensão.
− Temos que seguir nosso caminho. Peguem água e vamos
embora − ordenou padre Nóbrega.

| 46 |
− E o baú? − Anchieta indagou.
− V-v-v-vamos levar. Estamos chegando.
Os tupinambás carregaram o baú.

[III]

Ela pode estar embaixo da queda d’água. O homem esfrega


os olhos com as mãos e depois os fixam na outra extremidade do
lago, onde colide uma grande quantidade de água. Parece haver
ali uma sombra, uma silhueta confundida com a cachoeira. Ele
só poderá tirar a dúvida caindo no lago e nadando até lá.
O desejo dele em nenhum momento diminui. A busca pela
mulher só fizera seu sangue esquentar ainda mais, porque
sabe que ela está por perto e o chama. O som da corredeira do
outro lado começa a formar uma sinfonia junto com as batidas
aceleradas de dentro dele.
Não há mais o que procurar com os olhos. Ele avança sobre a
água, que mede na altura de sua cintura. Continua dando passos
submersos em direção à queda. Sabe que ela está ali, recebendo
em sua cabeça a água que escorre das pedras mais altas. O
volume do canto aumenta. Ele tenta dar passos mais largos e
rápidos, mas a sensação é a de que não está se aproximando do
destino. Usa as mãos para afastar a água, que fica cada vez mais
funda. Sente em sua virilha a pressão e o toque das criaturas
ribeirinhas, como se estivesse recebendo uma massagem das
sereias.
Será que ele está sendo afastado pela correnteza ou está muito
lento?
Não há correnteza.
Continua.

| 47 |
[I]

Escondido estrategicamente sobre os galhos da árvore,


Piquerobi mirava a aldeia. Possuía dezoito flechas no seu
compartimento de guerra. Deveria, portanto, economizar,
selecionando muito bem seu alvo. A distância em que estava era
segura; contudo, era desafiadora para um arqueiro. Ele escolhera
aquela árvore pela altura, imaginando que teria alguma visão da
aldeia. E estava certo.
A mata em que viviam era muito densa, de maneira que
muitas plantas e árvores menores obstruíam a entrada da
aldeia. Aquilo protegia os tupinambás de ataques externos. Mas
Piquerobi já tinha escalado todas as árvores em torno da sua
casa. Ele sabia qual poderia oferecer uma mira razoável, sem ser
visto.
O índio calculou que deveria acertar, inicialmente, membros
de uma tribo invasora; caso não houvesse invasor, todos os
estupradores – o que, para ele, era sinônimo de português. As
estrelas o ajudariam.
Desde que os colonos haviam se fixado em Piranapiacaba,
dominaram a aldeia de Piquerobi. Os brancos possuíam arma
de fogo, o que não era suficiente para se manter na tribo, mas
impressionava alguns integrantes. Aqueles homens vestidos de
tecidos coloridos pareciam interessados apenas nas mulheres,
no fumo e nas cachoeiras. Isso não oferecia muito perigo para
o cacique da aldeia, Tibiriça, de maneira que a cada dia mais
pareciam amigos, trocando objetos. Alguns meses depois, seus
companheiros estavam algemados e derrubando árvores.
No fim, não fora a força que garantira a permanência dos
colonos, mas a estranha intimidade que compartilharam com o
cacique e outros índios.

| 48 |
Piquerobi nunca aceitou muito bem a presença dos brancos,
principalmente a dos que em pouco tempo descobriu se
identificarem como padres. Esses faziam para os seus irmãos
promessas que pouco lhe interessavam. Algumas delas ele sequer
entendia. Do alto da árvore, Piquerobi avistou sua aldeia. Seus
amigos e seus inimigos pareciam tomados por algum espírito.
Mas a visão do guerreiro aos poucos escurecia. O que estava
acontecendo? Era o medo? A raiva? Olhou para cima: as estrelas
haviam se escondido e o céu rapidamente se preparava para
lançar água à aldeia.
Piquerobi precisava acostumar suas vistas à escuridão que se
instalara. Só assim poderia mirar a aldeia. Permaneceu, por isso,
no alto da árvore, tentando detectar os movimentos que estavam
no seu campo de visão. Logo enxergaria alguma coisa. Tentava
afastar a qualquer custo a imagem de seu irmão sendo atacado.
Deveria ter investido em sua defesa, mas não sabe porque tomou
o caminho contrário. Preferia acreditar que seu gesto era fruto
de uma mente guerreira e estratégica, que não reagia no impulso.
Mas seu irmão talvez já estivesse morto. A concentração estava
falhando. É preciso salvar algum familiar ainda.
Alguém da aldeia devia estar clamando por ajuda neste
momento.
O índio afiou seu olhar. A arma já estava preparada. Em
pouco tempo conseguiu visualizar com mais nitidez a aldeia. Os
mortos-vivos já haviam se dispersado para a mata. Não havia
ninguém de pé. Pelo menos ninguém que ele fosse capaz de ver.
Concentre-se! Eles tem que estar lá ainda! Quem são?
Viu um homem vestido, caminhando de forma estranha.
Lembrava em algum nível os movimentos que ele tinha
visto rapidamente quando ainda estava na aldeia. Mirou
cuidadosamente. Era um padre. Bom sinal.

| 49 |
Soltou a flecha.
Do outro lado, a flecha não acertou o alvo. Mas o padre ia
perder os sentidos. Seus pensamentos estavam se anuviando,
como se ele estivesse na entrada do paraíso. Entrar no paraíso
devia ser assim, uma ausência de pensamentos. Como podia
ser assim? Os índios é que não tinham pensamento. Eles
que tinham a mente vazia! Como o paraíso poderia cheirar
insuportavelmente a vômito e carne podre? A vida do padre se
encerra logo após proferir suas últimas palavras do breve sermão
para os mortos e degenerados.

[II]

A expedição dos jesuítas já estava próxima de Piratininga.


No meio do caminho encontraram alguns nativos derrubando
um pé de pau-brasil. Olhares intimidatórios foram trocados,
mas sem confronto. Eram tupinambás. Eram temíveis.
Mas o contato com o chefe deles já havia garantido alguma
possibilidade de harmonia. Tibiriçá era um guerreiro de
muita influência na região e os colonos que lá chegaram foram
capazes de estabelecer relações minimamente diplomáticas.
Estavam enfrentando grandes dificuldades na conversão da
maioria da aldeia. Havia dois anos que um grupo de colonos
se estabelecera na tribo de Tibiriçá. Sem dúvidas haveria muito
trabalho para os missionários.
Nóbrega se aproximou dos índios que estavam empenhados
no corte da árvore. Com expressões benignas, o padre lançou-
lhes uma bênção:
− Homens desta terra, que nosso Senhor Jesus v-v-v-vos
ilumine e a-b-b-bbençoe.

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Os índios nada responderam, continuando a executar suas
funções como se o sacerdote não estivesse ali. Padre Anchieta
reparou que estavam acorrentados.
− Senhor, acredita que entenderam alguma palavra do que
disseste? − questionou Anchieta, quando os dois sacerdotes já
haviam se afastado dos gentios.
− Trabalhei por tirar na língua as orações e algumas práticas
de Nosso Senhor e não p-p-p-p-posso achar língua que saibam
falar, porque são eles tão brutos que nem vocábulos têm. Esse
vazio p-p-po-pode frustrar. Como doutrinadores, nosso dever
é não desistir.
Ao chegar no campo de Piratininga, no coração da aldeia, a
expedição fora recebida por Dom Gonçalo Alvarez e pelo chefe
Tibiriçá. Os dois estavam lado a lado.
Logo os jesuítas encheram Dom Alvarez de perguntas: por que
não tinha sido concluída a construção da capela e do colégio, por
que todos estavam dormindo e comendo como os gentios, com
colonos se engraçando com as mulheres, e, sobretudo, como
andava a catequização dos gentios.
− Cada dia ensinamos a doutrina aos escravos desta vila, que
são muitos − começou a responder Dom Gonçalo Alvarez, um
pouco embaraçado. − Não ouso aqui batizar estes gentios tão
facilmente, ainda que nos peçam muitas vezes, porque eu temo
de sua inconstância e pouca firmeza, a não ser quando estão a
ponto de morrer. Tem-se aqui pouca confiança neles, porque são
muito imprevisíveis, e os homens parecem impossíveis virem a
ser bons cristãos. − Dom Gonçalo Alvarez, que também era um
sacerdote em missão, já havia manifestado isso em carta e agora
o repetia pessoalmente aos dois padres.
− Em v-v-v-vez de batizá-los, tornou-os escravos. Eles têm
alma. Não podem ser escravos! − Nóbrega o cortou.

| 51 |
− Por demais é trabalhar com estes; são tão bestiais, que não
lhes entra no coração coisa de Deus; estão tão encarniçados em
matar e comer, que nenhuma outra bem-aventurança sabem
desejar; pregar a estes é como pregar em deserto às pedras.
− E este? − Anchieta apontou para o chefe Tibiriçá.
O guerreiro e chefe da aldeia era um homem alto, de porte
atlético e olhar grave. Todos os índios tinham aquele olhar
calado, mas profundo, como se não olhassem para os brancos,
mas para o abismo.
Enquanto Anchieta esperava uma resposta de Dom Alvarez,
foi chefe Tibiriça que se dirigiu ao padre. O índio tirou o
crucifixo do pescoço de Anchieta, colocou no próprio e, com
uma voz firme, disse:
− Cristão.
A resposta de Tibiriça surpreendeu a todos, até mesmo a Dom
Alvarez. O olhos de Nóbrega brilharam. Havia ali uma esperança
para a pedagogia do amor, visto que o líder do principal grupo que
resistia à colonização estava dando mostras de aceitar o evangelho.
Dom Alvarez não podia imaginar aquele gesto de Tibiriça.
O acordo inicial, com isso, havia se quebrado. Agora parecia se
iniciar um novo contrato, com outros envolvidos. Os dois padres
aparentemente chegaram para ser um empecilho na exploração
de pau-brasil, justo quando os negócios tinham avançado. Dom
Alvarez teria que ser cuidadoso para não perder o seu poder e
bem-feitorias que, com muito custo, havia começado.
Dom Alvarez deixou que os padres se empenhassem durante
semanas na catequização dos gentios. Isso poderia atrasar
a exploração, mas evitaria problemas maiores com a Corte
Portuguesa, visto que aqueles irmãos tinham total apoio do
rei. Atrasaria apenas, porque Dom Alvarez esperava que eles
falhassem na missão. Assim, toda vez que ouvia os sacerdotes

| 52 |
reclamarem do que chamavam de vícios dos tupinambás, ele se
regozijava. Era mais empreendedor que religioso. E pensava o
mesmo de todos, inclusive de Nóbrega e Anchieta.
− D-d-d-dão crédito a um feiticeiro que lhes põe a bem-
aventurança na v-v-v-vingança de seus inimigos e na valentia... e
em t-terem muitas mulheres − Nóbrega às vezes desabafava com
Anchieta.
− Senhor, ou perseveramos no amor, ou teremos que usar o
medo − o outro padre tentava acalmar o colega.
Dom Alvarez dava graças a Deus.

