Você está na página 1de 288

%

DIOGO DO COUTO

O SOLDADO

PRÁTICO

TEXTO RESTITUÍDO,

PREFACIO E NOTAS PELO

PROF. M. RODRIGUES IAEA

LIVRARIA SA DA COSTA f|
EDITORA LISBOA II
■y yv v P*
« rfV >' '
.
-
■ ■ »

r /

Diogo do Couto

O SOLDADO PRÁTICO
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA
Autores portugueses Autores estrangeiros
Director: Prof. M. RODRIGUES LAPA

A venda :
SA DE MIRANDA
OBRAS COMPLETAS, em 2 volumes
FRANCISCO MANUEL DE MELO
CARTAS FAMILIARES, selecção
JOÃO DE BARROS
PANEGÍRICOS
TOMAS A. GONZAGA
MARÍLIA DE DIRCEU (as três partes)
DESCARTES
DISCURSO DO MÉTODO. AS PAIXÕES
DA ALMA, 1 volume
DIOGO DO COUTO
O SOLDADO PRATICO
A seguir :
FREI LUÍS DE SOUSA
ANAIS DE D. JOÃO III
HOMERO
ODISSEIA
M.me DE SÉVIGNÉ
CARTAS ESCOLHIDAS

Cada volume 12$50


Tiragem especial de 100 exemplares, de
grande íormato 60$00

Peça o plano da colecção e as condições da


inscrição que permitem disfrutar dum preço
especial e de facilidades de pagamento

LIVRARIA SÁ DA COSTA—EDITORA
24, L. do Poço Novo — LISBOA
.
=,

LJ&&-
DEP. LEG.

COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA


l» *
n>

Diogo do Couto

O SOLDADO PRÁTICO
r

Texto restituído, prefácio e notas £ 134399


pelo
prof. M. Rodrigues Lapa

LIVRARIA SÁ DA COSTA —EDITORA


24, L. do Poço Novo LISBOA
Tiragem especial de 100 exemplares impressos
em papel Leorne, da Companhia do Papel do
Prada, numerados e rubricados.

N.°

Propriedade da
LIVRARIA SA DA COSTA — Editora

1937
Composto e impresso na secção de «Linotypes»
de O Jornal do Comércio e das Colónias'—
Rua Dr. Luiz de Almeida e Albuquerque. 5
LISBOA
PREFÁCIO

Quem percorrer os livros das chancelarias


reais vê-se um pouco embaraçado com a
presença de dois homens contemporâneos
com o mesmíssimo nome — Diogo do Couto.
Um, mais velho, vem desde o tempo de
D. João III até Filipe II e, depois de ter
exercido vários cargos, como almoxarife de
Lisboa, guarda da Casa da índia, escrivão
da alfândega de Ormuz, etc.,»vamo-lo encon-
trar em Tânger como cavaleiro fidalgo. Os
registos das chancelarias falam longamente
dêste tilustre desconhecido*, enumerando os
muitos e vários ofícios de que disfrutou. Ao
contrário, para o Diogo do Couto que real-
mente nos interessa, o escritor notável dos
feitos da Índia, são dum laconismo verdadei-
ramente desesperador. Já veremos as razões
porquê.
Diogo do Couto nasceu em Lisboa em
154.2. Sua mãi era Isabel Serrão de Calvos;

IX
seu pai, Gaspar do Couto, andava ao serviço
do infante D. Luís, filho de D. Manuel. Natu-
ral de Amarante, onde casara, tinha acom-
panhado seu amo na expedição de Túnis, em
I
535> onde se distinguira e fôra armado cava-
leiro. Era pois fidalgo de fresquíssimo data e
feito um pouco à pressa.
Por uma carta de 5 de Março de 15Q8,
dirigida ao vice-rei da índia, vemos com
efeito que Couto tinha tf alt a em seu nasci-
mento*, quere dizer, não era fidalgo de
costado, o que lhe servia de impedimento a
entrar numa ordem como a de Cristo. O nosso
autor tem presente esta tf alta*, quando, mais
tarde, em 1600, desafoga numa carta, farto de
ingratidões: tE, se por ua certidão dos Con-
tos de como acrescentaram dez réis lhe dão
tantos hábitos e tantas tenças e tantos alvarás
de fidalgos, não vendo eu na fazenda del-rei
nenhuas crecenças, senão tudo mingoantes,
ou me a mi hão de fazer mercê ou eu não
hei de servir e largar tudo e meter-me num
canto, onde ninguém me veja*.
Em 16 de Dezembro de 1607, no final da
vida, pranteava com amarga ironia estas
coisas dolorosas: *Eu não peço a S. Majes-
tade que me faça fidalgo nem que me dê o
hábito de Cristo, porque o mundo está tão

x
cheio deles, que inda hei de ser conhecido por
homem que não tem hábito».
Também no Soldado prático emite opi-
niões, que visam a demonstrar a superiori-
dade dos méritos e serviços pessoais sobre a
fidalguia do nascimento (págs. 131-132) e
insurge-se contra a perigosa mania do tempo,
que define nos seguintes dizeres: thomem que
não é fidalgo, não é chamado pera nada»
(pág. Ç2). Temos pois em Diogo do Couto
o exemplo do servidor, que se vê embaraçado
na vida e tolhido de medrar por não ser
de casta fidalga. Toda a sua obra do-
cumenta o bom senso popular, a rude since-
ridade, o amor do trabalho. São êsses os per-
gaminhos da sua origem plebeia. E isso,
como havemos de ver, dá ao seu labor, tecido
de corajosas verdades, um carácter, que o
eleva acima da literatura artística e cortesã
do seu tempo.
0 jovem Diogo foi criado no palácio do
Infante, que aos onze anos o mandou fre-
quentar o colégio dos jesuítas de Santo An-
tão. Foi seu mestre de latim o famigerado
gr.amático da Companhia padre Manuel Ál-
vares, e de retórica e de Esfera os conhecidos
padres Cipriano Soares e Francisco Rodri-
gues, o Manquinho. Depois de se ter embe-

XI
bido na lição da antiguidade clássica, foi re-
ceber lições de filosofia no mosteiro de Bem-
fica, por Fr. Bartolomeu dos Mártires, um
dos homens mais sábios e virtuosos do seu
tempo. Nesse estudo era acompanhado pelo
filho do Infante, D. António, mais tarde
Prior do Crato.
Entretanto, morre D. Luís, seu amo e
protector. Diogo do Couto é transferido para
o Paço, onde serve o rei como moço de câ-
mara. Sentia-se porém aí como desamparado,
naquele meio maior, mais buliçoso, onde a
insignificância do seu nascimento se tornava
ainda mais reparada. O rapaz de grandes
olhos vivos que era Couto, ouvia por vezes
nas práticas do Paço falar das coisas do
Oriente: a sua imaginação representava-lhe
um mundo novo, cheio de estranhos encanta-
mentos, onde um rapaz pobre e não fidalgo
poderia tentar fortuna. Tendo-lhe falecido o
pai, sentindo-se só, abalou para a Índia em
Março de 7559, na frota de Pero Vaz de Se-
queira. Alistara-se como soldado por três
anos. Começou então o seu duro aprendizado
da vida.
Não se conhecem bem todos os pormeno-
res da sua existência neste tempo; sabemos
porém que tomou parte na campanha de

XII
t

Surrate, em fins de Março de 1560, sob as


ordens de D. António de Noronha, que era,
ao que parece, aquele herói culto e ardido,
a quem Camões endereçou as célebres oitavas
Quem pode ser no mundo tão quieto. Em
1563 encontramo-lo em Baroche. Depois, à
míngua de notícias, podemos conjecturar que
a sua vida foi aquela áspera vida de soldado,
que tão impressivamente nos conta no seu
Soldado prático (pág. 214.-7). Conhecido por
homem culto, teria ainda sido encarregado
de algumas missões, naquela política compli-
cada do Oriente.
Em 1368 já o vemos na expedição de
D. Antão de Noronha contra Mangalore. A
cidade foi tomada de assalto, e a visão das
enormes cutiladas que então se deram perdu-
rou longamente na imaginação de Couto:
thouve golpe que cortou um mouro pelo om-
bro até à cinta, e outros que cortaram pernas
cérceas e que abriram as entranhas a muitos»
— diz-nos êle na Década VIII.
Quando o viso-rei D. Antão partiu para
o reino, em 2 de fevereiro de 156Ç, Couto
acompanhou-o. Foram invernar a Moçambi-
que. Aí encontrou Couto, segundo nos refere
em um manuscrito da Década VIII, o seu
tespecial amigo» Luís de Camões, de quem

XIII
fôra contemporâneo nos estudos em Portu-
gal e ao depois, na Índia, companheiro de
casa e mesa. Luís de Camões, que viera da
China e naufragara na costa de Sião, encon-
trava-se reduzido à miséria. O governador da
capitania, Pedro Barreto Rolim, quis favo-
recer o poeta; mas o génio estranho de Ca-
mões, a sua unatureza terrível> tornou-se-
-Ihe insuportável; resolveu abandoná-lo. O
grande incompreendido via-se pois obrigado
a tviver de esmolas de algumas pessoas*, e
calcula-se o alvoroço com que teria recebido
o amigo e companheiro, a quem saudou num
soneto, por acaso medíocre, revelador da sua
triste situação. Passaram os dois esse inverno
tratando de poesia: Camões, retocando o
poema, e dando início ao seu Parnaso; Couto,
fazendo, a seu pedido, o comentário histórico
dos Lusíadas, que levou ao 4..0 ou j.° cantos,
e de que foi depois interrompido pela sua
nomeação de cronista da Índia.
Em novembro de ijóç partiu Couto para
Portugal na nau Santa Clara, vindo com êle
Luís de Camões. Chegado a Cascais em abril
de 1570, com peste em Lisboa, Couto foi ter
com o rei a Almeirim, a dar-lhe conta dos
sucessos e negócios da Índia. Pouco tempo
se demorou na corte, a que o seu tempera-

XIV
mento era radicalmente avêsso e onde via já
nitidamente o progresso do mal, que havia de
dar com Portugal tde pernas acima*, para
empregar uma sua expressão. Em 1571 dei-
xou novamente Lisboa, com rumo à Índia,
na armada do vice-rei D. António de Noro-
nha. Fez com êle os preparativos para irem
socorrer a fortaleza de Chalé, sitiada pelos
mouros e defendida por D. Jorge de Castro.
Chegaram tarde: o velho fidalgo entregara
a praça. O soldado assistia mais tarde, em
Gôa, ao infamante suplício dêsse velho de 80
anos, que afinal não era tão culpado como
parecia.
Diogo do Couto estava agora instalado
em Gôa, depois de ter casado com Luísa de
Melo, irmã de Frei Adeodato da Trindade,
que passou a ser uma espécie de agente seu
e seu procurador em Lisboa para todos os
seus negócios, inclusivamente para a impres-
são dos seus livros.
Era empregado nos armazéns de manti-
mentos, cargo importante que o obrigava a
estar em contacto com a gente de negócios.
/Is suas relações com os vice-reis flutuavam
à medida das verdades que dizia e da paciên-
cia com que o liam e ouviam. Ele próprio
dizia que «antes queria ser acanhado que

xv
aborrecido» e não era thomem que se an-
dasse oferecendo e importunando os vice-
-reis».
Claro que com um ou outro governador
mantinha boas relações, por exemplo com
D. Duarte de Meneses, homem culto, que fa-
leceu em 1588 e a quem Couto deveria mui-
tas finezas. O mesmo sucedeu com o seu
amigo D. Francisco da Gama, bisneto do
descobridor, a quem escreveu algumas curio-
sas cartas, que não teem sido devidamente
utilizadas pelos seus biógrafos.
A êssse tempo, não só pelos bons serviços
que prestara na índia, como soldado e fun-
cionário zeloso e honesto, Diogo do Couto
era conhecido no reino pelo incompleto
comentário histórico de Os Lusíadas, que
Poucos conheceriam, pelas suas poesias por-
tuguesas, latinas e italianas e possivelmente
ainda por uma obra de envergadura, em que
analisava com desenfado e independência os
vários problemas da governação da índia e
a que dera o título de Soldado prático. Era
ainda uma primeira redacção, que Diogo do
Couto havia mais tarde de desenvolver e en-
cher de mais literatura, mas que já dava a
medida da sua suficiência e profundo conhe-
cimento das matérias indianas.

XVI
Mas, por uma coisa particularmente se
recomendava ao monarca. No intuito de o
lisonjear e de se jazer notado, tinha dado
comêço à Década X da Ásia, que principiava
justamente desde que o soberano espanhol
tinha sido aclamado na Índia rei de Portugal.
Em 15 de Novembro de 7595 anunciava ao
rei a terminação do seu primeiro trabalho
histórico. Evidentemente Diogo do Couto
preparava-se de longe, carreando documen-
tos, para suceder a João de Barros na con-
tinuação da História do Oriente. Era uma
sucessão pesada. Filipe II de Espanha, que
pressentia em Diogo do Couto um bom e
activo funcionário, encarregou-o por carta
de 28 de fevereiro de 7595 de organizar o
Arquivo de Gôa e continuar a Crónica da
Índia, interrompida pelo falecimento de Bar-
ros em 1570.
O novo guarda-mór do Tombo de Gôa,
com o natural entusiasmo do seu honroso
cargo, meteu logo ombros à tarefa; mas
encontrou as dificuldades burocráticas do
costume e a própria má-vontade das altas
esferas, renitentes na cedência dos documen-
tos. Com a sua habitual tenacidade Diogo do
Couto foi arrumando toda aquela papelada.
A 20 de novembro de 7595 dava conta ao

XVII
rei dos seus trabalhos e pedia-lhe que man-
dasse para o Arquivo as Décadas de Barros
e a História do descobrimento e da conquista
da índia de Castanheda, porque «iam aca-
bando esses volumes e na índia já os não
havian.
O duplo emprego de guarda-mór e cro-
nista era uma tarefa muito absorvente e até
muito arriscada. O trabalho de passar certi-
dões, sobre enfadar não pouco, criava cons-
tantes conflitos e inimizades: todos queriam
parecer o que não eram, e Couto era um
homem duro e honesto, preocupado de dar o
seu a seu dono. Por isso, o gosto de escrever
a história era envenenado por <muitos des-
gostos que tinha com soldados e capitães, por
fazer verdade, como S. Majestade quere, e
desterrar as falsidades, abusos e peHuxida-
des das certidões e estromentos passados».
Se o ofício de tabelião das escrituras lhe
criava muitos inimigos, o de cronista dos fei-
tos do Oriente não menos, pela surpresa que
causou a linha austera da sua história, onde
se notava o só empenho da informação e da
verdade. A Década IV, em que narrava se-
veramente os vergonhosos incidentes da briga
entre Pero Mascarenhas e Lopo Vaz de Sam-
paio para a governação da índia, deveriam

XVIII
ter desagradado e muitos homens da côrte.
Começou pois a urdir-se uma conspiração
surda contra êsse vilão incomodativo, que lá
de Gôa cuspia vergonhas e desaires sôbre
fidalgos portugueses. O resultado da conjura
não tardou a revelar-se. Em 5 de março de
1598- escrevia Filipe II uma carta ao vice-rei
em que lhe dizia textualmente: «£ porque
sou informado que o dito Diogo do Couto
não é tão suficiente como o entendi pela pri-
meira informação que dele me foi dada e que
tem falta em seu nascimento, o que tudo de-
veis já ter sabido, depois de chegardes à Ín-
dia, pelo que sôbre esta matéria vos escrevi
nas vias do ano passado, advertir-vos-eis nes-
tes particulares, que praticareis com o arce-
bispo de Gôa. E achando ambos que não
convém entregar-se nem Casa do Tombo nem
a escritura da História, ou pelo menos algua
destas duas cousas ao dito Diogo do Couto,
ireis dissimulando com êle no melhor modo

que vos parecer até me avisardes e vos man-
dar o que houver por meu serviço>.
Duas circunstâncias salvariam Diogo do
Couto de ser apeado e demitido dos seus car-
gos. Em primeiro lugar, as negridões que lan-
çava sôbre os feitos de alguns fidalgos iam
lisonjear o bando contrário; depois, por feli-

XIX
cidade, estava agora no Governo da Índia
um bisneto do descobridor, D. Francisco da
Gama, que era seu amigo e teria desfeito
aquela tormenta que se levantou sobre a ca-
beça do pobre historiador. Ainda bem que
tinha sido nomeado escrivão da alfândega de
Diu, em 28 de janeiro dêsse ano de 15Q8. Se
tardasse um pouco, é provável que lhe fôsse
negado êsse benefício. D. Francisco da Gama
continuou a sua protecção, na índia e no
reino, e a êle dirige Couto a mór parte das
suas cartas, no último quartel da vida, sal-
teada de cuidados.
Êsses cuidados cifram-se nisto: o esforço
que fazia para ganhar honestamente a vida,
dada a sua canseira e as despesas que lhe
acarretava a impressão das Décadas, e a má-
goa com que aos seus olhos de soldado e
historiador se lhe representava a vergonhosa
decadência dos portugueses no Oriente, per-
seguidos incansàvelmente por ingleses e ho-
landeses. i4s suas cartas reflectem uma ver-
dadeira obsessão a êsse respeito.
Como guarda-mór e cronista, recebia
Couto ço.ooo réis de ordenado anual, o que
era evidentemente pouquíssimo e indigno da
rua categoria. Conseguiu, após solicitações,
que lhe aumentassem a ninharia de 30.000

xx
réis, cousa que, como dizia, a se não dava
nem a um escrivão dos Contos». Pede ao rei
que lhe acrescente mais 80.000 réis, ihavendo
respeito ao muito trabalho que tinha no negó-
cio de que o encarregara ao passar as certi-
dões dos serviços dos homens, em que mere-
cia mais que por tudo o em que servia, pelo
muito que sofria aos soldados em guardar
verdade e justiça e não lhes dar o que não
era seu». A inutilidade das suas queixas exas-
perava-o e, revoltado das ingratidões a que
era votado, prometia queimar todos os seus
papéis e lembranças, para que outrem se não
lograsse do suor do seu trabalho e recebesse
• as mercês, que lhe tinham recusado. Na sua
sepultura mandaria inscrever o letreiro de
Fabrício: Ingrata pátria, não possuirás meus
ê ossos.
A impressão das Décadas também preo-
cupava Couto, porque era feita à sua custa e
a despesa tinha de ser tirada do seu parco
ordenado. Lembrou-se de pedir que lhe
fôsse dado o título de conselheiro do rei,
honra que pertencia ao guarda-mór do
Tombo do reino, com o qual estava equipa-
rado, spar a assim ficarem os seus livros mais
acreditados com o título sDo Conselho de Sua
Majestade>. Além disso, afim de juntar di-

XXI
nheiro para a impressão, pedia em 1608
que os soldados lhe pudessem comprar os
livros, descontando-se-lhes automaticamente
no soldo. Animá-lo-ia a mandar imprimir os
outros e andariam as Décadas espalhadas
Pelas fustas das armadas, incitando os sol-
dados a imitarem os heróis antigos. £ que
a publicação das Décadas estava sendo um
negócio ruinoso para o escritor. De 300 volu-
mes que seu cunhado lhe mandara, apenas
vendera 30 e dera mais de quarenta. Presen-
teara os capitães das fortalezas e o arcebispo
de Gôa. E — acrescenta ironicamente o ve-
lho historiador — como retribuição nem se-
quer recebera uma caixa de marmelada!
Para que se visse quão ruim era o ofício de
historiador naquele tempo! — rematava o po-
bre intelectual de 1608.
Tudo lhe recusaram. E então Diogo do
Couto chama a atenção dos dirigentes para
a Índia, que se perdia. Historiador dos seus
feitos, o velho escritor considerava-a como
uma espécie de coisa sua. A bem dizer, as
suas fortunas corriam paralelas: tconsola-me
que, pois a Índia padece tantos naufrágios e
tribulações, que é justo que o seu cronista
corra com ela uma mesma fortuna». O apêlo
das suas cartas é aflitivo e patético. Em de-

XXII
zembro de 1608, exclamava:—Enfim, já o
nome português é acabado! Os indianos, em
vez de frangues, nome que antigamente da-
vam aos portugueses, passavam a chamar-
-Ihes frângãos: «assi o somos, tão tristes e
tão molhados que todos nos ameaçam!».
Foi neste estado de espírito, nesta rabu-
gem patriótica, agravada de reumatismo go-
toso, que a morte o veio buscar em 10 de
dezembro de 1616. Em 6 de janeiro desse
ano, escrevera ainda ao seu amigo D. Fran-
cisco da Gama: tFico velho, e, inda que
assi, todavia espero em Deus que hei de
ficar de fora daquela regra, tão geral neste
Estado, que é: todo o homem que nêle enve-
lhecer não escaca ou de pobre ou de deson-
rado. Pobre sou, mas muito honrado espero
em Deus de acabar, porque me não pode
tirar o mundo deixar nêle impressos seis ou
sete livros, tão acreditados pela Europa que,
se não fôra tão humilde, pudera-me tocar
uma pequena de altivez».
*
* *

0 singular destino dos seus livros é das


coisas mais extraordinárias da literatura por-
tuguesa. Tudo se conjurou para o prejudicar;

XXIII
mas o homem era de uma rara tenacidade e
conseguiu, em parte, salvar a sua obra. Com-
pletas, temos hoje as Décadas 4.*, 5.*, 6.*, 7.*
e 10.\ A 5.* apresenta esta particularidade
significativa: a aprovação do Santo Ofício e
licença para imprimir datam de abril e maio
de 1602; a impressão só se efectuava dez
anos depois, em 1612, prova de que a cen-
sura do Paço achou nela que debicar.
Quando se acabou a impressão da 6A, ar-
deu a casa do impressor e foram-se no incên-
dio quási todos os volumes; escaparam uns
poucos, que estavam já depositados no con-
vento de S. Agostinho de Lisboa. Com res-
peito à 7.*, que Couto mandara para o reino
na nau S. Tiago, da frota de 1601, perdeu-se
com a tomada do navio pelos ingleses, pelo
que o escritor a teve de mandar reformada,
em 1603.
Com os dois manuscritos das Décadas 8A
e çA sucedeu caso mais grave. Diogo do
Couto tinha-as prontas e preparava-se para
as mandar para Portugal, quando alguém, a
coberto da sua velhice e de uma doença que
então o assaltou, lhas furtou de sua casa. O
historiador, em carta ao rei, atribui a mal-
dade ao desejo de se locupletar com o suor
alheio; mas o móbil do crime poderia ter sido

XXIV
outro: alguém teria empenho em ocultar as
verdades, sonegando os manuscritos do velho
escritor. No que se enganou, pelo menos em
parte. Uma vez restabelecido, Couto, com a
ajuda da memória e de alguns apontamentos
que lhe tinham ficado, deitou mãos ao tra-
balho e fez um resumo das duas Décadas,
que mandou para Portugal em janeiro de
IÓIÓ.
A Década XI não lhe foi roubada em
Gôa; mas, enviada para o reino, levou tam-
bém sumiço. Dela apenas restam capítulos,
com que formaram uma obra à parte: a Vida
de D. Paulo de Lima Pereira, aproveitando
Parte da 10/ e parte da n* Décadas. Da
12.* restam apenas cinco livros, que foram
editados em 164.5 em Paris por Manuel Fer-
nandes de Vila-Real. Claro que, vasculhando
em arquivos e bibliotecas poder-se-ia hoje, se
não completar, pelo menos melhorar em qua-
lidade e quantidade a obra do infatigável tra-
balhador. Ainda ninguém pensou nisso. É
dívida em aberto, de inegável alcance na-
cional.
Com o Soldado prático, que escreveu
ainda em tempo de D. Sebastião, também
sucedeu um caso extraordinário. Dêmos so-
bre isso a palavra ao ilustrado chantre de

XXV
Évora, Manuel Severim de Faria, que man-
teve cordiais relações epistolares com Couto
e nos deu uma valiosa biografia do escritor:
tPorém, antes de aperfeiçor esta obra lhe foi
furtado o original dela e, sem mais o poder
haver às mãos, chegou a êste reino sem nome
do autor, onde se trasladaram algumas có-
pias, que foram tidas em grande estima dos
que as puderam haver. Sendo disto adver-
tido no ano de 1610 por um amigo seu, tor-
nou a reformar esta obra ou quási fazê-la de
novo... Esta obra dedicou ao marquês de
Alenquer e o original está na livraria de Ma-
nuel Severim de Faria, chantre de Évora, a
quem êle a mandou». (Discursos vários polí-
ticos, fl. 155-156).
Tal é, em suma, a história dessa obra
considerável, presa cobiçada de ladrões e so-
negadores. Alguns dos elementos que a com-
punham, o seu livro de Poesias, o Epílogo da
História da Índia, o Comentário dos Lusía-
das, perder-se-íam, talvez para sempre. Um
arguto crítico da literatura portuguesa, o sr.
Aubrey Bell, referindo-se a esta «fatalidade>
que pesou sobre o labor literário de Couto,
exprime a opinião de que esses contratempos
foram de certo modo benéficos, porque obri-
garam o escritor a ser mais pessoal e espon-

XXVI
tâneo, embora menos ordenado. Este juízo,
que poderá ser verdadeiro no conjunto, não
é aplicável contudo, ao Soldado prático. Aqui
Diogo do Couto, para frustrar as esperanças
dos que se tinham apropriado do original,
quiz fazer mais e melhor.
0 manuscrito primitivo, que, por felici-
dade nos foi conservado e anda impresso,
tinha um carácter e disposição predominan-
temente burocráticos. Os dois únicos interlo-
cutores, o vice-rei de abalada para a índia
e o soldado veterano, falam em linguagem
chã, sem citações de autores antigos, mistu-
rando nos seus dizeres pitorescos rifões popu-
lares. O diálogo tem vivacidade, porque a
personagem do soldado não obscurece total-
mente a do vice-rei. Na redacção posterior,
que é verdadeiramente uma obra nova, Couto
introduziu três personagens: o soldado, velho
de 6o anos, de volta da índia a tratar de seus
requerimentos, o secretário do rei e o fidalgo,
que fôra em tempos governador da índia. A
modificação não aumentou fôrça dramática
à narrativa; antes pelo contrário: o soldado
ocupa agora totalmente a cena e o papel dos
comparsas é secundaríssimo. O texto ficou
sobrecarregado de erudição, por vezes abor-
recível. Mas a experiência dos negócios, as

XXVII
amarguras pessoais, a visão pavorosa da de-
cadência dão um calor, uma violência paté-
tica à narração, que o primeiro texto não
conhecia.
O Soldado prático é dos livros mais hon-
rados da literatura portuguesa. Deverá ser
lido depois de Os Lusíadas. Os dois amigos,
Camões e Couto, fizeram duas obras que se
completam: uma canta as glórias antigas da
pátria, num frenético esquecimento do pre-
sente; outra analisa impiedosamente as ver-
gonhas dêsse presente e mostra-nos o país e
o Império afundados num tremedal de infâ-
mias: por tôda a parte a ambição da riqueza,
o amor do luxo, a concussão e o roubo. Tudo
estava pôdre e afistulado! — exclama o aus-
tero escritor nesse impressionantíssimo do-
cumento da crise. Note-se que a tremenda
decadência da Índia era apenas o reflexo da
derrocada material e moral da nação. 0 pró-
prio soldado tem ocasião de dizer que as coi-
sas não corriam mais puras em Portugal
(pág. 12, l. 4-5); e na primeira redacção
ainda é mais explícito, quando diz: tvai a
cobiça neste reino de maneira que não escreve
de cá outra cousa à índia o pai aos filhos, o
irmão ao irmão, o amigo ao amigo senão:
— Fazei por trazer dinheiro, que o mais é

XXVIII
vento!* (pág. 95 da ed. de 1790). Enfim,
Couto usa esta imagem admirável, para ex-
primir aquela corrida às riquezas: o funcio-
nário cixnl ou militar ia à Índia como quem
ia vindimar sua vinha.
Diogo do Couto não se contenta em apon-
tar o mal, com todos os seus pormenores e
com o profundo conhecimento do homem
que tcursou os negócios»; indica os respon-
sáveis da espantosa decadência do Império;
e no primeiro lugar da escala encontra natu-
ralmente o rei. Não se conhece em toda a
literatura portuguesa texto algum, em que
com tanta liberdade e nobre coragem se ouse
atacar tão cara à cara o rei. Naturalmente o
escritor usa de certa prudência: os ataques ao
soberano eram disfarçados pelo facto de
Couto pôr o diálogo em tempos de D. Sebas-
tião. Para dourar a pílula tem mesmo o cui-
dado de fazer o elogio de Filipe II, não por
bôca do Soldado mas pela do Fidalgo e do
Despachador (pág. 226). Todavia ninguém
tinha ilusões sôbre isso: a verdade atingia
em cheio os próprios Filipes, que por isso
mesmo, avisados por alguém das audácias do
plebeu, se não desentranhariam em mercês
para com êle.
De resto, o próprio Couto, já no final da

XXIX
vida se descobriu, acrescentando ao texto
aquela alusão à derrota de Alcácer-Quibir
(pág. 14.Ç, l. 4.-8), que origina um curioso
anacronismo, colocando provàvelmente o diá-
logo no tempo do primeiro Filipe. Desespe-
rado com o desprezo sistemático de que estava
sendo vítima, sem filhos, {que lhe importa-
vam agora as iras do próprio rei? A sua preo-
cupação suprema era dizer a verdade; di-la-ia
custasse o que custasse.
O amor da verdade é em Couto uma es-
pécie de vício. Há homens assim; por mais
que lhes façam, não cessam de dizê-la; faz
parte da sua natural respiração, é instru-
tivo, a êsse propósito, o que nos diz sobre um
honrado historiador, que o precedeu no relato
dos feitos da índia, Fernão Lopes de Casta-
nheda: sÊste homem andou na índia quási
dez anos, correndo a mór parte dela, até che-
gar a Maluco, escrevendo as cousas daquele
tempo mui diligentemente, que recopilou em
dez livros, acabando o seu décimo com o
governador D. João de Castro. Êste volume
nos disseram algúas pessoas dignas de fé que
el-rei D. João mandara recolher a requeri-
mento de alguns fidalgos, que se acharam
naquele raro e espantoso cerco, porque falava
nêle verdades. A êstes e a outros riscos se

XXX
põem os escritores que as escrevem, enquanto
vivem os homem de que o fazem; e por isso
com menor receio escrevemos aos cousas pas-
sadas (como el-rei nos mandou) que as pre-
sentes, que também temos escrito; e assi em
uas com em outras nem por respeitos nem
por temor deixaremos de as falar. E, posto
que também em algum tempo se mande re-
colher algum volume dos nossos, outro virá
em que se elas manifestem> fDécada lV. liv.
V, cap. i.). Era assim o homem; assim é o
escritor, cidadão enérgico, que não receia pelo
que diz e teima sempre em dizer o que sente.
A sua dura vida de soldado ensinou-lhe a
* encarar a verdade com a mesma indiferente
serenidade com que se encara a morte. De aí, *
o grande valor da sua obra.

*
♦ *

A nossa edição tomou por base o manus-


crito n." 463 da Biblioteca Nacional de Lis-
boa. Tem a garantia de ser revisto (até certa
alturçL) e parcialmente escrito pelo próprio
Couto. O texto é agora restituído, com grande
diferença da única edição de 1790, dirigida
por António Caetano do Amaral, que desi-
.gnamos pela letra B, e que aproveitámos de-

XXXI
vidamente. Infelizmente não pudemos incluir
a i." redacção, que, como dissemos, é uma
obra diferente. Note-se que ambas as redac-
ções teem isto de comum: não trazerem de-
pois de certa altura epígrafe nas cenas. Não
ousámos forjar títulos nossos.
Conservou-se à linguagem o seu sabor
popular, apenas com as diferenças sinaladas
em nota final: o copista nem sempre era cui-
dadoso, e Couto, com setenta anos, nem sem-
pre tinha pachorra de emendar as faltas. É
esse um trabalho delicado, que sempre nos
merece muita atenção. Como princípio fun-
damental, evitamos a chamada uniformiza-
ção do texto, que equivale sempre para os
autores clássicos mais antigos a uma mons-
truosa deturpação da linguagem. Cada autor
é tratado de per si, não perdendo contudo de
vista certas normas gerais, a que obedecia a
evolução do idioma. O texto que apresenta-
mos é pois, em nossa consciência, o verda-
deiro texto de Couto: traz a sua marca popu-
lar, a sua rudeza, a sua sinceridade, o tom
vivo e por vezes não gramatical da conversa-
ção. É a êsse respeito um documento de pri-
meira ordem para a história da língua.

RODRIGUES LAPA

XXXII
ê

CARTA DE DIOGO DO COUTO

ao Conde de Salinas e Ribadeo, Duque de


Franca-Vila, do Conselho Supremo do Estado
de S. Majestade

5 Aquele famoso, eloquente capitão Alcibíades ate-


niense parece que, por querer reprender e vitupe-
rar os Jogos Silenos, que representavam as figuras
torpes de Baco, ordenou outros jogos, a que cha-
maram depois Silenos de Alcibíades, nos quais,
io debaixo de figuras grosseiras e pouco polidas, se
encerravam outras obras de muito artifício, dou-
trina e invenção: cousa que era muito estimada en-
* tre os gregos.
Ass» êste prove soldado, ou sileno, que se vai
IS lançar aos pés de V. Excelência em figura tão rús-
tica, mal ordenada, e que parece avorrecerá a quem
o ver. Abata-o V. Excelência sem o julgar polo trajo
e achará debaixo daquela rustiqueza muita doutrina

2-3, Duque de França Villa em A, Vila-Franca em B.


io, debaxo. É a grafia usual do manuscrito (A),
que representa uma pronúncia vulgar. Vejam-se outros
exemplos: paxão, embaxador, etc.
12, envenção em A. É geralmente a grafia do ma-
nuscrito. O copista, e pode ser que o mesmo Couto, mu-
dava por via de regra o prefixo in em en, por exemplo:
encorrer. enterromper, enteresse, mantendo contudo in.
quando negativo. São sobretudo modos correntes de falar.

I
política, moral, muitos exemplos, muitas verdades e
muitas cousas, que, se se remediarem, farão úa
república, como esta de que trata, tão próspera e tão
felice, como foi aquela de Atenas, que com êste arti-
5 fício foi o seu Alcibíades reformando e ordenando,
até a pôr em suma perfeição.
Tudo o que V. Excelência quiser saber dele,
ouça-o, que êle o dirá sem importunação, sem adu-
lação e sem paixão; e eu fico que se satisfaça dele,
io porque ouvirá cousas, que pode ser não ouvisse da
bôca doutro soldado; e não quer outra satisfação
maior do trabalho, que leva nesta jornada, que ser
ouvido de V. Excelência, porque então cuidará que
podem ter remédio os males de que se queixa.
15 Nosso Senhor a vida de V. Excelência conserve e
acrecente por muitos anos para remédio dêste sol-
dado e dos outros. Gôa, 2 de Janeiro de 1612.

Diogo do Couto

9, fico: estou seguro, convencido.

2
DIALOGO DO SOLDADO PRÁTICO
QUE TRATA DOS ENGANOS E DESENGANOS
DA fNDIA

PRIMEIRA PARTE

ARGUMENTO

Estando um fidalgo, que fôra governador da


India por sucessão, em casa de um despachador
de Portugal, entrou um soldado velho da India,
que ía a dar sua petição e papéis; e entre todos
três se passou o diálogo seguinte:

CENA I

Soldado — Ja'gora meus negócios não podem


deixar de ter muito bom fim, pois tiveram tão bom
princípio, como êste, de achar a Vossa Mercê neste
tempo e nesta casa; de quem, como testemunha de
5 meus serviços, me espero agora valer para ser co-
nhecido do senhor secretário, porque sou tão só
neste reino que não tenho cousa a que me possa
arrimar que a êstes papéis que aqui trago dos muitos
anos e muitos serviços que nas partes da índia te-

i e segs. A cópia é feita pelo próprio Diogo do Couto.


8, senão a estes papéis no texto impresso pela Aca-
demia das Ciências (B).

3
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

nho feitos, ornamentados e esmaltados muitas vezes


com o sangue dêste corpo, que espargi pela lei e
pelo rei, de que me não tenho arrependido; por-
que, quando aqui me faltar o galardão de minhas
5 obras, lá em cima está aquele, que com mão libe-
ralíssima satisfaz tudo melhor que os reis da terra.
Fidalgo — Folgo de vos ver neste reino e tirado
daquela confusão de Babel; e sei de certo que sereis
muito bem respondido e despachado por vossa ida-
10 de e serviços, sem outra aderência e favor; porque,
depois que el-rei, nosso senhor, elegeu a Sua Mercê
para juiz destas satisfações, não tendes necessidade
de mais que de apresentar vossos papéis e serviços,
porque o tempo que se despachava por favores e
15 aderência é passado: porque, como o coração dos
reis está nas mãos de Deus, ordenou êle agora, para
remédio dos desemparados, fazerem tão boa elei-
ção, como foi esta, com que nem meus favores são
necessários, nem vossos serviços deixarão de ser mui
20 bem satisfeitos.
Mas, já que viestês a êste tempo, sentai-vos: sereis
testemunha das cousas que da índia tratávamos,
da qual vós poios muitos anos que dela tendes, -
conhecimento dos homens e do tempo, bem sei que
25 podereis dar muito boa rezão de tudo com aquela
liberdade e desengano de soldado veterano, que
nem recea mal pelo que disser nem espera bens
pelo que lisonjar.

a, lei: religião.
8. confusão de Babel: a Índia, ou, mais propria-
mente, Gôa, a capital do império.
10, aderência: parcialidade, favoritismo.

4 I
O SOLDADO PRATICO

Sold. — Beijo as mãos a V. M. por tamanha


honra e pela opinião que tem de mim: já'gora hei
por bem empregados todos os trabalhos da viage
e dos anos de minha perigrinação, pois mereci ser
5 admitido a esta conversação.
Despachador — Té'gora estive calado, por não
interromper S. M., e por não tirar os olhos de vós,
em cujas cans, idade e mais cousas, que pela fiso-
nomia em vós estive notando, me parecestes dife-
io rente de muitos outros soldados que diante de mim
trazem requerimento, tão outros da vossa quieta-
ção e maneira, que lhes parece que a hora que se
lhe tarda em acudir a seus negócios, já lhe roubam
sua honra e merecimentos; e assim representam suas
15 cousas com aquele ímpeto e furor, como se estive-
ram pelejando com os imigos; e eu, em vez de os
ouvir e responder, estou com os olhos buscando al-
gum lugar onde me esconda de suas cóloras.
Sold. — Nunca vi cousa mais para se lhe poder
*0 relevar que essa (quando êles são cheos de mere-
cimentos, digo), porque andaram té'gora tão des,
favorecidos do tempo e atropelados dos despachado-
des que se não sabiam determinar; porque assaz de
* bem remediado parte um soldado da Índia, que
25 pode sustentar-se nesta côrte de uas naus a outras,
para se poder tornar; e se virem que lhe respondem

x. No ms. da Biblioteca Nacional de Lisboa (A)


o ditongo ei anda geralmente reduzido a ê: bejo, dexo. etc.
9-10, deferente em A. £ a grafia mais usual. Con-
tudo, também aparece a forma diferente.
ir, tão outros à vossa quietação em A.
18, cóloras: cóleras, iras. Forma que perdurou até
ao século XVIII.

5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

devagar, não sente mór desesperação que lembrar-


-lhe que está em terra onde não tem remédio; e que
o que ajuntou por seus amigos para vir requerer,
parte se lhe foi na Casa da índia, pelos excessos dos
5 contratadores, que até das camisas que levam ves-
tidas lhe tomam dereitos; sendo tantos anos isto
tão favorável aos soldados, que nunca lhe buliram
em seus caixões, em que traziam um quintal de cra-
vo, dous de canela, e outras pouquidades; e parte
io gastou em seu requerimento; e que não vê donde
se possa valer, e que ou será forçado morrer de fome
neste reino, ou deixar tudo e tornar-se para a ín-
dia, sem ser respondido: o que se tem por tamanha
infâmia, que o prove a que isto acontece não ousa
15 de aparecer ante aqueles do seu tempo, porque ou
hão que o tiveram para pouco, ou que lhe não acha-
ram merecimentos para o despacharem; o que tudo
fica à conta do despachador, que lhe dilatou seu ne-
gócio, do que entendo deve de dar larga conta a
20 Deus, assi de não dar o seu a seu dono a tempo,
como da honra que lhe roubou, na infâmia em que
incorreu em se tornar, afrontado e sem despacho; e „
não digo isto para os desculpar do modo com que
se hão, senão pelas misérias e desaventuras, que a
25 muitos dêstes vi passar.
Desp. — Folgo muito de vos ouvir falar neste
negócio; e V. M. tenha ponto no que tratávamos,
que eu determino de desculpar os homens que té'
gora estiveram neste lugar; e pois entramos nesta
30 matéria, folgaria de discorrermos por ela um pouco,

11, forçado morrer em A e B. Note-se a falta da


preposição a.

6

O SOLDADO PRÁTICO

porque me servirá o que se tratar de aviso para


muitas cousas. E saiam-se esses moços para fora,
porque, como muitas destas hei de apontar em Con-
selho, não é bem que andem primeiro pelas bocas
5 dos rapazes.
Sold. — Nunca cousa me caiu mais a pêlo que
essa, porque toda esta noite estive cuidando no
pouco segrêdo que na India se tem, assi nos conse-
lhos árduos da guerra, como nos da justiça e fazen-
10 da, porque quási se não acabam de resumir, quando
já anda pelas praças o segrêdo dêles, que não sinto
cousa na vida em que mais vá; e inda o feito está
em casa do juiz por publicar, já se sabe quem tem
a sentença; e inda digo mais: que não sai da Rela-
15 ção, quando há desembargador que dá sinal ao seu
moço para ir pedir alvíçaras à parte, o que eu vi
alguas vezes, e o tenho polo maior modo de injustiça
da vida.
q Desp. — Valha-me Deus ! Sabeis quanto nisso
20 vai; que vai tudo, principalmente nas cousas da
guerra: porque não queria o imigo mais que saber
o desenho de seu imigo, porque só nisso está a vi-
tória. Onde isso há, não pode haver cousa boa.
Sold. — Inda mal porque é tanto assi! e por-
25 que o Samorim, Idalcão, Melique e outros sabem
logo o que se determina no Conselho e o regimento

12, em que mais vá: que tenha maior importância.


22, desenho: desígnio, plano.
25, Samorim, que significa «rei do mar», era o título
que se dava aos reis de Calecut; Idalcão o nome que
se dava aos reis mouros da dinastia de Bijapur ou Bala-
gate; emíim, Melique é o título que se dava aos pequenos
reis muçulmanos da Índia.

7
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

que leva a armada que vai ao Malavar e a outras


partes, por que disso tem resultado infinitos males;
e porque em Dabul e Surrate se soube logo da arma-
da que vai esperar as naus, assi à saída como à en-
5 trada, que vem e vão para Meca; por que, se logo
as podem lançar fora, o fazem, e se não, recolhem-
-nas e envasam-nas, e nós ficamos com os gastos fei-
tos e com o crédito perdido.
E o que é muito gracioso: que alguns fidalgos do
io Conselho tomam por passatempo zombarem uns dos
outros: «Foão disse bem, mas disse mal Foão»; em-
baraça-se o outro, que sempre se vai pelo parecer
do que votou diante dêle: de sorte que se trazem ao
terreiro os defeitos dos homens, não lhe lembrando
15 quanto maior é descobrir o que se ali passa.
Leam-se os filósofos antigos, verão em quanto es-
timavam o segrêdo; que a mór pena que os atenien-
ses tinham em suas leis era a que se dava ao que
descobria o segrêdo; e em tanto se guardava que,
20 tendo um tempo guerra com Filipo de Macedónia,
tomaram acaso flas cartas, que êle mandava a sua
mulher Olímpias, e lhas tomaram a mandar cer-
radas e sem tocar nelas, podendo pela ventura
achar dentro alguns avisos de que se pudessem
2j) aproveitar; mas tinham em muito mais a guarda
do segrêdo que a mesma vitória.
Diodoro Sículo escreve que entre os egípcios era
cousa crime descobrir o segrêdo; e traz por exem-

2, 5, por que: pelo que. Construção freqflente em


Couto.
7, envasam-nas: metem-nas na vasa para as abri-
gar dos ataques.
11, Foão: Fulano.
28, cousa crime: caso criminoso; causa crime em B.'

8
O SOLDADO PRÁTICO

pio um sacerdote, que viu outro com ua virgem no


templo de Isis, que logo descobriu, tendo-se fiado
dêle; e, presos todos os concubinários, morreram
pela lei, e o que descobriu o segrêdo foi desterrado
5 para sempre. Anaxilo, capitão ateniense, sendo ca-
tivo dos lacedemónios, foi metido a tormento, para
que dissesse o que el-rei Agesilau tinha determinado;
ao que respondeu que bem o podiam fazer pedaços,
mas que os segredos do seu rei nunca descobriria.
10 Na guarda dos segredos eram os atenienses tão
puros, que conta Plutarco no livro De Exilio que,
passando um egípcio por ua rua de Atenas, com não
sei quê debaixo da capa, lhe perguntara um ate-
niense que era o que levava. Ao que lhe respondeu:
15 — És ateniense e perguntas isso ? Não vês tu que
por isso o levo coberto, polo tu não saberes ? Gran-
de zelador dêste segredo foi Demóstenes, ao qual
perguntando-lhe um seu amigo porque lhe cheirava
• mal o bafo, respondeu: que porque no estômago lhe
20 apodreceram grande cantidade de segredos. «
O filósofo Pitágoras, os primeiros dous anos en-
sinava a seus discípulos a ter silêncio, por se costu-
• marem a guardar segrêdo, e afirmava não haver
mais alta filosofia que a bondade do silêncio e guar-
25 da do segrêdo. Conta-se que, chegando o divino
Platão à porta de Dionísio Siracusano, perguntara
a Brias, seu camareiro, o que fazia". E êle respon-
dera que estava pintando. Soube-o el-rei, mandou-
-lhe logo cortar a cabeça, porque descobriu o se-
50 grêdo do que fazia.

2. Entenda-se: «tendo-se o outro, o profanador,


fiado dêle.
16, polo tu não saberes: para o tu não saberes.

9
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

O filósofo Filípides, quando se determinou a ser-


vir a el-rei Lisímaco foi com condição que lhe não
descobriria segredo algum, porque entendia quanto
ia na guarda dêle, pelo haver por cousa divina. E
5 assi é tanto, que importa todo o nosso remédio,
porque no segrêdo da confissão pôs Deus Nosso
Senhor todos os tesouros e riquezas da glória; e só
por êste segrêdo podemos subir a ver aqueloutros
maiores, que viu o glorioso Paulo, que nem olhos
io viram, nem orelhas ouviram, nem nos corações dos
homens se imaginaram.
Já'gora na índia nem inda neste vosso Portugal
há já discípulos de Pitágoras, que guardem silêncio,
porque tudo o que se faz é ao som de campas tangi-
75 das; os segrêdos dos conselhos pelas praças ao som
de trombetas, e assi as mais cousas; e, o que é pior:
que até as maldades, adultérios, torpezas, infâmias,
malícias, os mesmos que as cometem são seus pró-
pios pregoeiros, porque em o capitão, fidalgo e não
20 sei se viso-rei acabando de deshonrar a casada, logo
se gaba disso a todo o mundo; como houveram a
moça donzela e pela ventura com capa de casar
com ela, logo o pelourinho o sabe; o que enganou a
viuva rica com a mesma côr e o casado néscio com
25 promessas de lhe casar com a filha, as peças que lhe
dão logo as andam mostrando pelas ruas: de modo
que de seus própios segredos e maldades êles só são

14, ao som de campas tangidas: divulgado a toque


de sino.
21, como: logo que.
23, logo o pelourinho o sabe: logo consta na praça
pública. Em A, pilourinho.
24, com a mesma côr: fazendo-lhe iguais promessas
de casar com ela.

IO
O SOLDADO PRATICO

os pregoeiros; por que cuido que tem estas cousas


por honra e cavalaria e a virtude e continência por
fraqueza.
Ora vejam Vossas Mercês como há Deus de fazer
5 mercê à terra, onde esta moeda corre. E já que
estou com isto entre as mãos, hão me de dar li-
cença para acabar esta matéria do pouco segrêdo,
com outras cousas que de novo me lembraram
agora, que são mui prejudiciais ao serviço del-rei
io e à república; e dêm-me atenção.
Manda el-rei nosso senhor devassar na Índia dos
oficiais da justiça, desembargadores e capitães de
fortalezas, e que lhe mandem as devassas mutra-
das, e no mór segredo que puder ser. Em se come-
15 çando a tirar esta devassa, logo os que se temem
dela sabem os que vão testemunhar e inda o que
disseram as testemunhas; ei-los vão com suspeições
^ às pessoas que testemunharam nos casos de que se
temiam, as quais provam às suas vontades; por-
20 que tudo o que na Índia ficar em prova, sobejam
as testemunhas pelos telhados, e assi fazem as de-
f vassas nulas; e naqueles casos particulares só aque-
las testemunhas suspeitas o sabem, e tirando-se ou-
tra devassa não se lhe acham culpas e ficam absol-
2j tos, e os homens que testemunharam odiados com as
partes, que todas as vezes que se podem satisfazer
não deixam passar ocasião.

1. Ê freqflente em A a forma cudar, cudado, que


corresponde à redução dos ditongos, observada no ma-
nuscrito.
11, devassar: inquirir do procedimento do funcio-
nário durante o tempo que exerceu o seu cargo.
13-14, mutradas: seladas. Têrmo usado na Índia.

II
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Outra: Acaba um viso-rei; vai-se para o reino;


manda-lhe el-rei tirar sua residência por Ga pessoa
de confiança; se na índia se tem segrêdo nela, o
que acontece poucas vezes, cá neste vosso Portugal,
5 onde isto não é mais puro, logo se descobre o se-
grêdo, e por peitas dão vista das devassas: e assi
houve viso-reis que se vingaram de homens que tes-
temunharam contra êles. Eu conheci alguns; e o que
é peor — que houve senhor dêstes, que escreveu
io à índia a seus amigos: «Foão testemunhou tal cou-
sa e Foão tal e tal, mas êles me cairão nas mãos».
Esta é a rezão, por que muito poucos homens
querem ir às devassas; ao menos eu sempre fugi
disso, porque de duas cousas sempre me guardei
15 muito: de praguejar dos meus viso-reis em público,
e de testemunhar contra êles, porque me arrimei
sempre àquela regra de viver em paz: A teu rei
nunca ofendas, nem sejas testemunha nem parte.
Emfim, quero concluir com ua cousa que eu acon-
20 selhara, se para isso tivera autoridade; que por duas
rezões não houvera el-rei de mandar tirar estas de-
vassas e residências: ua, por evitar êstes males e
ódios, e outra, porque nunca se procede contra os
criminosos, e sempre se livram, e Deus sabe o como.
25 Desp. — Muito folguei de vos ouvir essa maté-
ria, que não é de tão pouca sustância que não vá
nela muito; mas não tenho a isso que dizer senão
que êsses senhores viso-reis, desembargadores, ca-

2, tirar sua residência: inquirir do seu serviço, tirar


devassa do seu procedimento.
7. Couto usa geralmente a forma visos-reis, quando
intervém na redacção do manuscrito.
21, não houvera de: não deveria.

12
O SOLDADO PRATICO

pitães e mais oficiais, que bem o pagam, deixemos


lá na outra vida; mas inda nesta vemos que a muito
poucos vimos lograr o que tiram de suas governan-
ças e capitanias; porque, se puserem os olhos por êste
5 reino, não acharão dous, de cento que de lá vieram,
terem que comer nem fazerem morgados; nem sei
por onde se vão os tantos centos de mil cruzados,
como alguns trouxeram de suas governanças e ca-
pitanias; parece que lhe leva o diabo tudo, porque
10 uns morrem sem os lograr, e outros vivem para lhe
faltar.
Fid. — Isso que dizeis é santo: parece que êste
dinheiro da índia é excomungado, porque não luz
a nenhum de nós. Quero-me meter nesta conta, por-
15 que também não sei por onde se foi o que tirei da
minha fortaleza, e dêsse pouco tempo de minha go-
vernança.
Sold. — É dinheiro de encantamento, que se
converte em carvões; o mais dêle vai por onde
20 veio: Donde o diabo traz a lebre lá lhe leva a pele',
e veio por canos infernais, poios mesmos se torna
a ir. O mais dêle é de sangue de inocentes; e assi
como o dinheiro, por que foi vendido o Filho de
Deus, se não comprou com êle mais que um pedaço
25 de chão infructuoso, que não servia de mais que
pera sepultura de mortos e pera cama de bichos,
assi estoutros nunca lhe vereis morgados feitos com

5, cento: cem.
9, lhe: lhes. O emprêgo de lhe por lhes é freqflen-
tíssirao em Couto.
io-ix, para lhe faltar: para sentirem a falta do dinheiro
que mal gastaram.
li. Acaba aqui a letra de Couto.

13
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

o seu dinheiro: todo vai a parar num campo de


mortos, em bichos e sujidades, em que por derra-
deiro o mais dêles vem a parar.
Desp. — Deixemos isso; lá se avenham. Nisso
5 não há emenda; e onde a não há, o melhor é calar.
Sold. — Sabe V. M. quanto a não há?: que es-
tando eu um dia em um convento de religiosos, veo
um fidalgo, que ia entrar em ua das melhores forta-
lezas da Índia, a despedir-se dêles; e na conversa-
io ção, em que me eu achei, lhe disse um religioso da-
queles estas palavras: — Senhor, lembre-vos que
ides entrar na mercê que el-rei vos fez por vossos
serviços, e que nela podeis ganhar o céu, como eu
neste hábito, com estas cousas. Contentai-vos com o
15 que é vosso, deixar viver os pobres, e fazei justiça.
Ao que lhe respondeu o fidalgo: — Padre meu, eu
hei de fazer o que os outros capitães fizeram; se êles
foram ao inferno, lá lhe hei de ir ser companheiro;
porque eu não vou à minha fortaleza, senão pera
20 vir rico. Houve o padre que era escusado repetir-
-lhe mais: e, posto que o êle dissesse a modo de cor-
tesania, fê-lo como o disse; e assi lhe levou o diabo
tudo em breves dias.
Desp. — Valha-me Deus ! São muito roins ga-
25 lantarias essas ! Com as cousas da alma não pode-
mos galantear, que custam muito.
Fid. — Deixemos nós a alma; cuido que tinha
rezão em desejar de tirar muito dinheiro; porque
vir um fidalgo a êste reino cheirando a pobreza,
30 não há quem lhe não vire o rosto; o bom é vir rico,

3, o mais dêles: a maior parte dêles.


21-22, cortesania: gracejo, brincadeira.
O SOLDADO PRÁTICO

porque então vos bailam as trepeças, como lá di-


zem; tudo achais fácil, rogam-vos pera tudo, e vós
não rogais pera nada, e inda pera aquilo que dese-
jais vos chamam; que esta calidade tem o dinheiro,
5 com outras muitas cousas que calo. Emfim, bom é
vir rico.
Sold. — Não está nisso a riqueza—em ter muito
dinheiro; nos feitos e obras heróicas e de virtude, aí
si; a êstes são os que se haviam de buscar pera
10 tudo.
Desp. — Muito nos fomos divertindo da matéria
que começávamos a tratar acerca dos despachos e
requerimentos dos homens. Por isso, senhor solda-
do, por amor de mim, que tornemos a ela, e que
/j tudo o que houverdes de tratar o façais com tanta
j liberdade e isenção, como se não faláreis diante de
mim: porque, como todos não podemos tudo, nem
0 há homem tão perfeito que não erre, dos avisos dos
bons juízos e dos conselhos dos experimentados se
20 vem as mais das vezes a cair no conhecimento das
cousas, que os que estão neste lugar deixam de al-
, cançar, tanto polas não verem como polas não ou-
virem praticar.
Sold. — Assi é, senhor, e daí vem os reis não
25 serem sabedores de muitas cousas importantes ao
bom govêmo de seu reino, assi polas não verem,
porque não pode ser verem tudo, como polas não
praticarem com quem as tratou, viu e apalpou;
porque o que mais falta aos reis é quem lhe fale

1, vos bailam as trepeças. Em B a lição é dife-


rente: o bom é vir rico e deixar das trepeças.
11, divertindo: afastando.

