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O GATO DE BOTAS: realidade socioeconômica no conto tradicional e no reconto

contemporâneo

Elesa Vanessa Kaiser da Silva – Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Campus de Cascavel 1
Orientadora: Dra. Clarice Lottermann - Universidade Estadual do Oeste do Paraná ²

RESUMO: Os contos de fadas são obras clássicas que permaneceram vivas ao longo do tempo, seja
através de versões “originais”, adaptações ou releituras. Charles Perrault (1628-1703) foi um dos
principais escritores dos contos, pois, conforme Kupstas (1993), ele não só recolheu as narrativas e as
reescreveu, mas também teve a preocupação de apresentá-las como literatura para crianças. O presente
artigo apresenta um estudo do conto O Gato de Botas (Perrault, 1697) e da releitura É que ele sabe
(Kupstas, 1993), a fim de destacar um diálogo entre as obras e relacionar fatos narrados em contos
tradicionais e contemporâneos com a realidade socioeconômica. Para tanto, será utilizada, como base
teórica, sobretudo a obra O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa
de Robert Darnton (2011) e a obra Conto e Reconto: das fontes à invenção de Vera Teixeira de Aguiar
e Alice Áurea Penteado Martha (2012).

PALAVRAS-CHAVE: Contos de fadas, O Gato de Botas, É que ele sabe.

INTRODUÇÃO
O presente artigo apresenta um estudo referente aos contos de fadas, especificamente sobre O
Gato de Botas de Perrault, conto incluso na obra Os Contos de Mamãe Gansa. Para a leitura da versão
do conto tradicional, foi utilizada a obra da Editora L&PM POCKET com a tradução de Ivone C.
Benedetti (2012). O texto escolhido para comparação ao conto tradicional foi: É que ele sabe de
Marcia Kupstas, integrante do livro Sete faces dos contos de fadas (1993).
É objetivo desse estudo comparar o conto tradicional ao contemporâneo, verificando o
contexto histórico onde ambos se inserem. Desta forma, será focalizada a condição social dos
camponeses na Europa, no decorrer da Idade Média à Moderna, e o contexto brasileiro atual,
relacionando-os com os contos. Para embasamento teórico, serão utilizadas obras de Robert Darnton
(2011), Marcia Kupstas (1996), Fanny Abramovich (1997), Mariza Mendes (2000), Nelly Novaes
Coelho (2000), Ana Maria Machado (2002), entre outras.

CONTOS DE FADAS TRADICIONAIS E RELEITURAS CONTEMPORÂNEAS


Os contos de fadas, ao longo do tempo, foram conquistando leitores, seja pelo estilo do enredo
ou pela vivência de experiências através da leitura. No início, eram destinados aos adultos; atualmente,
não só são motivos de estudos pela contribuição às crianças, como também na maioria das vezes são
as histórias escolhidas para serem contadas aos pequenos, inclusive na hora de deitar.
Alguns psicanalistas recorrem aos contos de fadas tradicionais para analisar a simbologia
presente nos mesmos, porém deve-se levar em conta que os contos de fadas são carregados de
aspectos de ordem histórica e traduzem particularidades de determinadas sociedades, em determinados
contextos. Robert Darnton em Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso
(2011) critica a análise de contos de fadas realizada por alguns dos principais psicanalistas. Conforme
o escritor:

Como poderia alguém entender um texto de maneira tão equivocada? A dificuldade


não decorre do dogmatismo profissional- porque os psicanalistas não precisam ser
mais rígidos que os poetas, em sua manipulação de símbolos- mas, principalmente,
da cegueira diante da dimensão histórica dos contos populares. (DARNTON, 2011,
p. 23).

Darnton cita o psicanalista Erich Fromm, que analisou o conto de fadas Chapeuzinho
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Vermelho destacando uma “linguagem simbólica” que, segundo Darnton, é inexistente no conto
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Professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná- UNIOESTE, câmpus de Marechal Cândido Rondon.
referido. Destaca, também, que Bruno Betelheim foi o último da série de psicanalistas que “tentaram a
sorte” com Chapeuzinho Vermelho (p. 25):

A generosa visão do simbolismo que tem Bettelheim fornece uma interpretação


menos mecanicista do conto que a resultante do conceito de código secreto que tem
Fromm, mas também decorre de algumas crenças não questionadas quanto ao texto.
Embora cite comentaristas de Grimm e Perrault em número suficiente para indicar
alguma consciência do folclore como disciplina universitária, Bettelheim lê
“Chapeuzinho Vermelho” e outros contos como se não tivessem história alguma [...]
(DARNTON, 2011, p. 26)

