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Kiki Strike vol.

2 – A Tumba da Imperatriz

Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz


Kirsten Miller

"Se Harry Potter vivesse em Nova York, ficaria loucamente apaixonado por
Kiki Strike." Vanity Fair.

Contra-capa:

Kiki Strike e as Irregulares salvaram o mundo ontem à noite.


Talvez você queira agradecer.
Bem-vindos ao mundo de Kiki Strike

www.galerarecord.com.br

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Abas:

A mãe de Ananka está determinada a mandá-la para um colégio interno. As


notas da menina estão baixas, ela dorme durante as aulas e as reclamações
da diretora sobre suas faltas viraram rotina. É claro que ela não sabe que,
na verdade, Ananka passa as noites resolvendo mistérios e investigando o
submundo de Nova York. Se soubesse que a filha é responsável pela
proteção de uma cidade secreta no subsolo de Manhattan, ela mudaria de
idéia... ou não?
.
Infelizmente Ananka não tem tempo nem de tentar convencer a mãe. Não
quando um fugitivo muito interessante pode ter roubado o mapa secreto da
Cidade das Sombras (e ele estasva sob sua proteção) e segredos demais
ameaçam a existência das Irregulares.
.
Para completar, a vida de Kiki está em perigo, Betty acredita ter encontrado
o amor - pena que com a pessoa completamente errada - e Oona... bem,
Oona é a mais encrencada de todas! Das ruas de Chinatown até a Quinta
Avenida, as Irregulares colecionam confusões: pais mafiosos, esquilos
gigantes e até uma múmia chinesa que estava destinada a repousar
tranquilamente em um museu estão na mira das garotas.

Kirsten Miller
vive em Nova York, onde passa o dia bebendo café, explorando a cidade e
escrevendo.

Para SD, cujos segredos são a minha inspiração.

Prólogo

A Imperatriz traidora

Os cochichos começaram no dia em que ela chegou a cavalo aos portões do


palácio do imperador. Eles sabiam que sua longa viagem começara para
além da muralha que era construída a oeste. A princesa de Xiongnu, a tribo
bárbara que travava uma batalha interminável com a China, viera se casar
com o filho do imperador. Quando a viram, os membros da corte
concordaram, pelo menos a maioria deles. A paz fora comprada a um preço
alto demais.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Ninguém se atrevia a questionar a beleza da princesa, então zombavam de


suas bochechas redondas, rosadas pelos ventos de sua terra natal. Eles não
lhe negariam sua nobreza, mas desdenhavam de uma mulher que podia
atirar uma flecha mais retilínea a uma distância maior do que faria qualquer
homem. Até os criados do palácio encontraram algo de que debochar no
fato de que sua serva fiel, uma amazona bárbara malnascida, sempre podia
ser vista ao lado dela.

O filho do imperador desconsiderava essas fofocas. Adorava a noiva rebelde


e a cobria de seda, jade e ouro. Ela foi vestida em mantos pesados que a
impossibilitaram de cavalgar e desfilou diante da corte como uma criatura
exótica do zoológico do imperador. Com o tempo, começou a parecer um
pouco uma imperatriz chinesa. Mas as mulheres encarregadas de lhe
ensinar as virtudes femininas da humildade, da subserviência e da
obediência sabiam que a menina jamais seria domada. Seria mais fácil
ensinar um tigre a andar na pontinha das patas.

À noite, a princesa só sonhava com sua terra - de desertos, prados e


montanhas que ficavam longe do império que um dia ela governaria. Por
fim, desesperada, ela trocou seus mantos pela túnica de uma camponesa e
fugiu dos muros do palácio. Ela e sua criada foram livres por três gloriosos
dias, até serem capturadas por soldados ao atravessarem o rio Amarelo.

O velho imperador era um homem sensato e havia muito sabia que a


menina jamais seria imperatriz. Despachou criados para entregarem uma
refeição temperada com veneno, para que seu corpo continuasse imaculado
e seu assassinato fosse encoberto do filho. Mas a princesa se recusou a
morrer. Em vez disso, vagou num sono tão profundo que seu batimento
cardíaco era pouco mais do que uma pancadinha fraca.

O filho do imperador foi informado de que a princesa tinha expirado de


febre. Planejou-se um funeral real, apesar de as fofocas da corte rotularem
a menina de Imperatriz Traidora. Cochichava-se que ela fora desmascarada
como espiã e enterrada viva como pena pela traição. A fiel criada da
princesa não teve poderes para provar a inocência de menina. Só o que
pôde fazer foi subornar um guarda para contrabandear dois objetos para o
túmulo da princesa. Um era uma estatueta de si mesma a cavalo, para
poder servir a sua alma no além. O outro era a verdade.

Ela sabia que o tempo revela todos os segredos.

CAPÍTULO UM

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Não foi por falta de aviso

Antes de começarmos, dê uma olhada rápida por sua janela. Não faz
diferença se você olha uma rua movimentada de Calcutá ou um pequeno
shopping em Texarkana. Onde quer que você esteja, todas as pessoas que
você vê têm uma coisa em comum. Todas têm um segredo que preferem
manter escondido. O cavalheiro elegante com a pasta executiva rouba no
parquímetro nas horas vagas. A criança de bicicleta gosta de comer
formigas. E a velha baixinha no banco do parque antigamente era
conhecida como o Terror de Cleveland. É claro que estou brincando. Não
conheço os segredos deles mais do que você. Mas aí é que está a questão.
Nunca se sabe.
Há muitas lições na vida que podem ser desagradáveis. Não seque um
hamster no micro-ondas. Chinelos não são adequados para um coquetel. E
maionese não deve ter crosta. Mas para uma detetive, há uma lição
deficílima de aprender. Por mais que você tente, não tem como saber tudo
sobre as pessoas de quem mais gosta. Mesmo que partilhem de incontáveis
aventuras e enfrentem a morte lado a lado, ainda pode haver segredos
entre vocês.

Quando estava história começou, eu tinha cinco grandes amigas. Eu sabia


tudo sobre seus passatempos incomuns, alergias graves, antecedentes
criminais e preferências de xampu. O que eu não sabia era que duas de
minhas amigas ainda guardavam segredos de mim - e que um desses
segredos tinha o poder de destruir a todas nós.

***

Tudo começou às oito horas de uma manhã de sábado. Eu estava sentada à


mesa da cozinha de minha casa, lendo um livro de curtindo um café da
manhã balanceado de pudim de caramelo, quando levantei a cabeça e vi
minha mãe parada na porta, segurando um jornal. Não me lembro de me
sentir particularmente culpada naquele dia, mas soltei um grito ao vê-la.
Seus cachos curtos e escuros saltavam para fora dos grampos e cercavam o
rosto como uma nuvem de fumaça tóxica. Havia bolsas sob seus olhos e
tênis diferentes nos pés.

- O que está lendo? - perguntou ela numa voz estranhamente formal.

- Fantasmas, demônios e coisas em que se pode esbarrar à noite - informei.


- Encontrei debaixo da cama do quarto de hóspedes. O que está fazendo
acordada? - Em meus 14 anos de vida, nunca tinha visto minha mãe de pé

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antes do meio-dia num fim de semana.

- Vi uma matéria no noticiário ontem à noite. Pensei que você poderia achar
interessante, então acordei cedo para comprar o jornal. - A caminho da
mesa, ela tropeçou numa pilha de livros, que se espalharam pelo chão da
cozinha. Uma semana antes, o que a maioria das pessoas pensou ser um
pequeno terremoto (eu sabia muito bem o que era) podara as torres altas
de livros que revestiam as paredes de nosso apartamento. Mas a tarefa de
recolocar em ordem a biblioteca grande e bizarra de meus pais era tediosa
demais, e a maior parte dos livros ainda estava onde tinha caído. Minha
mãe se jogou numa cadeira na minha frente, fixando os olhos no meu rosto.

- Que matéria era essa? - perguntei, tentando lembrar se eu tinha feito


alguma coisa que pudesse chegar aos jornais. Na quarta-feira, eu tinha
ajudado a prender um exibicionista no Grande Central Station, mas isso não
parecia tremendamente digno dos noticiários. E, pelo que eu saiba, a
origem daquele terremoto nunca foi determinada. Eu tentava me manter
discreta.

- Veja você mesma. - Minha mãe bateu o jornal na minha frente. A primeira
página do New York Post trazia uma foto de um orangotango jovem usando
um short de boxeador roxo e brandindo uma pinça para salada. Comecei a
rir, até que li a manchete: Será Obra de Kiki Strike?, perguntava o jornal. O
sorriso sumiu da minha cara enquanto eu olhava de relance para minha
mãe.

- Continue. Leia - insistiu ela. - A reportagem está na página 3.

Sob o olhar de minha mãe, passei os olhos pelo artigo. Ao que parecia, às
oito horas da noite anterior, uma mulher de nome Marilyn Finchbeck
acordou e encontrou um iguana de 1 metro arrastando-se para sua cama. O
vizinho, ouvindo os gritos apavorados de Marilyn, chamou a emergência ao
entrar no quarto do bebê e descobrir o filho de 1 ano brincando de esconde-
esconde com uma família de lêmures de orelhas peludas. Pouco tempo
depois, um homem do terceiro andar do mesmo prédio pulou da janela do
quarto quando se viu diante do orangotango que aparecia na primeira
página do jornal. Na hora, nenhum dos moradores do número 983 da
Broadway percebeu que os animais que invadiram os apartamentos
estavam com bilhetes manuscritos presos no pescoço.

Ao responder a todos os chamados do prédio de Marilyn Finchbeck, a polícia


rapidamente descobriu a origem do tumulto. Alguém tinha arrombado a
porta de uma pet shop no primeiro andar e soltado os animais. Filhotes de
rottweiller foram encontrados banqueteando-se em sacos de ração
premium. Meia dúzia de cacatuas e um papagaio desbocado gritavam das

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vigas do teto. Mas em vez de procurar pelo misterioso benfeitor dos


animais, a polícia prendeu o dono da pet shop. Nos fundos da sua loja, atrás
de uma porta oculta, encontraram uma série de gaiolas secretas. A maioria
estava vazia. Só dois coalas drogados continuavam presos, os dois
aturdidos demais para se juntar à festa. Os funcionários do zoológico que
foram chamados para capturar os lêmures e o orangotango (junto com um
filhote de leopardo-da-neve que tinha perseguido um entregador por 13
quadras) reconheciam um crime quando viam um. Todos os animais
libertados das gaiolas secretas eram de espécies em risco de extinção. Não
tinham de estar em Nova York. No pescoço de cada um deles, havia um
bilhete que dizia: Quero ir para casa.

O New York Post acreditava que a responsável era Kiki Strike. Um homem
do bairro dizia ter testemunhado um elfo de cara pastosa e roupas escuras
observando atentamente a pet shop uma semana antes. (Não era a
descrição mais elogiosa de Kiki, mas também não era inteiramente
imprecisa.)

- Muito bem. Onde você estava ontem à noite, Ananka? - perguntou minha
mãe.

- Aqui - insisti, aliviada por poder dizer a verdade. - Não sei nada sobre isso.

- Você conhece Kiki Strike. Ela estava aqui na quinta-feira vendo filmes de
kung fu na sala.

- É, mas a menina que eu conheço tem 14 anos e não dá a mínima para o


reino animal. O Post só está querendo vender jornal, mãe. Todo mundo quer
acreditar que há uma adolescente justiceira agindo em Nova York.

- Deixe-me entender isso direito. Você ainda espera que eu acredite que sua
amiga não tem nada a ver com o desbaratamento do sequestro de uns
meses atrás?

- Vamos ter que passar por isso de novo? Você viu o noticiário - expliquei a
ela, evitando a verdade. - A história de Kiki estrike em junho era um
embuste. Essa menina que Kiki supostamente resgatou dos sequestradores
mentiu. Ela inventou a história porque queria aparecer na TV. Quem sabe de
onde ela tirou o nome Kiki? Pode ter escolhido na lista telefônica.

Minha mãe se recostou na cadeira e me fuzilou com os olhos semicerrados.


Tinha mais coisas em mente e eu sabia que não podia ser coisa boa. Vi um
camundongo dar um passo cauteloso para fora do armário debaixo da pia
da cozinha. Ele olhou para minha mãe e correu de volta à segurança.

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- A diretora Wickham ligou ontem à noite - anunciou por fim minha mãe. -
Seu professor de história disse que você não tem prestado atenção nas
aulas. Ele alega que você dormiu durante uma aula sobre a fundação de
Nova York. Ao que parece, você nem se incomodou em limpar a baba
quando você foi embora. - Enfim, eu tinha entendido aonde minha mãe
queria chegar. Minhas atividades extracurriculares não estavam em
questão. Eu podia me fantasiar de Mulher Maravilha e combater as forças
do mal, desde que tirasse boas notas.

