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© de Sergius A. M.

Gonzaga
1- edição: 2004
1- reimpressão: 2006
2- edição: 2007
3- edição: 2009
4- edição: 2010
5- edição: 2012

Direitos reservados desta edição:


Editora Leitura XXI

Capa: Carla Luzzatto


Ilustração da capa: Desenho de Magliani feito especialmente para este livro
Planejamento gráfico e editoração eletrônica: Adriana Condessa Ferreira
Ilustrações da obra (pesquisa e seleção): Pedro Gonzaga
Edição de imagens: Roberto Tesser Rodrigues
Revisão: André de Godoy Vieira.

G642c Gonzaga, Sergius.


Curso de literatura brasileira / Sergius Gonzaga. 5. ed - Porto Alegre :
Leitura XXI, 2012.

1. Literatura brasileira - Curso. I. Título.

CDU 869.0(81)

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto — CRB 10/1023

ISBN 978-85-8688-070-4
o A LITERATURA DOS
CONQUISTADORES
O fim das guerras dentro dos territórios Foi uma façanha épica sem precedentes.
ibéricos (Portugal e Espanha), a centraliza­ Um país como Portugal, que tinha apenas um
ção política com a criação de um Estado forte, milhão de habitantes, estendeu seu domínio por
as inovações da tecnologia marítima, o papel vastos territórios. Nada parecia deter suas frá­
economicamente empreendedor de uma bur­ geis caravelas e seus marinheiros, que enfren­
guesia de origem judaica e a audácia de milha­ tavam calmarias, fome, sede, monstros mari­
res de homens garantiram a portugueses e es­ nhos, gigantes, sereias e súbitos abismos, lo­
panhóis a primazia na grande expansão calizados nos confins do oceano para tragar as
europeia, iniciada no século XV e consolidada embarcações. Animava tais homens o espírito
no século XVI. mercantilista - desejo de ouro, especiarias e
Em nenhuma outra época houve movimen­ quaisquer outros produtos que gerassem lucro.
to expansionista tão abrangente e avassalador Por ele, todos os medos seriam superados e
A conquista comercial dos países asiáticos e todas as aventuras se tornariam possíveis.
africanos somou-se a conquista direta do con­ Em Mar português, Fernando Pessoa tradu­
tinente americano. Iniciava-se um processo ziu essa admirável vocação de seu povo para
civilizatório que duraria mais de quinhentos as grandes navegações:
anos, sob domínio ocidental, e que modifica­ O mar salgado, quanto do teu sal
ria radicalmente a face do mundo. São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador*
Tem que passar além da dor. (...)

* Bojador: Cabo, na África, que foi durante muito tempo o limite


geográfico das navegações europeias, tendo sido, em 1434, ultrapassado
pelo português Gil Eanes.

O encontro com os nativos


Civilizações díspares povoavam as terras
"‘descobertas” por portugueses e espanhóis. No
lado hispânico, astecas, maias e incas apresen­
tavam surpreendentes níveis de organização
0 espanto dos índios não deve ter sido menor que o dos
social e de conhecimento científico e
portugueses nos primeiros encontros das duas civilizações. tecnológico. No lado luso, em contrapartida,
Detalhe de gravura de Rugendas mostrando índios os nativos viviam na Idade da Pedra e pratica­
brasileiros. Fonte: Rugendas e o Brasil. vam o canibalismo.

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Regra geral, todos receberam os brancos valores culturais e, com isso, sua identidade his­
com hospitalidade e oferendas, sem se dar con­ tórica, deixando de ser índios sem alcançar, no
ta da destruição que os aguardava - uma des­ entanto, a condição de homens brancos.
truição que não foi programada, mas que ocor­ A ocidentalização da América, portanto,
reu tanto pela superioridade bélica dos europeus foi realizada a ferro e fogo, em um processo
e pelas doenças que traziam quanto pela ino­ doloroso para os primitivos donos do territó­
cência dos indígenas. Destes, os que consegui­ rio. Do ponto de vista histórico, esse processo
ram escapar das doenças, da escravidão e dos era dramaticamente inevitável, dada a ânsia im­
arcabuzes foram submetidos a um poderoso pro­ perialista dos países europeus e a incapacida­
cesso de deculturação, ou seja, perderam os seus de indígena de autodefesa.