[I]

Certa noite, Nóbrega acordou assustado. Desde que


começaram a expedição a Piratininga, o padre não dormia bem
e muitas vezes passava a noite em claro, orando.
Desta vez sonhou com o baú que haviam trazido da mata. Já
se passava um mês que se esqueceram dele no canto da oca. De
tanta ocupação com a educação dos gentios, nunca olharam o
que lá estava guardado.
No sonho, Nóbrega abria o baú e via que dentro dele estava
nu, de pernas dobradas e inerte o órfão Antonio. Morto. Morto.
Uma criança sem vida lhe causava mais dor que surpresa.
O padre então chorou sobre o corpo do menino. As lágrimas
caíam sem parar, molhando o rosto de um órfão. Lágrimas de
luto, lágrimas de fracasso. Enquanto tentava parar de chorar, viu
que não era mais o corpo do menino e sim ele mesmo que estava
dentro do baú, sem vida. Foi tomado por um espírito de terror e
desespero. Ele se viu, morto, abrir os olhos, levantar do baú, com
dentes podres, uma pele pálida e um gesto de sonâmbulo.

| 53 |
Ele era um monstro! Um monstro que despertou cheio
de fome, pronto para dizimar. O medo corroeu suas veias. O
coração disparado parecia à beira de um ataque.
Aquela dor no peito que lhe despertou.
Foi só um pesadelo. Ele já estava acordado. Tinha que abrir
os olhos. Tinha que ter coragem de abrir os olhos.
Após uma ave-maria, abre ambos os olhos. Vê o teto da oca,
ouve o coachar de algum sapo. Só precisava verificar o baú para se
tranquilizar por completo. Lavou o suor com água de uma jarra,
tentando dissipar qualquer lembrança do sonho. Olhou para o
outro lado e viu Anchieta dormindo. O jovem padre balbuciava
alguns gemidos, que logo Nóbrega identificou serem de prazer.
Ninguém mais dormia ou entrava naquela oca, só os
dois padres. Quase toda a aldeia, naquela noite, devido ao
calor, dormia embaixo das estrelas. As ocas tinham espaço
suficiente para abrigar várias famílias de índios, contendo redes
penduradas, mas Nóbrega e Anchieta preferiam o chão. Além
dos padres, também estavam dormindo em ocas os colonos
e suas concubinas, que eram as mulheres da aldeia. As ocas
costumam ser espaçosas, por isso Nóbrega se lembrava de
terem deixado o baú por ali.
Realmente, o baú misterioso estava próximo da parede
de palha. Como no sonho. Estranhamente, havia uma grande
diferença: o baú se encontrava aberto.
O padre ponderou se devia se aproximar do baú, já que o
medo não evaporara de todo e seu coração voltava a acelerar.
Ouviu gritos vindo de fora.
Pelo buraco da porta, Nóbrega viu alguns guerreiros correndo.
Alguém havia destroçado o companheiro ao lado. Diante dele,
um índio se metia a comer o pescoço de outro índio. O padre
voltou a encarar o baú. Não era outro sonho.

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− O que está acontecendo? − é a voz de Anchieta, entre
embriagado e assustado. O jovem padre não teve tempo de ouvir
nenhuma resposta. Um homem morto passa pela porta da oca e,
com as mãos a frente, num andar sonâmbulo, se atira sobre ele.
Nóbrega não olha para trás. Tinha que assinar o seu destino
sem titubear. Entra no baú e ali se tranca.

[I]

Do outro lado, a flecha não acertou o alvo. Mas o padre ia


perder os sentidos. Seus pensamentos estavam se cobrindo de um
véu ou virando nuvens, como se ele estivesse na entrada do paraíso.
Entrar no paraíso devia ser assim, uma ausência de pensamentos.
Como podia ser assim? Os índios é que não tinham
pensamento! Como o paraíso poderia cheirar insuportavelmente
a vômito e carne podre?
A chuva cai em gotas pesadas. Alguns mortos começam a
se levantar. A madrugada vem descendo sobre eles junto com a
tempestade. A vida do padre se encerra logo após proferir suas
últimas palavras do breve sermão para os degenerados.
− Que ninguém conteste sem morrer: esta terra é nossa
empresa. Enquanto corpos místicos, nossa missão é levar a boa-
nova. Que venham os cristãos, pois eu vos convoco a pregar a
partir de uma pedagogia sem erros: está aberta a escola do medo!

[III]

Ao chegar, não há mais queda d’água. Não há mais som


de pássaros. Ela está ali, deslumbrante. Não há mais som de

| 55 |
pássaros. Ela está nua. Não há mais som de pássaros. Ele está
perto dela. Não há mais som de pássaros. Ela lhe sorri. Não há
mais som de pássaros. O coração dele para de bater. Não há mais
som nenhum.
Ele a devora.

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Santa do Morro

Silvio Alencar3

Ruud acordou com um cheiro forte de bílis e urina ao seu lado.


O navio chacoalhava tanto que achou melhor levantar-se antes
que algo escorresse até o encontrar. Puxou as correntes dos pulsos
e sentou, encostando-se à parede. Olhou em volta procurando a
fonte do cheiro na escuridão do porão. Havia pessoas espalhadas
por todos os lados, todas acorrentadas como ele, mas ninguém
parecia ser a fonte do odor. Então ouviu um velho próximo de
si, vomitando. Praguejou em voz alta e tentou, sem sucesso, se
afastar. Já era ruim demais estar a ferros dentro de um navio
pirata, não precisava pegar a doença das tripas também.
− Me desculpe − disse o velho, fracamente, em português −
Não me sinto bem, acho que estou com febre.
− Não falo português − respondeu Ruud, em holandês.
O velho voltou a cabeça, com esforço, para Ruud.
− Claro que não − disse o velho, em holandês, e depois deitou
a cabeça, possivelmente no próprio vômito − Como poderia ser
de outro lugar?
O biotipo de Ruud era inconfundível. Alto, cabeleira e barba
ruivas e a pele branca como o leite. A única coisa que destoava
do arquétipo tradicional viking era a musculatura, que não era
lá essas coisas.
3 Silvio Alencar, formado em Publicidade e Propaganda, é roteirista de
história em quadrinhos e escritor. Publicou a graphic novel “Contos da Ilha
de Santônio” e os quadrinhos online “Contos Estranhos” (contosestranhos.
com.br), além de ser autor dos livros “O Carregamento e outras histórias” e “O
Grande Martelo”. Atualmente é roteirista do projeto “MPT em quadrinhos”, do
Ministério Público do Trabalho do ES.

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− Como você fala a minha língua? − perguntou o ruivo.
− Trabalhei muitos anos para a Companhia das Índias
Orientais. Traduzia documentos, participava de reuniões como
intérprete e fazia a contabilidade. Aprendi algumas coisas. O que
não aprendi foi ficar de boca fechada.
O velho deu uma risada baixa entre algumas tosses e depois
ficou em silêncio. Ruud achou que ele havia desmaiado ou
morrido. Estava enganado.
− De onde você é? − o velho havia se virado e olhava para o
holandês. A barba branca estava suja e pegajosa.
− O que isso lhe interessa, velho?
− Sou Martinho, padre Martinho.
− Um padre que trabalhava para a Companhia das Índias? −
riu Ruud.
− Nunca fui um padre muito bom. Era isso, ou morrer de
fome. Fui o sétimo filho de meus pais. Não havia comida ou
dinheiro para todos. Minhas irmãs foram dadas em casamento e
meus irmãos vendidos para companhias militares. Eu tive sorte,
Cristo me acolheu. Até eu virar as costas para ele e conseguir
emprego na Companhia das Índias. Precisavam de alguém de
letras para controlar o estoque. Depois fui realocado em outras
funções. E quanto a você?
− O que quer saber?
− Qualquer coisa. Conversar me faz esquecer o meu mal.
Você é calvinista?
− Pareço calvinista?
− É holandês, não é? Seria um bom chute.
− Não me importo muito com isso. Tenho minha fé, não
preciso de igreja para pagar dízimo.
− Uma boa política. Qual é o seu nome?
− Ruud.

| 58 |
− Por que está aqui, Ruud? Foi sequestrado de seu navio?
− É complicado.
− Não quer falar?
− Você sempre fala tanto com quem não conhece?
− Como disse, não consigo ficar de boca fechada.
− Calem a boca! − gritou um dos prisioneiros, e o assunto
morreu.

Ruud conseguiu voltar a dormir com muito custo. Um


pouco antes do amanhecer, sentiu algo puxar o seu pé. Era o
velho novamente.
− Você é bom em guardar segredos? − perguntou ele, próximo
ao rosto de Ruud.
− O que é isso? − Ruud tentou afastar o corpo, mas o velho
estava agarrado a ele e espetava sua barriga com um pedaço de
osso afiado.
Então Martinho empurrou um pequeno embrulho para
dentro da boca de Ruud.
− Não grite. Engula, vamos, ou eu te furo o bucho.
Com dificuldade, Ruud engoliu o papelote.
− Bom garoto, disse o velho, com um sorriso desdentado.
Isso estava no meu bucho, agora está no seu. Custou muito para
tirar de dentro de mim. Agora, preste atenção, somente eu posso
traduzir o que tem aí, não tente me passar para trás. Sem mim
não vai adiantar de nada. Entendeu? Se me ajudar a fugir, farei de
você um homem rico.
− Fugir? Por que fugiria? Logo estaremos no Novo Mundo e
estará livre para fazer o que bem entender.
− Não eu, jovem rapaz. Eles querem o que sei e não me deixarão
ir tão facilmente. Não devia ter bebido tanto no Mistel ou falado
tanto. Enfim, preciso escapar do capitão, você me ajuda?

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− Ficou louco, velho. Ninguém foge do pirata Cavendish .
− Homem de pouca fé. Meu Deus me mandou em uma missão
santa no Novo Mundo, Ele vai mandar ajuda. É só esperar e verá.
− Se Ele vai tanto lhe ajudar, por que não deixou essa porcaria
na sua barriga?
− Nestes tempos difíceis de 1620, meu filho, até os milagres
precisam de ajuda.
Um pouco depois do desjejum de mingau encaroçado o
padre foi levado por dois homens ao andar superior.

Depois de dois meses de viagem, Acácia pôde subir ao convés


com seu pai para poder sentir o ar fresco e salino do Novo
Mundo e ouvir o som de pássaros e o que o capitão tinha a dizer.
− Chegamos − gritou ele, para se fazer ouvir por todos. Depois
daquelas árvores e praia está a terra de vocês como foi prometido
pela Coroa. Há mais para saber. Algumas orientações. Mas vou
deixar o alcaide Borges tomar a palavra.
O pai de Acácia soltou o braço da filha e se adiantou,
deixando-a sozinha encostada à amurada.
− Meu nome é Pedro Henrique Borges Villas Boas. Fui o
responsável pela oportunidade que tiveram em seu respectivo
país de poderem ter uma vida nova no Novo Mundo. Cada um
de vocês, cada um, sabe o que fez para estar a ferros em seu antigo
país. Não perguntei e nem quero saber o que fizeram, isso ficou
para trás. Daqui para a frente é vida nova. Sabemos que não será
fácil. Todo mundo ouviu histórias e receio que boa parte seja
verdadeira, apesar dos reinóis negarem isso. Sim, é verdade, os
mortos caminham entre os vivos aqui.
Silêncio. Como Acácia, todos conheciam as histórias, não
tinham ilusões sobre o que os aguardava na Terra de Santa
Cruz. No entanto, ouvir claramente o que todos negavam tão

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veementemente era como ouvir a sua condenação pela segunda
vez depois de uma apelação.
− Ninguém sabe o motivo para eles saírem dos túmulos,
mas sabemos que eles podem voltar para lá. Basta uma alma
temente e uma boa espada. Vocês sairão em grupos; Se tiverem
família, melhor. Se não, que se arranjem com a divisão do que
conquistarem. Pagarão impostos a Portugal, mas o que pegarem
será de vocês. Esses são os termos do rei.
− Alcaide, e quanto aos mortos? Receberemos algo por limpar
o Novo Mundo dessas aberrações?
Acácia nunca tinha ouvido a voz daquele velho. Era grave,
mas melodiosa, como se estivesse acostumada a ser usada. Havia
um leve sotaque latino e de liturgias nela. Um padre, talvez?
− Sim − respondeu Borges. O rei pagará vinte coroas pelo
cento de cabeças entregues.
As pessoas sussurraram, impressionadas.
− E quanto por todas elas? − voltou a perguntar o ancião.
O pai de Acácia não respondeu por um tempo, avaliando a
seriedade daquele homem.
− Creio que não haverá ouro suficiente que pague tal serviço,
senhor...
− Martinho, padre Martinho. Disseram-me que o rei tem
bastante criatividade.
− E como faria isso, padre? Como limparia um continente
inteiro dos mortos que andam? Coisa que ninguém até hoje,
depois de tantas tentativas, conseguiu.
− Deus falou comigo em sonhos e me explicou como fazê-lo
− o eixo da voz de Martinho mudou, estava falando às pessoas ao
redor. − Vou precisar de homens para concluir o meu trabalho.
Pagarei bem a quem vier comigo. Além, é claro, de parte da paga
da coroa.