'5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

verdade nestas cousas. E se lhes a êles acontecesse


aquilo del-rei Antíoco, quando ua noite foi perdido
e desconhecido a casa de um lavrador: vindo a fa-
lar em el-rei, lhe disse quantos defeitos se dêle di-
5 ziam; e vindo outro dia os seus, querendo-lhe pôr
as insígnias de rei, as não quis, dizendo: que tanto
que se desconhecera, logo achara quem lhe falara
verdade ! Porque quási sempre, ou a autoridade
real está pondo receo pera um homem lhe poder
io dizer quanto entende, ou também se teme que fique
tido por jogral; porque, verdades em côrte, avor-
rece, e é seu costume que quem lhe não fala à von-
tade, lhe não responda ela também à sua.
Fid. — Tudo assi é: je sabeis de que isso vem?
15 De quererem os homens já agora viver mais pera si
que pera outrem.
Sold. — A culpa ponho aos reis, porque vieram
a gostar mais de lisonjeiros que de filósofos e sabe-
dores; porque se assi não fôra, víramos cada dia fa-
20 zer a muitos privados o que fez o grande Alexandre
a um filósofo, que havia muito trazia consigo; o qual,
como nunca o reprendesse de cousa algua, lhe dis-
se: — Eu sou homem e como tal devo de errar em
muitas cousas; e tu sendo filósofo não me reprendes
35 nem avisas de nada: ou é que não entendes meus
erros, ou, se os entendes, não és meu amigo, pois
mos dissimulas e não reprendes; por isso vai-te em-
bora, que me não quero servir de ti.

li, jogral: bobo, trapaceiro.


ri. Entenda-se: «verdades em côrte, isso aborrece».
12-13, & vontade: ao sabor das suas paixões e ca-
prichos.

16
O SOLDADO PRATICO

Desp. — Se os reis isso fizerem, de quem se ser-


virão ?
Sold. — De muitos que lhe falem verdade; por-
que então, quando o privado vir o aborrecimento
5 que o rei tem a lisonjeiros, mudará a pele e far-se-á
da côr da condição do rei; porque sempre, ou as
mais das vezes, folgam e se afeiçoam aos homens
que em algua cousa se lhe querem parecer: como
o emperador Aureliano, que, sendo afeiçoado a be-
io ber vinho tinto, um Torcato não só não bebia outro
vinho senão êste, mas inda todas as vinhas que
mandava prantar eram de uvas pretas, o que satis-
fez tanto a el-rei, que o fez censor em Roma e guar-
da da Porta Salária. Por onde não está em mais
15 falar-se verdade aos reis que sintirem os privados
que é êle afeiçoado a ela, e que por isso lhe farão
o que fez o emperador a Torcato.
Fid. — Estais nêsse negócio um pouco enganado,
porque os reis, por sua dignidade, são mui grandes
20 amadores das verdades e sempre folgam de lhas fa-
larem; mas isso que quereis dizer é outra cousa que
eu entendo, e me não convém dizer.
Sold. — Digo «minha culpa», se minha tenção
foi culpar a pessoa real neste negócio em mais que
25 em lhe não aborrecerem lisonjeiros e se descuidarem
nesta parte da alteza de sua dignidade; porque os
atenienses, segundo Plutarco, na Vida de Teseu,
chamam aos reis anaces, como aqueles de cuja pru-

14, Porta Salário: uma das entradas fortificadas da


cidade de Roma.
28. Em grego ánax significa o «príncipe», o «domi-
nador». Desde a linha 28 até 28 da pág. seguinte Couto
limita-se a traduzir a versão castelhana da Vida de Teseu

J
7
2
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

dência e vigilância pendem muitos negócios muito


importantes; e assi são obrigados a os ministrar com
tanta moderação e providência, que os bons e vir-
tuosos tenham diferentes lugares dos maus.
5 Outros dizem que não vem por esta via a deriva-
ção do vocábulo de rei, senão que é ua similhança
tomada da sublimidade e altura das estrêlas, que so-
bem conforme ao ordenado curso da natureza, até
io chegar à suprema altura do céu; e porque em lín-
gua ática esta distância de lugar sublime e excelso
se chama anekás, e anékathen se diz ao que de alto
procede; dando a entender, por esta apelação, que
o rei, que por ordenação divina está colocado na
15 altura do estado humano, não deve inclinar seu pen-
samento a cousas baixas e abatidas, senão que se
lembre que está naquele lugar sublime como ôa ex-
celsa atalaia da virtude e da verdade, para que seja
exemplo de toda a honestidade, religião e mais vir-
20 tudes a todo o povo, que nêle, como em um espelho
claríssimo, tem postos os olhos, cuja claridade com
nenhua cousa se há-de escurecer; lembrando-lhe
também que, quanto é mais sublime o lugar que
tem de todo o mais povo, tanto com maior vigilân-
25 cia deve procurar que não diga nem fale cousa que
não seja digna do céu; pois o lugar tão alto em que
está colocado lhe mostra ser tanto mais perto do
céu sua dignidade que a baixeza da gente vulgar.
Isto não é meu, que é de muitos e abalisados filó-
30 sofos que disto tratam. Por onde, torno-me a decla-

de Plutarco, por Castro de Salinas (Colónia. 1562), fl. 42-


-43. Aliás, êle próprio diz que essa explicação lhe não per-
tence (Pág. 18, 1. 29-30).
30 e seg. declarar: insistir com mais clareza.

18
O SOLDADO PRATICO

rar no que tinha dito, em dizer que a culpa era dos


reis, que lhe inda agora ponho, mas só em não ve-
rem e vigiarem os que tratam mais de lhe falar à
vontade que verdades, como tem por obrigação de
5 vassalos leais; porque àqueles que eles põem neste
lugar, e sôbre os quais deixam todo o pêso do govêr-
no e negócios do reino lhes fica a mesma obrigação
que a pessoa real tem por sua dignidade, como já
tratei; por isso vejam os despachadores o em que se
10 metem, que naquele negócio são obrigados a tratá-
-los com aquela verdade e amor que o mesmo rei
tem por obrigação a seus vassalos, tão arriscados
tantas vezes por êles à bôca da bombarda, à seta,
ao pelouro, à fome, frio, e a trezentas outras des-
15 aventuras em que se cada dia vêm por seu serviço.
Êste exemplo lhe deixou Cristo Nosso Senhor
quando subiu ao Padre, que deu o cargo do despa-
cho dós homens a seus discípulos, os quais assi se
houveram com êles como o mesmo Deus, dando
20 vida a mortos, vista a cegos, fala a mudos e obran-
do todas as mais maravilhas de seu mestre; e assi
ficavam sendo deuses: o que isso mesmo fica obri-
gado a fazer o despachador, que há de despachar
como rei, e, fazendo como tal, conforme a sua obri-
25 gação, fá-lo como Deus, porque os reis o lugar de
Deus tem na terra, e assi ficarão-seus ministros fa-
zendo ofício de deuses.
Desp. — Essa profissão é já mais que de puro
soldado, como vós dissestes que éreis; porque vejo
30 que vos ides mostrando filósofo, humanista, e inda
teólogo, para o que se requere mais quietação que
de soldado, que não pode trazer a espingarda às

22, isso mesmo: igualmente, do mesmo modo.

19
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

costas e os livros da outra parte; porque sempre, ou


as mais das vezes, ua cousa impede outra.
Sold.—Nunca a pena embotou a lança. Soldado
e capitão era César; e, conquistando a Gália, de dia
5 pelejava e de noite escrevia nos seus Comentários.
Alexandre, conquistando o mundo, sempre comuni-
cava com filósofos e trazia a Ilíada de Homero à
cabeceira. Epaminondas lacedemónio trazia no exér-
cito sempre a sua livraria, e não se determinava de
io qual tinha mais, se de esforçado, se de sabedor; e tre-
zentos outros capitães, a quem as armas não escusa-
ram o engenho. E não digo isto porque haja em
mim o que Vossa Mercê diz; porque sómente o amor
das letras me ficou daquela primeira idade, em que
15 gastei alguns anos nas artes liberais, de que só me
ficou a inclinação dos livros, com que comunico as
horas que me restam, porque natural é ao homem
desejar de saber, como afirma Aristóteles no pri-
meiro da Metafísica.

CENA II
Do modo que correm os despachos das cousas
da índia no Reino; em que se tocam muitas
cousas sobre algOas desordens que nisso há.

20 Despachador — Tornemos à matéria de pri-


meiro, que era irdes culpando os homens que té'gora
estiveram neste cargo; porque eu, como sou homem
e está certo errar, ficarei sabendo o de que me hei de
emendar. Quanto ao que dissestes que se podia rele-

9, e não se determinava: e as pessoas não sabiam.


21-22, de primeiro: do princípio.

20
o SOLDADO PRÁTICO

var aos soldados aquele brio e isenção, ou quási


soberba, com que requerem seus merecimentos, por
andarem atropelados dos despachadores passados,
por certo que, se soubessem o modo de como cor-
5 rem os negócios, que se não escandalizassem tanto;
porque, como os reis tenham suprema dignidade
sôbre todos os homens, um isento senhorio e Ga
vontade, que se não contradiz, com outras muitas
cousas, que deixo de dizer, não parece rezão que
io estejam a todo o tempo preparados para todos os
negócios que os homens dêles quiserem; porque,
como tem repartidos os tempos pêra êles, a saber:
tantos meses pera os de África, outros para os da
India, e outros pera aquelas cousas pera que os apli-
15 caram,—não parece rezão que, quando se tratarem
os negócios de África ou da fazenda e justiça, que
vá um despachador apresentar papéis do soldado
da Índia, fora do tempo e conjunção, porque assi
em vez de lhe fazer bem, lhe poderá muitas vepes
20 fazer mal; então, se lhe não tomais sua petição, a
qualquer tempo que vo-la der, já parece que lhe
roubam sua justiça, e arrebentam com seus despa-
chos, para o que há mister ua paciência de Job para
os ouvir e sofrer.
25 Sold. — Inda mal, porque assim é tudo e por-
que os reis tem tempos repartidos por êsse modo;
porque pera dar o seu a seu dono não é necessário
aguardar tempo, que a tôda hora o é, e o menos
que o bom e cristão rei há de ter, é tempo para si.
50 Cousa leo de príncipes gentios, que tomara achar
em alguns dos havidos por católicos: ^qual dêstes
teve o que Dario, rei da Pérsia? que tinha um cama -

6, como os reis: ainda que os reis.

21
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

reiro deputado para todos os dias em amanhecendo


entrar livremente na sua câmara e lhe dizer: — Le-
vanta-te, rei, e vai curar dos negócios que Deus
quis que curasses!
E do Evangelho temos que a Cristo Nosso Senhor
nunca se lhe ofereceu requerimento, que o não des-
pachasse, porque, como veo ao mundo todo pera
os homens, não tratou mais que o que lhe a êles
cumpria; porque à borda d'água despachou a S. Pe-
dro e S. Felipe; estando comendo, à Madalena; no
caminho, a Zaqueu; à entrada da cidade, ao filho
da viuva; bebendo, à Samaritana; e ainda à hora
da morte, ao ladrão; de modo que a tôda a hora,
e em todo o tempo e lugar despachava petições,
dava cargos e ofícios; o que houvera de ficar por
exemplo aos reis da terra para o imitarem, pois
naquele lugar os pôs êle mais para os homens que
para si.
Desp. — Vêdes vós, isso é assi como dizeis; mas
os reis da terra não podem tanto: são de carne, e
hão de ter seus dias de passatempos; também são
sujeitos a paixões e infirmidades, polo que não pode
ser estarem todo o tempo à pá, como lá dizem: o
arco, se lhe não afrouxam a corda, fácilmente que-
bra. Tudo seu tempo tem, como diz o sábio; baste
ter dado o mais dêle para os negócios, o menos lhe
fica para seus desenfadamentos, que se não es-
cusam.

23, todo o tempo na praça em B. Supomos melhor


a lição de A, que exprime melhor o que Couto quere
significar: «o trabalho duro e absorvente dos reis».
24, aflouxam em A.
27-28, que se não escusam: que são necessários, de que
não podem prescindir.

22
O SOLDADO PRATICO

Sold. Não sinto eu pera as infirmidades mór


antídoto nem melhor meizinha que despachar nelas
a viuva pobre, o soldado desemparado, o cavaleiro
velho e de merecimentos; porque êstes são os que
ç rogam a Deus pela vida do rei, e isso é o que lhe
dá saúde; que as mèzinhas são ervas e raízes, que
nunca a dão perfeita. E o glorioso Luis, rei da
França, dizia que os pobres que despachava eram
os cães com que caçava os céus; que esta é a verda-
10 deira caça que os reis hão de desejar.
Desp. Por essa e por tôda a outra via caçam
os reis, como dizeis, o céu. Mas, tornando aos ne-
gócios da Índia: como o tempo que lhe é dado não
são mais que três meses, e êles sejam muitos, e os
15 requerentes acodem todos, muitas vezes por falta
de tempo e segundo se os negócios vão encapelando,
e as matérias que se trata serem de muito conselho,
como: se se oferecem novas de galés e outras cousas
desta calidade, polas quais cessam essoutras, que são
20 de menos importância; e que suceda por isso man-
dar el-rei sobrestar os requerimentos para o ano,
que há de mandar viso-rei; ou que outros negócios
de fora e de outra calidade gastem o tempo, e fi-
quem os homens sem responder—^que culpa dareis
25 ao despachador, se não foi em sua mão mais, nem
as cousas deram outro lugar?"
Sold. Já que me Vossa Mercê tem dado li-
cença para responder livremente a tudo, há me de
ouvir um pouco. Digo, senhor, que estava isso
30 muito bem, se nesse tempo não saísse despachado

2, meizinha: remédio, mèzinha. Boa forma portu-


guesa, um pouco antiquada.
16, encapelando: amontoando.

23
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

o criado do mordomo-mór, que nunca serviu el-rei,


o do veador da fazenda, o do secretário, o do conse-
lheiro e o apaniguado de Vossa Mercê e outros
muitos desta estofa, que, com as mãos na cinta e a
5 perna alçada, comendo os mira-olhos e figos berja-
çotes, levam o melhor da Índia; senão quanto a
êstes, lhe serve a minha petição, que está em poder
do despachador, de alvitre para pedirem o que nela
tenho apontado; e quási sempre acontece, res-
10 pondendo a um dêstes que digo, ou a um soldado
como eu, envelhecido na guerra, ua mesma cousa:
fica êle posto diante; e o prove, que passou poios
mêdos dos estreitos, poios frios e chuivas na ensea-
da de Cambaia, pelos pelouros e setas dos mala-
ia vares, achéns e turcos, que se vá estar esperando
que acabe seu tempo o que pola ventura não fez
outra cousa que traquejar as calçadas de Lisboa
e servir seu amo de muitas cousas que calo.
Desp. — Algua rezão tendes nisso, mas são cou-
20 sas essas que se não podem escusar, porque, como
lá dizem, faço-te a barba, por que me façais o ca-
belo. Meu amigo, já que falais verdades, eu as não
hei de negar. Sucede isso assi porque o despachador
que está neste lugar tem necessidade dos homens:

5, mira-olhos: pêssegos de forma grande e rosados.


5-6, berjaçotes: figo miúdo de polpa avermelhada.
Em certas regiões do país chamam-lhe hoje «baxaxotes».
8, alvitere é a grafia usual em A.
9-10, respondendo: pelo que respeita.
11, ua mesma cousa: sempre esta cousa.
15, achéns: habitantes do Achém, na ponta seten-
trional da ilha de Samatra.
17, traquejar: frequentar, pisar constantemente.
O SOLDADO PRATICO

uns por que, se começam a medrar, os vão favore-


cendo; outros por que, se tem já subido a sua valia,
os sustentem nela; e assi não se faz nada sem nada.
Sold. — Por essa conta rogarei muito más Pás-
5 coas a meu pai, que na mocidade me trouxe no
Paço, servindo el-rei de tocha e prato e dormindo
polas caixas de sua guarda-roupa; e depois de ho-
mem me mandou à índia, como todos vem a fazer,
havendo que, com alguns anos de serviço, poderia
10 vir a ter remédio e ser bem despachado. Igual fôra
que me dera a um dêsses validos da côrte; pudera
muito bem ser que já nesta idade, em que venho
requerer, tivera colhido o fruito a tempo que me
pudera lograr alguns anos dêle, do que já agora
y 15 desconfio, porque sou velho.
E o com que me podem responder, Deus sabe para
0 quando será, e pode ser que venha a morrer poios
hospitais da índia, sem me entrar o prove cargo que
me derem; e assi fica gastada a vida tôda sem lo»-
20 grar aquilo que estoutros que digo, à pema alçada,
, em quintãs compradas com o suor de meus traba-
lhos, estão há muitos anos logrando; e o que é peior,
que a êstes, a tempo de lhe entrarem seus cargos, fa-
zem os governadores da índia dobrados favores e
25 mercês que ao prove soldado, que êle viu na guerra
matar muitos mouros, só por terem grangeados os
amos, por cujos respeitos foram despachados, inda
que seja muito à custa da fazenda do rei.

18. Sem me entrar: sem tomar posse, sem me


iniciar.
21, quintãs: quintas, fazendas. Forma arcaica.
Couto usa geralmente «quintas».
23-24, Note-se a construção «dobrados... que».

25
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Fid. — A isso digo «minha culpa». Folgo que


faleis verdades tão claras. Isso passou também por
mim; mas jque há um governador de fazer, se não
pode viver tão puro que não haja mister os homens,
5 e lhe é necessário tê-los grangeados para seus negó-
cios?
Sold. — Folgo de ouvir isso a Vossa Mercê, por-
que assi o tive sempre para mim no modo com que
vi aos governadores tratar a fazenda del-rei, não
io como ministros senão como imigos, sem lhe lembrar,
quando a dão por êsse modo, que ficam em resti-
tuição dela, porque por essas desordens sucedem in-
finitas necessidades ao Estado, que se remediaram
. com êsse dinheiro, polas quais se deixam de prover
15 as armadas e fortalezas como é necessário. E Vossa
Mercê há de ter paciência, porque eu hei de falar
nisto muito largo.

CENA III

De como os móres imigos que a fazenda do rei


tem são os ministros; e de como na índia
se cumprem mal os regimentos e mandados *
del-rei; e trata de outras matérias.

Soldado — Entrando um dia a mulher de Dario


na tenda de Alexandre Magno, depois de ter sujeita
20 toda a Pérsia, estava junto dêle o seu grande amigo
Eféstion, a quem ela fez sua humilhação, cuidando
ser el-rei; 'e, depois que soube qual era, teve com
Alexandre suas desculpas do êrro em que caíra.

2, falais em A; faleis em B.
13, se remediaram: se remediariam.

26
O SOLDADO PRATICO

Ao que êle respondeu estas palavras: — Não er-


rastes em nada, que meu amigo é outro eu.
Donde se vê claro que os amigos do rei, seus viso-
-reis e governadores e mais ministros hão de ser
5 outro êle, hão de administrar, governar e despender
como o mesmo rei o fizera, que isto é ser verdadeiro
amigo; mas quando a cousa vai por outro rumo,
que o governador e ministro não pretende mais que
governar para si e pera os seus, então não sinto eu
io mór imigo do rei que êste, porque poderá êle dizer
polo tal governador: — Este que aqui está é outro
si, ou outro para si. Em toda a parte isto tem lugar.
Mas deixemos os ministros dêste reino, vamos-nos
à índia. Dai-me um viso-rei que deixe perder polo
ij serviço do seu rei um cruzado de sua fazendo pera
lhe acrecentar outro: isto é cousa que se não costu-
ma; antes acrecentar em sua fazenda com muita
perda da do rei, e Deus sabe por que meios; isso si.
# Vereis um governador ou viso-rei chegar àquele
20 Estado tão zeloso do serviço del-rei e do proveito
de sua fazenda, que parece a todos que vem remir
a India, e que tomará as capas aos homens pera lhe
acrecentar em sua fazenda; mas daí a quatro dias
se muda isto, porque a má natureza da terra e infer-
25 nal inclinação dos homens o muda de feição que, se
lhe toma as capas assi a el-rei como aos homens,
é para si e para os seus. Muitos exemplos pudera
dar disto, mui vistos e apalpados, mas trarei dous.
Quer um governador pagar-se de seus ordenados,
30 que sempre andam adiantados, e nunca vereis fica-
rem-lhe devendo em seu título cousa algua; e se
a algum lhe fica, e tiram disso certidões, eu o hei

7, causa em A.

27
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

por grande engano; no que agora me não meterei


por me não sair da matéria. Esta paga não se faz
em qualquer moeda em que se aproveite a fazenda
do rei, senão logo lhe dão por alvitre que quebre
5 os pagamentos para Ormuz, onde a moeda é mais
grossa; e por xerafins pagam patacões, que vem a
montar muito contra a fazenda del-rei, que êste é o
proveito que lhe fazem.
Outro exemplo é: ordena-se mandarem um em-
10 baixador ao Balagate ou ao Mogor; êstes hão de le-
var seus presentes, como é costume; fazem rol do
que há de ser, entram nêle quatro, seis ou dez cava-
los; êstes vende-os o viso-rei da sua estrebaria a
el-rei a preços exorbitantes: cavalo que vai duzen-
15 tos por seiscentos e mais; e carregam-se em nome
de outrem em receita, e tiram conhecimento para a
parte requerer seu pagamento, o qual há Vossa
Mercê entender que se faz d'ante-mão, e em moedas
em que ganha. E inda aqui entra outra injustiça,
20 que é: que vindo as naus d'Ormuz com êstes cava-
los, mandam os governadores tomar polas estreba-
rias e casas dos homens os que lhe melhor parecem,
e ao pôr do preço sempre é à vontade dos gover"
nadores — o que tem escandalizado a índia tôda.
25 Ora passemos avante, pera vermos o como apro-
veitam a fazenda do rei com detrimento da sua.

4, senão: mas sim.


6, xerafins: moeda corrente na India com o valor
de 300 a 360 reis.
10. Balagate e Mogor eram dois reinos, o primeiro
a leste de Goa, o segundo própriamente o reino do Indus-
tão ou Deli.
25-26. Isto é dito em ar de ironia; o contrário é que
é o verdadeiro.

28

k.
O SOLDADO PRÁTICO

Na despesa dela não entra veador da fazenda, que


é sacrilégio tocar no dinheiro, nem o tesoureiro tê-lo
em seu poder; êle o tem, e às vezes se entrega a seus
criados, e as despesas dêle são à sua vontade, e os
papéis delas se entregam ao feitor e tesoureiro, que
isso só guarda, e às vezes mal correntes, o que de-
pois lhe dão trabalho; e Deus sabe por onde foi este
dinheiro e por onde se consumiu, porque sempre a
mór parte dêle vai em dívidas velhas, de que adian-
te tratarei, e estes repartidos por mãos de seus apa-
niguados e criados, que todos ficam com elas bem
untadas; e senão, vêde o seu apaniguado, que levou
cincoenta mil cruzados, o pagem da campainha ou-
tra pancada, o outro criado seu quinhão; o que
tudo sai da bolsa do rei, que paga até os serviços
dos criados dos governadores.
Fid. — A isso tinha muito que dizer: bem sabeis
vós que, tanto que dei a homenagem da índia, assi
por isso como polo regimento que me el-rei dá, te-
nho licença pera fazer tudo o que me bem parecer,
no que dá consentimento a tudo o que os governa-*
dores quiserem fazer: com o que, e com os muitos
biscatos que a índia dá de si, posso fazer os meus
ricos, porque me servem, e com êles represento a
dignidade do meu cargo.
Sold. — Vossa Mercê é que alevanta a lebre para
eu correr, que bem desejo eu de passar por algíias
cousas que tem bem escandalizado o mundo, e essa
que Vossa Mercê tocou mais que tôdas. Vós sabeis,
senhor, o que jura um viso-rei ou governador nas

io, e estas em B.
23, biscatos: pequenos negócios, mais ou menos
fraudulentos.

29
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

mãos del-rei, quando lhe dá essa menagem? Por


certo que, se isso trouxessem na memória, que não
comeriam nem beberiam, porque cuido que os mais
dêles perjuraram gravíssimamente. Falo dêste modo,
5 porque Vossa Mercê me tem dado liberdade para
tudo.
Dizei-me, senhor, <;qual é o viso-rei ou governador
tão puro (não digo que não haja alguns), que na
homenagem que dá não se arrisque a mil perjúrios?
o Primeiramente juram que não solicitaram aquele
cargo por si nem por outrem, nem deram, peitaram,
nem por outra algua via o pretenderam, sendo tão
sabido de muitos os modos com que o solicitaram.
Vamos mais aos juramentos que fazem de guar-
5 dar regimentos, fazer justiça às partes e outras cou-
sas que deixo, o que muito poucos cumprem, por-
que regimentos não se executam senão nos pobres;
leis e provisões não se guardarão senão contra os
desemparados: emfim, por não me cansar, muito
o poucos governadores cumprem o que lhe el-rei
manda, sendo contra seu proveito e apetite; por
onde afirmo que em nenhua parte é o rei obedecido
menos que na India; porque cousas faz um gover-
nador que o mesmo rei não houvera de fazer.
5 E o que mais escandaliza é que sempre acha letra-
dos em todas as faculdades, que dão entendimentos
às leis e regimentos para poder fazer aquilo que pre-
tende, inda que seja ua injustiça exorbitante, como-
o eu vi em um caso que importava ua das fortalezas
a da India, em que quis persuadir um letrado não

x, menagem: homenagem, juramento de fidelidade.


18, leis e prisões em B.
18-19, contra desemparados em A.

30
O SOLDADO PRATICO

leigo a um desembargador que podia votar naquele


caso polo que o governador queria, porque a lei lhe
dava lugar para isso, e que êle lhe daria um escrito
seu que o podia fazer; mas como o desembargador
5 temia a Deus, não o pôde levar, nem o governador
conseguiu o que esperava, porque por aquele voto
ficavam vencidos os de sua parte.
Pois jque vos direi dos perjúrios que comete um
governador contra o que jura, quando lhe entregam
10 a governança da India?: que com as mãos sôbre o
missal promete de guardar os previlégios da cidade,
e na primeira cousa que lhe cai nas mãos põe os
pés por cima de tudo e não guarda senão o que lhe
releva. E acham letrados que também lhe dizem
15 que aquele previlégio se entende de tal maneira; e
por um exemplo me declararei melhor.
Prenderam um fidalgo velho, honrado, casado em
Gôa, dentro no tronco, por ua cantidade de dinheiro
q que devia a el-rei, a quem sempre os governadores
tem olho; e certo que cuido que se fôra pola morte
de um homem, que não houvera de ter prisão tão-
estreita. E primeiro que conte o caso, direi o que
sôbre isto ouvi a um homem bem avisado, tratan-
do-se sôbre outras matérias desta essência.
Estando autualmente alguns homens presos por
dívidas, sucederam alguns crimes na cidade de Gôa
de mortes de homens, a que se não acudiu tão de-
pressa como era rezão, ao que dixe um homem: —
Não deva ninguém dinheiro a el-rei neste tempo,
e mate quantos homens quiser, e passêe livre-

8, nos prejuros em A.
18, tronco: casa da cadeia.
28, dixe: disse. Forma antiga e popular.

31
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SX DA COSTA

mente, que eu seguro que não entendam com


êle.
E tornando ao exemplo que ia dizendo: preso o fi-
dalgo, acudiu a cidade com seus previlégios, nos quais
5 manda el-rei que nenhum cidadão de Gôa possa
ser preso em ferros senão por caso que haja de
morrer, nem por dívidas, inda que sejam suas; e
como pretendiam haver o dinheiro à mão, que
era o crime que tinham contra êle, saiu por despa-
10 cho da Relação que não fôsse preso em ferros, como
o previlégio dizia, mas que ficasse no tronco sem
grilhões, onde esteve alguns tempos sem lhe valer
previlégio nenhum.
Ora vêde, senhores, se o demónio podia dar êste
15 entendimento à provisão del-rei? E que quer dizer
ser preso em ferros senão em troncos, onde tudo são
ferros? jQue soma de exemplos vos pudera trazer
dêstes, que puderam fazer engulhos de vomitar, que
de nojo calo!
20 Ora quanto ao que Vossa Mercê diz que el-rei lhe
dá poderes pera tudo na partícula que lhe põe no
cabo do regimento: que sobre tudo façais o que vos
parecer mais seu serviço, isso é mal entendido de
muitos, porque antes com isso vos amarra as mãos
25 e limita o poder; porque as cousas que el-rei há por
seu serviço, primeiro que tudo é fazer justiça e dar
a cada um o seu; e fazerdes armadas pera onde se
vos oferecer ocasião, e proverdes nas cousas da"
guerra como fôr mais necessário e comprir mais à
30 reputação do Estado e defensão dos vassalos; por-
que el-rei não pode adivinhar os casos futuros, con-

20, partícula: frase, passo do texto.


22, meu serviço em B.

32
O SOLDADO PRÁTICO

tingentes, pêra mandar prover nêles, e então o dei-


xa ao juízo do governador, com os do seu con-
selho.
Mas no despender de sua fazenda não há de ser
5 senão pera estas mesmas cousas e pera outras ordi-
nárias, porque pera o mais vos dá tantos mil cruza-
dos pera poderdes fazer mercês, e inda a homens
beneméritos que andam no serviço, dos quais a
mór parte levam vossos criados, que lho não podeis
io dar, porque a tenção do rei é repartirem-se com os
que o servem; e dêstes hão de ser primeiro fidal-
gos e moradores de sua casa, a que tem mais
obrigações que aos outros; e inda nisto se usa
outra injustiça muito grande, que é fazerem mer-
15 cês dêste dinheiro a homens fantásticos, que nunca
houve, e os governadores ou os seus apaniguados
engolirem-no, a que não posso pôr nome senão
de furto.
* Pois nos despachos voS digo eu que ides por me-
io lhor caminho. jQuem vos disse que na provisão
que vos el-rei passou pera despachardes na fndià
certos homens de ofícios, de feitorias para baixo,
, que os podíeis dar a vossos criados, quando a provi-
são expressamente o não declarar, porque a tenção
25 del-rei é que se repartam com homens beneméritos
e de serviços? E sabeis quanto é isto?: que, se não
sou mal lembrado, na Mesa da Conciência dêste rei-
no se deu ua sentença, em que declarava que não
devia el-rei satisfação de serviço senão aos morado-
30 des de sua casa; e que aos que não viviam com êle
lhe satisfazia com lhe pagar a soldada em que se
com êles concertou, de tanto por mês; e assi êste
soldo se lhe deve e se lhe há de pagar, sem se lhe
dever nada.

33
3
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

Mas os proves compre-se-lhe tão mal isto, que de


quatro quartéis que lhe devem cada ano, lhe pagam
dous, um de verão e outro de inverno, sem ficar
disso escrúpulo nenhum ao governador ou viso-rei,
5 que, se eu fôra seu confessor, houvera-o de obrigar
a lho pagar; porque o que lhe disser que o Estado
o não tem, engana a Deus, que bem sabe que o há;
porque muito dinheiro del-rei, que se despende em
outras cousas desnecessárias, pudera suprir a isto:
io por onde concluo em afirmar que os governadores
e viso-reis não tem ourelos nem biscatos na índia,
como, senhor, dissestes, pera poderem fazer ricos
seus criados, como muitos os fazem à custa da fa-
zenda do rei, que se tira da bôca da viuva, do órfão,
15 do casado pobre e do soldado, a que não pagam o
que se lhe deve por não haver dinheiro, sobejando
pera os seus.
E chega isto a tanta desordem, que por ua e outra
parte, em necessidades, que se oferecem por estas
20 cousas e outras, andam pedindo o dinheiro empres-
tado pera armadas e socorros, e dêsse mesmo se pas-
sam muitas provisões de mercês a seus parentes e„
criados, sem entrar nisto temor de Deus nem pejo
dos homens que o emprestam.
25 Desp. — Isso passa dessa maneira? Por certo que
estou espantado de quanta cousa lá vai, sem cá se
saber, nem se temerem os governadores que poderá
isso algua hora chegar às orelhas del-rei!
. Sold. — Disso lhe dá a êles ora nada. jQue cna-

1, compre-se-lhe: cumpre-se-lhe. A forma comprir


alterna em Couto com cumprir.
4, viso-reis em A.
16, sobrejando em A.

34

)
O SOLDADO PRATICO

ma Vossa Mercê el-rei? Eles são os reis e os deuses,


como lá estão, epera isso lhe passa o mesmo rei
muitas provisões; principalmente ua, que levam to-
dos, pela qual manda que não sejam citados nem
5 demandados na Índia por cousa algua.
Por certo, senhor, que cuido que o rei não vê a
tal provisão, quando a assina, nem sabe dela; por-
que, se a vira, não cuido eu que haja rei que queira
que se faça tamanha injustiça; e que polo mesmo
10 caso que um viso-rei lhe pedir tal provisão, o pode
logo renfover e eleger outro, de maneira que hão
de levar salvo conduto pera me tomarem o meu
navio, o meu cavalo, a minha fazenda, sem o eu
poder requerer: isso é fia cousa que só se pode es-
15 perar entre os tiranos de Sicília, e não entre prínci-
pes tão católicos e cristãos, que sempre querem que
se faça justiça té de si; porque na Crónica del-rei
D. João, o segundo, lemos de alguas sentenças, que
# se deram contra o mesmo rei, que sôbre isso fez
30 mercês aos juízes que as deram; que esta é a ver-
dadeira cristandade.
Ora vêde quão mal entendido é isto, e como el-rei

2. como lá estão: logo que lá se encontram.


9-12. A redacção dêste lugar não está muito clara, e
menos clara ainda se encontra em B: de maneira que uma
há de levar salvo-conduto.
14, requerer: chamar aos tribunais.
17. O caso vem contado em Garcia de Resende,
Vida e feitos del-rei D. João Segundo, cap. 94. O rei teria
premiado o vigário de Tomar por ter, com outros juizes
da Relação, dado uma sentença contra o rei na demanda
em que andava com o contador João Roíz Pais. Isto, o
que diz o cronista oficial. No geral porém os juizes faziam
o que o rei mandava, pois era senhor absoluto.

35
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

não sabe de tal provisão; se êle passa tantas a quem


quer, que possa citar o procurador de sua fazenda,
como cada dia sucede neste reino, e inda na Índia,
e as partes hão sentença contra êles, e executam a
5 fazenda del-rei por elas, jcomo há de mandar nem
querer que se não cite, nem demandem o seu go-
vernador ou viso-rei? Não creo tal. E crea Vossa
Mercê que sôbre isto me hei de fazer doudo neste
reino, té chegar às orelhas del-rei, porque mais justo
io é, mais imitará a cristão o viso-rei ou governador,
depois que acabar seu tempo, estar a juízo com as
partes e satisfazer a tôdas o que lhe dever que êssou-
tro; mas como êles nas mais destas cousas cuidam
que enganam a Deus e ao rei, andam tão ensaiados
15 em certas cousas com que cuidam que o fazem, que
pasmo de como não caem nisso; mas cuidam que
«cobrem o céu com ua joeira», como dizem as
velhas.
Desp. — jQue manhas e ardis são êsses, e que
20 enganos?
Sold. — Di-lo-ei a Vossa Mercê: depois de o vi-
so-rei ou governador acabar seu tempo, como está -
com aquela provisão no seio, ninguém o demanda;
e então quatro ou seis dias antes da embarcação,
25 mandam pôr grandes escritos pelas partes da cidade

xo, imitará a Christo em B.


24, embarcação: partida do navio. Em B: antes do
embarque.
25, mandam, em vez de manda. O plural explica-se
pela duplicidade do sujeito (viso-rei ou governador) e
ainda porque exprime melhor a idéia constante em Couto:
a generalidade sem excepção dos abusos da índia. Come-
çado pois no singular, o autor vê-se obrigado a empregar
em seguida o plural, que imprime mais energia ao discurso.
O SOLDADO PRÁTICO

e igrejas, que tôda a pessoa a que deverem algua


cousa a requeira, que lha pagará; e como isto é já
com o pé no estribo, ninguém lhe sai, e então lhe
passam os escrivães mil certidões dos tais escritos,
5 com as quais vão tapar os olhos aos cegos, ficando
tôda a fndia escandalizada e por pagar dêles e de
seus criados.
Fid. — Já me tenho arrependido da licença e li-
berdade que vos dei; porque não cuidei que falás-
10 seis tanta verdade tão livremente, porque isso não
são cousas que chegam a soldados, que não tra-
zem mais pensamento que nas suas armas e nas
suas pagas. Cruzo-me a tudo, porque nas mais des-
sas cousas me sinto culpado; e certo que podíeis
15 servir de rol de confissão pera um viso-rei, e alguas
cousas me lembrastes, que me esqueciam; mas já
que estamos com esta matéria antre as mãos, dei-
xando as outras cousas, a que não vos sei dar des-
* culpa, quero acudir pela honra dos governadores
20 no que dão a seus criados, que não sai tudo da fazen-
da del-rei, como vós dizeis, mas a mór parte do que
se com êles reparte, são alvitres, que cada dia suce-
de que, já que se hão de dar aos estranhos, parece
mais rezão que se dêm aos seus.
25 Sold. — A isso me não posso ter, já que Vossa
Mercê tocou a tecla dos alvitres, que não descubra
o segrêdo dêles, que pela ventura nunca chegou
ao rei nem aos despachadores, pera mandarem pro-

13, Cruzo-me: resigno-me, conformo-me.


22, alvitres: lembranças, espórtulas, estratagemas
para conseguir dinheiro.
25-26, já que Vossa Mercê até dos alvitres se dá em B.
Grosseiro êrro de cópia.

37
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

ver em ua cousa tão injusta e tanto contra a fazen-


da do mesmo rei.
Desp. — Folgarei muito de ouvir êste negócio,
porque isso é lá outro mundo, e cá não se pratica
5 nas cousas que relevam a el-rei, senão nas que re-
levam aos homens.
Sold. — Em toda aparte isso é: e posto que esta
matéria seja mui comprida, eu a encurtarei o mais
que puder, por não enfadar Vossa Mercê.

CENA IV

Dos modos que há de alvitres na índia, e do


dano e prejuízo que fazem.

io Sold. — Na índia dalguns tempos pera cá que


se costumam quatro maneiras de alvitres: primeiro,
contra o rei; segundo, contra os homens; terceiro,
contra Deus; quarto, contra todos. O primeiro, que
é contra o rei e com que os governadores enrique-
cem seus criados, é de muitos modos, a saber: Mor-
reu o homem ab intestado, não tem herdeiros, per-
tence sua fazenda à Corôa; esta logo é repartida e
levada pelos ares, sem o rei dela ver um tostão.
A fazenda do mouro ou do gentio, que se houve
20 por alevantado, e que se confiscou pera a câmara •
real: a sentença foi hoje assinada, amenhã já o seu

15, são de muitos modos em A.


16, ab intestado: sem deixar testamento. Rigorosa-
mente, em latim, ab intestato, que se aportuguesou por
ser locução corrente em linguagem forense.
20, alevantado: rebelde, revoltado.

&
O SOLDADO PRATICO

palmar anda em leilão, que o manda vender o ca-


mareiro, a quem se tinha dado d'ante-mão.
Queimou-se o judeu ou o herege; pertence a fa-
zenda ao fisco real, também se logo queimou; por-
5 que um criado leva mil cruzados, outro leva as
casas, outro a horta, de modo que deu o fogo na
fazenda como no dono, e nem cinza se achará.
Deu o feitor ou almoxarife conta: ficou devendo
quatro mil cruzados à fazenda do rei; primeiro que
io a conta se encerre, já o camareiro tem o alvitre e
a provisão dêles, que os leva poios ares.
Morreu o feitor sem dar conta: lançam-lhe mão
de sua fazenda; primeiro que saibam se a deve ao
rei, deu a tormenta nela: pera ua parte vai o di-
15 nheiro que se acha, pera outra os bens de raiz, pera
a outra os escravos e as jóias, de sorte que a prove
da mulher fica posta na rua, e seu marido, se lhe
tomaram conta, não deVia nada; e depois, se a dão,
deve-lha el-rei, e o criado do governador tem-na
20 engolida; e ela anda quebrando as escadas e as ore-
lhas do governador sem lhe dar o seu, até que se
concerta com que lhe faça pagar a quarta parte,
e assi torna el-rei a vomitar o que o criado do go-
vernador engoliu.
25 O rendeiro da alfândega, que no cabo de seu ar-
rendamento ficou devendo dez mil cruzados, são
seus fiadores levados nos ares, porque dQa banda

3, o judeu ou negro em B.
15, para outra a raiz em A.
18, se lhe tomaram conta: se lhe tivessem tirado
bem as contas.
19, devem-lha el-rei em A.
22, com quem em A.

39
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

lh'afuzila o sobrinho do governador c'ua provisão


de mercê de três mil, da outra o camareiro com dous
mil, da outra por outra via outros tantos, e assi em
dous dias não fica pedra sôbre pedra dos proves
5 fiadores. E se depois o rendeiro põe na Relação suas
cousas, e prova que as perdas que houve foram por
causa da guerra e de infortúnios, ou de lhe quebra-
rem os seus contratos, por onde se lhe mande tor-
nar a sua fazenda,—como ela é já levada em papos
io d'abuitres, passam-lhe provisão pera se pagar em
outro arrendamento novo, que a essa conta se faz;
e assi fica el-rei dando sua fazenda aos criados do
governador, porque, por derradeiro, êle é o que
paga tudo.
15 Ficou o casado por fiador de parente de mil cru-
zados a ir comprir o degrêdo em que foi condenado
pera Maluco; fugiu no caminho; ao outro dia lhe
são as casas postas no leilão, e vai engolido o di-
nheiro, como todo; e outras cem mil cousas por
20 êste modo, nas quais, se o rei quisesse prover e
atasse as mãos a seus governadores pera as dar, e
se carregassem sôbre o tesoureiro e se metessem no *
cofre, eu fico que monte a S. Alteza passante de

1, afuzila: apresenta de modo súbito, fulgurante,


que provoca mêdo.
5, Ralação em A.
10, em papos d'abuitres: em papos de abutres. Ima-
gem admirável para exprimir a rapacidade do funciona-
lismo indiano e especialmente dos apaniguados do vice-rei
ou governador.
11, a essa conta faz em A.
17. Maluco: as ilhas Molucas.
19, como todo: como tudo o mais. Em B: como
todo o outro.

4.0
O SOLDADO PRÁTICO

trinta mil cruzados cada ano; que serão melhores


para se dar no inverno quatro mesas aos soldados,
que se recolhem das armadas, que não a criados dos
viso-reis sem nenhum merecimento.
5 Fid. — Pois jcom que hei de pagar aos meus os
serviços que me fizeram desde meninos, senão com
os fazer ricos, emquanto tiver a governança?
Sold. — Isso é logo governardes vossa fazenda
e a de vosos criados, e desgovernar a del-rei, que
io a fia de vós cuidando que lhe aproveitareis, assi
por obrigação de bom vassalo como pola de vosso
cargo e juramento; porque se, como diz Massúrio
Sabino, grande jurisconsulto, estamos obrigados a
favorecer sôbre todas as cousas, três: primeira, os
15 órfãos, que se nos encomendam, aos hóspedes que
se vão curar a vossa casa, e aos homens que vos
encomendam suas fazendas,—quanto maior obriga-
ção é logo a do governador de olhar muito pola do
* rei, assi por estas rezões como por todas as mais, e
20 não desbaratar-lha? Que lhe pagueis, senhor, do
vosso, que por isso vos dá muitos ordenados e vos
dá grossas comendas e outras mercês, com que po-
deis repartir com vossas obrigações e deixar a fa-
zenda do rei pera suas necessidades, que são muitas.
25 Fid. — Isso será vir eu logo à índia pera os meus
e não pera mim, se lhe hei de dar do que me el-rei
dá. E deixando isso: aí há outros muitos alvitres
com que possa enriquecer os meus, que não se-
jam dos que vós apontastes.

' 2, quatro mesadas em B.


12. Massúrio Sabino foi um grande juisconsulto ro-
mano do tempo de Tibério.
12, Maurucio em A, Maurício em B.
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Sold. — Nesses não queria eu falar por honra


dos governadores; mas já que Vossa Mercê me pica,
eu hei de gritar, se todavia o senhor secretário me
der licença e não estiver já enfadado de me ouvir,
5 ou de lhe ocuparmos o tempo, porque terá negócios
mais importantes pera que o haja mister.
Desp. — Muitos dias há que me não veo às mãos
cousa mais importante a meu cargo que esta; por-
que o que vos vou ouvindo são matérias cá a nós
tu muito escondidas; e pola ventura que por falta de
se elas não praticarem, como agora, deixa el-rei
de prover em muitas cousas que lhe importam; e do
que vos vou ouvindo faço na memória uns breves
apontamentos, que bem sei que hão de ser de muito
15 serviço del-rei. Por isso, senhor, ide com a prática
por diante, porque emquanto ela fôr desta maneira,
não posso dizer que me gasta o tempo, senão que
mo aproveita.
Sold. — Estas cousas tôdas, que me Vossa Mercê
20 ouve, são toscas, mas verdadeiras, e resistadas por
um soldado idiota, que, tirado de sua espingarda,
não sabe falar mais que verdades chãs. E se isto
que digo fôra dito por outro entendimento e estilo
diferente do meu, então vira Vossa Mercê melhor
25 as cousas em que el-rei é bem enganado. ^Donde
e por que rezão o Estado da India padece faltas,
tendo rendimento pera não passar nenhua? E isto
sei eu muito melhor entender que praticar.
- Desp. — Essas são as verdadeiras verdades; que
30 as outras, ornamentadas de retóricas, muitas vezes

20, registradas em B.
21, idiota: inculto, ignorante.

4*
O SOLDADO PRÁTICO

por afermosentar as palavras virá ua pessoa embicar


nelas: por isso, senhor soldado, procedei no que
começastes, que pode muito bem ser que vos seja
essa isenção melhor que as certidões que trazeis.
5 Sold. — As verdades faladas por interesses já
o não são, e eu polas falar não quero nenhum galar-
dão, porque o maior da vida é dizê-las; mas, Já que
Vossa Mercê mo manda, irei prosseguindo no come-
çado.

CENA V

Do segundo alvitre, que é contra os homens;


e das desordens que se nêles cometem.

io Sold. — Os famosos tiranos Fálares Agregenti-


no, Dionísio Siracusano, Jugurta Numidiano, e ou-
^ tros muitos desta sorte, que sustentaram seus rei-
nos, não foi com virtudes que tivessem, porque
eram cruéis e deshumanos, mas foi com liberali-
75 dades que em suas tiranias usavam com seus natu-
, rais, não lhe tomando o seu, porque entendiam que,
se tiranizassem vassalos própios, ou os não consen-
tiriam por reis, ou se lhes degradariam e ficariam
sendo senhores das cidades e vilas despovoadas;
20 porque obrigação do bom rei é trabalhar por enri-
quecer vassalos, porque não há rei de vassalos po-
bres que se possa chamar rico.
Esta foi a causa, por que o grande Alexandre
mandou castigar um hortelão, porque dum jardim

18, se lhes degradariam: se desterrariam voluntá-


riamente.

43
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

seu arrancava hortaliça e ervas com raízes; dando


nisso a entender que os reis não haviam de des-
truir seus vassalos tanto que viessem por isso per-
der seus reinos, e que, assi como hortelão sábio, não
5 havia de arrancar as raízes, por que por tempo tor-
nassem a brotar; nem o pastor prudente havia tros-
quiar tanto suas ovelhas, que lhe cortasse a pele:
assi o rei sábio e prudente não havia de tiranizar
tanto seus povos e vassalos que viessem a estancar.
io E entendendo isto os nossos primeiros reis de Por-
tugal, achamos que até o tempo del-rei D. Dinis,
que foi o que nisto mais se abalisou, emprestavam
dinheiro a seus vassalos pera tratarem, porque assi
os enriqueciam, e suas alfândegas engrossavam. E
15 posto que os de agora isto não façam, todavia que-
rem que se tratem bem seus vassalos, e que se não
aperte tanto com êles com costumes e imposições
novas, como alguns governadores fazem; porque
por derradeiro nas grandes necessidades nunca fal-
20 taram os verdadeiros portugueses; antes, quanto
mais agravados, então se apura sua fidelidade; pelo m
que digo que êssoutros alvitres que são contra os
homens, e que Vossa Mercê disse que não saíam da
fazenda do rei, êsses tenho eu por mais prejudiciais
25 a essa mesma fazenda que os primeiros. E Vossa
Mercê perdôe-me, que inda que governou o Estado
da índia, eu hei de dizer o que entendo.
Depois que passaram os governadores cristãos,
por cuja mão e orelha passavam os negócios dos

6. Note-se a omissão de preposição de em «havia


trosquiar».
7, que as esfolasse em B.
21, se apura mais em B.

44
O SOLDADO PRÁTICO

vassalos del-rei, e que se punham determinada-


mente a ouvir a viuva pobre, o casado necessitado,
o preso atribulado e o soldado aleijado, aos quais
davam breves despachos no joelho (porque estes
5 são os verdadeiros e bons despachos), introduziu
depois o Diabo de alguns anos pera cá fecharem-se
os governadores e viso-reis; que, pera justiça e re-
zão, haviam de ser como Lívio Druso, tribuno do
povo romão, do qual se conta que, vivendo nuas
10 casas na praça mui devassas de todas as partes,
se lhe ofereceu um grande arquitecto pera lhas mu-
dar, de sorte que ficassem encobertas; ao que lhe
respondeu: «Que lhe faria mais amizade se lhas
fizesse mais devassas, porque o ministro havia de
15 estar em lugar púbrico, e verem todos como vivia
e acharem-lhe a tôda a hora portas abertas».
Estes haviam de ser os viso-reis da India e ofi-
ciais da fazenda e da justiça, e também os dêste
reino, que não haviam de ter portas nem janelas
20 fechadas, pera que fôssem vistos de todos, e pera
a toda a hora lhe requererem justiça; mas agora, por
gravidade, a que eu quisera pôr outro nome, se fe-
cham os governadores a cinco portas, por furtarem
o corpo a negócios alheos, para entenderem só nos
25 seus; e se acertam algua hora de darem dous dias
no mês audiência às partes, inda assim é pera dano

10, devassas: devassadas, sujeitas à vista de todos.


Em B: devassadas.
12, que ficasse mais recolhido em B.
13, que antes lhe faria em B.
13, faria mais amizade: seria mais seu amigo. Ex-
pressão arcaica.
24, entenderem: se ocuparem.
26 e seg. é por amor do dano diles em B.

45
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

delas; porque não sei qual foi o primeiro infernal


que remeteu a petição do negócio, que dantes se
despachava no joelho, à mesa da Relação, onde
alguns desembargadores, por se mostrarem grandes
5 juristas, lá lhe saem com dúvidas, que do negócio
que não é nada o fazem mui grande e duvidoso;
e quando o prove requerente espera polo seu despa-
cho, que o acha tão diferente e embaraçado, reme-
te-se ao mais certo: vai ter ao apaniguado do go-
ro vernador ou viso-rei, e lá o satisfaz de feição que a
outro dia lhe dá a petição despachada como queria,
sem as dúvidas de Bártolo lhe fazerem nojo, por-
que o dar tira as dúvidas, aplaina os caminhos, faz
as leis claras e as vontades certas.
15 Mais: quer o feitor ou juiz d'alfândega e todos
os mais oficiais ir entrar em seus cargos; hão mis-
ter do governador as provisões, que se concederam
aos mais, gastam muitos dias e muitos meses por
casa do governador e do secretário sem ser respon-
20 dido; porque o que não sabe a pancada ao vinte
nem a moeda que corre, quer-se negociar ordinária-

1, infernal: homem diabólico. Adjectivo substan-


tivado.
12. Bártolo era um grande jurista italiano da Ida-
de-média muito em voga até ao século XVII.
12, lhe fazerem nojo: o embaraçarem.
16, irem em A; ir em B.
19-20, sem ser respondido, em vez de «sem serem res-
pondidos». O autor tem em mente cada um dêles. Esta
irregularidade na concordância, chamada silepse em gra-
mática, é freqflente no texto.
20-21. Entenda-se: «o que é inexperiente no jôgo e
não conhece a corrupção burocrática».
21, quer-se: quere.

tf
O SOLDADO PRATICO

mente apresentando sua petição, que é logo reme-


tida ao secretário, a qual, como lá cai, é como alma
perdida; porque, como os governadores e viso-reis
deram nesta estocada, e por aqui determinaram en-
5 riquecer os seus, furtarão também a água ao secre-
tário, e, quando vai com seus papéis, não lhe falam
a propósito às petições das partes.
E vendo os homens a dilação, e sendo aconselha-
dos do caso, fazem novos apontamentos, guarneci-
10 dos de alcatifas finas, colchas ricas, cadeas d'ouro,
e outras cousas desta sorte, com que se vão ao ca-
mareiro e privado, que os festeja e lhe diz que em
tudo pede justiça; e assi ao outro dia lhe dão os
apontamentos despachados como êle quer, e os mais
15 dêles em prejuízo da fazenda do rei; porque as pe-
ças que deram hão de trabalhar depois polas forrar;
porque inda que meta a mão na fazenda do rei
0 tudo o que quiser, tem entendido que, como chegar
com mãos pesadas, que se lhe hão de despejar as
20 portas.
Esta estocada entra mais na fazenda do rei, quan-
, do se despacha um capitão pera ir entrar em sua
fortaleza, e assi também lhe custa mais, porque lhe

2, como lá cai: apenas lá cai. .


4, deram nesta estocada: descobriram êste golpe,
esta manha.
5, furtarão a água: enganarão ? Couto parece alu-
dir aqui a uma superstição popular, que a Câmara de
Lisboa procurou abolir em 1385. Cf. Fernão Lopes, Cró-
nica de D. João I, Parte II, cap. 41. Em B: furtando
também a Goa ao secretário.
7, prepósito é a lição corrente em A.
13, pede. em lugar de pedem. Logo a seguir usa o
verbo e sujeito no singular.

47
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

monta mais; levam duas resmas de papel de pro-


visões, uas contra el-rei, outras contra o povo; e assi
as desordens, tiranias e opressões que com êles
usam, só entre bárbaros se acharam, das quais
5 adiante melhor trataremos.
As provisões que lhe passam são que lhe fazem
mercê de três e quatro mil cruzados nos dereitos
de suas fazendas, à volta dos quais findam dez e
doze mil. Fazem contratos de cousas que há na terra
io para onde vão, e no preço dêles lá vão outros tan-
tos mil pardaus del-rei, que êles logo tomam d'ante-
-mão; e o que compram pera el-rei sempre é o peor.
Pedem que ninguém possa mandar nau ou navio
pera tal porto senão êles, como se o mar e navega-
15 ção não fôsse comum a todos; com o que impedem
o comércio dos moradores que sustentam as forta-
lezas.
Emfim não sei pera que me canso: passam-lhe,
senhores, provisões pera tiranizarem ao próprio rei
20 e a seus vassalos, que nunca vi outros mais aper-
reados que os que vivem pelas fortalezas, porque,
té de suas própias mulheres não usam sem licença
do seu capitão, porque alguns querem só usar de
algõas; e eu me achei em ua fortaleza, onde me afir-
25 maram que, porque um morador se queixava que
um capitão lhe tomava sua mulher por fôrça, o
mandou êle chamar a sua casa, e com ua cana lhe
dera muitas pancadas, porque o infamava do que

6-7, que lhe fazem ainda três em B.


11, pardaus: moedas de ouro (360 réis) e de prata
(300 réis) correntes na Índia.
28 e seg. Entenda-se: «porque dissera o que era sabido
por tôda a gente».

48
O SOLDADO PRATICO

estava na praça. Ora por aqui poderá Vossa Mercê


julgar o que será tudo o mais.
Fid. — Não vos posso negar tudo o que dizeis;
mas dcomo quereis vós que negue eu a um fidalgo,
5 com que me criei, e que tem servido o rei muitos
anos com despesas de sua fazenda, as mais dessas
cousas que apontastes ? — pois vejo que é rezão
que no colher do fructo de seus trabalhos, um gover-
nador os favoreça, inda que seja um pouco contra
io a fazenda do rei,porque não é êle tão enganado que
não saiba tudo isso, nem será tão pouco amigo de
seus vassalos, que não folgue de enriquecerem em
suas fortalezas, pois vê que muitas vezes tornam
a gastar muita parte em seu serviço, pelo que dis-
15 simula com tudo; porque por derradeiro são fidal-
gos, a que êle tem obrigação.
Sold. — A tudo hei de responder a Vossa Mercê:
4 quanto ao que diz, que se não pode negar o que
apontei ao fidalgo, que serviu muitos anos com des-
20 pesa de sua fazenda, estava isso muito bem, quando
êles em Portugal venderam muitas quintãs e moios
, de renda pera vir gastar nêsse serviço; mas os mais
dêles vem de Portugal sem um cruzado, e inda sem
ua capa, e logo começam a puxar pela mercê do
25 governador, pelo empréstimo do casado, que foi
da obrigação de seu pai, ou pelo dq outro, que pre-
8, fructo em A e B. Não se sabe se seria um lati-
nismo ou se aquele c representaria antes um t. Inclinamo-
-nos para a primeira hipótese. Por isso mantivemos o c,
porque poderia ser pronunciado.
25 e seg. que foi da obrigação de seu pai: que deveu
favores a seu pai.
26 e seg. pelo do outro, que pretende de lhe casar com
a filha: pelo empréstimo de dinheiro do outro, com cuja
filha pretende casar.

