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CARACTERÍSTICAS DO ‘QUINHENTISMO’ PRESENTES NA OBRA ‘O GUARANI’,

DE JOSÉ DE ALENCAR

O Período Quinhentista remonta às nossas origens, aos primeiros passos do Brasil que
hoje temos, ao início do que conhecemos como sendo a nação brasileira. A Europa do século
XVI, época do nosso descobrimento, estava no auge do Renascimento, período de
consolidação das navegações e do Capitalismo Mercantil. Em relação à igreja havia uma
divisão causada pela Reforma Protestante, apoiada pela burguesia que se firmava nessa
reforma como um meio de defender seus interesses, e pela Contra-Reforma, em que as forças
tradicionais reafirmavam os dogmas medievais até então defendidos.
Em relação a essa tendência medievalista, pode-se afirmar que, mais do que todas as
outras nações européias, Portugal se manteve fiel a muitas das estruturas sócio-culturais
herdadas da Idade Média. Apenas durante o século XVIII, com o advento do racionalismo
iluminista, é que a nação portuguesa começou a se ver livre dessas características medievais
nas produções culturais. As primeiras produções literárias em terras brasileiras tinham
portanto, em função dessa particularidade portuguesa, características européias e medievais,
conquanto fosse ainda o nosso início como nação, não havendo ainda se desenvolvido aqui
um estilo diferenciado para essas produções literárias. Em relação ao início da Literatura
Brasileira, escreveu Massaud Moisés:
A chamada atividade literária nas primeiras décadas de nossa
formação histórica caracterizou-se por seu cunho pragmático estrito,
seja a circunscrita ao parâmetro jesuítico, seja a decorrente de
viagens de reconhecimento e informação da terra. No primeiro caso,
constituía-se em instrumental de catequese do gentio e de educação
do colono, conforme normas pedagógicas de padrão escolástico. No
segundo caso, tratava-se de simples reportagens ou de registros de
viagens com o fito de melhor conhecer a terra, e dando-se a
conhecer aos superiores em Lisboa, possibilitar-lhe a exploração e,
com isso, colaborar na empreitada expansionista da Metrópole. 1
Em todos os escritos da época, que eram em sua maioria relatórios sobre as incursões
pelo território, trazendo informações sobre a terra, suas riquezas, sua gente, bem como os
escritos jesuíticos, de cunho catequético, havia as impressões de homens de formação
medieval, daí as demonstrações de surpresa em relação ao ‘à vontade’ indígena, totalmente
puro e amoral, num comportamento natural dos povos que aqui viviam. Apesar de esses
escritos trazerem relatórios, descrições da terra, com o tempo foram ganhando maior beleza
estética e maior aproximação com características literárias. Falando sobre as impressões de
Caminha na Carta, assim se expressou Moisés:
Tais dotes de narrador, abafados pelo desejo de relatar com
exatidão e objetividade os acontecimentos, revelam-se pela
naturalidade, fluência e certa ironia maliciosa, fruto do
deslumbramento em face da terra recém-descoberta, como se
alcançasse ter uma “visão do Paraíso”. 2
Muitos desses escritores reproduziam em suas obras o que vivenciavam em nossa terra,
traduzindo um sentimento comum à grande maioria dos colonos que aqui viviam: em face da
turbulência política e econômica que atravessava a Metrópole, já mergulhada em dívidas
pelas constantes investidas em navegações, na expectativa por descobertas que lhe
trouxessem vantagens consideráveis a fim de suprir a falta de recursos, viam na colônia um
ambiente renovador e que propiciaria um novo recomeço, sentimento elevado pela beleza
constatada por eles mesmos. Nesse sentido, Fernão Cardim antevê a nova colônia como um
éden, ‘um país de Cocagne’. Para ele, tudo no Brasil se apresentava igual ou até mesmo
superior a Portugal ou ao resto da Europa:
Esse Brasil é já outro Portugal, e não falando no clima que é muito
mais temperado, e sadio, sem calmas grandes, nem frios, e donde
os homens vivem muito com poucas doenças, como de cólica,
fígado, cabeça, peitos, sarna, nem outras enfermidades de Portugal,
nem falando do mar que tem muito pescado, e sadio; nem das
cousas da terra que Deus deu cá a esta nação; nem das outras
comodidades muitas que os homens têm para viverem, e passarem
a vida, ainda que as comodidades das casas não são muitas por
serem as mais delas de taipa, e palha, ainda que já se vão fazendo
edifícios de pedra e cal, e telha; nem as comodidades para o vestido
não são muitas, por a terra não dar outro pano mais que algodão.3
Essa visão paradisíaca do Brasil, conforme considerado por Fernão Cardim, também se
estende ao povo indígena, ao afirmar que ‘são candidíssimos, e vivem com muito menos
pecados que os portugueses.’ 4
Já no final do período Quinhentista, temos o exemplo de Gabriel Soares de Sousa, um
português que se estabelece no Brasil e enriquece ao desfrutar de seus recursos. No Tratado
Descritivo do Brasil, ele oferece um roteiro com informações de toda a costa brasileira,
contendo valiosas informações não só à coroa Portuguesa, mas também à Espanhola, de
quem buscou autorização e recursos para explorar as minas existentes nas cabeceiras do Rio
S. Francisco. Pode-se afirmar ser ele o primeiro europeu a ver o Brasil em toda a extensão de
sua riqueza vegetal, mineral e animal, daí a importância de sua obra para a história.