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− Por que não nos diz como fará isso, sendo o único ainda a
usar correntes? − perguntou uma mulher.
− E perder a vantagem que Deus me deu? Dispenso. Quanto
a isto, apenas um acordo temporário entre mim e o capitão.
Quem vem comigo? Quem quer ganhar ouro pro resto da vida e
ainda ficar em boa conta com o Todo-Poderoso?
− Alguns destes homens possuem contrato comigo − cortou
o pai de Acácia. − Quem mais quiser ir com o senhor, está livre.
− E quanto ao senhor, alcaide? − Acácia podia sentir o
sorriso na voz de Martinho. Imaginava o padre gorducho
repousando a bota em alguma caixa e cruzando o braço sobre o
joelho, sorrindo maliciosamente, como se colocasse mel em suas
palavras e esperasse que as moscas caíssem nelas. − Por que não
vem conosco? O que há de tão importante a fazer para se recusar
a ir a uma santa luta de Deus contra o mal?
− Tenho responsabilidades.
− Entendo − a voz de Martinho vinha na direção de Acácia.
Seu rosto esquentou e ela tentou desaparecer, abaixando a
cabeça, mas não tinha como saber quem ainda a encarava. Deu
meia-volta e procurou a entrada das cabines. Sentou embaixo
das escadas, longe da discussão e acalmando a respiração.
Aquilo tinha sido um erro. Talvez seu pai não soubesse disso,
mas Acácia tinha total certeza. Vender tudo o que tinham em
prol de uma “oportunidade” como aquela era jogar-se na cova
dos leões e esperar que eles viessem jogar cartas com você. Não,
aquele era um pensamento inadequado. Herético. Daniel não
tinha feito as bestas se curvarem com orações? Eles também
iriam. Deus iria dar-lhes o que precisavam naquelas terras, com
ou sem mortos.
− O que conseguiu com o velho? − ouviu Acácia o capitão
dizer, em inglês, subindo pela escada acima dela.

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− Nada, senhor − respondeu baixo um homem no topo da
escada. − Revistamos o maldito do cabelo ao cu. Demos azeite
para o desgraçado beber, mas ele não tinha nada no bucho.
− E o que ele falou?
− Ele é doido, senhor. Disse que veio para curar os enfermos
e acabar com a praga dos mortos, que Deus o havia enviado para
catequizar os infiéis. Mas concordou em dividir o que conseguir
de rentável conosco.
− Não posso me dar ao luxo de acreditar nisso. Leve mais dois
com você. Acompanhe-o por terra.
− Não seria melhor arrancar a informação antes?
− Ele não vai falar. Dá muito valor ao que tem. Fizemos
um acordo em dividir o butim, e é o que vamos demonstrar
fazer... até que tenhamos uma oportunidade. Enquanto isso, vou
preparar meu plano reserva.
− Capitão...
− Algo o preocupa, marujo?
− Não, senhor. É que...
− Ótimo. Corra, ou vai perder seu barco.

Ruud não estava habituado àquele calor e ao sol impiedoso,


mas o ar fora do porão compensava tudo. Estar preso durante tanto
tempo cria novos padrões de contentamento. Ajudou a retirar as
provisões dos barcos e a levar para a areia da praia. Recebeu seu
quinhão de comida e água numa mochila e foi ouvir o que os
portugueses tinham a dizer. A língua deles era uma desgraça,
mas mentiu para o padre Martinho, pois entendia bem o que
diziam, só não era muito fluente. Pelo que pôde entender, havia
dois grupos se formando. Um que queria seguir um cavalheiro
de suíças brancas e outro que se formava em volta de Martinho e
os homens do capitão. O cavalheiro distinto se chamava Borges e

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queria terras, já Martinho queria uma Guerra Santa. O grupo de
Borges se avolumava à medida que as suas caixas eram abertas e
de lá eram retirados os surpreendentes mosquetes, a maravilha
da guerra moderna. Matar um homem sem precisar estar corpo a
corpo com ele. “Uma arma de covardes”, diriam os antepassados
de Ruud, que desprezavam com todas as forças o maldito arco
inglês. Os portugueses não pareciam possuir reservas quanto a
isso. No fim, Martinho havia arregimentado com sua lábia seis
almas penitentes para sua Cruzada. Ruud não queria estar entre
eles, já havia presenciado coisas ruins demais da religião para se
interessar por isso no Novo Mundo. Não foi o que lhe disseram?
“Terra nova, vida nova”?
Os olhos do padre não desgrudavam dele e Ruud cofiava sua
barba rubra falha, imaginando uma forma de escapar, quando
uma moça tropeçou em seus pés.
− Perdoe-me.
− Tudo bem − respondeu ele em holandês, e depois se
corrigiu, dizendo a mesma coisa em português.
− O senhor é holandês! Está bem longe da casa, senhor.
− A senhorita também está − sorriu ele antes de perceber que
os olhos da moça não estavam corretos. O tom azulado não era
normal, era leitoso e turvo, quase brancos. Um rosto tão bonito
com duas esferas mortas no centro. − Desculpe.
− Pelo quê? Eu que esbarrei no senhor. Sou meio atrapalhada
em lugares que nunca estive. Sou Acácia.
− Meu nome é Ruud, senhorita.
− O senhor pretende sair à caça dos mortos? Ou vai ficar
com o meu pai?
− Borges é seu pai?
A moça se encolheu. Ruud percebeu, tarde demais, como
sua frase deve ter ido carregada de surpresa e asco pelo homem

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que arrasta uma filha com limitações a um mundo perverso
como aquele.
− Meu pai não é como pensam. É um bom homem, temente
a Deus e confiante em Sua justiça.
− Não duvido da crença dele, senhorita, mas também não
vejo o Papa viajando para cá.
− Como ousa?
− Algum problema, Acácia? − o alcaide havia se aproximado
com outros dois homens armados de mosquetes.
− Está tudo bem, pai.
− Muito bem, então vamos. Hora de partir − disse ele,
medindo Ruud com os olhos. − O senhor virá conosco?
Aquela era uma opção, não era?
− Talvez.
− E o que sabe fazer de útil, senhor...
− Ruud. Não sou bom guerreiro, senhor, mas sei manejar uma
arma e tenho formação, já fui boticário e barbeiro-cirurgião.
− Foi? E qual foi a sua última ocupação?
− Prisioneiro.
− Estou curioso pelo motivo.
− O senhor disse que isso não importava mais nesta terra.
− E não importa. Deus nos dá segundas chances. Será bem-
vindo em minha propriedade, se quiser. Quem sabe eu o deixe
fazer minha barba... um dia.
Borges se afastou tomando o caminho para o Norte, seguido
pela grande maioria do grupo. Martinho e Ruud cruzaram
olhares. Aquele era o momento de se decidir. Podia caminhar
com o alcaide e, quem sabe, encontrar um lugar para ficar.
Havia mosquetes suficientes para sonhar com alguma segurança
naquele lugar. Mas, por outro lado, o que conseguiria com isso?
Raízes. Algumas pessoas anseiam por isso, ter esposa, filhos,

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uma casa e um ganha-pão. Criar um vínculo. Tudo o que Ruud
não poderia ter. Porque raízes significavam ficar parado. Ruud
olhou para o céu, imaginando o que a noite lhes reservava.
Quando a última pessoa do grupo de Borges deixou a praia,
Martinho se aproximou de Ruud.
− É agora que você corta o meu bucho e pega o seu papelote
de volta, velho − disse Ruud, em holandês.
− Não seja tolo, já fui um homem de Deus. Não faço essas
atrocidades − respondeu ele, também em holandês.
− Quase me furou com um osso.
− Apenas um reforço dramático. Escute, precisamos ficar
juntos e nos livrar dos homens do capitão. Depois esperamos
dois ou três dias andando na mata e, então, você remexe na sua
merda e pega o embrulho para mim. Ou você o vomita amanhã,
assim que escaparmos. Você decide.
− Por que não posso simplesmente fazer isso agora e você me
deixa seguir meu caminho?
− Porque prometi fazê-lo um homem rico. Além disso, há
muitos olhos sobre nós ainda. Iria levantar suspeitas. Deixemos
que entendam esta nossa conversa como uma arregimentação,
hein, que tal? Vamos, sorria, acabamos de chegar a um acordo
e você está feliz com o combinado. Vamos caçar mortos juntos!
— O que tem nesse papel?
— O que mais seria? Um mapa do tesouro, óbvio.

A mata tinha um odor diferente de tudo que Acácia já


sentira na vida. Cheiro de verde. Ela nunca havia entendido
esse conceito, mesmo quando caminhava com sua dama de
companhia nos jardins de casa. Como seria esse tal de verde?
Mas agora entendia. Era algo pungente, intoxicante, almiscarado
e exuberante. Durante o dia era abafado como a respiração de

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um animal; ao entardecer era um frescor leve e sereno, com
gosto de hortelã mastigada. Pena que vinha acompanhado da
ardência dos mosquitos, uma parte desagradável de se estar em
um mundo totalmente novo, assim como tropeçar a cada passo
por causa de uma pedra ou de um galho. Desde que sua dama de
companhia falecera na viagem, era o pai quem a acompanhava,
dava-lhe o braço e tentava descrever o redor para ela.
− A trilha é magnífica, minha filha. Serpenteia a mata
beirando as pedras da orla. Daqui podemos ver a praia com sua
areia branca e compacta. Ao longe, há um fio de fumaça no céu,
deve ser a vila. Não dá para saber ao certo, mas se for, depois de
lá é mais meio dia de caminhada até nossa propriedade, ao pé do
morro da Santa.
− Como é lá, papai?
− Bem, pela descrição do antigo Donatário, é um lugar
magnífico. Tem um rio que corta a propriedade, pomares e uma
criação pequena de animais. Algumas casas. Uma senhorial e
outras da criadagem. É claro que teremos de avaliar as condições
atuais, mas tenho fé que nada tenha se perdido.
− O navio irá nos esperar, não vai? Caso tenhamos problemas?
− Acácia...
− Pai, não precisamos fazer isso, podemos simplesmente ir
embora.
− Não vamos discutir sobre isso novamente. Lembre-se do
nosso propósito, tenha fé.
− Sim, papai.
− Uma semana, o capitão esperará por uma semana, mas
espero não precisar de seus serviços.
Chegaram à fonte da fumaça no fim do dia. Acácia sentiu a
diferença antes mesmo de entrar lá. Não havia mais cheiro de
verde, nem som de pássaros ou de qualquer outro animal. Havia

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lamúria e algo pegajoso e férreo no ar. Uma mistura pavorosa de
excremento, fumaça e sangue.
− Meu Deus!
− Por favor, diga o que vê, papai − implorou ela, mas o pai
havia se dobrado para vomitar. Por alguns instantes ela ficou
sem o braço dele e foi como se afundasse no negrume de um
lago profundo no meio do Inferno. Ela podia ouvir pessoas
tossindo, chorando e pedindo ajuda não muito distante dela, e
o som do que parecia ser sacos de batatas batendo em pilhas
de madeiras e de chamas se removendo. Mas Acácia sabia que
não eram batatas. O ar soprou morno e grudento de lá, com um
cheiro horripilante de carne assada.
− Aqui, filha, coloque isto no nariz. Ela aceitou o lenço, mas
não o usou. Não queria aumentar sua cegueira. Ouviu passos.
Alguns homens se aproximavam.
− Boa tarde. Sou o alcaide Borges − cumprimentou o pai. − O
que aconteceu aqui?
− Os mortos − respondeu um dos homens sem emoção. Tinha
o hálito podre e cheirava a suor. − Um pequeno grupo deles.
− Qual o seu nome, homem?
− Antônio Amparo, senhor. Acácia podia ouvir outras pessoas
se aproximando.
− O que estão fazendo com aqueles corpos, Jesus Cristo?
− Precisamos queimá-los, senhor, ou eles se levantam
novamente.
Acácia abraçou o braço do pai, apavorada.
− Mas sem um enterro cristão? Onde estão o padre e o
prefeito daqui?
− Na fogueira. Eu sou o responsável agora. O senhor veio nos
resgatar? Tem um navio para nos tirar dessa terra amaldiçoada?
Acácia pôde sentir o coração do pai acelerar.

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− Na verdade, vim para tomar posse de minhas terras.
− Acho que o senhor não entendeu a gravidade da situação,
alcaide − disse Antônio Amparo. − Há mortos que andam aqui.
− Não sou parvo, rapaz, sei perfeitamente o que está
acontecendo, mas tenho plena confiança em meu bom Deus e
nos homens que me seguem. Não seremos vencidos pela força
do demônio, e convido todos vocês a ficar conosco em nossa
propriedade. Temos armas e eu trouxe o livro sagrado e relíquias
santas que nos protegerão, uma das flechas de São Sebastião e um
dos pregos da cruz de Pedro. Se me acompanharem até a minha
propriedade ao pé do morro da Santa, terão um lugar seguro
para vocês.
Houve um silêncio prolongado, quebrado apenas pelo crepitar
das chamas.
− O morro da Santa é naquela direção − voltou a dizer Antônio
Amparo e depois se afastou, assim como todos os outros aldeões.