I LITERATURA INFORMATIVA ---------------------------


As primeiras manifestações literárias so­ Verdadeiro humanista, o escrivão da frota
bre a América estão delimitadas pelo seu ca­ lusa transforma a Carta em um monumento de
ráter informativo. Expressam, sem maiores in- curiosidade antropológica e de abertura inte­
tenções artísticas, o contato do europeu com o lectual à diversidade. O crítico Silvio Castro
novo mundo. São documentos a respeito das aponta alguns dos aspectos mais significativos
condições gerais da terra conquistada. Neles do texto:
são descritos os problemas, as prováveis rique­ • A atenção minuciosa aos detalhes.
zas, as lutas de dominação, a paisagem física e • A simplicidade no narrar os acontecimentos.
humana, etc. As cartas de Hernán Cortez so­ • A disposição de tentar entender os nativos.
bre a conquista do México são o exemplo mais • A capacidade constante de maravilhar-se.
famoso desse tipo de literatura.
A princípio, a visão europeia é idílica. Assim Caminha descreve o primeiro con­
Dentro da tradição utópica do Renascimento, tato com os índios:
a América surge como o paraíso perdido, lo­ A feição deles é parda, algo avermelhada; de
cal de maravilhas e abundâncias. O país de bons rostos e bons narizes. Em geral, são bem fei­
Eldorado seduz a imaginação, e os nativos são tos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem
apresentados sob tintas favoráveis. Porém, na o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas,
segunda metade do século XVI, à medida que e nisso são tão inocentes como quando mostram o
rosto. Ambos traziam o lábio de baixo furado e
os índios começam a se opor aos desígnios
metido nele um osso branco, do comprimento de
imperiais, iniciando a guerra contra os invaso­ uma mão travessa e da grossura de um fuso de al­
res, a visão rósea transforma-se. A natureza godão. (...)
continua exuberante - na ótica colonizadora Os cabelos deles são corredios. E andam tos­
mas os habitantes da terra são pintados como quiados, de tosquia alta (...) Quando eles vieram a
seres boçais e animalescos. bordo, o Capitão [Cabral] estava sentado em uma
cadeira, bem vestido, com um colar muito grande no
pescoço e tendo aos pés, por estrado, um tapete. E
A Carta de Pero Vaz de Caminha eles entraram sem qualquer sinal de cortesia ou de
Entre os testemunhos sobre o Brasil dei­ desejo de dirigir-se ao Capitão ou a qualquer outra
xados pelos portugueses no século XVI, o mais pessoa presente, em especial. Todavia, um deles fi­
importante é a Carta do escrivão Pero Vaz de xou o olhar no colar do Capitão e começou a acenar
Caminha, companheiro de viagem do Almi­ para a terra, como querendo dizer que ali havia ouro.
rante Cabral, em 1500. O texto possui um no­ (...) Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capi­
tão traz consigo: pegaram-no logo com a mão e ace­
tável valor histórico - por ser o primeiro regis­ navam para a terra, como a dizer que ali os havia.
tro escrito sobre a realidade local -, mas vale Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso dele;
ainda mais pela agudeza com que Caminha re­ uma galinha: quase tiveram medo dela - não lhe que­
vela a paisagem física e humana daquilo que riam tocar, para logo depois pegá-la, com grande es­
ele julga ser uma imensa ilha. panto nos olhos.

