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Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2.

GIL VICENTE – HUMANISTA?


GIL VICENTE – HUMANIST?

Francisco Maciel Silveira


Universidade de São Paulo

Resumo: Discute-se nessa intervenção o Abstract: This paper will discuss the fact
fato de os manuais de história literária that disturbs me. The fact of considering,
portuguesa considerarem Gil Vicente Gil Vicente as humanist, above all when
humanista, sobretudo, o que me sempre everybody forgets he wrote Exortação a
intrigou foi Gil Vicente como Humanista. Guerra e o Auto da Barca do Inferno, do
Ainda mais considerando que escreveu Purgatório e da Glória, three plays the
uma Exortação à Guerra, os autos da final judgement. The intervention will
Barca do Inferno, do Purgatório e da then discuss Gil Vicente´s A farsa de Inês
Glória. Em seguida a intervenção Pereira under the title Inês a que caiu do
discutirá A Farsa de Inês Pereira, sob o cavalo e deu com os burros n´água. Built
título Inês a que caiu do cavalo e deu com upon the dictum mais quero asno que me
os burros n água. Construída com base no leve que cavalo que me derrube, the play
dito popular mais quero asno que me will be built above three elements - I,
leve que cavalo que me derrube, a peça Experience, Society, defending imobility of
será construída sobre 3 elementos: eu, medieval structure of Society in Portugal
experiência, sociedade, defendendo a of sixteenth century.
imobilidade da estrutura medieval da
sociedade em Portugal do século XVI. Keywords: Humanism; Gil Vicente;
Palavras-chave: Humanismo; Gil Century XVI.
Vicente; Século XVI

Sempre me intrigaram os manuais de história literária portuguesa ao


colocarem Gil Vicente como humanista. Ainda mais considerando que Gil Vicente
escreveu uma Exortação a Guerra em tudo contrário ao pacifismo Humanista, a fim
de compreendermos o dilema Humanismo/Igreja em que Gil viveu.
Dedicada a D. Manuel, aquando da partida para Azamor do Duque de
Bragança e Guimarães, em 1513, Exortação à Guerra, tendo Deus por capitão [sic],
convoca Aquiles, Aníbal (puxando o coro da exortação), Heitor, Cipião para
dirigirem-se às damas da corte que deveriam doar suas joias e rendas para o
triunfo de Portugal contra a moirama.

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Abre a cena um Clérigo nigromante, logo abordado pelos diabos Zebron e


Danor. Em seguida surge Policena com profecias de casamento entre nobres e
descrição do bom galante. Segue-se Pantasileia, rainha das Amazonas.
Sabe-se que o Humanismo se opôs ao teocentrismo da cultura medieval, que
atacou a escolástica, sua mentalidade e a interpretação alegórica dos textos. Sabe-
se também que procurou desenterrar a genuinidade do magistério de Cristo e
sempre criticou a hierarquia feudal. Em Portugal, a ideologia expansionista feudal
e guerreira é, lembramos, umbilicalmente católica.
Quinhentos anos completa o Auto da Barca do Inferno, obrinha de devoção
dedicada a D. Maria, enferma do mal que faleceu em 1517. E cujo sucesso até hoje
se deve à figura do Parvo e dos demônios.
Sabe-se que, no enredo do Auto, desfilam, em procissão, diante da barca do
Inferno e da barca do Anjo dez tipos sociais, personificando os sete pecados
capitais. São eles luxúria, avareza, roubo, pecado contra a castidade, relaxação
conventual, soberba, orgulho, arrogância e vaidade A título de exemplo, lembremos
que o frade com mania de cortesão, a ensaiar golpes de esgrima, traz a moça
Florença; afinal o hábito não faz o monge, já dizia Erasmo. Ou ainda não adianta
também morrer comungado e confessado, como alega o sapateiro, ritualismos não
contam no verdadeiro magistério cristão – o que soa como mais uma lição
humanista.
Há também pecados sociais: usura (agiota), venalidade (corregedor),
lenocínio (alcoviteira), dolo no exercício da profissão (sapateiro), relaxação na vida
clerical (frade). O lenocínio está representado por Lianor Vaz, que cria meninas
para os cônegos da Sé (antecipadora pedofilia eclesiástica)? A venalidade do
corregedor, que, tal como certos juízes de nosso STF está apostada em facilitar
solturas de presos pelas propinas (espero que assim não seja!) que recebem. O
procurador, encarregado da defesa dos réus, mais preocupado com habeas corpus,
também é, além do salário, acusado do recebimento de propinas, triste imagem do
Brasil.