Levando em consideração as afirmações de Darnton, vale ressaltar que, para analisar os contos
de fadas, é preciso levar em conta que essas obras, além de símbolos e fantasia, trazem também
informações históricas, sociológicas e culturais. Portanto, para reconstituir a maneira como os
camponeses viam o mundo, nos tempos do Antigo Regime, é preciso começar perguntando o que
tinham em comum, que experiências partilhavam na vida cotidiana de suas aldeias (DARNTON, 2011,
p. 39). Sendo assim, é válido um estudo acerca da condição socioeconômica dos camponeses na
Europa, no decorrer da Idade Média à Moderna, relacionando-a com os contos de fadas.
Um estudo sobre as origens dos contos de fadas, leva, inevitavelmente, a um dos principais
influenciadores deste gênero. Mariza Mendes (2000) destaca que:

Há três séculos, na França do Antigo Regime, em pleno reinado de Luís XIV, um


pequeno livro contendo oito narrativas populares foi dedicado a uma sobrinha do rei
e fez tanto sucesso, que hoje todos o consideram o iniciador do que se conhece como
literatura infantil: o acervo de obras literárias dedicadas a crianças. Numa época em
que as histórias do povo só eram publicadas em livretos de cordel, esse livro sai das
mãos de Claude Barbin, editor das obras literárias dos acadêmicos. (MENDES,
2000, p. 63)

Sendo assim, em 1697 é publicada pela primeira vez a obra Os contos de mamãe gansa, onde
Perrault reúne contos populares de tradição oral, apresentando uma nova roupagem, a fim de divertir a
corte francesa do final do século XVII. Conforme Darnton (2011, p. 90), Perrault não tinha simpatia
alguma pelos camponeses e por sua cultura arcaica. No entanto, recolheu as histórias da tradição oral e
adaptou-as para o salão, com um ajuste de tom, para atender ao gosto de uma audiência sofisticada.
Sem fazer pregações nem dar lições de moral, os contos franceses demonstram que o mundo é
duro e perigoso. Embora, na maioria, não fossem endereçados às crianças, tendem a sugerir cautela.
(p. 78).
Na contemporaneidade, observa-se que os contos de fadas permanecem vivos, e releituras das
obras tradicionais entram em cena, sendo também enredo inspirador para inúmeros filmes e desenhos
animados. De acordo com Nelly Novaes Coelho (2000, p. 94), gerados em épocas diferentes, embora
sendo reescritos e readaptados através dos séculos, tais textos conservam, em sua visão de mundo, os
valores básicos do momento em que surgiram.
No livro Porque ler os clássicos universais desde cedo, Ana Maria Machado fala sobre a
importância do contato com os clássicos em geral, e destaca que é engraçado como as lembranças
infantis ficam tão nítidas e duráveis. “Talvez porque nas crianças a memória ainda está tão virgem e
disponível que as impressões deixadas nela ficam marcadas de forma muito funda. Talvez porque
sejam muito carregadas de emoção (p.10).” Nessa mesma obra a autora enfatiza a importância dos
contos de fadas:

Entendidas e aceitas em sua linguagem simbólica, essas histórias de fadas


tradicionais se revelam um precioso acervo de experiências emocionais, de contatos
com vidas diferentes e de reiteração da confiança em si mesmo. No final o
pequenino se dá bem e o fraco vence. A criança pode ficar tranquila - com ela há de
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acontecer o mesmo. Um depois do outro, esses contos vão garantindo que o


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processo de amadurecimento existe, que é possível ter esperança em dias melhores e


confiar no futuro. (MACHADO, 2002, p. 80)
Esse mesmo tema é abordado por Vera Teixeira de Aguiar (1997), que destaca sobre as
contribuições que os contos de fadas oferecem à vida de quem mantêm contato com essas histórias
desde a infância:

Os contos de fadas mantêm uma estrutura fixa. Partem de um problema vinculado a


realidade (como estado de penúria, carência afetiva, conflito entre mãe e filho), que
desequilibra a tranquilidade inicial. O desenvolvimento é a uma busca de soluções,
no plano da fantasia, com a introdução de elementos mágicos (fadas, bruxas, anões,
duendes, gigantes etc.). A restauração da ordem acontece no desfecho da narrativa,
quando há uma volta ao real. Valendo-se desta estrutura, os autores, de um lado,
demonstram que aceitam o potencial imaginativo infantil e, de outro, transmitem à
criança a idéia de que ela não pode viver indefinidamente no mundo da fantasia,
sendo necessário assumir o real, no momento certo. (AGUIAR apud
ABRAMOVICH, 1997, p. 120)