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Deram-lhe de comer: pão e peixe cozido, E uma daquelas moças era toda tingida, de bai­
confeitos, bolos, mel e figos passados. Não quise­ xo a cima, daquela tintura; e certamente era tão bem
ram comer quase nada de tudo aquilo. E, se prova­ feita e tão redonda, e sua vergonha - que ela não
vam alguma coisa, logo a cuspiam com nojo. Trou­ tinha - tão graciosa que, a muitas mulheres de nossa
xeram-lhes vinho numa taça, mas, apenas haviam terra, vendo-lhes tais feições, provocaria vergonha
provado o sabor, imediatamente demonstraram não por não terem as suas como a dela. (...)
gostar e não mais quiseram. Entre todos estes que hoje vieram não veio
mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à
A nudez das índias missa e a quem deram um pano para que se cobris­
A imagem mais desconcertante para os se; e o puseram em volta dela. Todavia, ao sentar-
marinheiros lusos é a da nudez das índias. Vin­ se, não se lembrava de o estender muito para se
cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal
dos de um mundo em que o corpo era censura­
que a de Adão não seria maior, com respeito ao
do e reprimido, de acordo com as convicções pudor.
medievais, eles não escondem o assombro di­
ante do que veem. Caminha traduz esse senti­ O ideal salvacionista
mento, mas, com seu particular espírito
A profunda religiosidade portuguesa -
renascentista, procura ver os corpos femininos
que era um dos móveis da conquista - mos­
desnudos dentro do quadro cultural da socie­
tra-se na possibilidade de conversão dos pri­
dade nativa:
mitivos habitantes, admitida por Caminha e
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, sugerida ao destinatário da Carta, o rei D.
muito novas e muito gentis, com cabelos muito pre­
Manuel.
tos e compridos, caídos pelas espáduas, e suas ver­
gonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das E, segundo o que a mim e a todos pareceu, esta
cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tí­ gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã
nhamos nenhuma vergonha. (...) do que nos entenderem (...) E bem creio que, se Vos­
sa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar
ande, que todos serão tomados e convertidos ao de­
sejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não
deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque en­
tão terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois
degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje
também comungaram.

A visão do paraíso
Como diz Silvio Castro:
O europeu, através da Carta, toma conheci­
mento da existência de um novo mundo. Concre­
to. Imediato. Rico de cores, calor, árvores, frutos,
pássaros, cantos, frescura. A terra é ampla, imen­
sa na linha do horizonte. O céu é limpo, os portos
seguros.

A imagem é a do paraíso terreal, como se


percebe no final do texto de Caminha:
Essa terra, Senhor, parece-me que, da ponta que
mais contra o sul vimos, até a outra ponta que contra
o norte vem, que nós deste ponto temos vista, será
tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco
As índias, com a naturalidade de sua nudez,
léguas de costa. Tem, ao longo do mar, em algumas
desconcertaram os aventureiros portugueses, partes, grandes barreiras, umas vermelhas, e outras
vindos de um mundo de terrível repressão sexual.
brancas; e a terra por cima é toda chã e muito cheia
Com muita frequência, marujos abandonavam as caravelas
de grandes arvoredos. De ponta a ponta é tudo praia
em busca de um hipotético paraíso erótico. redonda, muito chã e muito formosa.

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Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito Minho, porque neste tempo de agora os achávamos
grande, porque, a estender os olhos, não podíamos como de lá.
ver senão terra e arvoredos - terra que nos parecia As águas são muitas; infinitas. Em tal maneira
muito extensa. é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela
Até agora não podemos saber se há ouro ou tudo; por causa das águas que tem!
prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem o Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar
vimos. Contudo, a terra em si é de muito bons ares, parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a
frescos e temperados como os de Entre Douro e principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar.

II RELATOS DE VIAJANTES ------------------------------


Durante todo o século XVI, o Brasil desper­ A antropofagia
tou grande fascínio entre os europeus. Além dos Enquanto homens, mulheres e crianças fa­
colonos portugueses e dos invasores franceses, zem sinais para indicar a forma como o devo­
outros europeus visitaram a terra recém-conquis- rariam, o aventureiro alemão imagina como
tada. Movia-os a cobiça, o desejo de aventuras, a poderia fugir de seu destino. Ao mesmo tem­
curiosidade sexual ou o ideário religioso. Alguns po, observa com enorme curiosidade os cos­
entre eles resolveram registrar suas andanças pe­ tumes dos índios. Nos dias e meses seguin­
los trópicos, e esses relatos obtiveram êxito na tes, alterna essa observação meticulosa com
Europa, onde alimentaram a imaginação de lei­ tentativas de escapar do ritual antropofágico,
tores excitados pelos descobrimentos. ao qual está condenado. Sabedor, por fim, de
Dois desses viajantes produziram obras de­ que havia um navio francês nas imediações,
finitivas sobre a vida cotidiana e os costumes ele convence o chefe da tribo - a quem fora
dos tupinambás, que dominavam uma signifi­ presenteado - a levá-lo até lá. Usando de
cativa faixa litorânea do Brasil: o alemão Hans muita persuasão, astúcia e presentes, Staden
Staden e o francês Jean de Léry. livra-se de seus captores e acaba sendo resga­
tado pelos franceses.
DUAS VIAGENS AO BRASIL A antropofagia é o motivo principal de seu
Sob esse título, Hans Staden publicou na
livro, até pelo interesse que o assunto
Alemanha, em 1557, um livro no qual descre­
despertava na Europa. Contudo, tanto no texto
ve suas aventuras em território brasileiro, es­
principal quanto em um relatório que acrescen­
pecialmente os nove meses e meio em que es­
ta como arremate das Viagens, ele apresenta
teve prisioneiro dos nativos. Em busca de aven­
turas (e dinheiro, provavelmente), o autor fora
de Brcmen para Lisboa e daí partira para o Bra­
sil, como artilheiro de uma nau portuguesa.
Chegando em Pernambuco, envolveu-se em ba­
talhas contra índios inimigos. Essa primeira vi­
agem encerrou-se em seguida, pois a caravela
em que viajava retomou à Europa.
A segunda viagem foi a mais emocionante:
Hans Staden participou de uma expedição que
alcançou a ilha de Santa Catarina, permanecen­
do no local por cerca de dois anos. Dirigiu-se
então - sempre pelo mar e com outros marinhei­
ros portugueses - a São Vicente, no litoral
paulista. Ali, em uma caçada, foi feito prisionei­
ro pelos tupinambás. Levado à aldeia indígena,
viu-se obrigado a gritar para as mulheres, em lín­ Ilustração original da obra de Jean de Léry
gua tupi: “Estou chegando, eu, a vossa comida”. mostrando cena de antropofagia.

