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Revista Estudos Feministas

Unversidade Federal do Rio de Janeiro


ref@cfh.ufsc.br
ISSN (Versión impresa): 0104-026X
BRASIL

2003
Eliane T. A. Campello
RESEÑA DE "LITTLE RED RIDING HOOD UNCLOAKED: SEX, MORALITY, AND
THE EVOLUTION OF A FAIRY TALE." DE CATHERINE ORENSTEIN
Revista Estudos Feministas, julho-dezembro, año/vol. 11, número 002
Unversidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, Brasil
pp. 661-663
Resenhas

As múltiplas vidas de “Chapeuzinho


Vermelho”
Roald Dahl (1983) e de Gwen Strauss (1990), sem
Little Red Riding Hood esquecer uma piada popular e a adaptação do
Uncloaked: Sex, Morality, and the conto para o cinema (com o título de Freeway)
Evolution of a Fairy Tale. feita por Matthew Bright (1996).
De posse dessa rica e variada matéria-
prima, Orenstein cruza sua interpretação de cada
ORENSTEIN, Catherine. um dos textos com comentários elucidativos a
respeito do momento histórico da produção da
New York: Basic Books, 2002. 289 p. história. Mas não pára aí. Inflamada pelas
questões pós-modernas de gênero, a autora
persegue, nas versões estudadas, suas
repercussões culturais na sociedade
“Uma menina, um lobo, um encontro na contemporânea concernentes ao sexo e à
floresta. Quem não conhece a história de moralidade. Para isso, vale-se também de
Chapeuzinho Vermelho?” Com essa pergunta inúmeras ilustrações (37, no total), cujos
desafiadora lançada a um amplo universo de significados, explorados com agudeza,
leitores formado por crianças e adultos, Catherine corroboram seus argumentos. A novidade é que
Orenstein introduz a leitura dos múltiplos símbolos inclui entre tais ilustrações não só aquelas que
e idéias que se encontram nos bastidores de um acompanhavam o texto nos manuscritos ou nas
dos contos de fadas mais populares do mundo publicações originais, mas acrescenta
(a afirmativa não é hiperbólica). O título – Little reproduções de anúncios muito expressivos do
Red Riding Hood uncloaked: Sex, Morality, and século XX que se apóiam no tema do
the Evolution of a Fairy Tale –, que em uma “Chapeuzinho Vermelho”, como bem o
tradução livre para o português pode ser A demonstram o da Max Factor, na Vogue, de 1953
Chapeuzinho Vermelho desencapuzada: sexo, e o do Chanel nº 5, em um comercial de
moralidade e a evolução de um conto de fadas, televisão, de 1998.
indica a proposta analítica da autora. Entre as ilustrações originais, chama a
Orenstein acredita que nosso sentido de atenção a ênfase de Orenstein ao comentar o
identidade social e cultural vem permeado nos tratamento dado modernamente à ilustração
contos de fadas, um dos gêneros literários mais universalmente conhecida do lobo (disfarçado
poderosos de socialização: “eles nos ensinam o de vovó) e da menina (tentando cobrir-se com o
Certo e o Errado” (p. 10), afirma ela. Por esse lençol), na cama, desenhada pelo famoso
motivo, modificam-se no decorrer dos séculos, Gustave Doré, em 1862. Bruno Bettelheim
evidenciando de que forma as verdades aperfeiçoa-a na capa de A psicanálise dos
humanas mudam. contos de fadas (1976). Esse não menos famoso
A autora recupera diversas versões do analista freudiano “sentiu que era necessário
conto, desde as encontradas na tradição do retocar a outra ilustração em branco e preto com
folclore oral, como é o caso de “A história da vovó” uma marca de rubor na face da menina”,
(coletada por volta de 1885), passa pelas versões desvelando desse modo o sentido oculto do
de Perrault (primeira edição em 1697) e dos conto na forma de uma “parábola sexual” (p. 22),
Irmãos Grimm (primeira edição em 1812), e afirma a autora.
chega, entre outras, à análise do relato dos crimes Por outro lado, a ilustração que acompanha
de Stubbe Peeter (traduzido do holandês para o o manuscrito de Perrault é mais ousada, pois o
inglês em 1590), à canção de Robert Blackwell lobo não usa disfarce e está em cima da menina,
(1966), aos poemas de Anne Sexton (1971), de com uma pata de cada lado. No fim do conto, a