É importante ressaltar a importância do trabalho com os contos de fadas, pois, de acordo com
Bethelheim (1980):

Enquanto diverte a criança, o conto de fadas a esclarece sobre si mesma, e favorece


o desenvolvimento de sua personalidade. Oferece significado em tantos níveis
diferentes, e enriquece a existência da criança de tantos modos que nenhum livro
pode fazer justiça à multidão e diversidade de contribuições que esses contos dão à
vida da criança. (BETTELHEIM, 1980, p. 20).

Além do mais, de acordo com Ninfa Parreiras (2009, p. 75) em Os contos de fadas continuam
para sempre: “os contos de fadas são narrativas estruturadas como um sonho: há uma linguagem
condensada, carregada de simbolismos. Cada personagem e cada tema nos remetem a outras questões.
Representam valores universais e atemporais.”
Da mesma maneira, vale destacar o trabalho com as releituras dos contos de fadas. De acordo
com Vera Maria Tietzmann Silva (2012, p. 30), “quando um escritor reconta histórias de procedência
estrangeira, traduzindo-as ou adaptando-as, tem a clara intenção de ampliar os horizontes de
conhecimento do leitor.” Nesse sentido, observa-se como é fundamental a leitura dos recontos.

Um diálogo entre O Gato de Botas (Perrault) e É que ele sabe (Marcia Kupstas)

O Gato de Botas é um dos contos publicados por Perrault em 1697. Marcia Kupstas (1993)
destaca que:

A moralidade de Perrault é clara, principalmente se repararmos em sua época: valem


mais a esperteza e o trabalho do que a herança. Enfim: vale mais o “espírito
arrojado” da burguesia do que a herança acomodada da nobreza. É um incentivo
importante à juventude, numa época em que a França discutia os privilégios de uma
nobreza que pouco produzia. (KUPSTAS, 1993, p. 101)

O personagem Gato de Botas é destaque por sua esperteza, artimanha e malandragem.


Apresenta estratégias para vencer o inimigo, sendo um reflexo do que se buscava no contexto
socioeconômico dos camponeses europeus que viviam no período denominado Antigo Regime, no
qual vivenciavam situações difíceis, e seus maiores desejos eram por comida e sobrevivência.
Rita Félix Fortes (1996) fala sobre os atributos dados aos personagens masculinos nos contos
de fadas:

[...] quando as estórias se organizam em torno das personagens masculinas, os


principais atributos serão, sempre, a esperteza, a sagacidade, ou as virtudes morais,
enquanto a aparência física é um elemento secundário, dispensável. Em oposição à
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aparência feminina, enquanto índice de virtude ou deformidade moral dos contos


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Cinderela e As Fadas, contrapõem-se os personagens dos contos O Pequeno


Polegar, Riquet, O Topetudo, e O Gato de Botas, nos quais a esperteza, a
inteligência e a integridade são valores que podem reverter a inferioridade social e
econômica daqueles que nasceram em condições de desigualdade física ou
econômica, quando comparados a seus pares. (FORTES, 1996, p. 23)

Tendo sido trapaceado por seus irmãos mais velhos, o filho de um moleiro recebe de herança
um gato. O rapaz fica decepcionado pois não sabia como garantir a sobrevivência contando apenas
com esse animal.
Ao contrário do que pensava, o gato apresenta-se como uma solução para todos os seus
problemas, seu dono deveria apenas dar-lhe um par de botas e prometer realizar tudo o que fosse
solicitado pelo bichano.

Mesmo não acreditando muito, o dono, que já tinha visto o gato inventar tantas
artimanhas para pegar ratos e camundongos, como quando se pendurava pelos pés
ou se escondia na farinha para fingir de morto, alimentou a esperança de ser
socorrido por ele naquela miséria. (PERRAULT, 2012, p. 48)