49
4
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

tende de lhe casar com a filha, a cuja conta lhe


gasta tôda a fazenda, não em sustentar soldados
nem ter casas d'armas, senão em passear por Gôa
5 em cavalos gordos a mór parte do ano; porque, qua-
tro meses que andam no Malavar, lhe dão logo fla
fusta com ordinária e mercês que lhe sobejam.
Por onde pode Vossa Mercê dizer que o rei é o
que gastou, e o casado néscio, que lhe deu o seu
10 à conta de lhe casar com sua filha, que fica com ela
infamada e sem dinheiro; e o que peor é: que cuidam
estes senhores, como põem os pés na Índia, que o
mundo é só pera eles, e que tudo é seu, e que o em-
préstimo que os outros lhe fizeram lho deviam por
15 fidalgo.
E sucede aqui Qa cousa muito graciosa: que al-
guns dêstes são bastardos, filhos de algum fidalgo
criado lá na Beira, que nunca o viu o rei nem lhe
souberam o nome, os quais êle toma, por via de
20 algum parente, por fidalgo; e, tirado da casa de um
vilão lavrador, donde se criou, vem cá em quatro
dias monarquiar; e eu, que tive muito melhor cria-
ção que êle, e que passei a mocidade pelas caixas
da guarda-roupa del-rei, que me soube muito bem
25 o nome, se me despacham de ua feitoria, dua forta-
leza, em que êle vem a ser capitão, trata-me como
se eu fôra o vilão que o criou e tudo é que «roubo
el-rei» à bôca chea, e êle é um ladrão desaforado,
que, pelo menor insulto que comete, merece mil

7, ordinária: ordenado, pensão estabelecida.


22, monarquiar: fazer figura de rei, basofiar.
26-28, em que êle é um ladrão desaforado em B. Fal-
tam-lhe pois duas linhas.

50
O SOLDADO PRATICO

mortes onde houver justiça; porque nunca pagam


dereitos de suas fazendas e vendem a el-rei o arroz,
o salitre, a madeira, e tôdas as mais cousas desta
sorte por preços excessivos, sem serem comprados
5 por seu dinheiro, porque as mais destas cousas as
tomam por fôrça aos mercadores que vão às suas
fortalezas pelo preço que êles querem; e com tudo
o que vem a seu porto não poder comprar senão
êle e de sua mão haver o rei e o povo pelo que êles
io querem, sem haver temor de Deus nem do rei, com
outras infinitas tiranias, que eu direi à orelha, se
me preguntarem.
E o prove de feitor, se cuspiu na igreja, o tem
por excomungado, e não querem que ao sol, que
15 naceu pera todos, se aquente a êle, nem que beba
água de fonte comua o que pola ventura lhe ajudou
a ganhar a fortaleza, com muitas feridas e com
• ser o primeiro que se lançou na galeota dos mala-
vares; e o fidalgo da briga ficou são, que não quer
20 Deus que se derrame o sangue dêstes senhores.
E tanto vai isto em crescimento, que hão de vir
• os homens a não aceitarem feitorias, porque é acei-
tar infâmias, deshonras e afrontas de um capitão,
que eu depois não posso matar, não porque me
25 falte pera isso ânimo, senão porque acabo meu car-
go, vou dar minha conta: um se vai pera França,
outro pera Alemanha, vão-se gastando os anos, fa-

6, moradores em B.
7, e com: e junte-se a isto o facto de.
14-15, que o sol que nasce para todos o aquente se-
não a êle em B.
16, fonte comua: fonte pública.
19-20. Note-se a soberba ironia' dêste passo.

51
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

zendo-me velho, e esquecendo-me tudo por viver.


Isto baste quanto a esta matéria, pola qual, se al-
gum dia me preguntarem, direi o que agora calo,
por certos respeitos.
5 Ora quanto a Vossa Mercê dizer que o rei não
é enganado nas mercês desordenadas, que fazem os
viso-reis aos fidalgos e capitães, que vão entrar em
suas fortalezas, e que, pois o consente, o há por
bem, a isso respondo que em nenhua cousa o é êle
io mais; porque, se me vós disséreis que era tanto o
cabedal da Índia que abrangia pera tudo, então po-
deria isso ser; mas quando êle é tão estreito, que
muitas vezes por êstes desmanchos vem a padecer
tantas necessidades, que muitas vezes vi deixar de
15 fazer armadas muito importantes por falta de di-
nheiro, pelo que então se socorre aos casados po-
bres e desbaratados em tirar empréstimos e tomar
mantimentos do terreiro sem o pagarem, a que tudo
se pode mais chamar tirania que necessidade,—então
20 fôra muito bom que se acharam no cofre os dez mil
cruzados que se deram de alvitre ao capitão d'Or-
muz, outros tantos ao de Malaca, e outros a outros
das mais fortalezas, porque êsses não fazem aos
fidalgos ricos e ao Estado muito pobre.
25 Donde nace que por estas faltas se socorrem os
governadores a novos trebutos e imposições, e, dei-
xando as cousas da guerra à ventura, fazem gran-
des armadas à custa dos homens, em que alguns
dêles se embarcam, não a fazer fortalezas em Chalé
30 ou em Calecut, nem a tomar Surrate, mas a escalar

17, a tirar em B; em A própriamente: e tirar.


18, terreiro: depósito de mantimentos.

5*
O SOLDADO PRATICO

as fortalezas do norte, xaquear os vassalos do rei,


pôr-lhe mais dereitos em suas fazendas, acrescen-
tar-lhe imposições novas no arroz e bate das aldeas,
que pagam o fôro; e assi por ua parte tiram do san-
5 gue do povo vinte mil cruzados, que cada ano acre-
centam à renda do rei, e por outra despendem na
armada em que vão destruir cristãos cem mil cru-
zados; e, o que peor é, que desacreditam o Estado,
porque melhor sabem os imigos estas cousas que
ro nós próprios; e assi não fazem já mais conta de um
viso-rei que de um pau.
Diferente fôra, o dinheiro que se despendeu nesta
armada estar no cofre do tesouro; porque as tais jor-
nadas nem Deus as consente nem o rei as quer,
75 antes estranhará muito, sabendo as necessidades de
seu povo, porque obrigação de honra é desalivar
os vassalos de trebutos e imposições.
• Gentio era Dario, rei da Pérsia, e, constituindo
certos trebutos a seus povos, chamando os prinçi-
20 pais lhe preguntou se eram grandes. Repondendo-
-lhe que eram honestos, lhe mandou ainda tirar a
• metade; porque era tal sua bondade, que aquilo
que a seus vassalos parecia moderado, lhe parecia
a êle muito. Pois êste reino mui ricos tinha, em que
25 podia pôr largos tributos; mas entendeu a grande
obrigação que os reis tem de sustentar seus vassalos,
como temos da Escritura em ua fala, que Acab,
rei de Samária, fez aos israelitas,na qual lhe disse

1, xaquear: causar prejuízo, destruir. Têrmo do


jôgo do xadrez.
3, bate: arroz em casca.
16, desalivar: aliviar. Formação parecida à do po-
pular desinquietar.

53
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

não havia cousa mais conveniente pera o rei que


sustentar e defender seus vassalos e povos, inda que
fôsse à custa de seu própio sangue.
E assi por êste amor e bondade lhe aconteceu
5 que, estando cercado del-rei Adado da Síria e del-rei
de Damasco com muitos'grandes exércitos, e posto
em grandes desconfianças, que, sintidas por 6eus
vassalos, querendo arriscar a vida por salvar o seu
rei, saíram trinta esforçados mancebos a vigiar ao
io arraial dos imigos, e, sintindo-os dormindo, deram
nêles com tanto esfôrço, que com morte de muitos
os puseram em tamanho desbarato, que quando el-
-rei Acab saiu, já os imigos eram todos perdidos:
que desta maneira se arriscam os vassalos favore-
15 eidos! De que pudera dar outros muitos exemplos,
que deixo, por não enfadar.
E, concluindo na matéria dos alvitres contra os
homens, digo que quem quer ser despachado de
algua cousa fale com a bolsa; e chegou isto a tanto,
20 que pôr um cumpra-se em ua patente a um homem
meu parente pera ir entrar em um cargo, de que
era provido, nunca o pôde alcançar senão com dar
Oa colcha a um privado de um governador, sendo
obrigação sua pôr aquele cumpra-se na patente de
25 el-rei a todo tempo que lha apresentarem.
Desp. — Estou pasmado de ouvir tanta cousa,
de que cá estamos todos bem inocentes! Peço-vos,
por mercê, que vades por diante, por vos não inter-
romperdes do discurso que leváveis.

20, patente: carta de nomeação para um cargo civil


ou militar.
27, inocentes: ignorantes.

54
o SOLDADO PRÁTICO

CENA VI

Do terceiro alvitre, que é contra Deus, e de


muitas cousas outras, em que os governado-
res são dissolutos.

Sold. — Agora me cabe o terceiro alvitre, que


é contra Deus, porque em muitas cousas encontra
sua divina bondade e justiça: no qual me deterei
o menos que puder, porque em outros lugares, se
5 tiver tempo, tratarei do que agora me faltar.
Primeiramente, tanto que um viso-rei chega à ín-
dia que começam a correr os alvitres a seus apani-
guados: os primeiros são as ouvidorias das forta-
lezas, a que acodem logo muitos devotos mais das
10 mangas da justiça que dela; e lá se metem com
quem os pode negociar, e, prêço apreçado, con-
forme para onde se requerem, são despachados; de
• modo que estas varas renderam ao camareiro ou
apaniguado três, quatro, cinco mil cruzados, senão
15 quanto me afirmaram que houve vara que montou
mais de dous mil, afora peças e brincos.
• E com tanta facilidade vão estes julgar, sem o
chanceler os examinar, como se tiveram cursado
muitos anos o Dereito, e alguns pola ventura que
20 não sabem bem lêr e escrever; e coitada da justiça,
em que poder se vê! Porque o que compra a vara
há de tirar a limpo o que deu por ela e o com que
se há de sustentar três anos, e inda há de ajuntar

2, encontra: vai de encontro a, é contrário a.


14-15, senão quanto: além de que, e até mesmo. O
sentido desta locução, muito da maneira de Couto, não
está ainda bem determinado.

55
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

pêra quando vier outro viso-rei acudir àquela ga-


lhofa; porque há alguns tão grandes negociadores
disto, que ficam tendo estas varas de juro, e correm
todas as fortalezas, como quem vai a vindimar suas
5 vinhas, e a qualquer que chegam com a vara na
mão, são os compadres tantos, os empréstimos
pera China, as peças e presentes, que não cabem
em casa; e mal polo que não tem que dar, que êsse
é o que vem pagar o pato!
io Deixemos as desordens e injustiças que aqui suce-
dem, que é nunca acabar; porque nestas cida-
des quem mais pode tem mais justiça e nunca nesta
tea de aranha se prendem senão os mosquitos; por-
que baneane, que orinou em cócoras, é logo conde-
15 nado; o gentio que pelejou com outro e lhe disse
ua ruindade, é logo metido em ferros; e o compadre
e o rico, que quebraram os bofes a êsse gentio e lhe
tomaram sua fazenda por fôrça, e o tiveram preso
em casa, é cousa leve, pode-o fazer, que tem licença
20 pera tudo. O mouro, que no seu Moçafo jurou falso,
que seja preso e que pague pera as obras da justiça;
e o compadre, ou o que lhe fez o empréstimo, que

6, compradores em B.
9, pagar o pato: ficar prejudicado, pagar as favas.
Em B: pagar o fato. Veja Sá de Miranda, Obras. II, 84,
1. 12 («Clássicos Sá da Costa»),
10, Dissemos em B. A redacção primitiva seria
dixemos?
14, baneane: comerciante indiano, que segue a seita
religiosa do jainismo, célebre pelo seu grande amor para
com os animais.
17, quebraram os bofes: cansaram com demandas
judiciais.
20, Moçafo: Alcorão, livro religioso dos árabes. Em
A: Mosafo.

50
O SOLDADO PRÁTICO

perjurou no juízo nos Santos Evangelhos, que não


pague ua tanga nem o que devia a quem o deman-
dou.
O feito do mouro nacodá, ou capitão da sua nau,
que está pera ir pêra Ormuz, e que por ventura não
tem justiça contra o mercador sôbre os fretes ou ou-
tros contratos que antre êles há, com duas alcatifas
que lhe dá, com lhe levar algua fazenda fôrra de
fretes, lhe sobeja a justiça poios telhados. E isto
inda em feitos de muita importância, a que o pa-
ciente não pode falar, e vai com sua apelação à mór
alçada gastar sua fazenda, onde pola ventura e sem
ela lhe fazem pouca justiça, ou ao menos vagarosa;
de maneira que o que demandava dous mil cruza-
dos, que lhe deviam, quando por fim vem haver
sentença e faz conta com a bôlsa, não lhe ficaram
quinhentos líquidos, que a demasia lá se foi em gas-
tos e em peitas.
Mais: nas inquirições e devassas do amigo, que
matou o homem, ou em que foi adúltero, como o
ouvidor e o inqueridor, em lugar que a testemunha
diz vi, dizem êles ouvi; onde há de dizer sim, dizem
não; e na defesa lhe recebe todos os artigos dela,
os quais se provam como êle quer; e quem morreu,
morreu, e o matador passea logo, e o que é pior:

a, tanga: moeda indiana, que valia cêrca de três


vinténs.
4, feito: processo.
4, naeodá: capitão de navio; necodá em B.
4-9. Note-se o irregular da construção dêste período,
aliás cheio de enérgica expressão. Estas irregularidades,
anacolutos e silepses, devem-se em grande parte ao carác-
ter vivo, oral, da linguagem de Couto nêste livro.

57
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

que se dizeis a um dêstes que olhe o que faz, e lhe


perguntais como deu aquela sentença tão injusta,
responde-vos muito desagastado: — Lá estão os
desembargadores, que a farão, que eu não entendi
5 mais. E não se lembra o infernal que tôdas as per-
das que deu à parte e tôdas as despesas que lhe fez
fazer nas apelações, que lhas deve, sô pena de se
ir ao inferno.
Basta que êste é o mór sinal que eu tenho da fn-
10 dia não prevalecer: venderem os governadores os
cargos da justiça a quem a há de vender tão clara-
mente; porque nunca o Império Romão começou
a declinar, senão depois que o imperador Cómodo
Antonino XIX, que sucedeu a Marco Aurélio, cento
15 e oitenta anos depois da vinda de Cristo, começou
a vender os magistrados e ofícios públicos por di-
nheiro, que foi o primeiro que ensinou êste caminho
pera se os reinos perderem.
Fid. — Isso não pode ser menos, porque na ín-
20 dia não há tantos desembargadores ou letrados ju-
ristas, que possam servir tantas fazendas; e já que
hão de dar essas varas a Pedro, que não é letrado,"
jque monta mais dar-se a Joane? Que essas injusti-

3, desagastado: agastado, ofendido. Compare-se


com o têrmo desalivar. a pág. 53, 1. 16.
4, que a farão: que farão justiça.
7, sõ: sob.
" 14-15. Cómodo Antonino, filho de Marco Aurélio An-
tonino, foi própriamente o 18.0 imperador a contar de
Augusto.
15, cento e oitenta e dous anos da vinda de Cristo
em A.
18, para seus reinos se perderem em B.
23, Joane: João. Forma antiga. Em B: João.

58
O SOLDADO PRATICO

ças que dizeis, o governador não lhas manda fazer,


nem êle quer que se meta ninguém no inferno. E
quanto ao que se dá ao meu camareiro e ao meu
criado, que são duas colchas, outras tantas alcati-
fas de bofatás e outros brincos de ouro ou de prata,
isso é nada, pode-os levar, que eu tenho teólogos,
que me aconselham e dizem que é vender privança
e não cargos; mas é não haver outros homens mais
suficientes que os sirvam; que, quando os houvera,
inda nisso tinham algua rezão.
Sold. — Oh! de quanto privado dêsses e de
quanto teólogo, que isso aconselha (se assi é, o que
eu não cuido) está o inferno cheo! Que quer dizer
vender privanças? Em que lei divina ou humana
se achará que, por me fazerem pagar a minha nau,
que me compraram pera el-rei por cinco mil par-
dáus, que hei de dar ao privado três mil? Isso é in-
famar os teólogos e fazê-los autores de roubos. Fa-
çam os governadores embora suas sem-justiças, e
não dêm por autores os religiosos, que é outro pe-
cado sobre si; e assi ficam fazendo dous de mui
grande restituição, um do dinheiro e outro da fama.
Ora, quanto a dizerdes que se repartem essas va-
ras por êste modo, por não haver outros homens
mais suficientes, a isso respondo que há muitos
anos que se não costuma buscar homens pera os car-
gos, senão cargos pera os homens. E quem os quiser

5, bofatás: tecidos finos de algodão, fabricados


principalmente em Baroche. Em B: bofetás, que é a
forma mais usual.
9, quando os houvera: ainda mesmo que os hou-
vesse.
27, senão: mas sim.

59
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

buscar, achá-los-á; mas não se acham, porque se


perdem os privados dos viso-reis em se êles acha-
rem; porque êsses não hão de peitar, mas hão-lhe
de rogar e fazer muitas mercês, por que a neces-
5 sidade lhes não seja ocasião de cometerem em seus
cargos ua desordem. O que entendendo bem os car-
taginenses, ordenaram que todos a que se dessem
os magistrados fôssem ricos; porque, sendo pobres,
não poderiam fazer justiça verdadeira, por que pola
io ventura, forçados da necessidade, não fizessem al-
gum desatino.
Busque o governador homens ricos, que os há
desinteressados, faça-lhe honras e mercês, achará
quem administre justiça aos pobres, queêstessãoaos
15 que ela falta, e em que o rei há de ter mais o ôlho:
em os prover, administrar e defender dos grandes,
porque os pobres e pequenos são os falcões e açores,
com que os reis caçam e roubam os céus.
Conta Rafael Volaterrano de Amadeu, duque de
20 Sabóia, casado com ua filha de Carlos VII, rei de
França, que foi príncipe que mais olhou e susten-
tou pobres que todos os do seu tempo, e com êles,
gastava a mór parte de sua fazenda, que, preguntan-
do-lhe um dia um embaixador polas aves e cães
25 com que caçava, porque em Sabóia havia grandes
montarias e volatarias, que, levantando-se com êle
a ua janela, lhe mostrara muitos pobres, a quem
seus esmoleres andavam repartindo esmolas, e lhe "
dissera que aquelas eram as aves e cães, com que
30 esperava de caçar os céus: palavras de cristão e de

8, magistrados: cargos da magistratura.


19. Rafael Volaterrano, humanista da Renascença.

60
O SOLDADO PRATICO

príncipe justiçoso! Porque pera os pequenos há de


estar o rei e governador sempre aparelhado pera os
favorecer e lhe fazer justiça; porque os poderosos
e soberbos todo o mundo é seu, não tem para que
5 haverem mister quem olhe por êles, nem quem lhe
faça justiça; que a êstes a costumam fazer tanta,
que ficam sendo injustiças contra os pobres.
Vamos a algum exemplo de reis favorecedores de
pobres. Flávio Suintila, filho de Recáredo, rei dos
io godos, foi tão favorecedor e amador de pobres, tão
caridoso e humano com êles que não teve outro no-
me senão pai de pobres: nome mais alto e grandioso
que de rei, e de mais majestade que de emperador,
que são títulos que homens da terra inventaram; mas
15 pai de pobres, título do céu, apelido de Deus, a
quem só chamamos pai, e ao qual nome se êle move
mais de misericórdia que a todos!
Pois a êste rei pai, de que imos tratando, fez Deus
• Nosso Senhor tantas mercês que lhe deu vitória
20 contra os rucones, venceu e desbaratou os romãos,
e os deitou fóra de tôda a Espanha, por onde me-
receu de ser senhor de tôda ela, até do reino de Por-
• tugal; e assi viveu nêste império muitos anos em paz
e concórdia, porque desta maneira paga Deus a
25 quem o agasalha e favorece em seus pobres. Suce-
deu-lhe seu filho Richimiro, mau, perverso, desca-
ridoso pera com os pobres; polo que veo logo a per-
der os reinos, que Sesinando com o favor dos france-
ses lhe tomou.
30 Ora zombai com desfavorecer os pobres! E pode

20, romãos: romanos.


23, e ai viveu em A, que nos parece êrro.

'6l
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

muito bem ser que por isso castiga Deus Nosso Se-
nhor o Estado da Índia: polo pouco caso que os
governadores fazem dêles; de maneira que pelas de-
vassidões e injustiças que contei, parece que abre
5 Deus Nosso Senhor sua mão daquele Estado, pela
soltura com que vejo viver a todos; porque assi
vivem todos à sua vontade, tanto me dá mouro,
como gentio, ou judeu, que se lhes não dá de come-
terem culpas, porque sabem que logo se remirão
io delas com dinheiro.
E por outras injustiças e devassidões como estas
esteve o reino de Castela quási perdido em tempo
del-rei D. Henrique, quando aquele excelente filó-
sofo e insigne poeta Fernão de Pulgar fez aquelas
15 graves e sentenciosas trovas, chamadas Mingo Re-
vulgo, que por ver ir tudo perdido e viverem todos
à sua vontade, sem temor de Deus nem obediência
da lei, de que o rei tinha tôda a culpa, o reprende
naquela trova, que diz assim:
20
Modorrado con el sueno,
no lo cura de almagrar,
como quien no espera dar
cuenta dello a ningun dueno;

15. O Mingo Revulgo é uma sátira politica e social


aos desmandos do tempo de Henrique IV de Castela. Foi '
muito conhecida em Portugal, e até a primeira edição
conhecida parece ter sido impressa no nosso país.
19 e segs. A trova alude ao povo, representado sob figura
de um rebanho abandonado pelo seu pastor, e no qual já
se não distinguiam as ovelhas cristãs das judias e mouras.
20, moderado em B.
21, almagrar: pôr sinal de almagre nas ovelhas, para
as distinguir.

62
o SOLDADO PRATICO

quanto yo, no amoldaria


lo de Cristóval Mexia
ni dei outro tartamudo,
ni dei meco moro agudo:
todo va por una via.

Em lhe chamar modorrado ao rei dá bem a en-


tender que o rei que não cura de seu povo, e que
lhe não faz administrar justiça, que está dormindo
um sono de descuido e com femesis de doudo; por-
que natural é do doudo romper-se e estragar-se:
assi o rei ou governador, que deixa estragar e des-
baratar o seu povo, está doudo e franético; porque
se os reis houveram de dar conta a alguém de seus
descuidos, não houvera tantas desordens; ou se
castigassem um governador pelas que faz na índia,
esperaram os homens haver algua emenda.
Querendo os lacedemónios prover nas desordens
dos reis, pera que governassem com mêdo dos ho-
mens, quando o não tevessem de Deus, ordenaram
aqueles éforos, que eram uns magistrados novos,
como ditadores de Roma, que tinham inteiro domí-
nio e potestade sobre todos os outros príncipes e
governadores; os quais serviam de desagravar os
pequenos e acudirem às injustiças que os reis fizes-
sem a seu povo. E o primeiro que teve êste cargo
foi Elato, cento e trinta anos depois de Licurgo,
sendo rei de Lacedemónia Teopompo; o qual era
tão bom e moderado que consentiu êste novo ma-
gistrado, tendo mais ôlho ao bem e quietação de
seus vassalos, que a seu particular gôsto e inte-

i, amoldar: o mesmo que almagrar, distinguir.

63
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

resse. E sendo reprendido de sua mulher, porque


consentia em seu reino outrem que mandasse mais
que êle, que seria causa de o deixar abatido a seu
filho, respondeu que antes lhe ficaria mais seguro
5 e durável quanto fôsse mais confirmado em boas
leis e seus vassalos menos avexados.
Estes eram os reis, que se podiam chamar pais
do povo; e não menos de louvar são os nossos cris-
tianíssimos reis de Portugal, que, com o mesmo zêlo
10 de pais, ordenaram também juízes de sua conciên-
cia pera desagravarem seus vassalos, que também
respondem aos éforos dos lacedemónios. E em-
quanto êste bom santo costume durou, tinham os
vassalos sempre aquele último remédio, ao menos
15 na Índia, onde é mais necessário que no reino, por-
que nela os viso-reis e governadores são supremos.
E emquanto nela houve esta Mesa de Conciência,
estavam êles algua cousa enfreados, e não viviam
tão livres.
20 E tornando à trova de Fernão de Pulgar: dava
a entender andar naquele tempo tudo tão confuso
que se não atrevia a diferençar os cristãos, a que
êle chama Cristóval Mexia, porque adoram o ver-
dadeiro Mexia, já vindo, nem os de outro Tarta-
25 mudo, pelos judeus, que entende por Moisés, que

17. A Mesa da Consciência era uma Junta Consul-


• tiva do rei, composta de eclesiásticos e que se pronun-
ciava sôbre os costumes e a ortodoxia.
20 e segs. Couto segue nesta explicação o comentário de
Hernan de Pulgar, que não foi talvez o autor da sátira.
23-24, porque adoram o verdadeiro Mexia não vem
em B.
24, Mexia: Messias.

^4
O SOLDADO PRÁTICO

era tartamudo, nem do meco mouro e agudo, pelos


mouros, que seguem Mafamede, que é venerado
na casa de Meca; de sorte que se não diferençavam
uns dos outros, porque todos andavam e viviam a
seu gôsto.
Ora tornemos às sem-justiças dos governadores.
Direi outra, que hei por mór que todas as que se
fazem contra Deus. Morreu o cidadão rico e honra-
do: deixou a filha com doze, quinze e vinte mil cru-
zados; faz o criado do governador disto alvitre e
pede-lhe que o case com ela, o que êle faz com mui-
tas fôrças que usa e com grandes promessas que faz
ao juiz dos órfãos e ao tutor, senão quanto houve
um, que prometeu o cargo ao juiz por outros três
anos, e lá teve modo com que o meteu na eleição,
e o fez sair nos pelouros, contra os previlégios e li-
berdades da cidade; e assi a moça, filha do cavaleiro
muito honrado, que pudera casar com outro rico e
remediado, fica casada com um criado seu lá do
mato, sem partes nem calidades; e muitas vezes por
esta causa vem a fazer mil desmanchos.
Mais: fica outra órfã rica em poder do tutor, com
outra pancada de dinheiro; vem outro criado a pe-
di-la; e tanto anda o governador sôbre êsse negócio
que entra em partido com o tutor, que, de quinze
mil pardaus que a moça tem, lhe dará dous mil; e
por aqui a leva. E nunca até agora vi nenhum viso-
-rei tomar a filha do cavaleiro honrado muito pobre
(que há muitos na Índia sem remédio), e casá-la

1-2, nem os mouros em A.


13, senão quanto: e ainda, e até mesmo.
23, pancada: grande porção.

65
5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

com o seu criado rico pela emparar, porque não


tratam senão de o fazer ao seu criado. E o mesmo
que digo destas órfãs, digo da viuva rica, que lhe
ficaram aldeas de dous mil pardaus de renda, a qual
ç o governador casa com o criado e lhe abate no fôro
e tira a obrigação do cavalo; e além da ofensa que
comete contra Deus em usar de fôrça, faz furto con-
tra o rei, no que lhe abateu no seu fôro; de ma-
neira que nestes casamentos não há livre alvedrio,
10 que até dêle são os governadores senhores absolu-
tos.
Desp.— Muito me contastes; graves cousas vos
ouvi: não sei como Deus Nosso Senhor dissimula
tanto com tanta torpeza! E assi corre isso? Digo-vos
15 que tão escandalizado fico dessas cousas, que a pri-
meira vez que delas posso fazer lembranças a el-rei,
não deixarei de o persuadir a que rijamente castigue
tamanhas dissoluções, principalmente nesta cousa
dos casamentos; porque não é justiça que a filha do
20 cavaleiro mui honrado e com muito dinheiro case
dessa sorte com criados pobres e tanto além de-
las. Realmente, que não sei como os não remorde
a conciência.
Sold. — Perdôe-me Sua Mercê: assi como ospoe-
25 tas contam que os que passam aquele rio Lete per-
dem a memória de tudo, assi os mais dos viso-reis
em passando o Cabo de Boa Esperança a perdem

I, rico. E o mesmo em B.
3, de o fazer: de fazer rico.
6, a obrigação do cavalo: a obrigação de servir na
guerra com o seu cavalo.
21, tanto além. Hoje diríamos: «tanto aquém». Em
A: a ri delas.

66
O SOLDADO PRÁTICO

de tudo, e não sei se diga que o temer a Deus e ao


rei.
Fid. — Folgo que pera nenhua dessas cousas que
tratastes tive tempo; porque nesses poucos meses
5 que governei, não me veio nada disso ter às mãos;
e que me viera, nisso que dizeis dos casamentos,
também o fizera, porque eu sou obrigado a honrar
os meus e fazê-los ricos.
Sold. — Isso é verdade; mas honrá-los com des-
10 honrar o próximo não pode Vossa Mercê fazer; por-
que assaz de afronta se faz ao homem, inda que já
morto, em lhe tomarem sua filha e a darem a quem
a êle não houvera dar, se fôra vivo, com a fazenda
que êle adquiriu com tanta lançada, com tanto in-
15 fortúnio e trabalho, pera a dar a sua filha e casá-la
a seu gôsto com quem a honre e com que se honrem
os parentes. E se aquela lei, que fez Sólon, como
Plutarco em sua vida conta, defende com tanta rigo-
ridade que nenhum vivo seja ousado a dizer mal de
20 nenhum morto, [quanto mór pena terá logo, não-o
que diz dêle mal, senão o que lhe faz mal na honra
e na fazenda!
Deixemos a ofensa que faz contra Deus, que é o
principal, pois vai contra os santos Concílios, prin-
25 cipalmente o Tridentino, que defende que se não
use de fôrça nem poder em nenhum casamento;
porque há de ser com consentimento de ambas as
partes; e muitas vezes nem a órfã tem idade para
consentir nêle, nem lhe dão lugar pera isso. E por-
30 que cuido tenho já enfadado, deixarei a matéria
do quarto alvitre pera outro dia, porque também
terei tempo de correr alguas cousas pola memória.

16, e com que se honrem os parentes não vem em B.

67
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

Desp. — Não são as cousas que tratais pêra en-


fadar, senão pera chorar; por isso, por amor de
mim, que vades por diante com o que tratais: por-
que, segundo o gôsto e proveito que tenho de vos
5 ouvir, parece que me vai fugindo o tempo.
Sold. — Pola bôca dos pequenos descobre Deus
muitas vezes grandes segredos, que encobriu aos
grandes e sabedores. Aí não há mais alta filosofia
que a verdade. Esta, dita pola bôca de um tão pê-
ro queno como eu, faz os mesmos efeitos que houvera
de fazer sendo pronunciada pola dos sabedores da
terra; e neste negócio não me fundo em mais que na
verdade; que ela é a que dá fala a mudos e ensina
os ignorantes; e por isso irei com as matérias por
15 diante.

CENA VII

Do quarto alvitre, que é contra todos; e que


cousa são dívidas velhas.

Sold. — Quando tratei dos alvitres contra os ho-


mens, toquei das desnecessárias idas dos governado-
res ao norte, e da grande opressão que com isso dão
aos povos, e das injustiças que se usam, de que
20 algíias deixei pera esta parte, em que determinava
tratar dos alvitres que são geralmente contra todos,
convém a saber: contra Deus, contra o rei e contra
os homens. jQue lhe parece a Vossa Mercê que
torpezas e fealdades se cometem nas míseras cidades
25 que eles vão visitar?
Em se o governador aposentando em qualquer
delas, se não fôr muito continente, não faltam curio-

68
O SOLDADO PRATICO

sos que lhe dêm por alvitre que Foão tem ua filha
fermosa; e que Foã, que traz requerimento com êle,
que é cortesã e bem disposta; que a outra, que tem
seu marido preso, que é muito bem parecida. E
5 êstes alvitres não os traz por aí qualquer coitado;
mas acontece alguas vezes ser pessoa tão grave e de
tal hábito e estado, que por temor de Deus me calo.
A mim me afirmaram que houve governador ou
viso-rei, que pediu de rosto a rosto a um homem
io pobre, que lhe pedia um ofício, ua filha sua que
tinha mui bem assombrada; a que lhe o prove res-
pondeu : — i Isso hei eu de fazer, senhor ? Nunca Deus
tal queira! Minha filha não tem outra cousa de seu
mais que ser honrada. Ora vêde que bofetada esta
75 pera um governador e pera se não meter logo capu-
cho, ou ao menos dar um bom casamento a tal pai
pera tal filha! Não me lembra o que nisso passou;
que eu me achei naquela cidade, e assi ouvi contar
a pessoas graves: não quero ficar em restituição de
20 nada.
E se o governador ou viso-rei da índia não tiver
tanto resguardo em si como Alexandre, que não
quis ver as filhas de Dario, segundo a maldade é
grande, ficará rendido e desbaratada a rezão; e o
25 entendimento ficará prostrado aos pés de seus apeti-
tos, que é o mais abatido estado que pode ser; por-
que mór glória é vencer-se um homem a si própio
que tomar grandes e poderosas cidades. E se os sol-
dados virem que o seu capitão se deixa vencer da

1, Foão: Fulano.
2, Foã: Fulana.
11-12, a que lhe respondeu o pobre: Que minha filha
não tem outra cousa... em B.

69
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

moça de Cápua, como o seu Anibal, também se dei-


xarão esquecer de sua obrigação.
Tanto resguardo tinham nisto os antigos capitães,
e tanto trabalhavam por desviar os seus soldados
5 destas torpezas que aqueles bens que se ganhavam
de boa guerra, lhe chamavam castrenses, que em
latim se diz castrum; porque os soldados, segundo
Vegécio escreve, haviam de ser tão castos, como se
foram castrados. E de verdade que foi bom aviso
io êste dêstes antigos guerreadores; porque mais demi-
nue as fôrças um acto de luxúria que a falta de um
membro, como vemos que muito mais se menos-
caba a virtude de ua árvore com um muito pequeno
dano na raiz que com lhe cortarem toda a rama.
15 E poios obrigar a estas obras e a outras grandes
de virtudes, costumavam os antigos a dar a seus
soldados escudos brancos, pera que, fazendo faça-
nhas tão notáveis, que merecessem ficar na memó-
ria dos homens, as pudessem pintar nêles, por que
20 não imaginassem que lhes bastava a glória de seus
antepassados; porque, segundo Ovídio, nem a linha-
gem nem as façanhas dos avós eram bastantes pera
os ennobrecer, se êles por si não eram virtuosos e
esforçados.
25 Êste costume d'escudos brancos pera se nêles pin-
tarem as façanhas significou Virgílio no seu livro

4, quanto trabalhavam em B.
7-9. Note-se o jôgo de palavras entre castrum (cas-
telo, fortaleza), castum (casto, pudoroso) e castratum
(castrado).
8. Vegécio, escritor latino, autor de uma obra sô-
bre Arte Militar.
15-16, grandes virtudes em B.

70
O SOLDADO PRATICO

IX, falando de Helênor, onde diz que morreu com


seu escudo branco sem glória, porque o mataram
tão mancebo que não teve tempo pera ganhar por
sua pessoa algua cousa que nêle pudesse pintar. A
5 êste escudo branco chama Pérsio na quinta Sátira
candidus umbo, dizendo que já saía da sujeição do
aio o escudeiro que recebera escudo branco.
E pois tanto trabalhavam naqueles tempos os
capitães de trazerem seus soldados ao caminho da
io virtude, parece que haviam êles também de obrar
de feição que lhe fôssem exemplo delas; porque, se-
gundo muitos filósofos, o mais certo caminho pera
os grandes fazerem ir os pequenos às vertudes, é
por exemplo: aquele continente e valeroso capitão
15 Cipião Africano, sendo-lhe no cêrco de Cartago
presentada ua moça cativa, muito fermosa, natural
numidiana, a não quis ver e a libertou e casou; a
qual vitória de si mesmo engrandecem mais os escri-
tores romãos, que vencer Numidia, libertar a pátria,
20 destruir Cartago, com todos os ilustres feitos que
mais fez.
Polo qual, querendo os poetas engrandecer isto
muito, fingem que Minos, que é no inferno juiz da
ordem dos cavaleiros e inquisidor dos delitos, con-
25 tendendo diante dêle Cipião, Alexandre e Anibal,

1. Helênor, filho dum rei da Meónia e duma es-


crava, foi enviado pela mãi a combater em Tróia. Guer-
reiro sem nomeada, tinha por armas apenas uma espada
simples e um escudo branco. Eneida. IX, 548. Em A e B:
Heleno.
5. Pérsio Flaco, poeta romano, autor de sátiras.
13, vertudes em A. Forma antiga e popular.
14, por exemplos mais que preceitos; e por dar de
si iste heróico exemplo em B.

71
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

sôbre quem levaria o primeiro carro, deu a sentença


por Cipião, porque mais valeu com êle sua clemên-
cia que a potência de Alexandre nem as fôrças de
Anibal, visto como Cipião conquistara tôda a Afri-
5 ca juntamente com a língua e com a lança, e nunca
cometera guerra, que não fôsse justificada; nem
mostrara aos imigos a potência dos romãos, sem os
convidar primeiro com a clemência; e nunca der-
ramou sangue no campo que primeiro não derra-
10 masse lágrimas de piedade; e que não somente ven-
ceu os imigos, mas a si mesmo com a rezão na moça
de Cartagena.
E que, posto que Alexandre fôra humano e esfor-
çado, e não quisera ver as filhas de Dario, por não
15 cair em concupicência, todavia foi vencido da cólo-
ra e do vinho, de tal maneira que matara seus móres
amigos. O que tudo em Anibal se nota; porque, inda
que suas façanhas foram maravilhosas, todavia
cheiraram a crueldade e a tirania, e com isso fôra
20 vencido, em Cápua, de Marfisa, sua cativa; e por
fim se matara, por não ver o rosto aos romãos.
Antíoco o III, estando em Éfeso, viu Oa sacer-
dotisa de Diana muito fermosa; e por entender de
si que folgava de a ver, se foi logo daquela cidade;
25 porque antes quis cortar por seus apetitos e deixar
muitos negócios importantes em aberto, que chegar
a fazer ua cousa injusta e deshonesta. El-rei Age-
silau, estranhando-lhe um seu privado por que não

1, o primeiro carro: o primeiro carro do triunfo.


12. O caso passou-se na tomada de Nova Cartago,
hoje Cartagena.
27 c segs. A história vem contada por Erasmo nos
Apotegmas (Envers, 1549). fl. 21 v.; mas dá-se Mega-
bata como filha de Espitrídates. Em A e B: Megabuto.

72
O SOLDADO PRATICO

quisera ver a Megabata, filha de Antipater, que


estava cativa, lhe respondeu: — «que mais queria
vencer a si e ser superior em semelhantes cousas,
que ganhar por fôrça de armas ua poderosa cidade;
5 porque mais é de estimar em um capitão conservar
em si sua própria liberdade, que tirá-la a outros».
Gentios eram êstes todos, que trabalharam tanto
por conservar a pureza, sem preceitos que a isso os
obrigassem mais que os da rezão. j Confusão grande
io pera um governador cristão, estragado em seus ape-
titos! Porque não somente ofende a sua honra e
obrigação, mas ofende gravíssimamente a Deus, ao
marido da mulher que deshonra, e afronta ao pai,
irmãos e ao mundo todo que o sabe. E não só êle
rj caiu em tamanhas pecados, mas foi ocasião de seus
criados cairem em outros muitos: porque por apre-
sentarem a petição da viuva pobre e da órfã desem-
• parada, pera que lhe abatam no foro ou lhe pa-
guem o que deviam a seu marido e a seu pai; e da
20 casada, que tem o marido preso por caso crime, ou
porque deve o quartel, — lá o fazem por têrmos
« tão infames e diabólicos, que me pasma; e o que
pior é, que não sei se se prezam destas cousas.
Desp. — Vós estivestes um prègador; mas não
25 me esquece que falastes em dívidas velhas. Folgara
de me dizerdes o que é.
Sold. — Di-lo-ei a Vossa Mercê: é dinheiro que
el-rei deve a Pedro, a Joane e a outras pessoas, de
fazenda que lhe tomaram do arroz, do trigo, do
30 bréu, do cairo, da madeira, da pregadura do navio,

30, cairo: filamentos de côco, com que se fazem


cordas.
30, pregadura: pregaria.

73
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

emfim, de todas as cousas que se hão mister pera


as ribeiras das armadas e almazéns, das quais el-
-rei não paga a mór porte. El-rei não, que falo mal;
que êle não manda tomar o alheo; mas o governador
5 e viso-rei, que lhas tomou pera as necessidades, que
por ventura se puderam escusar, porque sempre
êles mesmos são causa delas; e depois dos proves
dos homens andarem muitos anos requerendo o seu
pagamento, sem se doerem de suas misérias, tomam
io por derradeiro remédio venderem o papel da dívida
ao criado e valido do governador e ao fidalgo seu
parente pola quarta parte.
Mais: vai o fidalgo entrar na sua fortaleza: entre
os favores que os viso-reis lhe fazem, é provisão
15 pera se pagar de dez, doze e quinze mil pardaus
de papéis velhos, os quais compra polo mesmo
prêço do quarto; e em chegando à sua fortaleza,
logo se paga do dinheiro por em cheo; e polo papel
de quatro mil pardaus dá mil, e perde o prove ho-
20 mem três mil, com que se podia remediar, os quais
o capitão ou o apaniguado do governador lhe co-
mem sem escrúpulo.
Desp. — Valha-me Deus! Grande roubo, grave
destruição da fazenda del-rei, e espantosa injustiça
23 das partes! Caso pera se prover e castigar rigorosa-
mente !
Sold. — (Vê Vossa Mercê quantas fortalezas há
na Índia? Pois cada três anos embebem nisto pas-
sante de cincoenta mil pardaus, roubados às partes
30 e tomados também a el-rei e ao Estado, os quais
depois vem a faltar pera cousas mui necessárias;
ainda que o mais justo e necessário fôra pagarem-se
às mesmas partes.
Fid. — (Que amizade quereis logo que faça ao

74
O SOLDADO PRATICO

fidalgo meu amigo e que tem serviços, senão essas


e outras? Porque também não lhe dar é crueza; e
eu não fui o primeiro que isso usou; e terão rezão
de se queixar do governador, que lhe negou o que
se concedeu aos outros.
Sold. — Mouro morreu meu pai, mouro quero
eu morrer: de modo porque o primeiro governador
isso fez a seu parente, ficou logo em costume faze-
rem-no todos! Não tem êsses fidalgos ordenados?
Não grangeam empréstimos de vivos, mortos e de
órfãos? Não compram e vendem à sua vontade?
Não são na sua fortaleza deuses? Não tiram de al-
guas duzentos, cento, oitenta mil cruzados? Pois
pesar de São... os dez mil del-rei de papéis velhos
não se puderam escusar? porque quem tem cem mil,
que tenha noventa, cincoenta mil, que tenha qua-
renta; também podem viver assi como assi; e êsses
a el-rei por ua banda, e outros tantos pela outra
suprem muitas faltas do Estado: pois iporque senão
poupa para isso?
Emquanto a me dizerdes que não podeis negar
isso a um fidalgo vosso amigo, que vai entrar em
sua fortaleza, amigo muito da alma era Anti-
pater do grande Fócion; e pedindo-lhe ua cousa
como esta, lhe respondeu; — Olha cá, Antipater,
não podes usar comigo d'amigo e lisonjeiro; porque
o amigo não pede a outro senão o que é justo; e o
lisonjeiro tudo o que quer. Assi o fidalgo, que vê
o Estado endividado e pede ao governador que lhe

7, de modo porque: de modo que, porque.


14, pesar de São... Ê o comêço de uma praga. O
soldado não concluiu por escrúpulo religioso.

75
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

mande dar na sua fortaleza a fazenda dei-rei, mais


lhe podeis chamar cruel imigo que vassalo leal:
porque o bom vassalo mais pretende o aumento e
acrecentamento da honra e fazenda do rei que da
5 sua própria. Ora jem que lei e rezão está que a dívi-
da do prove homem, que vendeu ao rei sua fazen-
da, que em cinco e seis anos lha não paguem, por
dizerem que não havia dinheiro, a venham os viso-
-reis depois a pagar ao seu apaniguado, que Deus
io sabe que se vão forros e a partir, e que pera isso
não falte o dinheiro? E praza a Deus que o não to-
mem a uns pera o pagar a outros, que também de-
pois lhe fique em dívida velha!
Quão fora estão êstes de serem como o mesmo
ij Fócion, de que inda agora falei, o qual governando
Atenas e tendo feito alguas dívidas ao Estado pera
cousas necessárias, pedindo-lhe Lámaco algum di-
nheiro pera certas festas e sacrifícios, que se costu-
mavam fazer de certos em certos tempos, lhe res-
20 pondeu assi: — Pelos deuses te juro que teria ver-
gonha, se desse dinheiro, inda que fôsse pera êsses -
e outros sacrifícios, e o deixasse de dar àquele Cali-
des (apontando num homem que ali estava, a quem
se devia Qa cantidade de dinheiro, sôbre o qual
25 andava em requerimento). Pois se êste bom gover-
nador deixava de fazer sacrifícios aos deuses, pera
pagar antes suas dívidas, quanto mais justiça será
a do governador, que deixasse de dar ao parente
e criado, nem inda pagar-se de seus ordenados, por
30 pagar à prove viuva e órfã a fazenda que tomaram
ao pai e marido pera o serviço del-rei?
Deixo outras muitas injustiças e destruições, que
padece o povo e a fazenda do rei com estas idas
dos viso-reis a visitar as fortalezas do norte, por-

4
O SOLDADO PRATICO

que já canso e me magôo; que bem tinha inda que


dizer das idas dos veadores da fazenda, que êles
fazem pera irem visitar aquelas fortalezas; o que
hei por um dos grandes des-serviços do rei. De ua só
cousa me espanto; que não vejo viso-reis curiosos
de irem visitar as fortalezas do Canará, Malavar,
até Ceilão, que também são del-rei, senão só as do
norte; nem sua cobiça lhe deixa ver que devem os
homens de ter notado a rezão disto; mas de tudo
lhe dá bem pouco; e bem poderão êles vir delas
cheos de peças, brincos e louçainhas; mas também
sei dizer que não vem pobres de pragas; porque,
em virando as costas, as rogativas que tem de todo
o povo grosso e miúdo são: que nunca passem o
Cabo de Boa Esperança, que não logrem o que lhe
tomaram, que por hospitais venham a morrer seus
filhos; e não sei se tem a alguns abrangido estas
pragas, porque Deus não dorme e sempre ouve a
voz do justo, e o sangue de Abel contino pede jus-
tiça de Caim.
FiD. — A tudo que tendes dito me rendo: tudo
o que dissestes são bocados d'ouro. Eu fico fora
dêsse jogo, porque não tive tempo pera fazer essa
jornada.
Sold. — Se o houvera, também a Vossa Mercê
houvera de fazer; porque seus apaniguados, que de-
sejam de gostar os bofatás de Baroche e as colchas
de Dio, o houveram de persuadir a isso.

a, veadores: inspectores, fiscais. Em B: veedores,


forma mais antiga, de onde procedeu veadores e vidores.
13. rogativas: preces, rogos a Deus.
27, gostar: tomar o gôsto, apreciar.

77
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Fid. — Pola ventura que o fizera; porque


jmal-pecado! — mais depressa imitamos o mal que o
bem.
Sold. — Isso estava pera dizer; porque o pri-
5 meiro viso-rei que passou ao norte, não foi buscar
brincos, senão pelouros, que achou em Dabul, quan-
do o destruiu, e na soberba armada de Mir-Hocém,
que em Dio desbaratou, com que vingou a morte do
filho, e alevantou e engrandeceu tanto o nome por-
ro tuguês, que começou com isso a dilatar e estender
êste Estado. Lopo Vaz de Sampaio ao norte foi; mas
a buscar a armada de Agãmamude, e a pelejar com
ela, como fez, destruindo-a de todo; andando com
as armas às costas, a espada ensanguentada té a em-
25 punhadura, acrecentando a fazenda do rei, não
com imposições postas aos vassalos, mas com mui-
tas presas dos imigos.
Nuno da Cunha ao norte foi três vezes; mas a to-
mar Baçaim, a fazer fortaleza em Dio, e a destruir
o_ Estado de Cambaia. D. Garcia de Noronha tam-
20 bêm fez essa jornada; mas a reformar Dio e a bus-
car a armada do turco, que lhe foi fugindo, sem ou-
sar a o esperar. O viso-rei D. João de Crasto ao
norte foi duas vezes, mas a descercar Dio, destruir
o Estado de Cambaia, té se presentar nos campos
25 de Baroche àquele poderoso rei, oferecendo-lhe ba-
talha, que êle não ousou aceitar; e, ao recolher, vir
destruindo a costa do Idalcão e a pôr-lhe por terra
a sua famosa cidade de Dabul.

2, mal-pecado! : infelizmente, ai de nós!


4-11. Hefere-se a D. Francisco de Almeida, qne der-
rotou o célebre almirante Mir-Hocém e vingou a morte de
seu filho, D. Lourenço de Almeida.
O SOLDADO PRÁTICO

E a outras cousas como estas, a que muitos fo-


ram, no que então punham sua bem-aventurança;
e os soldados, acesos daquele primeiro furor e brio
português, obravam cousas dignas de eterna memó-
5 ria; por que também eram honrados e favorecidos
dos viso-reis, que se sangravam nos braços para êles.
E assi naqueles tempos não os acháveis polas porta-
rias e alpênderes dos mosteiros a comer dos sobejos
dos frades, como depois vi; e também por isso já os
io não há, porque, desenganados do tempo e cobiças
dos governadores, se lançaram a outra vida: uns
pela China e Japão, outros por Bengala e Melinde.
E quatro soldados que andam no serviço já se
fizeram à natureza da terra, que se não querem em-
15 barcar sem os capitães lhe encherem as mãos de di-
nheiro, e cuido fazem bem: porque já que as mer-
cês, que se com êles repartiam, se dão aos criados
6 dos viso-reis, e os soldos lhe não pagam senão quan-
do se embarcam, negoceam-se por outra via; por-
20 que êles hão de comer, e já os fidalgos que lho
davam são mortos, e tudo se vai acabando, e inda
, mal porém, porque cada dia há de ir isto de mal em
peor; porque já se não pretende senão levar, e vindi-
mar cada três anos esta vinha; então lá virá outro,
25 que em vez de a remediar a destrua mais; e, o que
é peior: que lhe dá tão pouco disso, que eu ouvi
dizer a um viso-rei, que não estava inocente: que
bem via que a fndia se perdia; e que não poderia
durar muito; que, onde quer que estivesse, lhe des-
30 sem novas ser tudo acabado, o sentiria.

5, por que: pelo que, e por isso.


8, alpanderes em A.
25, destruía em A.

79
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Desp. — Segundo isso, só Deus pode remediar


essas cousas polo modo que vão: que o rei não
pode fazer mais que buscar fidalgos ilustres e expe-
rimentados, que lhe parece o servirão mui bem,
5 e mandá-los por viso-reis.Se êles tem tão má con-
ciência, que fazem essas cousas, e em vez de enri-
quecerem o rei e desalivar o povo, o empobrecem
e carregam de trebutos, e em vez de acrecentar o
Estado, o desacreditam—de quem logo se há de
10 fiar? que cá na terra não há anjos; e do céu não os
hão de eleger pera isso.
Sold. — Muitos remédios há; mas êsses não que-
ro eu dizer agora; e só a el-rei os dissera, e com lhe
custar ainda algua cousa; porque já que tudo o
1
5 mais digo de graça, essa só lhe hei de vender muito
bem.
Desp. — Eu serei de parecer que vo-la paguem a
vosso gôsto, pois tanto importa; mas ouvi-vos dizer
que os veadores da fazenda que também vão ao
20 norte, fazem nêle injustiças e des-serviços a el-rei:
folgara saber como e em quê, porque os mais dos-
viso-reis escrevem o contrário a el-rei.
Sold. — Não vi cousa mais contra seu serviço;
e logo o mostrarei, se Vossas Mercês não estiverem
25 já enfadados de me ouvir.
Desp. — Bofé, senhor soldado, não estou; antes
me dais a vida em me alumiar nestas cousas, pera
delas saber dar no Conselho melhor rezão; por isso
não largueis o intento que leváveis.

8, acreditar em B.
26, Bofé: palavra de honra, juro-vos por minha fé.

80
o SOLDADO PRÁTICO

CENA VIII

De como os veadores da fazenda, que vão às


fortalezas do norte, são muito desnecessários;
e das desordens que se cometem na fazenda
del-rei.

Sold. Ora tenham Vossas Mercês tento, por-


que por alguas rezões hei de mostrar como estas
idas dos veadores da fazenda às fortalezas são con-
tra o serviço del-rei. A primeira, nenhum veador
da fazenda dêstes, ou poucos, vão à sua missão,
que primeiro o não solicitem e o não peçam de
mercê; e inda não sei se peitam pera isso grossa-
mente a alguém. Do que se vê claramente que já
não vai pera servir o rei, senão pera se servir a si.
Outra rezão: o fim e intento destas idas dêstes
homens às fortalezas, é não se fiarem os governado-
res dos feitores que nelas estão, o que parece caso
de lesa-majestade, pois se não fiam de quem el-rei
fia seus cargos; por que o a que êstes homens vão,
é a mandar dinheiro, madeira, taboado, cifa, azeite,
cotonias, arroz, trigo, navios, e tôdas as mais cou-
sas pera as armadas e almazéns; e pera só fazerem
êste serviço lhe dão mil cruzados de ordenado, vinte
homens pera os acompanharem e lhe pagarem quar-
téis e mantimentos, um navio armado emquanto
por lá andarem, cinco pardaus mais cada dia pera
sua mesa, e provisões pera todas as mais despesas
que lhe forem necessárias e pera certos alvitres de

15, cifa: óleo de peixe usado antigamente para un-


>arcos.
16, cotonias: panos de algodão, linho e sêda.

8l
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

quinhentos pardaus de soldos velhos, e outros qui-


nhentos nas dívidas dos feitores, se ficarem devendo
no balanço que lhe derem; e outras cousas como
estas.
5 O proveito que fazem nestas idas à fazenda del-
-rei, é comprar a madeira ao capitão de Baçaim
polo prêço que êle quer; e o trigo e arroz, a quem
lhe manda mais capões e esquifes jaspeados,. senão
quanto, se o compraram a cinco pardaus, praza
io a Deus o não carreguem a seis, e o um para êles.
E por esta maneira tôdas as mais cousas à vontade
de seus donos, porque também o serviram à sua
vontade. Fazer despesas ordinárias e extraordiná-
rias, cada hora fretar naus e navios pera levarem
15 a Gôa estas cousas a gôsto de seus donos,—qtie essas
são suas mangas. De sorte que empregou el-rei dez,
quinze mil cruzados nestas cousas, e o veador da
fazenda que foi a isso, gasta e faz despesas de três,
quatro mil pardaus; pola qual rezão fôra de mais
20 proveito comprar esta cousa em Gôa a mór valia.
E o que é muito gracioso: que se entrais em casa
dêstes veadores da fazenda, achar-lhe-eis a sala,
a varanda cheia de alfaiates: uns a fazer colchas de
sêda e de bofetás, outros, acolchoados ricos; e lá

8, esquifes: camas para dormir a sesta ou para ser


transportado; barcos pequenos.
8-9, senão quanto: se é que... não.
xo, e a um em B. A forma o um não é estranha em
português antigo.
13, faiem em B.
14, fretam em B.
16, mangas: espórtulas, dádivas, presentes.
20, a mór valia: mais cara.

