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Universidade Unigranrio

Professor: Robson Lacerda


Curso: Letras – Português/Inglês
Disciplina: Literatura Portuguesa
Alunos: Luiz Henrique, Fábio, Naíza, Alexandre,

Gil Vicente: Entre o Riso e a Distopia

Analisando os tipos sociais representados pelos personagens da obra de Gil


Vicente, podemos perceber a divisão de classes vigente no século XVIInteressante é a forma
com que o autor utiliza os personagens para expressar o pensamento dele. Em “Auto da
Feira”, percebe-se, até na fala do Diabo, que seria supostamente um mau caráter, que há
um questionamento acerca das atitudes das pessoas. “Toda a glória de viver / das gentes é
ter dinheiro / e quem muito quiser ter / cumpre-se de ser primeiro o mais ruim que puder” –
nota-se, neste argumento do Diabo, que este último não precisa forçar ninguém a ser
desonesto, basta a pessoa ser obcecada pela riqueza para usar de artifícios mais sujos
possíveis para conseguir o que quer. O livre arbítrio já é presente na obra em questão, o que
faz esta última estar à frente de um tempo no qual às pessoas tinham seus destinos
decididos por dogmas religiosos. Portanto, o trinômio poder-riqueza-injustiça, tanto
presenciado em fatos recentes como o “mensalão”, já era algo bem comum para os
contemporâneos de Gil Vicente, sendo tratado neste auto como fruto da escolha humana.

Auto da Feira

Como se sabe, Gil Vicente, apesar de religioso, não deixou as atitudes erradas da
Igreja passar em branco. Pelo contrário, em “Auto da Feira” tanto o Tempo como o Serafim,
personagens que zelam por um valor ético e moral, quanto o Diabo, o espertalhão que abusa
das fragilidades dos seus clientes, apontam os pecados ocultos dos religiosos. Para o
personagem Tempo, “A Cristantade é gastada em serviço de opinião”, ou seja, a Igreja
insiste em ditar normas e dogmas, baseados em “achismos”, que nem seus próprios
membros são capazes de cumprir. Seguindo este pensamento, o Serafim exorta
metaforicamente os “Papas adormidos” a mudarem suas condutas e atitudes e a retornarem
ao caminho reto dos pastores da Igreja Primitiva. Por sua vez o Diabo dispara:

Se me vem comprar qualquer,


clérigo, ou leigo ou frade,
falsas manhas de viver,
muito por sua vontade
senhor, que lh´ei de fazer?

Pode-se ver que, apesar das formas diferentes de crítica à esta Instituição
( enquanto o Tempo e o Serafim advertem os falsos religiosos, o Diabo os acusa
ferozmente), ambos os personagens fazem uma denúncia clara de que a hipocrisia também
existe na esfera religiosa.

Auto da Índia

Em Lisboa, desde muito cedo, a construção de barcos tornou célebre a Ribeira das Naus,
como já aparece referido nas crónicas de Fernão Lopes. Rodeámo-nos dos melhores
especialistas nas ciências náuticas (árabes, genoveses ou catalães). O grande impulso
vinha da figura emblemática e predestinada, o Infante D. Henrique, com a sua mítica Escola
de Sagres.
Devidamente preparados, encetámos a grande e sonhada aventura: a progressiva
descoberta da longa costa africana e o desvendar do largo oceano Atlântico. Os
Descobrimentos eram o cometimento grande e grave de todo um povo, o peito ilustre
lusitano. Contudo, a grande empresa era descobrir o desejado caminho marítimo para a
Índia, dobrando o Cabo das Tormentas, símbolo mítico dos vedados términos e alegoria de
todos os medos e perdições.

Antes da concretização da grande viagem, assistimos a uma paulatina e


persistente descoberta de toda a longa costa africana. Entre as figuras de pioneiros
navegadores, heróicos executantes da expansão ultramarina, salientam-se os nomes de
Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Gil Eanes ou Pedro Álvares Cabral. Dentro desta política
expansionista, mas também de sigilo, procedemos à partilha do mundo conhecido e
desconhecido no célebre Tratado de Tordesilhas.

A partir da viagem inaugural de Vasco da Gama, Portugal começa a enviar


regularmente armadas para o Oriente, conhecida como a rota da carreira da Índia. Ao
mesmo tempo, vai consolidando o seu poderio através do povoamento, da construção de
praças militares e de feitorias comerciais, das ilhas às costas africanas e ao longínquo
Oriente.

A mais arriscada mas também a mais desejada viagem da Expansão portuguesa,


foi a pioneira descoberta do caminho marítimo para a verdadeira Índia. Em 1498,
completam-se agora 500 anos, Vasco da Gama chegava à Índia, à frente de uma heróica
armada, ao serviço de D. Manuel. Abria, assim, uma nova rota que iria mudar as relações
comercias e culturais do mundo conhecido. Concretizava-se, deste modo, um sonho e uma
vocação: chegar por via marítima às distantes e exóticas terras orientais.