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vivas descrições dos costumes indígenas: onde
e como moram, como acendem o fogo, a ma­
neira como cozinham e o que comem, seus
utensílios, sua destreza no manejo do arco-e-
flecha e de outros instrumentos, como prepa­
ram a bebida e com ela se embriagam, no que
acreditam, suas formas de guerrear, etc.
Além disso, mostra aos leitores europeus
os animais da terra, as árvores, a vegetação, pin­
tando um quadro intenso e colorido da realida­
de brasileira de então, transformando seu livro
em um notável êxito editorial do século XVI.
No fragmento abaixo, ele descreve a exe­
cução e a devoração de um inimigo pelos Outra ilustração original da obra de Jean de Léry.
tupinambás:
Quando trazem para casa um inimigo, batem- são dadas às mulheres. Fervem-nas e com o caldo
lhe as mulheres e as crianças primeiro. A seguir co­ fazem uma papa rala que se chama mingau, que elas
lam-lhe ao corpo penas cinzentas, raspam-lhe as so­ e as crianças sorvem. Comem também a carne da
brancelhas, dançam em seu redor e amarram-no bem. cabeça. As crianças comem os miolos, a língua e tudo
Dão-lhe então uma mulher para servi-lo. Se tem dele o que podem aproveitar.
um filho, criam-no até grande e o matam e o comem Quando tudo foi partilhado, voltam para casa,
quando lhes vem à cabeça. levando cada um o seu quinhão.
Dão de comer bem ao prisioneiro. Conservam-
no por algum tempo e então se preparam. (...)
Assim que está tudo preparado, determinam o tem­
VIAGEM À TERRA DO BRASIL
po em que ele deve morrer e convidam os selva­ Igualmente centrada no cotidiano da vida
gens de outras aldeias para que venham assistir. indígena, a obra Viagem à terra do Brasil, do
Enchem de bebidas todas as vasilhas. Logo que calvinista francês Jean de Léry, revela uma
estão reunidos todos os que vieram de fora, o chefe percepção histórica mais apurada acerca dos
da choça diz: “Vinde agora e ajudai a comer o vos­
costumes nativos, pelo fato do autor ser um
so inimigo”. (...)
Quando principiam a beber, levam consigo o homem culto, de formação humanista e, por­
prisioneiro, que bebe com eles. Acabada a bebida, tanto, aberto às diferenças entre as civilizações.
descansam no outro dia e fazem para o inimigo uma Léry permanece no país durante um ano
pequena cabana no local em que deve morrer. (1557), como enviado do líder religioso
Aí passa a noite, sendo bem vigiado. (...)
Calvino, para servir a Villegaignon, fundador
O guerreiro que vai matar o prisioneiro diz para
o mesmo: “Sim, aqui estou eu, quero te matar, pois de uma colônia francesa na futura cidade do
tua gente também matou e comeu muitos dos meus Rio de Janeiro. Ali, tem a oportunidade de con­
amigos”. Responde-lhe o prisioneiro: “Quando esti­ viver (em liberdade) com os tupinambás, rea­
ver morto, terei ainda muitos amigos que saberão lizando uma série de anotações interessantís­
me vingar”. Depois, ele é golpeado na nuca, de modo
simas a respeito de seu modo de vida.
que lhe saltem os miolos, e de imediato as mulheres
arrastam o morto para o fogo, raspam-lhe toda a pele,
Movido por um espírito universalista, ele
tomando-o totalmente branco e tapando-lhe o ânus encara com simpatia os índios, relativizando
com uma madeira, a fim de que nada dele se escape. moralmente certos hábitos que na Europa pas­
Depois de esfolado, um homem o pega e lhe savam por bárbaros. Essa compreensão revela-
corta as pernas acima dos joelhos e os braços junto se, por exemplo, na análise da nudez feminina:
ao corpo. Vêm então quatro mulheres que apanham
quatro pedaços, correndo com eles em tomo das ca­ Quero responder aos que dizem que a convi­
banas, fazendo grande alarido, em sinal de alegria. vência com esses selvagens nus, principalmente en­
Separam depois as costas, junto com as nádegas, da tre as mulheres, incita à lascívia e à luxúria. Direi
parte dianteira. Repartem isso entre eles. As vísceras que (...) a nudez grosseira das mulheres é muito