Ruud empurrou dois dedos goela abaixo e o jorro subiu quase


que instantaneamente. O segundo não precisou de estímulos.
Depois revirou os restos de comida com um galho e pegou
o pequeno pacote. Na escuridão do porão do navio havia
imaginado que fosse um pedaço de papel dobrado, mas agora
via que era um pequeno embrulho de couro. Limpou-o com uma
folha larga. Havia letras estranhas nele, pareciam mais desenhos
do que propriamente uma escrita. Guardou-o no bolso e então
voltou ao acampamento.
Sentou-se ao lado de Martinho, que olhava para o céu
noturno, com sua lua crescente e uma miríade de estrelas. Os
demais preparavam sua refeição em uma fogueira. Os homens do
capitão o vigiavam. Eram três. Batista, o imediato, olhos negros
e inteligentes, com uma barba fechada escura, ornada com anéis

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vermelhos nas pontas das duas tranças do queixo; e Pôncio e
Espirínio, duas bestas largas, violentas e barulhentas.
− Pegou? − perguntou, em holandês, o velho, sem retirar os
olhos do céu.
− Sim.
− Excelente − disse, sem demonstrar interesse. − Quando
estive a serviço da Companhia, conheci um homem encantador
e vigoroso nas Ilhas Maurício, um corsário holandês chamado
Marco van Nierlinders, mas todo mundo o chamava de
Barbarosca. Ele veio até estas terras há alguns anos com um
enorme carregamento roubado da Companhia. Queria enterrá-
lo ou só dar um tempo até se esquecerem dele, mas acabou
sendo surpreendido pelos mortos. Ninguém acreditou durante
o seu julgamento, mas ele jurava de pés juntos que eles haviam
comido toda a sua tripulação. O que era uma grande besteira de
se dizer. Como ele conseguiria navegar sozinho? Como pudera
escapar? Por isso, foi enforcado. Mas, toda mentira tem um
fundo de verdade. Ele disse que a Santa da Penha o salvou. Disse
que ela desceu dos céus e que afastou os demônios, e que os seus
anjos conduziram seu barco em segurança até as Ilhas Maurício.
− Que parte você acha que é verdade?
− A da santa, é claro.
− Ou a do ouro?
− A história muito bem pode ser polvilhada de verdades, ora.
Acontece que há a história de uma estátua de Nossa Senhora da
Penha nessas terras. Dizem que ela desaparece e reaparece em
lugares diferentes de tempos em tempos e que cura os enfermos.
— Você acha que tem a ver?
— Tenho certeza. Barbarosca pediu para se confessar antes
de ser enforcado. Então ouvi seus pecados e o que a santa disse
para ele depois de guardar a imagem junto do ouro em uma

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gruta. Ele me contou em detalhes como os mortos que andam
poderiam ser destruídos, e como havia tatuado as instruções em
sua coxa esquerda em ídiche.
− Meu Deus.
− O quê? Há holandeses judeus também. Mas não se
preocupe, ele se converteu no fim, não é?
− A carne dele! Deus... carne humana!
− Ah, sim. Isso. O que achou do sabor? Tive que desenterrar
o corpo para poder tirar a tatuagem.
− Merda! − cuspiu Ruud.
− Tão ruim assim? − divertiu-se Martinho.
− E como destruímos essas coisas?
− Acha mesmo que vou te contar? É segredo de confissão! −
riu o velho. − O trato é simples, Ruud. Você me ajuda a terminar
o que a santa pediu a Barbarosca e você fica com o ouro dele.
Não tenho interesses monetários.
− Então por que não entrega aos homens de Cavendish?
− Porque me ajudariam em minha Guerra Santa assim
que tivessem o ouro? Eles me matariam e depois venderiam a
imagem da santa.
− Posso me juntar à conversa? − perguntou, em inglês, Batista,
sentando-se. − Estou curioso pelo motivo de ficarmos parados o
dia todo neste lugar, padre. Pode me explicar?
− Paciência é a resposta para tudo − respondeu Martinho. −
Estamos aqui por dois motivos, por duas coisas que Barbarosca
me contou antes de morrer. A primeira é sobre as estrelas, elas
indicam o caminho para onde devemos ir. Só posso me orientar
à noite, pelo menos na parte inicial do trajeto.
− E o segundo motivo? − quis saber Batista um pouco antes
de alguém gritar perto da fogueira. Martinho agarrou o braço
de Ruud e os dois correram na direção oposta. Batista não os

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viu escapar, ficou petrificado olhando dois indígenas de pele
fendida e pálida morderem o pescoço de um dos portugueses
que preparava batatas e cebolas ao fogo. Em poucos instantes,
a clareira inteira ficou tomada por criaturas dos mais variados
estágios de putrefação.
− O que foi aquilo? − perguntou Ruud, em desespero.
− Mortos − respondeu Martinho, bufando, ainda correndo.
− Apenas corra. Eles vêm pelo cheiro e pelo som. Adoram a voz
humana e o cheiro de comida. Barbarosca me contou. Não fale
nada. Depois falamos. Apenas corra.

Acácia estava com medo, sentada em uma cadeira da varanda


sentindo o sol matinal percorrer seu corpo. Primeiro no rosto,
depois no busto e braços, por fim na barriga e no colo. O pai
havia saído cedo em mais uma de suas buscas e ela estava só no
casarão. Podia ouvir os colonos começando o seu dia, limpando
o chão com uma vassoura, carregando baldes de água do riacho e
ordenhando os animais. Ouviu um martelo distante e soube que
Ferreira continuava seu trabalho na cerca. Um serrote e outro
martelo, mas não eram na cerca. Alguém estava se ocupando de
outras construções na propriedade, ou em reparos. Muita coisa
fora necessária para que o lugar ficasse habitável, pelo menos
três dias de limpeza e arrumação. Não encontraram nenhum
corpo para queimar, apesar de ser notório que pessoas haviam
morrido ali – o cheiro deixava claro isso. Eles só não estavam
mais lá. O que era mais preocupante do que o contrário.
− Dia, Acácia.
− Dia, Gumira.
− Licença, vou entrando para fazer o almoço.
− Fica à vontade.
Os pés de Gumira rasparam no assoalho antes de entrar.

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Logo depois surgiu no ar um cheiro de fogo aceso e de panelas
cozinhando. Gumira aproveitou para passar uma vassoura na
casa e bater os tapetes na varanda. Depois levou um chá quente
de capim-cidreira para Acácia, um pouco antes de voltar para
seus afazeres. A normalidade de toda aquela situação era absurda.
Soava tudo muito errado, quase pecaminoso. Como se tivessem
em pouca estima todas as almas perdidas para o demônio
presente naquela mata. Não deveriam buscar a normalidade,
mas a destruição daquele mal. Nesse sentido, o padre do navio
estava mais certo do que eles. Era preciso travar uma guerra e
não viver fingindo que o mal não existia, ou convivendo com sua
presença. Deus não iria querer tal coisa de seus filhos.
Esses pensamentos apavoravam Acácia. O pai estava lá
fora novamente. Logo no primeiro dia saiu em expedição, sem
mesmo desempacotar seus pertences e voltou relatando suas
descobertas. Encontrou outra propriedade abandonada, mas
diferente da deles, lá havia mortos. Apesar de nunca tê-los visto
antes, o pai os reconheceu de imediato. Ficavam parados na
grama alta, o rosto para cima voltado para o sol, sem mexer nem
um músculo sequer, como se farejassem o ar ou esperassem por
algo. Os que se mexiam faziam isso tropegamente, como se não
tivessem equilíbrio ou faltasse algum item muscular precioso
para isso. O corpo deles era macilento e desnutrido e os olhos
eram fundos. A carne era retesada em várias partes, nas quais
pequenas ulcerações se rompiam, como a casca de batatas
cozidas demais; o cheiro era de podridão e havia várias feridas
grandes neles, que sujaram suas roupas há algum tempo, mas
que agora não vertiam mais nada.
No segundo dia, o pai voltou calado de sua busca, quase não
respondia às perguntas e cheirava a excremento. Acácia ficou
sabendo por um dos jagunços que o acompanharam que eles

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haviam perdido um dos companheiros para dois mortos na
mata. Eles atiraram nas criaturas para tentar libertar o amigo,
mas elas simplesmente continuaram comendo-o. Tiveram de
deixar o homem para trás e voltar correndo para a propriedade.
O pai havia ordenado que ninguém ficasse sabendo do ocorrido,
mas o jagunço achou que pelo menos Acácia deveria saber que
uma pessoa havia morrido. O homem acreditava que o alcaide
não queria alarmar as pessoas com a morte de uma pessoa,
mas Acácia sabia que o motivo era outro. Ele não queria que
as pessoas soubessem que os mosquetes não serviam de nada
contra os mortos.
No terceiro dia, o pai voltou sozinho e chorou a noite toda
trancado em seu quarto.
− Pai, vamos embora − suplicou ela do lado de fora da porta.
− Não saia mais atrás dela na mata. Está tudo bem. Vamos voltar
para Portugal.
Ele não atendeu e no dia seguinte saiu cedo com outros
jagunços. Acácia puxou uma cadeira e sentou-se à varanda para
aguardar seu retorno.
Gumira chegou com o chá para Acácia. Puxou um banquinho
e sentou-se ao seu lado.
− A senhora iria gostar de ver o céu. Está muito bonito, azul
e branquinho de nuvens.
− Obrigada, Gumira − disse bebendo seu chá. Acácia
imaginava Gumira negra, cheia e de braços fortes, mas não tinha
ideia de como ela era de verdade, nunca tivera coragem de pedir
que a deixasse tocar seu rosto. Será que iria estranhar?
− Que merda é aquela? − perguntou Gumira um pouco antes
de Acácia conseguir ouvir os homens gritando perto do portão.
— Parece que tem umas pessoas chegando.
− Homens?

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− Sim, uns dez.
− Como eles são, Gumira? Como se mexem?
− Peraí, que vou lá ver.
− Não, não vá — implorou Acácia, mas Gumira partiu assim
mesmo.
Acácia colocou sua xícara sobre o banquinho de Gumira e
segurou com força a saia. Aguçou como pôde a sua percepção,
prestando atenção em tudo à sua volta. Ouviu passos apressados
em direção ao portão. Gente gritando ordens. “Segurem o
portão”, “Meu Deus, pai amado, proteja-nos”, “Atirem neles!”.
Então, ouviu o primeiro disparo, depois outro e mais outro. O ar
ficou povoado do cheiro de ovo podre. Ao todo, contou dezesseis
estouros antes que o portão se quebrasse. Os mosquetes caíram
pesados no chão e as pessoas correram para salvar a própria
vida. Acácia se levantou ouvindo os gritos de desespero e de
dor. Havia rosnados e os mesmos cheiros que sentiu na vila. Ela
recuou em direção à porta, considerando como poderia abri-
la para Gumira quando ela voltasse, imaginou se a porta dos
fundos estaria fechada, pois Gumira gostava de arejar a casa,.
Será que as criaturas passavam por janelas? Tropeçou no banco
de Gumira e caiu torta no chão de madeira da varanda. Não
conseguia levantar, os gritos eram demais. Colocou as mãos
sobre os ouvidos tentando afastá-los, encolheu-se como um
bebê no ventre de uma mãe.
Uma mão agarrou seus pulsos e puxou-a para cima. Ela foi
carregada para dentro da casa e colocada sobre o catre. A porta e
as janelas foram batidas. Alguém arrastou móveis pela sala.
− Está fechada agora, senhorita.
− Ruud?
− Ora, então fala português, pilantra. Sua voz, o que aconteceu?
− Apenas uma febre, querida. Nada perto diante disso tudo.

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− Precisamos fugir − disse novamente Ruud. − O som
dos mosquetes vai atrair mais deles. Em breve vão nos cercar,
precisamos aproveitar enquanto se refestelam e partir para o
navio de Cavendish.
− Já disse, ele não vai nos aceitar enquanto não encontrar o
seu ouro.
− Cala a boca, velho maluco. Não tinha ouro nenhum!
Andamos esses dias para nada, não tinha nada lá!
− Ruud, me escute, era para estar lá, aconteceu alguma coisa.
Nós não olhamos direito. Barbarosca me disse. ‘O homem santo
virá do além-mar e encontrará’.
− Talvez você não seja tão santo assim, afinal.
− Não, não, era para mim. Era para mim − disse ele, e então
ficou em silêncio.
− O que aconteceu? Ele morreu? − perguntou Acácia.
− Desmaiou — respondeu Ruud. − Temos de partir.
− Mas Gumira, meu pai e os outros...
− Escute-me, Acácia − disse Ruud, segurando os ombros
dela. − Estão todos mortos e em breve estarão aqui para nos
devorar.
Demorou um tempo para Acácia compreender aquilo,
mas de repente imaginou as mãos ternas de seu pai úmidas de
sangue, fedendo a podridão, segurando seus braços e aquilo a
fez soltar um grito de pavor.
Ruud tapou a sua boca com as mãos: − Quieta, escute!
E o pavor dela aumentou, pois lá fora não havia som algum.