- Eu não babei. O sr. Dedly não gosta de mim porque eu sei mais sobre a
história de Nova York do que ele. - Isso pode parecer convencimento meu,
mas não era exagero. Passei dois anos vasculhando a imensa biblioteca de
meus pais e devorando cada livro que pude sobre o assunto. Eu sabia
quantos trabalhadores infelizes foram sepultados na ponte do Brooklyn, que
cemitério antigamente fornecia cadáveres novos para dissecação dos
estudantes de medicina e a localização da ferrovia subterrânea secreta para
uso pessoal da família Vanderbilt. Eu mesma podia dar a aula - e com muito
mais talento do que o sr. Dedly devo acrescentar.

- O que pode ser verdade, Ananka. Mas o sr. Dedly não é o único professor
que a pegou cochilando em aula.

- Quem mais reclamou? - rebati, não inteiramente surpresa em descobrir


que a esnobe Escola para Meninas Atalanta estava cheia de espiões e
traidores.

- Isso não importa - disse minha mãe. - O que importa é que as aulas
começaram há três semanas e você já está encrencada. Não quero mais
boletins como os do ano passado. Mais uma nota C ou D e vou mandá-la
para um internato. Não estou brincando, Ananka. Vou encontrar um tão
distante da civilização que a única coisa que você terá para fazer será o
dever de casa.

- Você está blefando. - Eu ri de nervoso. Minha mãe nunca me fez ameaça


alguma e eu não sabia bem se devia levá-la a sério. Mas eu não conseguia
imaginar um destino mais horroroso do que ser banida de Manhattan.

- A diretora Wickham ligou ontem à noite - anunciou por fim minha mãe. -
Seu professor de história disse que você não tem prestado atenção nas
aulas. Ele alega que você dormiu durante uma aula sobre a fundação de
Nova York. Ao que parece, você nem se incomodou em limpar a baba
quando você foi embora. - Enfim, eu tinha entendido aonde minha mãe
queria chegar. Minhas atividades extracurriculares não estavam em
questão. Eu podia me fantasiar de Mulher Maravilha e combater as forças
do mal, desde que tirasse boas notas.

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- Eu não babei. O sr. Dedly não gosta de mim porque eu sei mais sobre a
história de Nova York do que ele. - Isso pode parecer convencimento meu,
mas não era exagero. Passei dois anos vasculhando a imensa biblioteca de
meus pais e devorando cada livro que pude sobre o assunto. Eu sabia
quantos trabalhadores infelizes foram sepultados na ponte do Brooklyn, que
cemitério antigamente fornecia cadáveres novos para dissecação dos
estudantes de medicina e a localização da ferrovia subterrânea secreta para
uso pessoal da família Vanderbilt. Eu mesma podia dar a aula - e com muito
mais talento do que o sr. Dedly devo acrescentar.

- O que pode ser verdade, Ananka. Mas o sr. Dedly não é o único professor
que a pegou cochilando em aula.

- Quem mais reclamou? - rebati, não inteiramente surpresa em descobrir


que a esnobe Escola para Meninas Atalanta estava cheia de espiões e
traidores.

- Isso não importa - disse minha mãe. - O que importa é que as aulas
começaram há três semanas e você já está encrencada. Não quero mais
boletins como os do ano passado. Mais uma nota C ou D e vou mandá-la
para um internato. Não estou brincando, Ananka. Vou encontrar um tão
distante da civilização que a única coisa que você terá para fazer será o
dever de casa.

- Você está blefando. - Eu ri de nervoso. Minha mãe nunca me fez ameaça


alguma e eu não sabia bem se devia levá-la a sério. Mas eu não conseguia
imaginar um destino mais horroroso do que ser banida de Manhattan.

- Não acho que vá querer descobrir se sou capaz disso. Sugiro que comece a
passar mais tempo estudando e menos andando por aí com suas amigas.
Algumas delas não parecem se importar com os estudos, e duas são
trapaceiras de carteirinha. Oona Wong nunca bate na porta quando vem
aqui. Só põe a mão na maçaneta e entra sozinha.

Estremeci. Eu tinha pedido a Oona para parar de arrombar trancas, mas


este era um hábito que ela achava difícil de largar.

- Minha amigas são gênios - foi a resposta ridícula.

- Não duvido disso nem por um minuto. Elas até podem ajudar você a
ganhar uma bolsa para a universidade comunitária de sua preferência. -
Minha mãe se levantou da mesa. - Você e Kiki Strike estão aprontando
alguma - disse ela. - Não sei o que é, mas se continuar afetando seu
rendimento escolar, descobrir será minha missão.

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Enquanto ela se arrastava para fora da cozinha, olhei o jornal aberto na


minha frente. Se Kiki era a responsável, ela deveria ter sido mais discreta.

***

É claro que minha mãe tinha razão. Minhas amigas e eu estávamos


aprontando alguma. Mas mesmo que as possibilidades fossem apresentadas
na forma de uma pergunta de múltipla escolha (Ananka e as amigas
trapaceiras estão... A: Passando tempo com grupos de ambientalistas
radicais; B: Cheirando canetas permanentes e descuidando do dever de
casa; C: Caindo sob a influência de uma mini-hipnotista que lhes garantirá
uma vaga de atendente na Better Burger; D: Salvando a cidade de Nova
York), minha mãe nem poderia ter adivinhado a verdade. Como muitas
pessoas daquela idade, ela sofria de uma estranha forma de amnésia que a
impedia de lembrar como era ser jovem. Apesar de suas desconfianças, ela
não conseguia acreditar que um grupo de meninas de 14 anos era capaz de
alguma coisa além de travessuras insignificantes.

Como estou com humor para compartilhar, vou lhe contar a verdade. Aos 12
anos, eu me juntei às Irregulares, um bando de bandeirantes em desgraça
lideradas pela infame Kiki Strike. Juntas, nós seis partilhamos um segredo
extraordinário. Descobrimos um vasto labirinto de passagens esquecidas
debaixo do centro de Nova York, construído pela comunidade do crime da
cidade há mais de duzentos anos. Entradas secretas para a Cidade das
Sombras podem ser encontradas em porões de bancos, lojas de grife e
casas elegantes de toda Manhattan, e qualquer um que tenha acesso aos
túneis infestados de ratos pode entrar e roubar os prédios à vontade. É
claro que as Irregulares não estavam interessadas em rechear os bolsos
com produtor adquiridos ilicitamente. Apenas queríamos que os túneis
fossem só nossos. Mas sabíamos que nosso playground subterrâneo tinha
um preço. Em vez de deixar que as autoridades estragassem a diversão,
assumimos a responsabilidade de evitar que uma nova geração de
criminosos usasse a Cidade das Sombras.

Prefiro pensar que tivemos sucesso. Mas como os corpos inchados de lulas
gigantes que dão na praia da Nova Zelândia, até os segredos mais bem
guardados um dia, cedo ou tarde, vêm à tona. Seis meses atrás, um mapa
incompleto da Cidade das Sombras caiu nas piores mãos possíveis e os
parentes assassinos de Kiki Strike - a cruel rainha da Pocróvia e sua filha de
moral questionável - usaram-no para tramar sua destruição. Depois que as
Irregulares frustraram um atentado contra a vida de Kiki, Livia e Sidonia

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Galatzina fugiram para a Rússia. Mas era só uma questão de tempo até elas
voltarem - e, pelo que sabemos, elas ainda têm uma cópia de nosso mapa.

Enquanto esperamos que as Galatzina façam seu movimento seguinte, as


Irregulares se mantêm ocupadas. No verão, exploramos novos túneis e
expandimos nosso mapa da Cidade das Sombras, recolhendo os tesouros
que encontramos pelo caminho (moedas de ouro, relógios de prata,
comadres antigas surpreendentemente valiosas). Sempre que demos numa
entrada que podia ser descoberta, nós a bloqueamos, ou montamos
armadilhas. Foi um trabalho exaustivo e grande parte dele foi feito à noite,
quando a maioria das meninas de nossa idade estava aninhada na cama.
Esperávamos completar nosso mapa antes de setembro, quando as aulas
começassem. Mas quando a diretora Wickham decidiu me dedurar, ainda
havia um túnel a ser explorado. Nenhuma ameaça de minha mãe pode me
impedir de concluir este trabalho.

Não é que eu não dê importância a suas advertências. Como diria minha


amiga Verushka, quando um cão silencioso começa a latir, é melhor prestar
atenção. Eu até tentei atacar o dever de geometria que andei deixando de
lado, mas a matemática sempre me faz divagar e não ajudou em nada que
cada cômodo de nosso apartamento estivesse apinhado de livros sobre
temas mais interessantes. (Civilizações perdidas da América do Sul, análise
forense de esterco pré-histórico e a trama M15 contra a princesa Diana,
para citar alguns.) Enquanto preparava um bule de café forte, vi um livro
intitulado Envenenadoras do século XVII encostado numa caixa de
adoçante. Incapaz de resistir, convenci-me de que precisava de uma curta
parada nos números e deixei que meus olhos imergissem na história da
gananciosa marquesa de Brinvilliers, que envenenou metade da família
antes de ser queimada na fogueira. Quando levantei a cabeça de novo,
eram quase nova da noite. Enquanto vestia calça e camiseta pretas, eu me
xinguei por minha falta de disciplina. Os livros sempre foram meu fraco.

Tranquei a porta de meu quarto e desci a escada de incêndio do lado de


fora da minha janela. Vou admitir que não havia muita razão para a ação
furtiva no estilo Mulher-gato. Minha mãe e meu pai nem estavam em casa.
Eu tinha dado um show tão convincente de que estava estudando o dia todo
que eles decidiram brindar ao sucesso dos dois num restaurante próximo.
Uma simples placa de Estudando: Não Perturbe os manteria longe de meu
quarto quando eles voltassem. Mas como eu ia encontrar Kiki Strike para
uma noite de aventura (talvez minha última noite, por algum tempo), não
parecia lá muito conveniente sair pela porta da frente.

***

Kirsten Miller
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O tempo estava estranhamente quente havia semanas, e o ar estava denso


do cheiro rançoso de um milhão de latas de lixo. Raios estalavam nas
nuvens no alto, avisando que uma tempestade se aproximava de mansinho
da cidade. Enquanto ia para o Cemitério de Mármore, um cemitério secreto
com uma entrada para a Cidade das Sombras, contei os ratos que se
enfiavam nos bueiros ao som de meus passos. Eu tinha passado por
quarenta deles quando entrei em uma rua curta e mal iluminada chamada
Jersey Street. Os pelos de minha nuca começaram a levitar e meus dedos se
agarraram à latinha de spray de pimenta que eu tinha escondida no bolso.
Tentei me preparar para um encontro com uma gangue de arruaceiros de
punhos ligeiros ou um dos lendários assaltantes de Manhattan. E me vi cara
a cara com um roedor imenso.

***

Pintado na lateral de um prédio, o esquilo assomava com um metro e


oitenta de altura e não pareceu satisfeito por me ver. Dois olhos pretos de
conta encaravam debaixo de sobrancelhas bastas, e um sinistro sorriso de
sarcasmo revelava a dentuça. Uma das patas carnudas do esquilo segurava
uma placa com letras em negrito. Dizia: SEU DINHEIRO LIBERTARÁ TODOS
OS ANIMAIS. Olhei por sobre o ombro, na esperança de que um esquilo em
carne e osso não estivesse ali para cumprir a ameaça. A viela estava vazia.
Estendi a mão e rocei o dedo na pintura da parede. Ainda estava úmida.
Quem pintara o esquilo tinha acabado o trabalho havia pouco.

Em qualquer noite em Nova York, há centenas de artistas deslizando pelas


sombras, deixando suas marcas pelas paredes da cidade. Alguns são
viciados na adrenalina e na correria; outros têm algo a dizer e querem que o
mundo todo os ouça. Havia poucas dúvidas de que o artista do esquilo tinha
uma missão - suspeitei de que podia ser a mesma pessoa cuja aventura na
pet shop ganhara a primeira página do New York Post. Mas uma coisa era
certa: não era Kiki Strike. Ela podia falar umas dez línguas e derrubar
homens com duas vezes seu tamanho, mas nunca desenharia nem um
bonequinho de criança convincente. Havia um novo justiceiro na cidade.

Tendo absolvido Kiki do trabalhinho de libertação dos animais, eu estava me


coçando para contar a ela sobre o esquilo que tinha visto. Cheguei três
minutos adiantada ao cemitério e andei na frente dos portões, consultando
o relógio a cada poucos segundos como um gordo faminto olhando um lote
de brownies no forno. As nove horas chegaram sem sinal de Kiki. Às 9h15,
passou um caminhão de entrega de pet shop, com um esquilo cor-de-rosa
adornando a lateral. O esquilo segurava uma placa que anunciava LIBERTE-
OS OU SOFRA AS CONSEQUÊNCIAS. Perguntei-me quais seriam as

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consequências enquanto o céu trovejava como os intestinos de um gigante


com prisão de ventre. Às nove e meia eu estava espremida no toldo da
funerária do bairro. Chovia a cântaros e eu começava a me preocupar. Kiki
Strike se orgulhava de sua pontualidade. Se estava atrasada, tinha de ser
encrenca. Liguei para o celular dela, mas ninguém atendeu. Às 19h40, parei
um táxi e dei o endereço da casa de Kiki.