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menos atraente do que comumente imaginam. Os ná-los mais ferozes, esses selvagens pegam os filhos,
atavios, cabelos encrespados, golas de rendas, uns após outros, e lhes esfregam o corpo, os braços
anquinhas, sobressaias e outras bagatelas com que e as pernas com o sangue inimigo, a fim de tomá-los
as mulheres de cá [europeias] se enfeitam e de que mais valentes.
jamais se fartam são causas de males incomparavel­ Em seguida, todas as partes do corpo, inclusi­
mente maiores do que a nudez habitual das índias. ve as tripas depois de bem lavadas, são colocadas no
moquém, em tomo do qual as mulheres, principal­
Além de detalhar um significativo conjun­ mente as velhas gulosas, se reúnem para recolher a
to de costumes religiosos, medicinais, sociais gordura que escorre pelas varas dessas grandes e al­
(casamentos, funerais, educação dos filhos, tas grelhas de madeira. Em seguida exortam os ho­
etc.) e de mostrar certas práticas desconheci­ mens a procederem de modo que elas tenham sem­
pre tais petiscos e lambem os dedos e dizem iguatu,
das na época, entre as quais a preparação e o o que quer dizer “está muito bom!”.
uso do cauim e do fumo, o viajante francês des­
creve com minúcias o ímpeto guerreiro dos Tais exemplos de crueldade dos índios para
homens tropicais, vendo as batalhas entre as com seus inimigos são, contudo, abrandados
tribos de forma quase poética. pelo relativismo moral que Léry estabelece:
É útil, entretanto, que ao ler sobre semelhantes
O canibalismo dos tupinambás barbaridades os leitores não se esqueçam do que se
Obviamente, também a antropofagia é um pratica entre nós. Em boa e sã consciência acho que
dos temas predominantes da obra, sendo mostra­ excedem em crueldade aos selvagens os nossos usu­
rários [agiotas], que, sugando o sangue e o tutano,
da com uma riqueza de detalhes em muito supe­ comem vivos órfãos, viúvas e outras criaturas mise­
rior à da obra de Hans Staden. Observe-se esta ráveis, que prefeririam sem dúvida morrer de uma
cena, ocorrida logo após a morte do prisioneiro: vez a definhar assim, lentamente.

Em seguida, as mulheres, sobretudo as velhas,


que são mais gulosas de carne humana e anseiam pela
Outros viajantes
morte dos prisioneiros, chegam com água fervendo, Ainda dentro de uma linha de exaltação
esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-lhe a da terra, ao lado de registros realistas dos pri­
epiderme; e o tomam tão branco como na mão dos meiros esforços de colonização, encontram-se
cozinheiros os leitões que vão para o forno. Logo de­ a História da Província de Santa Cruz (1576),
pois o dono da vítima e alguns ajudantes abrem o cor­
de Pero de Magalhães Gândavo; Tratado des­
po e o esquartejam com tal rapidez que não faria me­
critivo do Brasil (1587), de Gabriel Soares
lhor um açougueiro ao esquartejar um carneiro.
E então - incrível crueldade - assim como os de Souza; e Tratados da terra e gente do Bra­
nossos caçadores jogam a carniça aos cães para tor­ sil (1583), de Fernão Cardim.