Ruud foi até a janela e olhou pela fenda entre as duas folhas
de madeira. Era tarde demais.
Os mortos estavam na varanda e se aglomeravam em torno
da casa, largando suas refeições pelo meio do caminho. Pelo

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portão derrubado, viu mais criaturas chegando, alguns corriam,
mas a maioria caminhava como bêbados. Ouviu um baque na
porta da sala e um resmungo, e soube que logo eles forçariam
todas as entradas, inclusive as paredes de madeira.
A oportunidade de escapar sem serem vistos havia passado.
Ruud sacou o sabre espanhol que havia roubado e voltou para
perto de Acácia.
− Há algum porão na casa? Ou um lugar onde podemos nos
esconder?
− Não. A casa é simples. Não tem essas coisas, nem despensa
temos.
Ruud raciocinava rápido, cogitando as alternativas. Poderia
tentar passar pelos mortos correndo, lutando o mínimo possível,
empurrando e evitando ser cercado. Se chegasse até uma das cercas
altas, poderia saltá-la e ganhar a mata. Mas não poderia fazer isso
carregando Martinho e guiando uma moça cega. A opção de
deixá-los para trás passou pela sua cabeça, mas logo a descartou,
não poderia conviver com isso pelo resto da vida. Olhou para o
assoalho de madeira e lembrou-se que a casa era alta.
− Levante-se − sussurrou para Acácia. Depois usou o sabre
para despregar algumas tábuas do chão, só o suficiente para
que pudessem passar. Foi até a cozinha e colocou suprimentos
em sua mochila, depois virou o catre perto das madeiras soltas
de forma que pudesse colocá-lo em pé sobre o assoalho aberto
depois que entrassem.
− O que está fazendo? − sussurrou Acácia.
− Logo vão estar aqui dentro, precisamos nos esconder e
esperar que partam.
− Ruud, isso é loucura. Eles não vão embora.
− Deus, Deus, vai mandar ajuda − resmungou Martinho em
seu sono febril.

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− É o único jeito − disse ele, puxando as tábuas com cuidado
para não fazer barulho.
Então, uma pancada forte levantou as tábuas contra o peito
de Ruud e dois mortos surgiram pela abertura. Acácia soltou um
grito e se afastou dali. De imediato, portas e janelas começaram
a ser forçadas e as paredes pareciam se envergar com o peso de
corpos que gemiam e urravam contra elas. Braços romperam as
folhas finas das janelas e uma mão segurou o cabelo de Acácia.
Ruud se levantou atordoado, pegando seu sabre para enfrentar
as duas criaturas dentro da casa. Encontrou-as presas no buraco
estreito, lutando pelo privilégio de ser a primeira a entrar na
casa. Ruud golpeou seus pescoços, lacrando a passagem com
seus corpos, e depois foi ajudar Acácia. Cortou o braço que a
segurava e trouxe a moça para o centro da sala. Todas as paredes
tremiam e mais braços puxavam e empurravam as lâminas de
madeira das janelas.
− Deus vai ajudar − murmurava Martinho deitado no chão.
− Acácia − chamou Ruud. A moça chorava desesperada, mal
conseguindo respirar. Ruud sentiu o peso do sabre em sua mão
e mediu se conseguiria um golpe limpo no pescoço dela. Não
queria que sofresse, mas a verdade era que talvez precisasse de
mais de um golpe. Se pelo menos tivessem mais tempo...
− Infiéis! − alguém gritou lá fora. − Contemplem a glória de
Nosso Senhor Jesus Cristo!

Em meio ao desespero e à ruína de sua sanidade, Acácia


ouviu a voz de seu pai:
− … e de sua sagrada mãe!
A parede parou de gemer.
− Pai? O que está acontecendo?
− Filho da puta! − exclamou Ruud.

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− O quê? Por favor, me explique.
− Seu pai está perto do portão erguendo uma imagem da Santa
da Penha acima da cabeça. Em volta dele estão seis de seus homens.
− Ele a encontrou? − Acácia caiu de joelhos e uniu as mãos
em uma prece.
− O quê? Ele também a procurava?
− Sim, viemos para cá por causa dela. Meu pai soube que ela
curava os enfermos e então…
− Trouxe você até aqui para que ela a curasse?
− Sim, gastamos todas as nossas posses para isso. Por favor,
conte-me mais. Como as pessoas estão se curando? Há luz
saindo da Santa? O senhor consegue ver os anjos que a seguem?
Eles estão de joelhos em oração?
− Moça, venha comigo.
Ruud puxou-a pelo braço, mas não a levou para a frente da
casa. Parou apenas para jogar Martinho murmurante em um dos
ombros e depois a levou pela porta da cozinha.
− O que está fazendo? Para onde está me levando?
− Silêncio.
− Não, meu pai, leve-me para meu pai.
− Seu pai está morto.
Então, ela ouviu os gritos e soube que era verdade.

Andaram o mais rápido que puderam pela trilha da mata.


Ruud arfava a cada passo, mas não largava dela e nem de
Martinho, a mochila pesada com os mantimentos cortava um de
seus ombros. De tempos em tempos precisavam parar, mas eram
descansos curtos, apenas o necessário para um novo fôlego.
— Não posso acreditar que a Santa não o protegeu — disse
Acácia em uma dessas paradas. Era a primeira coisa que falava
depois de muito tempo.

| 79 |
− Aquela não devia ser a imagem certa − arfou Ruud,
massageando o ombro. − Há muitas capelas por aqui, ele deve
tê-la pego em alguma delas. É um culto comum nestas terras.
− Pobre pai. Estava tão desesperado em me salvar…
− São tempos desesperados, senhorita.
− Conseguiu o que veio buscar aqui, senhor Ruud?
− Talvez.
Era noite quando chegaram até o navio de Cavendish.
− Algo está errado − disse Ruud, largando Martinho na areia
da praia.
− O que está vendo? − perguntou Acácia.
− O navio está às escuras. Parece que está vazio.
− Você está errado − disse uma voz de dentro da mata.
De lá veio Batista com um sabre desembainhado. − Sabia que
voltariam cedo ou tarde para cá.
− Batista − disse Ruud, se colocando entre Acácia e o pirata.
− Por favor, temos de sair daqui. Há mortos em toda parte. Este
lugar é um Inferno esquecido por Deus.
− Onde está meu ouro, moleque? − perguntou ele, se
aproximando, o sabre ainda baixo.
− Nós não o encontramos.
− Mentira — acusou ele.
− Eu juro.
− Esse merda sabe onde está − disse ele apontando a espada
para Martinho.
− Deixa ele em paz. Está doente.
− Foda-se a doença dele. Eu vi todos os meus companheiros
morrerem por causa dele e agora quero meu pagamento.
Batista levantou com facilidade o corpo do padre e jogou-o
sobre o ombro.
− Quanto a vocês, seus merdas, vou cortar suas gargantas

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e… − Batista percebeu um pequeno ferimento na perna de
Martinho. Duas fileiras infeccionadas e vermelhas de pequenos
ferimentos em linha, como se tivessem sido provocados por uma
mordida. De repente, sua garganta queimou quando Martinho o
abocanhou ali.
− Martinho! − chamou Ruud, mas aquele já não era o velho.
O holandês puxou o braço da moça e se jogou ao mar
enquanto Batista se debatia tentando se livrar da criatura.

Nadaram com dificuldade contra as ondas até o navio. Ruud


teve que arrancar as saias de Acácia para que ela pudesse se
mover mais livremente, mas mesmo assim era muito difícil para
ela fazer qualquer coisa, além de se debater. Por fim, deixou que
Ruud a puxasse pelos ombros.
Subiram a bordo por uma escada de cordas. Lá em cima,
Acácia segurou apertado o braço de Ruud.
− O cheiro − avisou ela.
− Há diversos corpos ensanguentados pelo chão − narrou
Ruud para ela. Estão devorados.
− Oh, meu Deus! O que faremos?
− Precisamos do barco. Segure a minha mochila, Acácia. Eu
já volto.
Ruud se afastou, pé ante pé, envergando o assoalho a cada
passo cuidadoso. Então, Acácia não o ouviu mais. Prendeu
a respiração, tentando aguçar a audição. Ouviu o mar roçar o
casco, o vento contornando os mastros e outros passos. Vindos
da proa.
− Quem está aí? − perguntou Acácia.
− Sou eu, senhora. Antônio Amparo, da vila, lembra-se?
− Por que está se esgueirando?
− Não estou, apenas estou sendo cuidadoso − Acácia abriu a

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mochila e enfiou a mão lá dentro à procura de uma arma para
se defender. Viemos atrás do navio assim que deixaram a nossa
vila, senhora. Não sabe o que é viver neste Inferno. Só queríamos
ir embora. Subimos sem qualquer resistência, ninguém veio
nos impedir, então entendemos tarde demais o porquê. O
desgraçado do pirata... Cavendish... a recompensa não era o
bastante para ele. O filho da puta queria mais. Ele trouxe a bordo
aquelas criaturas. Ele iria levá-los para o Continente. Exibi-los
em alguma merda de circo ou coisa parecida.
− O senhor foi mordido?
− O porão estava lotado deles. Todos os meus...
− Não se aproxime, por favor.
Do porão, Acácia ouviu um terrível urro, diversos rosnados
e sons de luta.
− Este navio está aqui por causa de seu pai.
− Por favor, fique onde está − suas mãos tocaram algo
pesado dentro da mochila, como um vaso de argila, ou uma
pedra rombuda.
− A culpa é de seu pai pela morte de todo o meu povo e eu
vou ter minha compensação.
Acácia puxou o objeto da mochila e, por instinto, espatifou-o
com toda a força contra o rosto de Antônio Amparo. Mas não
antes de ele furá-la com algo na barriga.
No início, não sentiu nada. Levou a mão à ferida e sentiu os
dedos úmidos. Deitou de costas no assoalho e pressionou com
toda a força, tentando impedir que o sangue saísse. Então, veio a
dor. Aquela ardência terrível de um corte afiado. Acácia pensou
em chamar Ruud, mas naquele momento ele já deveria estar
morto também. Os sons de luta haviam parado. Tudo o que ela
podia ouvir era um som pesado de passos subindo as escadas.
Passos que não eram de Ruud. Então, por que protelar? Suas

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mãos escorregaram para o lado do corpo e subitamente Acácia
sentiu suas energias se esvaírem. Seus dedos tocaram os cacos no
assoalho e ela começou a alucinar. Primeiro viu uma luz tênue
à sua frente, vinda de uma imagem fora de foco, seria um anjo
vindo buscá-la? Sua visão ficou mais nítida e ela viu os mastros
do navio e uma enorme lua cheia por trás de nuvens castanhas,
grossas e felpudas.
Não, não eram nuvens. Acácia ergueu o braço e tocou o pelo
macio do animal.
− Acácia, oh, Acácia − a voz era diferente, gutural, mas ela
a reconhecia. − Eu não contei ao velho que sabia ídiche e que
podia ler seu mapa. Enquanto ele dormia, cheguei primeiro
à caverna. Foi quando o atacaram na floresta − seu rosto,
seus dentes, seu focinho. Não fazia sentido. − Era a minha
oportunidade de me ver livre da maldição, mas Ela não me
curou. E agora está tudo acabado.
Acácia virou o rosto e finalmente entendeu. Ao lado de sua
cabeça havia dois olhos azuis de gesso que a encaravam com
serenidade que só uma mãe poderia ter. Sobre sua fronte partida,
o manto azul mais lindo que já tinha visto na vida… e o último.

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Ódio

Wolmyr Alcantara4

[Em algum ponto do Oceano Atlântico, 1688]

Creio que não acordei de imediato. No começo, meu sono era


sem sonhos. Imersa em uma grande noite, eu dormia.
Porém, aos poucos, senti-me acordando. Relances de luzes
fugazes, ecos de vozes longínquas, sensações vagas: tudo isso eu ia
percebendo, conforme o tempo do meu despertar se aproximava.
Apenas mais tarde soube a razão de tudo isso. Até então, tudo
era desconexo e informe, como um pequeno mundo que acaba
de nascer, ou que ainda é quase que apenas a sombra de uma
ideia, pacientemente gestada no ventre da criação.
Lembro-me, no entanto, da primeira vez em que de fato
despertei. Foi um instante apenas, antes de tornar a cair, outra
vez, naquele poderoso torpor de sono. Mas essa ainda é, para
mim, uma das mais vívidas experiências que tive, dentre tantas,
em minha existência.
Não falo de imagens, mas de um som: um profundo grito
gutural, que varou em meu interior adormecido, perfurando-
me, sem fonemas ou língua conhecida, e que, ainda assim,
trouxe-me a centelha primeira de consciência. Pois, depois
daquele som, por mais que o mundo dos sonhos ainda teimasse
4 Nasceu em Cachoeiro de Itapemirim (ES) e atualmente reside em Vitória.
Graduou-se em Comunicação Social e em Letras. É mestre e doutor em
Literatura. Leciona para os níveis médio e superior. Tem publicações no Brasil
e em Portugal. Em 2014, publicou o livro de contos Noir capixaba e outras
histórias. É também animador e roteirista. Adaptou para desenho animado
contos de Luís da Câmara Cascudo e Machado de Assis.