***

Para qualquer uma que pense que eu estava exagerando, incluí uma curta
lista das pessoas que querem Kiki Strike morta. A lista aumenta
consideravelmente com o passar dos anos mas, dado o fato de que Kiki não
tinha idade para dirigir (embora em geral fizesse isso) na época desta
história, acho que você vai achar a lista bem impressionante.

1. Livia Galatzina, rainha (exilada da Pocróvia). Monarca com sede de


poder e gosto por móveis bregas, Livia Galatzina envenenou toda a família
da irmã mais velha para subir ao trono do minúsculo reino da Pocróvia. Kiki
Strike, a infeliz sobrinha de Livia, foi salva por Verushka Kozlova, membro
da Guarda Real. Depois que o povo da Pocróvia deu um pé na bunda em
Livia, ela se mudou para Nova York. Kiki e Verushka vieram logo depois,
com a intenção de se vingar.

2. Sidonia Galatzina, princesa da Pocróvia. Filha de Livia e minha ex-


colega na Escola para Meninas Atalanta, a Princesa antigamente era
considerada a It Girl de Nova York. Ela também tentou matar Kiki Strike.
Para atrair Kiki a suas garras, a Princesa sequestrou duas meninas cujos
pais tinham acesso a um mapa perigoso. Quando as Irregulares
conseguiram resgatar as meninas, Sidonia e sua mãe fugiram para a Rússia,
onde foram vistas pela última vez jogando croquê na casa de um notório
gângster.

3. Sergei Molotov. Ex-membro corrupto da Guarda Real de Pocróvia e


braço direito de Livia, Molotov imputou o assassinato dos pais de Kiki a
Verushka Kozlova, obrigando Kiki e Verushka a se esconderem. Mais tarde,
o esperto assassino atirou na coxa de Verushka enquanto tentava capturar
Kiki Strike. Ele também escapou impune.

4. Toda a gangue Fu-Tsang. Enquanto exploravam a Cidade das


Sombras, as Irregulares descobriram que a Fu-Tsang, uma gangue de
contrabandistas chineses, usava salas na Cidade das Sombras para
esconder seu butim. Alertamos a polícia e, em retaliação pela batida que se
seguiu, a Fu-Tsang uniu forças com a Princesa para matar Kiki Strike. A

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maior parte da gangue foi presa, embora alguns membros continuem em


liberdade.

5. Lester Liu. O misterioso líder da Fu-Tsang. Houve boatos de que Lester


Liu administrava seus negócios direto de Xangai.

6. Vendedor de cachorro-quente da esquina da rua 14 com a Sexta


Avenida. Vamos colocar da seguinte maneira: desde que Kiki denunciou as
atividades dele à vigilância sanitária, eu nunca mais comi um cachorro-
quente. Tenho escapado da justiça, o vendedor ainda era procurado por
várias acusações de crueldade com animais.

Quando uma rainha, um contrabandista e um vendedor de cachorro-quente


estão decididos a matar ou capturar você, é melhor não ficar em um lugar
só por muito tempo. Em julho, Kiki e Verushka mudaram-se para novos
aposentos na rua 18. Originalmente uma garagem de carruagens, o prédio
comprido e estreito de tijolos aparentes tinha um único andar. Uma vez que
Sergei Molotov a havia baleado dois anos antes, Verushka, aos poucos
perdera o uso de uma perna, então estava fora de cogitação usar uma
escada. No verão, Luz Lopes, a brilhante mecânica das Irregulares, passou
três semanas preparando uma cadeira de rodas exclusiva para o
sexagésimo aniversário de Verushka. Quando terminada, trazia um assento
que podia se erguer 1 metro no ar, um braço robótico e um pequeno canhão
para lançar granadas de gás lacrimogêneo. Naquela noite, quando o trânsito
da cidade diminuiu, Verushka pôde ser vista disparando com sua cadeira
pela Sétima Avenida. Um policial registrou que ela seguia a 80 quilômetros
por hora. Verushka sempre se gabava de ele ter ficado tão impressionado
que nem lhe deu uma multa.

Na rua 18, saí de meu táxi e entrei num rio de água de chuva que corria
junto ao meio-fio. Espremendo-me ao passar pelos postes do prédio, eu não
sabia se Kiki e Verushka estavam em casa. Uma hera voraz tinha tragado as
duas janelas que davam para a rua e agora suas gavinhas famintas
atacavam os prédios vizinhos. Subi às portas altas de madeira em arco,
estendi a mão fundo pela hera e apertei a campainha escondida. Como
ninguém atendeu, esperei que um pedestre ruidoso virasse a esquina e
comecei a escalar a parede.

Se você for meio parecida comigo, deve ter visto uns mil filmes em que as
pessoas escalam prédios usando uma ampla variedade de plantas
trepadeiras. Acredite em mim quando eu lhe digo que é muito mais difícil do
que parece e você não deve experimentar, a não ser que esteja salvando a
vida de alguém ou fugindo da polícia. Antes de chegar à beira do telhado de
Kiki, escorreguei uma meia dúzia de vezes, esfolando os nós dos dedos. Por
fim, consegui subir e olhei pela imensa claraboia no telhado do prédio. As

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

luzes estavam acesas, mas Kiki e Verushka não estavam ali. Toda a
habilitação estava tranquila e silenciosa como uma casa de bonecas de uma
criança morta. Não vi sinais de luta - pelo que eu podia dizer, tudo estava
em seu lugar. Na realidade, só percebi um sinal de que havia algo errado.
No meio da sala, a cadeira de rodas de Verushka estava vazia.

Por mais que quisesse investigar, eu não podia invadir a casa de Kiki. As
Irregulares passaram semanas montando armadilhas e uma nuvem de gás
de riso explodiria se alguém se atirasse na lateral do prédio. Force uma
tranca e você se verá presa numa rede de lasers que vão chamuscar sua
pele. Fiquei agachada no telhado e pensei em minhas alternativas. Só havia
uma, e não gostei dela: ter de esperar.

Enquanto eu me preparava para uma descida pela trepadeira, olhei a rua,


para ver se alguém passava. No final da quadra, vi uma figura escura e
magra parada junto a uma parede, abrigada pelo beiral do prédio. Dada sua
postura e a ausência de um guarda-chuva, imaginei que estava atendendo a
um chamado da natureza. Meu celular vibrou e eu o peguei no bolso, na
esperança de ouvir Kiki do outro lado da linha. Em vez disso vi o ícone de
mensagem de texto. "Reunião amanhã: 7h. FFat Frankie's. Oona."
Decepcionada, comecei a descer centímetro por centímetro a lateral do
prédio. Só quando pousei em segurança a calçada percebi que eu podia ter
sido vista. Corri par a figura que vi perto da parede. A pessoa se fora, mas
deixou sua marca - um esquilo feliz de 2 metros de altura com uma placa
que dizia NÃO FOI POR FALTA DE AVISO.

COMO PARECER MISTERIOSA

Apesar de que alguns livros lhe dirão, você não precisa de poderes mágicos
nem amigos no reino das fadas para desfrutar de uma emocionante
aventura de vez em quando. O que você precisa é de um pouco de bom
senso - e alguns conselhos práticos. É o que ofereço aqui. Posso não ser a
maior aventureira do mundo, mas o que aprendi foi com os melhores. (E
costumo fazer anotações muito boas.)
Vamos começar por uma coisa simples. Até que ponto você gostaria de
intrigar os outros, inspirar romances e talvez se tornar uma lenda em sua
época? Você não precisa de um passado de crimes, nem de um segredo
perigoso, nem mesmo de um sobretudo impermeável para parecer
misteriosa.

Gritos silenciosos

Se você é do tipo que gosta de contar a história de sua vida a alguém que

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você conhece no metrô, pode achar difícil cultivar um ar de mistério. (Não


se preocupe - provavelmente você terá um futuro incrível como
apresentadora de talk-show.) Nada a fará parecer menos misteriosa do que
um ataque de diarreia verbal. Isso não quer dizer que você deva ser
taciturna ou antipática. Simplesmente fique de boca fechada e deixe que as
pessoas façam o que mais gostam de fazer - falar delas mesmas.

Invente um segredo

Escolha uma assunto a evitar na conversa. Pode ser o trabalho (ou a


profissão de seus pais), o que aconteceu nas suas férias de verão, ou por
que sempre há um segurança seguindo você. Sempre que o tema surgir,
sorria e mude de assunto.

Vista-se para o papel

Cores ousadas e corpo exposto não transmitem uma imagem misteriosa.


Em vez disso, pense em preto, alinhado e sofisticado. Além disso, tenha
pelo menos um item curioso e jamais seja vista sem ele. Não precisa ser um
par de bastões de caratê - um medalhão antigo, um bracelete indiano
estranho, ou um exemplar surrado de International Affairs podem funcionar
igualmente bem.

Ostente sua cicatriz

Poucas coisas são mais intrigantes do que uma cicatriz. Se você já tiver
uma, considere-se uma pessoa de sorte. Se não tiver, deve encontrar uma
alternativa razoável em uma loja de fantasias. Mais uma vez, é melhor não
discutir o assunto. Nenhuma história que você inventar será tão fascinante
quanto aquelas que as pessoas forjarão sozinhas.

Escolha uma área de especialidade

Faça um curso de arrombamento. Aprenda a fazer ligação direta num carro.


Esforce-se para ser faixa preta em caratê. Fique famosa no mercado de
ações. Mas jamais se sabe de sua especialidade. Espere pela oportunidade
certa para exibir suas habilidades e ver o queixo de todos caindo.

Aprenda a desaparecer

Desaparecer é mais fácil do que parece. Você sempre almoça com seus

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amigos no mesmo lugar? Escolha um dia para comer atum num lugar
diferente. Não explique sua ausência. Recuse-se a atender o telefone ou
responder a e-mails por 24 horas. Diga às pessoas que você estava
ocupada. Quando sair com um grupo, espere até que ninguém esteja
olhando e abandone-o. Quando indagada, diga que tinha uma coisa para
fazer.

Crie uma sociedade secreta

Depois de você conseguir criar uma aura de mistério, pode ser a hora de
transmitir seu conhecimento a novos amigos. Encontre uma causa que
possa alardear - seja salvar ou dominar o mundo - e cria sua própria
sociedade secreta. Pense em criar seu logotipo, mas lembre-se - para que
seja uma sociedade secreta mesmo, deve continuar sempre em SEGREDO.

CAPÍTULO DOIS

Quem dormiu na minha cama?

Acho que posso dizer com segurança que a maioria das meninas de 14 anos
com histórico criminal teria guardado distância do Fat Frankie's. Toda
manhã, dezenas de policiais se espremiam na pequena lanchonete para
devorar o café da manhã antes de seus turnos matinais. Mas no verão, o Fat
Frankie's tornou-se o ponto de encontro preferido de Oona Wong. Por mais
ilícitos que fossem seus negócios, ela preferia realizá-los em público. Ela
sabia que não tinha nada a temer. Poucos de seus clientes podiam imaginar
que a menina elegante com cara de boneca fora uma das falsárias mais
famosas de Chinatown. Oona dizia gostar de viver sob tensão - mas sempre
desconfiei que ela tivesse uma queda por policiais.

Enquanto eu abria caminho pela lanchonete abarrotada, perguntei-me qual


seria o último esquema de Oona. Um ano antes ela abrira o Golden Lotus,
um salão de manicure de elite aonde mulheres ricas iam aos bandos para
fazer as unhas e trocar fofocas com as amigas. Arrogantes e ignorantes,
elas supunham que as jovens chinesas que trabalhavam no salão não
sabiam falar inglês. Mas enquanto aparavam cutículas e cortavam unhas
dos pés em silêncio, as funcionárias de Oona registravam cuidadosamente
as conversas das clientes. Oona fez uma pequena fortuna negociando os
segredos das socialites e pegando dicas de ações, mas isso não a impedia
de procurar novas maneiras de engordar sua conta bancária.

O que Oona fazia com o dinheiro era um mistério que o restante de nós
jamais conseguiu resolver. Tremendamente indelicada, ela nunca hesitava

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em observar que seu brilho labial não combinava com a pele ou que uma
espinha gigantesca estava prestes a estourar na sua testa. Mas por uma
questão de princípios, recusava-se a discutir sua vida pessoal. Apesar do
que soubemos dela com o passar dos anos, não fazíamos ideia de onde
Oona morava ou com quem preparava seus waffles toda manhã. Minha
única tentativa de satisfazer a curiosidade terminou numa discussão franca
em uma rua de Chinatown quando Oona me pegou seguindo-a para casa,
disfarçada de uma sem-tato estranhamente jovem. No fim, prometi deixá-la
em paz. Eu sabia que um dia a verdade seria revelada e não valia a pena
perder uma amiga para ter uma pré-estreia.