III LITERATURA JESUÍTICA -------------------------------


Os impérios ibéricos apresentavam em seu impor sua visão leiga de mundo. Pelo contrá­
processo de expansão uma profunda rio, desde 1536, em Lisboa, funcionava o Tri­
ambiguidade. Ao espírito capitalista-mercan­ bunal do Santo Ofício da Inquisição, per­
til associavam um forte ideal religioso, defi­ seguindo judeus, protestantes, bruxas e de­
nido por Darcy Ribeiro como salvacionista. mais “hereges”. Contrária à ciência, às artes
Dezenas de padres acompanhavam as expe­ e a tudo aquilo que representasse liberdade
dições a fim de converter os gentios. O de expressão e ideias, a Inquisição estabele­
racionalismo capitalista, que dava aos negó­ ceu o terror nos países católicos, estimulando
cios autonomia frente à religião, não triunfou a delação, promovendo a tortura e o assassi­
por completo em Portugal e Espanha. Nesses nato dos inimigos, admitindo apenas o pen­
países, a burguesia comercial e financeira samento único e celebrando um bárbaro reto­
(normalmente judaica) viu-se impedida de mo ao mundo medieval.

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O resultado desse sombrio processo de trabalho de catequese dos jesuítas acabou se
opressão não foi apenas o retrocesso científi­ realizando e que eles mantiveram incansável
co, mas a desgraça econômica que se abateu luta contra a escravidão dos índios, a ponto de
sobre a Península Ibérica, em função do ex­ despertar o ódio visceral dos colonos que os
purgo das forças modernizadoras, representa­ tinham como inimigos mortais.
das pela burguesia judaica. Sem uma classe em­ O que se pode afirmar hoje é que, apesar de
presarial audaciosa e empreendedora, Portugal todos os erros, a ação jesuítica acabou produzin­
e Espanha afundaram, já no fim do século XVI, do uma ideologia protetora das comunidades in­
em uma decadência secular. Enquanto isso, os dígenas que impediu sua destruição completa.
judeus expulsos transferiram-se majoritaria-
mente para os Países Baixos. Lá passaram a José de Anchieta
exercer papel decisivo na transformação da Boa parte da literatura escrita pelos padres
Holanda em grande potência mundial. possui uma dimensão meramente informativa,
pois contém notícias da obra catequética e dos
A Contrarreforma problemas da ordem. Simultaneamente, surgiam
A Contrarreforma - desencadeada pelo os primeiros religiosos dispostos a elaborar uma
papa Paulo III no célebre Concílio de Trento. tosca literatura, destinada à conversão dos indí­
de 1545 — intensificou o combate contra os pro­ genas. Avulta então o nome de José de Anchieta.
testantes, ao mesmo tempo em que ampliava a Dotado de sólida formação religiosa e com sen­
missão evangelizadora dos padres em terras so artístico acima do comum, ele escreveu:
americanas.
• Obras refinadas:poemas e monólogos, em
A mais importante entre as ordens religio­
latim, que parecem destinados a satisfazer a
sas dedicadas à conversão dos gentios foi a
suas necessidades espirituais mais profundas.
jesuítica. Fundada alguns anos antes da
• Obras didáticas: hinos, canções e espe­
Contrarreforma por Ignácio de Loyola, a
Companhia de Jesus sempre primou pelo alto cialmente autos, que visavam a infundir o pen­
nível intelectual, pelo ardor místico, pela dis­ samento cristão nos índios.
ciplina e pela fé inquebrantável de seus com­
ponentes. Coube a ela o papel de ponta-de-lan-
ça dajrradiação do catolicismo. Desde a déca-
da de 1540, os Soldados de Cristo (jesuítas),
como apóstolos sem medo e sem mácula, se
lançaram a mundos desconhecidos, no intuito
de apontar aos povos de outros continentes as
excelências do catolicismo.
Os primeiros jesuítas desembarcaram no
Brasil em 1549, juntamente com o governador
Tomé de Sousa. Além do trabalho catequético,
criaram os primeiros colégios no país: São Pau­
lo (1554), Bahia (1559), Rio de Janeiro (1568)
e Olinda (1576). Iniciaram, dessa forma, um
domínio absoluto sobre o sistema educacional Gravura da
- interrompido por sua expulsão de Portugal e época mos­
demais colônias em 1759 -, de sorte que todas tra jesuítas
valendo-se
as manifestações culturais da sociedade brasi­
da música
leira, nos três primeiros séculos, nasceram sob
como forma
o controle dos jesuítas. de atrair os
Seu trabalho com os índios até hoje gera índios para a
discussões. Contudo, o fato histórico é que o catequese.