Munido de um sentimento de apego e amor à terra que o enriquecera à custa de muito
trabalho, Gabriel Soares de Sousa foi o precursor de um sentimento nativista que permeia sua
obra, e que mais tarde estaria presente nas poesias barrocas de Manuel Botelho de Oliveira e
Frei Manuel de Santa Itaparica. Eis a sua descrição da terra à Sua Majestade, ‘El-Rei D. João
III de Portugal:
Em reparo e acrescentamento estará bem empregado todo o
cuidado que Sua Majestade mandar ter deste novo reino; pois está
capaz para se edificar nele um grande império, o qual com pouca
despesa destes reinos se fará tão soberano que seja um dos
Estados do mundo, porque terá de costa mais de mil léguas, como
se verá por este Tratado no tocante à cosmografia dele, cuja terra é
quase toda muito fértil, muito sadia, fresca e lavada de bons ares, e
regada de frescas e frias águas. 5
Cerca de 250 anos após o término do período Quinhentista, quanto já havíamos
adentrado o Romantismo, José de Alencar publica O Guarani, romance indianista parte de
uma trilogia que abordou o modo de vida básico do indígena brasileiro. Nessa obra, Alencar
descreve o encontro de um índio, Peri, com a civilização branca e portuguesa. Quatro são os
tipos de romances em que se enquadram as narrativas de Alencar: o Romance Urbano ou
Citadino, o Romance Indianista, o Romance Histórico e o Romance Regionalista, tendo ele,
durante o decurso de sua jornada literária, produzido crônica, teatro, crítica literária,
biografia, poesia, dentre outros estilos; o ponto alto de sua obra é representado pelos
romances e as chamadas ‘lendas narrativas’. MOISÉS (2001) assim expressou o perfil
indianista de Alencar:
Ser mítico, o indígena alencariano é pleno de qualidades, em
flagrante contraste com os brancos, não raro primários e viciosos.
Para os silvícolas vão todas as simpatias; aos brancos fica
reservada sempre a pior parte no concerto geral: batem-se em lutas
fratricidas ou desconhecem os bons sentimentos dos nativos
[...]Alencar não conhecia de visu os heróis das suas narrativas;
quando muito, convivera na infância com pessoas que lhe poderiam
ter contado lendas a respeito.[...]Alencar emprestou verniz medieval
às façanhas de nossos nativos, como se a civilização pré-cabralina
constituísse nossa Idade Média. 6
Alencar se demorava em cada detalhe de sua descrição do cenário de sua narrativa, de
forma a transportar o interlocutor imaginariamente ao local exato onde se desenvolve a
trama. A riqueza de detalhes com que delineava a paisagem que servia de ambiente ao
romance, remonta à descrição dos escritores Quinhentistas em relação à terra recém-
descoberta:
A vegetação nessas passagens ostentava outrora todo o seu luxo e
vigor; florestas virgens se estendiam ao longo das margens do rio,
que corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados
pelos leques das palmeiras. Tudo era grande e pomposo no cenário
que a natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas
majestosos dos elementos, em que o homem é apenas um simples
comparsa.[...]Apesar de ser pouco mais de duas horas, o crepúsculo
reinava nas profundas e sombrias abóbadas de verdura: a luz,
coando entre a espessa folhagem, se decompunha inteiramente;
nem uma réstia de sol penetrava nesse templo da criação, ao qual
serviam de colunas os troncos seculares dos acaris e araribás. 7
Em O Guarani, o personagem Peri devota total atenção e subserviência a Cecília, filha
do fidalgo D. Antônio de Mariz, como se fosse a encarnação da Virgem Maria:
Em Peri, o sentimento era um culto, espécie de idolatria fanática, na
qual não entrava um só pensamento de egoísmo; amava Cecília não
para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se
inteiramente a ela, para cumprir o menor dos seus desejos, para
evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse
imediatamente uma realidade. 8