***

Encontrei as Irregulares reunidas em volta de uma mesa na ponta do Fat


Frankie's, a pouco distância do banheiro. Vestida de macacão de mecânico
cinza, Luz Lopes estava sentada com as botas de trabalho apoiadas nas
costas de uma cadeira. A cabeça estava tombada de concentração e os
lábios formavam palavrões em silêncio enquanto os dedos mexiam em sua
última invenção. DeeDee Morlock, a especialista em química das
Irregulares, conversava com uma Hare Krishna careca que só podia ser
Betty Bent, nossa mestre do disfarce. Enquanto as outras meninas
prestavam pouca atenção ao ambiente, Oona estava sentada de costas
para a parede, os olhos negros e ferozes indo de uma pessoa a outra. Tive a
sensação de que ela contava os segundos até a reunião começar. Quando
me viu indo para a mesa, tombou a cabeça de lado e cruzou os braços,
exigindo em silêncio uma explicação para meu atraso. Oona Wong não
gostava de esperar.

- Que emoção. Você finalmente conseguiu chegar, Fishbein. Foi abduzida


por alienígenas quando vinha para cá? Ou parou para incomodar outro
turista com seu sermão sobre a história secreta do Washington Square
Park? - Oona adorava um confronto e na maioria das manhãs eu podia ter
cedido. Mas fiquei em silêncio enquanto empurrava as botas de Luz da
cadeira e me sentava de frente para DeeDee.

- Cadê a Strike? - perguntou Oona.

- Acho que Kiki não virá - falei.

Betty mordeu o lábio e os dedos de Luz paralisaram-se enquanto todas nos


preparávamos para o que viria a seguir.

- Do que está falando? - A cara bonita de Oona se enrugou de raiva. - Ela

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tem de estar aqui. Quando uma de nós convoca uma reunião, todas têm
que comparecer. Esta é a regra.

- Baixe a voz. É cedo demais para gritar. - De todas nós, DeeDee era a que
tinha menos paciência com as explosões de Oona. - Deixe Ananka terminar
primeiro, está bem?

A boca de Oona se cerrou com força suficiente para quebrar um garfo ao


meio.

- Kiki sumiu - expliquei a elas. - Devia se encontrar comigo ontem à noite


para terminar o mapa. Não apareceu no Cemitério de Mármore.

- Vai ver estava invadindo outra pet shop - disse Luz, voltando a seu
conserto. - Alguém aqui viu os jornais de hoje? Aposto que alguém viu um
duende albino soltando outros macacos nas ruas ontem à noite.

- Kiki não soltou aqueles animais. Ela nunca foi irresponsável. É um milagre
que nenhum deles tenha sido atropelado por um ônibus. - De natureza dócil
e crédula, Betty jamais acreditou que Kiki fosse capaz de qualquer coisa
repreensível. O restante do grupo sabia muito bem que era possível.

- Às vezes eu me pergunto se conhecemos a mesma pessoa - eu disse a ela.


- Mas desta vez você tem razão. Kiki não teve nada a ver com a pet shop. Já
viram os esquilos gigantes?

- Vi um quando vinha para cá - disse DeeDee.

- O que têm eles? - Luz deu de ombros.

- Tenho certeza de que a pessoa que está pintando os esquilos soltou os


animais da loja. Acho que o vi ontem à noite. Ele deixou um esquilo perto da
casa de Kiki.

- Então você foi à casa de Kiki? - perguntou DeeDee. - O que Verushka


disse? Ela sabe onde Kiki está?

- Verushka também sumiu. E não levou a cadeira de rodas.


Por um momento, as Irregulares ficaram sentadas em silêncio enquanto a
informação batia de um lado a outra de nosso cérebro como uma bola de
boliche numa máquina de lavar. Oona suspiro e revirou os olhos.

- Lá se vai a minha reunião - murmurou ela.

- Eu lamento que seu mais recente esquema de enriquecimento rápido

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tenha sido temporariamente suspenso. - O volume da voz de DeeDee


aumentava a cada palavra. - Não acha que isso é um pouco mais
importante?

- É cedo demais para gritar - Oona zombou dela. - Kiki desaparece o tempo
todo. É isso o que ela faz. Não sei por que estão todas preocupadas.
Nenhuma de vocês perceberia se eu não aparecesse para uma reunião.

- Sua família não está tentando matar você - Betty tentou explicar.

- E o que você sabe, careca? - disse Oona. - Talvez estejam.

- Então, por onde anda a família real homicida da Pocróvia ultimamente? -


perguntou Luz, arrastando a conversa de volta aos trilhos. - Ainda escondida
na Rússia?

- Não sabemos - admiti. - Livia e Sidonia desapareceram há dois meses. As


fontes de Verushka afirmaram que elas saíram de São Petersburgo, mas
outro dia ouvi um boato que me fez imaginar se a Princesa e sua mãe ainda
podem estar aqui.

- Elas podem estar em Nova York agora? - perguntou-se Betty. - Ouviu


alguma coisa no salão, Oona?

Por um momento, parecia que os lábios de Oona não iam se mexer. Sua
raiva tinha desaparecido e ela começou a ficar amuada.

- Não tenho passado muito tempo lá - disse ela por fim. - Mas Livia e Sidonia
são tópicos de prioridade máxima. Se houvesse alguma novidade, alguém
teria me avisado.

- Será que a gente deve dar uma olhada na casa de Kiki? - perguntou
DeeDee. - Se nos derem algumas horas, Luz e eu podemos desativar as
armadilhas.

- E destruir aquele trabalhão todo? - Luz gemeu. - O que é isso, gente? Oona
tem razão. Esta não é a primeira vez que Kiki desaparece. Nem é a quarta
vez. A gente não devia estar um ou dois dias antes de destruir tudo?

- Talvez Luz tenha razão - disse Betty. - Nossa reunião semanal é amanhã.
Se Kiki não aparecer, podemos invadir sua casa e procurar pistas.

- Muito bem - falei, levantando-me da mesa. - Se todas preferem aguardar,


vamos aguardar. Só espero que estejamos fazer a coisa certa.

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- Aonde você vai? - perguntou Betty.

- Tenho uma pesquisa para fazer. Se Livia e Sidonia voltaram a Nova York,
pode haver uma nota nas colunas de fofocas.

- Mas Oona convocou a reunião e ainda nem deixamos que ela falasse -
protestou Betty. Oona não disse nada. Limitou-se a se concentrar na mesa
diante dela como se desejasse que ela voasse pela janela.

- Desculpe, Oona - eu disse. - O que queria discutir?

- Deixa pra lá - murmurou Oona.

- Por favoooooor - pediu Betty, tentando tirar Oona de seu retraimento.

- Vou esperar. Não é tão importante - disse Oona, e de repente desconfiei


de que fosse.

***

Naquela noite, o clima piorou. Mesmo com as janelas abertas, meu quarto
estava quente o bastante para assar um bode. Deitei-me de camisola na
minha cama, usando o Daily News como leque. Depois que voltei da
reunião, passei um pente-fino em cada jornal de Nova York. Não havia
menção alguma a Livia ou Sidonia Galatzina. Os esquilos gigantes eram a
grande matéria do dia.

Como que para provar à cidade que eles não podiam ser ignorados, os
esquilos invadiram o zoológico do Central Park nas primeiras horas da
manhã e libertaram centenas de animais de suas jaulas. Às seis da manhã,
um corredor contou ter visto um bando de pinguins num banquete de peixe
no Harlem Meer. Uma jiboia foi vista tomando sol na escadaria de uma
mansão da Quinta Avenida, com o volume de um poodle no ventre. Rãs
arborícolas com cores de pedras preciosas pendiam dos galhos de um
pinheiro feito uma decoração de árvore de Natal. Entre os únicos animais
que ficaram no zoológico estavam vários esquilos enormes. Aquele que
ganhou a primeira página do New York Times tinha sido pintado em um
iceberg de plástico do habitat do urso polar. Era uma fera de aparência
homicida com uma placa que dizia grosseiramente: TÁ OLHANDO O QUÊ?

Segundo os jornais, as gravações da segurança do zoológico capturaram


uma figura obscura passando sorrateiramente por vários seguranças
adormecidos, parando de vez em quando para mostrar o traseiro para as

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

câmeras. Como a cara do justiceiro estava disfarçada com habilidade e sua


bunda não trazia feições características, a polícia estava sem pistas.
Começaram a procurar as pet shops e interrogar estudantes de arte, mas o
culpado continuava à solta. Todos em Nova York estava ansiosos para ver o
que ele faria a seguir.

Uma lufada de vento soprou pelo quarto, farfalhando os jornais que eu


atirara no chão. Virei a testa milhada de suor para pegar a brisa e vi uma
cara estranhamente pálida emoldurada por cabelos brancos e desgrenhados
me olhando da escada de incêndio. Quando gritei de pavor, a cara sorriu e
desapareceu. Segundos depois, a porta de meu quarto se abriu e meu pai,
de óculos, colocou a cabeça para dentro.

- Ainda está viva? - perguntou ele, dando uma olhada no quarto.

- Mais ou menos. - Eu me sentia meio fraca devido ao choque.

- Bicho-papão? - perguntou ele.

- Aranha.

Com diploma em entomologia, as simpatias de meu pai estavam com os


insetos do mundo e ele nunca deixava passar uma oportunidade de falar
mal de um aracnídeo.

- Criaturinhas repulsivas - disse ele, tremendo de repulsa. - Sabia que elas


dissolvem as estranhas da presa e depois as chupam como um sacolé? São
os assassinos seriais de oito pernas do filo artrópode. Mas lembre-se: você é
maior do que elas.

- Obrigada pelo conselho - eu falei.

- Meu trabalho é esse - respondeu ele enquanto fechava a porta com um


sorriso.

Depois que ouvi seus passos sumirem, enfiei-me pela janela e cheguei à
saída de incêndio. Kiki Strike estava encostada na parede, esperando por
mim, as roupas pretas e chiques misturando-se na noite. Não era
exatamente a imagem de uma princesa - às vezes é difícil acreditar que ela
era humana. Embora o veneno que ela consumira quando bebê não a
tivesse matado, secara a cor da pele e do cabelo. E como o atentado contra
sua vida a deixou alérgica à maioria dos alimentos, era improvável que ela
passasse de um metro e meio de altura. Aos 14 anos, parecia uma criatura
de um filme de ficção científica, incrivelmente bonita e estranha.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

- Desculpe pelo atraso - sussurrou ela. Mesmo no escuro, eu sabia que havia
alguma coisa errada. Seus olhos azul-claros estejam injetados, as
bochechas ainda mais encovadas, e ela não escovava o cabelo havia dias.

- Vinte e quatro horas. Acho que é seu novo recorde de atraso. Por onde
andou? Eu tinha certeza de que você tinha sido raptada. Passei o dia todo
tentando localizar Livia.

- Verushka estava doente. Tive de levá-la ao hospital.

- Verushka está no hospital? O que ela tem? Ela vai ficar bem? Posso vê-la? -
As perguntas disparavam de minha boca como projéteis de mira ruim e
minha visão se toldou enquanto as lágrimas tomavam meus olhos. Verushka
não só era o tipo de guardiã que eu sempre quis ter - engraçada,
compreensiva e hábil com uma bazuca - mas eu também sabia que tinha
sido ela quem convencera Kiki a me convidar a ingressar nas Irregulares.
Sem a intervenção dela, eu podia ter morrido de tédio muito antes de
chegar ao ensino médio.

- Verushka já está em casa. Ela está indo bem. Houve um problema na


perna dela... Aquela que Sergei Molotov baleou. Começou a ficar azul há
alguns dias. Mas agora está tudo sob controle. Na realidade, ela ia ficar
possessa se soubesse que eu te contei. É uma velha durona. Um dia e a vi
suturar um ferimento na própria cabeça com uma agulha de costura e linha
de pesca. Provavelmente ela vai viver mais do que todas nós.

- Isso não me surpreenderia - concluí. - Mas como você está se sentindo?


Parece que foi mergulhada em água sanitária. Tem certeza de que não
pegou nada no hospital?

- Nada que não possa ser tratado. O que acha de terminarmos o mapa esta
noite?

- Não posso. Algumas de nós têm de ir à escola de manhã. Meus professores


andaram se queixando de que eu apago durante as aulas.

- Quer que eu cuide deles? - perguntou Kiki com uma sobrancelha arqueada
que tive medo de interpretar.

- Acho que posso lidar com eles sozinha - garanti a ela. - Mas preciso mesmo
descansar um pouco. Minha mãe ameaçou me deportar para o meio do
nada se minhas notas não melhorarem.

- Venha comigo esta noite e prometo que vai tirar um cochilo amanhã à
tarde.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

- Ah, é? Como vai fazer isso?

- É surpresa. Eu não ia meter você me problemas.