Depois de ter exaltado a aventura ultramarina, Gil Vicente aponta, no Auto da


Índia, o dedo crítico e satírico às consequências familiares da ausência dos homens
casados, pondo na boca do viajante regressado a confissão dos trabalhos por que
passaram, mas também as crueldades cometidas: Fomos ao Rio de Meca;/ Pelejámos e
roubámos. Também Sá de Miranda denunciará, numa dura invectiva moralista, a decadência
citadina originada pelos Descobrimentos: além de contrariar o ideal de vida rústica e violar a
Natureza, a Expansão fomentava a cobiça, empobrecia a agricultura e despovoava o país:
Ao cheiro desta canela/ O Reino se despovoa. A própria Peregrinação de Fernão Mendes
Pinto é um grande painel da decadência portuguesa reinante no Oriente. Tanto o herói como
outras personagens são astutos nos seus actos de pirataria e pilhagem, sem escrúpulos de
consciência, e até com o nome de Jesus na boca e no coração.

A aventura marítima dos portugueses teve o seu tempo de preparação, o seu


período áureo, mas também a fase de decadência. Depois da larga odisseia, chega o
momento do retorno à casa lusitana, à Ítaca natal. Cumprida a vocação expansionista, feito
e desfeito o Império ultramarino, é a hora do regresso às areias de Portugal e ao cais da
partida. Neste movimento centrípeto de regresso ou nostos, subsiste um duplo e
contraditório sentimento: de realização duma grandiosa empresa, mas também de
incumprimento do sonho. É a hora de o povo de marinheiros regressar ao rectângulo pátrio,
ao jardim da Europa, à beira-mar plantado.

Diferente dos outros autos, o Auto da Índia é uma peça de enredo cuja intriga se desenvolve
ao longo de vários anos, contendo abreviações de tempo que imprime agilidade e vivacidade
ao seu andamento.

A personagem principal é uma mulher de Lisboa cujo marido parte numa carreira
da Índia, à procura de fortuna, deixando-a sozinha. Se mesmo quando o marido está na
cidade esta mulher tem uma vida dúbia, durante a sua ausência a mulher vai levando uma
vida de diversão. Com a cumplicidade da moça, mantém simultaneamente duas ligações
extraconjugais.

Regressado do Oriente sem riqueza, o marido conta as suas façanhas que nada
tiveram de dignificante: "Fomos ao rio de Meca,/ pelejámos e roubámos". A mulher,
disfarçando uma alegria que não sentia pelo seu regresso, mente tranquilamente dizendo
que sentiu muitas saudades durante a sua ausência.

O auto termina com o retomar pacífico da vida em comum pelo casal, como se
nada se tivesse passado.

Ideologicamente, este auto configura uma crítica, vendo-se facilmente nele "o
reverso do mito dos Descobrimentos". Na verdade, através das falas das personagens que
nos fazem recordar o discurso do "Velho do Restelo" do episódio "As despedidas de Belém"
de Os Lusíadas, o autor apresenta os malefícios que a saída para o "desconhecido"
comporta nomeadamente no que se refere às mortes desnecessárias de muitos dos
navegadores e ao comportamento menos lícito dos portugueses face ao "outro civilizacional"
(a cristianização pela força das armas). Mas a crítica mais notória é feita ao abandono das
mulheres e família que enveredavam muitas vezes por comportamentos pouco dignificantes
que conduziam à desestruturação da célula familiar.

Pranto de Maria Parda (PMP)

