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INSTITUTO FEDERAL DO ESPIRITO SANTO –CAMPUS ALEGRE

ENSAIO LITERÁRIO: O AUTO DA BARCA DO INFERNO

FABÍOLA SARTÓRIO

CACHOEIRO DE ITAPEMIRIM
2023
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Poeta e dramaturgo português Gil Vicente, foi uma figura


importantíssima do humanismo literário. Nasceu em 1465 na cidade
portuguesa de Guimarães, seu primeiro trabalho foi o "Auto da Visitação",
também chamado de "Monólogo do Vaqueiro". Passou a ser reconhecido após
sua apresentação perante a corte portuguesa, no nascimento de D. João III,
onde não só escreveu a peça baseada na adoração dos magos, como também
atuou como ator.
O humanismo foi um movimento literário de transição entre o
trovadorismo e o classicismo, marcou o fim da Idade Média e o início da Idade
Moderna.
O humanismo está inserido no contexto do Renascimento, movimento
artístico, filosófico e cultural que teve início no século XV na Itália.
As principais características do humanismo são: o antropocentrismo
(homem no centro do mundo), a valorização do ser-humano, a racionalidade e
o cientificismo.
As concepções teocêntricas, juntamente com a engessada pirâmide de
formação social, entram em choque com a visão de mundo sugestiva pelo
antropocentrismo. Nesse cenário, é visto a ascensão da burguesia, uma nova
classe. Considerada o pivô central das mudanças nos rumos do que até aquele
momento era tido como verdade inconcussa. A partir dessa influência, percebe-
se a migração dos vassalos – trabalhadores rurais- para as cidades, ou burgos.
Gradualmente, o clero e os senhores feudais perdem seu espaço, a monarquia
se robustece. Na arte, na cultura e na política são cogitadas as tendências
desse novo panorama. Essa reviravolta não aconteceu de forma rápida e
homogênea. Por isso podemos considerar o Humanismo como uma fase de
transição, uma precedente do Renascimento e do Iluminismo, este último
voltado mais para questões filosóficas e políticas, o que é pertinente, uma vez
que, ambos retomam valores conquistados na Grécia antiga. É diante desse
cenário bifrontista – medieval versus antropocentrismo – que nasce a figura de
Gil Vicente, dramaturgo português cujo a obra retrata toda essa desordem de
valores, principalmente no Auto da Barca do Inferno.
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O autor escreveu poemas e obras de dramaturgia (autos e farsas), das


quais merecem destaque: Monólogo do Vaqueiro ou Auto da visitação, Auto
Pastoril Castelhano, Auto dos Reis Magos, O Velho da Horta, Auto da Barca
do Inferno, Auto da Barca do Purgatório, Auto da Barca do Paraíso, Auto da
Sibila Cassandra, Auto da Festa, Auto da Índia, Farsa de Inês Pereira, Floresta
de Enganos.
Gil Vicente mostrava em seus sermões conhecimentos adquiridos em
universidades daquela época. Suas obras conjeturam uma aquisição de uma
cultura casada entre a teologia e a filosofia. Seus discursos não eram
regulados exclusivamente por aspectos religiosos. Nestes, aclarava o povo e
até mesmo o clero a respeito de superstições religiosas, assegurando, por
exemplo, que terremotos não eram castigos de Deus aos judeus pela sua falta
de fé, mas os esclarecia com explicações racionais sobre o referido fenômeno
Suas peças, de caráter popular, possuem um forte teor satírico. Nas
obras mais emblemáticas, ele critica os costumes da sociedade portuguesa,
tecendo um fiel retrato de sua época. Além do caráter satírico, o conteúdo das
obras apresentava um teor moralizante, repleto de humor.
Os trabalhos produzidos nesse período envolvem o teatro, a prosa e a
poesia. No teatro popular temos as obras de Gil Vicente. Já na poesia, elas
eram recitadas nos palácios, e por isso são chamadas de "poesia palaciana".
Gil Vicente escreveu o Auto da Barca do Inferno em 1517, no momento
em que eclodia na Alemanha a Reforma Protestante, com a crítica veemente
de Lutero ao mau clero dominante na igreja. Nesta obra, há a figura do frade,
severamente censurado como um sacerdote negligente.
Na obra, fica manifesto a oposição entre os ideais medievais e os
humanistas, ao mesmo tempo é retratado o clássico choque entre o bem e o
mal, dentro de um aspecto condizente com a doutrina católica. Podemos notar
também várias críticas sociais pertinentes ao comportamento das pessoas da
época. Nesse ponto, Gil Vicente faz uso de alegorias, uma forma de abordar
determinados assuntos de maneira indireta, utilizando personagens caricatos
que simulam frações da sociedade.
Uma proeminência do Humanismo no Auto da Barca do Inferno é o teor
moralizante que é proporcionado por meio da análise dos seus personagens. É
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uma advertência da moral de cada um, da ética. Versa uma crítica ao ser
humano e suas imperfeições.
Observa-se que a “barca” da trama é uma referência a mitos gregos.
Fica manifesto a conexão com a barca que fazia a travessia das almas pelo rio
“Aqueronte”, guiada pelo barqueiro “Caronte”, no inferno grego.
[...] gregos e romanos da antiguidade acreditavam que essa era uma
barca pequena na qual as almas faziam a travessia do Aqueronte, um
rio de águas turbilhonantes que delimitava a região infernal. O nome
desse rio veio de um dos filhos do Sol e da Terra, que por ter fornecido
água aos titãs, inimigos de Zeus (Júpiter), foi por ele transformado em
rio infernal. As suas águas negras e salobras corriam sob a terra em
grande parte do seu percurso, donde o nome de rio do inferno, que
também lhe davam... (DANNEMANN, 2006, s.p.)