- Mas não quero ir ao Cemitério de Mármore hoje - gemi. - É trabalho


demais.

- Veja só - contra-atacou Kiki com um sorriso torto. - Eu também pensei


nisso. Se você se vestir rápido, podemos usar a entrada do porão de Iris. Os
pais dela foram a uma festa.

- E a babá?

- A babá se trancou no banheiro há uma hora. Secou uma garrafa de xerez


culinários e agora está cantando musicais sozinha.

- Sei não, Kiki.

O sorriso de Kiki desapareceu enquanto ela tirava uma lasca de tinta da


escada incêndio. Por baixo de toda a arrogância, alguma coisa ainda a
perturbava.

- Você venceu - concordei, irritada. - Fiquei aqui enquanto visto alguma


coisa mais prática. Mas é melhor pensar num plano infalível para me tirar da
escola amanhã. - Voltando a meu quarto, estendi a mão pela janela e lhe
passei a primeira página do New York Times. - Aqui tem uma coisa para
você ler enquanto espera.

- É, eu já vi os esquilos - disse Kiki. - Enquanto estiverem à solta, vão me


deixar longe dos jornais. Graças aos filmes do zoológico, ninguém prestou
atenção em mim o dia todo. Aquela bunda nas gravações de vigilância era
inegavelmente de homem.

Coloquei a cabeça pela janela.

- Preocupada que seus 15 minutos de fama tenham acabado?

- Aliviada - corrigiu Kiki. - Mais 15 teriam me matado.

***

Em junho, as Irregulares recompensaram Iris McLeod, de 11 anos, com uma


associação honorária. Ela não só salvou a vida de Kiki, como também

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descobriu um perfume fedorento que afastava os ratos devoradores de


gente da Cidade das Sombras. Sem a ajuda de Iris, jamais teríamos
continuado nossas explorações, uma vez que nossas Flautas de Hamelin
Reversas pararam de funcionar. Os dispositivos do tipo megafone em
miniatura foram projetados para gerar um ruído que os ouvidos dos
roedores não suportam. Por um tempo, a Flauta Hamelin Reversa funcionou
maravilhosamente, deixando só alguns ratos surdos vagando pelos túneis.
Mas com o tempo esses poucos animais proliferaram em um exército de um
milhão de ratos. Os roedores grandes, ferozes e com deficiência auditiva
estavam novamente à caça de invasores, e qualquer um sem a proteção do
perfume de Iris rapidamente assumiria seu lugar ao lado das centenas de
esqueletos mordidos por ratos que tomavam as passagens e câmaras da
Cidade das Sombras.

Semicerrei os olhos e me segurei na jaqueta de couro preto de Kiki


enquanto ela acelerava o motor de sua Vespa na Bethune Street sem se
incomodar em reduzir numa curva. Quando paramos numa derrapada
diante da casa de arenito de Iris, a primeira coisa que vi foi o logo das
Irregulares estampado na calçada. Um i com o formato de uma menina em
movimento, ele marcava todas as entradas conhecidas para os túneis
subterrâneos. Por baixo de um velho baú no porão de Iris, havia um alçapão
engenhosamente disfarçado. Uma escada comprida e enferrujada levava a
um quarto oculto a 20 metros do nível da rua que antigamente pertencera a
um contrabandista chamado Angus McSwegan. Segundo Vislumbres de
Gotham, um guia do século XIX para o lado negro de Nova York, cada
garrafa do uísque de Angus era batizada com um tico de formaldeído, e
graças a isso o efeito era rápido. Era a bebida preferida da Cidade das
Sombras, que ficava do lado de fora da porta de Angus.

Vi Iris olhando pela janela enquanto Kiki e eu subíamos a escada de sua


casa. Antes que tivéssemos a chance de tocar a campainha, a porta se
escancarou, revelando uma loura mínima com um jaleco branco exagerado.
- Saudações, Irregulares - disse Iris. Como Kiki, Iris era incomumente baixa
para a idade. Ao contrário de Kiki, ela possuía bochechas de querubim que
em geral eram beliscadas por estranhos que a tomavam por uma menina de
8 anos.

Passamos pela porta e entramos no hall da frente, ladeado por máscaras


horrendas e cabeças encolhidas que os pais de Iris colecionavam de
expedições arqueológicas.

- Por que esse jaleco de laboratório? - perguntou Kiki a Iris. - Não me diga
que andou fazendo experimentos com a babá de novo. Há leis contra esse
tipo de coisa, sabia?
Iris riu.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

- Esqueci que estava com ele. Eu estava me preparando para amanhã.

- O que tem amanhã? - perguntei. - Vai participar de uma peça?

- Andei praticando para a reunião de amanhã, lembra? - Iris pareceu


ofendida quando sacudi a cabeça. - DeeDee e eu vamos apresentar nossa
grande descoberta. Aquela em que trabalhamos o verão todo. Lembra
agora?

Eu não me lembrava, mas deduzi que era melhor cooperar.

- Ah, sim, essa apresentação. É, estamos todas muito animadas.

- Devem estar mesmo. Minha descoberta vai fazer o perfume repelente de


ratos parecer água de privada.

- E por falar em repelente de ratos - disse Kiki -, vamos precisar de um novo


frasco esta noite. O meu acabou da última vez e fui perseguida por umas
duas centenas de ratos como se eu fosse feita de marzipã. A propósito, quer
vir? - Era o jeito dela de se desculpar por esquecer da apresentação de Iris.

- Eu adoraria - disse Iris. - Mas meus pais vão chegar a qualquer minuto.
Além disso, quero me certificar de que tudo esteja perfeito para amanhã. Se
precisar do perfume, há um frasco a mais no baú lá embaixo. Só trate de ser
super silenciosa quando sair. Minha mãe achou que tinha um ladrão aqui da
última vez que vocês vieram.

- Desculpe por isso - disse Kiki. - Oona escorregou ao subir a escada.

O nariz de Iris se retorceu ao som do nome Oona.

- Era Oona fazendo todo aquele barulho? A pequena Mestre do Crime?

- Será que vocês não podem se entender? - Kiki suspirou. - Toda essa briga
está começando a encher o saco.

- Eu me entendo muito bem com ela - reclamou Iris. - Não é culpa minha se
ela não gosta de mim. Na segunda-feira ela disse que se eu não ficasse
mais alta, vocês iam me vender a um circo.

- Ela disse isso? - Kiki parecia ao mesmo tempo achar engraçado e


chocante.

- Só porque ela te sacaneia não quer dizer que não goste de você - tentei

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tranquilizar Iris. - Oona sacaneia todo mundo. Ela não sabe agir de outra
forma. É como se fosse socialmente retardada.

- Retardada ou não, é melhor ela ficar esperta - Iris fumegava -, ou um dia


alguém vai ensinar boas maneiras a ela.

Ouvimos a porta se abrir no segundo andar e uma interpretação desafinada


de "Hey, Big Spender" soou pela casa.

- Hora de ir - cochichou Kiki, puxando-me para o porão. - A gente se vê


amanhã, Iris. E sempre que tiver o impulso de colocar Oona no lugar dela,
tem a minha permissão.

- Obrigada - disse Iris com um riso malicioso. - Talvez eu faça isso mesmo.

***

A temperatura caía a cada passo que dávamos na escada que levava do


porão de Iris à cidade perdida abaixo de Manhattan. Na base, eu tremi ao
ligar minha lanterna numa câmara decorada com engradados de uísque
vagabundo e o esqueleto mordido por ratos de Angus McSwegan, cujo
maxilar se abria num sorriso desdentado. Abri meu mapa. O último túnel
inexplorado ficava do lado leste da Cidade das Sombras, a mais de um
quilômetro e meio de distância.

- É melhor irmos andando - falei com um bocejo. - Temos uma longa


caminhada pela frente.

- Ótimo! - Naquele momento, as preocupações de Kiki foram esquecidas. -


Estou com vontade de andar.

Depois da câmara havia um túnel largo e revestido de pedra. Um lado


estava bloqueado por um monte de entulho, resultado de uma explosão
infeliz dois anos antes que tinha mandado DeeDee Morlock para o hospital e
Kiki para o esconderijo. O outro lado do túnel se estendia diante de nós. Um
monstruoso rato cinza atirou-se de um buraco na parede e desapareceu na
escuridão. Ao passarmos pelas portas que levavam aos bares, salões de
jogos e covis de ladrões abandonados da Cidade das Sombras, podíamos
ouvir o bater de milhões de patinhas em volta de nós. Graças ao perfume
repelente de roedores de Iris, os ratos mantinham distância, mas nós duas
sabíamos que eles esperavam por uma oportunidade de atacar.

Tínhamos acabado de virar uma esquina em uma parte conhecida dos

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túneis, a 5 metros abaixo das criptas da antiga catedral de St. Patrick,


quando Kiki pegou meu braço e colocou um dedo nos lábios. Uma porta de
madeira estava aberta, bloqueando o caminho a nossa frente. De início tive
aquela mesma sensação enervante que você tem quando um dia volta da
escola e encontra seus livros reorganizados ou sua mesa de cabeceira de
cabeça para baixo. Mas quando vi o que estava pintado nas tábuas de
madeira da porta, quase disparei para a saída. Embora as Irregulares
adorassem acima de tudo uma nova câmara para explorar, sempre
tínhamos o cuidado de evitar portas trancadas por fora e rotuladas com
uma grande cruz vermelha. Sabíamos bem demais o que encontraríamos.
Quem quer que tivesse aberto a porta, não tinha sido uma de nós.

Contando até três em silêncio, Kiki e eu pulamos diante da porta e


iluminamos a câmara com nossas lanternas. O piso da sala estava cheio de
esqueletos, alguns ainda com roupas mofadas e ternos roídos pelas traças.
Estes eram os cidadãos da Segunda Cidade - os criminosos e trapaceiros
que encontraram o Criador quando a peste de 1869 grassou nos túneis
ocultos de Manhattan. Os poucos sobreviventes trancaram os doentes para
morrer em quartos marcados com uma cruz vermelha. A crueldade deles
evitou que a doença se espalhasse ao mundo no alto e garantiu que a
Cidade das Sombras ficasse esquecida por mais de cem anos.

- Não estou vendo ninguém - expliquei a Kiki enquanto minha lanterna


circulava pela sala. - Acha que a porta pode ter se aberto sozinha?
Kiki examinou a tranca.

- Duvido - disse ela.

Pouco além do facho de minha lanterna, alguma coisa se mexeu e fui


tomada por um terror que já conhecia. Como acontecera muitas vezes
quando visitei a Cidade das Sombras, jamais consegui me livrar da
sensação de que parte dos mortos ainda andava pelos túneis.

- Talvez tenha sido um deles - concluí, apontando a lanterna para um


esqueleto com um chapéu de palhinha. - Talvez tenha sido um fantasma. -
Um volume intenso apareceu por baixo da camisa do morto e se esgueirou
devagar por seu peito. Um rato surgiu da gola e disparou por nós como se
tivesse sido chamado para o jantar.

- Você é tão otimista, Ananka - brincou Kiki. - Tomara que tenha sido um
fantasma. Mas fique de olhos abertos. Pode haver alguém aqui embaixo.
Não percebeu nada estranho nos últimos minutos?

Eu estava prestes a sacudir a cabeça quando finalmente entendi.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

- O silêncio - falei. - Não ouço mais os ratos.

- Exatamente - disse Kiki. - Esse é o primeiro rato que vejo há algum tempo.
Não faz você se perguntar para onde eles foram?

***

O último túnel não mapeado da Cidade das Sombras serpenteava por baixo
do Lower East Side de Manhattan. Suas paredes de tijolos esfarelados eram
menos impressionantes do que as passagens altas e arqueadas em toda
parte da cidade, e às vezes parecia que estávamos andando pelo corredor
de uma penitenciária abandonada. Tirei medidas e fiz anotações enquanto
Kiki investigava os cômodos por que passávamos. A maioria estava vazia,
embora descobríssemos um depósito cheio de barris de ostras em conserva
suficientes para alimentar uma pequena cidade por um ano (mas desconfio
de que a maioria dos moradores preferisse passar de fome). Para nossa
decepção, nenhuma das câmaras parecia ter uma saída para a superfície.
Quando o túnel deu num beco sem saída em uma porta de madeira simples,
preocupei-me em silêncio que nossa última exploração tivesse sido inútil.

Na sala cavernosa além, encontramos dez catres frágeis em uma fileira e


um grande guarda-roupa encostado na parede mais distante. Nove das
camas estavam feitas - os lençóis e cobertores de lã bem dobrados e
enfiados pro baixo do colchão. A décima cama, porém, estava amarfanhada
e seu lençol num monturo no meio do colchão.

- Quem dormiu na minha cama? - brinquei, mas Kiki estava com a orelha
colada na parede ao lado do guarda-roupa e não prestava atenção. Peguei
um livro antigo na mesa de cabeceira. A folha de rosto dizia Guia de uma
canadense para as donas de casa. Folheei o livro, parando para olhar
rapidamente os capítulos que davam instruções convenientes para fazer
suas próprias calcinhas de aniagem e preparar um nutritivo guisado de alce.