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em pesar sobre minhas pálpebras (posso dizer assim?), eu sei
que nunca mais fui capaz de me esquecer nele, perder-me nele,
completamente, outra vez.
As sensações, antes vagas, passavam a ganhar cores, formas,
cheiros, nitidez. É verdade que, perto do grito, todo som
me parecia agora fraco e abafado. Mas mesmo os ruídos, aos
poucos, também se tornaram mais nítidos, ao ponto de, em
algum momento, já próximo de meu completo “abrir de olhos”,
eu fosse capaz de ouvir uma sucessão organizada de sons que
constituíam uma melodia.
Percebia também, e isso havia se tornado uma sensação
constante, um leve balançar que, a princípio, associei ao embalar
de um bebê, mas que não era mais que o jogar do navio sobre as
ondas. De fato, depois percebi, não poderia me enganar mais: o
tipo de música que eu ouvia, enquanto navegávamos por aqueles
lúgubres e úmidos caminhos, não se parecia em nada com
qualquer acalanto conhecido, recordando mais um lamento.
Antes de tudo, o grito que me acordara permanecia ainda
um mistério para mim. No entanto, não demorei a conhecer a
identidade de seu autor, ou melhor, sua autora, embora isso não
reduzisse em nada o enigma de minha existência. Ao contrário,
tudo ficou ainda mais estranho, sobretudo porque, segundo
depois vim a descobrir, eu vivia em seu interior.

Soube disso depois que aportamos em terra. Pois, mesmo


em chão firme, a sensação de instabilidade continuou. Como
uma náusea, que me acompanhou por muito tempo. A razão
era que eu não conseguia me mover ou fazer qualquer coisa
por mim mesma.
Os movimentos daquela que me guiava, seu andar, suas
mudanças de direção ou posição, davam-me, principalmente no

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começo, a sensação irremediável de enjoo, que associei a estar
no mar, onde se é lançado, sem defesa, ao sabor de uma vontade
misteriosa, que é maior do que nós.
Entendi também que tudo o que eu via, ouvia, cheirava
provava ou tocava me chegava através dela. Presa naquele ser
misterioso, eu podia apenas acompanhar suas ações, como mera
espectadora de uma história em que eu, afinal, parecia destinada
a viver em terceira pessoa.
Ela era pequena, isso eu sabia. O tamanho de suas mãos e
a finura de seus dedos, em contraste com as grandes e grossas
grades que a prendiam, denunciavam sua miudeza.
Parecia também inquieta e assustadiça, pois sua cabeça
movia-se como a de um pássaro, o qual, inesperadamente preso,
deseja, a todo instante, olhar o mundo para além das barras de
sua gaiola.
Às vezes, porém, ficava completamente imóvel, e, nesses
momentos, eu sentia sua mente vagar para longe do navio. Era
como se, flutuando pelas escadas que levavam ao convés, passando
invisível por aqueles que a prendiam, levantasse os braços e, tal
qual uma vela aberta, se deixasse levar pelo vento leste.
Eram os ventos da memória que sopravam dentro dela. E
eu, que morava em seu interior, recebia por extensão essa brisa
fresca, mas agreste, que trazia aromas e ecos de lugares muito
distantes. Mas sempre que tentava fixar-me mais detidamente
nesses lampejos do passado − no princípio por pura curiosidade,
depois por desejo de conhecê-la melhor −, as rajadas de ar
ficavam mais fortes e levavam-nos para outras paragens.
Passamos assim boa parte do tempo em que estivemos no
navio, de tal forma que, quando me dei conta, já descíamos a
rampa do convés: eu, presa a ela; ela, presa àquelas pesadas grades
de ferro. Era a primeira grande semelhança entre nós: a prisão.

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Lembro-me de que lhe disse nessa ocasião palavras tolas, mas
de conforto, ao ouvido. Eu bem sei hoje que dizia essas palavras
na verdade para mim, que me sentia sozinha e desprotegida,
além de aterrorizada com minha condição de dependente.
Mas ela, fosse por coincidência, fosse porque, de fato, de
alguma maneira, havia escutado aquele sopro de palavras, afinal
benfazejas, pareceu aprumar o andar e caminhou com mais
coragem pela rampa. Ou eu assim queria acreditar, pois essa
crença me forneceu a força de que eu precisava para continuar.
Eu ainda não sabia, mas, naquele momento, minha ama (foi
assim que passei a chamá-la, então) já era tudo para mim.

Nós duas tivemos que aprender tudo muito rápido. Quando


descemos a rampa, vimos que estávamos em um lugar aberto,
com piso de madeira. E eu pude contemplar pela primeira vez
o que nos trouxera àquele lugar: uma grande nave, também de
madeira, que somente algum tempo depois soube que tinha o
nome de navio, navio negreiro.
O lugar amplo, com piso de madeira − um cais ou porto,
soube depois − estava deserto. Lembro-me de observar, junto
com minha ama, que as pessoas que nos trouxeram no navio
estavam impressionadas com o fato de não haver uma viva-alma
esperando por nossa chegada. Parados naquele porto estavam
esses homens, todos brancos e barbudos, minha ama e vários
homens e mulheres da cor do bronze, acorrentados como aquela
que me carregava.
Os homens brancos estavam não apenas impressionados:
pareciam mesmo assustados. Hoje, passado muito tempo, eu
posso entender melhor tudo isso, e sei que minha ama também,
e ainda melhor do que eu. Pois, além do lugar estar deserto,
ele também parecia estranhamente abandonado. A madeira

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estava velha e quebradiça, e o aspecto das construções era o pior
possível, com janelas escancaradas, batendo sob o vento do mar e
apodrecidas. A palavra cemitério me vem hoje para descrevê-lo.
Alguns benzeram-se, outros beijaram cruzes que carregavam
no peito, e eu entendi que acreditavam que aquilo lhes
daria proteção. Olhei para os homens cor de bronze, todos
acorrentados, e não vi o mesmo medo neles, mas sussurravam
entre si algumas palavras que não pude entender completamente
naquele instante, ainda que eu sempre tenha sido muito boa com
línguas. Mas uma das mais faladas em voz baixa era nzumbi, que
para eles significava algo como espírito errante.
Quanto à minha ama, quando mergulhei em seu coração em
busca de entendimento sobre o que se passava com ela, percebi
apenas desorientação e uma inesperada apatia. Era como se ela
ainda não tivesse aceitado a realidade de sua nova vida. Como
se relutasse, no mais íntimo de seu ser, acreditar que fora tirada,
sem qualquer aviso, do convívio daqueles que amava e de sua
terra, para estar ali, naquele momento.
E então, como se nada pudesse ficar pior, nós todos vimos, e
dessa vez nem mesmo a desorientação de minha ama permitiu
que ela não se movesse, mas recuasse, atemorizada, como estavam
todos, e nisso eu mesma me incluo, pois não sei de visão pior.
Um dos homens armados, que vigiavam minha ama e os
homens cor de bronze, estava agora no chão. Sobre ele havia outro
homem. Mas eu não estou sendo justa de chamar esse segundo ser
por esse nome, homem, pois havia pouco de humano nele. Era, na
verdade, uma ruína de homem, como todo aquele lugar parecia.
Mas isso ainda era pouco. A ruína estava sobre o homem
armado e fazia algo com seu pescoço. Demorei, confesso, um
pouco para entender que ele o comia. Ele já havia comido seu
braço direito, porque o que restara dele era um pouco de osso

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e cartilagem apenas, e agora atacava seu pescoço, que já era um
enorme e escuro buraco.
Então a ruína inesperadamente olhou para as pessoas que
estavam ali, virando lentamente sua cabeça, e eu percebi, através
dos olhos de minha ama, o quanto a ruína era feia, não apenas
por fora, mas também em seu interior. Está morta, pensei. Não
tem vida por dentro. E imediatamente vi a enorme diferença que
havia entre a ruína e minha ama.
Talvez, por isso, a ruína tenha fixado seu único olho morto
− o outro era apenas um buraco escuro − sobre nós duas.
Lentamente, mas com muita certeza, a ruína se ergueu, e eu senti
que aquela que me carregava em seu interior nem ao menos
podia se mover, paralisada de medo. Era compreensível. Mas os
outros, os homens brancos com armas e os homens de bronze
com correntes, todos haviam recuado, sendo que os brancos
foram os primeiros a correr.
“Nós precisamos ir embora”, eu falei o mais claramente que
pude, para ela. “Precisamos sair daqui. Vamos fugir”.
Mas falar, para mim, era fácil. Difícil era executar o falado.
Pois, além do estado de paralisia em que se encontrava minha
ama, seus pés e braços estavam presos por correntes com grandes
cadeados. E enquanto eu soprava verdades no interior dela, cada
vez mais prementes e em alta voz, a ruína avançava um pouco
mais.
Era já possível definir melhor suas formas. Por baixo das
roupas esgarçadas víamos o que um dia deve ter sido um
homem. Agora faltavam-lhe carnes em várias partes, incluindo
o nariz, que era, assim como um dos olhos, apenas um buraco.
A barriga também estava aberta e dela pendurava-se o que, eu
imaginei, uma barriga deve carregar, quando não está cortada
ao meio.

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Mas quando ela chegou ainda mais perto é que me dei conta
de como tudo poderia ser ainda pior, pois vendo as marcas
de dentes em todos as feridas, entendi que a ruína também
um dia tinha sido devorada por uma ruína. E que, muito
possivelmente, fora essa outra ruína que a transformara esta
também em ruína. Se assim fosse, realmente, e ela chegasse até
minha ama, o mesmo se daria com ela, e também ela ganharia
os mesmos olhos sem vida, e o que aconteceria com ela? Eu
também confesso que pensei no que aconteceria comigo, se
ainda habitaria o corpo de minha ama, após a ruína cuidar de
esvaziá-lo.
Mas, nesse momento, uma coisa inesperada aconteceu.
Ouvimos um som como se algo houvesse explodido. Na
verdade, um tiro havia sido dado, e o alvo era a ruína, que parou,
quando já estava a uma mordida de nós. Ela se virou então para
ver a origem daquilo que a acertara.
Era um homem branco, bem jovem, pois nem tinha barba no
rosto, que gritava desesperado, e se, entendi direito, em meio a
todo aquele torvelinho, tentava vingar-se, pois era seu pai que a
ruína comeu poucos minutos antes.
Enquanto preparava o próximo tiro, vi cair das vestes do
garoto um molho de chaves, e entendi que poderia ser essa a
chave para a nossa liberdade e a dos homens de bronze. O molho
estava distante e a única boa notícia era a de que, preocupado em
dar o próximo tiro, o rapaz não havia ainda dado se conta de que
tinha deixado as chaves caírem.
Ele preparou a arma com cuidado, já que o primeiro tiro havia
apenas chamado a atenção da ruína, que não pareceu sentir nada
a não ser o equivalente a uma picada de inseto, e eu logo entendi
a razão, pois já estava morta, quando atingida, e ainda muito
antes disso.