82
O SOLDADO PRÁTICO

mais dentro, na câmara, ourívezes a bater e fazer


garrafas de prata, pichéis de obra da China, cadeas
e braceletes pera as filhas e mulheres; guarnecer
cofres de tartaruga, de prata e cascas de côco das
5 ilhas; e, em baixo, nas lojas, dareis em torneiros e
carpinteiros a fazer esquifes de muitas feições, e es-
critórios marchetados, guarda-roupas de mercená-
ria; de maneira que entrais em ua casa de contra-
tação, e não já de veador de fazenda. E há alguns
io tão correntes nisto, que levam provisões pera devas-
sarem dos oficiais das alfândegas e capitães mouros
das naus, no que lhe untam as rodas de feição que
nenhum oficial, por culpas graves que tenha, o vê-
des castigar, e todos são soltos e livres.
75 E sabe Vossa Mercê quanto é isto assi?: que ouvi
a um fidalgo meu amigo, capitão de ua destas forta-
lezas, que no seu derradeiro ano havia de mandar
pedir de alvitre ao governador ua provisão pera
devassar dos oficiais d'alfândega, porque lhe havia
20 de montar mais de três mil dobras, polo que sabia
que os oficiais de seu tempo deram a um veador
da fazenda, que lá foi devassar dêles, ficando todos
em seu cargo, havendo entre êles um que desem-
barcava das naus de Meca de noite os caixões d'ou-
25 ro e prata, e em sua casa fazia os dereitos que lhe
ficavam, com o que engrossou muito; e por derra-
deiro o diabo lhe levou tudo.
E alguas vezes ouvi queixar a êste fidalgo dêstes
veadores da fazenda; e cuido que assi o escreveu a
30 el-rei, que no primeiro ano de sua fortaleza, em que
um governador acabou e outro começou, tinham

11, capitães móres em B.


26, negociou muito em B.

83
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

vindo a ela três veadores da fazenda, que fizeram


de despesa à fazenda del-rei mais de doze mil par-
daus. Ora, o serviço que fazem nas alfândegas é: as
peças curiosas e ricas, que a elas vão, avaliarem-
5 -nas em muito menos do que valem, pera as toma-
rem polo prêço; e desta maneira se enchem de pe-
ças baratas, que custam a el-rei bem caras.
Em ua alfândega destas sucedeu ua vez êste caso:
um mercador mouro levava pera Meca um fardo pê-
ro queno de bofatás, os mais ricos que podiam ser,
que os fez de encomenda em Baroche pera os ba-
xás do Turco; e indo à avaliação, lhos puserão cada
um em oito pardaus, valendo a doze e a quinze, só
por lhe tomarem alguns por aquele prêço; e enten-
15 dendo o mouro o caso, começou a gritar, que os
seus bofatás valiam mais de quinze pardaus, que
el-rei de Portugal ficava enganado na avaliação;
que êle queria pagar os direitos à sua alfândega
por como sua fazenda valesse. Entendendo os ofí-
20 ciais o caso, lhos puseram em dez pardaus cada um»
e não lhe tomaram nenhum, de vergonha: porque
antes o mouro queria pagar os dereitos, inda que
foram em dobro, que tomarem-lhe os que os oficiais
quisessem por menos muito do que valiam. Com
25 outras cem mil cousas, que deixo, por haver nojo
de tanto roubo; porque tudo o que os veadores de
fazenda vão fazer, o farão os mesmos feitores, a
quem o rei dá os cargos por seus serviços, que são
tão honrados como êles, e muitas vezes mais, sem
30 êsses gastos e despesas, que serão melhores poupa-
rem-se pera as necessidades.

11-12, baxús; governadores de província entre os turcos.

84.
O SOLDADO PRÁTICO

Fid. — Oh! que isso não pode ser! Porque êsse


feitor quer ter o dinheiro del-rei pera tratar com êle;
e quer-se pagar de seus ordenados o capitão, e de
outras dívidas, que cada dia faz fantásticas; e assi
5 não se fará nada, nem virá o que é necessário pera
a Ribeira e almazéns del-rei.
Sold. — Êsse é o maior engano da vida. Bem sei
que só por êste respeito o fazem, — de se os capitães
não pagarem; mas nunca se êles pagam melhor que
io quando lá vão êsses veadores da fazenda; o porquê,
êles se entendem, e eu, que não posso falar tudo;
quanto mais que os veadores da fazenda já levam
por lista tudo que hão de pagar e comprar, as quais
cousas se puderam mandar aos feitores, que sempre
ij hão de fazer tudo a menos custo e mais barato; mas
os viso-reis querem fazer essas mercês a seus apa-
0 niguados e darem-lhe êsses cinco e seis mil pardaus
como por alvitre.
Desp. — Cuido que tendes rezão; porque os fei-
20 tores, que el-rei tinha na Mina e em Flandes, não
ia lá nenhum veador da fazenda comprar-lhe as
cousas que se haviam mister pera os almazéns do
reino; assi aos feitores das fortalezas lhes podem
mandar ordem e lista do que se há mister pera o
25 terem comprado ante-tempo, e quando valer mais
barato. Mas ouvi-vos falar nos soldos velhos, e que
por êles se ia muita parte do rendimento da Índia;
folgaria de saber o como: e deve de ser isso como
as dívidas velhas, de que já falastes.
3o Sold. — Mas peor ! Saiba Vossa Mercê que isso

8, o jazem por não pagarem aos capitães em B.


26, soldados velhos em B.

I
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

é tia lima surda, e um cano, por onde se vasa a mór


parte da fazenda do rei, e o suor das partes, que
o dão como quem o dá ao diabo, por mais não po-
derem; e se o não dão, tomam-lho por fôrça. E eu
5 não queria descobrir mais eivas que as que tenho
já dito.
Desp. — Destes-me a vida nisso; porque êsse ne-
gócio da matrícula muitas vezes se praticou de se
desfazer, ou de se pôr algum remédio pera não se
io ir a fazenda del-rei por êsses soldos velhos. Agora
folgarei de ouvir vosso parecer, pera saber dar re-
zão de mim, se se praticar neste negócio. E pois té'
gora fôstes tão liberal das cousas que comprem ao
serviço de S. Alteza, nesta, que não é de menos
15 importância, vos não mostreis escasso; que eu vos
prometo que se vos satisfaça muito bem, e que el-
-rei saiba os serviços que nisto lhe fazeis.
Sold. — Não queria mór galardão que aprovei-
tar algua cousa o que disser, pera se remediar; por-
20 que quem vê ir as cousas da índia tanto de cabeça,
como eu entendo que vão, assaz fará obra de bom
cristão se lhe puder acudir, inda que se faça como
outro Sólon, o qual, vendo a ilha de Salamina (don-
de era natural) tomada e possuída dos megarenses,
25 e porque se praguejava muito dos atenienses con-,
sentirem possuirem-lhe os imigos a sua ilha, escan-
dalizados disso os governadores fizeram ua lei: que
todo o que falasse em se cobrar a ilha Salamina,

1, lima surda: lima que vai roendo sem se sentir.


Óptima comparação para o contínuo e insensível desgaste
que fazia a corrupção na fazenda do rei.
5, eivas: falhas, defeitos. Em B: defeitos. v
8-9, desse desfazer em A. - '
13, comprem: cumprem.

86
«

o SOLDADO PRÁTICO

morresse por isso,—e porque a Sólon lhe doía tanto


a quebra do Estado ateniense, e não ousava de fa-
lar por mêdo da lei, fíngiu-se doudo; e, enchendo-se
de carvão, se foi pela cidade de Atenas cantando
5 uns versos, que por prolixidade não digo, sôbre a
afronta que se fazia àquele Estado, em lhe possuí-
rem os megarenses sua ilha; os quais tiveram tanta
fôrça que, desfazendo-se a lei, o elegeram por ca-
pitão pera cobrar outra vez aquela ilha; porque
io quem lhe dóe a honra do Estado, todos os meios
busca pera pôr remédio em suas cousas. Mas pois
Vossa Mercê me manda que lhe diga que cousa são
soldos velhos, tratarei dêste cano da matrícula, por
onde se todos vasam; a qual, pelos roubos, que os
15 governadores e capitães e oficiais das fortalezas fa-
zem, se tratou alguas vezes de se desfazer.

CENA IX

Do que são soldos velhos; e do roubo que se


• faz a el-rei e às partes nêles; e do remédio
que haverá pera se evitarem.

Sold. — Primeiramente, tratando de soldos ve-


lhos, por que Vossa Mercê me pregunta, dar-lhe-ei
informação dêles. Soldos velhos são aqueles que
20 el-rei me deve a mim, a Pedro e a Joane, dos quais
haverá nos livros da matrícula mais de um milhão
d'ouro; e a causa é porque todos os que passam
de Portugal a estas partes, quer sejam soldados,
quer casados, quer oficiais mecânicos, todos vem

22-23. Couto, que escrevia o livro em Gôa, esqueceu-se


aqui que o soldado estava falando desde Lisboa.

87
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

assentados em soldo, e vencem onde quer que este-


jam, tirado Bengala ou Melinde. E dêstes são infi-
nitos mortos, que tem sua matrícula em pé e seu
soldo corrente; e mortos de vinte anos vencem sol-
5 do, e paga-lho el-rei, não já a êles, mas a outros,
que lho tomam por esta maneira.
Vai um capitão entrar em sua fortaleza; passa-
-lhe o governador provisão pera lhe pagarem quar-
téis a cincoenta criados e a doze parentes; aos pa-
ro rentes, que são soldos grandes, a alguns paga, e
outros recolhe pera si; mas dos criadês jámais tem
consigo dez e doze, os mais recebe pera si, deitando
no seu caderno o homem que já é morto, que
anda por Melinde e Bengala; e outros fantásticos,
15 que depois o governador manda que se lhe levem
em conta, sem embargo de se não achar título; e o
escrivão da feitoria, ou por medo, ou por má con-
ciência, lhe passa ao pé do caderno certidão «que
teve todos aqueles homens que estão lançados».
20 Pola mesma maneira o feitor tem certos homens
pera se lhe pagarem quartéis: tem consigo dous;
todos os mais recebe e lança em títulos alheos. Nas
fortalezas fronteiras, onde há por regimento trezen-
tos, quatrocentos homens, pagam seiscentos e setor
25 centos; e nelas de maravilha se acham duzentos,
e todos os mais são praças mortas; e fazem cada
dia homens novos fantásticos; e depois, quando
vem os cadernos à matrícula pera se descontarem ao

9-12. O texto em B tem diferente redacção: a estes


. são soldos grandes que paga, e aqueles recolhe para si,
deitando no seu caderno o homem que jd é morto, que
anda pela Melinde.
25, de maravilha: dificilmente.

88
O SOLDADO PRÁTICO

feitor os homens que o capitão pagou, não acham


título à quarta parte dêles. E como os capitães lhe
passam assinados de lhos fazerem levar em conta,
apegam por êles; os quais se socorrem ao viso-rei
5 ou governador, que lhe passa provisão pera leva-
rem em conta todos os que não tiverem título. Eu
sei dous ou três capitães, que lhe mandaram levar
em conta mais de quarenta mil pardaus a cada ua
destas praças mortas. Ora se cada três anos isto
io há em ua só fortaleza jque fará em tantas? Por
certo que nisto se despende a mór parte do rendi-
mento.
Mais: em ua fortaleza, onde se armam todos os
verões seis e sete navios, pera andarem dando guar-
15 da às cafilas, aos quais se manda pagar a vinte e
cinco, e não levam mais que doze ou treze, e os
mais repartem em três partes: ua pera o capitão da
fortaleza, outra pera o feitor, outra fica ao capitão
do navio, e a essa conta os mantimentos dêles; e
20 assi andam sem gentè estas armadas, e, se dão os
• cossairos nêles, tomam-nos, como já aconteceu al-
guas vezes. .
Ora veja Vossa Mercê que tal anda o serviço del-
-rei, e suas armadas como andam arriscadas. Dei-
• 25 xo outras muitas sopas, que se molham nesta por-
celana de mel da fazenda do rei, que são infinitas,
em que entram os oficiais da matrícula e dos con-

3, assinados: documentos, certidões.


4, o pagam por eles em B; «apegam por eles», si-
gnificará: estribam-se nêles.
15, cáfilas: combóio de navios, que tinham de ser
escoltados.
ai, cossairos: corsários, piratas.
21, neles: nos navios.

89
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

tos, que sempre tem lá com os feitores seus tratos,


e lhe lançam certas matrículas, que êles fazem com
muito gôsto, porque lhe hão de cair nas mãos, a
uns para os descontos e a outros pera darem suas
5 contas; mas com êstes os desculpo, porque se isto
não fizerem, coitados dêles, que lá hão de ir purgar
suas culpas; porque a Casa dos Contos é o purgató-
rio dos feitores e tesoureiros da India; e onde tam-
bém há dela e dela — como lá dizem; porque já na
io índia não há cousa sã: tudo está podre e afistulado,
e muito perto de herpes; e, se se não cortar um
membro, virá a enfermar todo o corpo e a corrom-
per-se.
E tornando à matéria dos soldos velhos: dá um
15 feitor ou tesoureiro sua conta; ficou devendo dous
mil cruzados; alcança logo provisão que pague os
mil, e que os outros se lhe descontem em soldos ve-
lhos de pessoas que apresentar, e já a essa conta
vem com a dívida feita, e assi ajunta o soldo por
20 amigos e por os que o não são, a que sabem as ma-
trículas, e são ausentes e mortos, e se lhe descon-
tam. Vai um criado do governador às fortalezas do
norte a fazer algua diligência de seu amo, ou quan-
do chega de Portugal a levar recado às cidades de
25 sua vinda e da saúde do rei, o que lhe não monta
tão pouco que não passem de duas mil dobras; e
com isso leva provisão de trezentos ou quatrocen-
tos pardaus de soldos velhos pera Dio ou Ormuz;
e já os leva descontados pela maneira acima, e ês-
30 tes se lhe pagam em mui boa moeda.
Mais: pediu o físico do governador ou viso-rei

6-7. PaRar suas culpas em B.


31, físico: médico.

90
O SOLDADO PRATICO

provisão pera lhe pagarem todo o soldo velho que


lhe derem os soldados que êle curar; e êles, sem
visitarem nenhum, porque todos vão parar no hos-
pital, ajuntam cinco e seis mil pardaus por matrí-
5 cuias alheas. E um escrivão da matrícula geral me
disse, falando nesta matéria, que a um físico de um
viso-rei descontara por esta ordem vinte ou vinte
e dous mil pardaus nos seus três anos.
E por que me não esqueça ua cousa que me pa-
io rece injusta, não passarei por ela: e é que nas for-
talezas, nas pagas que se fazem aos soldados, lan-
çam de dez em dez, e no cabo fazem um têrmo que
fiquem uns por outros, se não tiverem dinheiro nos
títulos; e se falta nêles dinheiro a algum pera se lhe
15 descontar, o fazem no título daquele que está mais
perto dêle; e assi fica o paciente pagando dous
quartéis: um que lhe tomam, porque lhe sabem lá
na matrícula que êle nunca foi a Ormuz nem a Dio;
e outro, que mais lhe descontaram, como fiador do
20 que estava mais perto dêle, que não tinha título.
E isto me aconteceu a mim já; e por isso como ma-
goado falo.
E por êstes exemplos se verão todos os mais
meios, por onde o rei é roubado; e quando o Esta-
25 do padece necessidades, não tem donde se valer,
porque a mór parte do rendimento de suas alfân-
degas se vai por estas desordens.
Desp. — Folgo de ouvir essas cousas tão claras,
porque nunca mas disseram senão marchando: polo
jo que nos pareceres, que sôbre isso se tomaram, nun-
ca me soube determinar, como já'gora farei; pois
vós com o zêlo do bom português tratais mais do
que releva a vosso rei que a ninguém. Mas já que
estamos nesta matéria, folgaria de me dizerdes vos-
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

so parecer sôbre êste negócio, e o remédio que se


lhe pode pôr; porque além da vossa experiência
e bom juízo, havíeis de ouvir lá praticar isto a
homens avisados e velhos na Índia, que dariam
5 muito boa rezão nisto.
Sold. — Alguns há que a podem dar muito boa
em todas as matérias; porque as trataram e viram
mais anos e melhor que os fidalgos que são chama-
dos a conselho, que muitos dêles não tem experiên-
10 cia de nada; mas é esta maldição portuguesa tal,
sua desconfiança tamanha, que homem que não
é fidalgo não é chamado pera nada: tendo exem-
plos em todas as outras nações, em que se tem mais
respeito à idade e experiência de guerra que ao
15 sangue e nobreza.
Mas, deixando esta matéria, em que havia bem
que dizer. jPedir-me Vossa Mercê parecer no negó-
cio que tratávamos! É êle tal, que era necessário
pera isso outro saber diferente do meu e de mi-
20 nha profissão; porque isso é pera homens, que cur-
saram a fazenda e negócios dela mais; mas jquem
há, que possa dar melhor informação disto que Sua
Mercê, que cursou na Índia muitos anos de capi-
tão, capitão-mór, e depois de governador da Índia,
25 diante de quem todos os negócios se trataram? Êstes
e todos os mais lhe correram pela mão, junto ao
diferente juízo que do meu tem, por sua ilustre ge-
ração e diferente criação.
Fid. — Não consinto isso: porque não é argu-
30 mento bastante essa criação e geração que dizeis,

26-27. Entenda-se: «além da superioridade de juízo


que tem sôbre mim».

92
O SOLDADO PRATICO

pera poder dar melhor rezão que vós, e mais em


cousas, que os largos anos de experiência vos tem
muito claramente mostrado o bom e o mau. Por
isso ide por diante, e dai-nos vosso parecer; porque
5 o meu darei eu quando Sua Alteza mo preguntar;
e pode ser que me alumieis em muitas cousas, que
me terão esquecido.
Sold. — Melhor é obedecer que sacrificar. Eu
inda agora sou vassalo de Vossa Mercê, como quan-
ro do o era sendo meu governador: polo que farei o
que me manda. Direi o que me parece pela ordem
da soldadesca; que da fazenda eu a não entendo.
Primeiramente: sou de parecer, se Sua Alteza
pretende de pagar algua hora o que deve, que se
15 tirem a limpo todas as dívidas dos soldos que se de-
vem a vivos em um livro e dos mortos em outro; os
quais, fechados, se metam no cofre do tesoureiro,
ou em ua tôrre de tombo, que na India houvera
de haver pera todas as antiguidades, e se lança-
20 rem nela todas as cartas del-rei, de capitães-móres
d'armadas e das fortalezas; cartas de reis vizinhos
e repostas delas; formas de embaixadas; pareceres
que se tomam sobre as cousas do Estado; canhe-
nhos d'armadas que se fazem, com os nomes dos
25 capitães, com todas as mais cousas que podem ser-
vir pera se os cronistas aproveitarem pera suas es-
crituras, pera de todo se não apagar e extinguir
o nome português, tão celebrado e famoso por todo
o Universo; de cujo descuido pudera fazer um
50 muito largo capítulo e envergonhar tantos gover-
nadores, quantos na índia houve tão pouco curio-
sos do que lhes a êles mesmos cumpre; porque nesta
tôrre houveram seus feitos de ficar perpétuamente
em memória.

93
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Mas, tornando a nosso propósito: tiradas estas


dívidas em livros separados, e feita ua matrícula
dos moradores da casa e fidalgos que recebem con-
tinos soldos e moradias, todos os mais livros velhos
5 sejam logo queimados; e não se use mais do modo
da matéria, senão por esta ordem: Fazerem-se na
cidade de Gôa seis bandeiras de ordenanças, nas
quais se matriculem todos os soldados da índia
por esta forma: os soldados que residirem em Gôa
io que se assentem nas bandeiras que quiserem, de
que serão capitães os mais velhos e honrados fidal-
gos da índia, que as ordenaram com seus sargen-
tos, caporais e mais oficiais; e terá um escrivão
com seu livro, em que assentem o soldado que se
15 fôr pera a sua bandeira, nome, terra e ano em que
veio; e passará o governador que fôr provisões pera
todas as cidades e fortalezas da índia, pera que os
capitães delas com grandes penas façam assentar
os soldados todos, que nas tais fortalezas ao pre-
20 sente se acharem, de que será escrivão um dos
mais honrados vereadores da terra.
E quando se fôrem assentar, lhes dirá o dito es-
crivão os nomes dos capitães das bandeiras de Gôa,
pera que escolham em qual delas se querem assem
25 tar; e tanto que nomearem a que quiserem, o as-
sentarão num livro, que pera isso terão, por êste
modo: Foão, filho de Foão, veo em tal era e assen-
tou-se na bandeira de Foão; e por êste modo todos
os mais. E ao assentar, se lhes notificará a tais solda-.

2, soparados em A. Ê redacção de Couto.


13, caporal: posto entre cabo de esquadra e sar-
gento.

9*
O SOLDADO PRATICO

dos que, tanto que chegarem a Gôa, se recolham a


suas bandeiras; e como em todas as fortalezas se
cerrarem estas matrículas, mandarão o treslado
delas à Índia, convém a saber: a cada capitão seu
5 rol, em que lhe mande as matrículas dos soldados,
que nas suas bandeiras assentaram; os quais capi-
tães os assentarão logo nas matrículas dos solda-
dos de suas bandeiras, pera saberem a gente que
tem, assi presente como ausente. E depois destas
io matrículas das fortalezas chegadas, irá cada capi-
tão seu dia no mês à matrícula geral, onde haverá
um livro grande, em que se assentem os soldados
de suas bandeiras, de que farão matrícula de cada
bandeira por si.
15 E servirá isto do viso-rei saber nua hora os solda-
dos que na Índia tem, e onde residem; e serão obri-
gados os soldados que em Gôa residirem a, tanto
que quiserem ir pera fora, fazerem-no a saber a seus
caporais ou ao escrivão de sua bandeira, pera lhe
20 pôr por cota: êste Foão foi-se pera fora da armada,
* ou a outra cousa. E os que vierem de fora se irão
logo apontar nas bandeiras, em que se matricula*
ram aonde residiam; e ao fazer das armadas irão
os soldados receber a matrícula com os seus capi-
h5 tães, e no seu livro do ponto lhe porão seu recebi-
mento; e assi o soldado que recebeu em Dio ou em
Damão, que o feitor vem descontar, se buscará no
mesmo ponto da bandeira em que se lá assentou;
e assi se pagará aos que servirem, e não haverá
30 poder o capitão pagar a cincoenta homens sem_ os
ter consigo, nem o feitor e os outros oficiais aos seus;

19, capitães em B.

95
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

e por êste modo ficam não havendo soldos velhos,


nem os soldados podendo dar o seu a ninguém,
porque o não tem senão quando recebem.
Mas pera isto era muito necessário que lhe pa-
5 gasse Sua Alteza aos que em Gôa residissem seu
mantimento cada mês pera comerem, porque me-
nos se há de despender nisto que nos soldos velhos,
que se cada ano pagam a quem já disse; e os casa-
dos de Gôa e de todas as demais cidades se aponta-
io rão num livro, que os capitães das tais fortalezas
pera isso terão, por suas matrículas, e os treslados
se mandarão ao viso-rei, pera mandar fazer um li-
vro de matrícula de casados, e os nomes das ter-
ras onde residem, aos quais se não pagará soldo,
15 senão quando se embarcarem d'armada; porque
estão os livros cheos de dívidas de soldos dêstes
casados, que muitos há trinta, quarenta anos que
se não embarcam, e seus títulos estão em aberto
e vencendo soldo; e muitos que são mortos, há
20 muitos anos, que vencem como vivos, e outros
que se foram pera a China e pera o reino, sem se
descontarem, que inda estão vencendo; e dêstes que
digo são a mór parte das dívidas que Sua Alteza
deve dêstes soldos. •
25 E tanto que um soldado casar ou em Gôa ou em
qualquer outra fortaleza, será obrigado ir-se ao es-
crivão dos soldados e apontar-se por casado, se
está escrito neste livro; mas, se se casou em Chaul
e escreveu em Dio, será obrigado a ir ao escrivão,
30 que em Chaul é deputado, apontar-se de novo, e
dizer: Foão, filho de Foão, da bandeira de Foão,

6, pera comerem, porque menos falta em B.

çó
O SOLDADO PRÁTICO

casou-se nestá fortaleza; e assi se apontará por ca-


sado no livro do capitão; e o escrivão de tal forta-
leza será obrigado a mandar a Gôa certidão ao ca-
pitão da bandèira ou escrivão dela, em que certi-
5 fique de como Foão de sua bandeira se casou, pera.
que, quando fôr à matrícula apontar-se a tal ban-
deira, faça declaração no livro da matrícula de
como se casou aquele Foão, o qual logo será pas-
sado ao livro dos casados no título da fortaleza
io em que casou.
E assi se saberá sempre quais são os soldados
. e casados, e os que são mortos é vivos. E pera isto
serão obrigados os escrivães das Misericórdias das
fortalezas todas a, tanto que nos hospitais entrar
15 soldado enfermo que falecer, mandar seu nome à
matricula, e de que bandeira é, pera que o escri-
vão de tal bandeira lhe ponha em seu título verba
de morto; e assi, tanto que no comêço do mês se
forem apontar à matrícula, fará o tal escrivão de-
^20 claração dos que se foram pera fora e dos que casa-
ram e morreram, por que não haja andar morto
por vivo, casado por soldado, nem ausente por .
presente; e com isto ficará a cousa tão desembara-
çada, que um não possa receber na matrícula de
'25 outro, nem o que se foi pera a China ter o título
corrente, nem.receber Pedro por Joane, nem os
capitães pagarem mais homens dos que tem, e os
viso-reis não fazerem mercês de soldos velhos —
no que se poupará mais de vinte mil pardaus cada
30 ano, que se pagam polo modo que disse.
Isto que tenho dito é o que me parece sôbre êste
negócio, no qual poderá haver outros melhores
pareceres que o meu, que eu não desgabarei, por-
que não sou tão afeiçoado ao meu, que qualquer

97
7
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

outro me não pareça melhor; e quem quer acertar,


assi o deve fazer em tudo; porque doutrina é de
Platão no seu Timeo que nunca vira errar homem
afeiçoado ao parecer alheo, e que muitos vira per-
5 der por seguirem o seu. S. Paulo, vaso d'eleição,
não se quis afeiçoar a seu parecer, estando determi-
nado de ir a Roma, e seguiu o de seu discípulo Fi-
lémon. E na Escritura Divina temos que David
fôra muito mór profeta que Natão, e sôbre o negó-
10 cio da edificação do Templo não se afeiçoou tanto
a seu parecer que não aceitasse o de Natão. Deus
Nosso Senhor teve grandes queixas com Moisés
sôbre os filhos de Israel serem tão afeiçoados ao
que lhes parecia, que em tudo enjeitavam o conse-
15 lho alheo, por cuja causa andaram toda sua vida
perdidos e assombrados dos cutelos dos imigos.
Assi que digo: também nisto me someto ao pare-
cer alheo; e se o que dou nisto fôr bom, faça-se
o que fizeram aqueles éforos de Lacedemónia, que,
20 estando em um conselho, deu um homem simples
como eu um muito bom parecer em um negócio
muito árduo; e, quadrando a todos, lançaram êste
homem fora do Senado, e elegeram outro muito gra- „
ve, a quem mandaram dissesse aquele mesmo pare-
2
5 cer com as mesmas palavras, como quem de um
vaso ruim muda o licor pera outro melhor.
Mas, todavia, em tudo isto que tenho dito acho
um só inconveniente, que é não sofrer a índia estas
companhias; porque, se os soldados se virem uni-

3. O Tint eu é um dos Diálogos de Platão, dedicado


à filosofia da natureza.
17, someto: submeto.
22, quadrando: agradando.

98
O SOLDADO PRÁTICO

dos, xaquearão as cidades, roubarão os povos e fa-


rão outras exorbitâncias: por onde não sei qual é
peior — antes el-rei perca o seu, que haver estas
desordens.
5 Desp. — Por certo que não sinto eu nenhum
desses atenienses que melhor parecer pudera dar
nisso que vós, como fareis em todas as outras cou-
sas mais; que eu vos vou sintindo um fervor e espí-
rito pera outras maiores e de maior sustância.
io Fid. — Não pode parecer mal isso que dissestes,
e assi se rastejou já em tempo del-rei D. Sebastião;
porque, quando mandou a primeira vez à índia
D. Luis de Taíde, já levava por regimento fazer
essas ordenanças e assentasse os soldados em ban-
15 deiras; o que êle usou alguns dias, porque as cou-
sas boas nunca se vai com elas a cabo. E quanto
ao que receais das desordens dos soldados, se êles
tiverem capitães de honra, não haverá nada disso;
porque o dia que um fizer um desarranjo, o man-
•eo dará passar polas alabardas; e como o fizer a qua-
tro, os mais se refrearão; e o capitão que dissimi-
lar com algua cousa destas, que o viso-rei o mande
logo com grilhão ao rei.
• Desp. — Inda que estive muito atento a êste ne-
25 gócio da matrícula, não me esquece que tocastes
nos Contos, como que também há nessa casa
mangueiras; por amor de mim que, emquanto se o

11, rastejou: tentou, ensaiou.


13, de Taíde em A.
20, passar polas alabardas: executar, passar pelas
armas. e 0
21-23, capitão... com grilhão ao rei falta em A.
27, mangueiras: actos de venalidade, de corrupção.

99
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

sol vai pondo,.trateis essa matéria, que não há de


ser pouco importante: porque, como entro nova-
mente neste cargo, quero saber tudo e haver lín-
gua das cousas da índia, pêra poder dar rezão de
5 tôdas.
Sold. — Pera isso havia mister mais tempo; e
quando toquei êsse negócio de passagem, não cui-
dei que Vossa Mercê lançasse dêle mão; mas já que
me embaracei nestas cousas, irei acabando o serão
io com essa matéria, pois mo Vossa Mercê manda.

• CENA X

Em que se tocam algúas cousas dos Contos


de Côa e outras diferentes matérias.

Sold. — A Casa dos Contos de Gôa é a mais im-


portante pera a fazenda del-rei, que há na índia;
à qual concorrem todos os feitores das fortalezas,
d'armadas, naus e navios, almoxarifes e rendeiros
15 de todas as rendas, que são muitas;.pera o que era
necessário que estivesse esta Casa provida de homens"
muito honrados e de muita verdade, muito bons
oficiais e de conciência, que de tudo isto está falta.
Há nesta Casa dez contadores com seus escrivães,
20 dous revedores, um guarda, um recebedor de res-
tos com seu escrivão, e um provedor-mór. Dêstes
oficiais o provedor-mór tem de ordenado trezentos

20-21, dous revedores. um recebedor de restos com seu


escrivão, que tem duzentos e dezóito mil réis. e um pro-
vedor dos Contos. Dêstes oficiais... em B. ' .

IOO
O SOLDADO PRÁTICO

e trinta mil réis; os contadores a cento e vinte mil


réis e a 140 mil; os escrivães, cada um a setenta
mil réis.
Alguns dêstes oficiais conheci eu muito ricos,
5 que na Casa engrossaram, sem terem mais que
o que disse; e se não fôr por meos ilícitos, não
podem fazer mais que sustentar-se piadosamente,
como faziam os antigos que eu conheci, que viviam
com verdade e faziam justiça; mas alguns dos de
10 hoje tem quintas, palmares, casas curiosas, e tra-
zem muito dinheiro ao trato; e os meos por onde
engrossam, apontarei alguns como soldado e não
como oficial.
Primeiramente: vai entrar um feitor em Ormuz
15 ou em qualquer outra fortaleza, já fica concertado
com o contador, que lhe há de tomar sua conta;
e assim lhe manda, emquanto lá está, suas enco-
mendas, peças, brincos e muito dinheiro à conta
de seu ordenado; e assi, quando acaba seu tempo,
•20 que vem dar sua conta, deixa o tal contador a que
está tomando de outro oficial pobre, que há dous
anos que ali anda e que não teve que lhe dar ou
que roubar pera isso, e toma a do outro em qua-
• tro dias, sem lhe lançar papel fora, porque todos
25 lhe achou correntes; e se algum tem algõas dúvi-
das, êle lhas tira e faz na mesa do despacho tudo
franco; e o dinheiro que lhe tem mandado lhe mete
na fôlha; e na arrecadação dous papéis velhos da

1-2, os contadores a cento e quarenta mil réis, e


treze escrivães, cada um a sessenta mil réis em B. Em A
algumas quantias foram postas depois, como se vê da
tinta diferente.
7, piadosamente: dificilmente.
17, e a essa lhe manda em A.

IOI
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

contia que tinha recebido; e o seu ordenado paga-


-se depois dêle por em cheo.
Mais: promete um contador a um viso-rei da
conta de um oficial tantos mil pardaus, à conta
5 dos quais lhe faz logo mercê; e, revolvida a
conta ou dado balanço ao oficial, saem-lhe com
cinco e seis mil pardaus de dívidas, que êle não
deve, e é logo executado e sua fazenda vendida;
e depois que vai dando sua conta, que alega dos
io êrros e o ouvem de justiça, dizendo que foi a dívi-
da mal executada, fica el-rei devendo aquela conta,
que nunca paga, e os outros logrando-se da sua
casa e do palmar, que lhe venderam. E sabem Vos-
sas Mercês quão prejudiciais são estas execuções
15 desta sorte, sem se dar encerramento à conta; que
a êsse respeito vem os feitores das fortalezas com
muito dinheiro em punho, e vão dando hoje dous
mil, e amenhã mil, e o outro dia quinhentos; e
assi vão preparando os caminhos à sua vontade e
20 encerrando-lhe suas contas com todas as dúvidas,
que os papéis trazem, sem lhe preguntarem por
elas.
Outra hei de dizer, que é de mais dano ao viso-,
-rei, tão esquecido da sua alma e de sua honra:
25 que todos os restos que ficam destas contas, que se
hão de carregar sôbre o executor, conforme a seu
regimento, arrecadam pera si e metem nas contas
papéis velhos comprados à quarta parte, como já
contei no capítulo dos alvitres. E desta maneira e

27, arrecadam para si; além de outras cem mil tira-


nias em B. Falta pois em B uma porção grande de linhas.
Veja-se página seguinte, linha 29.

I02
O SOLDADO PRATICO

por esta via se consume grande parte da fazenda


del-rei, em que todos vão forros e a partir.
E tem mais: vem o feitor que serviu feitoria po-
bre; presenta-se nos Contos com mãos vazias, en-
5 trega seus papéis, dão-lhe por contador o mais mo-
derno da Casa e o mais fraco oficial. E como en-
trou com mão fechada, botam-lhe os papéis em car-
neiro, escrevem nêles como por demais, saem-lhe com
■mil dúvidas, sem haver quem lhas deslinde. E assi
io anda o mártire purgando dez anos, sem haver
quem lhe faça justiça; de sorte que lhe fôra melhor
o que havia de gastar em dous ou três anos dá-lo
junto ao contador, e em um mês fôra aviado.
E o que é mais pera magoar e pera el-rei casti-
15 gar: que, se acerta de estar um contador com esta
conta nas mãos, se chega de fora outro, de que
espera mais proveito, se lha dão, larga a primeira
e lança a do prove fora e põe as mãos à outra, de
feição que em pouco tempo conclue com ela. E
• 20 disto tudo quanto Vossas Mercês quiserem, em que
as partes recebem grandes opressões e muitas in-
justiças, porque muitas vezes uns pagam o que
não devem e outros ficam com o que devem.
• Outra cousa me esquecia, muito digna de casti-
25 gar: e é que tem o provedor daquela Casa sempre
contadores apaniguados, com os quais reparte as
contas de mór importância e de que esperam al-
gum proveito, e as outras nunca acaba com elas,
como acima disse; e outras cem mil tiranias, que
jo se não castigam; os que o hão de fazer andam tam-

7, botam-lhe os papeis em carneiro: atiram-os para


o sítio das cousas mortas, dos papéis velhos.

I03
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

bém interessados naquelas matérias e puxando por


dinheiro por qualquer via que fôr: por onde não
lhe sei remédio mais que o de Deus; que se cá al-
gum pudera ter, era um provedor, homem livre,
5 de honra e verdade, e tão inteiro que a não leva-
ram pareceres de contadores interessados, o qual
com seu ôlho vira tudo; e faça despachar os pobres
e castigue o contador que lhe dilatar a conta do
pobre. E faça el-rei honras e mercês aos homens
10 que o servirem com verdade e justiça e achá-los-á;
e não dê o tal cargo a quem rogue, senão a quem
êle rogue; porque, de se não fazer isto, nacem todas
as desordens das .cousas.
Fid. -— Apontastes bem nessas cousas; que eu
15 alguas vezes que fui aos Contos vi essa casa des-
baratada e. prove de contadores; e desejei de prover
nisso, que não é de tão pouca importância, que
'não vá muito ao rei e às partes, como dissestes.
Sold. — Bem desejei de passar por muitas cou-
20 sas, mas acusa-me a conciência, porque me diz
que, se as não manifestar a quem as pode remediar,
que ficarei em restituição; e por isso me não posso
ter, já que comecei. E Vossas Mercês estejam aten-
tos, porque lhe importa isto tanto e é necessário da-
25 rem conta a Sua Alteza.
Tomou-se naquela Casa ua conta a um feitor;
sairam-lhe com ua dívida de doze ou quinze mil
cruzados, que o prove do oficial sábia não ter em

11, o tal negócio em B.


22, em restituição: em divida, com sobrecarga na
consciência.
28, pardaus em B.

104.
O SOLDADO PRATICO

si; polo que clamou e pedia justiça, que se lhe não


fez. Foi executada a dívida, vendida a fazenda e
repartida; e o paciente veo a morrer pobre e de-
sapossado de sua fazenda. Vieram depois os herdei-
5 ros daí a muitos anos a revolver a conta e acharam
o êrro; e pedindo revista, o apontaram; e achando-o
claramente, lhe passaram papéis pera requerer a
el-rei seu pagamento, que nunca houve, nem ha-
verá.
io E dêstes exemplos há alguns que eu pudera tra-
zer; e escusam-se os oficiais com dizer que não sou-
.» beram mais; e o regimento os desculpa, pois lhe
; não dá nenhua pena: por onde eu era de parecer
que o contador que sair com dívida que não seja
15 muito averiguada e vista pelos revedores muitas
vezes, que, achando-se depois o êrro, paguem de
sua casa assi o contador como o revedor aquilo que
a parte pagou mal; porque pola experiência que
tenho daquela Casa e das malícias da Índia, sem-
§0 pre hei de cuidar que lhe quiseram fazer dívida,
pu pera a darem por alvitre aos viso-reis, que conj
•' ela folgam muito, ou pera a repartirem entre si
os oficiais.
* Porque, depois que os viso-reis despiram as ar-
25 mas e trataram de fazenda, folgaram de lhe ver
as mãos por todas as vias; e há alguns que a essa
conta trazem os contadores tão mimosos, que não
há quem possa com êles; polo que* tem pouco es-
. crúpulo de lhe cavarem dinheiro devido e não de-
30 vido de boa e má parte, e de lhe levarem alvitres
; de fazendas alheas, que não devem nada; e o que
peor é: que às vezes são de homens mortos, que
' suas mulheres e filhos pagam sem dever, ou lho
tomam sem se elas saberem defender, porque da-

105
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

quelas cousas puderam seus maridos dar muito boa


rezão.
Tem mais: deu outro feitor conta de ua grande
soma de dinheiro; e como êle tinha muito em si,
5 lá se negociou com o contador, que parece que lhe
não duvidou nada, e encerrou sua conta e lhe pas-
sou sua quitação, sem lhe sair com dívida, ficando
desta bolada as mãos bem cheas a êle e a outros
oficiais. Daí a tempos foi revista a conta, e achou-
10 -se-lhe de êrro contra el-rei ua grande soma de di-
nheiro, polo qual o oficial foi executado em sua
fazenda e pessoa; e os contadores que entraram na
bolada ficaram de fora comendo o que o prove pa-
gou. Emfim, que destas quantas Vossa Mercê qui-
15 ser, e de outras, que de cansado não falo.
Desp. — Oh! não canseis, senhor, dizei-me mais!
Sold. — Pera que ouvir tanta maldade? Sabe
Vossa Mercê a quanto chegam? Que eu sei tempo,
segundo ouvi queixar a alguas pessoas, que das con-
20 tas que já estavam encerradas tiravam muitos papéis,
lançados à linha de muitos anos, e os faziam de
novo correntes pera outros oficiais, mudadas ver-
bas e tudo o mais, dos quais se pagavam logo. E "
pode ser sucede isto em conta de feitor morto que

2. A seguir a rezão B trás o seguinte trecho:


Tempo sei eu. segundo ouvi queixar a algumas pessoas, que -
das contas que dos oficiais mortos estavam por tomar,
tiraram muitos papéis e os faziam de novo correntes para
outros oficiais, mudadas verbas e tudo o mais, dos quais
se pagavam logo; e se os herdeiros do morto os quiseram
acabar, acharam os papéis menos, que podiam ser de
muita contia. Como se vê, é, com pouca diferença o passo
que vai de 1. 18 a 3 da página seguinte.
16-18. Falta em B.

IOÓ
o SOLDADO PRATICO

estivesse por tomar; e se os herdeiros a quiserem


acabar, acharão os tais papéis menos, que podiam
ser de muita contia.
Desp. — Muitas cousas ouvi, de que estava bem
j inocente, e que é forçado acudir-se-lhe; mas esta
dos Contos me parece a principal; e foi lembrança
muito necessária e merecedora de se satisfazer. Eu
vos prometo que, de tôdas, esta seja a primira de
que faça lembrança a Sua Alteza; e espanto-me
io muito dos governadores não escreverem sôbre isso,
ou de proverem em cousa tão importante.
Sold. — Tem outras que lhes revelam mais a
êles; e por isso se esquecem das que relevam ao
rei, pois estas são mais da sua jurdição, porque já'
15 gora são mais veadores da fazenda que capitães da
guerra. Com que eu pior tomo é que a êstes conta-
dores que tecem estas meadas, e que andam com
estas emburulhadas dos alvitres, fazem êles mais
mercês, escrevem melhor dêles a el-rei, dizendo que
lhe acrecentaram em sua fazenda tanto e mais
tanto. .
E certo, senhores, que me quisera deter nêste
negócio destas crecenças, em que cada dia os mais
' dêles enganam o rei,e desejo de lhe dizer que man-
25 de em segrêdo inquirir destas crecenças; porque
em aquele mesmo ano, em que êles escreveram
que lhe acrecentaram, achará que passou o Estado
mais necessidades e misérias que nunca; e que se
pediu empréstimo ao povo, e que se não pagou aos
jo mercadores o arroz, o trigo, o bréu, a madeira;

16, e o que eu peior tomo em B.


18, emburulhadas: enredos, embrulhadas.

107
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

emfim tudo o que se compra pera as armadas. E


se o que se toma forçosamente aos vassalos pera
el-rei por êste modo chamam acrecentar, posso-lhe
' eu chamar furtar, do que os ministros devem dar
5 larga conta a Deus em não mandarem saber destas
cousas.
Que vos hei-de dizer mais? Quero concluir com
isto: Saem nos Contos com dívidas entre os capitães,
feitores e outros oficiais: carregam-se logo sôbre o
10 executor dos restos e tiram certidões, que mandam
ao reino, de como ficam cincoenta, sessenta e cem
mil pardaus para arrecadar. Depois alegam as par-
tes de sua justiça, mostram sua inocência, são
absoltos das dívidas e lá no reino cuidam que tem
15 cá um poço d'ouro e tudo é aire.
Ora, senhores, quero-vos desenganar: poucos ofi-
ciais dêstes e inda alguns viso-reis houve que es-
crevessem verdades a el-rei; e afirmo que menos
crédito havia êle de dar a muitas cartas destas
20 que a outras de particulares, porque êstes, como
desinteressados, com' mêdo de seu rei e amor de

4 e segs. os ministros... Recomeça a letra de Couto.


8 e segs. Em B o texto é um pouco diferente: Saem
com dividas contra as partes, e logo as carregam sôbre
o executor dos restos e tiram certidões disso, que man-
dava ao reino, que montam muito. Depois livram-se as
partes; não devem nada; e Id no reino cuidam que tem cá
um poço d'ouro." E mais, senhores, quero-vos dizer uma
verdade e descobrir um segredo, e Sua Mercê, que gover-
nou a índia, confessará: afirmo-vos que alguns viso-reis .
houve que não disseram verdades aos reis, e que menos
crédito havia ele de dar por justiça às cartas dêstes que
às dos particulares, porque estes, com medo do rei e amor
da pátria não trouxeram nada.

108
o SOLDADO P R A T t C O

sua pátria não trouxeram nada: mas os que já não


tem nenhum do rei, nem sei se de Deus, £que ver-
dades lhe podem falar?
Faça el-rei fia experiência: depois que um dês-
5 tes viso-reis que digo (nos puros não falo) vier pera
êste reino, mande el-rei Qa das contas que lhe es-
creveram, à índia à mão de um prelado grave, que
inquira sôbre aquelas cousas de pessoas honradas
e sem suspeitas; achará as móres falsidades do mun-
10 do e então se desenganará. E castigue muito rija-
mente quem lhe escreveu tais cartas, pera ficar por
exemplo aos outros e não fiar-se tanto delas, que
a nada mais dá crédito. E se de fora escrevem ou-
tra cousa a el-rei e lhe dão outras informações,
75 sempre se reportam às cartas que os viso-reis lhe
escrevem.
E se não, vejam Vossas Mercês quantas vezes
escreve a cidade de Gôa a el-rei queixas dos seus
q viso-reis lhe quebrarem seus privilégios e liberdades,
20 a que não responde mais senão que lá escreve a
seus viso-reis sôbre aquele negócio! Ora vejam que
fará nêle o viso-rei que agravou a cidade, e que
justiça e emenda lhe fará! Mas sabem Vossas Mer-
cês de que isto vem? De Sua Alteza não mandar
23 ver as cousas da India com tempo pera nelas pro-
ver; porque está já em costume guardar-se tu(Jo
pera Janeiro e Fevereiro, em que se as naus fazem
prestes; e então, como o tempo é curto, não fazem
mais que responder como por demais, e meter o
30 jôgo na mão do viso-rei, que sempre faz o que
quer.

1, skíj pátria. Acaba a letra de Couto.


6, contas: relações, informações. Em B: cartas.

109
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Mas pera isto não ser assi, houvera de haver


neste reino um tribunal separado pera as cousas da
Índia de homens muito inteiros e zelosos do bem
comum, que viram os negócios da Índia todos e res-
5 pondessem a êles com tempo, dando primeiro conta
a el-rei; e assi, quando as naus partirem, estará tudo
provido e desagravar-se-á a cidade das sem-rezões
que os viso-reis lhe fazem, e os homens particulares
das sem-justiças que recebem; porque, senhores,
io pera um estado tão apartado do rei, e onde os viso-
-reis e ministros de justiça e fazenda são tão livres,
parece sem-justiça, quando ua pessoa escreve agra-
vos do viso-rei, responderem-lhe: — Lá está o viso-
-rei, que vos fará justiça. E se êle é o que me faz
15 as injustiças, como as emendará? O que não posso
deixar de sentir, e falar nisto como bom português.
Por certo, senhores, e olhai que vo-lo afirmo assi,
que não teve el-rei na Índia móres imigos de sua
fazenda e alma que alguns viso-reis; e não vos
20 enganeis com mostras de virtude, porque não sei
que tem a India, e debaixo de que planeta está,
que assi muda os pensamentos e desejos bons, que
é pasmar. E não quero mór exemplo que em Sua
Mercê, que aí está, que governou aquele Estado
25 por sucessão, tão amigo antes dos soldados, tão
zeloso da justiça, tão avorrecedor das desordens
dos viso-reis, que nenhua cousa tratava nas con-
versações mais de como não fazia mercês aos ho-
mens; de como se governava por criados e paren-
30 tes; de como não deixava fazer justiça aos minis-
tros; de como tomava as cousas pera os alma?^^
e armadas sem as pagar.

2, soparado em A.

IIO
O SOLDADO PRATICO

Diga êle o que fez em governando; eu hei de fa-


lar verdade; e Vossa Mercê me mande por isso
matar, que sou de sessenta anos e já não perco
nada. Nunca em vosso tempo vi justiça, nem se
5 pagou a soldado nada, nem a mercador o que se
tomasse; tudo era vendido por dinheiro polas pra-
ças: clamores e prantos, sem haver quem os pudes-
se remediar!
Aqui me cai a propósito um caso que sucedeu
o a um fidalgo, o qual estando por capitão em ua
fortaleza, vivia nela outro muito honrado, casado
e pobre; e estando êste capitão um dia em práticas
com sua mulher, lhe disse: — Por certo, que não
sei qual é o governador ou viso-rei de tão má con-
5 ciência, que não dá de comer a êste fidalgo. E estas
queixas fazia em público. Acertou aquele mesmo
inverno de morrer o governador, e suceder êste capi-
tão na governança; estando já de posse dela, lhe
lembrou a mulher as queixas que fazia de não da-
'b rem de comer àquele fidalgo, pedindo-lhe que,
pois agora estava em sua mão, que o remediasse;,
ao que lhe respondeu estas palavras: — Olhai cá,
senhora, então falava como Foão, agora hei de
fazer como governador da India. E assi lhe não
(5 deu nada. Guarde-vos Deus, senhores, dêstes que
blasonam das cousas dos viso-reis, que, se se virem
naquele lugar, hão-no de fazer muito pior.
Fid. — Pois não me perdoareis essas verdades
só por estar presente?
to Sold. — Não, senhor; que, de se elas não fala-
rem, está o mundo no estado em que está. Sabeis

16, Acertou: sucedeu, calhou.

III
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

de que me escandalizo, e de que os reis hão de dar


grande conta a Deus? Disso que dizeis,' e de êles
vos não terem castigado a vós e a outros gover-
nadores e viso-reis. E se vós, senhor, quando suce-
5 destes na governança vos receáreis que el-rei vós
havia de castigar, não andáveis e governáveis mais
registado? Por'certo, si; mas como sabeis que tudo
passa por alto, e que o mais que vos fazem é pren-
der-vos na vossa quinta, nada vos dá de nada: não
io temeis ao rei nem a Deus. E não queirais que fale
mais; que me farei doudo, e andarei pedindo polas
ruas justiça contra quem tem a culpa de todas estas
cousas.
Desp. — Oh! prouvera a Deus que dêsses doudos
15 vira eu alguns! Mas sabeis porque o mundo está
perdido? Porque tudo são sesudos, e tratam mais
de si que de ninguém, não lhe dá de nada mais
que do que lhe releva.
Sold. — Sabem Vossas Mercês o que eu cuido?
20 — hei de dizer esta verdade, e tenham-no Vossas
Mercês por temeridade, e custe-me o que me cus-
tar: que não lhe dá aos ministros de cá e de lá mais
da India que daquela palha que ali está; e que me
parece que folgarão d'ela se acabar por vos de-
23 sobrigardes dela; porque, poios descuidos com que
a provêm de cá, entendemos os de lá isto.
jQue quer dizer escreverem-vos um ano as cida-
des, fidalgos, religiões e particulares que a índia

6-7, mais registado: com mais acêrto e moderação.


27 e segs. Veja-se o nobre desassombro com que o escri-
tor ataca o próprio rei, servindo-se embora duma forma
indirecta.
28, religiões: ordens religiosas.

112
O SOLDADO PRÁTICO

está perdida, e que é necessário que lhe acudam,


que o viso-rei que é frouxo e pouco zeloso do
bem comum? Êsse mesmo ano, quando esperamos
por um viso-rei com muitas naus, dinheiro, bom-
5 bardeiros e soldados e munições, mandardes mais
um ano de govêrno ao viso-rei, de que tivestes tan-
tas queixas, e acudirdes à Índia com quatro naus
sem gente e sem nenhua cousa das que apontei?
Não é isto dizerdes que vos não dá .nada de nada,
io ou que não lestes as cartas que vos escreveram, e,
se as lestes, que vos esqueceram os clamores que
iam nelas?
Por certo que, se naquele Estado houvera um rei
cristão, a quem os homens puderam ir servir, que já
15 o houveram de fazer, e não se cansar com as cou-
sas da Índia; mas lá não temos mais que imigos de
tôdas as partes, que nos desejam beber o sangue,
os quais sabem tão bem como nós os procedimentos
dos viso-reis, e das queixas que dêles escrevem, e
20 quando chegam as naus do reino, a gente e socorro
que trazem, e o pouco que a todos dêste reino dá
daquele Estado, e os desgostos que todos os da
Índia temos da pouca conta que dela se faz; polo
que já nos não estimam; e se êles puderam e não
25 tiveram as mãos atadas, entendei, senhores, que já
o negócio havia de estar concluído; mas, graças a
Deus! que os tem enfreados com o mêdo do Grão-
-Mogor, que deseja de lhe tomar os Estados, e por
cuja vida nos convém fazer orações; porque, se êle
30 morre, e êstes bárbaros se vêm fora dêstes receos,

5, mandardes. Entenda-se: «Que quere dizer o facto


de mandardes?».

113
8
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

mêdo hei que descarreguem sua potência contra nós,


e que nos tomem às mãos; porque o tempo do viso-
-rei D. Luís de Taíde é acabado, que, com aquela
sua grande prevenção se sustentou contra todos,
j Vêde que será hoje, sem artelharia, sem munições,
sem armadas, e inda sem soldados e sem capitães,
porque tudo é acabado!
Desp. — Valha-me Deus, como tudo isso falta!
E os viso-reis que fazem?
io Sold. — Muito gracioso é preguntar-me Vossa
Mercê isto, pois lho eu já disse muitas vezes! E pre-
gunto eu a Vossa Mercê: iQue faz el-rei, que não
manda saber o que tem na India, e como estão seus
almazéns, e como andam suas armadas, e o como
í5 procedem seus capitães móres? Que os viso-reis tra-
tam do que lhes releva; e o que é muito pera notar,
que deixam estas cousas, que são de tamanha obri-
gação sua, e metem a fouce na messe alhea; por
que assi vão as cousas de mal em peor.
20 Desp. — Declarai-me isso, que o não entendo.
Sold. — Si, farei: e dêm-me Vossas Mercês ua
pequena de atenção. Na Índia primitiva, quando os .
portugueses tinham seu nome alevantado sôbre êsses
signos celestes, aqueles Césares que a governavam
25 não traziam ôlho em mais que em dilatar a santa
Fé Católica; em acrecentar o património real e em
enriquecer o Estado e os vassalos; em fazer elei-
ções de capitães; em trazer as armadas mui ordena-
das e providas; em ir buscar os turcos a Suez; em

18-19, por que: pelo que, e por isso.


21-22, úa pequena de atenção: um pouco de atenção.
Locução partitiva, de carácter arcaico e popular.

r/4
O SOLDADO PRÁTICO

castigar e oprimir o Malavar; em trazer enfreados


e sopeados os reis vizinhos; em trazer os soldados
fartos e contentes; em exercitar às barreiras assi
de espingardas como de artelharia; em visitar os
5 hospitais, e em muitas outras cousas desta sorte.
Agora já se não costuma isto; mudou-se o vinte
a outra cama: já as armadas se fazem por compri-
mento, sem tempo e sem ordem; os soldados andam
clamando; as casas que em Gôa havia d'esgrima,
io tornaram-se escolas de dansar e ensinar moças; bar-
reiras, nem de ua cousa nem doutra: é ofício vil;
e assi não há bombardeiro em tôda a índia que
acerte à serra dês outra, sem lhe atirar do pé dela.
As visitações dos hospitais tornaram-se na Casa dos
15 Contos e da Relação; de governadores se fizeram ve-
readores e de capitães prelados. E assi tudo o mais
desta sorte.
Desp. — Que chamais prelados e vereadores? De-
clarai-nos isso, que o desejo de entender.
Sold. — Sua Mercê o sabe mui bem; mas di-lo-ei
20 a Vossa Mercê. Fizeram-se os viso-reis prelados,
porque já'gora os frades de S. Francisco e S. Do-
mingos não podem eleger prelados senão os que
êles querem; de maneira que se metem na jurdição
eclesiástica tudo o que querem; e fazei-me mercê

3, bandeiras em B.
3, barreiras: trincheiras exteriores que serviam para
os soldados se exercitarem no tiro ao alvo. Depois signi-
ficaram o próprio alvo.
6-7, vinte: paulito no jôgo da bola: «mudar o vinte»
significa «mudar de jôgo».
7-8, por comprimento: por formalidade.
13, que acerte à Serra de Sintra em B. Grosso dis-
parate!