- Ei - Kiki chamou. - Ouviu isso?

- Ouviu o quê? Os ratos voltaram?

- Não. Parece água - disse ela. - Me ajude a afastar esse armário.


Juntas, empurramos o móvel pesado, afastando-o da parede. Atrás dele
havia um túnel estreito com altura suficiente para rastejarmos por ele. A
superfície subia em um ângulo acentuado. O rugido da água corrente enchia
o vazio.

- Como eu desconfiava - disse Kiki.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

- Parece arriscado - falei, apontando um par de tábuas no teto do túnel que


estavam vergadas com o peso da terra. - Não acho que a gente deva
verificar antes de Luz dar uma olhada. Pode estar prestes a desabar.

- Tem toda razão. Mas sei aonde este túnel vai dar. É uma rota de fuga para
o rio. Você sai subindo por aqui. - Ela ergueu os olhos para o teto. Ali, acima
de nossas cabeças, havia uma abertura circular cavada na terra - uma saída
da Cidade das Sombras.

Achamos uma escada em um dos depósitos e a arrastamos para a última


câmara. Ao lado do buraco, uma série de degraus de metal levava a um
alçapão. Embora a maior parte das saídas dos túneis parecesse igual, nunca
se sabia onde dariam. Você podia se ver interrompendo um jantar festivo da
máfia, olhando pasma as joias guardadas numa câmara secreta, ou
encarando os olhos do pit bull de um contrabandista. A cabeça de Kiki bateu
no alçapão e ela escutou com cuidado antes de abri-lo e se içar para o
escuro.

- Não vai acreditar nisso - cochichou ela.

Eu me icei para fora do buraco e segui sua lanterna, que circulava por uma
sala enorme. As paredes eram pintadas com murais de prédios antigos e
paisagens com palmeiras. Fileiras organizadas de bancos de madeira
revestiam o chão. Na frente da sala, havia uma arca de dois níveis feita de
madeira e ouro, decorada com um par de leões chorosos.

- É lindo - sussurrou Kiki.

- Acho que sei onde estamos.

- Parece um templo.

- É a sinagoga Bialystoker - informei a ela, querendo que o sr. Dedly


estivesse aqui para ter um gostinho da minha perícia. - Há 150 anos, era
conhecida como a igreja da Willet Street. Soube de boatos de que
antigamente era uma estação da Ferrovia Subterrânea, mas isso ninguém
conseguiu provar. Até agora.

- Então, para que são aquelas camas todas?

- É, antes da Guerra Civil, alguém deve ter escondido escravos foragidos na


Cidade das Sombras e os contrabandeados para barcos no rio à noite.

- Mas ora veja só - Kiki estava maravilhada. - Nosso último túnel inexplorado
e finalmente descobrimos que alguém fez um bom uso da Cidade das

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Sombras. Minha fé na humanidade foi restaurada.

- Faz alguma idea da importância disto aqui? Este alçapão, esta sala, as dez
caminhas... Tudo faz parte da história americana. Não há nada parecido em
lugar algum.

- É por isso que é uma pena que ninguém possa saber deles, a não ser a
gente. - Embora estivesse escuro demais para enxergar, eu podia ouvir a
advertência na voz de Kiki.

Enquanto descíamos à sala abaixo, meu coração ainda martelava de


empolgação e mil pensamentos quicavam por meu cérebro. E se o
descobridor do túmulo do rei Tut o tivesse selado e deixado que o deserto o
tomasse? E se o explorador que descobriu a Cidade Perdida de Machu
Picchu a tivesse deixado oculta nas nuvens?

- Kiki, sente-se por um minuto. Temos que conversar sobre isso - pedi.
De sobrancelhas arqueadas, Kiki se acomodou na lateral da cama
desarrumada. De repente, sua testa se vincou. Ela bateu no lençol ao lado.

- Poupe sua aula para depois. Tem alguma coisa na cama - disse ela,
abrindo com cuidado o lençol. Uma pequena figura de argila caiu no
colchão. Era uma mulher usando uma armadura chinesa antiga, montada
num cavalo preto e gordo. Não havia dúvidas de que era muito mais antiga
do que qualquer coisa que tivéssemos encontrado na Cidade das Sombras.

- As estações na Ferrovia Subterrânea costumavam ser decoradas com arte


chinesa antiga? - perguntou Kiki.

- Provavelmente não - admiti.

- Lá se vai a sua teoria dos fantasmas. Alguém desceu aqui. Então acho que
resta uma pergunta. - Kiki me abriu um sorriso perverso.

- Qual? - perguntei.

- Quem vai olhar embaixo da cama?

COMO DETECTAR A PRESENÇA DE UM INVASOR

Está preocupada que seu espaço privativo possa ser invadido mas não tem
dinheiro para seguranças armados ou feixes de laser? Não precisa pirar - há
dezenas de opções disponíveis. Os dispositivos de segurança baratos e
eficazes a seguir não só indicarão uma entrada não autorizada, como
muitos também matarão um invasor de susto (o que pode ser muito

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

divertido, se você estiver olhando a cena por um binóculo).

Contatos de portas e janelas

Esses pequenos e baratos dispositivos magnéticos são projetados para


emitir um alarme ensurdecedor sempre que é aberta uma porta ou janela.
Podem ser encontrados em qualquer loja de ferragens e também são úteis
para cômodas, caixas de joias, cofres - ou qualquer coisa que você possa
pensar em abrir e fechar. (Seja prevenida: um determinado invasor pode
procurar na internet dicas que ajudarão a desarmar essas engenhocas.)

Detectores de movimento

Acredite se quiser, por um preço um pouco maior do que dois ingressos de


cinema, você pode comprar seu próprio sistema de alerta de movimento.
Coloque o sensor no local certo e espere que alguém entre de fininho em
seu quarto enquanto você está envolvida com seu filme de kung fu
preferido. O sensor mandará um sinal a seu receptor portátil, que a avisará
com um alarme penetrante ou luzes que piscam. (Os detectores de
movimento também funcionam bem para a caça de fantasmas.)

Gravador ativado por voz

Os dois itens anteriores são ótimos para proteger seus pertences quando
você não está longe - mas e se você suspeitar de que alguém está fuçando
quando você não está em casa? Se você não é rica e nem tem talento para
instalar sistemas de segurança eletrônicos, recomendo um simples gravador
ativado por voz, que começará a gravar ao som de movimento. Você pode
não pegar seu xereta no flagra, mas pelo menos terá uma prova concreta
de que aconteceu uma invasão.

Armadilhas de fios

Se você está com pouco dinheiro - ou precisa de um alarme a curto prazo -,


uma armadilha de fios pode ser sua melhor opção. Pegue uma linha de
pesca e a estique pela entrada ou numa área de muito trânsito. (Cuide para
que fique a 30 centímetros do chão). Amarre uma ponta da linha a um
móvel e prenda a outra ponta a um copinho de plástico. Encha o copo de
água e coloque-o em cima de um jornal. Se, quando você chegar em casa, o
jornal estiver molhado - ou não estiver ali -, você saberá que alguém entrou
em seu quarto. (Advertência: este truque talvez só funcione uma vez.)

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Alarmes do tipo faça você mesmo

Se você tem habilidade manual e quer um alarme que faça muito barulho,
uma rápida busca na internet e levará a instruções para produzir uma
ampla variedade de alarmes com peças que talvez já estejam em sua
garagem.

CAPÍTULOS TRÊS

Eau Irresistible

Às oito horas da manhã seguinte, arrastei-me para dentro da Escola para


Meninas Atalanta, uma academia particular no Upper East Side de
Manhattan, e encontrei os sagrados corredores zumbindo de milhares de
conversas aos cochichos.

"Ela é quase toda plástica, sabia?"

"Que cadeia coisa nenhuma. Se a polícia um dia aparecer na minha casa,


vou terminar dormindo numa caixa na Quinta Avenida."

"Adivinha só quem jantou com o namorado de você-sabe-quem no sábado?"

"O presidente esteve na nossa casa no fim de semana, e ele disse..."

Embora muitas de minhas ricas colegas de escola não soubessem ver a


hora sem um relógio digital, todas eram insuperáveis em um assunto -
fofoca. Pelo menos uma vez por ano, em geral depois de um boato maldoso
que leve uma aluna a se esconder de um de nossos professores toma para
si a responsabilidade de nos alertas que a fofoca é cruel e mesquinha, e é
uma perda de tempo. Embora eu esteja inclinada a concordar com a
primeira parte, a segunda não podia estar mais distante da verdade. A
fofoca é apenas informação que foi empacotada de forma inteligente e pode
ser um instrumento poderoso se você souber usá-la. Revoluções
começaram com um único cochicho. Um papo meio despreocupado pode
acabar com uma estrela de cinema. E qualquer bom detetive lhe dirá que
um comentário descuidado pode revelar um crime.

Quando se lida com fofoca, o truque é ficar de boca fechada. Trocar


histórias é como nadar nua no rio Hudson. Parece muito divertido, até que
você acorda de manhã com uma assadura braba onde não veria. Descobri
que é melhor observar (e ouvir) de longe e resistir ao impulso de participar.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Como as aulas voltaram, fiquei zanzando pelos corredores fingindo cuidar


da minha vida, enquanto pegava fragmentos de informações que voavam
pelo ar. Durante semanas, o tema mais quente foi a prima de Kiki Strike,
Sidonia Galatzina, que todos na Atalanta conheciam como a Princesa. Rica,
da realeza e totalmente cruel, a Princesa mandou na escola por anos antes
de finalmente sucumbir ao escândalo. Em junho, quatro de nossas amigas
mais íntimas foram presas sob a acusação de sequestro e a Princesa
desapareceu antes que a polícia pudesse fazer alguma pergunta. Alguns,
como as autoridades, acreditam que a própria Princesa foi uma vítima. Eu
era uma das pessoas que sabiam que a linda menina de cabelos pretos e
olhos dourados tinha planejado todo o incidente.

Parece que todo mundo na Atalanta tinha uma teoria sobre o paradeiro da
Princesa. Em setembro, ouvi duas meninas do primeiro ano que
conseguiram se convencer de que Sidonia estava morando em um castelo
nos Alpes, noiva em segredo do príncipe Uder de Liechtenstein. (Kiki deu
uma boa gargalhada com essa.) Mais tarde, ouvi que Dylan Handworthy
tinha visto a Princesa em um anúncio japonês de desinfetante de privada.
(Embora a modelo fosse somente parecida, cópias coloridas do anúncio
rapidamente foram coladas em cada banheiro da escola.) Mas a teoria mais
promissora nunca chegou a público. Alex Upton insistia ter esbarrado na
Princesa enquanto visitava a Galeria de Rubens no museu Hermitage em
São Petersburgo. Alex se gabava de que Sidonia havia apresentado seu
companheiro Oleg Volkov, um gângster russo que se acreditava ser um dos
dez homens mais ricos do mundo. O que chamou minha atenção foi a data.
Se Alex estava dizendo a verdade, a Princesa e sua mãe ainda estavam em
São Petersburgo em agosto - um mês inteiro depois de as Irregulares
perderem seu rastro.

Fui a sombra de Alex por mais de uma semana, na esperança de obter mais
informações. Mas nesta manhã eu estava cansada demais para o trabalho
de detetive. Fo só por acaso que passei por perto enquanto ela conversava
com uma amiga na frente do laboratório de biologia.

- Os esquilos não atacam pessoas - insistia a amiga. Parei e fingi mexer no


meu caderno, morrendo de vontade de informar a elas que uma busca
rápida na internet provaria que os esquilos tendem à violência contra seres
humanos.

- Só estou te contando o que eu soube - disse Alex. - Não ligo se você


acredita.

Uma terceira menina se juntou ao grupo.

- Acredita no quê?

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

- Uma das bolsistas disse que foi atacada por esquilos ontem.

- Esquilos? - repetiu a recém-chegada, incrédula.

- Foi o que eu disse - zombou a segundo menina, sentindo-se mais


confiante, agora que chegara apoio.

- Não, é só que aquele amigo do meu irmão teve o iPod roubado por um
esquilo ontem - disse a terceira menina.

- Está vendo? - Alex parecia triunfante.

- É, ele tinha saído de uma exposição no museu e estava indo a pé para


casa pelo Central Park quando um esquilo desceu de uma árvore e pousou
na cabeça dele. Depois pegou o iPod dele e correu para os arbustos.

- Como um esquilo pode pegar um iPod? - perguntou a cética.

- Ele disse que não era um esquilo comum. Era imenso... Tipo, com meio
metro. Ele tentou avisar a um policial, mas o cara riu e disse a ele para não
usar drogas. Ei, que cheiro é esse?

- Que cheiro?

- Quer dizer que não está sentindo? Parece um banheiro químico carregado
de chili.