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Ela já estava bem perto do homem branco jovem, quando
ele conseguiu levantar a arma devidamente carregada, mirar a
barriga aberta daquele que matou seu pai e, por fim, puf.
Esse foi o som que saiu da arma. O tiro não foi disparado,
algo deu errado, certamente, e todos vimos o olhar de abismo
desse órfão quando a ruína se adiantou até ele e o dominou.
Ele caiu gritando muito e, a cada grito, chutava o molho de
chaves um pouco mais, até que o último pontapé o lançou para
bem longe de onde estava, entre ele e nós todos deste lado de cá,
quero dizer, do lado dos vivos.
Enquanto isso acontecia, algo ainda pior se deu. O pai do
rapaz, caído no chão sem uma parte do pescoço e do braço, abriu
os olhos. Eram olhos vazios como os da ruína, vítreos, que não
se fixavam de verdade em nada. Ele se levantou e foi diretamente
até o filho, caído sob a ruína, lutando por sua vida. Mas, ao invés
de ajudá-lo, curvou-se sobre ele para comê-lo também.
Um das mulheres de bronze, cujo nome nunca pude
descobrir, com rara coragem, aproveitou a oportunidade, correu
até o molho de chaves, pegou-o e foi até o restante do grupo de
aprisionados, começando a abrir os cadeados que prendiam os
pés e as mãos deles, que, uma vez soltos, partiram daquele lugar
horrível. Por fim, ela veio até minha ama e, olhando fundo nos
olhos dela e nos meus, também a libertou, acenando para que
ela os seguisse. Então sussurrei para minha ama: “Vamos com
eles ou acontecerá conosco o mesmo que a esses homens. Você
precisa se mover. Agora!”
Pela segunda vez senti que havia alguma relação entre
minhas palavras e as ações daquela em que eu vivia, pois, ainda
que lentamente, ela passou a caminhar, juntando-se ao grupo de
homens de bronze, que corriam para longe das cenas grotescas
daquele cais.

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Nos afastamos do mar. Eu, que sentia o que minha ama sentia,
sabia no que ela pensava quando viu a última nesga do oceano
sumir ao longe: que também nos afastávamos de sua casa, que
ficava do outro lado daquela água infinita.
Vimos, em nosso caminho, uma vila grande, completamente
vazia, deserta, com casas abandonadas, janelas e portas
escancaradas e uma atmosfera fantasmagórica em toda sua
extensão. Tempos depois soube que fora um lugar antes muito
vivo e agitado, chamado São Mateus, e que o porto do qual
viéramos tinha o mesmo nome. Naquele momento, a única coisa
que se movia em São Mateus era o vento batendo nas janelas e
nas portas.
Os homens e mulheres de bronze acharam por bem pararmos
ali para passar a noite, que não tardaria. Uma mulher tomou
minha ama pela mão e levou-a com ela até uma casa desabitada,
onde a fez sentar. Trouxe uma pequena vasilha com um líquido
quente, feito de ervas, que disse ser o melhor que podia fazer ali,
com os conhecimentos que trazia do outro mundo. Seu nome
era Bandele.
Enquanto a mulher cuidava de minha ama, uma outra,
bem parecida com ela, porém mais forte e corpulenta, buscava
maneiras de proteger a casa dos cabeças-vazias que havíamos
visto no porto. Ela parecia muito atenta e, como se viu depois, foi
sempre leal. Chamava-se Binda.
Foi durante esse tempo que eu, inesperadamente, pude
olhar para o rosto de minha ama pela primeira vez. Ela havia
encontrado um espelho pequeno, cujo vidro estava quebrado,
mas que ainda se encontrava pendurado em uma parede.
Ela olhou muito rapidamente para seu reflexo, colocando-se
na ponta dos pés, mas esse tempo tão curto não me impediu de
conhecê-la. Ela era ainda mais jovem do que imaginava, apenas

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uma menina assustada, dessa primeira vez que a vi. Assustada,
não. De fato, seu rosto não mostrava qualquer emoção. Parecia
morta.
Ela tinha o mesmo tom de pele dos homens e mulheres de
bronze. Era ainda mais escura que eles, e por isso o branco de
seus olhos fazia um contraste muito maior.
Aquela noite, quando ela se deitou no chão frio da casa,
que tivera portas e janelas reforçadas contra os cabeças-vazias,
eu desejei poder estar ao lado dela para acariciar sua cabeça
até que dormisse. Eu, no entanto, pude apenas dizer-lhe
internamente que precisava ser forte e resistir, pois era só o
que eu podia fazer.
Como era difícil não ter mãos e pés, e poder andar como as
irmãs Bandele e Binda, e fazer algo mais do que ser uma voz
interior. Mas senti que novamente minhas palavras surtiram
algum efeito, pois ela dormiu tranquila, enquanto eu cantava
uma canção antiga, tão antiga que nem sei mais como a aprendi,
ou em qual língua.

Ela acordou com minha voz e o tumulto que havia se


instaurado lá fora.
“Eles estão aqui”, falei.
Ela se ergueu rápido e eu senti sua respiração ofegante.
Ela, pela primeira vez, deixou a apatia e começou a se mover
como eu esperava. Com desejo de sobreviver, pegou um grande
e rombudo pedaço de madeira que lhe serviria como arma e
postou-se preparada para tudo.
Os sons eram os piores possíveis. Esgares, ruídos de luta,
ossos quebrando. Nós duas sabíamos o que havia lá fora. Ruínas,
e cabeças-vazias ocuparam a vila devastada e queriam comer.
Dentro da casa, Bandele e Binda reforçavam as barricadas, mas

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já muitas mãos batiam contra as portas e janelas e eu sabia, era
questão de tempo que entrassem.
As batidas iam aumentando de intensidade, assim como os
esgares. Eu sei que todos imaginam como tudo estaria lá fora,
uma dúzia de cabeças-vazias forçando as entradas, todos mortos
de fome. De fato, logo um dos pedaços de pau que sustentava a
porta cedeu, assim como outro na janela, e eu entendi que em
questão de instantes conseguiriam entrar e nos matar.
Olhei para Bandele e Binda. Ambas seguravam facões que
encontraram na casa, e pareciam decididas a enfrentar o que
viesse. Minha única felicidade foi perceber que minha ama
também estava a postos, a respiração ainda ofegante, e em
posição de luta. Eu estava naquele momento com verdadeiro
orgulho dela, e apenas lamentei que logo ela também se tornaria
uma cabeça-vazia, e eu talvez não pudesse mais acompanhá-la.
Uma outra tábua quebrou e a porta finalmente cedeu. Pela
fresta vimos diversas mãos entrarem e ficarem à procura de
algo para tocar, rasgar e matar. E também cabeças, dentes logo
surgiram, bocas famintas no vão da porta, que se abria cada
vez mais.
As mãos deixaram de se mover e caíram, inertes, bem como
as cabeças desabaram umas sobre as outras, no vão. Alguns
estampidos distantes e também próximos. Silêncio, quase como
o silêncio que eu ouvia enquanto ainda não havia acordado,
antes de escutar o grito de minha ama, chamando-me para viver
dentro dela, no meio do mar.
Pessoas removiam os corpos da frente da porta que bloqueavam
nossa saída. Com a porta completamente aberta, vimos homens
como aqueles no porto, brancos com barbas escuras e armas nas
mãos. Sem qualquer hesitação eles entraram, seguraram o casal
amigo e também minha ama. Saímos com eles da casa.

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Lá fora havia uma grande carroça puxada por animais, e
sobre ela, em uma espécie de gaiola grande, homens e mulheres
de bronze, novamente aprisionados com correntes e cordas.
Eram os que haviam sobrevivido, e percebi que não eram muitos,
menos do que a metade dos que haviam chegado na cidade
fantasma. Eu e minha ama, Bandele e Binda, esta última não sem
muita luta, fomos levadas para lá, também, enquanto ouvíamos
os homens conversando, rindo, como se o que tivessem feito
fosse sua rotina besta.
Quando a carroça partiu, escoltada pelos homens brancos e
barbados, montados em cavalos, pudemos ver o vilarejo mais
uma vez, os corpos estendidos pelo chão, dezenas de cabeças-
vazias, finalmente inertes, e também corpos das pessoas de
bronze. Entre os corpos, reconheci o da guerreira sem nome
que havia corrido até as chaves e libertado todo aquele grupo.
Tinham todos na cabeça um buraco de tiro, como uma marca,
uma maldição antiga ou talvez muito nova.
Busquei sentir como estava o interior daquela que me
abrigava e quase não me foi possível penetrar em seu secreto
sentir, que parecia denso como um rio após uma tempestade.
Minha satisfação era que ela estava viva por fora e também
por dentro, ainda que o que a mantivesse assim fosse, eu sabia
melhor que ninguém, um ódio profundo e gelado.

Nosso destino era uma grande propriedade. Enquanto a carroça


entrava por ela, vimos muitos e muitos outros peles de bronze
trabalhando sem sequer olhar para nós. Pudera: eram vigiados
por homens de barba negra e pele branca, que traziam consigo
chicotes, facões e armas que soltavam fogo. Curiosamente, havia
alguns que vigiavam que tinham também peles da cor de minha
ama e dos outros acorrentados. Da mesma maneira, nem todos os

| 96 |
trabalhadores deram as costas para nós, e eu pude perceber alguns
olhares furtivos e rápidos enquanto passávamos.
Fomos depositados num galpão grande, que naquele momento
estava vazio, pois, com certeza, aqueles que o ocupavam estavam
agora trabalhando, e eram quem nós havíamos visto, na chegada.
Minha ama observava tudo, atenta a cada detalhe e eu gostava
de perceber isso e a incentivava sempre, tentando apontar para
lugares e pessoas e objetos. Eu sabia, de alguma forma, que esses
conhecimentos seriam úteis em algum momento. Por exemplo,
ela percebeu que um dos homens brancos que nos escoltou olhava
para ela mais do que para os demais cativos. Era um olhar fixo,
que parecia esquadrinhar cada palmo de minha ama, e ele só a
deixou quando outro homem, também branco, mas, diferente dos
demais, muito mais imponente, entrou no galpão para nos ver.
Ele era com certeza o dono de tudo aquilo, o que incluía
minha ama e os homens e mulheres de bronze. Andava ao nosso
redor, medindo sua propriedade com olhar duro. Mas eu pude
notar, e acho que já minha ama estava ganhando essa percepção
mais apurada, que ele já tivera dias melhores. As roupas que
usava, apesar de serem certamente mais bonitas que a de seus
empregados, e infinitamente melhores que os trapos que usavam
os homens de bronze, por exemplo, estavam rotas.
A própria fazenda não estava em perfeito estado e a verdade
é que a casa grande pela qual passamos, quando chegamos,
trazia, inegavelmente, algumas das marcas que vimos no porto.
Manchas de sangue nas paredes de fora e no chão, madeiras
quebradas na varanda, grandes cercas antes bonitas, agora
reforçadas com grosseiros troncos de árvores pontudos fincados
no chão, como armadilhas para o que eu já imaginava.
Depois da inspeção, fomos mandados trabalhar. Não eu,
de fato, mas minha ama e os outros acorrentados, agora sem

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grades nos pés e nas mãos, mas vigiados de perto por homens
bem armados.
O trabalho era extenuante e longo, sem pausas para comer
ou beber. Ela transpirava quase tanto como no navio, e suas
mãos por pouco não ficaram em carne viva, na moenda, nas
plantações, no pilão. Mas aprendeu rápido o ofício, ainda que
isso não o tornasse menos exaustivo.
Creio que ela perdeu mesmo a noção do tempo, se foram
dias ou semanas ou meses, pois eu também perdi. E a vida era
só trabalhar, beber de quando em quando uma água suja que
havia no poço ali perto, e comer uma pasta amarela, sem sal
ou tempero, e que vinha do milho que também debulhávamos.
Quando a noite chegava e minha ama se deitava, dormia
quase instantaneamente, mas eu ficava acordada, preocupada,
pensando quando aquele trabalho iria finalmente quebrá-la,
deixá-la, de alguma maneira, semelhante aos cabeças-vazias, às
ruínas, que todos temiam.
Realmente, à noite, enquanto minha ama dormia, eu às vezes
escutava as conversas dos outros homens e mulheres de bronze
escravizados, como Bandele e Abimbola, que se aguentavam
como podiam. A palavra nzumbi era ainda pronunciada e eu
sabia que se referia às ruínas. Eles falavam de ataques que haviam
acontecido em muitas fazendas, sendo essa a razão de hoje estarem
desativadas, pois seus proprietários haviam fugido ou morrido.
Mas o dono de onde estávamos − José Trancoso era seu nome,
aquele homem imponente que já vira dias melhores − não aceitou
perder suas terras, e vinha lutando para se manter de pé. Era difícil
saber se o que o mantinha era força de vontade ou petulância.
Sei que uma noite minha ama não dormiu. Já havia se
passado muito tempo desde que chegáramos ali, e ela já não era
tão pequena mais. Ela ouvia as conversas e poucas vezes falava.