Maria Parda lamenta-se pela falta de vinho nas tabernas de Lisboa, evocando os
tempos em que ele era abundante e barato. Depois,resolve pedir o vinho fiado a alguns
taberneiros que lho negam. Por fim, decide morrer e pronuncia um extenso testamento que
se refere obsessivamente ao vinho.
Na cronologia vicentina terá sido composição de uma época em que o autor já não fazia os
autos de el-rei D. Manuel (falecido em Dezembro de 1521) e ainda não fazia os de D. João
III. Luciana Stegagno Picchio fala dum Gil Vicente desempregado do paço, devido ao luto, e
actuando nas ruas de Lisboa, mais perto do povo. Em 1521 já Gil Vicente teria composto
uma comédia para o então príncipe D. João, a de Rubena, e nesse mesmo ano de 22
estaria talvez a compor o D. Duardos para enviar e oferecer ao mesmo D. João.
Pouco antes __ no final de 1521 __, as trovas relativas à aclamação do novo rei
e, sobretudo, as coplas atribuídas fantasiosamente, pela invenção do autor, acertos
membros da nobreza, do clero e do município de Lisboa, eram com certeza destinadas ao
soberano, pois vão carregadas de conselhos para a governação, do tipo dos que figura nas
artes de reinar. Nessas coplas, transcritas no Quinto Livro, a tónica é posta na necessidade
de o jovem monarca proteger o seu povo, o gado arrepiado, as ovelhas suspirando / sem
abrigo, os lavradores, os povos menores, ou seja, esta manada a que o rei deverá dar pasto
Maria Parda pode bem ser uma representante deste povo esfomeado desde finais de 1521,
que se queixa da falta e da carestia. Frei Luís de Sousa viria a descrever com veemência,
nos seus Anais de D. João III (L. I, cap. XI), a esterilidade e a seca de 1521, assim como a
fome que Lisboa viveu nos finais desse ano e ao longo do seguinte. Em começos de 1522
morria-se de fome nas ruas da capital, tal como Maria Parda vai morrer de sede. O cronista
refere-se igualmente ao sofrimento do jovem rei com a desgraça, e às medidas que tomou
para atenuar a calamidade social em Lisboa. Houve legislação do rei bem como propostas
da edilidade, relacionadas com a falta de pão.

Alegorias

Encontramos em Gil Vicente uma muito mais conhecida série de tipos, alguns herdados da
tradição, outros da observação pessoal. Os tipos graduam-se numa escala abaixo da qual
está a alegoria e acima o caráter individual. A alegoria tende a fazer-se típica, concretizando-
se: a Morte aparece em forma de esqueleto vestido de negro, com uma voz tumular; o
inverno coberto de agasalhos; o verão tremendo de febres; a Serra de Sintra veste de
Serrana. Dando um passo em frente, encontraremos, na Farsa do Juiz da Beira, a Preguiça
na pessoa de um Preguiçoso que dorme e ronca sobre o palco. A Mofina Mendes é um
exemplo interessante deste processo que conduz da alegoria ao tipo: o nome, que significa a
própria desgraça, é alegórico.

Gil Vicente teve à mão os recursos do teatro alegórico, que herdara dos momos a
pompa retórica e as alegorias mudas e meramente decorativas. As suas obras pertencentes
a este gênero são quase todas pura retórica encenada . Por exemplo, as Côrtes de Júpiter,
com grande cópia de música, indumentárias magnificentes e bailados, desenvolvem,
aplicando-a à duquesa de Sabóia, esta figura que encontramos na Exortação da Guerra:

Foram juntos em tropel

Por mandado do Senhor

O Céu e sua companha,

E julgou Júpiter juiz

Que fôsseis imperatriz

De Castela e Alemanha.

Plasticizando esta visão, fazendo reunir sobre o palco as côrtes celestiais,


adicionando algumas personagens subalternas , como os Ventos, o Mar, os Astros, etc., e
fazendo jogar uns contra os outros estes manequins (por exemplo, os Ventos soprando nas
suas trombetas fazem saltar o Mar do leito e obrigam-no a apresentar-se esbravejando),
obtém-se um auto alegórico. Poderíamos acrescentar muitos exemplos: a ideia de que
Portugal é predileto da Fama exprime-se mediante a apresentação de uma donzela que de
quatro pretendentes escolhe o Português; a ideia de que os Portugueses são os senhores do
comércio, pela pretensão, aliás indeferida, de Mercúrio, deus dos comércios, à mão de
Lusitânia; e a calamitosa cena de ciúmes entre esta e sua mãe (Lisebeia, de que o Sol era
namorado) serve para realçar a beleza da filha , a pátria portuguesa; certos lugares comuns
da época, como o de considerar o amor como um embarque para mares desconhecidos,
encontram expressão teatral em obras como a Nau de Amores. No simples título das obras
aparece por vezes evidente a fugura retórica; exemplo: Templo de Apolo, em que se
homenageia Carlos V.

É evidente que os protagonistas de tais histórias não pretendiam qualquer


verossimilhança psicológica; e disto é um exemplo eloquente a citada de ciúmes entre
Lisibeia e Lusitânia, que tem por única intenção dizer que a própria Lisibeia, que o Sol
adorava, tinha inveja da formosura de Lusitânia. Mas, ainda mais do que isso, não há por
vezes sequer coerência lógica, ou sequência na atuação destas alegorias, como se vê na
Frágua de amor, no Auto da Lusitânia, etc. Elas são, num e noutro caso, meros ornamentos
decorativos, como nos momos. Na citada comédia Trofea, de Torres Naharro, pertencente
ao mesmo gênero, alguns dos manequins que tomam parte na alegoria nem sequer falam (o
rei de Portugal e os reis africanos).

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