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Os autos Os autos anchietanos contribuem para
Hoje se considera importante, sobretudo, deculturar os índios, que assim perdem a sua iden­
a obra teatral de Anchieta. Nela, o autor tenta tidade. Desajustados diante da nova ordem soci­
conciliar os valores católicos com os símbolos al e psicológica, ver-se-ão, como disse José Gui­
primitivos dos habitantes da terra e com os as­ lherme Merquior, “dolorosamente arrancados
pectos da nova realidade americana. à cultura materna e dolorosamente desarmados
Os elementos sagrados do catolicismo eu­ ante a bruta realidade da experiência colonial”.
ropeu ligam-se aos mitos indígenas, sem que
isso signifique uma contradição maior, pois as O papel de Anchieta na Literatura
ideias que triunfam nos espetáculos são evi­ Brasileira
dentemente as do padre. As crendices e supers­ O crítico Afrânio Coutinho sustenta que
tições dos nativos acabam vinculadas ao peca­ a literatura teria nascido, no Brasil, pelas mãos
do e a seu poderoso agente, Satanás. dos jesuítas. Assim, José de Anchieta seria o
Nesse confronto perpétuo entre o bem e o nosso primeiro escritor. Tal argumentação é
mal, o primeiro é defendido por santos e an­ refutada pela maioria dos estudiosos, pois o
jos, os quais expressam o cristianismo e sub­ padre possuía uma visão de mundo tipicamen­
jugam o segundo, constituído por deuses e pa­ te europeia. Em decorrência disso, os elemen­
jés dos nativos, misturados com os demônios tos culturais indígenas presentes em seu teatro
são destruídos - dentro da ação dramática -
da tradição católica. Dessa forma, os índios (em
com pleno apoio do autor, que se serve deles
especial os curumins) percebem que seus va­
apenas para reafirmar um sistema de ideias
lores são falsos e corruptos e aceitam de me­
alheio ao universo dos próprios índios.
lhor grado os princípios cristãos.
Além disso, sua obra teatral não teve se­
Do ponto de vista da encenação dos
guidores. Não iniciou qualquer tradição no gê­
autos* - conforme depoimentos de época a
nero dramático brasileiro. Não deixou nenhum
liberdade formal salta aos olhos: o teatro
rastro. Por essa razão, a originalidade de
anchietano pressupõe o lúdico, o jogo coreo- Anchieta consiste apenas na criação de obje­
gráfico, a cor, o som. É algo arrebatador, de
tos culturais com fins religiosos, para um pú­
enorme fascínio visual. Dirige-se mais aos sen­ blico que jamais teria acesso à produção esté­
tidos do que à razão, apelando para a consci­ tica dos ho­
ência mítica dos nativos. Santos e demônios mens brancos.
duelam; desencadeiam-se milagres e Fora esse as­
apocalipses; alternam-se elementos históricos pecto, sua im­
e fictícios, religiosos e profanos; pequenos ser­ portância no
mões musicados irrompem no meio das cenas. panorama da
Perante essa festa para as emoções e o cora­ literatura na­
ção, o indígena vacila em suas crenças. cional é insig­
Alegrem-se os nossos filhos nificante.
Por Deus os ter libertado
Guaixará vá para o inferno
Guaixará, Aimbiré, Saravaia
Vão para o inferno.

Gravura sem data


* Auto: forma teatral oriunda da Idade Média e caracterizada por sua
liberdade em relação às leis clássicas do teatro, que exigiam unidade de definida mostran­
ação, tempo e espaço. Compõe-se de uma multiplicidade quase estática do os jesuítas An­
de quadros e cenas. chieta e Nóbrega.

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