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Auto da Feira
Como se sabe, Gil Vicente, apesar de religioso, não deixou as atitudes erradas da
Igreja passar em branco. Pelo contrário, em “Auto da Feira” tanto o Tempo como o Serafim,
personagens que zelam por um valor ético e moral, quanto o Diabo, o espertalhão que abusa
das fragilidades dos seus clientes, apontam os pecados ocultos dos religiosos. Para o
personagem Tempo, “A Cristantade é gastada em serviço de opinião”, ou seja, a Igreja
insiste em ditar normas e dogmas, baseados em “achismos”, que nem seus próprios
membros são capazes de cumprir. Seguindo este pensamento, o Serafim exorta
metaforicamente os “Papas adormidos” a mudarem suas condutas e atitudes e a retornarem
ao caminho reto dos pastores da Igreja Primitiva. Por sua vez o Diabo dispara:
Pode-se ver que, apesar das formas diferentes de crítica à esta Instituição
( enquanto o Tempo e o Serafim advertem os falsos religiosos, o Diabo os acusa
ferozmente), ambos os personagens fazem uma denúncia clara de que a hipocrisia também
existe na esfera religiosa.
Auto da Índia
Em Lisboa, desde muito cedo, a construção de barcos tornou célebre a Ribeira das Naus,
como já aparece referido nas crónicas de Fernão Lopes. Rodeámo-nos dos melhores
especialistas nas ciências náuticas (árabes, genoveses ou catalães). O grande impulso
vinha da figura emblemática e predestinada, o Infante D. Henrique, com a sua mítica Escola
de Sagres.
Devidamente preparados, encetámos a grande e sonhada aventura: a progressiva
descoberta da longa costa africana e o desvendar do largo oceano Atlântico. Os
Descobrimentos eram o cometimento grande e grave de todo um povo, o peito ilustre
lusitano. Contudo, a grande empresa era descobrir o desejado caminho marítimo para a
Índia, dobrando o Cabo das Tormentas, símbolo mítico dos vedados términos e alegoria de
todos os medos e perdições.
Diferente dos outros autos, o Auto da Índia é uma peça de enredo cuja intriga se desenvolve
ao longo de vários anos, contendo abreviações de tempo que imprime agilidade e vivacidade
ao seu andamento.
A personagem principal é uma mulher de Lisboa cujo marido parte numa carreira
da Índia, à procura de fortuna, deixando-a sozinha. Se mesmo quando o marido está na
cidade esta mulher tem uma vida dúbia, durante a sua ausência a mulher vai levando uma
vida de diversão. Com a cumplicidade da moça, mantém simultaneamente duas ligações
extraconjugais.
Regressado do Oriente sem riqueza, o marido conta as suas façanhas que nada
tiveram de dignificante: "Fomos ao rio de Meca,/ pelejámos e roubámos". A mulher,
disfarçando uma alegria que não sentia pelo seu regresso, mente tranquilamente dizendo
que sentiu muitas saudades durante a sua ausência.
O auto termina com o retomar pacífico da vida em comum pelo casal, como se
nada se tivesse passado.
Ideologicamente, este auto configura uma crítica, vendo-se facilmente nele "o
reverso do mito dos Descobrimentos". Na verdade, através das falas das personagens que
nos fazem recordar o discurso do "Velho do Restelo" do episódio "As despedidas de Belém"
de Os Lusíadas, o autor apresenta os malefícios que a saída para o "desconhecido"
comporta nomeadamente no que se refere às mortes desnecessárias de muitos dos
navegadores e ao comportamento menos lícito dos portugueses face ao "outro civilizacional"
(a cristianização pela força das armas). Mas a crítica mais notória é feita ao abandono das
mulheres e família que enveredavam muitas vezes por comportamentos pouco dignificantes
que conduziam à desestruturação da célula familiar.
Maria Parda lamenta-se pela falta de vinho nas tabernas de Lisboa, evocando os
tempos em que ele era abundante e barato. Depois,resolve pedir o vinho fiado a alguns
taberneiros que lho negam. Por fim, decide morrer e pronuncia um extenso testamento que
se refere obsessivamente ao vinho.
Na cronologia vicentina terá sido composição de uma época em que o autor já não fazia os
autos de el-rei D. Manuel (falecido em Dezembro de 1521) e ainda não fazia os de D. João
III. Luciana Stegagno Picchio fala dum Gil Vicente desempregado do paço, devido ao luto, e
actuando nas ruas de Lisboa, mais perto do povo. Em 1521 já Gil Vicente teria composto
uma comédia para o então príncipe D. João, a de Rubena, e nesse mesmo ano de 22
estaria talvez a compor o D. Duardos para enviar e oferecer ao mesmo D. João.
Pouco antes __ no final de 1521 __, as trovas relativas à aclamação do novo rei
e, sobretudo, as coplas atribuídas fantasiosamente, pela invenção do autor, acertos
membros da nobreza, do clero e do município de Lisboa, eram com certeza destinadas ao
soberano, pois vão carregadas de conselhos para a governação, do tipo dos que figura nas
artes de reinar. Nessas coplas, transcritas no Quinto Livro, a tónica é posta na necessidade
de o jovem monarca proteger o seu povo, o gado arrepiado, as ovelhas suspirando / sem
abrigo, os lavradores, os povos menores, ou seja, esta manada a que o rei deverá dar pasto
Maria Parda pode bem ser uma representante deste povo esfomeado desde finais de 1521,
que se queixa da falta e da carestia. Frei Luís de Sousa viria a descrever com veemência,
nos seus Anais de D. João III (L. I, cap. XI), a esterilidade e a seca de 1521, assim como a
fome que Lisboa viveu nos finais desse ano e ao longo do seguinte. Em começos de 1522
morria-se de fome nas ruas da capital, tal como Maria Parda vai morrer de sede. O cronista
refere-se igualmente ao sofrimento do jovem rei com a desgraça, e às medidas que tomou
para atenuar a calamidade social em Lisboa. Houve legislação do rei bem como propostas
da edilidade, relacionadas com a falta de pão.
Alegorias
Encontramos em Gil Vicente uma muito mais conhecida série de tipos, alguns herdados da
tradição, outros da observação pessoal. Os tipos graduam-se numa escala abaixo da qual
está a alegoria e acima o caráter individual. A alegoria tende a fazer-se típica, concretizando-
se: a Morte aparece em forma de esqueleto vestido de negro, com uma voz tumular; o
inverno coberto de agasalhos; o verão tremendo de febres; a Serra de Sintra veste de
Serrana. Dando um passo em frente, encontraremos, na Farsa do Juiz da Beira, a Preguiça
na pessoa de um Preguiçoso que dorme e ronca sobre o palco. A Mofina Mendes é um
exemplo interessante deste processo que conduz da alegoria ao tipo: o nome, que significa a
própria desgraça, é alegórico.
Gil Vicente teve à mão os recursos do teatro alegórico, que herdara dos momos a
pompa retórica e as alegorias mudas e meramente decorativas. As suas obras pertencentes
a este gênero são quase todas pura retórica encenada . Por exemplo, as Côrtes de Júpiter,
com grande cópia de música, indumentárias magnificentes e bailados, desenvolvem,
aplicando-a à duquesa de Sabóia, esta figura que encontramos na Exortação da Guerra:
De Castela e Alemanha.