Bastou uma farejada rápida para confirmar que havia mesmo um toque de
esgoto no ar. O odor ficava mais forte e começou a vagar por toda a escola.
Centenas de narizes foram tapados de nojo e as paredes soavam com um
coro de "Ecaaaa!"

- Atenção! - ladrou a diretora Wickham pelo alto-falante. - Recebemos um


alerta da vigilância sanitária de que houve um refluxo de esgoto no prédio e
precisamos evacuá-lo. Alunas do oitavo ano para baixo, por favor, reúnam-
se no pátio. Alunas do primeiro ano do ensino médio para cima estão
dispensadas até amanhã de manhã.

Cem vozes nasaladas soltaram um grito. Kiki Strike cumpriu sua promessa.

***

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Enquanto eu ia para casa para uma soneca muito necessária, uma menina
pálida e baixinha de peruca preta e óculos de sol se junto a mim na esquina
da 68 com a Lexington. Como tinha sido aluna da Escola Atalanta, Kiki não
podia se arriscar a ser reconhecida. Andamos em silêncio para o metrô e
esperamos na extremidade da plataforma.

- Ótimo trabalho! - Eu a elogiei depois que não havia mais ninguém por
perto para ouvir. - Como você conseguiu que o esgoto fluísse?

- Não fiz isso. Só liguei para a diretora Wickham - ela se gabou. - Ah... E
depois atirei uma daquelas belezinhas pela janela do banheiro. - Ela abriu a
mão o bastante para revelar uma bomba de inhaca do tamanho de uma
ameixa. - DeeDee tem uma caixa cheia delas no laboratório. Adivinha qual é
o ingrediente secreto?

- Cocô? - arrisquei.

- Fresquinho, das calçadas do Upper West Side. Ela fez um acordo com um
cara que leva cães para passear no bairro dela.

- Que nojo - falei. - Espero que leve as suas mãos quando chegar em casa.

- Está vendo até que ponto eu vou para evitar que você se lasque? - disse
Kiki.

- O que agradeço, acredite. Só espero que eu consiga chegar em casa. Será


um milagre se não dormir no metrô e parar no Brooklyn. Aliás, soube de
uma coisa interessante antes de você evacuar a escola.

- Onde dizem que Sidonia está agora... pastoreando cabras no Uzbequistão?


- Kiki riu.

- Não, não era sobre Sidonia. Era sobre os esquilos. Eles começaram a
assaltar as pessoas no fim de semana.

- Foi o que eu soube. Eu estava pensando em fazer uma pequena busca por
esquilos enquanto estiver por aqui. Mas agora os roedores cleptomaníacos
não são a minha maior preocupação.

- Tem razão. Primeiro temos de descobrir quem esteve no túnel.

Pelo mais breve dos instantes, Kiki pareceu confusa.

- É claro - disse ela, assentindo vigorosamente. - O invasor é prioridade


máxima.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Um trem entrou na estação com um guincho de ensurdecer. Eu embarquei,


mas Kiki ficou na plataforma. Acho que ela pôde sentir a pergunta que eu
estava morrendo de vontade de fazer.

Inclinei-me para fora das portas.

- Você não vem?

- Pensando bem, vou dar uma caminhada no parque - disse Kiki. - Vejo você
na reunião.

***

- Rápido! Está atrasada! - DeeDee praticamente gritava ao abrir a porta de


sua casa perto da Universidade de Columbia. - Todo mundo está lá em cima
no laboratório e Oona está nos deixando doidas.

- Desculpe. Dormi demais. - Segui DeeDee enquanto ela quicava por cinco
lances de escada até o sótão. Os fundilhos da calça davam a impressão de
que ela tinha sentado num pudim de graxa, e uma gororoba roxa que
balançava feito gelatina estava grudada em suas trancinhas. - Kiki usou
uma de suas bombinhas de inhaca para fechar a Escola Atalanta, então eu
pude tirar uma soneca.

- Que bom que alguém encontrou utilidade para elas. Meus pais ameaçaram
se mudar se eu não parasse a produção. Toda a casa fede a uma fábrica de
fertilizante. Nem posso te dizer o alívio que foi quando comecei a trabalhar
com Iris.

- Então é essa a grande descoberta de que Iris andou falando? - perguntei.

- Meus lábios estão selados, Nancy Drew. Iris me mataria se eu estragasse a


surpresa - respondeu DeeDee. - Trabalhamos nisso o verão todo.

- Espero que você não a deixe usar nenhuma substância perigosa - ressaltei,
sabendo que a elegância não estava entre os muitos dons de Iris. - Não
estou a fim de morrer hoje.

- Por que todo mundo trata Iris como uma criancinha? - DeeDee fungou. - Eu
estava fazendo meus primeiros explosivos quando tinha 11 anos.

- É, e olha aonde isso te levou. - Apontei para a cicatriz que atravessava sua

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

testa, resultado infeliz de um lote incomum de explosivos.

- Não acha que isso me deixa interessante? - DeeDee levava tudo a sério,
menos sua aparência. - Na minha escola, todo mundo quer conhecer a
garota da cicatriz.

***

No alto das escadas ficava o quarto e laboratório de DeeDee. Ela tentou ao


máximo arrumá-lo para a reunião, mas o armário estava inchado de roupas
sujas e uma coleção impressionante de embalagens de comida chinesa
delivery espiava por baixo da cama. Nem suportei pensar no que tinha sido
varrido para baixo do tapete. Um monturo do tamanho de uma bola de
softball emitia um odor que só podia ser descrito como catinga. Mas
DeeDee não parecia se importar. No que dizia respeito a ela, o trabalho
doméstico era para pessoas que tinham tempo demais nas mãos e de
menos na cabeça. Só seu laboratório, que tomava metade do quarto
grande, era imaculado. Béqueres, frascos e tubos de ensaio de vidro
cintilavam como cristal, e um arco-íris de substâncias - algumas brilhando -
estava organizado nas prateleiras.

Na frente do laboratório, seis cadeiras de armas foram dispostas em semi-


círculo e todas, exceto duas, estavam ocupadas. Luz puxava impaciente o
rabo de cavalo enquanto Betty Bent reaplicava um jogo de cílios postiços
que tinham descolado. Eu esperava ter a oportunidade de perguntar a Kiki o
que a incomodava, mas Oona já estava sentada ao lado dela.

- Quanto tempo isso vai levar? - ouvi Oona perguntar. - Tenho uma coisa
importante para falar.

- Vai levar o tempo de que Iris precisar - disse Kiki, asperamente. - Ananka e
eu também temos novidades, mas estamos dispostas a esperar nossa vez.
Iris está ansiando por isso há meses.

Oona revirou os olhos e fitou o teto. Peguei a cadeira mais distante possível.
DeeDee bateu de leve na porta do banheiro e a cabecinha de Iris espiou o
laboratório.

- Estão todas aqui? - cochichou ela para DeeDee. - Podemos começar?

- Não podemos te ouvir, Iris - disse Oona. DeeDee lhe lançou um olhar
desagradável.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

- Sim, estão todas aqui - disse ela a Iris. A porta do banheiro se fechou de
novo enquanto DeeDee se sentava.

Exatamente dez segundos depois (ela devia estar contando), Iris fez sua
entrada. Usava um jaleco de laboratório enorme que chegava aos
tornozelos e óculos de proteção laranja. O cabelo tinha sido puxado num
coque de aparência oficial.

Oona riu.

- Por que ninguém me contou que era Halloween? - ela cacarejou.

- Qual é o seu problema? - grunhiu DeeDee.

- SHHHH! - insistiu Kiki.

Iris fez o máximo para ignorar a comoção.

- Boa tarde, companheiras Irregulares.

- Oi, Iris - disse Betty. Em homenagem ao grande dia de Iris, ela vestiu um
terninho Chanel vintage e sua peruca ruiva preferida.

- Obrigada por virem. Espero que todas achem minha apresentação


interessante e educativa. - Iris abriu um armário e pegou uma bandeja
prateada. Nela havia dois frascos de cristal cheios de um líquido âmbar.

Luz virou-se para DeeDee.

- O que é, mais perfume?

- Iris responderá a suas perguntas esta noite - respondeu DeeDee.

- Então você andou fazendo perfume? - bocejando, Luz perguntou a Iris.


Tinha pouco interesse em coisas de mulherzinha.

- Pode-se dizer que sim. - Iris deu um sorriso forçado.

- Posso cheirar?

- Desculpe, Betty. Eu esperava que Oona fosse a primeira a experimentar


minha nova criação. Chama-se Fille Fiable.

- Pode esquecer, Iris. Já estou com perfume - disse Oona. - Foi feito sob

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encomenda por um perfumista profissional e custa 400 dólares o frasco de


25ml. Não estou interessada em feder a laboratório de química.

- Compreendo perfeitamente. - Quando Iris parece tomar o insulto com bom


humor, comecei a ficar preocupada. - E se eu colocar um pouco no meu
próprio pulso e deixar você dar uma cheirada?

- Iris... - disse DeeDee num tom de alerta. Vi uma das sobrancelhas de Kiki
se erguer.

- Está tudo bem, DeeDee - insistiu Iris. - Oona não precisa usar para apreciá-
lo.

- Sei que vou sobreviver - disse Oona, revirando os olhos e levantando-se da


cadeira.

Iris pegou um dos frascos de cristal na bandeja. Puxando a manga do jaleco,


passou um pouco do líquido no braço e o agitou no ar antes de oferecê-lo a
Oona. Oona se curvou e inalou fundo. Seu nariz de imediato se enrugou de
nojo.

- Acho que precisa de um nome melhor para isso - disse ela. - Que tal Eau
de Sovaco? É quase tão horroroso quando se perfume repelente de ratos.

Iris assentiu pensativamente.

- Achei que diria isso. Não é especial o bastante para uma garota de seu
gosto. Quer dizer, olhe para você. São brincos de diamante que está
usando, não são?

- Dois quilates cada um - gabou-se Oona. Todo mundo tinha um ponto fraco,
mas Oona tinha mais do que sua parcela de direito. No topo da lista que
incluía bolsas de crocodilo e meias de cashmere, estavam diamantes.

- São lindos - disse Iris, deixando perfeitamente claro que queria dizer o
contrário. - Mas você fica meio vagabunda com eles. Acho que fica melhor
em Ananka, não concorda?

O restante de nós prendeu a respiração, esperando que começasse a


carnificina. Deslizei para a frente de minha cadeira, preparando-me para
pular em resgate a Iris. Foi quando Oona surpreendeu a todas nós.

- Sabe de uma coisa, você tem razão - concordou ela. - Sempre pensei que
eles eram meio bregas. Quer, Ananka? - Ela tirou os diamantes das orelhas
e os jogou no meu colo.

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- E esse vestido - disse Iris. - Não a valoriza muito. Li na Vogue, na semana


passada, que está muito mais na moda usar só uma combinação durante o
dia.

- É mesmo? - disse Oona. - Devo ter perdido essa edição. Acha que eu devia
tirar o vestido? Estou com uma combinação por baixo. Mas não ia ficar meio
frígido?

- Frio, idiota - declarou Iris. - Uma mulher deve estar disposta a sofrer pela
moda.

- Mas não posso estar mais de acordo! - anunciou OOna, tirando o vestido.
Ela se postou na nossa frente com uma combinação rosa-clara. - Que tal
isso? Fabulosa, não é?

Luz caiu da cadeira, rindo.

- Está drogada, Lopes? - cortou Oona. - Tanto faz. Eu não esperaria a


compreensão de uma garota que se veste como o Mr. Goodwrench.

- Hmmm, Iris - eu disse, reprimindo uma gargalhada. - Até que ponto você
vai com isso? - Iris me ignorou.

- Você está ótima, Oona. Depois da reunião, vamos até sua casa nos livrar
de todas as coisas feias do seu armário. Aliás, eu sempre me perguntei
onde você morava. Ninguém jamais foi a sua casa, não é? Por que não nos
conta?

- Já chega - ladrou Kiki antes que Oona tivesse a oportunidade de falar. Ela
pegou o vestido de Oona e lhe entregou. - Vá ao banheiro e vista suas
roupas - ela a instruiu.

- Mas esse vestido é horrendo! - Oona gemeu.

- Confie em mim - insistiu Kiki.

Depois que Oona fechou a porta do banheiro, Kiki passou um braço


orgulhoso em Iris.

- Impressionante - disse ela. - Cruel, mas impressionante.

- Obrigada! - cantarolou Iris. - Oona estava pedindo por isso.

- É verdade, mas espero que não tenha ido longe demais. Não queira ter

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Oona como inimiga. Você sabia disso, DeeDee?

- Não, mas concordo com Iris. Oona estava pedindo por isso.

- Estou com DeeDee. Ninguém me faz rir tanto há meses - disse Luz. - Então
o perfume pode forçar as pessoas a fazerem o que você quer?

- Bem que eu gostaria. O Fille Fiable só faz as pessoas confiarem em você.