A seguir temos uma breve abordagem sobre os personagens com seus


objetos e a sua apropriada simbologia:
Fidalgo: um manto e pajem (criado) que transporta uma cadeira de
espaldas. Estes elementos simbolizam a opressão dos mais fortes, a
tirania e a presunção do moço.
Onzeneiro: bolsão. Este elemento simboliza o apego ao dinheiro, a
ambição, a ganância e a usura.
Parvo: não traz símbolos cénicos, pois tudo o que fez na vida não foi
por maldade. Esta personagem representa a inocência e a
ingenuidade.
Sapateiro: avental e formas de sapateiro. Estes elementos
simbolizam a exploração interesseira, da classe burguesa comercial.
Frade: uma Moça (Florença), uma espada, um escudo, um capacete
e o seu hábito. Estes elementos representam a vida mundana
do clero, e a dissolução dos seus costumes.
Alcoviteira: hímenes postiços, arcas de feitiços, armários de mentir,
furtos alheios, joias de seduzir, guarda-roupa de encobrir, casa
movediça, estrado de cortiça, coxins e moças. Estes elementos
representam a exploração interesseira dos outros, para seu próprio
lucro e a sua actividade de alcoviteira ligada à prostituição.
Judeu: bode. Este elemento simboliza a rejeição à fé cristã, pois o
bode é o símbolo do Judaísmo.
Corregedor e Procurador: processos, vara da Justiça e livros. Estes
elementos simbolizam a magistratura.
Enforcado: "baraço" (a corda com que fora enforcado) ao pescoço.
Este elemento representa a sua vida terrena vil e corruptível.
Quatro Cavaleiros: cruz de Cristo, que simboliza a fé dos cavaleiros
pela religião católica. (VICENTE, s.p.)

Na leitura da síntese das características dos personagens da obra,


verifica-se certa precaução do autor no que se refere à crítica dos “quatro
cavaleiros”. Fica evidente que Gil Vicente discrimina-os dos demais por estes,
representarem o poderio e o magnetismo da Igreja Católica. Criticar a “ordem”
poderia parecer uma notável afronta à Igreja. Tal argumento poderia até ser
descartado se ponderarmos que o “frade”, representante do clero, é
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classificado como um homem mundano e alheio aos costumes eclesiásticos.


Todavia deve-se observar que o status de frade, no contexto da época, era
hierarquicamente inferior ao da ordem dos cavaleiros Templários, além de não
escarnecerem do mesmo glória e importância para a instituição. Não era
novidade a vida carnal que muito dos religiosos de baixa “patente” levavam.
Deve-se diferenciar o objeto real do apontamento da crítica ao “frade” em
relação aos “quatro cavaleiros”, enquanto os últimos bancam os ideais da
instituição católica, os primeiros admitem um teor subjetivo, ou seja, é uma
crítica àquelas pessoas.
No entanto, vale lembrar que o “judeu”, representa o povo que negou
Jesus, estendendo-se a todos, é uma generalização. Nota-se como a
linguagem é o meio que Gil Vicente melhor explora para pôr efeitos cômicos ou
poéticos; escrevia sempre em versos que agrupavam trocadilhos e ditos
populares típicos de cada classe social.
A configuração teatral apresenta enredos simples, e não segue a lei das
três unidades do teatro clássico, sugeridas por Aristóteles em sua obra A
Poética. O que nos leva a concluir que de fato o Auto da Barca do Inferno
apresenta elementos pertinentes à corrente humanista, racionalista,
individualista; assim como, do pensamento da Idade Média.
A obra aqui analisada faz parte da “Trilogia das Barcas”, e pode-se
marcar como pontos positivos nessas obras, a originalidade e imaginação
demonstradas de uma forma instintiva e direta, sem muitas aprazas poéticas.
Características que fazem de Gil Vicente o grande marco do Humanismo
literário.
A temática dessa obra, deste modo, está fundamentada na divulgação
da fé cristã e nos valores sociais, ou seja, na ideia do bem e do mal na vida do
homem. De tal modo, é possível compreender que, no Auto da Barca do
Inferno, há pontos satíricos e moralistas, divinos e humanistas e que, por isso,
suas percepções ainda conjeturam na atualidade. Porque, quando Gil Vicente
critica os valores morais e espirituais dos personagens, ele aponta, direta e
incondicionalmente, à sociedade no geral.
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REFERÊNCIAS

COTRIM, Gilberto. História Global. São Paulo: Editora Saraiva, 1998.


DANNEMANN, Fernando Kitzinger,2006. A Barca de Caronte. Disponível em:
< http://www.recantodasletras.com.br/resenhas/284094 >. Acesso em 23 de
out. de 2023.
VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Auto_da_Barca_do_Inferno>. Acesso em 23 de out.
de 2023.
GRANDES LIVROS - Auto da Barca do Inferno (Gil Vicente). Disponível em
<https://vimeo.com/51449281>. Acesso em 23 de out. de 2023.
"AUTO DA BARCA DO INFERNO" (1517), de Gil Vicente. Videoaula. Prof.
Marcelo Nunes. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=Yg8P9y14EDk>. Acesso em 23 de out. de 2023.

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