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menina é comida por ele, sem salvação nem psicólogo: enquanto ele situa o valor dos contos
redenção. A perda da virgindade encontra de fadas na a-historicidade e na universalidade
sinônimo na expressão popular, na época do de seus temas, Orenstein estrutura Little Red Riding
autor: elle avoit vû le loup – ela viu o lobo, Hood Uncloaked, precisamente, sobre a
incorporada na arte e na cultura dos últimos qualidade mutante - “mercurial properties” (p. 12)
séculos com a mesma conotação sexual. Perrault - desse gênero. Para a autora, os contos
escreveu a história com fins didáticos, para alertar adaptam-se ao clima, aos modismos locais e ao
as jovens virgens e mesmo as não-tão-virgens que conjunto de princípios, normas e valores de cada
brilhavam na corte do Rei Sol. Com isso, funda a novo contador da história, bem como à
literatura infantil ‘clássica’, não-tão-infantil assim. audiência. Bettelheim apresentou os contos de
As alegorias de seus contos representam as fadas como um cenário seguro para as crianças
preocupações políticas e sexuais da França no explorarem seus medos interiores e seus desejos
século XVII. Vestir sua heroína com um capuz proibidos, no que foi totalmente aceito e
vermelho - a cor das prostitutas, do escândalo e acreditado. Isso porque, afirma ela, supomos que
do sangue - simboliza o pecado da menina e a os psicólogos são dignos de confiança (p. 236).
previsão de seu destino. A negação a essa assertiva final, que representa
Ao passar da luminosidade do Rei Sol para o “verdadeiro” pensamento de Orenstein, salta
a penumbra da era vitoriana, isto é, das mãos claramente das entrelinhas, quando, em sua
de Perrault para as dos Irmãos Grimm, análise de Freeway (cap. X), a autora considera
Chapeuzinho Vermelho torna-se mais discreta, muito adequado à contemporaneidade o fato
embora continue ainda bobinha, necessitando, de ser destinado ao psicólogo o lugar de vilão, o
por esse motivo, da figura paterna, o caçador, que torna sua depreciação de Bettelheim
para salvá-la do lobo. A capa com o capuz exacerbada e irônica.
vermelho, na edição de 1847 dos Grimm, Orenstein enfoca também a cultura pop, em
transforma-se em um chapéu pequeno à maneira que Tex Avery, famoso por suas animações, e
das mulheres da aristocracia e da classe média James Thurber, escritor e humorista, captam em
dos séculos XVI e XVII. A finalidade é a de manter suas representações da “Chapeuzinho” as
seus longos cabelos presos e ocultos, por serem mudanças radicais na vida das mulheres
considerados um dos mais perigosos símbolos de americanas entre os anos 1920 e 1940. Cada
sedução. Assim, devidamente resguardada e vez mais, a heroína infantil assume os ideais da
reprimida, a heroína terá, necessariamente, seu mulher adulta, define idéias e atitudes
futuro assegurado: o final feliz funciona como o revolucionárias (as mulheres passam a usar
selo de competência da proteção masculina. calças) e simboliza uma nova e crescente
No campo da oralidade, Orenstein salienta camada demográfica: a mulher solteira - no
os meios pelos quais os contos partilham os temas conto não há casamento, nem príncipe, nem
do canibalismo, da sexualidade, da defecação, irmãos.
da troca de identidades e do encontro na cama Para além desses, entretanto, surgem as
com um inimigo perigoso. Na maioria deles, escritoras das últimas décadas do século XX com
porém, a heroína logra escapar do lobo sem a o fim de recontar a história diferentemente dos
interferência direta dos homens. A autora executivos da Madison Avenue e de todos que a
desenvolve essa abordagem entrecruzando o exploraram como um romance água com
papel da mulher no folclore com as açúcar. Das escrituras dessas mulheres brotam
interpretações alternativas geradas pelo advento leituras desveladoras das peculiaridades de
da psicanálise, especialmente na visão de Eric gênero. Embora afirmem terem sido doutrinadas
Fromm e Bettelheim. Além disso, posiciona-se e moldadas na mentalidade de vítimas pelas
quanto ao interesse de alguns autores pelos histórias contadas a elas, Anne Sexton, Susan
contos de fadas como documentos históricos, fato Brownmiller, Anne Sharpe, Gwen Strauss, entre
que os leva à perda de uma compreensão mais outras, revertem, em seus textos, os papéis
ampla dos textos literários. Nesse sentido, por construídos pela cultura para homens e mulheres.
exemplo, Orenstein contrasta a passividade de Orenstein sumariza essa mudança:
“Chapeuzinho” nas versões escritas tradicionais “Somente agora, 300 anos depois que Perrault
e sua agentividade, na “História da vovó”. transformou ‘A história da vovó’ em seu ‘Lê petit
Por outro viés, pode-se afirmar que, embora chaperon rouge’, é que o feminismo impregnou
Orenstein dê a Bettelheim o devido destaque por o conto de fadas de um sentido de patriarcado
suas descobertas hermenêuticas do conto, não e nos deu o vocabulário e a estatística para ler
o poupa da crítica. Ela discorda frontalmente do ‘O Chapeuzinho Vermelho’ como uma parábola

