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Elesa Vanessa Kaiser da Silva – Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Campus de Cascavel 1
Orientadora: Dra. Clarice Lottermann - Universidade Estadual do Oeste do Paraná ²
RESUMO: Os contos de fadas são obras clássicas que permaneceram vivas ao longo do tempo, seja
através de versões “originais”, adaptações ou releituras. Charles Perrault (1628-1703) foi um dos
principais escritores dos contos, pois, conforme Kupstas (1993), ele não só recolheu as narrativas e as
reescreveu, mas também teve a preocupação de apresentá-las como literatura para crianças. O presente
artigo apresenta um estudo do conto O Gato de Botas (Perrault, 1697) e da releitura É que ele sabe
(Kupstas, 1993), a fim de destacar um diálogo entre as obras e relacionar fatos narrados em contos
tradicionais e contemporâneos com a realidade socioeconômica. Para tanto, será utilizada, como base
teórica, sobretudo a obra O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa
de Robert Darnton (2011) e a obra Conto e Reconto: das fontes à invenção de Vera Teixeira de Aguiar
e Alice Áurea Penteado Martha (2012).
INTRODUÇÃO
O presente artigo apresenta um estudo referente aos contos de fadas, especificamente sobre O
Gato de Botas de Perrault, conto incluso na obra Os Contos de Mamãe Gansa. Para a leitura da versão
do conto tradicional, foi utilizada a obra da Editora L&PM POCKET com a tradução de Ivone C.
Benedetti (2012). O texto escolhido para comparação ao conto tradicional foi: É que ele sabe de
Marcia Kupstas, integrante do livro Sete faces dos contos de fadas (1993).
É objetivo desse estudo comparar o conto tradicional ao contemporâneo, verificando o
contexto histórico onde ambos se inserem. Desta forma, será focalizada a condição social dos
camponeses na Europa, no decorrer da Idade Média à Moderna, e o contexto brasileiro atual,
relacionando-os com os contos. Para embasamento teórico, serão utilizadas obras de Robert Darnton
(2011), Marcia Kupstas (1996), Fanny Abramovich (1997), Mariza Mendes (2000), Nelly Novaes
Coelho (2000), Ana Maria Machado (2002), entre outras.
Darnton cita o psicanalista Erich Fromm, que analisou o conto de fadas Chapeuzinho
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Vermelho destacando uma “linguagem simbólica” que, segundo Darnton, é inexistente no conto
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Professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná- UNIOESTE, câmpus de Marechal Cândido Rondon.
referido. Destaca, também, que Bruno Betelheim foi o último da série de psicanalistas que “tentaram a
sorte” com Chapeuzinho Vermelho (p. 25):
Levando em consideração as afirmações de Darnton, vale ressaltar que, para analisar os contos
de fadas, é preciso levar em conta que essas obras, além de símbolos e fantasia, trazem também
informações históricas, sociológicas e culturais. Portanto, para reconstituir a maneira como os
camponeses viam o mundo, nos tempos do Antigo Regime, é preciso começar perguntando o que
tinham em comum, que experiências partilhavam na vida cotidiana de suas aldeias (DARNTON, 2011,
p. 39). Sendo assim, é válido um estudo acerca da condição socioeconômica dos camponeses na
Europa, no decorrer da Idade Média à Moderna, relacionando-a com os contos de fadas.
Um estudo sobre as origens dos contos de fadas, leva, inevitavelmente, a um dos principais
influenciadores deste gênero. Mariza Mendes (2000) destaca que:
Sendo assim, em 1697 é publicada pela primeira vez a obra Os contos de mamãe gansa, onde
Perrault reúne contos populares de tradição oral, apresentando uma nova roupagem, a fim de divertir a
corte francesa do final do século XVII. Conforme Darnton (2011, p. 90), Perrault não tinha simpatia
alguma pelos camponeses e por sua cultura arcaica. No entanto, recolheu as histórias da tradição oral e
adaptou-as para o salão, com um ajuste de tom, para atender ao gosto de uma audiência sofisticada.
Sem fazer pregações nem dar lições de moral, os contos franceses demonstram que o mundo é
duro e perigoso. Embora, na maioria, não fossem endereçados às crianças, tendem a sugerir cautela.
(p. 78).
Na contemporaneidade, observa-se que os contos de fadas permanecem vivos, e releituras das
obras tradicionais entram em cena, sendo também enredo inspirador para inúmeros filmes e desenhos
animados. De acordo com Nelly Novaes Coelho (2000, p. 94), gerados em épocas diferentes, embora
sendo reescritos e readaptados através dos séculos, tais textos conservam, em sua visão de mundo, os
valores básicos do momento em que surgiram.