"5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

que lho não consintais: vereis se vos tapam as bôcas


e se vos pagam vossas ordinárias! E não vêm quanto
Deus defende o rei tomar o ofício de prelado, e
como castigou por isso alguns.
5 E se quereis exemplos, vêde el-rei Jeroboão, que,
querendo tomar o ofício de sacerdote, foi amoesta-
do pelo profeta Jadão que tal não fizesse, que se
des-serviria Deus muito disso; e que se o fizesse, en-
tendesse que um da geração de David mataria cruel-
10 mente naquele altar os sacerdotes, em que queimaria
os ossos dêles, maus, sôbr'êle, mau Jeroboão. E que
não houvesse esta profecia por vã, porque em sinal
de ser verdadeira, aquele altar se dividiria logo em
duas partes, o que logo, mediante a fé do profeta,
J5 aconteceu diante de todos. E, lançando o rei mão
do profeta para o prender, se lhe paraliticou. Aza-
rias, rei de Jerusalém, por querer também tomar o
ofício de sacerdote, lhe foi à mão o pontífice Aza-
ria com os sacerdotes, os quais êle ameaçou; e logo
20 veo um terremoto do céu tamanho, que caiu um
monte dentro na cidade, e deu um raio do sol no_
rosto del-rei, de que ficou gafo, e o obrigaram a se
apartar do povo.
Emfim jque hei de dizer a Vossas Mercês? Inda
25 isto é pouco; porque até nas conservatórias dos Papas
e preferências dos dominicos com os agostinhos houve
viso-rei que se quis entremeter; por onde eu lhe

10-15, e que queimaria os ossos déles; e assim que não


deixou de ser esta profecia certa e verdadeira; porque,
pondo a mão sâbre o altar Jeroboão, se dividiu logo em
duas partes aquele altar diante de todos em B.
20, terromoto em A.
22, gafo: leproso.

Il6
O SOLDADO PRATICO

receo algum grande castigo; e quando cá não fôr,


será lá, onde as penas são bem diferentes e o ar-
rependimento já não vai: porque doutrina é de teó-
logos que, se Deus Nosso Senhor neste mundo cas-
5 tigasse todos os pecados, pareceria tirar-nos da vista
dos olhos (mediante a fé cristã) a ressurreição das
carnes e do último dia de juízo. O que seria claro:
se aqui neste mundo se pagassem os pecados, já não
haveria lá outro em que pagar; e assi uns castiga
io aqui por que se mostre sua providência e poder,
e para que outros o temam; e a muitos deixa o cas-
tigo pera a outra vida, por que entendam que há
lá onde se pague o devido. Tudo isto que até'gora
disse someto à correição da Santa Madre Igreja,
iç porque são matérias em que os soldados não temos
licença pera falar.
Isto é quanto a se fazerem os viso-reis prelados.
^ Disse também que se faziam vereadores, porque já'
gora nas eleições das cidades, que são livres, se tem
20 metido tanto, que se não faz vereador nem juiz dos
órfãos senão quem êles querem. E um viso-rei houve,
t que, estando embarcado no rio de Gôa em ua galé
pera ir pera fora, o dia que se na Câmara fazia ua
eleição destas, e levando-lhe lá à galé a pauta, a
25 não houve por boa, e fez ali logo eleição por si,
e meteu nela quem quis, sem os vereadores ousarem
a boquejar.
E sabem Vossas Mercês de que isto vem? De que-
rerem ter naquela Câmara vereadores, suas feituras,
30 pera fazerem tudo o que quiserem e lhe concede-

29, vereadores, suas feituras: vereadores feitos por


êles, seus servidores. Em B: suas feitorias.

117
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

rem quanto pedirem, como fazem, muito em pre-


juízo do serviço del-rei e de seus vassalos. Mas tam-
bém vos saberei dizer que destas desordens dos viso-
-reis tem a mesma cidade culpa, porque se tem tão
5 desautorizada com o rei e com os viso-reis nos modos
de suas eleições e nos despropósitos de suas escri-
turas, que nenhua conta fazem dela, porque, como
os mais dos vereadores são eleitos por amigos soli-
citados e por votos adquiridos, e alguns a quem
io nunca souberam pai nem mãi, antes os viram vir
do reino em ofícios baixos, os quais trazem o olho
no interesse, não lhe dá nada do bem comum, por-
que não tratam mais que do seu particular.
Desp. — Isso é novo pêra mi. E de serem verea-
15 dores tem interesse?
Sold. — jOra essa é boa graça, que me Vossa
Mercê pregunta! E que cousa há hoje de que os ho-
mens não pertendam tê-lo? E saiba Vossa Mercê,
quanto que me afirmaram, que diziam alguns que
20 lhe importava o ano de vereador quinhentas dobras.
Ora vêde como o não hão de solicitar! E assi o fa- „
zem que, em lhe cabendo outra vez lugar, logo saem
na pauta; e assi sei tempo em Gôa, em que andou o
govêrno da cidade em cinco ou seis homens no-mais
25 e nunca outros melhor nacidos e entendidos chega-
ram àquele lugar, porque o não solicitaram.
E o mesmo que digo da eleição da cidade digo
da Misericórdia; porque também de maravilha se
buscam os mais virtuosos, senão os mais amigos

22, que em se lhes acabando o lugar em B.


24, no-mais; não mais. Forma antiga cristalizada
(nonj mais), ainda empregada por Camões.

Il8
O SOLDADO PRATICO

e parentes. E ouvi dizer a um cidadão meu parente,


homem bom, honrado e entendido, que havia mui-
tos anos era irmão, e que na fôlha que levava dos
eleitores sempre punha os melhores da terra, e que
5 nunca lhe saía nenhum daqueles por eleitor; e a re-
zão era porque fazia a fôlha com sua conciência,
e não punha nela solicitados, senão escolhidos; por-
que pera isso nunca teve parentes nem amigos.
Ora, já que me cai a propósito, não quero passar
10 por ua cousa desta Santa Casa da Misericórdia; e é
que houve tempo, em que os fidalgos que foram
provedores faziam daquilo governança da índia,
e tudo era emendar compromissos e acrecentar ou-
tros de novo com tamanhos despropósitos, que é
ij pasmar; e certo que se havia de lembrar a el-rei,
que, como protector daquela casa e de todas as do
seu reino, mandasse inquirir sôbre suas cousas,
A principalmente sôbre as eleições; e que se rompes-
sem todos os compromissos que não fossem feitos
20 na Misericórdia de Lisboa, como cabeça de tôdas as
casas, e que nenhum irmão de Mesa possa ser elei-
• tor, porque, de o serem, são os despropósitos todos;
porque nela ante-tempo se forjam as eleições; e
como os homens sabem que forçado dela hão de
25 sair, todos tem-nos solicitados pera o que querem.
E disto nacem muito grandes inconvenientes e des-
serviços de Deus.
E perdoem-me Vossas Mercês, que me diverti da
eleição da cidade, em que ia tratando, e do grande
50 dano que é entremeterem-se nelas os viso-reis, por-

24, forçado: forçadamente.


28, diverti: desviei.

liç
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

que daí sucedem muitas cousas, em que não quero


falar, de vergonha; porque já previlégios dos reis
não se guardam; porque quem não guarda os de
Deus, tudo fará. Sinais grandíssimos pera se tudo
5 acabar! Ameaçado está pola bôca de Deus que todo
o reino em si diviso se desolaria. Que maior divisão
que a do viso-rei ou governador com Deus? Vejam-
-se os castigos que êle deu ao povo de Israel por esta
divisão; achar-se-á a Escritura Divina chea dêles;
o e por outra parte das muitas mercês que fez aos reis
e governadores conformes e governados por seus
preceitos, como lhe acrecentou seus reinos e destruiu
seus imigos.
Veja-se Josafat, rei de Jerusalém, temente e zelo-
5 so da honra de Deus, que, vindo pera o destruírem
os moabitas, amonitas e árabes, não tendo o bom
rei com que se defender, socorreu-se a Deus com
todo o seu povo; o qual, querendo-lhe pagar seu
bom zêlo, meteu tal ódio e divisão entre seus imi-
o gos que, vindo uns com outros à batalha junto do
lago Asfaltiden, tendo a cidade de Engade de cêrco, -
foi entre êles tanta a mortindade que, quando Josa-
fat chegou aos desertos de Tecua, viu os arraiais
sem gente; e os roubou e queimou, e recolheu gra-
5 ves e ricos despojos; e por aquela mercê deu logo
ali muitas graças ao poderoso Deus, pelo que aquele
vale se ficou chamando das Graças: porque o agra-
decimento de suas mercês não há de ficar pera de-
pois, senão logo, pois logo que tendes necessidade
o vos socorre.
Outro grande sinal também vejo na índia, polo

24-25, graves: pesados, abundantes.

120
O SOLDADO PRATICO

qual receo gravíssimos castigos: e é ver os viso-reis


e ministros mais amigos das honras e proveitos de
seus cargos, que das obrigações e encargos dêles.
E praza a Deus não abranja esta maldição também
5 a êste reino! Isto é cousa que Deus sente muito e
castiga logo; e vêde o que diz S. Paulo: — «E vós
quereis subir às honras e recolher os fructos, e
refusais o trabalho?» — Pois não pode ser; porque
a primeira cousa em que o viso-rei e ministros hão
io de pôr o pensamento, quando são chamados pêra
a cargo, é nas obrigações dêle, que são tamanhas
e tão pesadas que muitos quiseram antes viver em
pobreza que chegar a tamanhas honras com tantos
encargos.
15 De Otanes, persa, temos nas suas escrituras que,
por morte de Cambises, por outro nome Assuero ou
Nabucodonosor, pondo-se em parecer sete persas
• dos principais, se seria melhor governarem-se por
muitos se por um só, e sondo Otanes de parecer que
20 se governassem por muitos e os mais de contrário
parecer, assentou-se que de entre todos se elegesse
• por sorte o que havia de governar. O que visto por
Otanes, correndo polo pensamento os encargos do
tal cargo, se lhe caísse dêle a sorte, disse a todos
25 que êle queria ficar de fora, e que d'antre os seis
se lançassem aquelas sortes; e assi caiu em Dario,
e êle ficou livre dos encargos, que o cargo lhe repre-
sentava.
Em Tito Lívio temos que, quando o cônsul Mi-
jo núcio estava no seu arreai cercado dos sabinos e

8, refusais: recusais, evitais.


30, arreai: arraial. Forma antiga, que Couto usa
a par da forma mais moderna «arraial».

121
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

equos, foi em Roma eleito Lúcio Quíncio Cincinato


por ditador pera o irenarcado; e indo com suas hos-
tes, cercou os imigos em seus arraiais, assi como
eles o tinham feito ao cônsul Minúcio; e por fim os
5 venceu e fez passar por baixo do jugo; e indo a
Roma, foi recebido com triunfo, e no cabo de catorze
dias renunciou a ditadoria, podendo usar dela seis
meses, e tornou-se à sua lavoura, receando os encar-
gos de sua dignidade; porque isto sucedeu aos capi-
10 tães como êstes, que andam buscando pera os car-
gos, e não aos que os solicitam, grangeam e ainda
peitam; porque êstes mais querem os fructos que as
honras, e êles lhe fazem passar mui levemente poios
encargos delas.
15 Quando os romãos mandaram aquele inteiro Fa-
brício por embaixador a el-rei Pirro a resgatar os
cativos, que estavam em seu poder, daquela bata-
lha que venceu na cidade de Heraclea de Campâ-
nia, sendo cônsul Valério Livino, cometendo-o Pirro
20 que ficasse com êle, que o faria viso-rei da têrça
parte do seu reino, que tudo lhe êle enjeitou, porque
via os encargos de tamanha obrigação e antes que-
ria morrer de fome, por ser muito pobre, que
tomá-los sôbre si, —aqueles capitães romãos, quere-
25 cebiam triunfo maior e insolente ou de ovação, e
os mais, primeiro compriam com seus encargos que
chegassem àquelas honras. Deixemos muitos, que
as deixaram muito grandes e muitos proveitos, por
não se atreverem com tamanha obrigação. Vamos
30 aos que inda enjeitaram sua própria vida.
2, pera o ir chamado em A; para ir chamado em
B. Deverá tratar-se dum derivado de irenarca: apazigua-
dor da república.
25, triunfo insigne de ovação em B.

122
O SOLDADO PRATICO

Em Tito Lívio temos que, estando o cônsul Marco


Régulo cativo em Cartago, sendo preso e desbara-
tado pelos Asdrúbais com morte e destruição de
trinta mil romãos e cinco mil cativos, depois que
5 os cônsules Paulo Emílio e Fúlvio Nobilior houve-
ram tamanhas vitórias dos cartagineses que os obri-
garam a pedir pazes ao Senado; pera o qual negó-
cio elegeram por embaixador ao cônsul Marco Ré-
gulo, que inda estava cativo; e primeiro lhe toma-
10 ram juramento que, depois do negócio, a que ia, aca-
bado, se tornasse a Cartago; e, presentando-se no
Senado e dada sua embaixada, sôbre que houve
diferentes pareceres, foi por fim chamado o mesmo
Régulo a conselho, o qual com ua fala muito grave
e elegante amoestou a todos a prosseguirem na guer-
i 15 ra, e que se não fizessem pazes aos cartagineses,
porque entendia dêles que nunca seriam amigos ver-
% dadeiros dos romãos; e que, segundo o estado em
que estavam, os poderiam sujeitar e destruir fácil-
mente, e que lhe não fôsse impedimento seu catf-
20 veiro pera deixarem de prosseguir na guerra, pois
. era um bem tão comum.
E para que passe daqui, não quero deixar de es-
tranhar aos viso-reis o grande êrro que todos come-
tem, em fazer tantas pazes ao Samorim; estando tão
25 entendido que, emquanto houver mouros em seu
reino, não pode ser nosso amigo: está muito averi-
guado e experimentado tantas vezes que, todas as
vezes que querem quebrar as pazes, roubar os vas-
salos e afrontar o Estado e enxovalhar os viso-reis,
30 o fazem; porque, quando o negócio vem a parar em

29, apontar o Estado em A e B.

123
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

grande rompimento, é passearem-lhe por sua costa


os nossos navios, e queimarem-lhe quatro palhaças
e outras tantas almadias com grandes carântolas e
certidões, que disso lhe passam; e por fim do negó-
5 cio, vem a fazer pazes, que não duram mais que em-
quanto os mouros querem.
Ora ^como é tão mal entendido isto neste reino,
vendo danos tão claros, pera não mandar el-rei,
sô pena do caso maior, que nunca jámais se faça
io paz ao Samorim, senão tôda a guerra que o Estado
puder? Porque, se os viso-reis quiserem, em quatro
anos porão em estado aos naires a se levantarem con-
tra os mouros, e meterem-nos a todos à espada.
E se me disseram que se faziam essas pazes dis-
15 simuladamente, assi por necessidade, como pera
poupar, então estava isso muito bem; mas o Estado
não tem nenhua necessidade do Samorim; porque
pera a carga das naus em Cochim, Coulão, e nos
rios do Canará, há quanta pimenta se houver mes-

2, palhaças. Talvez «palhoças».


3, almadias: barcos estreitos, feitos de uma só peça.
3, carântolas: mostras, sinais. Em B carajas e em
A própriamente carantas, que também poderia ser êrro
de cópia, por carautas, palavra que, embora explicável
em português (do baixo latim car acta), ainda não apa-
receu, que saibamos, em documentos, mas sim o seu deri-
vado caráutolas, caráutalas.
• 3-4, com grandes carântolas e certidões, que disso
lhe passam. Entenda-se: «os viso-reis faziam com que lhes
passassem certidões dessas empresas na Costa do Samo-
rim, em que com grande exagêro e côres feias (carântolas)
pintavam feitos de pouca monta». Vê-se aqui a ironia
de Couto.
12, naires: fidalgos e cavaleiros do Malabar.
14, disseram: dissessem.

124.
o SOLDADO PRÁTICO

ter, deixando a que pode vir de Malaca, que é ua


grande soma.
Ora pera poupar nada se faz, porque forçado,
quer haja pazes quer não, hão de ir armadas ao
5 Malavar, em que.se despende muito. Por onde, pois
isto está tão averiguado, jpera que são pazes nem
fazer-lhe mais guerra que passear-lhe a costa, to-
mar-lhe os portos, impedir-lhe os mantimentos, evi-
tar-lhe os paros que são a roubar? Só com isto, sem
io mais lhe darem em terra nem arriscar gente, se con-
sumira todo o Malavar em quatro ou cinco anos.
Por certo que estou pasmado de como se isto não
entende, e como lhe não fazemos de ua vez boa
guerra, pera êles também fazerem muito boa paz
15 e que dure muito; mas como nós lhe não sabemos
fazer a guerra, e as armadas vão àquela costa assi
por comprimento como pera as darem os viso-reis
0 a seus parentes, pera requererem como capitães-mó-
res do Malavar, nem se lhe faz guerra nem paz.
20 Digam-me Vossas Mercês isto: ^porque não há
um viso-rei tão resoluto, que faça isto que digo?
, Custa a armada que vai ao Malavar sessenta mil
pardaus? Porque não tomará vinte mil e os deposite
em Cananor e tenha ali inteligências com os naires,
25 e inda digo mais que com o mesmo Samorim, e
dar-lhe o dinheiro pera lhe mandar em segrêdo quei-
mar quantos navios de cossairos houver em todos

8-9, Evitar-lhe os paros em A: passos em B. Talvez


parós: paraus.
' 9, que são a roubar: que são feitos apenas com
mira no roubo. ,
14-15, muito boa pas. Digam-me Vossas Mercês em B.
Faltam-lhe pois umas linhas.
27, cossairos: corsários, piratas.

125
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

os rios, o que se fará mui fácilmente? E os naires


e o Samorim por dinheiro entregarão suas mulhe-
res e filhos; e assi, queimando-se os navios, não há
pera que se fazerem armadas, senão alguns navios
5 ligeiros contra outros tais.
E se me disserdes que assi ficarão os soldados
sem terem em que se exercitarem, a isso digo que
aí está Ceilão, Malaca e outras e outras partes, em
que se repartam, e com isto ficarão os viso-reis pera
io cometerem tôdas as empresas que quiserem, com
se não despender a fazenda real nestas armadas.
jNão tendes Surrate, não tendes Baroche, não tendes
outras trezentas partes de mais proveito pera o rei
e pera os soldados? Que quer dizer paz ao Malavar
15 êste ano, paz o outro, dês que a Índia se descobriu,
e nunca se guardarem ?
Não já assi os romãos, que, entendendo Marco
Régulo, como ia dizendo, o dano e afronta que era
daquela república, fazer-se pazes a Cartago, per-
20 suadiu ao Senado a guerra, com entender o risco
que sua vida corria, porque antes a queria perder
que desacreditar sua pátria — do que aos portu-
gueses dá bem pouco, e aos viso-reis menos; por
que vão muito ricos pera suas quintas; e nada lhes
25 dá das afrontas nem quebras do Estado; porque,
quando se a Índia perder, todos, e inda os que mais
a esfolaram se hão de jactar que não foi em seu
tempo, e hão de blasonar daquele, em cuja mão

10, como se não despender em A. Significará talvez:


«contanto que se não despenda».
20, com entender: apesar de saber.
22-23, do 1ue "os aos portugueses em A.

I2Ó
O SOLDADO PRÁTICO

isto suceder (o que Deus não permita!) só pera com


isso cuidarem que acreditam suas tiranias. E pola
ventura que, se isto suceder, que eu temo muito
que seja em tempo de um viso-rei melhor, mais jus-
5 tiçoso e menos cobiçoso que todos, sendo êles os que
a perderam e que deram com ela de pernas acima.
E tornando a Régulo: depois de persuadir ao Se-
nado a não fazer pazes, lhe pediu licença pera se
tornar a seu cativeiro, do que todos ficaram espan-
10 tados; porque, querendo-o deter, não quis, dizendo
que antes queria comprir com os encargos de seu
ofício de embaixador e do juramento que fizera,
que ficar em sua Uberdade; e despedindo-se dêles,
se foi a Cartago, onde logo foi morto com tormen-
i j tos, porque souberam que êle lhe estorvara as pazes.
E pois me cai aqui a propósito, não deixarei de
tocar o quão mal os viso-reis e governadores todos
cumprem com os encargos dos juramentos que to-
* mam, e homenage que dão neste reino; e por
20 certo que me tremem as carnes cada vez que cuido
o juramento que dão todos nas mãos del-rei, no qual
juram que não requereram aquele cargo por si nem
* por outrem, nem o solicitaram, peitaram, nem fala-
ram em cousas que parecesse tocar nisso. E êles,
25 está tão sabido quanto os mais dêles o solicitaram,
cavaram, peitaram e repeitaram, e inda o mais que
por honra de muitos calo.
Juram mais de fazer justiça e cumprir os man-
dados del-rei, de que êles estão tão fora e zombam
30 tanto, que cuidam que não tem quem lhe peça disso

23, nem o solicitaram, cavaram em B. Falta-lhe


um pedaço.

127
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

conta; e assi é que não pedem, pois chegando à índia,


na entrada de Gôa, lhe dão um juramento sôbre um
crucifixo e missal, em que prometem de guardar
os privilégios da cidade, e êles de propósito os que-
5 bram a cada passo, sem lhe ficar disso escrúpulo
por cousa muito pouca; porque cuidam os viso-reis
que podem pouco, se não puserem os peis por cima
das ordenações e regimentos del-rei, e inda o tem
por opinião.
io E o mesmo rei tem a culpa, porque nos regimen-
tos que lhe dá, lhe diz no cabo: — «Que por cima
de tudo farão o que lhe parecer que é serviço seu»;
o que êles entendem tão mal, inda que, por melhor
dizer, do que êles querem usar tão mal, que tomam
0
15 tal capítulo pêra capa de suas desordens e apeti-
tos, pondo os peis por cima de tudo, e quebrando
todos os regimentos, leis, previlégios e provisões
que querem.
E tornando à matéria dos encargos, que ia tratan-
20 do: lêmos também de Sténio, governador dos ma-
mertinos, que fez a todos os de seu povo que seguis-
sem a parte de Mário. E sendo vencidos de Pompeio,"
tendo determinado matar a todos, levantou-se o
Sténio e disse: — «que não era justo que, por culpa
25 de um só homem, padecessem tantos povos; que êle
fôra ocasião de todos serem da parte de Mário: polo
que, já que êle só tinha a culpa, nêle só se cum- *
prisse a sentença. Maravilhado Pompeo de seu
esfôrço, lhe perdoou, e o mesmo fez a todos os ma-
30 mertinos; porque viu quanto à risca compria seu
capitão com os encargos de seu ofício.

7, peis: pés. Forma antiga e popular.


9, opinião: vanglória.

128
O SOLDADO PRÁTICO

Tito Vespasiano, undécimo emperador de Roma,


compria tanto com os encargos de seu ofício que,
lembrando-lhe ua noite que aquele dia se lhe pas-
sara sem fazer algum bem, e que se afastara de
5 seus encargos, começou a bradar rijamente, dizen-
do que perdera aquele dia; porque por bem perdi-
dos podem os reis e governadores contar todos os
em que não fizerem algum bem, ou em que compri-
rem mal com as obrigações de seus cargos. Péricles
io todas as vezes que era eleito pêra capitão dos exér-
citos, dizia consigo: — «Olha, Péricles, que hás de
mandar e governar homens livres, gregos e atenien-
ses.» — Crisipo, por se não arriscar a comprir mal
com os encargos do ofício, enjeitou o de govema-
15 dor de sua pátria, dizendo: — «que se o fizesse mal,
descontentaria a Deus; e se bem, aos homens».
Ora vejam Vossas Mercês que perigo êste, em que
^ os viso-reis se metem com tanta confiança, como se
foram a algflas vodas! Por isso cada um lance as
20 barbas em remôlho, que tarde ou cêdo hão de pagar
os males que fizeram e os juramentos que tão fácil-
mente quebraram; e por aqui cuido que tenho eu
também comprido com meus encargos. Por isso
dêm-me licença, que é noite, e devo já de os ter bem
25 enfadados.
Desp. — Não cuido que aquele homem do Danú-
bio falou no Senado de Roma mais livre e mais
altamente do que o vós tendes feito em defensão do
Estado da Índia. Eu vos tenho ouvido cousas tão
30 estranhas e maravilhosas, ou, para melhor dizer,
tão torpes e feas, que não sei como Deus não tem
acudido a elas com algum grande castigo.
Fid. — AlgQas cousas entre tanta verdade disses-
tes, a que eu, como homem que governei aquele

12Ç
9
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Estado, pudera replicar e mostrar que estáveis apai-


xonado.
Sold. — A isso me deterei eu mais um pouco,
porque folgarei de Vossa Mercê me mostrar em quê;
5 porque eu pertendo defender minha verdade e ino-
cência.
Fid. — Parece que mostrastes muita paixão em
dizer que el-rei não fazia bem, nos regimentos que
nos dá, em dizer no cabo que, por cima de tudo
io façamos o que nos bem parecer seu serviço; porque
os homens que el-rei elegeu pera tamanha dignida-
de, e fia dêles um tamanho Estado, não parece lícito
que lhe ate as mãos; porque os casos são mais que
as leis; e podem suceder alguns, em que seja neces-
15 sário quebrarem-se todos os regimentos e ordena-
ções. Pois mais vos digo que há anos que se trata
neste Conselho de deixar tudo no do viso-rei, sem
embargo de aos capitães lhe parecer outra cousa;
porque os viso-reis tem mais obrigação que todos de
20 saber as cousas melhor e ter de todos os negócios
melhores informações.
Sold. — Oh! Vossa Mercê quer-me tirar a ter-
reiro de novo? Digo que sôbre isso darei trezentos
gritos. E é possível que se tratasse nunca de se dei-
25 xar tudo no parecer do viso-rei, tendo prelados e
capitães de conselho mui graves e vistos em todas
as matérias? E se isso assi fôra jqual havia de ser o
capitão, que se quisesse achar em conselho, em que,
por cima de seus votos, fizesse o viso-rei o que lhe
30 parecesse? Certo que dêsse descrédito se poderiam os
capitães queixar muito a el-rei; nem me posso per-

30, parece em A.

130
O SOLDADO PRATICO

suadir que lhe entrasse nunca na imaginação um


negócio, que será de mór prejuízo que todos os do
mundo; porque, se, com os viso-reis estarem amar-
rados ao Conselho Geral da Índia, muitas vezes por
5 cima dêles fazem o que querem, pelo que sucedem
tantas desordens que fôra um infinito querê-las re-
citar £que seria, deixando tudo em só seu parecer?
Por certo que, segundo os mais tratam de seus
particulares, que por qualquer muito pequeno da-
10 riam com a Índia de pernas acima; e quando Jhe
disso pedissem conta, tem desculpa muito de aceitar,
que é dizerem que assi o entenderam. E quero que
por seus gostos, façam ua desordem que custe tôda
ua armada, e que se remediasse depois em lhe corta-
15 rem a cabeça: Oh! que consolação será isso pera a
viuva pobre e pera a órfã desemparada, que nela
lhe mataram seu pai e marido? Ora emfim, senho-
• res, requeiro a Vossas Mercês que assi o apresen-
tem em Conselho, que não digo que o tomem os
20 viso-reis só dos capitães velhos e experimentados,
mas inda dos cidadãos que cursaram os negócios;
• e, se fôr necessário, dos soldados velhos; porque
bem certo é: melhor vêm quatro olhos que dous, e
cento que vinte; e mais em um govêrno tão derramado
25 como o da Índia, de Maluco té Sofala, que nem o
viso-rei nem os capitães trataram todas as terras
pera darem rezão das cousas delas: por onde é muito
necessário que se busquem homens práticos e vistos
nelas, pera darem informações.
30 E não haja dizer que, porque não são fidalgos,
não hão de entrar em Conselho; porque cavaleiros
há na Índia, que tiveram tão honrados avós, como
êsses fidalgos, e se não foram ou por falta de ade-
rência ou por outras rezões. ^Porque ficaram per-

I I
3
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

dendo sua valia, se lhe Deus deu tão bom e melhor


entendimento que a muitos dêsses fidalgos, e viram
mais que êles? Mas é esta nossa nação tão coitada,
ou tanto pera pouco, que trabalhamos por nos ani-
5 quilarmos uns aos outros; sendo tão diferente nas
mais, que sempre folgaram de engrandecer seus na-
turais, que achamos por essas escrituras, assi gregas
como romanas, alevantados grandes capitães de ho-
mens bem baixos, porque em todas se estimaram
io sempre muito as virtudes e o valor.
Só nesta nossa não; e deve de nacer de haver isto
em poucos, conforme aquele verso do nosso grande
poeta Luis de Camões nas suas Lusíadas, que diz
que quem não sabe a Arte não na estima.
15 Quem usa das virtudes, sabe-as estimar; e porque
entre nós faltam, falecem os favorecedores delas.
E porque me tenho detido muito, e a noite vai-se
chegando, dêm-me Vossas Mercês licença pera me
recolher; e se mais querem de mim, prestes estou
20 pera os satisfazer outro dia.
Desp. — Muitas cousas quero eu de vós, que me -
são necessárias saber pera meu cargo: pelo que vos
peço, que à tarde d'amenhã vos venhais pera mi,
porque tenho muitas informações que tomar de vós;
25 e então me dareis vossos papéis, e eu trabalharei
por vos despachar, conforme a vossos mereci-
mentos.
Sold. — Si, farei, e direi o que souber, porque
folgarei de aproveitar algua cousa.
30 Fid. — Eu também me acharei aqui, porque fol-

13-14. Couto foi companheiro e amigo de Camões, que


lhe pediu que fizesse um comentário ao seu poema.

*3*
O SOLDADO PRATICO

go muito de vos ouvir, inda que tratastes muitas


cousas, em que confesso que me envergonhastes.
Sold. — Sangue e obrigação tem Vossa Mercê
pera favorecer as verdades, inda que sejam contra
5 êle. Sei dizer a Vossa Mercê que os viso-reis da ín-
dia são como os que andam embebidos em algum
vício, ou de taful ou de amancebado: que não co-
nhecem o êrro senão depois que saem fora dêle.
E fiquem-se Vossas Mercês embora, que amenhã
io nos veremos.

7, taful: jogador de tavolagem.

133
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

SECUNDA PARTE

ARGUMENTO

Ao outro dia se foi o Soldado à tarde pera casa


do Despachador, onde já achou o Fidalgo; e
entre êles se passou o diálogo seguinte :

CENA I
Fidalgo — Oh! Venhais embora! Agora faláva-
mos nós em vossa pele.
Soldado — Não seja isso do rifão antigo, que
diz: falai vós no roitn, e logo aparecerá.
5 Fid. — Não se pode isso dizer por vós; porque
quem faz tudo tão bem feito, nem em saber chegar
a tempo e a horas sabe faltar. Assentai-vos, e torna-
remos à nossa conversação, que não é pouco pro-
veitosa.
lo Despachador — Ao menos pera mi sei dizer que
me é muito necessária; porque me tendes informado
de cousas que nunca ouvi de outrem com tanta ver-
dade e isenção, como vós tendes dito tôdas. E já
que estamos sós e fechados, por amor de mim que me
15 digais vosso parecer sôbre ua cousa, em que tôda
esta noite dei muitas voltas em cama; e é: jque re-
médio pode Sua Alteza mandar pôr a êste negócio
das demandas sôbre os cargos?—porque vejo vir de
lá homens com sentenças dadas contra êles, e mui-

15, em que: por motivo da qual.

^34
o SOLDADO PRÁTICO

tas por cousas muito pera rir; e tenho isto por cousa
muito contra o serviço de Deus e del-rei, porque a
jornada é muito comprida e arriscada pera virem cá
buscar o suprimento dos cargos.
5 Sold. — Por certo, senhor, que Vossa Mercê me
lembrou ua cousa, que me esquecia, e que eu tra-
zia muito estudada, pera ser a primeira sôbre que
gritasse neste reino. E se isso se entende e Vossas
Mercês o tem notado e visto (Como não significam
io a Sua Alteza essas cousas pera prover nelas, e
acudir a seus vassalos? Porque jque gôsto podem
todos ter de o servir, se, depois de eu o fazer vinte
anos, e depois de me despacharem, cabendo-me
cargo daí a outros vinte, quando cuido que posso
15 lograr o fructo de meus trabalhos, armarem-me um
caramilho de ua falência na minha patente, em que
o escrivão que a fez tem a culpa, e darem sentença
• contra mim que não tenho patente, por onde me é
forçado tornar a êste reino, não só a buscar o supri-
20 mento da falência, mas inda pedir a mercê de novó,
porque pela sentença fiquei excluído?
• jComo, senhor? tão pouco é vir da India a êste
reino, e tão pouco custa? Pois sabei que muitos
homens se deixam antes morrer poios hospitais, e
25 suas mulheres e filhos à esmola da Misericórdia,
que virem buscar êsses suprimentos, assi por a via-
gem ser muito grande e arriscada, como por ser de
tantas despesas; que por darem de comer a um ho-

16, caramilho: trapalhada, enrêdo.


16, falência: defeito, vicio qne importa anulação.
18, Entenda-se: «contra mim, alegando que não
tenho patente».

135
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

mem com um moço e um canto dum camarote, em


que durma bem encolhido, lhe levam oitocentos par-
daus. Pois disto tudo não hão os ministros de dar
larga conta a Deus, em não terem, em cem anos
5 há que a Índia é descoberta, remediado isto? Por-
que as ordenações dêste reino, polas quais todos os
seus Estados se governam, foram feitas muito antes
que ela se descobrisse, e os casos de cá são muitas
vezes mais que as leis, e fica meu remédio no arbí-
io trio do juiz a o entender bem ou mal; ou em o meu
contrário ter mais valias e que poder dar, o que eu
não posso fazer, porque sou pobre.
Desp. — Tudo isso se tem cá sentido e entendido,
e há dias que se trata de prover nessas cousas; e há
15 alguns de parecer que o negócio dos cargos se tire
das mãos dos desembargadores, e que o viso-rei
com o arcebispo os determinem; porque assi se evi-
tarão as desordens que nêles vão.
Sold. — Aque del-rei! Aque del-rei! Quem me
20 acudirá, que me vejo perdido? Não sabe Vossa Mer-
cê aquele adágio italiano, que diz: Caí da certã, e "
dei nas brasas? Por certo que assi será êste negócio.
Ora emfim venho a entender que nunca neste reino
se acertará com a Junta ao Governo da India; e sem
25 embargo de termos já praticado ontem nesta maté-
ria, eu hei de tornar a ela, porque é de muita impor-
tância; e então direi os remédios que isso pudera
ter, pêra não dar tamanha opressão aos vassalos.
Ora, quanto a cuidarem que atalharam, emarran-

21-22. O provérbio é: cader delia padella neUe brace,


que significa «sair duma situação má para outra pior».
29, atalharam: atalhariam, evitariam estes males.

136
O SOLDADO PRATICO

car os cargos das mãos dos desembargadores e os


meterem nas dos viso-reis e arcebispos, por certo
que não sei mór perdição pera os homens, porque
se êsses viso-reis muitas vezes não deixam fazer jus-
5 tiça aos desembargadores em negócio das entranças
das fortalezas e cargos, quando contendem dous fi-
dalgos, que um dêles é seu parente, e o inquietam,
solicitam e inda peitam jque farão quando o jôgo
lhe ficar todo na mão? Por certo que ficará o negó-
jo cio bem encaminhado, e que posso afirmar que o
mór alvitre que hoje haverá na Índia, será êsse
pera êles.
Desp. — Isso será se lhe ficar todo em poder;
mas, quando o arcebispo fôr às juntas, não poderão
15 fazer nada.
Sold. — Muitas vezes me quer Vossa Mercê tirar
a terreiro sôbre as desordens dos viso-reis! Mas que
* estivera presente o Papa, ora quero-vos dar tudo
cosido, pois não acabais de cair nestas cousas. Vem
20 um feito de ua fortaleza, sôbre que contendem dous
capitães, já preparado de casa do juiz dos feitos, e
' em estado de sentença; põem-se o viso-rei com o ar-
cebispo a correr seus termos e ver suas rezões; ei-los
votam; o arcebispo está em ua opinião, e o viso-rei
25 em outra. <;Que remédio? É necessário vir um le-
trado jurista, ou dous pera serem* bastão; fica o

2, nas dos viso-reis muitas vezes em B. Há pois


uma lacuna.
5, das entradas em B. Possivelmente entrâncias:
graduações, categorias dos lugares.
17-18, Mas que estivera: Ainda que estivesse.
19, cozido em B.
26, pera serem bastão: para desempate.

I
37
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

negócio pera amenhã. Manda o viso-rei chamar o


letrado, ou letrados, que hão de ser adjuntos; e só
com êles na sua câmara vêm o feito e o praticam;
e tantas rezões lhe dá o viso-rei, ou tantas promes-
5 sas lhes faz pera os afeiçoar ao que quer, que os
rende. E a outro dia, juntos com o arcebispo, dis-
cutida a matéria entre todos, tornam a votar: são
já três contra. O arcebispo jque há de fazer, senão
cruzar-se e assinar na sentença, que êle sabe que vai
io por aí além?
Ora se el-rei tirasse os cargos das mãos dos juízes,
por cuidar que faziam sem-justiças e que recebiam
peitas, e os metesse nas mãos dos viso-reis, cuidan-
do que ficava o negócio mais puro, por certo que
15 se engana, porque lhe dará com isso um ninho de
guincho, como lá dizem; e o que se houvera de dar
a dez, se há isto, levarão êles só: porque os homens
hão de negociar, quer tenham justiça quer não,
e hão de abrir a bolsa, porque isto é o que
20 corre hoje em tôda a parte. E desengano-vos que
não fio de nenhum viso-rei, como chega àquele
Estado, nada; porque inda que vá dêste reino puro,
lá o danam e trastornam. E êste negócio de ver
pérolas e as peças ricas do Oriente é mui perigoso.
25 Desp. — Não sei que vos diga a isso. ^Pois que
remédio pode el-rei dar a essas cousas? porque êle
deseja de se fazer justiça a seus vassalos e de lhe
não dar trabalhos.
Sold. — Alguns há; e os que por ora se me ofe-
50 recem, são êstes: Que mande el-rei que nenhfia pa-

15-16, um ninho de guincho: um bom celeiro, uma


mina de rendimentos.
O SOLDADO PRÁTICO

tente se passe neste reino depois das consultas saídas,


em que se despacham todos os homens; que se man-
dem à Índia por vias em todas as naus, pera que lá
se lhe passem as patentes; e então não haverá falên-
5 cias, nem será necessário suprimentos delas. E cada
homem leve na mão certidão do secretário do com
que vai despachado na consulta, pera por ela reque-
rer sua patente. E faz nisso el-rei dous grandes
bens: o primeiro, evita os danos e trabalhos de de-
10 mandas; e o outro, acrecenta o rendimento da chan-
çalaria da Índia, que é necessário que se ajude com
tudo; mas se êsse fôr o inconveniente, e cá neste
reino não quiserem perder isso, ao tempo que cá lhe
derem certidão do com que são despachados nas
15 consultas, irão passá-las pela chançalaria, e paga-
rão nela o seu marco de prata, de que lhe passa-
rão certidão, e então na Índia se lhe fará declara-
* ção na sua patente; inda que o melhor de tudo era
ficar essa chançalaria para a Índia, que também ^
20 Estado del-rei, e tudo fica seu.
Segundo remédio: fazer Sua Alteza neste reino
* um juiz das patentes da Índia, ao qual levem todos
os homens as suas pera as rever; e, vistas por êle,
achando-lhe falência, lhe mandará requerer supri-
25 mento, e depois da patente pura e sem dúvida,
ponha ao pé dela a vista, pera que na índia lhe
não possam arguir dos defeitos dela!
Desp. — Está isso por essa via muito bem; mas
se sôbre essa patente vista eu quiser arguir um ho-
50 mem que é da nação, jcomo será isso?

30, da nação: não cristão, judeu. Talvez melhor «de


nação».

139
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

Sold. — Isso acontece poucas vezes; mas pêra


isso saiba el-rei a quem dá seus cargos, e os des-
pachos dêm suas abonações diante do juiz das pa-
tentes; porque isso na índia é muito perigoso, por-
5 que tôda a pessoa que quiser arguir a outro desse
defeito, lhe não faltarão testemunhas compradas a
pardau. E bem se lembra Vossa Mercê daquele dito
do grande Afonso de Albuquerque, que, queixando-
-se já disso, dizia a alguns: — Sabeis quão má
io gente é a da índia, que me puseram que eu era
puto, e mo provaram? — sendo êle um fidalgo tão
honrado, tão cristão e tão honesto, que afirmam
que nunca criado seu lhe viu o pé descalço. E por
evitar isto, havia Sua Alteza de mandar que todos
15 os homens que despachassem neste reino fizessem
sua abonação diante do juiz das patentes, pera assi
ir de tudo puro à índia; e quando lhe coubesse seu
cargo, não fazer mais que entrar nêle, e lograr o
fructo de seus trabalhos com descanso.
20 O terceiro remédio, e que me parece melhor, assi
pera os homens como para a conciência del-rei, é ter "
na índia Mesa de Conciência de homens muito apu-
rados, de que seja presidente o arcebispo, só pera
êste negócio de cargos, e nela se determinarem; e se
tiver falência algua patente, possam suprir nela;
porque a tenção dos reis é lograrem seus vassalos
o fructo de seus serviços, e entrarem nas fortalezas
e Cargos, que por êles lhe dão, sem tanta avexação,
infâmia e despesas, como já tenho dito. E com isto
se segurará o rei na conciência, e se evitarão infini-
tas desordens.
Desp. — Não apontastes mal; e prometo-vos que

10, puseram: caluniaram.

140
o SOLDADO PRÁTICO

nos primeiros conselhos que houver de cousas da


Índia, farei lembrança dessas com muita instância,
por que não hão de deixar de ser aceitas.
Fid. É isso bem feito; mas não se há de fazer;
5 e a rezão é: porque nós, os do Conselho, nunca que-
remos que se faça cousa, que pareça prejudicial ao
cargo dos viso-reis, porque são nossos parentes e
amigos; e, mal pecado! sempre temos nisso mais
o intento que no serviço do rei e bem comum.
io Sold. — Pesa-me muito de ouvir dizer isso a
Vossa Mercê; porque parece que sois todos favore-
cedores de sem-justiças e desordens; e £qual é o
viso-rei cristão, que não folgue muito de o desali-
varem na conciência e o tirarem de tamanhos en-
15 cargos, como são os de julgar vidas e fazendas
» alheas, e ficar desalivado pera entender nas cousas
da guerra, que é seu própio ofício, como capitão
• geral? Que pera as mais cousas de fazenda e justiça
tem o rei ministros sôbre que descarrega tudo; mas
20 o quererem-se meter em tudo é o que tem a Índia"
no estado em que eu a deixo. E, pois me Vossas Mer-
• cês tem dado licença, eu hei de tratar de vagar
donde isto nace, e que cousas foram a única ocasião
de a índia desfalecer tanto.
25 Fid. — Muito folgaremos de vos ouvir; e enten-
dei que vos não há de montar isso pouco.

CENA II

Sold. — Dêm-me Vossas Mercês, por amor de


Deus, Qa grande atenção; porque as matérias que
hei de tratar são de muita importância. Aquele fa-

26, vos não é de montar em A.

141
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

moso filósofo Séneca, com outros muitos filósofos e


capitães, afirmaram que com as mesmas artes com
que os Estados se conquistaram, com essas se ha-
viam de conservar. O Estado da Índia ganhou-se
5 com muita verdade, com muita fidelidade, com
muita liberalidade, com muito valor e com muito
esfôrço. Ora vede se o estado em que está não é
P°l° contrário destas cousas! Aqui me cai a propó-
sito um dito muito avisado dum rei de Cochim, o
io qual vendo ir aquele Estado empiorando, disse
«que logo êle começara a descair, tanto que de Por-
tugal deixaram de vir estas três cousas: verdade,
espadas largas e portugueses d'ouro».
Ora quero mostrar a Vossas Mercês como da falta
15 destas cousas naceram todos os males da Índia. Va-
mos à primeira, que é verdade: as verdades com
que êste Estado se ganhou, foram viso-reis embar-
cados, armas vistidas, fazendo guerra aos imigos,
acrecentando o património real e enriquecendo o
20 Estado e os vassalos. E senão, vêde como esteve a
Índia no tempo dos que seguiram estas verdades,"
que foram D. Francisco d'Almeida, Afonso d'Albu-
querque, e todos os mais viso-reis e governadores
até Jorge Cabral, e inda quero dizer até D. Cons-
2
5 tan tino; mas depois que se deixou de usar desta ver-
dade, e que ela se perdeu, aconteceu aos viso-reis
e governadores aquilo que a Aníbal, que, emquanto
andou com as armas vistidas poios exércitos, dor-
mindo nos campos em um couro de boi, que era
30 a sua cama mimosa, conquistou tôda Espanha e Itá-
lia, e inda fôra senhor de Roma e do mundo todo,

18, vistidas em A.

142
o SOLDADO PRATICO

se seguira sempre esta verdade; mas, depois que a


perdeu e se recolheu às delícias de Cápua, e despiu
as armas, logo tornou a perder quanto em tantos
anos tinha ganhado.
5 Assi os viso-reis e governadores da Índia: em-
quanto seguiram esta verdade, foi ela próspera e te-
mida; mas, depois que se ela perdeu e que dispiram
as armas e se deixaram de embarcar, e se recolhe-
ram às delícias da cidade de Gôa, e se fizeram vea-
10 dores da fazenda e presidentes da Relação, logo a Ín-
dia foi de pernas acima, e nós todos nos acovardá-
mos e nos perderam tanto os imigos o respeito que
aquilo que nós primeiro fazíamos, que era susten-
tarmo-nos de presas suas, o fazem êles agora, que
75 se sustentam de presas nossas.
Não quero aqui passar polo dito de um capitão
turco, daqueles que foram contra a nossa fortaleza
• de Dio, sendo capitão António da Silveira, no qual
me quero também envergonhar a mim e aos solda-,
20 dos da Índia, por que não fiquem sem sua ração.
Este turco, depois de passado aquele espantoso cêr-
' co, estando falando nêle com el-rei sultão Mamude
de Cambaia, contando-lhe as maravilhosas e altas
cavalarias que vira nêle fazer aos portugueses, de-
25 pois de em seus louvores gastar muito tempo, arre-
matou com dizer:—E afirmo-te, poderoso rei, que,
polo que vi fazer a êstes homens, que êles sós são
merecedores de trazerem barbas no rosto.
Ora vejam Vossas Mercês a que estado temos che-
jo gadol: que aquilo que aquele turco notou em nós
mais pera louvar e temer, isso é o menos que hoje

2, e depôs em B.

H3
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

estimamos. E assi, emquanto os capitães e soldados


tinham barbas largas, tinham vergonha, que não sei
se hoje se achará; por certo que desejo de ver ressu-
citado aquele bom rei D. Manuel, e com êle um
5 daqueles soldados veteranos com que a Índia se
conquistou, com ua barba poios peitos, um pelote
polo joelho, uns musgos cortados, ua crangeia ao
peito, posta em um murrão, ua chuça ferrugenta
nas mãos ou ua bésta às costas, e a-par dêle um
io dos soldados dêste tempo, com ua capa bandada de
veludo, coura e calções do mesmo, meias d'arre-
trós, chapéu com fita d'ouro, espada e adaga dou-
rada, barba rapada ou muito tosada, topete muito
alto: parece-me que tornaria aquele bom rei logo
15 a morrer de nojo, e que poderia pedir conta aos reis
seus sucessores de se descuidarem tanto nas cousas
da India, e de não mandarem prover que se torne
tudo àquela primeira idade, se querem que a Índia
torne a seu sêr.
20 Dizei-me, senhores, £há hoje no mundo terra mais
fronteira, e em que sejam necessárias andarem as"
armas mais na mão que a Índia? Por certo não:
pois jque descuido é não se atentar neste negócio,
e não haver um viso-rei que se ponha à soldadesca
25 pera todos o seguirem, e querer parecer capitão,
pera todos quererem parecer soldados? Que esta é
a segunda cousa, que aquele rei de Cochim dizia

7, musgos: calções, que cobriam apenas a coxa


(própriamente o musgo) ?
7, crangia em B. Não se sabe o significado desta
palavra.
11, coura: gibão, que antigamente era de couro.
13, tosada: cortada, desbastada.

*44
o SOLDADO PRATICO

que já não vinha do reino, naquela comparação das


espadas largas; querendo-nos dar a entender quanto
nos ia já falecendo aquele antigo brio e valor por-
tuguês, quási aludindo àquele dito do nosso bom
5 rei D. João o 2.°, quando dizia que o bom portu-
guês havia de ferir com os terços.
E assi, depois que neste Estado entraram verdu-
gos compridos, bolonas e trajos estrangeiros, logo
tudo se perdeu; porque a guerra não se faz com
io invenções, senão com fortes corações, e nenhua
cousa deitou mais a perder grandes impérios, que
mudança de trajos e de leis. E se não, vejam aquela
grandez da China, e a famosa República Veneziana,
se se tem sustentado tantos milhares de anos em
15 tamanha potência, — £se é por outra cousa senão por
não consintirem nenhua mudança destas?
A terceira cousa que dizia aquele rei de Cochim
• que já não vinha do reino eram portugueses d'ouro,
moeda, com que então se fazia a carga da
20 pimenta, e tão estimada de todos os reis da índia,
que dela faziam seus tesouros; e assi, depois que
' naquele Estado entraram moedas estrangeiras, logo
êle começou a definhar; mas eu cuido que aquele
rei o não dizia poios portugueses d ouro, senão por-
23 que os soldados daquele tempo, capitães e viso-reis
eram todos ouro na verdade, na liberalidade, ouro
na fidelidade, ouro no valor, ouro no primor, ouro
no esfôrço; emfim que daquela idade tôda d'ouro

7-8, verdugos: espadas longas sem gume.


8, bolonas: colares da camisa. Em B: balonas.
13, grandes: grandeza.
18, português d'ouro: moeda com o valor de 800
reis. Recomeça a letra de Couto.

*45
10
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

viemos a descair nesta tôda de ferro, em que tudo


isto falta. Por onde receo que êste negócio se vá
concluindo; porque vejo a Justiça Divina tão irada
contra aquele Estado, em que há anos que vai usan-
5 do do rigor de seu juízo, que foi sempre castigar
gerais e públicos pecados com gerais e públicos pe-
cadores. Se não, vêde se vos castiga por mãos dos
imigos, que sempre dominámos e sojugámos! Por
que até os mais coitados tem alevantado mãos con-
10 tra aquele prove Estado: por onde eu temo que se
torne o seu a seu dono, se Deus nisso não prover e
não puser os olhos de sua misericórdia em muitos
virtuosos que nêle há.
Desp. — Tudo o que dissestes são puras verda-
15 des, e bem entendemos que tudo se acabara, se Deus
Nosso Senhor não tivera postos os olhos de sua
misericórdia em tão sumptuosos templos, em tantos
religiosos virtuosos, em tantos inocentes, e sôbre
tudo na piedade, zêlo e cristandade dos nossos reis,
20 que em todas as religiões mandam encomendar seus „
Estados a Deus Nosso Senhor, e nem por muitas que
sejam as cobiças e pecados, há de permitir que seus
templos, em que tantas vezes de dia e de noite seu
santo nome é louvado, se convertam em nefandís-
25 simas mesquitas do torpe Mafamede, onde seja ou-
tras tantas na hora vituperado. Deus é misericor-
dioso, êle porá os olhos nisso com .aquela brandura
e mansidão com que os pôs no ladrão.
Sold. — Eu assi o confio em sua divina bon-
30 dade; mas também me lembra que grande número

9, evitados em A.
26, na hora: ao mesmo tempo.

146
O SOLDADO PRÁTICO

de inocentes, religiosos santos, templos sumptuosís-


simos havia naquela infelice Constantinopla e por
todo o Império da Grécia; mas permitiu Deus o que
vimos, e êle sabe por que juízos. Não há na terra
5 maior santuário nem cousa de mór veneração que
o Santo Sepulcro, e consente êle estar em poder dos
torpes maometanos; por onde não podemos deixar
de recear que faça outro tanto a cidades, em que é
tão ofendido e em que tanta tirania se faz, tão
io pouca justiça se guarda, tanto adultério se comete,
e em que tanta órfã se deshonra, e em que tanta on-
zena se consente, e em que tanto... tudo o que
Vossa Mercê quiser se verá a cada passo!
Porque nunca Deus deixou de castigar pecados;
, 15 pois é verdade tão sabida que em todos se segue
a pena, assi como pelo pecado de Adão em pena
0 se seguiu a culpa para os descendentes; pelo que no
fim daquela primeira idade castigou Deus Nosso Se-
nhor o mundo por seus pecados com água naquele
20 dilúvio universal; no fim da segunda foi já menor o
, castigo, porque se deminuíram as fôrças naturais;
pelo que se contentou com só o castigo de cinco ci-
dades; na terceira idade, além das pragas do Egito
pela idolatria de Belfegor, além dos vinte mil ho-
25 mens, que matou ao tríbu de Levi por mandado de
Mousés, castigou Deus o povo com outro castigo
maior; na quarta idade castigou Deus os israelitas no
cativeiro de Jerusalém, que Jeremias nove anos antes
tinha profetizado; na quinta idade foi o castigo de
50 menos rigor, porque o mais dêle foi o temor e afli-

15-16, se segue em pena a pena em A.


21, desminuiram em A.

H7
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

ção, em que Amão pôs o povo dos judeus, inda que


não pela culpa que Amão lhe punha, mas só pela
idolatria quási ordinária, de que os profetas da-
quela idade sempre os arguiram. E inda que o peca-
5 do da idolatria é tão grande que absolutamente se
chama pecado, porque aquela idade ia já descaindo
muito nas fôrças naturais, contentava-se a Divina
Justiça de lhe dar castigo de temor.
Na sexta idade em que estamos, porque se chama
io tempo de misericórdia, espera Deus ao pecador que
se converta; mas nesta se castigaram os tiranos que
martirizaram os santos; nela se castigaram os here-
jes cismáticos, inda que êste castigo não foi de
tanto rigor como na terceira idade se fez em Datão
15 e Abirão.
E nesta idade castigou Deus pecados particulares,
como vimos em tanto reino cristão, Grécia, Hun-
gria e outros, que tão oprimidos estão com o jugo
do turco nas Alemanhas altas e baixas; por pecados
20 vimos castigar a vila de Schilstaun no Friburgo de -
Brisgoia, quási três léguas de Basiléa, a qual em
espaço de ua hora se queimou tôda, a 10 de Abril,
quarta-feira de Trevas. França, Flandes, Ingla-
terra não deixou Deus sem castigo nas muitas e con-
25 tínuas gueras, em que contínuo andam, e em mor-
talíssimas pestes, que muitas vezes caíram sôbre
elas; e o mór castigo foi largar Deus Nosso Senhor
a mão dêles.
Não ficou sem êstes castigos a opulenta Espanha;

9, Nesta idade em B.
20, Schilsthan em A.
28, dêles: dos habitantes dessas terras.

148
O SOLDADO PRATICO

porque por pecados veo a ser entregue a mouros;


nem escapou o nosso Portugal, porque, segundo se
entende, por injustiças lhe mandou Deus terremo-
tos, pestes, fomes; e inda nos acabou de castigar
5 naquela passage de África, onde em duro cativeiro
acabaram tantos as vidas, e os grandes conheceram
que havia Deus; e disso acabámos de perder entre
todas as nações o crédito.
Pois os pecados da Índia não quereis que os cas-
10 tigue Deus? Sabei, senhores, que o há de fazer, e
que cuido que o começa já no descuido que neste
reino há daquele Estado, e nas piquenas armadas
e provimentos que lhe mandam; porque, quando
tanto mal não tinha entrado naquela terra, e os reis
i /j de Portugal a traziam nos olhos, parecia que nas
suas ribeiras lhe naciam naus, nos seus tesouros
• dinheiro, e polas praias marinheiros, mestres, pilo-
tos, bombardeiros, calafates, de que hoje tudo fa-
lece; e assi permitia Deus que se movessem os pèi-
20 tos daqueles reis a mandarem tantas armadas e
• tantos provimentos e gente, como se sabe; porque
houve anos que partiram dêste reino vinte naus
com quatro e cinco mil homens, e tôdas chegavam
a salvamento, porque trazia Deus Nosso Senhor
25 postos os olhos na piedade daqueles reis e no zêlo
dos seus viso-reis e governadores; e assi andava
tudo tão próspero, que me lembra encontrar polas
ruas de Gôa mais capitães velhos e fidalgos pera

4-9, fomes e desaventuras. Pois os pecados em B.