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do estupro” (p. 152). Os contos que derivam da qual das múltiplas vidas de “Chapeuzinho
influência do movimento feminista, complementa Vermelho” nos identificamos. E, como a busca
a autora, acirram o abismo entre o modo como da identidade é um dos temas permanentes da
os homens escreveram o conto e o modo como literatura, não há motivo para surpresas ao
as mulheres o lêem. Na verdade, tal verificarmos que esse conto continua a satisfazer
descompasso cultural aponta para a ideologia o gosto pela aventura e o apelo para a
vigente no momento da produção do conto e o imaginação de adultos e crianças, mesmo hoje,
largo horizonte de expectativas de leitores/as no na era da tecnologia avançada e da pós-
processo recepcional contemporâneo. Tanto modernidade. De acordo com a autora “os
que, cada vez mais, as escritoras protestam pelo contos de fadas proporcionam uma janela
resgate da “Chapeuzinho” da barriga do lobo, singular nas nossas preocupações mais centrais,
para colocá-la em seu lugar e até mesmo na nosso sentido de identidade social e cultural,
sua pele. O caráter subversivo tanto da prosa quem pensamos que somos (ou devemos ser) – e
quanto da poesia de autoria feminina impresso como mudamos” (p. 8). Acrescento que os contos
nas reescrituras de “O Chapeuzinho Vermelho” de fadas também abrem espaço para
reverte-se em impulsos diferenciados que questionamentos que fomentam a ânsia de
provocam releituras do texto, abrindo-o para resistência à opressão de seus/as leitores/as.
aspectos inusitados da sexualidade e do prazer Certamente, a tradução de Little Red Riding
femininos. O novo jogo que se estabelece entre Hood Uncloaked para a língua portuguesa
as categorias narrativas e líricas (personagens, parece se impor, devido a alguns aspectos
narrador/a, tempo, espaço e eu-poético) fundamentais que atestam sua relevância. Por um
funciona tal qual uma tecnologia de gênero. lado, sua importância recai no trabalho de
Nessa perspectiva, a autora desenvolve o arqueologia literária, em que a autora recupera
assunto pelo viés do transvestismo, recuperando versões do conto desconhecidas por grande
detalhes picantes da história francesa nos séculos parte dos/as leitores/as. Por outro, apresenta uma
XVII e XVIII e do cinema nos tempos modernos. visão enriquecedora do conto, na medida em
Dos comentários acerca da troca de papéis que esta é tingida de elementos, conceitos e
sexuais – o lobo na pele da vovó e a Chapeuzinho códigos provenientes de diversas áreas do
empunhando um revólver (símbolo fálico) em conhecimento, tais como a psicanálise, a história
autodefesa –, a autora suscita a repercussão do e a mídia, entre outras. De acréscimo, a autora
conto em veículos que visam à pornografia. imprime ao tratamento dado ao conto uma
No epílogo, “Under the cloak” (“Sob o perspectiva histórica que o coloca em posição
capuz”), aos dez capítulos que compõem a obra, de destaque no âmbito da pesquisa acadêmica
a autora recorre à imagem reminiscente de sua e da cultura, pois mostra de que forma suas
infância, de uma única boneca que contém, em variadas feições, produzidas por escritores/as de
cada um dos seus lados, as personagens do diferentes períodos e origens, são capazes de
conto. Elas não conseguem, porém, aparecer moldar personalidades individuais e coletivas.
todas, fisicamente, como entidades separadas, Mas, acima de tudo, a obra de Catherine
ao mesmo tempo (conforme exige o enredo), e Orenstein se faz notar pela inclusão de versões
nisso reside a lição principal dos contos de fadas: feministas do conto que desafiam posturas
de alguma forma, a menina, o lobo e a vovó patriarcais, contribuindo, dessa forma, para
são, os três, um só e o mesmo. ampliar as fronteiras dos estudos de gênero.
Apesar da ausência de maior ênfase e
aprofundamento na interpretação de alguns dos Eliane T. A. Campello
textos literários trazidos à obra, Little Red Riding Fundação Universidade Federal
Hood Uncloaked revela-se como um reduto de do Rio Grande
manifestações culturais que nos leva a refletir com

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