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Num desses raros momentos, contou sobre sua casa, além-
mar, descrevendo-a para alguém que perguntou a respeito, uma
mulher de bronze de meia idade e de olhos muito brilhantes. Essa
mulher, que se chamava Urbi, ouvia atentamente e, parecendo
conhecer toda a região descrita por minha ama, falou:
− Mas então, Miúda, vosmecê só pode ser filha da Zarina
Gaba!
− Este era o nome da minha mãe.
− Miúda, então vosmecê é Zacimba! Zacimba Gaba!
− É meu nome, sim.
E a mulher ficou com essa expressão atordoada no rosto,
por algum tempo, sem poder acreditar. Ela conhecera a família
de minha ama, há muitos anos, quando sua mãe fora criada de
Uganda, no Congo.
− Zacimba, sua mãe era uma rainha − disse Urbi, curvando-se.
Mas Zacimba, minha ama, respondeu:
− Urbi, aqui a gente é tudo igual, escravo. Faz favor de levantar.
Os que estavam à volta a olharam, cochicharam e fizeram
gestos parecidos, em respeito, alguns abismados de descobrirem
que ela tinha, afinal, sangue real. E eu percebi que o fato de
não falar de sua origem, até ali, e só quando instada a dizer,
aumentou em todos esse sentimento de respeito e admiração
por minha ama.

O modo como tratavam minha ama mudou, ainda que ela


continuasse a mesma. Realmente, isso não é verdade. Ela havia
mudado muito desde que chegou, naquele navio, a essas terras.
Ela havia crescido e se relacionava com todos aqueles que, como
ela, eram pessoas escravizadas. Estava mais magra que quando eu
a vi pela primeira vez, no espelho rachado, na casa destruída pelos
cabeças-vazias. Estava também mais forte e preparada.

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José Trancoso, quando lhe chegou a informação de que ela
era uma princesa do Congo, mandou-a até ele e a interrogou
sobre a verdade daquilo. Ela não negou, mas falou-lhe que
não importava, pois isso era lá, em outro mundo, e aqui quem
mandava era ele. Ela não disse que quem mandava era o rei de
Portugal, nem o presidente da província, mas José Trancoso, e
isso o agradou muito, eu percebi.
Ele mandou que ela passasse a trabalhar na casa grande, era
muito menos extenuante. À noite, ela usava o tempo para treinar
com uma faca que roubara da cozinha golpes em um boneco
de pano que ficava quase sempre escondido e que fizera com
roupas velhas, e que, curiosamente, tinha a aparência do dono
da fazenda. Ela mirava sempre a cabeça, que era onde Abimbola,
que a ajudava na prática do facão, dizia ser o único ponto
vulnerável dos cabeças-vazias.
Em algum momento, minha ama ganhou tal confiança do
proprietário que podia andar pela propriedade sem necessidade
de vigilância. Apenas o capataz, de nome Matias, que gostava de
mirá-la, cada vez mais de perto, principalmente quando ela se
dirigia à uma pequena lagoa, nos limites da fazenda, para tomar
banho longe de todos, ele aparecia, e ficava escondido, ainda que
ela o visse fingindo não ver.
Minha ama aprendera muito durante os anos. É preciso dizer
que agora conversávamos francamente as duas, sem qualquer
problema de comunicação. Eu, assim, sabia exatamente o que ela
planejava com cada ação sua, com cada passo medido que dava, e
também sabia que se aproximava o dia em que tudo se deslindaria.
As coisas pareciam caminhar da mesma maneira até o ataque,
desta vez maior, dos cabeças-vazias, à fazenda de José Trancoso.
Aconteceu de repente, no meio de uma manhã. Entraram por
uma parte quebrada da cerca de espetos, por causa da tempestade,

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e ninguém percebeu. Um ficou preso nos paus, apesar de depois
ter misteriosamente sumido, mas os demais passaram e entraram
na propriedade, chegando a atacar uma escrava que usava um
pilão e um escravo velho que levava cana-de-açúcar nas costas. Os
cabeças-vazias foram logo postos ao chão com facões no crânio,
e a mulher e o homem de bronze, sacrificados ali mesmo, porque
logo virariam cabeças-vazias, ruínas.
Quando tudo estava já próximo da normalidade, procuraram
por mais cabeças-vazias, pelo que ficará preso nos espetos, por
exemplo, mas acharam apenas partes de suas roupas e carnes na
cerca de pau, sem sinal dele.
Tudo estava muito perto de acontecer.

Foi num final de tarde que começou. Zacimba foi ao lago


tomar banho. Ela sabia que estava sendo seguida, mas permitiu
que isso acontecesse. Enquanto estava na água, viu aparecer
Matias. Ele vinha devagar, sem tirar os olhos dela.
“Tem certeza de que quer fazer isso?”, eu perguntei.
“Sim. Já pensei em tudo.”
Ela então o chamou para a água. Ele, que já tinha um sorriso,
abriu-o mais, debaixo da barba escura. Avançou, enquanto se
livrava das roupas, que iam caindo nas margens, uma a uma, até
ele ficar completamente nu, e eu preciso dizer, não era uma visão
que eu considerasse bonita.
Veio então pela água, em direção à Zacimba, que o esperava
sorrindo. E enquanto vinha, senti que o coração dela batia mais
forte, entendi que ia realmente acontecer e também fiquei ansiosa.
E então o som, o grito de Matias, de quem foi surpreendido
com uma dor excruciante. Zacimba foi até ele, mostrando
preocupação, mas tomando o cuidado de contornar o lugar em
que ele havia sentido a dor no pé.

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Ela o levou para fora da água, ajudou-lhe a vestir se e então
examinou a ferida na sola do pé. Tratava-se, falou, de uma
mordida de algum animal que vivia na água.
− Um negro d’água? − ele logo pensou, pois era uma crença
local que haveria uma criatura assim.
Mas Zacimba disse que não, que não era mais que um corte
pequeno, do qual ela cuidou de limpar e tampar com bandagens.
Era já tarde e ele foi para o alojamento dos capatazes deitar-
se. Minha ama e eu, no entanto, não nos deitamos. Fomos para a
senzala e preparamos a todos pelo que viria. Era importante que
todos soubessem e estivessem a postos. Era ainda mais importante
que aquela noite a casa de José Trancoso ficasse completamente
aberta e o alojamento dos capatazes completamente trancado.
Bem mais tarde, começamos a ouvir movimentos no
alojamento. Era mais que isso, eram sons que gelariam a espinha
e paralisariam o sangue se minha ama não estivesse pronta e
armada, assim como todos em nossa senzala escura e silenciosa.
Pelas gretas das paredes acompanhávamos, eu, ela, Urbi,
Bandele, Binda e todos os demais, o que acontecia.
Então, um grande silêncio.
Era a chave para Binda e outros irem até a porta do alojamento
e abrir. Fizeram apenas isso e voltaram à senzala, para, junto
conosco, olharem pelas frestas o que aconteceria.
A princípio desnorteados, as ruínas de quem antes foram
nossos capitães do mato, desciam do alpendre, andando a esmo
agora pelo pátio. Eram já quatro a essa altura, sendo o primeiro
Matias, sem um pé, andando sobre o cotoco do osso da canela.
Houve o impasse. Estavam do lado de fora da cabana, e do
lado direito havia a casa grande, com a varanda iluminada pelo
lampião; do lado esquerdo, a senzala onde estávamos todos,
em silêncio e no escuro, aguardando. Qual lado escolheriam os

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cabeças- vazias? Para onde iriam? Se dividiriam? Encontrariam
outro caminho que não aqueles dois? Mas, fosse por causa das
luzes que chamavam atenção para aquele edifício, fosse por outra
razão qualquer, o fato é que, com seu passo trôpego, mortiço,
as ruínas escolheram a casa grande, onde dormia a família, esta
noite em especial ainda mais profundamente, graças a certas
ervas colocadas, por Bandele, em seu jantar.
Não esperamos sequer para ver os resultados daquilo.
Quando os cabeças-vazias entraram, sabíamos que era hora de
agir. Zacimba e os outros saíram da senzala, foram até o estábulo
e pegaram os cavalos de que precisavam. Foram até as despensas
de comida que ficavam fora da casa grande e pegaram a farinha,
a carne de sol e tudo o que puderam carregar.
Na hora mais escura da noite, partimos, e olhei bem fundo
dentro de minha ama. Ela estava brilhando.

Zacimba começou a organizar o quilombo. Aos poucos


chegavam fugitivos de várias partes, incluindo do Norte, da
Serra da Barriga, onde outro quilombo tinha resistido mais
do que qualquer outro, antes de ser destruído por Domingos
Jorge Velho. Aqueles que vinham contavam histórias de
um homem chamado Zumbi, um líder que viveu e morreu
pelo povo palmarino. A que melhor nos falou dele, pois o
conhecera melhor que ninguém, foi uma mulher de bronze
muito imponente, muito forte, que sobreviveu ao fim daquele
quilombo. O nome dela era Dandara.
Nessa época, eu, assim como Zacimba, já também estava
diferente, havia aprendido muito, sobretudo sobre mim mesma
e sobre aquele mundo feito quase que só de horrores. Diferente
de minha ama, que estava no ápice de sua força, eu sentia como
se fosse agora uma velhinha, sempre cansada, e sem a energia

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que mostrava logo que acordei, há o que me parecia uma
centena de anos.
Lentamente, percebi isso e também aos poucos fui contando
a Zacimba, sempre com muito cuidado. Falei-lhe da minha
fraqueza crescente, do cansaço que quase já me fechava os olhos
e minava minha força. O quilombo já era uma realidade e servia
de refúgio e proteção contra as duas forças mais destrutivas que
eu conhecia.
“Você não pode ir. Como pode pensar isso? E eu, como fico?
Seu lugar é comigo. Veja o que estamos criando aqui. Eu preciso
de você.”
Ela não gostou nada do que eu disse, rechaçando minhas
palavras. Aguardei uma nova oportunidade e falei novamente
com ela. Ela ainda não aceitava.
“Você precisa resistir acordada. Esperamos muito por nossa
liberdade. Quero que você a veja através dos meus olhos.”
Eu sentia que ela começava a entender que eu, afinal, não
podia continuar ali, com ela, dentro dela. Enfim, uma noite,
quando estávamos deitadas em silêncio, ambas pensando em
todos os eventos que nos haviam levado até ali, eu senti minhas
pálpebras muito pesadas, e vi que precisava realmente dormir.
Disse a Zacimba o que se passava, mas creio que ela já
adivinhava tudo. Desta vez, não seria ela a descansar e eu a velá-
la. Ela permaneceu acordada até que o sono enfim me levou
para longe dali. Eu sei que ela chorava por dentro, pois quando
parti ouvi um distinto som de chuva. Eu estava livre.
Eu me senti realmente transportada, e talvez tenha sonhado
com coisas e pessoas, do tempo em que estive com Zacimba, e
talvez antes, ou ainda depois. Os cabeças-vazias ainda estavam
lá, sempre estiveram, talvez sempre estarão, eu penso, mas são
apenas isto: ruínas. E eu também estou, estive e estarei lá, para

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ajudar a enfrentá-los e, em algum momento, vencê-los. Eu não
sou ruína. Sou outra coisa.
Ouço sons distantes, ainda. Estou abrindo aos poucos os
olhos. Luzes, uma cidade iluminada, com um gigante de braços
abertos a me saudar, mas sem amor, como se feito de pedra.
Deixo o gigante na sua altura e desço. Desperto um pouco mais.
Lá embaixo, duas carruagens de metal, emparelhadas. Em uma
delas, uma guerreira de bronze acaba de morrer, nas mãos das
ruínas de cabeças-vazias.
Um grito ecoa na noite sempre que os monstros voltam. Abro
os olhos agora, completamente desperta. Estou aqui, ao rés-do-
chão, outra vez, no meio da luta.
Estou dentro de você.

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Copyright © 2019, Felipe Gaze e Wolmyr Alcantara

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida,
arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a
permissão expressa e por escrito do autor ou da editora.

Produção editorial, projeto gráfico, preparação,


editoração eletrônica MARÍLIA CARREIRO
Ilustração de capa FRANCIELLI NOYA TOSO

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


(Bibliotecária responsável: Bruna Heller – CRB 10/2348)

C719 Colônia Horror : contos de fundação e morte / Felipe


Gaze, Wolmyr Alcantara (org.). – Vitória:
Pedregulho, 2019.
108 p. ; 15x21cm.

ISBN 978-85-67678-41-2

1. Literatura brasileira. 2. Contos. 3. Escritores


brasileiros. I. Gaze, Felipe. II. Alcantara, Wolmyr.

CDU 869.0(81)-34

Índice para catálogo sistemático:


1. Literatura em português 869.0
2. Brasil (81)
3. Gênero literário: contos -34

Os textos em escrito em Língua Portuguesa deste livro seguem as regras Acordo


Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1º de janeiro de 2009.
Este livro foi composto no outono de 2019,
na tipografia Minion Pro, corpo 11/16,
sobre papel Pólen soft 80g/m².

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