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Num braço de mar, espera-nos a barca de Caronte para a travessia final,


insipiência de sua formação humanista. Trata-se obviamente do Juízo Final,
quando vão a julgamento pelos mal-feitos cometidos.
Mal abre a peça, a rubrica diz tratar-se de uma prefiguração que os inimigos
fazem a todas as almas humanas no ponto que per morte de seus terrestres corpos
se partem.
Chamo a atenção para a palavra prefiguração, pois se trata de terminologia
encontrada nos conceitos predicáveis, na Escolástica, a falar de coisas futuras,
alegoricamente projetadas no futuro, afinal nada mais certo que nossa morte.
Estamos diante do Juízo Final.
No desfile ante a barca do inferno passeiam o fidalgo, Dom Anrique, com sua
cadeira (trono de sua tirania); o onzeneiro, que deseja retornar para recuperar
seus juros; o sapateiro; o parvo (definido como Ninguém e cuja simpleza só essa
lhe abastou, ou seja, não é dúplice = hipócrita); o sapateiro com suas formas; a
alcoviteira, que criava meninas para os cônegos da Sé; o judeu com seu bode às
costas; o corregedor; o procurador.
Naturalmente só os quatro cavaleiros de Cristo que pelejaram em África
pela fé católica contra os infiéis estão livres do mal e do pecado. Acrescente-se que
os cavaleiros de Cristo atuam por vontade própria, ou seja, por livre arbítrio.
Concebida como uma trilogia, não devemos amputá-la, sob o risco de não
entendermos a cosmovisão vicentina. Assim prossigamos na análise das partes
restantes.
O Auto da Barca do Purgatório diz claramente que nosso purgatório é feito
com o suor de nosso rosto. Donde a escolha de trabalhadores como o Lavrador, a
Lavradora, o Pastor menino. Estamos no âmbito de sofredora humanidade, a
trilhar esse vale de lágrimas e lamentações.
Sugere-nos Gil que pela vida que levam estarão salvos, ao contrário do taful,
garrido, levado pelo Diabo, a tafularia deve ser evitada por Gil. Afinal, o Gil, o
curinga de Reis Vicente quer ter a simpleza do Parvo, como Bobo da Corte ou
inocência do menino que será salvo, levado pelos Anjos.

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Já na Barca da Gloria, nosso Gil Vicente da Igreja revela toda sua devoção
medularmente católica, pondo Cristo da ressurreição a repartir os remos das
chagas, salvando todos. Duque, Rei, Imperador, Bispo, Arcebispo, Cardeal, Papa,
tudo acompanhado por lições (6) e responsos (6), tudo muito doutrinal. Todos
salvos, com devidas lições, além de beatos responsos. Quatro são os anjos
encarregados da salvação, com cinco remos figurando as cinco chagas de Cristo.
Verdadeiro deus ex machina ao final, quando se despem de suas máscaras sociais.
O final da trilogia explicita o cunho teocêntrico da lição vicentina. Afinal,
Deus assim o quer, assim reza o breviário, na Páscoa.
Outro final desejaríamos para a trilogia das Barcas. Mas Gil Vicente, como
Curinga de Reis e da Igreja, misturando humanismo e teocentrismo, sem conseguir
desvincular-se de sua formação beata nos impinge tal moralidade. Ao cabo, obra de
muita devoção.
A moralidade inscrita na trilogia das barcas é óbvia: devemos nos descartar
da materialidade dos corpos, assim como do peso dos pecados, esses sim
responsáveis por nossa condenação.
Aqui fico eu com sonoro Laus Deo. Sem mais fôlego da inspiração, por aqui
fico.
Peço então a paciência dos leitores para essa incursão na farsa Inês, a que
caiu do cavalo e deu com os burros n água.
Representada em , tendo na assistência o muito alto & mui poderoso
Rei D. João o terceiro do nome em Portugal , a Farsa de Inês Pereira é, a meu ver, a
mais bem construída peça de Gil Vicente. Bem estruturada, apresenta uma intriga
com começo, meio e fim, fugindo, assim, do esquema de procissão , de sketches,
comumente explorado por Gil Vicente.
A peça constrói-se a partir do ditado mais quero asno que me leve, que
cavalo que me derrube , dado ao dramaturgo por certos homens de bom saber
que duvidavam se o autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as furtava de
outros autores .
Não cabe aqui discutir se os tais homens de bom saber , influenciados
pelas, em Portugal, incipientes novidades clássicas trazidas pela redescoberta