No livro Porque ler os clássicos universais desde cedo, Ana Maria Machado fala sobre a
importância do contato com os clássicos em geral, e destaca que é engraçado como as lembranças
infantis ficam tão nítidas e duráveis. “Talvez porque nas crianças a memória ainda está tão virgem e
disponível que as impressões deixadas nela ficam marcadas de forma muito funda. Talvez porque
sejam muito carregadas de emoção (p.10).” Nessa mesma obra a autora enfatiza a importância dos
contos de fadas:
É importante ressaltar a importância do trabalho com os contos de fadas, pois, de acordo com
Bethelheim (1980):
Além do mais, de acordo com Ninfa Parreiras (2009, p. 75) em Os contos de fadas continuam
para sempre: “os contos de fadas são narrativas estruturadas como um sonho: há uma linguagem
condensada, carregada de simbolismos. Cada personagem e cada tema nos remetem a outras questões.
Representam valores universais e atemporais.”
Da mesma maneira, vale destacar o trabalho com as releituras dos contos de fadas. De acordo
com Vera Maria Tietzmann Silva (2012, p. 30), “quando um escritor reconta histórias de procedência
estrangeira, traduzindo-as ou adaptando-as, tem a clara intenção de ampliar os horizontes de
conhecimento do leitor.” Nesse sentido, observa-se como é fundamental a leitura dos recontos.
Um diálogo entre O Gato de Botas (Perrault) e É que ele sabe (Marcia Kupstas)
O Gato de Botas é um dos contos publicados por Perrault em 1697. Marcia Kupstas (1993)
destaca que:
Tendo sido trapaceado por seus irmãos mais velhos, o filho de um moleiro recebe de herança
um gato. O rapaz fica decepcionado pois não sabia como garantir a sobrevivência contando apenas
com esse animal.
Ao contrário do que pensava, o gato apresenta-se como uma solução para todos os seus
problemas, seu dono deveria apenas dar-lhe um par de botas e prometer realizar tudo o que fosse
solicitado pelo bichano.
Mesmo não acreditando muito, o dono, que já tinha visto o gato inventar tantas
artimanhas para pegar ratos e camundongos, como quando se pendurava pelos pés
ou se escondia na farinha para fingir de morto, alimentou a esperança de ser
socorrido por ele naquela miséria. (PERRAULT, 2012, p. 48)
E assim sucede. Ao longo da história, o Gato de Botas trama planos para conseguir ao seu
dono um casamento com a filha do rei, garantindo-lhe assim um final feliz, típico dos contos de fadas.
A divisão da herança, ocorrida na história, recorda o que Darnton destacou sobre a condição
familiar dos camponeses, pois, “um novo filho, muitas vezes, significava a diferença entre pobreza e
indigência. Mesmo quando não sobrecarregava a despensa da família, podia trazer a penúria para a
próxima geração, aumentando o número de pretendentes, quando a terra dos pais fosse dividida entre
seus herdeiros.” (DARNTON, 2011, p.44).
O Gato de Botas é o exemplo de herói velhaco: suas características permitem associá-lo com a
realidade dos camponeses no contexto social da época. Devido à necessidade de utilizar-se da
esperteza para se manterem vivos, procuravam realizar trabalhos extras para garantir a sobrevivência.
No caso do conto, o gato vence o grande inimigo, o ogro, para garantir um castelo e as terras ao seu
dono, chamado Marquês de Carabás.
Conforme Darnton: “Os contos franceses não mostram nenhuma simpatia por idiotas da vida
ou pela estupidez sob qualquer forma, inclusive a dos bobos e ogros que não conseguem comer suas
vítimas imediatamente. (p. 82). As atitudes do Gato de Botas remetem à análise realizada por Darnton
(2011, p 43), quando ressalta que, no universo dos camponeses, diante das dificuldades, os “pequenos”
(petites gens) sobreviviam com a esperteza. Conseguiam trabalho como lavradores, teciam e fiavam
panos em suas cabanas, faziam trabalhos avulsos e saíam pela estrada, pegando serviços onde
pudessem encontrá-los.
Era a dura realidade dos camponeses: enquanto os ricos ficavam mais ricos, os pequenos
lutavam pela sobrevivência, assim, “Comer ou não comer, eis a questão com que os camponeses se
defrontam, em seu folclore, bem como em seu cotidiano” (DARNTON, 2011, p. 50)
Assim, sempre que alguém procura, por trás de Perrault, as versões camponesas de
Mamãe Ganso, encontra elementos de realismo - não narrativas fotográficas sobre a
vida no pátio da estrebaria (os camponeses não tinham na realidade, tantos filhos
quanto buracos de uma peneira, e não os comiam), mas um quadro que corresponde
a tudo que os historiadores sociais conseguiram reconstituir, a partir do material
existente nos arquivos. O quadro é cabível, e essa adequação é uma decorrência
lógica. Mostrando como se vivia, terre à terre, na aldeia e na estrada, os contos
ajudavam a orientar os camponeses. Mapeavam os caminhos do mundo e
demonstravam a loucura de se esperar qualquer coisa, além de crueldade, de uma
ordem social e cruel. (DARNTON, 2011, p. 59)
Já no livro Sete faces do conto de fadas (1993), o conto É que ele sabe, de Marcia Kupstas,
apresenta um “gato” malandro, representado pelo personagem Xanim (o narrador). É uma versão
moderna, jogando com personagens pouco honestos. Nessa história, quem consegue ser mais
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No texto de Kupstas, a utilização de gírias é constante: “chocô”, “maré de azar”, “a casa era
um desbunde” entre outras. Uma maneira de chamar a atenção aos leitores jovens.