E assim sucede. Ao longo da história, o Gato de Botas trama planos para conseguir ao seu
dono um casamento com a filha do rei, garantindo-lhe assim um final feliz, típico dos contos de fadas.
A divisão da herança, ocorrida na história, recorda o que Darnton destacou sobre a condição
familiar dos camponeses, pois, “um novo filho, muitas vezes, significava a diferença entre pobreza e
indigência. Mesmo quando não sobrecarregava a despensa da família, podia trazer a penúria para a
próxima geração, aumentando o número de pretendentes, quando a terra dos pais fosse dividida entre
seus herdeiros.” (DARNTON, 2011, p.44).
O Gato de Botas é o exemplo de herói velhaco: suas características permitem associá-lo com a
realidade dos camponeses no contexto social da época. Devido à necessidade de utilizar-se da
esperteza para se manterem vivos, procuravam realizar trabalhos extras para garantir a sobrevivência.
No caso do conto, o gato vence o grande inimigo, o ogro, para garantir um castelo e as terras ao seu
dono, chamado Marquês de Carabás.
Conforme Darnton: “Os contos franceses não mostram nenhuma simpatia por idiotas da vida
ou pela estupidez sob qualquer forma, inclusive a dos bobos e ogros que não conseguem comer suas
vítimas imediatamente. (p. 82). As atitudes do Gato de Botas remetem à análise realizada por Darnton
(2011, p 43), quando ressalta que, no universo dos camponeses, diante das dificuldades, os “pequenos”
(petites gens) sobreviviam com a esperteza. Conseguiam trabalho como lavradores, teciam e fiavam
panos em suas cabanas, faziam trabalhos avulsos e saíam pela estrada, pegando serviços onde
pudessem encontrá-los.
Era a dura realidade dos camponeses: enquanto os ricos ficavam mais ricos, os pequenos
lutavam pela sobrevivência, assim, “Comer ou não comer, eis a questão com que os camponeses se
defrontam, em seu folclore, bem como em seu cotidiano” (DARNTON, 2011, p. 50)

Assim, sempre que alguém procura, por trás de Perrault, as versões camponesas de
Mamãe Ganso, encontra elementos de realismo - não narrativas fotográficas sobre a
vida no pátio da estrebaria (os camponeses não tinham na realidade, tantos filhos
quanto buracos de uma peneira, e não os comiam), mas um quadro que corresponde
a tudo que os historiadores sociais conseguiram reconstituir, a partir do material
existente nos arquivos. O quadro é cabível, e essa adequação é uma decorrência
lógica. Mostrando como se vivia, terre à terre, na aldeia e na estrada, os contos
ajudavam a orientar os camponeses. Mapeavam os caminhos do mundo e
demonstravam a loucura de se esperar qualquer coisa, além de crueldade, de uma
ordem social e cruel. (DARNTON, 2011, p. 59)

Já no livro Sete faces do conto de fadas (1993), o conto É que ele sabe, de Marcia Kupstas,
apresenta um “gato” malandro, representado pelo personagem Xanim (o narrador). É uma versão
moderna, jogando com personagens pouco honestos. Nessa história, quem consegue ser mais
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malandro vence a disputa, ou seja, garante o final feliz.


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No texto de Kupstas, a utilização de gírias é constante: “chocô”, “maré de azar”, “a casa era
um desbunde” entre outras. Uma maneira de chamar a atenção aos leitores jovens.
Marcelo, um dos personagens, assim como o filho mais novo do conto O Gato de Botas, foi
enganado por seus irmãos em relação à herança recebida. Nesse conto, ao contrário da história
tradicional, ele não recebe um gato, no entanto, acabou restando para si apenas um par de botas e a
roupa do corpo.

A história dele era mais ou menos assim: ele morou numa cidadezinha do sul, num
sítio. A mãe morreu fazia tempo, ele e dois irmãos dividiram o trabalho com o pai.
Morreu o velho. Os dois irmãos, malandrões que só vendo, fizeram o branquelo (que
se chamava Marcelo; pelo menos, rimava o “elo”) assinar uns papéis, e o coitado
ficou sem a terra, sem dinheiro, só com as botas e uma roupa no corpo. Aí, vai ver
com medo de o bobão perceber a marmelada, os maninhos dele arrumaram uma
graninha pro coitado e compraram uma passagem de ônibus pra beeeeeem longe –
Macajá. E daí Marcelo-branquelo veio parar nessa cidade, desanimadão e sem saber
o que fazer da vida dele. (KUPSTAS, 1993, p. 104)