Omite o passo importante, embora anacrónico, referente
à derrota de Alcácer-Quibir.
10, que o há de fazer. Acaba a letra de Couto.

I4Ç
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

serem viso-reis do mundo, do que hoje encontra-


ram soldados de nome.
E quando neste reino se queriam fazer vias pera
sucessões da governança, havia tantos que não se
5 sabiam determinar os reis na escolha; e hoje, se qui-
serem fazer quatro vias e Vossa Mercê me der jura-
mento pera isso, eu não as saberei fazer; e, o que
pior é, que êsses que são, já não querem embarcar-
-se senão por capitães-móres; e como não há tantas
io armadas, ficam muitos sem servir, e requerem que
estiveram em Gôa com grandes casas e fazendo mui-
tas despesas dos morgados, que nestes reinos pera
isso venderam.
Emfim, senhores, venho a concluir que um dos
15 móres castigos que Deus dá aos povos, é tirar-Ihe
os bons e experimentados, como fez àquela soberba
Atenas, mãi das ciências; e nunca Roma foi tão
próspera, como no tempo que a governaram velhos,
sábios e desinteressados; e tanto que êstes faltaram
20 e entrou a cobiça, logo se perdeu.
Desp. — Tudo isso que dissestes é muita verda-
de; mas é tanta a bondade, religião e caridade dos
reis de Portugal pera seus povos e vassalos, que só
por isso lhe há de Deus Nosso Senhor conservar o
25 que lhe tanto custou. E quem o ofender, lá está o
juízo e o castigo guardado, de que alguns fazem
bem pouca conta. Ora Deus é bom, êle remediará
isso como nos a nós convém; porque mais cuidado
tem de nós que nós mesmos; e já que isto está tão
50 bem praticado, e vós tendes dado mostras de ver-
dadeiro português em vos doerdes dessas cousas e as
descobrirdes, quero-me eu doer das vossas, e despa-
char-vos como vossos serviços merecem e eu desejo,
polo que vos estou afeiçoado: dai-me vossos papéis,

150
O SOL DA DO PRÁTICO

se os trazeis; e a primeira vez que achar Sua Alteza


desocupado, eu lhos presentarei, e com isso as mais
rezões que tem dè vos fazer mercê, polo zêlo que
mostrastes a seu serviço: e eu fico que sejais mui
5 bem respondido.
Sold. — Beijo as mãos a Vossa Mercê por essa
vontade'- não quero que ponha Vossa Mercê os olhos
em mais que em minha pobreza, idade e serviços,
e, conforme a êles, me fazer mercês. Os papéis são
o êstes; as feridas que me deram em serviço del-rei
são esta espingardada neste braço e outra polas per-
nas, de que d'ambas fiquei aleijado; frèchadas e
outras muitas feridas por êste corpo, queimado cinco
vezes; e inda que isto vá nestes papéis mui justifi-
5 cado, mais claros e verdadeiros estão neste corpo.
Fid. Eu sou.boa testemunha das mais dessas
cousas, e não tão pouco vosso amigo que alguas
vezes que vos vi desembarcar e embarcar em ter-
ras de imigos não desejasse de vos fazer muitas
>o mercês; mas atalhou-me o tempo com me tirar dás
mãos o govêmo; porém agora estais em parte e em
poder de quem há de olhar mui bem por vossa
justiça, e não haveis de perder nada de vo§sa
honra e trabalhos.
.5 Sold. — Assi o creo eu por certo, que essa con-
fiança me trouxe a esta casa, sem pera isso buscar
padrinhos; e quis minha ventura achar logo um
tão bom como Vossa Mercê, por cujo meo eu sei
que não serei mal despachado,
to Desp. — Descansai nesse negócio; mas dizei-me
que é o que pedis em vossa petição?

4, eu fico: asseguro-vos.

151
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

CENA III

Sold. — Já'gora não há na India que pedir,


que tudo é dado por trezentos anos, e eu não tenho
idade pera esperar tanto: dêm-me o que quiserem,
tornarei pera a índia com ua patente ao pescoço;
5 se morrer, morrerei no hábito, e havereis que me
não ficou nada por fazer. E já que me cai a propó-
sito, não posso deixar de estranhar as grandes de-
vassidões, que houve nos despachos da índia; por-
que sabemos del-rei D. João o 3.0, da gloriosa me-
ro mória, que trazia na sua aljabeira um canhenho
de todo os cargos e comendas, e, em vagando qual-
quer, a dava ao que lhe parecia que tinha mais
merecimentos; e assi nunca despachava um cargo
dêstes senão pera logo entrarem.
15 E com isto folgavam os homens de servirem, e
punham por isso a vida; e andava isto tão a ponto,
que havia fidalgo, que, quando se fazia prestes
pera se vir despachar a êste reino, lhe chegava Ga
carta missiva del-rei, por que lhe fazia mercê da
20 fortaleza de Ormuz ou Sofala, na qual logo ia en-
trar; que estas são as mercês de estimar: mas hoje
que tudo está tão entupido, confesso a Vossas Mer- _
cês que não tem os homens gôsto de servirem; e se
o fazem, é porque não tem outro remédio.
25 E isto sucedia, porque se não davam os cargos
senão a quem os merecia e trabalhava; e hoje
dão-se a quem tem mais valias e aderências, e não .
sei se por outros meios; porque vemos na índia

io, aljabeira: bôlsa, aljibeira. Bom têrmo português.


Em B: algibeira.

152
O SOLDADO PRÁTICO

muitos homens, que nunca serviram o rei nem pu-


seram pé em barco, melhores despachados que ou-
tros, como eu, que envelhecemos por êles, e nos
quebraram nêles os braços e as pernas; e isto ma-
5 gôa tanto aos homens da minha sorte, que, se na-
quele Estado houvera outro rei cristão a quem pu-
deram servir, como já disse, sabei, senhores, que
o houveram de fazer; e, segundo os homens andam
enfadados, se se nisto não tem outro têrmo, hão-se
io de vir a desenganar, e não se embarcar nenhum
pera aquele Estado, e buscar por cá seu remédio.
Desp. — Tendes nisso muita rezão, e todos caí-
mos nessas culpas; mas deixemos o passado, que
já não tem remédio; busquemo-lo ao porvir; e êste
15 folgaria de me dizerdes qual se pode ter neste ne-
gócio pera satisfação dos homens que servem, e
pera os que não tem merecimentos se não logra-
rem do que por justiça se lhe não deve.
Sold. — Muitos remédios há; mas o principal
20 é mandar el-rei ter mão nos despachos alguns anos,
£ pera nêles se dar evasão aos providos, e suspender
as trespassações; e depois que se entrar no negócio
dos despachos, saberem a quem se dão os cargos,
que sejam a criados del-rei de serviços, e então
, 25 poderão os homens esperar de entrar em seus car-
gos. E inda é mais necessário que tudo, não passar
el-rei as provisões que passa aos viso-reis pera
poderem prover todos os cargos da Índia, de fei-
torias pera baixo; porque por elas provê cada

2, melhor despachados em B.
6-7, a quem pudessem servir, certamente o fariam;
porque andam os homens tão enfadados; e se nisto não
houver algum têrmo, se ham de vir a desenganar em B.

153
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA. COSTA

viso-rei mais de trinta cargos, e ficam com isso tão


entulhados todos, que nada há poder um homem
esperar 'vagar-lhe o cargo de que é provido.
E certo que cuido que não lançam neste reino
5 contá às fortalezas e cargos da índia; porque, com
não serem mais que dezasseis ou dezassete fortale-
zas, quási cada três anos vem dez e doze despachos
delas, afora os que estão na India, a quem se man-
da os despachos; e todos os mais cargos de feito-
ro rias, juízes d'alfândega, escrivães dela e das feito-
rias, capitanias pequenas e tanadarias não passam
de corenta, e vem cada três anos mais de cincoenta
homens providos; por onde não há poderem nunca
"vagar os cargos; e inda nestes se metem as tres-
15 passações, como já disse, que é um infinito.
Por onde venho a resumir: que, quando se des-
pacha um homem, inda que seja em idade de vinte
anos, não entrará no seu cargo té os sessenta: jpois
como esperarei eu gozar de cargo algum? Não sou
20. tão néscio: venho por honra a esta corte a reque-
rer, sem esperança de me darem cousa em que
possa entrar, por cumprir com minha obrigação;
e quando morrer, levarei a patente comigo à cova,
pera que saibam os soldados do meu tempo que me „
25 não descuidei de minha obrigação, ou que deixa-
ram de me fazer mercê por pusilânime ou polo não
merecer.
Desp. — Não sei que vos diga a isso! Muitas ve-
zes se tratou de se suspenderem as trespassações;
30 e não sei como já não se efeituou. Tudo o que dis-

6, mais de dezeseis ou dezoito em B.


11, tanadarias: tesourarias, repartições de impostos.

*54
O SOLDADO PRATICO

sestes é santo, e isso muito bem se entende cá; mas


todos não o queremos acabar de executar, por nos-
sos particulares. Pode ser que em algum tempo se
trate destas verdades que dissestes; mas tornemos
5 a vossos negócios: folgarei de haver cousa que vos
arme e caiba logo; porque essa idade não está pera
esperar; por isso vêde o que há, que eu vos farei
despachar, para vos tornardes nestas naus.
Sold. — Não sinto eu agora cousa que me possa
io caber logo, pera me dar bem de comer, senão de-
sembargador da Relação de Gôa, chanceler, juiz
dos feitos, provedor dos defuntos; porque com
qualquer dêstes ficarei mui bem remediado; e, assi
velho, me não faltarão vinte mil pardaus em casa-
íj mento; porque não sei que tem êstes desembarga-
dores, que antes os querem que capitães de forta-
lezas.
Desp. — Assi fôra isso de vossa profissão, como
se vos dera; mas é necessário que quem houver de
20 servir êsses cargos seja letrado e visto em ambos
0 os dereitos.
Sold. — Bofé, senhor, que pera alguns gramáti-
cos, que já lá foram e que eu conheci, inda eu fico
d'aventagem; porque êstes, com dous debruns de
£5 latim, foram feitos desembargadores por valias;
porque latim como êles sabem, eu o sei; o mais
farei o que alguns fizeram: darei sentença por quem
me mais der; e não curarei de ver Bártolo nem
Baldo, porque isso será viver polo saco e estar
30 amarrado ao prove do ordenado; e eu desejo de
ter logo em três anos vinte mil cruzados.

5-6, que vos arme: que vos sirva, vos convenha.


29, viver poio saco: viver estreitamente.

155
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Desp. — Valha-me Deus! E é possível que os


homens que Sua Alteza manda à Índia adminis-
trar justiça, pera o que lhe dá grandes ordenados,
enriqueçam assi por êsse modo?
5 Sold. — Desejo de me rir dessa justiça, que
êstes que digo lá foram fazer; tamanho engano há
neste reino, que não entendem que um estudante
de vinte e cinco anos, muito rosado e bem disposto,
e em ua terra tão lasciva e mimosa, e onde tanta
io delícia reina, que haja de fazer justiça mais que a
seus gôstos! Olhai vós os setenta anos cheos de
muitas cans e autoridade que me êles lá manda-
ram! Uns barbiponentes, mais recramados e en-
crespados que os cabelos de um mulato, e cujas
15 opas roçagantes (trajos daqueles senadores anti-
gos) são calças recamadas, capotes barrados, espa-
das douradas, cavalos guarnecidos d'ouro e prata,
muitos lacaios diante e pagens detrás, e tudo isto
do dia que à Índia chegam a um mês, de feição
20 que, se os encontrais polas ruas, mais parecem
embaixadores de França que desembargadores da
Relação!
Pois isto j donde veo, ou quem lho deu senão a
quem êles deram a justiça, que era doutro? E inda.
25 mal porque isto é tanto assi, que nunca a Índia
foi tanto pernas acima, como depois que alguns

11, Olhai vós. Dito em tom de ironia: «Olhai se


mandam para lá homens maduros!».
13, barbiponentes: moços a quem começa a des-
pontar a barba.
13, recramados: com os cabelos anelados.
23-24. Entenda-se: «senão aquele a quem êles deram
a justiça».

156
O SOLDADO PRÁTICO

dêstes entraram nela. Até o tempo de Jorge Cabral,


em que não houve mais de um ouvidor geral, um
provedor-mór e procurador da corôa, não foi a era
dourada? E inda muito mais felice té o tempo do
5 viso-rei D. João de Castro, em que não havia mais
que um ouvidor geral, que trazia tudo tão dereito
e bem governado, que em se fazendo um crime era
logo punido; e depois de tanto juiz não vejo punir
nenhum.
io Pois <;quem foi o infernal que enganou ao rei,
e lhe fez em ua terra ganhada de novo e cercada
de imigos, em que é necessário andar sempre com
a espada na mão, meter varas em lugar de lanças,
leis em lugar de arneses, escrivães em lugar de
15 soldados? Porque, na verdade, muitos mais são êles
agora que os soldados. E não lhe pareça a Vossa
Mercê que falo por aí além, porque digo verdade
e torno afirmar que mais gente anda de ordinário
polas audiências que nas armadas. Dizia o divino
20 Platão que nas terras onde havia muitos médicos,
0 havia muitas infirmidades; e pola mesma maneira
podemos dizer que onde há muitos ministros de
justiça, há muitas maldades.
Naquelas respúblicas antigas os graves legislado-
25 res que as governavam, nunca lhes ensinaram esta
ordem do juízo que hoje se usa, a saber: libelo,
contrariedade, réprica, tréprica, dilações, suspei-
ções, nem todos os mais têrmos, com os que se faz
um processo e feito, que um homem não pode ale-
50 vantar, tudo inventado contra malícia humana; e
que nunca Sócrates ensinou aos atenienses, nem
Sólon aos gregos, nem Numa Pompílio aos romãos,
nem Prometeo aos egípcios, nem Licurgo aos lace-
demónios, nem todos os mais que fizeram e orde-

'57
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

naram leis para o bom govêrno de seus povos, só


por os afastarem de contendas, trapassas, preitos
e demandas.
Esta é a rezão, por que aquele famoso Licurgo
5 mandou que as leis que fez na sua reformação da
república espartana, não fôssem escritas nem pos-
tas em nenhiia forma, senão que se imprimissem
nos ânimos dos homens; porque tinha por cousa
muito certa que a mór parte da felicidade e boa
io fortuna de qualquer república bem instituída, con-
sistia principalmente em não estarem as leis escri-
tas, senão em se guardarem e pôrem por obra,
e terem-nas em seus ânimos em grande veneração.
E quem isto ordenava não havia de consentir em
15 seus povos tamanhos volumes sôbre nada; e assi
são já agora mais altas as rumas dos feitos nas
casas dos escrivães do que são os muros das mes-
mas cidades.
E o que nesta matéria me escandaliza mais que
20 tudo, é que, se um juiz ou ouvidor quer sentenciar
verbalmente ua cousa de pouca importância, como
um queixume que um canarim deu doutro, que lhe
disse ua roindade, não querem os escrivães diante
dêles senão que se faça auto e tirem testemunhas,-
25 e que corra judicialmente, no que òs olhos vistos
roubam aos mesquinhos, sem nunca se prover
nisto.
Os locrenses fizeram ua lei, que todo o homem
que na sua república inventasse algua lei ou ordem *

22, que um homem deu doutro em B.


25. Na primeira redacção de A estava òs olhos
visto.

158
O S.O L D A D O PRÁTICO

nova que, emquanto ela se publicasse, estivesse com


ua corda amarrada no pescoço e junto a ua fôrca;
por que, se a lei que inventara fôsse em dano do
povo, fôsse logo ali enforcado. Oh! que lei esta ■
pêra o Estado da Índia, pêra os alvitreiros e nove-
leiros, que vão aos viso-reis com cousas tão preju-
diciais ao serviço del-rei e ao bem comum, que
mereciam trezentas fôrcas! E o que é peor, que não
ignoram os viso-reis aquilo; mas como é cousa que
lhe dá proveito, folgam muito, mas não deixam de
ter o que lhe vai com aquelas cousas na conta em
que êle merece; e certo fiz já escrúpulo de con-
ciência em dizer alguas vezes aos vereadores de
Gôa, que haviam de ter um cofre de tesouro púbri-
co, que se não gastasse em outra cousa senão em
mandar matar por dinheiro êstes prejudiciais e per-
turbadores dos povos.
As leis, segundo Cicerão, no primeiro De Ora-
tore, foram feitas pêra que fôssem prémio das vir-
tudes e pena dos maus; agora na Índia é ao con-
trário, porque são prémio pera os maus e pena
pêra os bons; quem agora é inventor de ua malda-
de e malsim de ua mentira, êsse é o que vai, e esse
leva as mercês; e os bons são abatidos e despreza-
dos e a virtude não se conhece. Dizia um filósofo
que estava indeterminado a quem buscaria, se a
um rico mau, se a um pobre virtuoso; e dizia que
êle continuamente via as portas dos ricos mui
acompanhadas e as dos bons sós.
Ora vejam Vossas Mercês a que estado nos che-

4, que lei é esta em A e B.


29, e as dos pobres não em B.

'59
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

garam nossos pecados, que se não conhece a vir-


tude, sendo ela, segundo alguns filósofos, Ga per-
feita rezão, e que tem seu assento no entendimento
do homem sábio, e tem tanta fôrça que lhe faz
avorrecer os vícios, como aquela que é dom dado
por Deus Nosso Senhor, pêra que as cousas escuras
e cegas traga à luz;porque assi como a luz aclara e
descobre todas as cousas, assi os maus a avorre-
cem, porque lhe descobre suas ignomínias. A ver-
dade e a luz, dizia Menandro que era amarga,
sendo dôce, aos maus, porque o gôsto do entendi-
mento que a havia de julgar estava gastado; e pera
êstes tais era como para os que tem dor de olhos,
que podiam ser comparados aos morcegos, que
avorrecem a luz.
Desp. — Essa matéria é grave, e folgo de vo-la
ouvir. E dessa maneira vai lá a cousa? Bom será
prover-se nisso, e mandar Sua Alteza novos ofi-
ciais, velhos e ricos, a quem honrem filhos e netos
polo irem servir neste negócio, e com ordenados e
mercês bastantes pera se não inclinarem a nada.
Sold. — Isso remédio é, mas é remendar; porque
alguns velhos se mandaram já lá por inteiros, que
fizeram gravíssimos excessos na justiça. Por muito
melhor remédio tinha eu mandar vir os seus escri-
vães, que são os que lhes dão as desordens e alvi-
tres; e afirmo a Vossas Mercês que um só dêstes
que isto fazem que lá fique, basta pera apegar a
infirmidade a todos. Os gafos degradam-nos do
povoado por não contaminarem a terra: assi êstes

5, como aquela que: visto que.


lo. Menandro, comediógrafo grego.

l6o
o SOLDADO PRATICO

alvitreiros haviam de ser degredados pera a Ilha


de Santa Helena, onde não possam apegar tama-
nha infirmidade.
Afirma Rasis, no livro 25 de seu Continente, que
3 tôdas as quenturas pútridas ou mortais pola maior
parte se apegam aos que se chegam perto; e assi
esta doença de que trato é tanto mais pegadiça,
quanto mais mortal é que tôdas,pois mata a alma,
que vai sôbre tudo; e se é verdade, como é, pois
10 o experimentamos, o que diz Galeno na sua Técni-
ca, e Avicena no primeiro Fen, que a complexão
sã pode num ponto enfermar, aqui em muito me-
nos se pode corromper; porque a peçonha da cobiça
não tem nenhum antídoto, logo se apodera do cora-
15 ção.
Mas quando isso que Vossa Mercê diz houvesse
de ser, que se mandassem êsses desembargadores,
advirto que sejam tais e levem varas tão grossas,
, que com nada se possam torcer; porque alguas vi
20 eu já lá tão delgadas, que com um rubi ou dia-
% mão se dobravam logo; porque já com alcatifas,
colchas e peças de sedas, barças de louça da Chi-

4. Hasis, célebre médico árabe do século IX, autor


do Livro do Continente, manual prático de medicina.
10. Galeno, médico e filósofo romano do século II.
11. Avicena, médico e filósofo árabe do século X,
célebre pelos seus comentários de Aristóteles.
11. Fen era o nome árabe pelo qual se designavam
as secções de alguns livros da sua obra Canon Medicinae.
Os comentaristas empregam êsse nome no feminino.
12-13, em muito menos: em muito menos tempo.
20-21, diamão: diamante. Em B: diamante.
22, barças: resguardos de palha para a louça fina.
Aqui própriamente «presente».

161
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

na, e outras cousas desta sorte, isto fá-las inclinar


até o chão; e o bem que tem, que nunca quebram,
por muito peso que lhes ponhais, porque haverá
destas que pode com um cavalo selado e enfreado,
5 sem fazer mais que torcer. Quebram elas alguas
vezes, mas os focinhos aos pobres, quebram-lhe
a honra e a fazenda; pera o que nenhum remédio
há senão levantar olhos ao céu, e chamar pola
justiça de cima, que forçado há de chegar, porque
io Deus não se descuida nestes negócios; que, se dis-
simula, é pera vir com mão mais pesada.
Conta Xenofonte que os persas não tinham em
seus retábulos outras figuras ou deidades que ua
hastra, grossa, branca e dereita, polo qual signifi-
75 cavam a justiça; na grossidão da hastra mostra-
vam quão maciça e segura havia de ser a justiça;
pola alvura, a limpeza e pureza dela; e em ser de-
reita, que se não havia de torcer por pai, mãi,
nem por todos os tesouros da vida; e daqui se pode
20 imaginar que ficaria êste costume que se usa dos
juízes trazerem as varas por insígnias das justiças.
Mas o melhor de tudo era tornar a índia ao pri-
meiro estado, e não haver mais de um ouvidor ge- .
ral, chançaler e juiz dos feitos, no que se pouparão-
25 mais de vinte mil cruzados, que estes desembarga-
dores gastam cada ano da fazenda dei-rei, e se ata-
lharão as desordens dos homens e emendar-se-ão
de suas buíras e trapaças, e farão suas compras e

6, mas os focinhos: mas é os focinhos.


14, hastra: vara. Em B: hdstea. Esta forma hastra
ocorre agora pela i." vez, num texto de Couto; tem certa
importância lingiiística, porque, sendo de conjecturar, não
estava ainda documentada.
28. buíras: burlas, enrêdos.

162
O SOLDADO PRÁTICO

vendas na praça, sem os embaraços com que hoje


as fazem; e os tratos e destratos, pode ser que se
degradem, quando virem um só juiz.
Fid. — Dizeis bem: pode ser que com isso se
5 recolham os homens a bom viver, e que não haja
tanta trapaça e tanta confusão e preitos.
Sold. — Vossa Mercê sabe êste vocábulo preito
donde vem? Pois saiba que é castelhano, e muito
antigo, que no bom tempo queria dizer concórdia,
io como parece nas leis de Forum Juzgo; e daí veo a
preitesia, ou preito e homenagem que os capitães
e viso-reis fazem nas mãos del-rei da governança e
capitanias, que lhe entrega: agora se mudou isto
de feição, que o que era sinal de concórdia é causa
15 de inimizades e discórdias. E por entender isto
muito bem o nosso rei D. Pedro de Portugal, e ver
que já naquele tempo as confusões das demandas
lhe iam corrompendo o reino, segundo achei em
» ua curiosa crónica de mão, mandou que todos os
20 juristas aprendessem ofícios de novo, porque que-
• ria quietar seus povos.
El-rei Matias de Hungria mandou com público
pregão que todos os juristas se saíssem de seu reino.

3, se degradem: se desterrem, se vão embora. Em


B: se guardem.
10. O Fuero Juzgo é o código dos reis visigóticos,
uma das complicações jurídicas mais importantes da Ida-
de-Média.
19-21. D. Pedro, vendo que os procuradores ou advo-
gados prolongavam os feitos como não deviam e davam
motivo a demandas maliciosas, «mandou que em sua
casa e todo o seu reino nom houvesse vogados nenhuns».
É o que diz Fernão Lopes, Crónica de D. Pedro 1, cap. 5.

163
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

como o escreve Vives no livro De Corruptis Arti-


bus, e logo ficou o reino em paz. A mesma faça-
nha tentou a católica rainha Dona Isabel em Sala-
manca; mas cessou seu bom zêlo e espírito por con-
5 selho de letrados católicos, que não sei quão bem
andaram em estorvar ua obra tão importante na
cristandade, de que tanto fructo e paz se seguiria.
Desp. — Assi pudera isso ser, como se fizera;
mas os reinos não se podem conservar sem leis,
io porque fôra ua confusão muito grande.
Sold. — Leis são santas e boas, mas usamos nós
mal delas; e andamo-las estudando pera lhe dar
sentidos muito diferentes do que elas tem; e muitas
cousas deixaram aqueles antigos legisladores por
15 pôr em suas leis polas não trazer à memória dos ho-
mens. E essa foi a rezão por que Sólon não falou
na pena que teria quem matasse seu pai, porque
dizia que não queria que entrasse na imaginação dos
homens tamanha maldade; o que se agora não faz
20 senão buscar novos modos de malícias, e trazer
à memória dos homens novas invenções de buscar
o infemo, em que uns e outros por suas vontades
se metem.
E sabem Vossas Mercês quanto é isto assi?: quê"
25 chegou a malícia da India a tanto, que há homens
que compram demandas e auções a outros, e que
todos os dias vão a tôdas as audiências, e de escri-
vão em escrivão e de juiz em juiz, com tanto gôsto

1. Vives, célebre humanista e pedagogo espanhol


do Renascimento. O seu livro De corruptis artibus foi
publicado em 1531 juntamente com outro, De tradendis
disciplinis, dedicado a D. João III.
26, auções: acções judiciais.

164.
O SOLDADO PRÁTICO

que cuido que nisso tem posta sua bem-aventu-


rança; de modo que quem vir agora a cidade de
Gôa, verá ua escola formada dêstes escrivães, pe-
quenos e maiores, de inqueridores, procuradores,
5 informadores.
E certo que é grande confusão ver esta infernali-
dade em Qa terra rodeada de imigos, que nos dese-
jam beber o sangue, e na qual não houvera de
haver senão escolas de armas, barreiras, solda-
jo desça a ponto; por que os imigos trouxessem sem-
pre ante os olhos as armas portuguesas, pera que
sempre andassem temidos; mas êles em lugar disto
vêm o que já disse; senão quanto os brâmanes, que
se fazem cristãos, aprendem logo esta doutrina de
15 nós e logo se fazem bulrões e trapaceiros, e sabem
melhor a ordem do juízo que os mesmos procura-
dores, que isto é o que lhe lá fomos ensinar.
E os cossairos polo mar tomando os navios, sem
haver quem os guarde, porque as armadas fazem-
20 -se fora do tempo, e ainda assi faltas de soldados;
* e em terra as audiências cheas de homens té às
ruas; de feição que muitas vezes desejei de haver,
um governador tão curioso do serviço de Deus e
do rei, que desse um dia por estas audiências e to-
ij masse tôda a gente e a mandasse embarcar em Qa
armada a peleijar com os paraus; e à fé que, se um
fizesse isto ua vez, que se refreariam os bulrões,
e não se dariam tanto a esta calaçaria; embarcar-
-se-iam nas armadas, receberiam seuè soldos, e não

4, enqueredores em A.
13, senão quanto: e até mesmo.
26, paraus: barcos de guerra dos indianos.

165
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

faltariam soldados nas galés, nem seriam então


necessários tantos juízes e tantos volumes de livros
e feitos.
Lembra-me que li na Escritura Divina que os
5 fariseus traziam cosidas nos hábitos compridas ti-
ras de purgaminhos, em que andavam escritos os
seiscentos e treze preceitos da lei; e a êstes purga-
minhos chamavam filatérias, que quer dizer: cus-
todia amoris; porque nêles diziam os fariseus que
io guardavam o amor de Deus, tomando êste nome
na significação metafórica; porque propriamente
significa filacterion «guarda d'amor contra a peço-
nha». E cuidavam que a guafda dos mandamentos
estava em trazerem muitos purgaminhos, em que
15 êles andavam escritos; e por isso Cristo Nosso Se-
nhor, reprendendo-os de hipócritas, diz que não fa-
ziam cousa do que diziam, e que dilatavam e en-
sanchavam suas filatérias, como quem diz, seus
enganos.
20 Assi desta maneira alguns dos letrados juristas
da India tem a guarda das leis nos muitos e gran-
des volumes que lhe vedes em casa, como os purga-
minhos dos fariseus; ali estão muito bem escritas
e cotadas: de fora muitos purgaminhos, no coração"
25 Deus sabe o que vai. Inda que não nego a Vossas
Mercês que há alguns desembargadores honrados
e inteiros na justiça, e que houvera mais, se os viso-

6, purgaminhos: pergaminhos. A grafia de A é


purgaminhos, prugaminhos.
18. Efectivamente a palavra filactérias adquiriu em
português clássico, pelas razões expostas por Couto, o si-
gnificado de «manhas», «hipocrisias».
24, cotadas: anotadas.

166
O SOLDADO PRÁTICO

-reis os não perturbaram; e sempre naquela Mesa


da Relação houve quem desejou de fazer justiça;
mas ouvi dizer a um dêles, bem honrado e livre,
que não bastava isso, porque tinham os viso-reis
5 sempre na Mesa três bombardas assestadas, com
que venciam e derrubavam tudo: polo que alguns
que eu conheci se tiraram do Desembargo, por quie-
tarem sua conciência.
Desp. — Nunca cuidei tanto de um soldado; mas
io parece que fala um anjo em vós, pera que neste
reino se saibam cousas tão novas a nós, das quais
eu farei ua grande relação a el-rei pera mandar
prover nisso; mas tornemos a vós, porque desejo
de vos despachar a vosso gôsto: dai-me de palavra
15 relação de vossos serviços, pera estar informado
de vós quando tratar do vosso despacho.
Sold. — Fui duas vezes ao estreito de Meca es-
perar as naus sem cartazes, em galeões; outra em fus-
tas a espiar as galés; andei três anos contínuos na
20 guerra de Ceilão, e achei-me naquele grande cêrco
* da Cota; andei dous anos no Malavar, aonde aju-
dei a tomar muitos parós, de que saí ferido alguas
vezes; invernei todos os invernos em fortalezas
fronteiras; afora outras miudezas, que aí vão por
*25 papéis, de maneira que gastei doze anos contínuos
no serviço del-rei naquelas partes, depois que nesta

10, o anjo de vós em A.


18, cartazes: salvo-condutos que os portugueses da-
vam aos barcos para poderem navegar.
19, a esperar em B.
az, da Cota em A. A Cota significa uma fortaleza
perto de Columbo, em Ceilão. Em B: Costa.
22, parós: paraus, barcos indianos.

167
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

côrte em sua guarda-roupa servi cinco; e depois


de me acrescentar três nas armadas do reino.
Fid. — Merecimentos tendes bastantes pera vos
despacharem muito bem. Folguei de vos ouvir,
5 porque desejava de vos preguntar a rezão, por que
já não vão ao Estreito armadas de galeões, como
em nosso tempo?
Sold. — Isso pregunte-o Vossa Mercê ao senhor
secretário que aí está, que deve saber se o defende
io el-rei e a causa por quê; que o que eu poderei dizer
será o grande serviço que era dos reis de Portugal
e proveito do Estado da índia, irem todos os anos
armadas àquele Estreito; pera o que peço a Vossas
Mercês que me queiram ouvir um pouco.

CENA IV

15 Sold. — Antes que tivéssemos na índia for-


talezas, e ainda nas primeiras armadas que os reis
de Portugal mandaram, traziam seus capitães-mó-
res por regimento que dessem ua vista ao estreito
de Meca, assi pera saber o Soldão de Babilónia
20 que lhe podiam nossas armadas impedir aquele"
comércio e romagem da nefanda casa de Meca (que
em tudo tinham os nossos reis o primeiro intento
sempre na honra de Deus Nosso Senhor), como
pera fazerem presas nas naus dos mouros, que êles
25 tratavam de mandar extinguir da India, pera com
mais facilidade mandar prantar por ela a lei do

6, Estreito: Estreito de Meca.


26, prantar: plantar, espalhar.

168
o SOLDADO PRATICO

Santo Evangelho; e pera isso mandou depois arma-


das deputadas pera andarem naqueles estreitos, de
que em ua delas veo por capitão-mór o grande
Afonso d'Albuquerque, que começou a fazer guerra
5 a ambos aqueles estreitos, e ao reino de Ormuz
mais de três anos contínuos, sustentando sua
armada tôda das presas que fazia nas naus dos
mouros.
E depois que el-rei D. Manuel tratou de mandar
io fazer assento na Índia, que tomaram os nossos pé
nela, e começaram a fundar fortalezas, não tinha
o viso-rei, que a isso veo, mais rendimento que as
presas do estreito de Meca, aonde todos os anos
iam nosso galeões. E depois el-rei D. João, de glo-
X5 riosa memória mandou a seus governadores que
continuassem esta guarda do estreito do Mar Roxo,
tanto em vitupério e afronta da lei de Mafamede,
quanto pera proveito e rendimento do Estado da
Índia, que sempre (té que se perdeu êste bom cos-
tume) sustentou suas armadas destas presas, por-
que a Índia não tinha outro rendimento.
E assi além disto outros muitos proveitos, que
eram haver sempre no Estado galeões pera isso,
andarem os soldados contentes e fartos com as pre-
25 sas que de lá traziam, recearem-se as galés dos tur-
cos de saírem fóra do Estreito; e assi algQas vezes
que o fizeram, armadas nossas as tomaram logo;
o comércio do grande reino da Etiópia, e de todo
aquele reino cristão correr tão liberalmente, que
30 todos os anos iam navios nossos a seus portos, e
levavam bispos, patriarcas e religiosos para os dou-
trinarem, o que depois veo a se impedir de todo
por falta destas armadas.
Os reis vizinhos andavam assombrados com a

ióç
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

potência dos nossos galeões e caravejas; e tudo isto


tão a ponto, que nunca armada castelhana passou
às partes de Maluco, quando o emperador Carlos V
contendia com os nossos reis sôbre o senhorio da-
5 quelas ilhas, que não acudissem lá nossas armadas
e os não trouxessem à cidade de Gôa por fôrça.
As fortalezas de Ormuz, Malaca, Dio, Baçaim e
outras não se conquistaram senão com os nossos
galeões; de maneira que podíamos dizer que em
io cada galeão tínhamos ua fortaleza no mar, com que
se assombrava o mundo todo. E em tempo de
Francisco Barreto, sendo governador da índia, se
queimaram de ua vez catorze galeões; e dentro
em um ano fez outros de novo, que eu com mais
15 olhos vi entregar ao viso-rei D. Constantino, provi-
dos de todo o necessário.
Pois tudo isto se fazia com as ajudas das presas
do estreito de Meca; porque o Estado não rendia
mais que seiscentos mil xerafins; e hoje, que rende
20 um milhão e quatrocentos mil cruzados, não há
nada disto nem há armada pera os estreitos, nem
um galeão pera ua necessidade, se a houver, por-
que as nossas fustazinhas não são mais que pêra
dous cossairos da costa; e se naquele Estado hou-
25 ver um apêrto, não temos a que nos apegar senão
aos cabelos.
Desp. — Jesu me valha! Donde vem isso? Que
eu vejo as cartas que os viso-reis escrevem a Sua
Alteza, e nas certidões que de lá trazem, que dei-

i, 'cravelas em A.
14-15. eu com mais olhos: eu e mais outros. Em B:
eu com os meus olhos.

170
O SOLDADO PRATICO

xam no Estado tantos galeões, galés, fustas, e tan-


tas pipas de pólvora, e tantos outros provimentos,
que cuida el-rei que tem a índia segura pera mui-
tos anos.
5 Sold. — Depois que os viso-reis trataram mais .
de si que do serviço de Deus e del-rei, logo começa-
ram a usar dêsses ardis pera se acreditarem; porque
(■que rezão hão êles de dar a se descuidarem das ar-
madas e a não fazerem galeões? Vossas Mercês se
10 desenganem: o Império Romão não se começou a
perder (como já disse) senão depois que se come-
çaram a vender os magistrados; e assi eu dou a
índia por acabada, porque hoje não se dá nela nada
por merecimentos, senão por dinheiro.
15 E sabeis, senhores, quanto?—que até as capita-
nias da galés, fustas e estâncias, se dão com prêço
apreçado; e a mim me contaram que um fidalgo
muito moço, que não tinha idade pera ser capitão
de Ga fusta, lhe deram Ga galé pera o Malavar por
^2^ um serviço de mãos e saleiro de prata de bestiães;
e assi me disse um homem bem baixo da costa,
que tinha um irmão em um ofício muito vil, o qual
andava no serviço, que aquele verão havia de ir
por capitão de um navio ao Malavar; e pregun-
25 tando-lhe eu quem lho havia de dar, respondeu-
-me que largaria a um privado do viso-rei as ordi-
nárias, que são duzentos pardaus.
Ora vejam Vossas Mercês a que miserável estado
chegou a índia! Por onde, senhor secretário, vos

20, bestiães: lavrados a representarem animais e ou-


tras figuras.
21, costa. Duvidoso em A; talvez seja casta.

171
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

requeiro da parte de Deus e del-rei, que lhe signi-


fiqueis isto e que mande ter tento neste negócio,
por que se vai acabando, e que se saiba a quem
se dão os cargos, como já disse; porque nem todos
ç os que servem el-rei lhe deve êle satisfação, e não
é rezão que se dê a um mecânico, ou filho dêle,
o cargo que me hão de dar a mim, que sou um ca-
valheiro muito honrado, de trezentos anos para cá,
que sempre serviram com a lança na mão aos reis.
io Desp. — Isso que dissestes é muito santo; e
certo que estou pasmado de ver em quantas cousas
o diabo engana êsses homens!
Sold. — Pois que cuida Vossa Mercê? O diabo
é menino, tem mil modos de enganar os homens;
15 e, o que é pior, que todos sabemos que nos engana,
e deixamo-nos ir após aquela golodice, que nos re-
presenta com esta negra cobiça; e certo que estive
já cuidando que cobiça deve de ser nome do mais
feo demónio que há no inferno, e do mais nécio;
20 inda que digo mal: que nécios são os que êle enga-
na com cousa tão vil e prejudicial à alma.
De ua cousa estou pasmado, que é ver viso-reis
muito embaraçados com a fazenda do rei e dos „
vassalos, e tomar os cargos a uns pera os dar a
25 outros; e não vi té hoje ua restituição, e embara-
çarem-se tão leves na conciência, que pasmo; mas
também aqui entra a astúcia do demónio, cobiça,
que lhe faz muito fácil tomar a fortaleza a um pera
a dar a outro com a fazenda, e com tôdas as mais
30 cousas, como se aquilo fôra um nonada.

2, neste negócio, porque nem todos em B.


9, serviram. Refere-se elipticamente aos antepas-
sados. Em B: servi.

172
O SOLDADO PRÁTICO

Ora emfim, senhores, resumo-me: que, se não


crêra tão firmemente na fé de Cristo e nos manda-
mentos da sua lei, que pudera embaraçar-me com
o que vejo fazer a homens, que professam o nome
5 de cristãos com tanta facilidade, como se fizeram
um grande serviço a Deus. Ele está nos céus, e
não dorme; medo hei que venhamos todos a pagar,
e que os que andarmos naquele Estado vejamos
ainda a água pola barba, sem nos podermos valer;
io e já vou titubiando de paixão, e não atino com o
que digo; por isso dêm-me Vossas Mercês licença,
porque me quero recolher.
Desp. — Tornai-vos a sentar, que quero sa-
ber de vós outas cousas, e a primeira é: as partes
ij que há de ter o viso-rei, que Sua Alteza quer agora
eleger pera a índia êste ano, e que cousas lhe são
necessárias pera lá.
Sold. — Já que Vossa Mercê quer ensacar-me,
não posso eu fugir a isso, mas é necessário ser um
fo pouco comprido; e se fôr enfadonho, ponham Vos-
sas Mercês a culpa a si, ou me mandem alevantar
a qualquer hora que os enfadar.
Desp. — Isso me não fareis vós nunca polo
gôsto e poveito que tenho de vos ouvir: por isso
25 tratai essa matéria quão de vagar quiserdes; por-
que me releva estar nela resoluto, para quando se
tratar desta eleição.
Sold. — Já hei de obedecer a tudo, e Vossas
Mercês me estejam um pouco atentos, porque eu
50 trabalharei por abreviar.

18, ensacar-me: esgotar-me, despojar-me de tudo


quanto sei. É, como nota Morais, uma expressão predi-
lecta de Couto. Em B erróneamente: incitar-me.

173
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

O viso-rei que se há de eleger pera o Estado da


Índia, quanto à eleição, há de ser a que fazem os
reis da China para as suas províncias, nas quais
tem êste costume: Nunca elegem viso-rei ou gover-
5 nador pera ua província, senão aquela pessoa, que,
naquela pera onde é eleito não tem nenhum paren-
te em nenhum grau, para assi mais desimpedida-
mente administrarem justiça; porque as mais das
desordens que os viso-reis da Índia tem cometido,
io foram por causa de seus parentes, assi por darem a
alguns dêles as armadas que não merecem, como
por tomarem as fortalezas a outros pera lhas dar
a êles.
Tem mais: viso-rei ou governador, que o rei da
15 China elege para qualquer das províncias, chega
a ela só sem nenhua majestade; e tanto que apre-
senta sua patente, assi é servido e venerado de
todos, como o mesmo rei, e os chins o servem de
tudo abundantemente; e quando o mandam tirar,
20 assi se torna a sair só, como qualquer particular;
e primeiro tiram devassa da sua vida: se fez injus-
tiça e se ficou devendo algua cousa, é logo provido
com a derradeira pena — o que não há nos nossos
viso-reis, que, tanto que são eleitos, logo se lhe
23 ajunta um exército de parentes e criados, que nem
três Estados da Índia bastam pera êles; e todos são
acomodados por fas e por nefas; e os anos que go-
vernam fazem as cousas que tenho relatadas em
tôda esta prática.
30 E quando se tornam pera êste reino, tôdas as

22, provido. Maneira irónica de dizer. EmB: punido.


27. Por las e Por neías: a tôrto e a direito.

171
O SOLDADO PRÁTICO

naus da carreira não bastam pera lhe recolherem


suàs fazendas e dos criados e parentes; e das injus-
tiças e insultos que cometeram e dívidas que dei-
taram, não houve quem lhe preguntasse por isso;
5 e ua das móres tiranias, que êstes homens usam em
seu govêrno, é que a nenhum dêles fica el-rei de-
vendo nada em seu título, porque todos se pagam
d'ante-mão; e a viuva pobre e o homem aleijado
e a órfã desemparada ficam por pagar de suas ten-
ro ças de quási todo o seu tempo. E se aí houve al-
gum que levou certidão, que lhe ficou el-rei de-
vendo dinheiro por outras partes que quis deixar
o título em aberto pera alegar depois que se não
pagou, e êle repagou-se.
15 Tem mais: que assi como na provisão dos rei-
nos, quando se deferem por eleição dos homens,
se tem mais respeito ao bem dos povos, ò qual só-
mente se instituíram, que não ao proveito dos mes-
mos reis, como bem notaram muitos doutores, assi
nem mais nem menos o viso-rei que se há de ele-
ger há de ser homem, que claramente se saiba dêle
que terá na sua eleição mais respeito ao serviço de
seu rei e bem daqueles Estados que a seu parti-
, cular; e tôda a eleição fora daqui e solicitada ou
25 inculcada por respeitos, é total destruição daquele
Estado. Ora eis aqui quanto à parte da eleição;
e quanto às partes que o eleito há de ter, são aque-
las três, que o grão capitão Gonçalo .Fernandes de
Córdova dizia que havia de ter o bom capitão, que
30 são: ser clejnente, ter mão larga e bôca prudente.

28-29. Gonçalo Fernandes de Córdova, grande general


espanhol dos fins do século XV. Distinguiu-se nas guer-
ras da Itália, contra os franceses.

'75
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

E destas três tratarei pola primeira, que é ser


o capitão clemente, a qual virtude se lhe pôs pri-
meiro, como mais necessária que tôdas. Enéas mui-
tas virtudes teve pera se lhe poderem louvar, mas
5 de nenhua fez Virgílio caso, nem engrandece senão
a clemência e piedade, porque nesta se encerram
tôdas as mais virtudes, a qual traz a si até os pró-
prios imigos, como lhe aconteceu com Aqueméni-
des, capitão grego e companheiro de Ulisses, que
io em Sicília estava perdido e embranhado, polo não
matar o gigante Polifemo, como fez a seus compa-
nheiros; e aportando ali Eneas com sua galé, sa-
bendo-o o afligido Aqueménides, fez consigo êste
discurso: — «Se fico nêste mato, morrerei de fo-
15 me; se apareço, matar-me-á Polifemo; se vou pera
Enéas, pola ventura se quererá vingar de mim do
mal que eu e todos os gregos fizemos a Tróia. Que
farei? Todavia generoso deve de ser o filho de Vé-
nus e Anquises; nenhum tão grande capitão deve
20 de querer acanhar o acanhado nem afligir o afligi-
do.» E, determinando-se, saiu do mato; e pre-
sentando-se a Enéas, lhe deu conta de seus infor-
túnios, o qual o recebeu e tratou humanamente,,
trazendo-o sempre por companheiro; e por estas
25 e por outras obras como estas alcançou o nome de
Piadoso.
E, polo contrário, quando os escritores querem
vituperar el-rei Cina, lhe chamam cruel; e assi sua
crueldade foi causa de morrer a mãos de seus solda-

9, Ulixes em A.
10, embranhado: escondido no mato.
28. Cina não foi rei, mas apenas cônsul.

IJÓ
O SOLDADO PRATICO

dos. O emperador Antonino Pio jcom que ganhou


tamanho e tão heróico sobrenome, senão por esta
parte de capitão tão louvada em todos? E nenhua
outra cousa fez o grande César subir à monarquia
5 do mundo, senão tanto que chorou sôbre a cabeça
de Pompeo, sendo o mór imigo que tinha; e esta
foi a causa, por que em Roma coroaram o grande
Fábio com corôa de grama do prado, a qual se
concedia aos capitães clementíssimos, e que depois
10 das guerras acabadas traziam os seus soldados a
salvamento e satisfeitos.
O grande capitão Milcíades não foi tão famoso
no mundo senão por sua clemência e afabilidade,
a qual foi tanta, que se escreve dêle que não havia
13 homem, por baixo que fôsse, que o não ouvisse
tão de vagar e humanamente, como se fôra um dos
grandes do reino; porque esta é a principal cousa,
v que faz a um povo honrar muito ao seu príncipe.
El-rei Filipo de Macedónia era tão dotado desta
2§ grandeza, que refusava tomar Qa cidade por fôrça
d armas, se entendia que se podiam arriscar seus
soldados; e isto mesmo é o que fez a Cipião tão
ilustre, que muitas vezes dizia que mais queria con-
• servar um soldado que destruir mil imigos.
25 iQue matéria esta pera os capitães da India, que
assi^aventuram os seus em cousas de muito pouca
importância, como se foram ovelhas, e assi se re-
colhem contentes, deixando trezentos e quatrocen-
tos portugueses degolados, como se alcançaram Qa
30 grande vitória! E o que mais me escandaliza é que
nas certidões que passam aos soldados da jornada

5, em tanto que em A.

12 *77
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

em que se acharam, todas são cheas de gabos seus,


e que destruíram e queimaram, sem declararem os
soldados que perderam; e se lho estranhais, res-
pondem-vos: que morreram patifões, não lhes lem-
5 brando que êsses são os com que a Índia se conquis-
tou, e os com que êles ganharam suas fortalezas;
e nestas jornadas assi arriscadas, de maravilha se
matam fidalgos, como já em outra parte disse.
E tornando a nosso fio: Pompeo dignamente
io merecedor de sobrenome de Magno, por sua cle-
mência chegou a triunfar quando veo da África,
sem haver sido senador; e porque Sila, que pri-
meiro que todos lhe chamou Magno, foi o que o quis
estorvar, virando-se Pompeo a êle, lhe disse: —
15 Não sabes, Sila, que muitos mais adoram o Sol
ao nascer que ao pôr? — querendo dizer que em
tanto se há de ter o homem que começa a crecer
em virtudes, como o que vai acabando. E visto
por Sila sua brandura e clemência, começou a gri-
20 tar: Triumphet! Triumphet! Mas Sérvio, senador,
o não quis conferir, sem primeiro lhe não dar al-
gíias peitas; ao que respondeu Pompeo que tal não
faria, porque honras compradas ficavam sendo
vitupério.
25 Oh! como me cai aqui a propósito o como isto
está já recebido neste reino e no Estado da Índia,
e a quão poucos capitães lhe lembra isto de Pom-
peo? Porque hoje mais tratam de honras compra-
das que ganhadas; e mais tratam de fortalezas tres-

4, patifões: gente de ínfima categoria, vàdios.


20. Exclamação latina, pela qual Sila significava
que se lhe fizessem as honras do triunfo, conferido aos
grandes vencedores.

178
ò SOLDADO PRÁTICO

passadas que merecidas! E não sei inda se diga


o mesmo das governanças. Mas sabem Vossas Mer-
ces de que isto vem? Do barato que se fez dos des-
pachos da índia, de que já atrás tratei; o que não
5 aconteceu a Pompeo, que antes se quis arriscar
a não triunfar que a dizerem que o comprava
O cônsul Marco Fábio, côncedendo-lhe o Senado
triunfo maior pola vitória que alcançou contra os
veios e etruscos, o enjeitou; porque na batalha fo-
ro ram mortos os cônsules Mânlio e Quíncio Fábio, seus
companheiros; porque não havia por merecedora
de honras a vitória, que tanto sangue dos seus lhe
custara. Não _é bem que passe pola facilidade com
que os capitães da índia entram em Gôa triun-
15 fando, esbombardeando, cheos de plumas e pontas
de ouro, deixando muitos companheiros descabe-
çados polas praias de Calecut e por outras partes,
* .que é ua cousa muito escandalosa, e que se havia
de prover.
^ Mas, tornando a nosso fio da clemência dos capi-
tães, por esta parte ser mais necessária que todas *-
Quando Plutarco, na Vida de Rómulo, põe aquelas
três virtudes, com que os reinos e impérios se acre-
centam, que são clemência, moderação e verdade,
25 põe a clemência primeiro, como mais necessária!
E esta foi a causa, por que Marco Marcelo edificou
o templo da Virtude diante do da Honra, por mos-
trar que - não se pode passar ao da Honra senão
polo caminho da Virtude, pola qual se entende a

3, do barato: da pouca importância.


10. Quíncio Fábio era, não cônsul, mas apenas
irmão de Marco Fábio, como faz notar A. Caetano do
Amaral numa nota de B.

m
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

clemência, a qual, tendo-a um capitão perfeita e


em grau consumado, terá todas as mais; porque
as virtudes em graus remissos se acham uas sem
outras; mas em graus consumados, como disse,
5 estão uas com as outras travadas de feição, que
não pode um ter justiça, sem logo estarem com êle
a temperança, fortaleza e prudência. E o mesmo
é nas virtudes teologais, que não pode um ter fé em
grau perfeito, que não tenha também a esperança
io e caridade.
A esta virtude da clemência, de que vou tratan-
do, chamavam os gregos philanthropia, que quer di-
zer afabilidade humana; e assi os mesmos, quando
queriam engrandecer os seus deuses e seus reis, lhes
15 chamavam meilichioi, que é tanto como chamar
-lhes mansos e amorosos, o que nos reis há de res-
plandecer muito; porque os homens querem ser
levados por amor em todas as cousas; e por ser
esta virtude muito necessária, mandava Deus que
20 os reis fôssem ungidos com óleo, polo qual signifi-
cava a brandura e humanidade: porque assi como
o óleo tem virtude de abrandar, assi queria que os_
reis fôssem brandos pera seus súbditos. E desta
parte tenho dito o que baste.
25 Desp. — Dissestes tudo quanto um muito douto
podia dizer; mas não canseis, ide com a matéria
por diante, porque é de muita doutrina.

CENA V

Sold. — A segunda parte que o capitão há de


ter, é mão larga, a qual é tão necessária ao capi-
50 tão, que antes haveria por menos mal faltarem-lhe
todas as mais partes; porque o capitão que com

180
O SOLDADO PRÁTICO

mão fechada quer conquistar províncias, é ir bus-


car pela ribeira acima o que lhe caiu no pego. E se os
juristas põem por obrigação às partes, que querem
correr com suas demandas, que hão de ter bôca
5 fechada e bôlsa aberta e peis de ferro, quanto mais
necessária será esta virtude ao capitão, que há de
conquistar províncias, que não às partes, que o
não hão de fazer mais que a três ou quatro pes-
soas, a saber-' juiz, escrivão, procurador, inqueridor
io e solicitador.
Nunca até o dia de hoje lemos que o capitão
com mão fechada vencesse imigos; e cada dia ve-
mos o capitão liberal render gravíssimas fortale-
zas, e sojugar indomésticas e bárbaras nações. Li-
15 beralidade não é outra cousa que usar moderada-
mente das riquezas, como se disséssemos que delas
não se havia de dar tão pouco que fique em escas-
seza, nem também dar tanto que venha a ser pró-
digo; mas é um meo entre um e outro, e que corn-
aio põe êstes dous extremos, e o que ensina o quanto
e quando e a quem se há de dar; e, pelo contrairo>
a avareza é um apetito desordenado, ua cobiça in-
saciável, e ua infirmidade que abrange a tôdas
as partes do corpo; e crecendo cada dia mais e
25 mais, faz o homem afeminado, de maneira que,
segundo os platónicos, para serem ricos é necessário
cortar os apetitos que tem os avaros, e não con-
sentir que se acumulem tesouros e riquezas para se
guardarem.
3° Muitos reis vemos perder os reinos por avaros, e
não consentirem largueza, e outros ganharem os

26, ser ricos em A.

l8l
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

alheos por liberais. El-rei Aqueo de Lídia foi tão


avaro com seus soldados que, de o não poderem
sofrer, o mataram e lançaram no rio Pactolo, por-
que diziam criar areas d'ouro, para que ali matasse
5 sua sêde. Cresso isso mesmo foi causa de sua
morte, porque sua avareza o levou a morrer a mãos
de partos. Lépido, um dos triúnviros, estando ápo-
derado de Sicília, depois que desbaratou Plínio,
capitão de Sexto Pompeo, ^que é o que o fez durar
io tão pouco em seu principado senão a tacanheza?
Porque, indo Octaviano com exército sôbre êle, se
lhe passaram todos os soldados de. Lépido a êle,
fugindo de sua avareza; e assi se lhe entregou, e
êle o mandou a Roma sem cargo nem ofício senão
X5 o de Pontífice Máximo, que tinha adquirido".
Emquanto esta infernal peste da avareza não
entrou em Roma, foi sempre senhora do mundo;
mas depois de Cómodo Antonino, sucessor no Im-
pério, que começou a vender os magistrados, e que
20 entregou o coração todo nas mãos da avareza, logo
começou a descair de sua grandeza. Como também
aconteceu ao Estado da India, que, emquanto foi
governado por viso-reis e governadores puros, te-"
mentes às leis de Deus e do rei, amigos e cobiçosos
25 de honra, teve sempre os imigos debaixo dos peis
e se sustentou de presas grossas, que faziam nossas
armadas; mas depois que esta infernal peste entrou
nêles, logo começou a descair de todo, e os imigos
a nos perderem o respeito e a se sustentarem de
30 presas que hoje fazem em nós.

5, isso mesmo: igualmente, também. Em B erró-


neamente: Em Cresso isso mesmo.