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humanista dos greco-latinos, estavam a exigir de Gil Vicente uma peça mais
orgânica, com maior unidade de ação em seu desenvolvimento. Assinale-se,
entretanto, que por pouco Gil Vicente não transforma sua farsa num exemplo das
unidades clássicas de ação, tempo e espaço.
A rigor, falta a essa peça apenas a unidade de tempo 1. A de espaço reside em
tudo transcorrer e evoluir na casa de Inês. A de ação está garantida pelo conflito
que, não obstante dividido em três cenas, mostra-nos a evolução de Inês que,
partindo do sonho casamenteiro, desengana-se com a experiência de mal-casada e
desforra-se da sabedoria popular e social através do adultério.
Um exame mais detido do rifão dado a Gil Vicente ⎯ mais quero asno que
me leve, que cavalo que me derrube ⎯ há de revelar que nele já estão contidas as
três cenas, construídas, sucessivamente, a partir de cada um dos três elementos
estruturadores do conflito: eu, experiência, sociedade.
Observe-se, primeiramente, que se trata de um ditado popular, ou seja, a
cristalização da sabedoria social, coletiva. Uma verdade que só se cristaliza e
entroniza através da experiência.
Note-se, em seguida, que há uma individualidade, um eu, que, transparente
no pronome oblíquo (me) e oculta na desinência verbal de primeira pessoa,
enuncia o ditado. Registre-se o teor desiderativo da frase (o verbo querer, o
presente do subjuntivo). Há desejo e certa resignação no tom desiderativo. A
opção, que nos fala da troca de um valor (cavalo) por outro (asno), só é possível
através da experiência. Por fim, o ditado denuncia o acatamento do ditame social e
coletivo.
Temos aí os três elementos estruturadores do conflito: Eu, Experiência,
Sociedade, correspondendo, respectivamente, a cada uma das cenas (entenda-se
por cena um momento da ação com começo, meio e fim.)
A primeira cena, correspondente ao Eu, compõe-se de seis quadros. (Numa
peça teatral o quadro, segmento de um todo conflitual que é a cena, se marca
usualmente pela entrada ou saída de uma personagem). Vai de Inês, sozinha a

1. Ah, se a tivesse desbancaria, aristotelicamente, a primazia de Sá-de-Miranda, aclamado, com suas


peças soporíferas, como introdutor da comédia clássica em Portugal.

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lavrar, até a saída de Pero Marques, parvo vilãozinho rejeitado em seu pedido de
casamento. É a cena em que um eu sonhador e fantasioso pretende um marido não
só inadequado à sua posição social de filha de uma mulher de baixa sorte , como
também contrário às expectativas da sabedoria coletiva. Daí o antagonismo que lhe
movem a mãe e Lianor Vaz, mulheres experientes, conhecedoras da vida e das
exigências estamentais. As duas se opõem a Inês, apresentando razões proferidas
quase sempre através de ditados, pois ambas são porta-vozes dessa sabedoria
social e coletiva.
A segunda cena corresponde à Experiência. Vai do sétimo quadro
(novamente sozinha, Inês repõe seu sonho e teima em casar-se com homem
avisado , que saiba tanger e cantar, e não com um vilãozinho até ao vigésimo
primeiro. Quando, já casada com o Escudeiro que sabia tanger e cantar (um caça-
dotes faminto ⎯ por fora bela viola, por dentro pão bolorento , diria minha sábia
sogra ⎯), ei-la trancafiada em casa, sob a guarda do Moço, outro rascão faminto de
ascensão social 2. A ilusão nutrida por Inês de ascender socialmente, casando-se
com um fidalgo , fê-la cair do cavalo, ao maridar-se com um Escudeiro pé-de-
chinelo. Mas também fê-la aprender a lição sobre quantos mestres são/
experiência dá lição de que a sociedade, sábia em seus ditames, tem razão ,
punindo quem deseja desrespeitá-la ou desobedecê-la no afã de conseguir um
status acima de sua condição social. Punição também sofrida pelo Escudeiro: um
reles caça-dotes que, sem o DNA aristocrático do sangue, deseja, também
subvertendo a estratificação estamental da sociedade, nobilitar-se na quixotesca
cavalaria em África contra os infiéis, e acaba morto: Sabei que indo/ vosso marido
fugindo/ da batalha pera a vila,/ a meia légua de Arzila,/ o matou um mouro
pastor . O cavalo folão, sonhado por Inês, não passava de um poltrão.
A terceira cena trata da adequação e/ou submissão do indivíduo aos
padrões e às normas da Sociedade, vai do vigésimo segundo (Inês, novamente
sozinha a lavrar, corrigirá seu engano: Por usar de siso mero/ asno que me leve