Os personagens principais são um reflexo da sociedade contemporânea, sendo possível


compará-los com moradores de rua, que não possuem condições dignas para sobrevivência: “- Pronto
Xanim. Agora sim, to tão ferrado como você... na rua, sem grana nem emprego, sem nada.”
(KUPSTAS, 1993, p. 105). Xanim, o gato de botas da versão contemporânea, convence o rapaz de que
será sua salvação. Para tanto, apenas terá que fazer tudo que ele mandar, tal como no conto tradicional.
Inicialmente, solicita o par de botas. Depois os únicos trocados que restam, justificando que são para a
condução. No decorrer da história, Xanim utiliza sua esperteza para elaborar um plano atrás de outro,
tudo para conquistar o que havia prometido para seu dono, uma namorada, além do mais, prometeu
que seria ruiva e rica, conforme era o gosto de seu amigo. Marcelo mal acreditou, mas concordou em
fazer tudo o que seu novo amigo pedia.
A história É que ele sabe não apresenta um rei, mas neste caso, o personagem que detém o
poder é representado por Fogaça, que é pai de Cidinha, uma moça ruiva. Dono de um casarão e um
dos principais jogadores da cidade, Fogaça acreditou na conversa de Xanim, quando este pedia
socorro, após inventar que Marcelo fora assaltado. Xanim inventa que ladrões levaram toda a roupa de
Marcelo e, por isso, ele se escondera no mar, por estar espantado pelo acontecido. Novamente tudo
ocorria como o planejado. Fogaça prestou socorro, levando Marcelo para sua casa. “O Fogaça
arrumou uma beca legal pro Marcelo, ele ficou que parecia um príncipe. O jantar foi uma delícia, e a
Cidinha se derretia tanto per cima do Marcelo que até dava bandeira.” (p. 108)
O Gato de Botas contemporâneo elabora uma estratégia para conseguir dinheiro e provar para
Fogaça que Marcelo era rico. Depois, ele trapaceia Alfredão, o convence que sabe de um segredo.
Chega a inventar que Marcelo estava em Macajá a fim de matá-lo, a pedido da família de Maurícia
(antiga namorada de Alfredão). Com essa malandragem, acaba convencendo o homem a lhe entregar
uma grande quantia em dinheiro para compensar seu “patrão” de não matá-lo.
Ao voltar ao casarão, Xanim mostra o dinheiro para Marcelo, este nem imagina como seu
amigo havia conseguido aquilo, mas não podia sequer perguntar, pois Fogaça e Cidinha poderiam
desconfiar. Marcelo acabou pedindo Cidinha em casamento, todos ficaram felizes, inclusive
convidaram Xanim para ser o padrinho.

Mas isso eu recusei. Era felicidade demais para um malandro como eu. Ele que fosse
feliz com a ruiva e os quarenta mil dólares, porque dia seguinte peguei a estrada. No
cano da bota, dez mil dólares me traziam bastante felicidade. Só esperava que tudo
corresse bem: que o sogro do Marcelo não botasse no jogo todos aqueles dólares,
que o Marcelo nunca topasse com ninguém da família Fernandes ou que o Alfredão
não descobrisse a trapaça. (KUPSTAS, 1993, p. 113)

Para encerrar, Xanim diz que se nenhuma dessas coisas acontecesse, Marcelo se casaria com
Cidinha e seriam felizes para sempre. “Igual num conto de fadas” (p. 113). É possível, portanto,
aproximar as atitudes de Xanim às atitudes do Gato de Botas, pois ambos são velhacos. Com relação a
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este aspecto, pode-se recorrer às palavras de Darnton (2011), que ressalta que os personagens
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velhacos, dos contos de fadas, possuem em comum a astúcia:


Esses personagens têm em comum não apenas a astúcia, mas também a fragilidade,
e seus adversários se distinguem pela força, bem como pela estupidez. A velhacaria
sempre joga o pequeno contra o grande, o pobre contra o rico, o desprivilegiado
contra o poderoso. Estruturando as histórias dessa maneira, e sem explicar o
comentário social, a tradição oral proporcionou aos camponeses uma estratégia para
lidar com seus inimigos, nos tempos do Antigo Regime. Mais uma vez, é preciso
enfatizar que nada havia de novo ou de incomum no tema dos fracos vencendo os
fortes, pela esperteza. (DARNTON, 2011, p. 83)

Na literatura da contemporaneidade, a velhacaria também está presente, tendo os personagens


uma nova roupagem, porém, vale ressaltar o que Darnton destaca: “O mundo é composto de tolos e
velhacos, dizem: melhor ser velhaco do que tolo.” (p. 93)
Usando de esperteza, Xanim costumava “enrolar” outras pessoas através de jogo. Quando
Marcelo interrogou se ele dormia na rua, respondeu:

–Por uns tempos. Meu negócio é dado. – Ele fez cara de desentendido, puxei os
dados viciados do bolso. – Jogo. Vou viajando, correndo mundo. Quando topo com
uns trouxas, depeno eles no jogo. Mas andei encrespando com um valentão em
salvador e tive de me mandar. Vim cair em Macajá só com a roupa do corpo.
(KUPSTAS, 1993, p. 103)

Levando em consideração a presença do jogo como forma de conquistar vantagem sobre os


outros, é possível associar tal aspecto ao contexto social brasileiro, pois muitas pessoas utilizam desse
recurso para manter-se financeiramente e outros utilizam os recursos que tem e acabam perdendo tudo
em apostas. No conto É que ele sabe, Kupstas utiliza três de seus personagens para abordar esse tema,
um deles é o Fogaça. Xanim aproveitou da situação para aplicar seus planos:

O tal Fogaça era filho de um galego pão-duro e trabalhador, que juntou grana a beça,
carros, fábrica de pescado, casarão... aí morreu. Fogaça era filho único. Mal ficou
com a grana, se pôs a torrar tudo no jogo. Agora, ainda era empresário e dono de
casarão, mas grana mesmo, andava curta. Isso era ótimo, porque ajudava no meu
plano. Se há alguém que um jogador respeita é bookmaker. Se, em vez de Alfredão,
quem se tornasse o bam-bam-bam da cidade fosse o Marcelo, meu amigo ainda
terminava bem. (KUPSTAS, 1993, p. 106)

No contexto brasileiro a malandragem caracteriza-se no “jeitinho brasileiro”, que é uma


expressão muito utilizada pelas pessoas para citar a capacidade de resolver problemas ou situações do
dia-a-dia, utilizando-se do que se pode chamar “jeitinho”.
Pode-se estabelecer uma relação entre esses dois contos e uma música: Malandro é Malandro
e Mané é Mané de Bezerra da Silva2, cuja letra apresenta-se como um reflexo do contexto brasileiro,
características das pessoas que costumam tirar vantagem sobre os outros:

E malandro é malandro e mané é mané


Podes crer que é
E malandro é malandro e mané é mané
Podes crer que é

Malandro é o cara que sabe das coisas


Malandro é aquele que sabe o que quer
Malandro é o cara que ta com dinheiro
E não se compara com um Zé Mané
Malandro de fato é um cara maneiro
E não se amarra em uma só mulher
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Disponível em: http://www.vagalume.com.br/bezerra-da-silva/malandro-e-malandro-e-mane-e-mane-
letras.html#ixzz2YPCm2SaQ
No caso do personagem Xanim, com sua malandragem leva vantagem sobre Alfredão,
um dos maiores jogadores da cidade que apostavam no jogo do bicho. “Eu tava há pouco
tempo em Macajá mas sabia das bocas. Quem é malandro, logo fareja a malandragem. Tinha
de acertar tudo até o anoitecer.” (Kupstas, 1993, p. 105).
Percebe-se, portanto, que tanto no conto tradicional quanto no conto contemporâneo, a astúcia
é um dos aspectos valorizados quando se trata da sobrevivência em contextos de miséria e violência,
nos quais os pequenos precisam usar de muita esperteza.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura do texto Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso
(2011) contribuiu para destacar que os contos de fadas tradicionais vão além da fantasia abordada
principalmente por estudos psicanalíticos, pois Darnton enfatiza que, nos contos de fadas, estão
presentes elementos de realismo e não de fantasia, apresentando assim, uma estratégia de
sobrevivência, uma forma de lidar com as dificuldades de uma sociedade dura. Além do mais,
percebe-se de como era constante, na realidade dos camponeses da França do Antigo Regime, o sonho
pela busca de riqueza, onde a felicidade estava em conseguir comida e condições melhores.
Comparando o conto tradicional e a releitura É que ele sabe, é possível destacar que na
literatura contemporânea estão presentes condições e perigos similares dessa realidade abordada já nos
contos clássicos. Portanto, vale ressaltar que os contos tradicionais não trazem apenas fantasias, mas
sociologia. O personagem Gato de Botas permanece, com outra roupagem, porém com a mesma
astúcia, coragem e esperteza, retratando a condição social contemporânea.

REFERÊNCIAS
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< http://www.vagalume.com.br/bezerra-da-silva/malandro-e-malandro-e-mane-e-mane-
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Penteado. (Orgs.) Conto e Reconto: das fontes à invenção. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.

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