182
O SOLDADO PRATICO

E por não gastarmos o tempo em contar de ava-


rentos, aos quais deixaremos com suas misérias,
tornemos aos capitães liberais, que, por o serem,
foram famosos no mundo. Lêmos do grande Baco
5 que foi o primeiro que começou mostrar sua libe-
ralidade com os soldados, o qual, além de lhe pa-
gar o seu ordinário, lhe fazia mercês de dinheiro,
corôas, armas, estátuas e trofeos, e outras cousas
semelhantes, com que os trazia tão contentes, que
io os intratáveis montes do Oriente, povoados de feras
bravas e gentes indomésticas e feroces, atraves-
savam com muito gôsto, e com êle o fizeram se-
nhor da India, que foi o primeiro estrangeiro que
por armas a conquistou.
15 Nenhua outra cousa fez ao grande Alexandre ser
tão grande no mundo senão sua liberalidade, enjei-
tando trinta mil talentos d'ouro e muitos Estados,
que seu imigo Dario lhe ofereceu em dote com sua
filha, segundo conta Cúrcio; o que sèndo estranhado
•o de seu amigo Parmenião, lhe respondeu: — Se eu
fôra tu, aceitara isso; mas sou Alexandre, mais cobi-»
çoso de honra que de dinheiro; e lembrou-me que
eu era rei e não mercador.
Aqui me pudera deter em vituperar alguns viso-
25 -reis e governadores da India, que deixaram de

5, começou mostrar. Note-se o não emprêgo da


preposição a, que o texto de B aliás restaura, deturpando
a linguagem.
19. Cúrcio Rufo foi o historiador romano que con-
tou os feitos de Alexandra Magno.
20. Parménion, general macedónio de Filipe e de
Alexandre. Em A: Parmaniado.

I83
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

ser capitães e se fizeram mercadores, largando por


mão as obrigações de seu cargo, e descuidando-se
das armadas e de tudo o mais, por fartarem seu
apetito, e mercadejando com o dinheiro del-rei,
5 polo que deixam de fazer armadas importantes;
e quando as fazem, são fora do tempo, como já
disse, por terem em si o dinheiro. Por ua cousa não
quero passar, muito pera se significar a el-rei e com
que cada dia o enganam; e é que, como êles tem
io dinheiro em si por êste modo, fingem muitas vezes
necessidades no Estado; então fazem que tiram di-
nheiro do seu cofre e o emprestam aos oficiais pera
as armadas, e tiram certidões que emprestaram a
el-rei tantos mil pardaus, não entendendo êle esta
15 falsidade, e que nenhum vem de Portugal que traga
cousa que possa emprestar. Ó senhor, dizei estas
verdades a el-rei, pera que saiba o que passa e cas-
tigue quem o engana; porque tão mau é o engana-
rem-no a êle, como enganar-se êle.
20 E deixando isto, tomemos à nossa ordem da li-
beralidade dos capitães. O grande Pompeo com
esta virtude sojugou todo Ponto, Arménia, Síria,
Cilicia, a grã Mesopotâmia, Fenícia, Palestina, Ju-~
dea, as Arábias, e muitas outras nações; trinta e
23 nove cidades, que deixou com presídios romãos,
afora novecentas outras, que deixou sem êles, mil
castelos e novecentas naus, que tomou a diferentes
piratas; e isto segundo conta Plutarco; e diz que da
terceira vez que triunfou da Ásia, sujeitou isto ; e

1-2, largando da mão em B.


26, afora novecentas naus que tomou a diferentes
piratas e novecentas cidades que deixou sem presidio ro-
mano e mil castelos em B.

184,
o SOLDADO PRATICO

que os trebutos que deixou postos a estas provín-


cias montaram cinco centos de dous centos de milhões,
e que trouxe pera o tesouro púbrico vasos d'ouro
e prata, que pesavam vinte mil talentos, aíora o
5 que repartiu com os soldados; e que o que menos
houve foram mil e quinhentas dragmas; de maneira
que, pola conta de Apiano, os trebutos que acre-
centou somavam oito milhões e meo d'ouro, e o que
meteu no tesouro doze milhões, afora o que repar-
10 tiu com seus soldados, que eram vinte mil infantes
e quatro mil cavalos, que parece que não bastavam
pera conquistar tantas províncias; mas o com que
mais as venceu foi com sua liberalidade; porque
o bom tratamento que fazia a todos e o muito que
J5 lhe dava, dobrava as forças e pelejava cada um
por dous e três dos imigos.
Diz mais Apiano que levou Pompeo no seu exér-
cito vinte cinco legados, não levando nenhum dos
outros capitães mais que dez; mas a liberalidade
20 de Pompeo fazia desejarem todos de o seguir. Pera
estas legações não costumava o Senado nomear pa*
rente nenhum do capitão-mór, como diz Túlio em
ua Epístola a Ático, por evitarem muitos excessos,
e por não darem aos parentes aquilo que dereita-
2j mente era dos soldados; e esta foi a rezão, por que

2, cincoenta mil homens em B. Em A: cincoenta


des sintinaias de milhões, que possivelmente estará estro-
piado. Plutarco diz que os tributos pagos a Roma se ele-
vavam a 200 milhões de sestércios, e com os triunfos de
Pompeu se elevaram a 300.400.000 sestércios.
6, dragmas em A: dracmas, moeda grega.
7. Apiano, historiador romano do tempo de Tra-
jano e de Antonino Pio.
10, vinte mil eltjantes em A. Erro evidente.

1S5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Cleon, quando entrou no govêrno de sua república,


se despediu dos parentes e amigos, como homem
que morria, porque entendia que se não podia con-
servar um reino com os parentes andarem de por-
5 meo; e assi é na verdade, porque não há mór des-
truição pera ua república, que haver nela excep-
ção de pessoas, e ter-se respeito a carne e a san-
gue.
Aqui quisera tocar outra tecla dos parentes e
io criados dos governadores e viso-reis da Índia, que
são os que a comem e destruem; mas se me outra
vez cair a lanço, direi o que sôbre isso entendo. Ca
só cousa posso afirmar: que emquanto nela houver
governadores entregues a parentes, irá descaindo
15 e declinando, como o fez o Império Romão, depois
que se quebrou aquela ordem de não admitirem nas
legações parentes dos cônsules, como já disse.
E, tornando a Pompeo (que por curiosidade se
pode ouvir isto), os legados de que falávamos ti-
20 nham segunda autoridade após os cônsules. Vegé-
cio no 2.0 De re militari escreve que Pompeo repar-
tira a cada soldado de pé mil e quinhentas dragmas, _
e a cada um de cavalo três mil talentos, e aos centu-
riões dobrado, e aos legados mil talentos, e aos pre-
25 feitos, que era a segunda dignidade após os legados,
outro tanto; no que diz que despendeu quatrocen-
tas e vinte mil livras de prata só nos soldados de pé ,
e cavalo; e há-se de saber que cada livra valia dez
escudos, que fazem quatro milhões e oitocentos
30 mil escudos d'ouro; e neste conto não entra o que

1. Cléon foi o regente de república de Atenas de-


pois da morte de Péricles.

186
O SOLDADO PRÁTICO

deu a centuriões, a soldados forasteiros, a embaixa-


dores, a espias, e outras muitas despesas extraordi-
nárias, que, calculando-se o que despendeu, segun-
do Apiano, fazem nove milhões e seiscentos mil
j escudos; e tudo isto foi tirado daquela parte, que
antigamente foi o reino dos lídios.
Trouxe todas estas miudezas, porque notei ua
cousa muito contraíra à dos tempos de agora, a qual
é, que nem Apiano nem Tito Lívio, que contam •
io estas grandezas e liberalidades de Pompeo, não fa-
zem menção do que Pompeo tomou pera si; porque
estava entendido que os capitães daquele tempo
mais pretendiam honras que proveitos; mas os viso-
-reis e governadores ao contrário: venham os pro-
jj veitos, as honras tenha-as quem quiser. Aqueles an-
tigos capitães folgavam de enriquecer seus vassalos,
mas os viso-reis de os empobrecer; e tanto, que até
os trinta mil cruzados, que el-rei lhe dá pera repar-
tir com êles, té êsses somem por mercês muita parte
lo fantásticas, e em homens que nunca naceram ao
mundo. «
Conta Plutarco que Ptolomeo Filadelfo respon-
dera a uns, que lhe tachavam fazer tão largas mer-
cês, que êle não queria deixar de si fama de rico,
25 senão de fazer a muitos ricos. E assi costumava a
dizer o grande Alexandre que aquele era bom rei ou
capitão, que aos amigos conservava com dádivas e
mercês, e aos imigos atraía a si com benefícios e
boas obras. Dionísio Siracusano, segundo Plutarco
30 escreve, entrando em casa do príncipe seu filho,

19, com eles, metem eles em muitas partes fantás-


ticas em B.
23, tachavam: censuravam.

187
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

o achou fazendo resenha de muitas peças ricas


d'ouro e pedraria, que lhe tinha dado; e com muita
paixão lhe disse: — Por certo que melhor eras pera
mercador que pera herdeiro de Sicília, pois tens
5 mais natureza de entesourar que de repartir e fazer
mercês, o que te convém fazer, se queres depois de
mim herdar êste reino; porque te afirmo que os
grandes e altos Estados não se sustentam com guar-
dar, senão com dar e repartir.
IO César jpor onde veo subir à monarquia romana,
senão por sua liberalidade? A qual era tanta que
acrecentava o ânimo aos seus e abatia no dos imigos;
e assim por grandeza, quando fazia paga aos solda-
dos, lhe mandava dar dinheiro aos punhados, dizen-
15 do que de outra maneira se enganaria na conta.
Coitado de mim, se houver de dizer o que nesta
parte pecam os viso-reis da Índia, tão diferentes
em tudo de César, que êle dava dinheiro òs punha-
dos e os soldados da Índia não lhe podem arrancar
20 às punhadas das mãos cinco pardaus! E se Dioní-
sio Siracusano vira o que vai naquele Estado, com
mais rezão pudera chamar aos viso-reis mercadores
que capitães; porque assim andam com canhenhos"
nas aljibeiras de receitas e despesas, como os mer-
25 cadores com os seus livros de caixa.
E tornando a César, que por curiosidade não
quero passar por suas cousas, pois Vossas Mercês
me tem dado licença tão larga; conta dêle Apiano,
no segundo Da Guerra Civil, que, depois que alcan-
jo çou o Império, a cada soldado deu cinco mil drag-

12, nos dos imigos em A.


24, aljabeiras em B.

188
O SOLDADO PRÁTICO

mas áticas, e a cada capitão de turma duas vezes


dobrado (era ua turma esquadra de trinta de cavalo,
segundo Varro e Vegécio), e aos tributos dos mi-
lites o dôbro, e a cada um do povo ua mina ática.
5 E Suetónio Tranquilo, escritor antigo, nomea estas
mercês que fez César por sestércios, e que distri-
buíra quatrocentos por cada um, o qual número
Apiano toma pola mina ática; e, por sua conta,
cada soldado lhe coube cinco mil dragmas, e aos
10 cavaleiros dobrado; e Suetónio diz que despendera
César por cada cavaleiro vinte quatro mil numos,
que são seis mil dragmas; e que quando fizera estas
despesas se acharam em Roma vinte mil homens.
E Hírcio no seu tratado Da Guerra Africana diz
15 que só de veteranos havia vinte mil, e que cada um
levara de mercê cinco mil dragmas, conformando
nisto com Apiano, que montou o que êles levaram
dez milhões d'ouro, e acrecenta mais centúrios, ca-
valeiros, tribunos e os moradores de Roma e das
% cidades de Itália, com que fazia um número infi-
nito. E falando Apiano do seu triunfo, que durou-
quatro dias, afirma o dinheiro amoedado que ia no
triunfo passava de sessenta e cinco mil talentos
e duas mil e oitocentas corôas d'ouro, que pesavam
25 mais de vinte mil livras; e pola conta de Apiano,

3-4, milites: soldados a cavalo.


4, mina: moeda gTega, que valia cérca de 3 libras
e meia.
6, sestércio: pequena moeda de prata dos romanos.
11, numo: moeda romana antiga. Em A: numi, à
maneira latina.
14, Hircio, amigo de Júlio César, é o presumido
autor dêsse livro Da guerra africana.

l8ç
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

os talentos que iam em dinheiro amoedado vinham


fazer trinta e nove milhões d'ouro, e que cada dez
mil livras faziam um milhão.
Trouxe estas particularidades pera mostrar a li-
beralidade e grandeza, com que se conquistou o
mundo, e como aqueles capitães venciam com mais
mercês que com armas. Com nenhua outra cousa
subiu Filipe, pai de Alexandre, a tanta grandeza se-
não com mão aberta; e muitas vezes dizia que não
havia fortaleza tão forte que se não conquistasse,
se a ela pudesse subir um asno carregado d'ouro.
Nícias com nenhua cousa alcançou o favor do povo
pera vir a ser senhor de todos, senão com liberali-
dade, que era ofício de capitão prudente; porque
com o dar alcançou nome de príncipe liberal e o
amor e vontade de seus cidadãos.
Dizia Marco Bíbulo por César, sendo ambos com-
panheiros na edilidade (que era ofício de almota-
céis), que tinha a César em conta de Cástor, e a
êle de Pólux; porque assim como o templo, que
estava edificado em honra dêstes dous, não tinha
o nome senão de Cástor, que assi também todas as
sumptuosidades e magnificências que ambos faziam,"
tôdas tinham o nome de obra de César, e nenhua
de Bíbulo; porque isto tem as pessoas afáveis e libe-
rais: ficar deles sempre eterna memória; e os aca-
nhados e tacanhos esqueceram, como Bíbulo.
Temístocles, capitão dos atenienses, jpor onde
veo a ser famoso, senão pela liberalidade, e o não

12, Nícias, general ateniense, chefe do partido aris-


tocrático.
23, afaboUis em A.

IÇO
O SOLDADO PRÁTICO

querer nada pera si e o dar tudo aos soldados? —


como lhe aconteceu ua vez que, andando na ribeira
do mar, depois de ua batalha que ali teve com os bár-
baros, em que os desbaratou: vendo muitos de seus
5 corpos mortos com braceletes e outras jóias d'ouro
e pedraria mui ricas, sem fazer caso disso, disse
a uns soldados: — Tomai, soldados, tudo, já que
não sois Temístocles! Oh! quem vira alguns viso-
-reis que eu conheci com outra presa como esta!
io jComo a havia de entesourar, requerer seus quintos,
e fazer diligência sôbre algua cousa, se lhe faltasse,
que até das entranhas dos soldados as haviam de
arrancar! Mas êstes nada se pareciam com Temísto-
cles.
15 Vêde, senhores, quanta fôrça tem a liberalidade:
que, vindo Alexandre conquistando a Ásia, come-
tendo a Hircânia e os povos Marcos, o veo buscar
por sua fama Talestris, ou como lhe outros chamam
Minotea, rainha das Amazonas, com trezentos mil
homens de guerra, a qual caminhou vinte jornadas
só por ver um capitão tão liberal, e de que tantas-
cousas ouvia; a qual, segundo conta Justino, di-
zem que foi prenha dêle, o que ela muito estimou
* por ter um filho de um tamanho capitão. O mesmo
25 caso aconteceu à rainha Sabá, que foi de tão longes
terras a ver a grandeza de Salamão, e lhe levou
muito dões.
E concluindo com esta matéria dé liberalidade,

22. Justino, historiador latino do século II. autor


das Histórias Filipicas, em que descreve os feitos dos reis
da Macedónia.
25, longas em B.
27, dons em B.

IÇI
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

direi só êste exemplo: Costumavam os antigos fa-


mosos, quando se punham a comer, mandar tanger
muitas trombetas, pera que acudissem os pobres
a receber sua ração; porque no repartir com êles
5 mostravam sua grandeza. Isto, senhores, na índia
está acabado, porque os capitães da guerra muda-
ram estilo: comem fechados e em silêncio, por não
terem rezão de repartir com os soldados pobres; e
aquilo que na primitiva índia tinham por honra e
io grandeza, que era agasalhá-los e sustentá-los, tem
agora por infâmia; que a êste estado são chegadas
as cousas! Por onde eu receo que a índia não seja
de dura.
Fid. — Dizeis verdade, e inda mal porque isso é
15 assim e porque o eu também receo.
Desp. — jQuão mal se parecem os capitães e vi-
so-reis com êstes que contastes! Não sei que conta
fazem, e em que pretendem nome.
Sold. — Em ter e guardar. E não sei se passou
20 esta peste dêste reino àquele Estado, porque todos
chegam a êle com esta linguagem de quanto tens,
tanto vales. Eu estou cansado: houveram-me Vos-
sas Mercês de dar licença...
Desp. — Já nos haveis de fazer mercê de acabar-
25 des vosso discurso e de concluir com a terceira
parte, que vos ficou por dizer.
Sold. — Ora emfim já me hei de sacrificar, pois
mo mandaram; e estejam um pouco atentos.

28, atento em A.

IÇ2
O SOLDADO PRATICO

CENA VI

Sold. — A terceira cousa, que há de ter o bom


capitão, é bôca prudente, que é a verdade de Plu-
tarco. Oh! que cousa tão fermosa, que é, na bôca
do viso-rei ou capitão, a verdade e palavras bran-
5 das e prudentes! Porque estas, depois que saem pela
bôca fora, não se podem tornar a recolher; e por
isso dizia aquele filósofo que muitas vezes se arre-
pendera de falar, e de calar nunca; e tais são as
boas palavras como a mesma liberalidade: porque
io de tal maneira pode um capitão dar, que lhe não
seja agradecido, e de feição pode negar, que lhe
fique fia pessoa devendo e agradecendo tanto,
como se lhe dera. As palavras são testemunhas do
coração: coração alterado e inquieto e tacanho nem
IS sabe dar, nem sabe falar.
Natural é ao soldado na guerra esperar pelo lou-
q vor e pelas mercês do seu capitão; polo que se ar-
risca aos móres perigos, e trabalha pera nêles ser
visto dêles, quando entende que lhe não faltam obras
20 e palavras; porque o dar é própio de capitão, por-
t que sabe que fica nisso ganhando mais que o que
recebe; porque adquiriu o que pretende, que é fama
e glória; e o soldado recebe o que se lhe deve, e não
fica devendo nada. De maneira que a boa palavra
23 no capitão é um tesouro tão precioso, que todo o
ouro do mundo fica muito atrás; nem há tambor,
nem trombeta, que mais incite os ânimos dos solda-
dos que a palavra prudente do seu capitão: esta
é muitas vezes a escada, com que se sobem soberbos
50 muros; as armas com que se escalam fortalezas mui
grandes; as bombardas com que se desfazem pode-
rosos exércitos, e a que mina mui inexpugnáveis ba-

193
13
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

luartes e a que desfaz fortes malhas e coletes; a que


faz todo o perigo fácil, tôda a carga leve, o não
comer fartura, o não dormir repouso; esta é a que
faz o fraco forte, e o forte mais ousado, os montes
5 plainos e chãos, a noite escura alegre, o dia triste
gracioso, e, sôbre tudo, a morte fea fremosa; e assi
tão necessária é na guerra a bôca prudente do capi-
tão, como as própias armas; porque os imigos ven-
cem-se com elas, e os vencedores animam-se com as
io palavras.
Em nenhua cousa mais se mostra a prudência do
capitão, que na bôca; porque menos é na guerra
bôlsa fechada, que bôca desmandada. Nos provér-
bios lêmos que a discreta palavra abranda tôda a
15 ira; e assi como a Escritura diz que a água tíbia faz
vomitar o que está no estâmago, assim faz a boa pa-
lavra a respeito da ira. E daqui veo a dizer Plutarco
que os cavalos se governavam com os freos e as
iras e paixões com a boa palavra.
20 Dizia Diógenes que assim como o rosto do ho-
mem vemos qual é num espelho, assi o interior da
alma o conhecemos pelas palavras; e que assim como
um vaso no tom se conhece se está quebrado ou são,
assim também pelo som da palavra se conhece que
25 tal é o capitão.E por esta causa respondeu Sócrates
a um que lhe preguntou pelo valor da pessoa de
Arquelau, filho de Perdicas, «que nunca o ouvira
falar», porque a palavra do homem é o verdadeiro
toque, em que se prova sua prudência: na bôca do
30 homem está o mal e o bem; tenha quantas bonda -

20. Theogid.es em A. Talvez êrro por Theognis,


poeta grego do século VI antes de Cristo.
O SOLDADO PRÁTICO

des quiser, não tenha bôca prudente, tudo se lhe


escurece e desdoura.
Piteas, grão-duque que foi dos atenienses, segun-
do Plutarco, foi príncipe honrado, temido e muito
5 esforçado capitão; mas todas estas grandezas borrou
com suas indiscretas palavras; porque aos capitães
mais se olha pelo que dizem que pelo que fazem. De
maravilha o capitão na guerra peleja, nem arrisca sua
pessoa; e com tudo a êle se atribuem a honra e a
o glória da vitória; porque inda que os soldados pele-
jaram com as armas e com as mãos, êle o fez com a
boa e prudente palavra e govêrno; porque ao exér-
cito, sem o que o governa ter bôca prudente, po-
demos-lhe chamar exército sem capitão, como Cé-
5 sar chamou ao exército de Petreio e Afrânio, que
estavam em Espanha por Pompeo, o qual, segundo
escreve Suetónio Tranquilo, depois que se apoderou
da monarquia romana, que Pompeo se foi para Du-
0 raço, tendo César determinado de o ir buscar, dei-
o xou de o fazer por causa da invernada, polo que se
determinou passar a Espanha, e disse aos seus: —
Vamos primeiro cometer o exército sem capitão, e
. depois iremos buscar o capitão sem exército. E isto
disse, porque os capitães de Pompeo, Afrânio e Pe-
5 treio, não eram prudentes na bôca; e porque Pompeo
tinha esta prudência sôbre os capitães de seu tempo,
o qual havia por mais duvidoso de conquistar que
os grandes exércitos de Espanha com homens indig-
nos do nome de capitães.
o Os famosos escritores, assi gregos como latinos,
não se esmeravam tanto em escrever os feitos que

7-8, De maravilha: raras vezes.

195
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

os grandes capitães faziam, como no que diziam;


porque entendiam que pelas palavras se conheciam
as obras. De Dario se escreve que, estando um dia
comendo, movendo-se práticas entre os seus sôbre
5 Alexandre, um capitão chamado Menon, que não
era prudente na bôca, meteu muito cabedal em di-
zer males de Alexandre, o que Dario não sofreu,
e com ira lhe disse: — Cale-te, Menon, que não te
trago comigo para que deshonres Alexandre com
io a língua, senão para que o venças com a espada.
E por aqui se verá a diferença que havia da bôca
prudente de Dario à do seu capitão, que nem do seu
imigo consentia dizerem-lhe males.
Do mesmo Alexandre se lê que, ouvindo prague-
íj jar dêle certos soldados, lhe dissera com a bôca
muito prudente; — De grandes capitães é, inda que
ouçam mal, fazer bem. E lhe fez mercê. Cipião
Africano, competindo com Cláudio sôbre a senhoria
de Roma, Cláudio com bôca não muito prudente
20 alegava seus merecimentos, e entre êles dizia: —
Ó padres conscritos e nobres senadores de Roma
(e com isso nomeava todos por seus nomes), quem
sabe tão bem o nome a todos — dizia êle — não é
senão de amor; por onde não me podeis negar a se-
25 nhoria. Mas Cipião, com bôca muito prudente, disse
aos senadores: — É verdade o que Cláudio diz, que
sabe o nome a todos; mas eu sempre trabalhei por
todos mo saberdes a mim. E com isso subiu à
dignidade que esperava.

5-8, Minõ em A.
8, Cale-le: cala-te. Forma popular.
20, alega em A.

IÇÓ
O SOLDADO PRATICO

Tibério César, dizendo-lhe alguns de má inclina-


ção que em Roma havia alguns que praguejavam
dêle, respondeu, muito prudente, que na cidade li-
vre, livres haviam de ser as línguas. Muitas cousas
5 fizeram a César Carlos V famoso no mundo, mas
eu hei que a principal foi bôca prudente; e tanto que
nunca amigo nem vassalo saiu dêle descontente,
nem imigo escandalizado; e em muitas cousas mos-
trou suas palavras prudentes. Sôbre todas foi naque-
10 las altíssimas e cristianíssimas, que disse, quando
venceu os protestantes de Alemanha, que se viu da
outra parte do Albis: — Vim, vi, e Deus venceu —
imitando ao primeiro César; mas um falou como
gentio, e outro como cristão.
15 E concluindo esta matéria; o homem que se há
de eleger para governar aquele Estado há de ter as
três cousas já ditas: clemência, liberalidade e pru-
dência, que são as três graças, a que os poetas cha-
q mam Aglaia, Eufrosina e Talia, pelas quais que-
20 riam significar a cousa alegre, graciosa e florida;
porque não há cousa mais alegre que a clemência,
nem mais graciosa que a liberalidade, nem mais flo-
# rida que as palavras prudentes. E porque devem
Vossas Mercês de estar enfadados, e isto é tempo,
25 dêm-me licença. E certo que não cuidei que me es-
tendesse a tanto; mas o fervor me foi embebendo as
horas.
Desp. — Foi-me êle furtando a mim, que tomara
ouvir-vos té amenhã; porque me dissestes cousas,
30 que não esperava ouvir da bôca de um soldado; e
sabeis dar tão boa rezão de tudo, que é necessário
que amenhã nos vejamos; porque cumpre a serviço
del-rei saber de vós as cousas em que é necessário
mandar prover no Estado da índia para sua segu-

197
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

rança, e qual é mais necessário conquistar: se pri-


meiro Ceilão, ou Achém, porque há cá diferentes
pareceres.
Sold. — Não sei se tenho talento pera tanto;
5 mas pois me Vossa Mercê disse que era serviço del-
-rei, farei, como lá dizem, das tripas coração, e
tirarei forças da fraqueza. E esta noite passarei essas
cousas pola memória, pera saber dar melhor rezão.
Fid. — Tendes-me encantado! Confesso-vos que
io me embaraçastes com o que vos ouvi, porque tocas-
tes em matérias mui graves e de muita substância.
Amenhã, querendo Deus, me tornarei para cá, por-
que vos quero ouvir, para estar presente nessas ma-
térias, quando se tratar delas em Conselho.
15 Sold. — Isso estimarei muito; porque como Vos-
sa Mercê sabe tanto daquele Estado, ir-me-á alu-
miando em algãas cousas; e por ora fique Deus com
Vossas Mercês.

1-2, se primeiro Ceilão se o d'Achem porque defe-


rentes pareceres em A.

iç8
O SOLDADO PRATICO

TERCEIRA PARTE

ARGUMENTO

Ao outro dia à tarde se foi o Soldado para casa


do Secretário, como ficara com êle, e já o
achou com o mesmo Fidalgo praticando sôbre
as cousas, que antre todos se tinham tratado o
5 dia de antes, louvando a liberdade com que
o Soldado falava, e a experiência que tinha de
todas as cousas daquele Estado. E, entrando,
lhe disse o Fidalgo:

CENA I
Fidalgo — Podeis-vos gabar, senhor soldado,
i£ que esta noite nos tirastes o sono a ambos, com
cuidarmos em quantas cousas nos dissestes, tanto
para ficarem escritas, que isso estávamos agora, o.
senhor secretário e eu dizendo; e só por isso mere-
ceis que se vos faça Ga grande mercê.
15 Soldado — Não é tão pouco fazer eu perder o
sono a Vossa Mercê, quando lho não fez perder o
govêrno da India e o pêso daquela máquina. E certo
que não sei qual é o governador que gosta do que
come, nem que tem horas de repouso, com tantos
20 cuidados, quantos para rezão devia ter; e muitas

2, como ficara com ile: como combinara com êle,


11-12, tanto para: tão merecedoras de.
20. pela rezâo em B.

içç
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

vezes estive cuidando se lhe viria isto de terem per-


dido o sentido das cousas, ou se lhe dá de tôdas
muito pouco; porque vi chegarem novas de estar
Maluco muito apertado, Malaca de cêrco, e que os
5 malavares tomaram um pôço d'ouro aos vassalos
del-rei, e que na saída que fez o capitão-mór do Ma-
la var, em um rio dos imigos, lhe mataram duzentos
homens, e em outro desastre cento, e que tomaram
íía nau da China carregada d'ouro, e dar-lhe disso
io tão pouco, como se fôra ua palha.
Êmfim, senhores, os adágios das velhas são evan-
gelhos pequenos, e aquele que diz: Onde não há
dono, não há doilo, é muito certo. Estes senhores
que a governam não são donos da índia, dóe-lhe
15 muito pouco; estão com o tento em irem ricos, o
mais passe por onde passar, que êles vem-se com as
costas sãs, e os proves dos moradores ficam com
elas quebradas. Pois os capitães-móres das armadas
vos gabo eu: recolhem-se às vezes com os focinhos
2C quebrados e com alguns navios perdidos, e ao entrar
da barra de Gôa é tanta a bombardada, que não há
quem se ouça; e ao sair em terra, tanta pluma e
tanta bizarrice, como se deixaram destruído o mun-
do; e nas certidões, como já disse, tudo são gabos:
25 que fizeram, destruíram, e que gastaram tanto. Ora
verão Vossas Mercês se é verdade o que digo do
pouco sentimento que todos tem das cousas. Vossas
Mercês não querem senão tirar-me tantas vezes a
terreiro para me fazerem apaixonar.

13, doilo: apoquentação. Talvez um aportuguesa-


mento do espanhol duelo. Em B: Onde não há dono
nem dó.

200
O SOLDADO PRATICO

Despachador — Isso que dizeis é assim, que eu


tenho em meu poder essas certidões; e inda é peor:
que se acertam de andar em requerimento dous fi-
dalgos, que foram capitães de armadas, quando fa-
5 Iam comigo em segrêdo, me diz um do outro mil
afrontas: que não soube ser capitão-mór, que lhe
tomaram navios; que não deu boa guarda às cáfi-
las; que lhe perderam os soldados o respeito; que
lhe mataram os malavares tantos homens; que não
10 gastou nada; e êle tudo o que diz do outro lhe suce-
deu peor; e eu estou com muita paciência ouvindo
tudo sem lhe responder.
Sold. — Aí verá Vossa Mercê o que eu digo.
Pois (Como os despachais?
15 Desp. — Deu-me Deus tal condição, que por im-
portunações me tomaram minha mulher. Confesso-
-vos que me enfadam tanto, que lhe dou tudo pelos
não ver nem ouvir.
Sold. — De maneira que por importunações vos
fo meteis no inferno: bofé que é isso muito bom! E eu
com as pernas e braços cheos de espingardadas e.
cutiladas em serviço del-rei, que, porque não fui
importuno, fique por despachar! É boa justiça essa!
Os cargos e fortalezas dão-se a quem mais serve, ou
25 a quem mais importuna: Se tal é, eu avisarei aos
soldados que não curem de papéis, nem de arrisca-
rem as pessoas, senão de aprenderem na escola dos
enfadonhos, pois essa doutrina vai tànto neste rei-
no; e, pela ventura, se vos disser muitas vezes que
30 olheis pola índia, que se perde, que mandeis bom-
bardeiros, artelharia, galeões, dinheiro, soldados
e tudo o mais de que está falta, que me mandeis
meter no tronco por enfadonho! Não me entendo
com isto: quem fala verdades, prêso por sobejo,

201
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

quem requere mentiras, despachado por importuno!


Ora dai-me algum regimento para levar na aljabeira
à Índia, para os homens saberem o como hão de
requerer.
5 Vossa Mercê me meteu nisso em grande confusão;
não cuidei que me faltava isso por saber, já o tenho
percebido no coração; porque dous soldados que
vieram comigo requerer, andando por vossa ra^a
e dos outros despachadores, um dêles falava tudo
io o que queria, ditava despachos e fazia juramentos
que tremiam as carnes; chamava-vos uns tais e
quais,que não despacháveis senão quem vos dava;
e tantas cousas destas lhe ouvi, que lhe disse algiíat
vezes: — Olhai cá, Foão, ou vos hão êstes homens
15 de despachar por vos não ouvir, ou vos hão de man-
dar meter no hospital por doudo.
E assim aconteceu, que êste está já despachado à
sua vontade, e diz que o agradece à sua língua.
E outro, que acertou de ser sesudo, brando,
20 bom homem, muito bom cavaleiro, que levou
até agora seu negócio por têrmos muito honrados
e de paciência, e que fugiu de importunar, êste que
esteja hoje ainda por despachar, tendo dobrados"
serviços do outro! Que esperarei? E assim alguas
25 vezes disse a êste homem: — Olhai que êsses têrmos
vos hão de fazer nojo: gritai, falai, porque aqui dão
mais a quem mais fala que a quem mais peleja.
jOra vejam com que gôsto virão os homens a bus-
car quem tem obrigação de lhe fazer justiça, se êles
30. vêm tão claramente estas injustiças! Ora pesa-me

10. deitava despachos era A.


26, /aser nojo: prejudicar.

202
o SOLDADO PRATICO

de não ter já idade para me meter nua religião;


porque o mundo me tem bem desenganado para es-
perar dêle nenhum bem.
Quero-vos contar ua história, que me aconteceu
andando d'armada na enseada de Cambaia. Desem-
barcando na cidade de Gôa, estando eu falando com
um mercador gentio muito rico, veo outro meter-se
na conversação; e perguntando eu ao com que fa-
lava que homem era aquele, respondeu: — Êste ho-
mem, senhor, é grande cavaleiro; é quando os tur-
cos xaquearam Mascate pelejou muito bem. E per-
guntando pelo que fizera, me tornou: — Quando
os turcos andavam pela povoação a roubar, estava
êste homem em cima da serra, que é mui alta, e dali
bracejava e dizia muitas roindades aos turcos e
pelejava muito. Caiu-me aquele negócio tanto em
graça, que muitas vezes o contei por galantaria.
E agora digo que muitos fidalgos e soldados, que
cá despachastes muito depressa, pelejaram como
êste gentio de cima da serra, deitando brabosidades
contra os imigos; e eu, que andei com a espada nua
e chea de sangue, entre êles, pelejando com muitas
feridas, que esteja por despachar! Tal é o mundo
como isso: o bom é logo pelejar de bôca, e deixar
estar as mãos.
Desp. Por certo que tem isso muita graça, fol-

x, religião: ordem religiosa.


11 e sejr xaquearam Mascate, muito bem peleijara; e
andando eles roubando pela povoação, estava em cima da
terra muito alta, e dali praguejava e dixia muitas ruin-
dades em B.
20, brabosidades: bravatas, gestos e palavras de
falsa valentia.

203
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

guei muito de ouvir êsse conto e de o saberdes trazer


tanto a propósito; e cuido que falais em tudo muito
a ponto, e que muitos pelejaram na índia dessa ma-
neira, que me vem cá também matar com a bôca;
5 de maneira que eu e os turcos corremos muito risco
com êles.
Sold. — Não se canse Vossa Mercê, que estes
que digo nem hão de matar a êles nem a vós; satis-
fazem-se com aqui sonharem que pelejaram muito
io bem; pareceu-lhes que foi assim, e requerem pelo
que imaginaram e não pelo que fizeram.
Desp. — Que vos hei de dizer? Digo minha
culpa; entregam-me um feixe de papéis, que eu não
lerei por um condado; e porque estamos com a opi-
15 nião de soldados velhos e antigos, salvo-me na fé
dos padrinhos, despacho-os polo que pedem e não
polo que merecem. Ora daqui por diante ficarei en-
sinado à minha custa.
Sold. — Será isso à custa del-rei e minha; porque
20 lhe dais os seus cargos sem ordem e merecimentos,
e a mim negais o que com tantos requeiro. Ora dei-
xemos isto, e vamos ao primeiro, que ficámos on- .
tem de nos ajuntar aqui, que foi para tratarmos das
cousas que é necessário mandar prover para segu-
25 rança daquele Estado, no que eu desejo de ver e en-
tender neste reino muito de propósito, inda que me
não despacheis a mim nem aos outros; porque o
bem comum precede ao particular.
Desp. — Isso. é de cristão, e folguei muito de
30 vo-lo ouvir; porque outros muitos há, que tomaram
não se tratar nunca senão do que releva a êles, e o
mais que se perca tudo.

9, com aquilo: sonharam em A.

204.
o SOLDADO PRATICO

Sold. — Não sei se abrange isso também a Vos-


sas Mercês; porque, com saberdes o estado em que
a Índia está, quando nos parece que do despacho
há de sair que se deixe tudo e que se acuda muito
5 depressa a ela, por que se não perca, e que se or-
• dene ua grossa armada e obriguem a ir a índia
muitos capitães, que entendem a guerra, muitos
bombardeiros,artelharia e dinheiro, — vejo arreben-
tar com quatro naus carregadas de provisoes d alvi-
10 tres para vós e para outros, e vossos criados sós os
despachados; e muitas leis contra os proves dos mo-
radores, sem nenhum fundamento nem proveito del-
-rei, nem daquele Estado.
Desp. — Que vos hei de fazer? que cuidam cá
11 que acertam nisso; porque o escrevem assim os viso-
-reis, a cujas cartas se dá muito crédito, pela obri-
gação que tem de falarem verdade ao rei e traba-
lharem de pôr remédio às cousas, que virem ir de-
ft sordenadas. _
20 Sold. — Eis aí, senhor, como é tudo: escreve um
viso-rei que não é bem que andem os homens em
palanquim, e que não tragam pagens portugueses,
. e que não respondam aos homens que estão ausen-
tes,que não paguem soldos velhos, nem as liberda-
21 des das caixas senão na Índia, havendo que dais al-
vitres de poupar, e outras trezentas cousas muito
para rir; e se os escrevem os homeqs livres e que
temem a Deus e são leais a seu rei, que acudais a
Índia, que se perde, zombais disso, e cuidais que
3o vos enganam; e ao outro, que dana aos homens,
acudis com tanta provisão, que é pasmar.
Dizei-me, senhor secretário, que fundamento se
tem neste reino a não responderem aos ausentes,
sendo justiça; responderem primeiro a êstes, que

205
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

ficam no serviço na índia, que aos que se vieram


dela em tempo que pela ventura há muita necessida-
de de homens. <E não merece mais o que actualmente
serve a seu rei que o que deixou o seu serviço? To-
5 dos podem vir a êste reino requerer; se muitos ho-
mens há que não tem posse para isso, logo perde-
rão seus merecimentos os soldados velhos; e as liber-
dades das caixas, que me pagavam neste reino, e
que se mandam pagar na índia, jquem o há de fazer,
i° se me não pagam o meu sôldo, que actualmente
venço, porque havendo-me de dar quatro quartéis
por ano, não recebo mais que dous? E como se
pode na índia sustentar um soldado com vinte par-
daus por ano? Isso é pô-lo a risco de furtar, ou se
15 ir para os mouros, como muitos já fizeram.
Estas cousas por certo que não fazem o rei pobre,
antes o enriquecem; porque, pagando o que deve a
quem o serve, entesoura tesouros muito grandes de
misericórdia para com Deus, que por isso lhe con-
20 servará seus Estados em paz e quietação, e lhe acre-
centará em seus rendimentos. Ora quero, senhores,
saber, <que nojo faz o casado, que tem seus moços, -
andar no seu palanquim, achando-se indisposto, ou
tendo o seu cavalo enfêrmo?
25 Desp.—Tudo isso que dissestes é santo; mas jque
vos há de fazer el-rei, se de lá da índia escrevem
que o rendimento dela basta para tudo? E quanto
a despacharem neste reino os homens que estão pre-
sentes, e não se falar nos ausentes, é por que os que
30 andam neste reino se tornem para a índia, que há
lá necessidade dêles.

7, os soldos velhos em A.
22, nojo: mal, prejuízo.

206

o SOLDADO PRATICO

Sold. — Eis aí a justiça: despachais os que aqui


estão para se tornarem, e os que lá ficam servindo,
que padeçam! Antes, para justiça, se havia de tra-
tar primeiro do despacho dos ausentes, pois estão
5 continuando no serviço; porque, se virem que se faz
assi, não se virão os homens de lá, e não dareis aos
que cá estão mais do que merecem, por que se tor-
nem.
Desp. — Assim o concedo eu também; e êsse
10 negócio de se não falar em ausentes não deve estar
tão fechado que se não despachem todos os anos
muitos, e sempre se parte com todos. E quanto ao
que dizeis dos palanquins, é mau costume, e parece
que andam nêles os homens afeminados; e a essa
i j conta os fidalgos não tem cavalos para acompanha-
rem seus viso-reis, e com isso parece que se habi-
, tuam a ua vida mole e que parece que não é trajo
de soldado.
• Sold. — Está isso muito bem, e assim é que eu
20 sou o que mais o estranho, pois por esses pecadores
hão de pagar os casados inocentes; êssoutros é mui-
to bem que não andem em palanquins, e que os
• obriguem a ter cavalos, e que o que não acompa-
nhar o seu viso-rei seja castigado; e a êstes fidalgos
25 não se lhe há de pôr outra pena, senão que percam
seus despachos, e que outros os não pudessem mere-
cer, porque das mais penas zombam. E com o en-
trar em perder despachos, eu vos dou minha pala-
vra que andem tão a ponto, que lhe não possa o
30 provido detrás dêle arguir de pecado.
E mais, senhores, ^sabeis que fez esta lei de palan-

25, perçam em A.

20-
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

quins, depois que passou a Índia a ser um ninho de


guincho, como lá dizem, para os criados dos viso-
-reis? Porque eu vi haverem êstes licença para os
homens de negócios andarem em palanquins e a
5 mim me disseram alguns que lhe custara a vinte
e a trinta pardaus. E êstes homens, como compram
todas as cousas das bôlsas dos néscios, pagam tudo
largo, e muito mais largo como entram em delí-
cias; porque eu sei alguns, que em relhos d'ouro e
io colares de pedraria gastaram com as amigas dez
e doze mil cruzados; e assim depois quebraram e
fugiram com grande soma de dinheiro das partes.
E, com eu avisar a alguns amigos disso, não sei que
dom tem êstes homens sôbre o dinheiro alheo, que
ij andam às rebatinhas a quem lho dará primeiro, e
inda para lho tomarem os peitam. Por onde certo
que cuido que todo o dinheiro da Índia é mal ga-
nhado, e que permite Deus que o diabo o leve por
êstes canos e por outros.
20 Ora, deixando isto: grandes penas para quem an-
dar em palanquim, e para os que se escusam do
serviço del-rei nenhíia! Em verdade, senhores, vos
digo que desejo de me fazer doudo, para me de-
sentoar nesta matéria. Vi alguns mexelhões, que,
25 como andaram dous verões por capitães de navios,
já não querem senão galé; e se lha dão, já ao outro
ano não querem aceitar senão armadas de capitães-, '
-móres; e se o foram um verão do norte, já para o

8, como entram em delicias: quando se trata de


coisas de prazer. Em B: com o entrar em diligências.
9, relhos: cintas.
13, E, com eu: e apesar de eu.
24, mocelhões em A. Significará «mocetões».

208
O SOLDADO PRATICO

outro o não querem ser senão do Malavar; de ma-


neira que cada um se quer vestir da sua libré, e não
da do rei, a quem servem. E para isto não há ferros
nem troncos, que êstes merecem melhor que arma-
5 das!
Tomara um viso-rei de tanta fêvara que, em se
um escusando do serviço, o embarcara logo em úa
nau com um grilhão nos peis, que então eu vos se-
gurara que os outros se recolheram. Nem isto hei
10 mêdo que seja remédio; antes temo que, em êstes
chegando a êste reino, além de os despacharem com
fortalezas, lhe deis mais um entretimento pelos ferros
que levou. E por isso, senhores, deixai-me, que me
fazeis irar contra todos os despachadores, em tempo
15 que venho labutar com êles.
Desp. — Sôbre isso que dizeis dos que se escusa-
rem, tem el-rei provido muitas vezes, porque de
tudo é informado.
4 Sold. — Nada sei disso; se lá foram provisões,
20 os viso-reis as sumiriam, porque nunca se usou delas,
e assim os castiga Deus naquilo em que pecam; por-
que assim como não cumprem as provisões del-
, -rei, assim lhe não cumprem as suas, nem lhe guar-
dam seus regimentos; e daqui nace desacreditarem-
25 -se as leis e terem-lhe pouco respeito. Muitas vezes
vi apregoar na Índia alguas, que se não guarda-
vam mais de três dias; e certo que parece isto jôgo
de meninos, ou dos despropósitos.
Sai o viso-rei com ua lei sôbre pagens, e diz que
30 os capitães de Ormuz, Sofala e Malaca poderão
trazer quatro pagens, e os das mais fortalezas
dous, e todos os mais fidalgos um: isto durou seis
dias. Sai outro com outra lei, que não tragais gual-
drapas: olhai êste despropósito! Outro manda que

209
14
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

não tragais diante dos cavalos cafres com sombrei-


rinhos de mão, que lhe tomam a chúvia no inver-
no. Não houve mais que pregoar e parar. Certo
que, quando isto via, que cuidava que se fazia
5 aquilo só por que se soubesse quem era o viso-rei,
e que folgava de se mandar apregoar polas praças:
— «Ouvide mandado do viso-rei, Foão!» — Ho-
mem, já o sei — respondia eu aos porteiros — vai-
-lhe dizer que faça algua lei contra os malavares,
io que nos tomam todos os anos vinte e trinta
naus.
tia vez me aconteceu ir em Gôa a cavalo com um
fidalgo velho, e vir pela rua um tambor, que pare-
cia que vinha rompendo batalha, e o cavalo do fi-
15 dalgo começou-se a inquietar, o que êle sentiu mui-
to, e, passando polo que tangia, o fez calar e lhe
perguntou cujo era, e onde ia. Respondeu que do
governador e que ia lançar um pregão. Ao que o
fidalgo lhe disse: — Vai-lhe dizer que vá beber da
20 tal, que os malavares andam senhores do mar e
êle anda cá pola cidade quebrando-nos as cabeças
com o seu tambor; que mande apregoar que ne-
nhum malavar navegue, que isso é o que releva; e
que êssoutro que vás pregoar é parvoíce, que nem
25 importa, nem se há de guardar.
Desp. — Não está essa história má; o bom fôra
isso que dizeis: fazer lei contra os cossairos; mas '
êles não lha guardaram.
Sold. — Nem a êles lhe dará ua palha disso.

2, chúvia em A. Forma popular.


17, cujo era: de quem era, a quem servia.
28, guardaram: guardariam.

210
O SOLDADO PRATICO

Desp. — Dizei-me, senhor, jque respeitos houve


para êsse viso-rei defender pagens?
Sold. — Fazer tiro a alguns fidalgos, que não
eram despachados com as fortalezas dos quatro
5 pagens. E sabeis o que isso montou? que um que
trazia quatro meteu logo oito, e ninguém lho per-
guntou.
Desp. — cQue dano faz trazer um fidalgo muitos
pagens?
io Sold. — Antes cuido que é serviço de Deus e
del-rei; porque vem todos os anos nas naus duzen-
tos meninos, e se não tiverem quem os recolha,
como fazem êstes fidalgos, morrerão ao desemparo:
e assim se vão criando por estas casas, e depois se
15 fazem soldados e honrados. E quando seus amos
entram em suas fortalezas, fazem-lhe bem, partem
com êles, e muitos vem a ser ricos; e assim, a têrça
parte dos moradores honrados das fortalezas da In-
• dia foram dêstes assim: e êste é o mal que lhe faz
20 esta criação, e o bem que lhe quer fazer quem lhe.
quer tirar êste remédio.
Fid?—Dizeis muito bem, e assim é; que na
• Índia os mais dos moradores foram criados dos ca-
pitães, que nela estiveram, e, no cabo dos seus três
25 anos, cada um deixa seus dous pares dêles casados
e ricos. E êsse viso-rei que quis defender isso, deu-
-lhe a paixão.
Sold. — Essa faz muito mal aos que governam
aquele Estado, porque por ela fizeram algflas gran-
50 des injustiças. E afirmo-vos, senhores, que chega

1, respeitos: razões, motivos.


2, defender: proibir.

211
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

isto a tanto, que ousarei afirmar que houve viso-


-rei que estimava mais satisfazer seu apetito que
sua obrigação, e que lhe dava muito pouco de pôr
a índia em um balanço, só por comprir com
j sua paixão. Perguntar-me-eis de que vem isto?
Vem de cuidarem que emquanto estão naquele lu-
gar lhes é lícito mostrarem seu poder até contra
Deus, se posso dizer isto; porque bem contra êle se
faz o que se faz contra justiça.
io Desp. — Essa matéria é de importância, e por
isso ide de vagar com ela, porque me tereis muito
pronto a vos ouvir.
Sold. — Já que assim é, ouçam-me Vossas Mer-
cês.

CENA II

15 Sold. —Começo por aqui: quer um viso-rei ua


cousa destas; diz-lhe o desembargador livre, o teólo-
go virtuoso que o não pode fazer. Entra logo o
diabo e diz-lhe: — Faze, que tudo podes. E assi
tomam tão mal dizerem-lhe que não pode, que lhe
20 parece que já lhe tiram o govêrno das mãos.
— (Como não posso,—diz êle — se posso tudo
quanto el-rei pode? E disse muito bem, que naquilo
se inclue quanto lhe os outros disseram. Porque
el-rei não pode fazer injustiças; se se isso não reme-
25 dea, eu dou tudo por perdido.
Quer um viso-rei bater moeda falsa, que assim
lhe posso chamar, pois danifica o povo; vai o cobre

4, balanço: risco, perigo.

212
O SOLDADO PRATICO

a quarenta xarafins o quintal; batem os bazarucos


à rezão de sessenta e setenta; vem os mouros da
outra banda, que trazem o ôlho em nossas cousas;
quando vêm o excessivo ganho, batem logo lá na
5 Terra Firme grande cantidade de bazarucos, e, à
formiga, a metem em Gôa, ria qual ganham um poço
d'ouro, porque inda a fazem mais pequena.
Vem os mercadores das vacas, pàdeiros, boti-
queiros, hortelões, e todos os mais, ou não querem
io tomar a moeda, ou, valendo trezentos réis um xara-
fim, pedem trezentos e sessenta, ou acrecentam um
bazaruco na medida d'arroz, no peixe, na carne;
o pàdeiro faz o pão de menos peso, e assim por esta
maneira tôdas as mais cousas, com que os proves
15 perecem e clamam. Acodem logo com o remédio,
que é abater na moeda três bazarucos, que valham
dous, que é grande roubo; e assim o povo padece,
e o criado do viso-rei, que bateu o seu cobre, fica
0 com os cinco e seis mil cruzados de ganho; e se lhe
20 quereis ir à mão e dizeis que não pode bater aquela
moeda, ri-se de vós e zomba de todos.
Desp. — Pois que determinam fidalgos tão hon-
, rados? Vão lá para deitar a perder a Índia? Porque
se não atenta nisso e porque os não castiga el-rei?
25 Sold. — Já eu disse ao que lá iam alguns dêles;
não queira que lho diga tantas vezes; o bom é bara-
lhar êste jôgo, e não passar mais avante.
Fid. — Todos desejamos bem de acertar; mas
nem a tôdas as cousas se pode acudir com o rigor

I, bazarucos: moeda de cobre da índia, de pouco


valor.
8-9, botiqueiros: lojistas, vendilhões.

213
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

que dizeis. Que havemos de fazer? que nós imo-nos


lá remediar, e se cá tornamos sem dinheiro, não
nos falarão a propósito. Ora, quanto às penas que
dizeis se ponham aos que escusam de servir, não
pode ser, que el-rei há mister os homens.
Sold. — Essa vos nego eu já; homens que fogem
do serviço, e de se embarcarem nas armadas, e de
socorrer as fortalezas, não se hão mister para nada.
Mas quero-vos também satisfazer a isso; dissimulais
io com êstes, por não fazer tanta execução, com não
mandardes todos os anos a el-rei um rol dêstes, a que
podemos chamar vàdios, para ao tempo dos despa-
chos se lhe não responder. {Que mór castigo quereis
que fazê-los vir a êste reino, e tornar sem despacho,
15 para que os outros se envergonhem e se não
escusem?
Eu vos dou minha palavra que, se se isto
fizer, que haja tanta emenda que pasmem todos;
mas se êles com isto vêm que lhe dão tanto sem se
20 embarcar, como aos que continuam suas armadas,
fazem muito bem não se cansar. Vós, senhor, despa-
chais a êstes, como inda agora dissestes, por enfa-"
donhos. Fazem muito bem de viver à sua vontade
e não se cansarem, como eu tôda a minha vida fiz,
25 que nunca quietei senão os três meses do inverno,
e inda nesses tive mór trabalho que nas armadas,
porque pelejava com a fome, que é o imigo contra
quem não vai esfôrço nem armas; que nas armadas
não faltava um prato de arroz com Cia cavalinha
30 salgada; que êstes são os regalos com que lá servi-
mos el-rei.
E certo que, se a vida dua fusta se tomara em pe-
nitência de pecados, que não sei mais dura vida
dos padres do ermo; porque, se dormiam no chão,

214.
O SOLDADO PRÁTICO

era dentro em ua lapa, quentes e reparados das in-


clemências do tempo; se comiam ervas cozidas e
com um pedaço de pão duro, tinham muitas conso-
lações espirituais, com que se sustentavam, e viviam
5 mais de cem anos; se não bebiam vinho, tinham
águas de fontes suavíssimas, que os consolavam;
mas nós os soldados todo o ano ou tôda a vida dor-
mimos em um banco da fusta, descobertos, à chuva
e ao sol; um prato d'arroz que comemos, é cozido
io com muitas pedras e pó; a água que bebemos é dos
tanques, tão fedorenta, que pode causar peste. Ora
vede se era isto bastante penitência, se a passara
por meus pecados! Mas nós sofremos tudo, porque
não temos outro remédio.
15 . Nas respúblicas bem ordenadas tudo se encami-
nha a bem, e tanto se trabalha por remediar cousas
pequenas como as muito grandes. Se vos cai um
muito pequeno argueiro no olho, emquanto o não
0 tirais inquieta-vos tudo; assim o fazem cousas muito
20 pequenas no olho da vossa república: se lhe não
acudirdes ao argueiro pequeno, trá-la-eis sempre "
inquieta: de pequena bostela se cria grande mazela,
< dizem as velhas.
Se vos cai ua pequena pedra no sapato, faz-vos
25 manquejar: ^cuidais que êstes nonadas, êste arguei-
rinho de deixardes andar e viver os homens à sua
vontade, que montam pouco? Sabei» senhor, que
nisso vai tudo: jporque se não há de atentar em ua
república polo soldado que não tem nada, donde
30 lhe vem andar com tanto ouro, tanto veludo, tantos
pagens portugueses, que é pasmar? <;Polo fidalgo

6. Em A parece estar escrito cristianíssimas.


22, mazela em A.

215
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

mancebo, que vem do reino sem um cruzado, querer


logo ter casas de trinta de aluguer por mês, cavalo
ajaezado de prata, caprazões ricos, e entrar em
suas casas é entrar por um deserto ou casas de en-
5 cantamento: na casa dianteira quatro cadeiras, na
câmara um esquife em que dormem, e tôdas as mais
casas podem nelas esgrimir e jogar a pela? Pois para
que é isto, e para o que se dissimula com êste ar-
gueiro no olho, porque se não tira? Porque êstes
io para sustentar isto hão de buscar todos os meos ilíci-
tos que puderem, e enganarem a donzela, a viuva,
e deshonrarem a casada; e por aqui se vem a estra-
gar a vossa república.
Quando a índia florecia, nenhum dêstes fidalgos
15 mancebos tinha casa nem cavalo; pousavam cinco,
e seis com um fidalgo velho, ou que tinha acabado
sua fortaleza, ou que estava para entrar nela, sem
terem mais que um pagem e um boi para o som-
breiro; e assim viviam tão registados, que era muito
20 para louvar a modéstia daquele tempo; e de mara-
vilha acháveis um dêstes em ua baixeza, nem se
casavam, como hoje fazem muitos, com quatro cru"
zados, que logo se lhe acabam. Os soldados, cinco
e seis também em Qa casa térrea, de que pagavam
25 dous pardaus por mês, e ali se negociavam com só
duas capas e duas esquipações e iam fora aos dias;
comiam ua ração, se lha dava o fidalgo velho; se
não, sôbre a espingarda lhe fiavam arroz e azeite

3, caprazões: caparazões, gualdrapas especiais.


18. boi: criado que leva o chapéu de sol ou o pa-
lanquim.
25, se negociavam: se arranjavam, se governavam.
26, esquipações: fardamentos.