2. Versão masculina de Hera, a proteger, sob sete chaves, a virtude de um lar CCC (cama, cozinha
capela)? Um marialva avant la lettre da Carta de guia de casados do seiscentista D. Francisco Manuel
de Melo, esse Escudeiro saído da pena de Gil Vicente? Aí um tema interessante para mestrandos e
doutorandos ⎯ Gil Vicente o tradutor inconsciente do inconsciente coletivo português.

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quero,/ e não cavalo folão até ao final da peça quando, montando o asno do
marido, o parvo do Pero Marques, vai ela encontrar-se, regularmente, com el
Ermitaño de Cupido , cio e sacio de sua sede de amor contrariado .
Note-se que, ao longo do auto, as cenas sempre iniciam com Inês sozinha,
dando à ação um desenho circular que figura o cerco dos ditames e normas sociais
sobre o indivíduo: um círculo (vicioso) cuja única saída (discutível porque implica
a perdição de Inês estará na subversão dos valores e normas sociais.
Esse, aliás, é o significado do corrosivo final proposto por Gil Vicente.
Montada no asno do marido (Pero Marques), fazendo-o entoar a cantilena dos
maridos-cucos (ou chifrudos, em bom português), Inês cruzará o rio: ⎯ Passemos
primeiro o rio,/ descalçai-vos . Isto é, ela passará para a margem oposta da
sociedade: rédeas soltas, viverá o outro lado de sua experiência conjugal de ainda
mal casada — as fugas adulterinas com ermitaño de Cupido , ironicamente
apresentado como um mendicante de Amor, vítima de desenganos sentimentais
que o motivaram a viver no ermo. Entenda-se: afastado de qualquer coerção social.
Como se vê, o epílogo subverte o valor do ditame bom é o asno que leva ,
degradando-o pejorativamente. É a desforra de Inês contra a tirania das normas
sociais. Mas desforra que é também a derrota de uma mulher cujos sonhos caíram
do cavalo e deram com os burros n água.
Seria cômico, não fosse trágico?
A comicidade, ao contrário do que comumente se pensa, pode ser muito
triste. Afinal, sua matéria, colhida na sociedade, reflete a feiúra das mazelas e vícios
humanos ⎯ escreveu-o Aristóteles em sua Arte poética. Quão amarelo ou amargo
pode ser o riso, ⎯ que o diga esta farsa de folgar vicentina, pois assim se fazem
as coisas .
Quando assim se vão [Pero Marques e Inês] & se acaba a dita farsa de um
casamento (Farsa de Inês Pereira), resta-nos a desalentada desconfiança — como
diz Carlos Drummond de Andrade — de que O mundo não merece a gargalhada.
Basta-lhe/ sorriso de descrença e zombaria 3.

3 ANDRADE, Carlos Drummond de. Farewell. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 21.

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Aqui, bifronte à Jano, fica a face desse Curinga de Reis medievo-


renascentista que foi Gil Vicente. Outro Juiz da Beira, julgue-o o leitor. Com o
Humanismo que, no caso, lhe for possível. Afinal, como diz sábio e velho ditado, Se
queres conhecer o vilão, põe-lhe uma vara na mão .

Artigo recebido em: 15.04.2018

Artigo aceito em: 24.07.2018

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