Na descrição de Alencar, o índio Peri era tido como um super-herói, dono de um caráter
impecável notado pelo fidalgo D. Antônio de Mariz que lhe tinha grande admiração. Era
digno das mais surpreendentes façanhas, sempre atento e disposto a defender a sua idolatrada
Cecília, velando todos os seus passos e estando sempre presente em qualquer situação que
lhe representasse algum risco, desde o primeiro contato que Cecília e o pai tiveram com o
índio, que a defendera de ser esmagado por uma grande pedra:
O índio fazia um esforço supremo para suster o peso da laje prestes
a esmagá-lo; e com o braço estendido de encontro a um galho de
árvore mantinha por uma tensão violenta dos músculos o peso do
corpo[...]Cecília ouvindo o grito erguera a cabeça e olhava seu pai
com surpresa, sem adivinhar o perigo que a ameaçava.[...]As altas
montanhas, as nuvens, as catadupas, os grandes rios, as árvores
seculares, serviam de trono, de dossel, de manto e cetro a esse
monarca das selvas cercado de toda a majestade e todo o
esplendor da natureza. 9
A obra é permeada em alguns dos diálogos por citações católicas, religião
predominante nos primeiros anos pós-descobrimento. Alencar dedicou um capítulo à
‘Prece’, oração da tarde que era praticada também pelos padres jesuítas que aqui se
instalaram a fim de catequizar os nosso índios:
Um concerto de notas graves saudava o pôr-do-sol e confundia-se
com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua
queda e ceder à doce influência da tarde. Era a Ave-Maria. Como é
solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa do
crepúsculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para
murmurar a prece da noite! 10
Havia a preocupação de Cecília em relação à conversão de Peri ao Cristianismo, o que
segundo a sua visão salvaria a alma daquele que lhe devotava tanto cuidado, tanta devoção.
Esse sonho só veio a se concretizar ao final da trama quando Peri, numa forma de salvar sua
amada Cecília levando-a consigo ao Rio de Janeiro, aceita ser batizado por D. Antônio de
Mariz, passando a levar próprio sobrenome deste, e assim se torna um cristão.
O índio caiu aos pés do velho cavalheiro, que impôs-lhe as mãos
sobre a cabeça. _Sê cristão! Dou-te o meu nome. 11
Assim se expressou Moisés (2001) sobre a tendência de Alencar em relação ao perfil
heróico de seus personagens:
Alencar movia-se, portanto, na esfera do onírico e do fantasioso,
não raro articulada aos mitos da infância.[...] O Brasil se lhe
afigurava verdadeiro eldorado ou “paraíso perdido”, habitado por
semideuses, um mundo de eterna beleza onde não havia lugar para
a morte inglória e o amor imperava, mesmo em pleno dilúvio, como
em O Guarani. 12

1. MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Vol I – Das Origens ao Romantismo. 6.ed.
Ed. Cultrix. São Paulo: 2001.p. 28-29
2. MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Vol I – Das Origens ao Romantismo.
6.ed. Ed. Cultrix. São Paulo: 2001.p. 29
3. Fernão Cardim. Tratados da Terra e Gente do Brasil, p. 91
4. Fernão Cardim. Tratados da Terra e Gente do Brasil, p. 270
5. Gabriel Soares de Sousa, Tratado Descritivo do Brasil em 1587. pp.1-2
6. MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Vol I – Das Origens ao Romantismo. 6.ed.
Ed. Cultrix. São Paulo: 2001.p. 393
7. ALENCAR, José de. O Guarani: Romance Brasileiro. Editora Edigraf. São Paulo.p. 7,18
8. ALENCAR, José de. O Guarani: Romance Brasileiro. Editora Edigraf. São Paulo.p. 53
9. ALENCAR, José de. O Guarani: Romance Brasileiro. Editora Edigraf. São Paulo.p. 109,345
10. ALENCAR, José de. O Guarani: Romance Brasileiro. Editora Edigraf. São Paulo.p. 40
11. ALENCAR, José de. O Guarani: Romance Brasileiro. Editora Edigraf. São Paulo.p. 331
12. MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Vol I – Das Origens ao Romantismo. 6.ed.
Ed. Cultrix. São Paulo: 2001.p. 397

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