216
O SOLDADO PRÁTICO

para se alumiarem. Não faziam vilezas, nem os


acháveis devassando as ruas; e tanto que havia ar-
madas, corriam-se de passear pola cidade.
Contar-vos-ei ua galantaria a êste propósito, dua
5 mulher cortesã. A esta foi um soldado de noite ba-
ter à porta, sendo o viso-rei d'armada; e perguntan-
do ela quem era, lhe respondeu que gente de paz.
Ao que ela mui apressada tornou, dizendo: — Bem
o creo; porque quem anda em Gôa sendo o seu viso-
10 -rei na guerra, bem de paz é. E assim aos soldados
daquele tempo lhe fazia Deus mercês; e de maravilha
se embarcavam, que se não recolhessem com muitas
presas, e com muitos parós tomados; hoje, muito ao
contrário, não há quem os faça embarcar; passeam
15 por Gôa todo o inverno; e tanto que entra o verão,
que se querem fazer armadas, somem-se logo; e
tanto que sabem que deram à vela, tornam logo a
aparecer, sem haver viso-rei que lhe pergunte por
• isso; e quando se as armadas recolhem, se sabem
20 que hão de mandar socorros a Maluco, Malaca eCei- >
Ião, alguns d'armada deixam-se ficar polas fortale-
zas do Canará, e os de Gôa se escondem poios covis,
* como forões; e assim de maravilha sucede cousa
boa: não há quem peleje nem quem socorra as for-
25 talezas.
Sabem-no os viso-reis, vêm que lhe faltam sol-
dados na paga; e depois de partidas as armadas os
vêm passear polas ruas muito lustrosos, e não en-
forcam quatro para terror dos mais. E certo que
30 cuido que a alguns lhe dá pouco que vão os solda-

3. corriam-se: envergonhavam-se.
23, e assim... quem socorra falta em A.

2x7
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

dos nem que venham, porque não fazem armadas


mais que por cumprimento. Escrevem ao reino que
fizeram tantas armadas, os sucessos delas, sejam
quais forem, que lhe dará disso muito pouco. Acudi,
5 senhores, a isto.
Desp. — Acudirá Deus algOa hora, e também o
rei o fizera, se o não enganáramos por nossas pre-
tenções. Mas tornando ao que importa, e ao que é
necessário prover-se na Índia, que é o para que
lo hoje nos ajuntámos, nos dizei as cousas de mais im-
portância para se significarem a el-rei.
Sold. — Diz Vossa Mercê bem: deixemos os des-
propósitos de que ia tratando. A primeira cousa em
que se havia de entender é nos excessos dos trajos
15 dos soldados, e ordenar que andem como tais, e não
como rufiães; faça-se lei que os viso-reis pareçam
capitães generais, como o são; por que folguem to-
dos de parecer soldados, e que andem em corpo,
calções a meia perna de cotonia ou guingão, espa-
20 da curta, quando muito prateada, talabartes de
couro e ferros, e não com tanto calção de veludo,
tantas espadas douradas, tantas tranças d'ouro, d"
tantos passapés e guarnições d'ouro e prata, que
pasmo donde lhe isto vem.
25 Este é o argueiro no olho, que, senhores, vos dizia;
e de se dissimular com isto vindes às vezes a per-
der ambos os olhos; e de não tirardes esta pedrinha
do sapato, vindes a perder um pé.
Certo, senhores, que folgáreis de ver um soldado

19, guingão: tecido de algodão às listras ou xadrezes.


23» passamanes em B; passapés deve ser linguagem
irónica.

218
o SOLDADO PRÁTICO

de meu tempo, com um saio de guingão pardo, ce-


roulas de cheila ou de erva, jubão do mesmo, coura
de couro golpeada, gôrra de Milão, espada curta
em talabartes de anta; e muito mais folgáreis de os
5 ver pelejar, que vos pareciam tão gentis homens,
que vos perderíeis por êles; o que tudo hoje é ao con-
trário; porque cuido que os soldados d'hoje, dal-
guns digo, que muitos há de primor, mas falo dos
enfeitados, que não trazem o ponto senão nas lou-
ro çainhas; e assim ao encontrar dos mala vares traba-
lham por ir pôr em salvo aquilo de que tanto cabe-
dal fazem.
A outra cousa, em que se havia de mandar pro-
ver, e de que se faz tão pouco caso, é naquilo que já
r.ç tratámos; de guardarem os viso-reis as provisões e
regimentos do rei; porque nisto está todo o bem ou
> todo o mal. Manda el-rei ua provisão, que se façam
embarcar para o reino todos os homens de nação, e
• todos os estrangeiros, poios haver por prejudiciais
20 ao Estado: pregoa-se a provisão para que se embar-
quem naquelas naus; faz-se isto com tempo, por
que o tenham de se saberem negociar; e como êles
• estão interessados na terra, e vivem nas delí-
cias que já disse, lá se negoceam em segrêdo, e pas-
25 sam-lhe provisão de espera para mais um ano, e
assim para o outro tornam a untar as rodas e vai-se
de ano em ano esquecendo o negócio,- e êles fican-

2, cheila: tecido de algodão encorpado, de côres.


2, erva. Não sabemos que seja; ou de herva
falta em B.
9, o ponto: a mira.
22, negociar: preparar, arranjar.

2IÇ
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

do na terra contra vontade del-rei, e em grande pre-


juízo do povo.
Passa el-rei outra provisão: «que sirva Foão de
veador da fazenda, o outro de secretário, e certo
5 letrado de ouvidor geral, juiz dos feitos, procura-
dor d'el-rei, e outros»; como isto vem aos viso-reis,
que as recolhem em seus escritórios, dissimulam
com elas, e dão os cargos a quem êles querem, que
nunca são senão os que lhe a êles relevam, e os ou-
ro tros não sabem o que lhe el-rei manda. Emfim,
senhores, que, se houver de trazer tôdas estas cou-
sas, será um infinito, porque infinito é o poder que
os viso-reis tem tomado; o bom é dobrar aqui a fô-
lha, porque toca a muitos.
15 Fid. — Inda que vós fôreis secretário dessas cou-
sas, não soubéreis mais delas. Isso é assim, mas
muitas vezes se engana o rei com êsses homens; e os
ministros dêste reino dão também o que querem a
quem querem; porque êsses homens são de sua obri-
20 gação, e querem-lhe pagar com isso.
Sold. — Está assi bom! Seja como fôr, manda-o
el-rei, faça-se o que el-rei mandou! Cumpram"
o que lhe mandam, obedeçam e rescrevam, e êle
mandará o que fôr seu serviço. E <quem vos
2j disse a vós que não houve também alguns viso-
-reis, com que se el-rei enganou bem? Por isso dei-
xaram de os receber e obedecer? El-rei pode fazer
do seu o que quiser, sem lhe pedirem conta disso.
Sei-vos, senhores, afirmar, que houve viso-rei, que,

4-5, Procurador da Coroa em B.


21, Está assim muito bem! em B.
22. faça-se: rou, rou, faça-se o que el-rei mandou
em B.

220
O SOLDADO PRÁTICO

escrevendo-lhe el-rei que se servisse dum certo oficial,


porque assim o havia por seu serviço, quanto mais
instância nisso fez, tanto peor foi; porque, como
êle queria dar o cargo a um de sua obrigação, polo
5 mesmo caso que sintiu em el-rei gôsto de se servir
do outro, por êsse mesmo o desapossou, e se serviu
do que quis; e, o que peor foi: que avisaram ao des-
pachado que o queriam matar, por que se não fôsse
para o reino; polo que se acolheu a um mosteiro,
io donde se embarcou, temido e escondido.
Desp. — E assim passou isso sem castigo?
Sold. — Rio-me dêsses castigos; pagou depois os
ordenados a seus herdeiros, e de desobediência ficou
tão são como um pêro. Castigue el-rei rijamente
ij quem lhe não guarda suas provisões, começar-se-ão
as cousas a encaminhar para bem, e não haverá tan-
* tas desordens.

* CENA III

Desp. — Ora deixemos essas misérias; cuido que


não tem remédio, e tratemos do que ontem ficámos
20 sôbre qual destas cousas será mais necessário con-
quistar-se: se Ceilão, se o Achém; porque muitos
há de parecer que Ceilão é mais importante por ser
mais à porta, e a ilha ser grande e abundantísssima
de tudo, e capaz de sustentar quantos portugueses
25 há espalhados pela Índia. Sempre ouvi dizer que
os reis passados deram por regimento aos primeiros
governadores que, se a Índia padecesse naufrágio,
se recolhessem os portugueses a Ceilão, e que dali
se tornariam a reformar e a recuperar o Estado. Ou-
30 tros dizem que de mais importância é o Achém, para
segurança de todo aquele mar e de nossas fortale-

221
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

zas de Malaca, Maluco e trato da China e Japão,


porque com ua fortaleza em seu porto se segurava
tudo: agora queremos ver o que vos parece disto.
Sold. — Esse fundo é muito alto para minha
5 fraca bateira. Eu, soldado pobre, sei da minha es-
pingarda, que isso é de capitães experimentados;
mas, com minha pouca suficiência, pois Vossas Mer-
cês mo mandam, direi o que sei e o que ouvi a
velhos antigos.
io Primeiramente digo que o valeroso capitão e viso-
-rei D. Francisco d'Almeida, governando o Estado
da índia, mandando-lhe el-rei fazer alguas fortale-
zas, lhe respondeu que as com que a índia se havia
de defender eram muitos galeões, muitas armadas,
e
15 hem providas, e muita e boa soldadesca; que as
fortalezas eram currais, e quantos menos houvesse,
tanto a índia seria mais próspera e teria menos
obrigações. E eu assim afirmo inda agora; porque
muitas fortalezas há que não servem mais que de
20 fazer despesas e estarem mal providas e arrisca-
das a ua desaventura; e então, se tomam um curral,
dêstes, corre a fama pelo mundo que tomaram na
índia ua fortaleza a el-rei.
E se me disserdes que cinco ou seis fortalezas des-
25 tas se ordenaram por algua boa ocasião que então
havia, e que depois ficaram assi para as darem em
satisfação a outros tantos homens que serviram,
está isso muito bem; jmas como podeis pelo respeito
. particular arriscar ua cousa tamanha, como a honra
30 do Estado, que depois vem a montar muito? E o
que estas fortalezas gastam cada ano, que são qua-

21, desaventura: desastre militar.

222
o SOLDADO PRATICO

tro mil pardaus cada fla (que saem do Estado, por-


que elas não rendem nada) dai-os aos providos, e
ficarão satisfeitos e o Estado desobrigado delas e de
seus sobressaltos; porque para fazerem pagar as pá-
5 reas, que são quatro fardos d'arroz, e para com-
prar outro, basta ua armada sôbre suas barras, que
êles hão de temer mais que as fortalezas que ten-
des sem soldados e sem munições.
Se as de mais importância, em que consiste todo
io o poder e rendimento do Estado, de que já falei em
outra parte, tendo tanto cabedal para se poderem
sustentar e reformar, estão piadosas e quási no chão,
jcomo quereis sustentar outras, que vos não rendem
cousa algua, antes vos fazem despesas? Se me dis-
75 serdes que alguas há, como são Mombaça, Mascate,
Moçambique e Sofala, que eram necessárias, por
* que se não metessem ali turcos, e para sustentar-
mos a posse das minas da prata e ouro — isso vos
* concederei; mas havei-las de ter tão bem providas
20 como as de Ormuz e Dio, não tanto pelo que ren- <
dem como pelo que importam; mas assim a seu al-
vedrio, e sem ordem, é não terdes conta com o ser-
viço del-rei. E falo assim, porque falando por êstes
termos com Vossa Mercê, o faço com todos os que
25 disso tem a culpa.
Desp. — Todos a temos; nós cá de não sabermos
o como isso lá está e em não avisarmos a el-rei, e os
viso-reis em não olharem por cousa tão importante
e em que lhe a êles vai a cabeça; porque essa per-
30 deu D. Jorge de Castro, de noventa anos, com os

4-5, páreas: tributos.


12, piadosas: em estado miserável, digno de piedade.
30. Foi um dos grandes escândalos da Índia a ren-

223
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

móres serviços da Índia, porque entregou a partido


a fortaleza de Chalé, em que êle teve menos culpa
que outros, que nós cá despachamos.
Sold. — Três idades das minhas havia mister
5 para dizer o que vi e o que lá vai; e por uas cousas
me esquecem as outras. Mas quero deixar isto e res-
ponder a Vossas Mercês à pergunta que me fizeram,
de qual era por ora mais importante conquistar: se
Ceilão, se Achém. Digo, senhores, que ambas essas
io cousas são mui necessárias; mas para se poderem
conquistar, como é rezão, primeiro o hão de fazer
às minas da prata da Chicoua, no reino de Mano-
motapa, cousa tão sabida, tão ricas e prósperas, que
excedem a todas as do mundo: que eu vi fazer al-
15 guas vezes a experiência nas pedras que de lá trouxe
Vasco Fernandes Homem, e em outras que muitos
trouxeram, e eu a fiz em ua onça, que me deu um
padre de S. Domingos, e respondeu duas partes de
prata a ua de pedra.
20 Pois esta riqueza, esta felicidade, que está em
vosso poder, e que ninguém pode ir a elas senão
entrando por vossa porta, ^porque se perderá por
descuido? Certo que não pode ser maior, e mais
quando todos vemos que, para a conservação dum
25 Estado tamanho como o da Índia, não lhe basta o
que ela dá, e é necessário sustentá-lo e ajudá-lo com ,
outra cousa, e esta hão de ser minas; porque o Es-
tado que as não tem, sempre é pobre.

dição de Chalé por D. Jorge de Castro, influenciado por


sua mulher, e a execução infamante dêsse velho fidalgo.
18, respondeu: correspondeu.
19, e Ba em A.
23, não pode maior em A.

224.
O SOLDADO PRATICO

Vêdes a potência de Castela, a conservação de


tantos reinos e senhorios, que só no de Flandes
contra os rebeldes tem aqueles católicos reis gastado
mais de corenta milhões d'ouro. Pois se não tivera
5 minas na Nova Espanha e em outras parte, jcomo
pudera suprir a tanto? O Império Romão pudera
subir a tanta grandza, se não fôra ajudado das ri-
quezas da Lídia, da Arábia, da Pérsia, e de outras
províncias cheas de minas? Se não, vêde as espan-
10 tosas riquezas, que vos já contei, que Pompeo me-
teu no tesouro público, e as sobrenumeráveis que
repartiu com seus exércitos.
E se houver quem duvide destas minas de prata,
será porque não sabe disso tanto como eu; porque
15 acertei de estar em Moçambique, em casa dum pa-
rente meu, quando Vasco Fernandes Homem veo
destas minas de prata, que trouxe o senhor delas
preso, que o pôs em casa dêste meu parente, onde
• os ouvi praticar sobre estas minas muitas vezes; e
20 como se defendia não se cavarem, e de como os ca-,
fres tiravam as pedras; e o mesmo senhor, que se
chamava o Cháa, me disse como êle as fundia, e
* tirava a prata.
Mas, deixando isto, a índia, senhores,rende para
25 si, piedosamente; mas para mais não; milagre é sem
tesouros sustentar-se desde Sofala até Maluco com o
que dá de si; e inda foram os cabelos mais, se as
mãos não foram tantas, como disse. Por isso, senhores
desenganai el-rei; que, se quer subir a monarquia da

ix, sobrenumeráveis: inumeráveis.


22, o Achalá em B.
25, piedosamente: dificilmente, a custo.

22 í
'5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

Índia, há de mandar conquistar estas minas; e não


só se fará tudo o que se pretende, mas inda enri-
quecerá Portugal e Espanha.
Desp. — Grande negócio é êsse; não sei como se
5 não põe os ombros a cousa tamanha e tão neces-
sária; se isso fôra dos reis d'Espanha, já houvera de
estar tudo descoberto e senhoreado.
Sold. — Também os nossos reis o fizeram, se se
dispuseram a isso, ou tiveram ventura para terem
io minas; mas parece que todas se guardaram para os
espanhóis, e praza a Deus que se não guarde inda
êste nosso reino para êles!
Desp. — Que mau fôra isso? El-rei de Castela
não é também português como nós? Mas jporque di-
15 zeis isso?
Sold. — Vejo êste nosso rei moço sem casar; fal-
tam-nos herdeiros de casa; se assim fôr isto, viremos
a dar nestoutros, de fora; e não vejo outro inconve-
niente senão a antiga reixa, que sempre houve en-
20 tre nós e os castelhanos.
Fid. — Quando sucedesse isso, nada me receo;
porque essa ponta não há senão na gente baixa, que"
na nobre é outra cousa mui diferente. Quem mais

13-14. Alude a Filipe II, filho de Carlos V e de Isabel


de Portugal, e neto do nosso rei D. Manuel. Couto apro-
veita a ocasião para lisonjear os Filipes pela bôca do des-
pachador e do fidalgo, acentuando contudo por bôca do
soldado, que é êle próprio, a antiga rixa entre portugue-
ses e castelhanos, viva ainda nas camadas populares.
16. O diálogo teria sucedido ainda em tempos de
D. Sebastião. Contudo isso não impede que a certa altura
Couto fale do desastre de Alcácer.
19, reixa: ódio, rixa.
22, ponta: malquerença, ódio.

226
O SOLDADO PRÁTICO

aprimorados que os espanhóis? quem mais corteses?


quem mais liberais? quem mais políticos? quem
mais tudo o que, senhor, quiserdes? Não me receo
eu disso.
5 Desp. — Deixemos de disputar do que está nas
mãos de Deus; tornemos a nosso fio. Dizei-nos, se-
nhor, que é necessário para se conquistarem essas
minas?
Sold. — Menos que as do Peru e Nova Espanha;
io duas naus que vão dêste reino, com trezentos solda-
dos cada ua, direitas a Moçambique, e levarem pa-
nos covilhãs e portalegres para se vistirem, alguns
vinhos, e tudo o mais se lhe há de mandar trazer
de Gôa.
15 Desp. — Que mais é isso?
Sold. — Di-lo-ei a Vossas Mercês: hão-se de
mandar dêste reino um ano antes, nas naus da car-
q reira, oitenta mil cruzados; vinte mil em cada nau,
para que se tenham feitos mil bares de roupa, da
20 sorte que os cafres querem para o resgate das cou- *
sas, que valerão sessenta mil cruzados de reales;
f ficam vinte mil cruzados, de que logo darei despesa.
Estes mil bares de roupa se vendem em Sena e Tete
o mais barato a duzentos cruzados d'ouro a corja,
25 que são cem mil cruzados d'ouro, que bastam e so-

12, panos covilhãs (em B covilhâes) e portalegres:


da Covilhã e Portalegre.
18, quarenta mil em cada ano em B.
19. O bar ou baar era um peso indiano que valia
de 141 a 330 quilos, segundo as regiões e mercadorias.
24, de ouro o bar em B. Corja era a porção de 20
peças ou 20 pacotes: parece que, segundo o cálculo de
Couto, correspondia a meio bar.

227
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

bejam para sustentarem os seiscentos homens de


soldo e mantimento; porque, pagando-se-lhe quatro
quartéis por ano, em que monta vinte e quatro mil
cruzados, tirados dos cem mil, ficam setenta e seis
5 mil cruzados.
Dêstes se hão de mandar outros sessenta mil para
outros mil bares de roupa; sobejam dezasseis mil
cruzados, que se mandarão todos os anos à Índia
a empregar em vinhos de passas, farinhas, conser-
10 vas, amêxias passadas, amêndoas, e outras cousas
desta sorte para os enfermos; porque, como os ho-
mens tiverem pão e vinho, na terra há galinhas e
carnes em abastança; e assim não adoecerão nem
morrerão senão poucos; porque o que os mata é
15 fome e lançarem-se às cabras.
Os vinte mil cruzados, que sobejam do primeiro
cabedal, também se hão de mandar empregar à Ín-
dia em roupas para gastos e despesas, e algua parte
dêles, ou a metade à costa de Melinde, para se com-
20 prar a roupa de pate, que é de sêda e algodão, de
que os reis e senhores se vestem, que vai muito no
reino de Manamotapa para fazer presentes aos se-
nhores do reino, e inda sobejará muita cantidade
de dinheiro para as despesas dos trabalhadores e
25 os oficiais, e para os materiais do forte, que se fizer
sôbre as minas, em que se despenderá pouco, pola -
barateza das cousas.
Eis aqui, com um cabedal de oitenta mil cruzados,
feitas as despesas de seiscentos soldados contínuos

10, amêxias: ameixas.


20, pate: tecido indiano de sêda, misturado às vezes
com algodào.

228
O SOLDADO PRÁTICO

para quantos anos quiserem, os quais se hão de ir


cevando todo os anos com cento e cento e cincoenta
das naus do reino; e, como as minas estiverem
descobertas e com presídios sôbre elas, seria de pare-
5 cer que se desse licença geral para tôda a pessoa
que da Índia quisesse ir em navio seu às minas com
roupas, farinhas, vinhos, conservas; ficará aquilo
tão próspero e farto, que se farão povoações de por-
tugueses e cristãos da terra, com que fique aquilo
io outra Nova Espanha. E de lá poderão penetrar êsse
coração da Cafraria até a outra parte de Angola,
com o que se faça comunicável o mar Atlântico com
o Indico; porque tenho para mim que há menos de
duzentas léguas de travessa.
75 E eu vi na feitoria de Moçambique registada ua
carta, que o governador Francisco Barreto escreveu
a el-rei, andando na conquista dêste reino de Mono-
* mopata, em que lhe dava conta que fôra à costa de
Melinde a fazer certos negócios, e que, estando no
20 reino do Atondo, lhe afirmaram uns mouros antigos
que dali até o outro mar da outra costa haveria
< quinze ou vinte dias de caminho; ao que el-rei lhe
respondeu que trabalhasse de mandar descobrir
aquilo, porque mais o estimaria que as minas.
23 Eis aqui, senhores, os proveitos que se tirarão
de descobrirem estas minas por esta forma, que
disse: farão o Estado tão próspero que possa come-
ter todas as conquistas que quiser, e os vassalos tão
ricos como os da Nova Espanha, e a Igreja Roma-
30 na enriquecida com tantas terras metidas debaixo

2, cevando: refrescando, entretendo.


2, com cento e cincoenta mil das naus em A.

22Ç
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

de sua obediência; porque logo tôda esta Cafraria


se há de converter à fé de Cristo, e tomar suave-
mente o jugo, porque não tem lei, e a que lhe ensi-
narem, essa receberão sem repugnância.
5 Ora a terra é tão próspera que dará trigo, cevada,
grãos e todos os mais legumes, e as criações de ga-
dos grossos e miúdos são mais e maiores que de tô-
das partes do mundo. jPois que mais há que desejar,
nem que esperar? Poder-se-ão prantar todas as
io fruitas do mundo, e darem-se mais prósperamente
que em outras partes; far-se-ão fermosas vinhas,
porque as uvas que há em Sofala são preciosas, e
eu comi alguns cachos delas, ferrais, como as de Por-
tugal, e assim como melões como os de Abrantes.
15 A hortaliça é excelente; dar-se-ão olivais mui
prósperos; porque as gentes da companhia de Nuno
Velho Pereira, que se perdeu na costa do Cabo de
Boa Esperança, que atravessou tôda a Cafraria,
achou azambujeiros com a fructa como azeitonas;
20 pois a montaria de porcos, veados, coelhos, lebres
e tudo o mais deve de ser mui próspera pela fertili-
dade da terra. Ora, como formos senhores destas
minas de prata, logo o seremos das d'ouro de Bo-
tonga, das de Maçapá, e de todas as mais. Há muita
25 lã e algodões para se fazerem panos e teas; há em-,
fim tudo quanto a Europa tem, e tem o que na Eu-
ropa se não sabe; e por isso fazem pouco caso de
cousa tamanha.
Mas ua cousa quisera perguntar a Vossas Mercês,
30 que é: ^como se pratica neste reino de conquistas de
reinos daquelas partes, se neste reino se pôs em

23-24, d'ouro dabutua em A.

230
O SOLDADO PRATICO

pareceres largar-se a índia, porque era prejudicial


ao reino sustentar-se, e que se conquistassem os rei-
nos de África,que seria de mór crédito e proveito?
Fid. Não dizeis mal; pois afirmo-vos que sôbre
5 isso houve grandes alterações neste reino, e muitos
pareceres por ua e outra parte; e não está isso ora
tão claro de sustentar a índia, que não haja alguas
dúvidas entre bons entendimentos, e representadas
mui lícitas e urgentes rezões; mas porque esta exe-
10 cução já'gora custará muito, se dissimula.
Sold. — Bofé, senhores, que não sei que rezões
pode haver para se largar um Império, que cuido
que não há outro maior no mundo, assim em gran-
deza, jurdição e cidades fermosíssimas, como em
15 riquezas e cristandade; porque inda que não fôra
mais que por esta, haviam os reis de gastar todos
seus tesouros pola sustentar; porque pode ser que
• por isso lhe sustenta Deus há tantos anos o reino
de Portugal, e os favorece em tôdas as mais con-
20 quistas que comete, e o tem a êle e aos seus vassalos
postos no cume da roda da fortuna, com a grande
. piedade que nisto tem usado, e com as maravilho-
sas façanhas que seus vassalos tem obrado naquele
Estado, na conservação e defensão daquela cristan-
25 dade.
Parece-me, senhores, que estais cá.mui alheos do
que aquilo é; pois sabei que por tôda a índia; desde
Sofala até Japão, há mais de dous milhões de cris-
tãos, afora o grande número que cada dia saem das
30 pias do santo baptismo. Pois isto, senhores, quereis
que se desempare? Por certo que desemparará Deus
a quem tal lhe entrar no pensamento; e posto que
eu seja um soldado pobre e idiota, hei de falar sôbre
isto largo; porque para isso confio em Deus me

231
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SX DA COSTA

purifique a língua, como fez ao Profeta, para bra-


dar e gritar em matérias de muita honra sua; e assim
irei cifrando as rezões que dão os que falam por
parte da conquista d'Africa e despejo da India, e as
5 que os que as favorecem dão para isso; e sôbre tô-
das darei as minhas, se Vossas Mercês me quiserem
ouvir; se não, mandem-me alevantar, que o farei
com muito gôsto.
Desp. — Não mandarei por certo; antes vos obri-
10 garei, por serviço de Deus e del-rei, dizerdes tudo o
que entendeis nesta matéria com a liberdade com
que té'gora falastes.
Sold. — Ora dêm-me Vossas Mercês atenção
para me não interromper.

CENA IV

15 Sold. — Começarei, senhores, pelas rezões que


se dão para ser melhor conquistar-se Africa que a
índia: dizem êstes que, para um reino ser próspero,"
há de ter duas cousas; fructos e gados em abundân-
cia para sustentação dos povos, por que não estejam
20 com o trabalho e opressão, que lhe dera em os es-
perar de fora. Segunda rezão: que há de ter minas
de ouro e prata, e outros metais, para sustentação
da paz e prosseguimento da guerra; as quais cousas
todas tinham os reinos de Africa em grande abun-
dância, e os reinos de Fez e Marrocos tanto pão,
cevada, legumes, gados grossos e miúdos em tanta
cantidade, que podiam partir com os vizinhos; e a
esta conta tôdas as mais cousas necessárias para
o uso humano, como linho, algodão, mel, cera,
açúcar, muitas fructas, de que a mór parte se dão

232
O SOLDADO PRATICO

sem cultivar a terra; e que as minas d'ouro de Tivar,


de que dizem vai grande cantidade a Marrocos, são
mui prósperas, e que os Montes Claros não são po-
bres delas, mas que não se cavam; e que o ouro que
vai das minas de S. Jorge cada ano era cousa tão
grande que chegou a espantar os embaixadores do
Malavar, quando D. Vasco da Gama os trouxe da
Índia, que lhe mostrou o cofre dêle, de ua caravela
que encontrou, o qual quando muito levava vinte
mil cruzados em cadeas e manilhas e outras peças,
que vultam muito; o qual ouro da Mina dizem fizera
rico o reino, e que com êle se começaram as con-
quistas dos lugares da África; e que el-rei D. João
dera ao emperador Carlos V com sua irmã a impe-
ratriz Dona Isabel novecentos mil cruzados em do-
brões, tudo d'ouro da Mina e não em drogas da
India; e para engrandecerem esta riqueza, trazem
as fábulas das maçãs d'ouro do horto das Hespéri-
das da costa de África, e outras cousas destas a que
responderei brevemente.
Digo, senhores, assim: eu vos não nego que os rei-
nos de África tenham tudo o que dizem, e quanto é
necessário para a vida humana, sem haverem mister
nenhua cousa dos vizinhos. A isto digo que tudo
vem a redundar em pão e vaca, e que seja mais
tudo o que quiserem, ouro, minas, e tudo quanto

i, Tivar; ou talvez Tinar?


ii, vultam: avultam, importam.
18. As Hespérides eram as filhas de Atlas, encar-
regadas de guardar as maçãs d'ouro, que a Terra dera a
Hera quando se casou com Zeus. Viviam junto do Monte
Atlas, na África do Norte.
21-22, eu vos nego que os româos de Africa em A.

233
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÃ DA COSTA

pedirdes por bôca; e isto ^quem o havia de conquis-


tar, e com que poder, se os romãos nunca puderam
senhorear África, trabalhando nisso tantos anos com
tantos exércitos poderosos? Cipião Africano ^porque
5 destruiu Cartago, senão pela não poder sustentar?
Os emperadores de Roma e os de Alemanha, que
são defensores da Igreja Romana, jcomo não aten-
taram essa conquista, quando os mouros arábios
se senhorearam de Africa e de tamanha cristandade,
io como por tôda ela havia, e com tantos bispados,
cujos bispos sabemos que acudiam aos santos Con-
cílios?
E icom que poder queriam êstes senhores que os
nossos reis conquistassem tantas províncias e reinos,
15 e com que gente tão pouco exercitada na guerra,
que nem Ga espingarda sabiam levar ao rosto, nem
cavalgar em um cavalo, nem menear ua lança? jSe
para alguns socorros, que quiseram mandar à ín-
dia, algQas vezes para ajuntarem três mil homens,
20 tiravam das cadeas do reino até os que estavam
sentenceados à morte! E alguas vezes que êsses .
poucos lugares que tínhamos em África foram cer-
cados de mouros, jcom que trabalhos e arreceos os
mandastes socorrer!
25 Por certo que arriscada esteve Arzila, estando nela
o conde do Redondo; porque perdeu a vila, e se
encurralou no castelo, e sempre se perdera, se Deus
lhe não levara acaso ali D. João de Meneses com
. ua armada. Dizei-me quanto vos custou socorrerdes
30 Mazagão? A fortaleza do Cabo de Guer não vo-la
tomaram? Não largastes Azamor e outras duas ou

7-8, intentaram em B.
31, Zamor em A.

234.
O SOLDADO PRATICO

três fortalezas, que na costa de África tínheis? E


essas que sustentais inda hoje, não estiveram arris-
cadas ao mesmo? Na Mámora não esteve perdida
toda a potência e fidalguia dêste reino, estando to-
5 das estas cidades à borda d'água, onde lhe podiam
os socorros desembarcar dentro em casa?
jQue trabalhos dera ao reino, se tivera cidades e
fortalezas pelo sertão dentro! Por certo que lhe não
saberiam dar remédio; quanto mais que me haveis
10 de dizer: jcom que poder queriam êsses senhores
que se conquistasse tamanho império, como o da
África, se vimos el-rei D. Afonso V, com o maior
que Portugal podia dar de si, desbaratado e perdi-
do, e ir pedir socorro a França? Dez mil homens,
15 vinte mil homens, que passam a África, jque hão de
fazer ou quem os há de sustentar? Cousa é de que
se podem rir os homens.
0 Trazem por exemplo que já chegámos a pôr as
lanças nas portas de Marrocos: isso é um assalto
20 repentino, chegar e fugir. 1 Não vos lembra, senhores,*
verdes desbaratados aqueles dous valerosos capitães
, Nuno Fernandes d'Ataide e D. João de Meneses
com a melhor fidalguia do reino, capitães tão expe-
rimentados, que não sei se houve outros que lhes
25 aventejassem d'então para cá? Os nossos reis pas-
sados, primeiro que mandassem descobrir a índia,
não lançariam suas contas? Pois muito primeiro ti-

2, sustentais na India hoje em B.


3, Mámora, praça forte do norte de Africa (Mar-
rocos), conquistada em 1515 pelos portugueses e perdida
em t520.
5, à borda de Goa em B.

2J5
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

nham posto as mãos no descobrimento da costa de


África, e na fundação e tomada das fortalezas, que
naquelas partes temos; e se lhe fôsse melhor con-
quistar África que a índia, (Como haviam de come-
5 ter ua jornada tão duvidosa? ^Não sabemos que na-
quele tempo tinham capitães de muito conselho,
com que haviam de comunicar primeiro êste negó-
cio, e que haviam de medir as fôrças do reino com
as de África? E sabemos também que, depois de
io muito praticado êste negócio, desenganados da con-
quista de África, cometeram a da índia, na qual
Deus Nosso Senhor lhe fez tantas mercês, como sa-
bemos.
E se quiserem inda insistir em sua opinião os que
15 vituperam o descobrimento da índia, perguntar-lhe-
-ei que, se isso não fôra de tanto mais proveito
que a conquista de África, vituperando e aniquilan-
do as drogas da índia, ^como cometeram os Reis Ca-
tólicos, e depois o emperador Carlos V, o descobri-
do mento das Malucas, sôbre que tantos desgostos ti-
veram com os nossos reis, sendo tantas vezes pri-
mos, cunhados e parentes, não tendo aquelas ilhas
mais que cravo, noz e maça, sendo mui pobres de
todas as mais cousas, e tanto, que de farinha de ár-
25 vores se sustentam? E para as senhorearem, man-
daram descobrir novos estreitos por meio de um
vassalo perturbador e alevantado contra o seu rei.

4-6, como haviam de comunicar em B. Falta pois


um trecho.
23, maça: especiaria das Molucas, flor da noz mos-
cada.
26-27. Êste vassalo perturbador é Fernão de Maga-
lhães. O patriotismo dos historiadores portugueses não
perdoou ao grande navegador ir servir Castela.

236
o SOLDADO PRÁTICO

Pois se para isto faziam tanta diligência e houve


tantas guerras e despesas, £que fizeram por aquele
grande Império da índia, tão rico, que vos não
saberei dizer de cem partes ua? jQue mór riqueza
5 quereis que o proveito das finas e curiosas roupas
daquelas parte, das duas pescarias das fermosís-
simas e riquíssimas pérolas da costa de Manar e
ilha de Barém? Deixo outras muitas que há pela
índia. jQuem vos poderá encarecer a riqueza dos
io mineiros da pedraria da ilha de Ceilão, rubins,
olhos de gato, safiras, jacintos, robás, amatistas,
e todas as mais sortes dela? jQuem não sabe a gran-
deza das minas de finíssimos diamantes do reino de
Bisnagá, donde cada dia e cada hora se tiram peças
13 do tamanho de um ovo pequeno, e muitas de ses-
senta, setenta e oitenta mangelins?
Pois <que direi dos finos e preciosos rubins de
Pegu, que houve muitos de muito grande valor, e
que aqueles reis traziam furados polo meio e de-
20 pendurados nas orelhas por arrecadas; e -afirma-
ram-me que de noite resplandeciam? Pudera dizer
isto aquele admirável e riquíssimo ornamento, que
el-rei D. Manuel mandou ao Santo Pontífice das pri-
mícias da India, que espantou tanto mais que o
25 cofre da Mina ao Santo Colégio dos Cardeais, que
se não atreveram a lhe pôr preço, avaliando-o em
quatrocentos, quinhentos e seiscentos mil cruzados,

11, robás: pedra precisa de Ceilão. Em A: robus.


16, mangelim: pêso de diamantes com o valor apro-
ximado de um quilate. Em A: mangalim.
23, D João em A. Descuido de Couto ou do escriba.
Deverá tratar-se da embaixada de Tristão da Cunha.

237
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

e alguns em mais? Pois o um só no mundo arreo


del-rei D. Sebastião, cousa foi que admirou os
príncipes e emperadores do mundo, tanto que todos
os reis de Fez, Marrocos, Tetuão e os mais, não ti-
5 nham com que o poder comprar. Deixo as pedras
particulares, que da índia vieram: a de D. Antão de
Noronha, a de Francisco Barreto, a de D. António
de Noronha, que está em poder do conde de Cas-
cais, seu genro, e outras de setenta, oitenta mange-
10 lins, pelas quais se dava por cada ua setenta, oiten-
ta mil pardaus; e assim se não achava rei e senhor
na Europa que as pudesse comprar.
Pois ique vos direi das riquezas, que vossas mu-
lheres e filhas, e que as rainhas da Europa trazem
75 em seus colares, cintos, braceletes, pendentes, anéis,
botoaduras, guarnições e em todas as mais partes,
que não tem estimação? Vieram-vos de Africa, ou
da índia? Vamos às minas de ouro: ^quais do mundo
chegam à quarta parte das que já disse de Mono-
20 motapa, e outras da Cafraria, das quais todos os
anos saem para a índia duzentos mil maticais
d'ouro, que são mais de quinhentos mil xerafins,
afora mais de duzentos baares de marfim, que va-
lem de redor de oitenta mil pardaus? E o que é mui-
25 to para admirar o mundo: que há bar de trinta den-
tes, bar de vinte, bar de dez e bar de cinco e seis;

t. Entenda-se: «Pois o aderêço de jóias de D. Se-


bastião, único no mundo». Em B: o um só no mundo, o
reo deste nosso rei; reo: arreio, aderêço. O editor de B
complica escusadamente o caso. Veja-se pág. 154 da edi-
ção da Academia.
3. do mundo. Deixo em B. Falta um trecho.
21, maticais. O matical ou metical era um pêso de
oiro (75 grãos) e uma moeda equivalente a um cruzado.

238
O SOLDADO PRATICO

pela qual conta cuido que vem todos os anos daque-


las partes ao redor de três mil dentes, para os quais
era necessário morrerem cada ano mil e quinhentos
elefantes.
5 Pois da China vos digo eu poder-se-ão carregar
naus de pães de ouro de feição de batéis, que tem
cada um ao redor de dous marcos; e assim valerá
cada pão duzentos e oitenta pardaus, de que virão só-
mente oitocentos cada ano, porque antes querem os
10 mercadores trazer sêda solta,peças de damasco, se-
tins, tafetás de todas as côres, e outras muitas sor-
tes de sêdas, ouro e prata de fio, porcelanas, e mui-
tas e mui diferentes mercadorias, em que interes-
sam muito.
15 Não falo na grande prosperidade das minas de
Monancabo, na contra-costa de Malaca, donde é mui
sabido que iam todos os anos a Malaca muitas em-
barcações de remo carregadas d'ouro; e inda depois
* de nós entrarmos na Índia havia chetins, que são
20 mercadores, que não falavam senão por bares d'ou-
ro, que tem cada bar quatro quintais. E sôbre tôdas
as grandezas se podem contar por mais admiráveis
as de fias ilhas, que ficam ao nacente de Solor, onde
temos fortaleza e fia grande cristandade, adminis-
25 trada pelos padres de S. Domingos, à qual ilha foi
ter desgarrada fia embarcação com um português
ou dous, e viram tamanha càntidade d'ouro, que
pasmaram; porque as armas, à feição das nossas

6, pães: barras, com feitio de pães.


13-14, em que interessam muito: em que teem grandes
interesses, de que tiram grande proveito.
19, chetins: chatins, negociantes. Em A: chelins,
êrro de cópia.

239
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

armilhas, os escudos, as azagaias era tudo d'ouro


finíssimo; e, segundo presunção, ficam estas ilhas
pegadas às de Salamão, que descobriu Álvaro de
Mendanha, se não forem elas.
5 Pois jque vos direi da cidade de Barcelor, na costa
Canará, que inda em tempo que a índia se des-
cobriu, havia muitos chetins, que são mercadores,
que falavam por candis de pagodes d'ouro, que é
ua moeda como tremoços, que tem a figura do pa-
ro gode desta gentilidade, e vai cada um mais de qua-
trocentos réis — e o candil é um quarteirão de trigo
desta nossa terra? Deixemos a prata, que vem de
Japão todos os anos na nossa nau do trato, que lá
vai; que a carga dela toda se comuta por ela em
15 barras, e monta mais de um milhão d'ouro; e a que
vem da Pérsia e de todos aqueles reinos do sertão
à nossa fortaleza d'Ormuz a comprar todas as cou-
sas, que da índia vão em dez e doze naus, que che-
gam carregadas de drogas, roupas, águila, sândalo,
20 cânfora, porcelanas, e outras muitas sortes de cou-
sas ricas, que todas se comutam por larips, por
cavalos, por alcatifas, damascos, brocados e outras
louçainhas.
cQue vos hei de dizer, senhores? Cansa o enten-
25 dimento em falar nas riquezas do Oriente. Se não
dizei-me: ^onde mandava el-rei Salamão suas arma-
das a buscar ouro, e tôdas as mais cousas preciosas

1, armilhas: aim ilhas, colêtes que resguardavam


o corpo.
4, Bendanha em A.
8. O candil valia meia tonelada.
19, águila: pau aromático do Oriente,
ai, larins: moeda persa de prata, com valor de
60 a 100 réis.

240
O SOLDADO PRÁTICO

para o Templo? A Índia ou África? Pois por lá mais


perto tinha aquelas províncias, e mais à mão que as
da Índia para mandar buscar estas riquezas, se as
lá houvera. E que conquistáramos êstes reinos, que
5 vos deram pão e vaca, como já disse; a mais a Ín-
dia que vos dá, vós sabeis.
Deixemos os viso-reis e governadores, vamos aos
capitães de Ormuz: tiram em três anos duzentos,
trezentos mil pardaus; Sofala pouco menos; Malaca
10 cem mil, Dio, Chaúl setenta, oitenta mil; Baçaim,
Damão trinta, corenta mil, e o mesmo Mombaça e

i. Em B, depois de «África» vem o seguinte tre-


cho, que parece uma interpolação posterior: «Ê seguido
entre os autores de melhor nota que da costa de África
ia toda a imensa quantidade de ouro, que carregavam os
navios, que Salomão mandava de Esiongaber, hoje cha-
mado Suez, pôrto pertencente ao Grão-Turco, no Mar
Rôxo (4. Reg. I, 22); e Moque conclue com outros que
êste parecer se pode confirmaT com a autoridade dos Se-
tenta Intérpretes, que traduzem Ofir por So fira (3. Reg.
IX, 28). Como as liquidas se metem muitas vezes umas
pelas outras, se pode coligir que saiam os navios desde
Esiongaber ou Suez a Sofala, que, segundo os Setenta,
não difere muito de Sofira. E Tomás Lopes com outros,
na sua Viagem da índia diz que os habitantes de Sofala
se louvam de ter livros do tempo de Salomão, e que os
israelitas navegavam todos os três anos para estas par-
tes, e que é delas que tiravam todo o ouro. Holsténio,
sup. Ortélio, verbo Ophir, é do mesmo parecer, e diz que
Ofir ou Sofir é o mesmo e não é grande corrupção a de
tomar êste Sofir por Sofala, visto a sua riqueza e proxi-
midade ao Mar Rôxo (Anton. Vitré, Tabul. sacr. geogr..
Dapper e outros)».
5-6, mas a índia que nos dá em B.
9, Sofala pertence à Africa, Mombaça é também
na mesma Costa em B.
10, oitenta mil, e o mesmo Mascate em B.

241
16
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÁ DA COSTA

Mascate; ua viagem de Japão setenta, oitenta mil


pardaus cada ua. E a este respeito todos, todos os
mais cargos da Índia. Mostrai-me onde poderiam
tirar de África em três, em dez, nem em mais anos
5 tanto como da menor destas fortalezas? E se me
disserdes, como dizeis, que nenhum dinheiro dêsse
que vem da Índia se logra, e que neste reino há
poucos morgados e casas feitas dêle, a isso vos res-
ponderei que êles tiram das fortalezas tudo o que
io disse; e se o diabo lho leva pelos excessos que fazem,
ique culpa vos tenho eu? Contentem-se êles com me-
nos, cozer-lho-á o estômago; e não se queiram far-
tar tanto, que se ponham a risco de vomitar.
Ora autorizemos estas riquezas da Índia mais:
15 lêde Arriano, autor grego; achareis que só os direi-
tos das fazendas da Índia, que lhe entravam pelo
Estreito do Mar Rôxo, quando o Império do Egito
era dos romãos, lhe montava sete ou oito milhões
d'ouro; e ali achareis nomeadas todas as sortes de
20 roupas, drogas, pedraria, pérolas, e todas as mais
louçainhas que iam do Oriente; e depois que aquele
Império se perdeu, que veo a poder de Soldões, jque
os sustentava e enriquecia, senão os mesmos direi-
tos das fazendas da Índia?
25 E depois que nos fizemos senhores dela, e que
lhe começámos a impedir o comércio que traziam
por via do Mar Rôxo, o sintiram tanto, que Jogo

8, casas feitas lho leva pelos excessos em A. O es-


criba deixou passar uma linha.
12, cozer: digerir.
15- Arriano, autor grego do século II, que escreveu
a história da expedição de Alexandre à Ásia.
22, Soldões: imperadores turcos.

242
O SOLDADO PRÁTICO

mandaram embaixadores ao Papa, a requerer-Ihe


fizesse com os reis de Portugal que lhe não impedis-
sem seu trato e romagem da casa do seu Mafamede,
se não, que destruiria a Casa Santa de Jerusalém,
5 o Santo Sepulcro e todos os mais lugares sagrados.
E assim o Soldão, que naquele tempo reinava, man-
dou logo à Índia para lançar os nossos fora dela
aquela soberba armada, de que foi por capitão-mór
Mir-Hocém, a qual o valeroso capitão e viso-rei
io D. Francisco de Almeida destruiu na barra de Dio.
E depois dos emperadores otomanos ganharem
aquele Império, j quanto trabalharam por nos deitar
fora da Índia, para lhe ficar aquela navegação e
rico comércio desimpedido? E assim em tempo do
15 governador Lopo Vaz de Sampaio ,:não despediu
contra nós ua poderosa armada de galés, que todas
se consumiram antes de saírem do Estreito do Mar
Rôxo, polas diferenças que seus capitães tiveram en-
tre si? Depois, ^não mandaram setenta e tantas ga-
20 lés, naus e galeões sôbre Dio, sendo Nuno da Cunha
governador, que tôdas se recolheram desbaratadas,
e com mais das duas partes da gente morta, sôbre
terem por si todo o poder dos reis do Oriente, que os
convocaram em nosso dano? Depois, Quantas vezes
25 mandaram outras armadas, que tôdas se lhe perde-
ram, gastando nestas jornadas excessivas riquezas —
porque os ciúmes que tinham das grandes da Ín-
dia lhe fazia ter em pouco as despesas de seus
tesouros?
30 Ora já que alguns reprovam esta conquista, praza

22, sôbre: a-pesar de.


27, das grandes: das grandes riquezas.

243
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SÂ DA COSTA

a Deus que não intentem ainda os reis da Europa


isto que vós vituperais; como já tentaram alguns
por indústria de grandes pilotos, que se lhe oferece-
ram a descobrir passagem por cima dos Lapones e
5 da Gótia e Norvégia, de longo da Costa Tartária
irem a descobrir saída ao mar de Japão; pois o que
tantos cobiçaram, e que vos compraram a pêso
d'ouro, estimais tão pouco, que estais arrependidos
de vos terdes penhorado em cousa tamanha!
ró Certo que os que isto estranham haviam de pôr
os olhos que êste descobrimento foi mais por ordem
divina que não por indústria humana, iQue entendi-
mento era capaz de alcançar que dos últimos fins
do Ponente se podia ir a descobrir o princípio do naci-
15 mento do Sol, sem haver notícia do caminho, nem
a que parte haviam de navegar, sem estrolábio, carta
de marear, nem outros estromentos náuticos, que
depois se usaram? (Não está por isto logo bem en-
tendido que Deus foi o piloto, e que êle guiou o
20 valeroso D. Vasco da Gama por um caminho, que,
com hoje estar tão sabido e continuado, causa ta-
manho terror e espanto? Com muita rezão podemos
dizer neste negócio, que nos tirou Deus do Egito, e
que nos trouxe à terra de promissão. (Que mais
25 bem-aventurada terra que aquela, em que não hou-
ve nunca peste, fomes, frios, calmas, tudo tão tem-
perado, que não há mais que desejar? Onde há esta
felicidade? Êste vosso Egito em que estais, lembre-
-vos quantos terremotos teve; inda achareis as ruí-
50 nas e sinais do grande estrago que fizeram; vêde
quantas pestes cruelíssimas, que dua pancada só
nesta cidade de Lisboa morreram dela sessenta mil
pessoas; quantas fomes e misérias tendes padecido!
Na Índia os mais puros, excelentes ares do mun-

244
o SOLDADO PRÁTICO

do, fructas, águas de fontes e rios, as melhores e


mais salutíferas de tôda a terra, pão, cevada, todos
os legumes, todas as hortaliças, gado grosso e miú-
do, que pode sustentar o mundo, tudo o mais mara-
5 vilhoso; o peor que lá há, fomos nós, que fomos
danar terra tão maravilhosa com nossas mentiras,
falsidades, buíras, trapaças, cobiças, injustiças, e
outros vícios que calo. Ora dou-vos que deixásseis
de conquistar a India, e que vos metêsseis por essa
io África dentro. Se vos sucedera mal, e não viesse
aquela conquista a efeito, jque seria de tantos infi-
nitos homens, como tem passado a êste Estado?
Por certo, que nos comeríamos cá uns a outros; e
quando, por derradeiro remédio quisésseis descobrir
15 a Índia, jquem vos disse que daria Deus a outro o
que tinha guardado para Vasco da Gama?
Se fizéreis resenha dos mimos que Nosso Senhor
fez ao povo de Israel, quando o tirou do Egito, e
dos que nos fez a nós na passagem daquela terra da
20 promissão da Índia, acharemos que os nossos foram
muito aventejados. Aqueles guiava-os de dia, cober-
tos de nuvens contra a aspereza do sol, e de noite
com luminárias celestes; o mantimento era orvalho
do céu, aquele maná tão precioso, que lhe sabia a
25 tudo o que queriam; mas com estes mimos lhe deu
outros trezentos mil descontos. Que móres? — que
em jornada de pouco mais de duzentas léguas os
trouxe corenta anos por desertos intratáveis, por ca-
minhos perigosos, com sobressaltos de imigos, pelos
50 castigar com isso das ingratidões que usaram com o
mesmo Deus, e o trocarem por um bezerro, a quem

3, horlalices em A.

245
COLECÇÃO DE CLÁSSICOS SA DA COSTA

fizeram adoração, que a êle se devia; e assim os


castigou por isso, que de seiscentos mil, que saíram
do Egito (isto só de homens que podiam tomar ar-
mas), só Josué e Caleb entraram na terra de pro-
5 missão.
Nós os portugueses não assim, porque, como
Deus Nosso Senhor tinha determinado mandar dila-
tar e prègar a sua santa lei por aquelas partes da
India, e que os nossos fôssem os autores de cousa
io tamanha, que foi o mór mimo e mercê de todos os
que fez aos filhos de Israel, abriu-lhe caminho por
meo dêsse Oceano por distância de seis mil léguas
e em seis meses de jornada, sem risco, nem perigo;
porque as três naus que a isso foram, todas torna-
15 ram a êste reino. Pois ^como quereis que um Estado
que Deus guardou para vós só, o deixeis a imigos
de vossa fé, que vo-lo terão a fraqueza e pouquida-
de? E poderão cuidar os gentios e mouros que o Deus
que adoramos não tem poder para nos sustentar
20 nela, e que nós, desconfiados dêle, deixamos cousa
tamanha e tão cobiçada de tantos reis e senhores
do mundo.
Deixemos já as grandes riquezas que nos tem da
do, as quais não tem estimação; o que mais pode-
25 mos estimar são as ocasiões que nos Deus TCosso
Senhor deu naquelas partes, para, polas grandes
e memoráveis vitórias que nelas alcançámos, virmos
a ser tão temidos nelas e tão alevantados em
fama entre tôdas as nações do mundo, que nos po-
50 dem ter muitas invejas. A muitos deu a Índia muitos
haveres e riquezas; mui ricos homens foram de lá;
mas em nenhua das histórias achareis feita memória
dêstes, por muito alevantados que fôssem em san-
gue e dignidades; e muitos vereis de mediano naci-

246
O SOLDADO PRÁTICO

mento, sublimados nelas por seus feitos, que lhe


podem ter grandes invejas os mais ricos do mundo.
Pois terra que vos deu tantas cousas, riquezas e
honra, há a quem entre no pensamento que será
bom largar-se? Não o creo, certo, senão se fôr no
de algum infernal, imigo de todo o bem e honra.
Por isso, senhores, não temos que falar neste negó-
cio, que será caso contra a Divina Majestade, e po-
der-nos-á castigar mui rijamente por largarmos ta-
manha jurdição, como a Igreja Católica Apostólica
Romana tem por todas aquelas partes; porque, se
o rei por largarem ua fortaleza aos imigos, inda que
se vejam sem remédio, mandou cortar a cabeça a
seu capitão, e o há por alevantado e lhe confisca
seus bens — jque fará a quem largar tanta forta-
taleza, tamanha terra, tão grande cristandade? Por
certo que os castigue até a quarta geração.
Não falo nisto mais, porque hei medo do céu; e
assim dou também fim a êste discurso, e nós o faça-
mos também a esta conversação, por ser já tarde;
e as outras matérias ficarão para outro dia; e dêm-
-me Vossas Mercês licença para me recolher.

24.7
,

. .

'

'
.
.

..

.
ÍNDICE

Página
PREFÁCIO ix-xxxn
Carta de Diogo do Couto ao Conde de Salinas x
Primeira Parte 3-133
Cena I 3
Cena II — Do modo que correm os despachos
das cousas da Índia no Reino; em
que se tocam muitas cousas sôbre
algíias desordens que nisso há ... 20
Cena III — De como os móres imigos que a
fazenda do rei tem são os minis-
tros; e de como na Índia se cum-
prem mal os regimentos e man-
dados del-rei; e trata de outras
matérias 26
Cena IV — Dos modos que há de alvitres na
India, e do dano e prejuízo que
fazem 38
Cena V — Do segundo alvitre, que é contra
os homens; e das desordens que se
nêles cometem 43
Cena VI — Do terceiro alvitre, que é contra
Deus, e de muitas cousas outras,
em que os governadores são dis-
solutos 55
Cena VII — Do quarto alvitre, que é contra
todos; e que cousa são dividas
velhas 68
Cena VIII — De como os veadores da fazenda,
que vão às fortalezas do norte,,
são muito desnecessários; e das
desordens que se cometem na fa-
zenda del-rei 81

249
17
ÍNDICE

Página

Cena IX — Do que são soldos velhos; e do


roubo que se faz a el-rei e às par-
tes nêles; e do remédio que haverá
pera se evitarem 87
Cena X — Em que se tocam alguas cousas
dos Contos de Gôa e outras dife-
rentes matérias 100
Segunda Parte I34-Í98
Cena I *34
Cena II M*
Cena III w 152
Cena IV 168
Cena V 180
Cena VI 193
Terceira Parte 199-247
Cena I *99
Cena II 212
Cena III 221
Cena IV 232

250
CORRECÇÕES E ADITAMENTOS

Nota ao Prefácio. — A última hora encontrámos na Bi-


blioteca Nacional de Lisboa um manuscrito de
Couto (n.° 462), cujo verbete andava lamen-
tàvelmente deslocado do catálogo do Fundo
Geral. Ê o Tratado de tôdas as cousas sucedi-
das ao valeroso capitão D. Vasco da Gama...
no descobrimento e conquista dos mares e ter-
ras do Oriente. Ê, em suma, a crónica dos fei-
tos de Vasco da Gama e de seus filhos, enco-
mendada a Couto pelo vice-rei D. Francisco
da Gama e terminada em Gôa, a 16 de Novem-
bro de 1599.
Pág. 1, 1. 17 — leia-se: o vir. Em B: o ver.
» 17, ls. 5 e 25. Em A, lijongeiros, que é forma po-
pular, ocorrente em português clássico.
» 94, 1. 29. Em A: aos tais soldados.
» 178, 1. 20. Pròpriamente em A e B está Triumphe.
Talvez fôsse melhor manter a forma portu-
guesa Triunfe.
» 215, 1. 6 e nota. A lição de A é pròpriamente xeri-
niss.", que se deverá interpretar como «sere-
níssimas».
» 225, 1. 7 — leia-se: «grandeza».
» 234, 1. 27 — «se encurrilou» em A.
» 238, 1. 19-20 — «Manamotapa» em A.

751
■ítr*»Tlln ">* y
♦ '* vdjry o Tilri I v Tur *'// V* !' I' í»'
II i I A áíL

C'LAHí£Q?
O
;c V-

u/ /
>
t/ o
*<"
o k
/>
o
>
X

> tt r
k

«
J. A
kl
\


\
i

\
rs

I>»5TKUEXE ccmstfuhu:

A
LIVRARIA SA DA COSTA]
EDITORA USBOAJ

Você também pode gostar