Marcelo, um dos personagens, assim como o filho mais novo do conto O Gato de Botas, foi
enganado por seus irmãos em relação à herança recebida. Nesse conto, ao contrário da história
tradicional, ele não recebe um gato, no entanto, acabou restando para si apenas um par de botas e a
roupa do corpo.
A história dele era mais ou menos assim: ele morou numa cidadezinha do sul, num
sítio. A mãe morreu fazia tempo, ele e dois irmãos dividiram o trabalho com o pai.
Morreu o velho. Os dois irmãos, malandrões que só vendo, fizeram o branquelo (que
se chamava Marcelo; pelo menos, rimava o “elo”) assinar uns papéis, e o coitado
ficou sem a terra, sem dinheiro, só com as botas e uma roupa no corpo. Aí, vai ver
com medo de o bobão perceber a marmelada, os maninhos dele arrumaram uma
graninha pro coitado e compraram uma passagem de ônibus pra beeeeeem longe –
Macajá. E daí Marcelo-branquelo veio parar nessa cidade, desanimadão e sem saber
o que fazer da vida dele. (KUPSTAS, 1993, p. 104)
Mas isso eu recusei. Era felicidade demais para um malandro como eu. Ele que fosse
feliz com a ruiva e os quarenta mil dólares, porque dia seguinte peguei a estrada. No
cano da bota, dez mil dólares me traziam bastante felicidade. Só esperava que tudo
corresse bem: que o sogro do Marcelo não botasse no jogo todos aqueles dólares,
que o Marcelo nunca topasse com ninguém da família Fernandes ou que o Alfredão
não descobrisse a trapaça. (KUPSTAS, 1993, p. 113)
Para encerrar, Xanim diz que se nenhuma dessas coisas acontecesse, Marcelo se casaria com
Cidinha e seriam felizes para sempre. “Igual num conto de fadas” (p. 113). É possível, portanto,
aproximar as atitudes de Xanim às atitudes do Gato de Botas, pois ambos são velhacos. Com relação a
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este aspecto, pode-se recorrer às palavras de Darnton (2011), que ressalta que os personagens
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–Por uns tempos. Meu negócio é dado. – Ele fez cara de desentendido, puxei os
dados viciados do bolso. – Jogo. Vou viajando, correndo mundo. Quando topo com
uns trouxas, depeno eles no jogo. Mas andei encrespando com um valentão em
salvador e tive de me mandar. Vim cair em Macajá só com a roupa do corpo.
(KUPSTAS, 1993, p. 103)
O tal Fogaça era filho de um galego pão-duro e trabalhador, que juntou grana a beça,
carros, fábrica de pescado, casarão... aí morreu. Fogaça era filho único. Mal ficou
com a grana, se pôs a torrar tudo no jogo. Agora, ainda era empresário e dono de
casarão, mas grana mesmo, andava curta. Isso era ótimo, porque ajudava no meu
plano. Se há alguém que um jogador respeita é bookmaker. Se, em vez de Alfredão,
quem se tornasse o bam-bam-bam da cidade fosse o Marcelo, meu amigo ainda
terminava bem. (KUPSTAS, 1993, p. 106)
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Disponível em: http://www.vagalume.com.br/bezerra-da-silva/malandro-e-malandro-e-mane-e-mane-
letras.html#ixzz2YPCm2SaQ
No caso do personagem Xanim, com sua malandragem leva vantagem sobre Alfredão,
um dos maiores jogadores da cidade que apostavam no jogo do bicho. “Eu tava há pouco
tempo em Macajá mas sabia das bocas. Quem é malandro, logo fareja a malandragem. Tinha
de acertar tudo até o anoitecer.” (Kupstas, 1993, p. 105).
Percebe-se, portanto, que tanto no conto tradicional quanto no conto contemporâneo, a astúcia
é um dos aspectos valorizados quando se trata da sobrevivência em contextos de miséria e violência,
nos quais os pequenos precisam usar de muita esperteza.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura do texto Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso
(2011) contribuiu para destacar que os contos de fadas tradicionais vão além da fantasia abordada
principalmente por estudos psicanalíticos, pois Darnton enfatiza que, nos contos de fadas, estão
presentes elementos de realismo e não de fantasia, apresentando assim, uma estratégia de
sobrevivência, uma forma de lidar com as dificuldades de uma sociedade dura. Além do mais,
percebe-se de como era constante, na realidade dos camponeses da França do Antigo Regime, o sonho
pela busca de riqueza, onde a felicidade estava em conseguir comida e condições melhores.
Comparando o conto tradicional e a releitura É que ele sabe, é possível destacar que na
literatura contemporânea estão presentes condições e perigos similares dessa realidade abordada já nos
contos clássicos. Portanto, vale ressaltar que os contos tradicionais não trazem apenas fantasias, mas
sociologia. O personagem Gato de Botas permanece, com outra roupagem, porém com a mesma
astúcia, coragem e esperteza, retratando a condição social contemporânea.
REFERÊNCIAS
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