Se derem uma fungada completa, ficarão mais dispostas a contar os
segredos delas... Ou a acreditar no que você lhes disser - explicou Iris.

- Quanto tempo leva para passar o efeito? - perguntei.

- Só alguns minutos - DeeDee me garantiu. - Oona deve recuperar o juízo


logo.

Olhei para Iris.

- Neste caso, eu recomendaria dar no pé rapidinho.

A porta do banheiro bateu na parede, tilintando os frascos de vidro de


DeeDee. Por um momento, pensei que podia explodir uma briga, mas Oona
simplesmente veio até mim e pegou os diamantes.

- Truquezinho engraçado - murmurou ela a ninguém em particular antes de


sair do sótão num rompante e descer a escada.

Enquanto o restante de nós ficava sem fala, Betty e DeeDee partiram atrás
de Oona.

- Epa - disse Luz, enfiando a mão no fundo dos bolsos do macacão. - Parece
que Oona teve uma overdose do próprio remédio.

- Eu não pretendia magoá-la - disse Iris. - Só estava tentando retribuir por


todas as vezes em que ela se divertiu à minha custa.

- Você deve ter atingido um ponto fraco - falei. - Ela vai perdoá-la.

- Acha mesmo? - perguntou Iris, cheia de esperança.

- Claro. - Minha mentira não era convincente e Iris começou a fungar assim
que Betty e DeeDee voltaram, sem fôlego.

- Ela não vai voltar - anunciou DeeDee. - Vamos continuar com o show. Já
tive o suficiente de Oona por hoje. Na verdade, eu mal me lembro de

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

quando não fiquei enjoada de Oona. Se quer saber, a menina dá mais


trabalho do que vale. - DeeDee bateu a mão na boca. - Caramba... O que foi
que eu disse? Esse perfume realmente solta a língua da gente.

- Oona só está chateada - disse Betty. - Tem alguma coisa errada. Ela agiu
de forma estranha a semana toda. Não acham melhor adiar a reunião?

- Não podemos - disse Kiki. - Vamos deixar Iris terminar a apresentação.


Depois temos negócios importantes a discutir. Vou falar com Oona esta
noite. Ela vai voltar. Vamos precisar da ajuda dela. Iris? Está pronta?

Uma Iris de olhos meio lacrimosos voltou à sua apresentação.

- Humm. Onde eu estava mesmo? Tá legal. Depois que o perfume que meus
pais trouxeram de Bornéu funcionou tão bem nos ratos, comecei a pensar
em outras coisas que eu podia fazer. E aí li no jornal sobre uns cientistas da
Suíça que inventaram um spray que faz as pessoas parecerem confiáveis.
Quando contei a DeeDee sobre isso, ela se ofereceu para me ajudar a
melhorar a fórmula deles.

- Os suíços usaram ocitocina, um hormônio secretado pela glândula


pituitária, com funções de neurotransmissor... - começou DeeDee.

- Dá para falar na nossa língua? - perguntei.

- Claro. - DeeDee sorriu. - Para aquelas de vocês que preferem dormir nas
aulas de biologia, a ocitocina é uma substância em nosso corpo que nos
ajuda a formar laços com os outros. Compõe o que nos ajuda a nos
apaixonar. Mas em pequenas doses, ela faz com que você confie nas
pessoas a seu redor. Por exemplo, a ocitocina é um dos motivos para que as
meninas gostem de fofocar e trocar segredos. Isso é bom. Não precisamos
mudar a fórmula suíça; só a tornamos um pouco mais potente. Foi assim
que chegamos ao Fille Fiable.

"Testamos nosso primeiro lote em um cinema desta rua. Só passava filmes


pornô e pensei que poderia convencer o pessoal da bilheteria de que Iris
tinha 17 anos. Não foi a melhor ideia que tive. A mulher da bilheteria estava
atrás de 5 centímetros de vidro e não conseguiu sentir o cheiro do perfume.
Mas as pessoas na fila atrás da gente ficaram tão ultrajadas quando não
entramos que exigiram ver o gerente.

- Eles foram tããão legais. - Iris começava a gostar da apresentação de novo.

- Eles foram expulsos do cinema - disse DeeDee. - Iris e eu tivemos de sair


dali antes que o efeito do perfume passasse e eles deduzissem que

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brigavam para deixar uma menina de 11 anos ver um filme obsceno.

Iris se intrometeu:

- Mas depois pensei em outra maneira de testar o perfume. Meu pai uma
vez me disse que há centenas de dinossauros no porão do Museu de
História Natural que ninguém jamais verá. Então DeeDee e eu convencemos
um dos seguranças para nos levar numa excursão.

- É um pouco mais complicado do que isso - explicou DeeDee. - É preciso ter


cuidado com a fórmula. Você não pode simplesmente inventar uma coisa
que seja totalmente inacreditável. Não podíamos dizer ao segurança que
éramos professoras visitantes de paleontologia ou coisa assim, então
pensamos em algo mais realista. Dissemos a ele que o pai de Iris estava
pesquisando nos arquivos de dinossauros e que precisávamos contar a ele
que a mãe de Iris estava prestes a ter um bebê.

- Dissemos que o celular dele estava desligado - acrescentou Iris.

- Funcionou perfeitamente. O segurança nos levou por todo o porão. Iris


tinha razão. Eu nem acreditei no que eles tinham guardado lá. Vimos ossos
que eu juro que não vieram de nenhuma criatura da Terra sobre a qual eu
tenha lido. É claro que tivemos de reaplicar nosso Fille Fiable a cada vez que
o segurança dava as costas. Quando estávamos prestes a ir embora, Iris
fingiu receber uma mensagem de texto que dizia que o pai já estava a
caminho do hospital.

- Inteligente. - Kiki assentiu com aprovação.

- E o que é o troço no outro vidro? - perguntei.

Iris ergueu o frasco de cristal. Seu conteúdo âmbar brilhava na luz.

- Este é o Eua Irresistible. Nossa segunda obra-prima.

- Percebemos que, com alguns retoques, nossa poção podia ter outras
utilidades - disse DeeDee. - Ainda não testamos, mas se nossos cálculos
estiverem corretos, deve fazer jus ao nome.

- É uma poção do amor? Anda logo, borrifa um pouco aqui - ofereceu-se


Betty, estendendo o braço.

DeeDee sacudiu a cabeça.

- Não acho que seja uma boa ideia. Como eu disse, ainda não testamos.

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- Tem que começar por algum lugar - disse Luz. - A Betty me parece uma
boa cobaia.

- Tudo bem, Betty, mas não vá reclamar comigo se começar a brotar cabelo
nos lugares errados - alertou DeeDee.

- Por que eu reclamaria disso? Sabe quanto custa um bigode falso


convincente hoje em dia? Quando quiser, Iris.

Iris tirou o atomizador do vidro e passou em Betty.

- Não acho que deva receber um borrifo completo. DeeDee estava


brincando sobre o cabelo, mas pode provocar assaduras.

Betty passou um pouco de Eau Irresistible no pulso e inalou.

- Ai. Tem cheiro de chulé. Vamos ser se funciona. - Ela se virou para Luz e
bateu os cílios falsos. - Você me acha irresistível? - perguntou ela numa voz
ardente.

Luz inclinou-se para Betty, como que atraída pelo cheiro do perfume.

- Sabe de uma coisa, Betty, nunca conheci alguém completamente... - Luz


parou como se procurasse pela palavra certa. - ...resistível.

Todas nós rimos e Betty deu de ombros.

- Valeu a pena tentar, né? Tudo em nome da ciência.

- Talvez só funcionasse com o sexo oposto - disse DeeDee. - Ou talvez você


não tenha passado o bastante. Vamos ter que fazer alguns testes antes de
termos certeza.

Iris avançava para pegar o vidro de Eau Irresistible com Betty quando
tropeçou na beira do tapete de DeeDee. Vendo Iris se atirar para ela, Betty
inclinou-se muito para trás e a cadeira virou. Kiki pegou o vidro de perfume,
mas antes disso a maior parte do conteúdo foi derramada. Betty olhou para
cima chocada, a peruca vermelha ensopada de perfume, enquanto o cheiro
de chulé enchia o quarto. Iris olhou, petrificada, quando DeeDee tirou o
cabelo da cabeça de Betty e o jogou num canto. Depois arrastou Betty ao
banheiro e lhe deu um banho totalmente vestida.

- Enxágue o máximo que puder enquanto ainda estiver vestida - ouvimos


suas instruções. - Depois tome um banho. Tem toalha no armário. Vou

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trazer alguma coisa para você vestir.

- Mil desculpas! - exclamou Iris enquanto DeeDee fechava a porta do


banheiro e voltava ao laboratório.

- Acidentes acontecem - murmurou DeeDee, vasculhando o armário em


busca de roupas limpas.

Iris abriu a porta do banheiro.

- Desculpe, Betty! - gritou ela pela fresta.

- E nós? - Luz gemeu. - Pelo cheiro, parece que tem uma meia gigante e
suada aqui.

- Vou abrir a janela - eu disse, apertando o nariz.

- Sabe de uma coisa, DeeDee, não acho que aplicar mais dessa coisa vá
fazer com que funcione melhor - Kiki informou à nossa anfitriã. - Ninguém
neste quarto parece muito atraente agora.

- É - admitiu DeeDee. - Acho que vamos voltar à prancheta com o Eau


Irresistible.

***

Dez minutos depois, Betty saiu do banheiro e se sentou ao lado de uma Iris
infeliz. Usava uma camiseta de clube de química e jeans de DeeDee, que
era uns 8 centímetros mais curto e coberto de manchas verdes. Apesar da
roupa nada elegante, era um pouco enervante ver Betty sem disfarce. Por
baixo de toda a maquiagem e narizes de borracha, ela era
extraordinariamente bonita.

- Achei sua apresentação fascinante - disse ela, mais preocupada com Iris
do que consigo mesma. - Não se preocupe comigo.

- Você ainda está fedendo um pouco - Iris fungou... Pode durar alguns dias.

- Não ligo. Comprei um novo uniforme de lixeiro que estou morrendo de


vontade de experimentar - disse Betty. - A gente pode aprender todo tipo de
coisa interessante fuçando o lixo dos outros. O cheiro deve tornar o disrface
mais convincente.

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- É verdade - disse Iris, animando-se um pouco. Ela entregou um saco


plástico a Betty. - Luz ia atirar sua peruca pela janela, mas eu sei que é sua
preferida, então a salvei. Mas talvez você prefira lavar antes de usar de
novo.

- Ou queimar - disse Luz. - Já acabamos aqui? Eu disse a minha mãe que ia


chegar em casa à oito.

- Ainda não - disse Kiki. - Sente-se. Há mais algumas coisas na agenda.

- É sobre os ataques de esquilo? - perguntou Betty.

- Você ouviu falar deles? - perguntei.

- Claro. Uma menina na escola teve a carteira roubada. Todo mundo está
falando nisso.

- É, ontem um garoto foi assaltado no Morningside Park - acrescentou Luz. -


E outra noite um esquilo gigante apareceu na janela da loja de banho e tosa
do primo de uma amiga minha. Esses roedores estão virando uma ameaça
de verdade.

- Vamos tratar da questão dos esquilos mais tarde - disse Kiki. - Agora
temos problemas maiores. Ananka, quer contar a elas?

- Alguém esteve na Cidade das Sombras. Kiki e eu descemos ontem à noite.


Primeiro encontramos aberta uma das portas com a cruz vermelha, depois
descobrimos isto. - Quando ergui a estatueta chinesa, vi três caretas
femininas. Elas sabiam que significava encrenca, e só Iris parecia preparada
para o início da aventura seguinte.

- Pode ser a Fu-Tsang? - perguntou Betty. Graça a Sidonia Galatzina, a


gangue de contrabandistas chineses já entrara na Cidade das Sombras. -
Eles não fazem contrabando de coisas assim?

- Duvido que seja a Fu-Tsang - disse Kiki. - A maioria deles está na cadeia. O
restante provavelmente te medo demais dos ratos para descer os túneis.
Três deles foram mesmo devorados da última vez.

- Então, quem acha que pode ser? - perguntou Luz.

- Não sabemos - admiti. - Nem sabemos como entraram lá.

- Mas precisamos descobrir - disse Kiki. - Alguém tem alguma idéia?

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- Tenho alguns detectores de movimento que acabei de fazer - disse Luz. -


Eu ia usá-los para evitar que minhas irmãs xeretassem minha oficina, mas
acho que isso pode esperar. Vou ter que fazer outros, mas não deve
demorar muito.

- Quando vão ficar prontos? - perguntou Kiki.

- Se eu ficar acordada até tarde, posso ter tudo preparado amanhã. Mas há
uma coisa de que vou precisar.

- O quê?

- Se quisermos colocar os detectores de movimento em todos os lugares


certos - disse Luz -, vou precisar do mapa da Cidade das Sombras.

Eu estremeci quando ela disse isso. Ao longo de todo o verão, assumi a


responsabilidade, sozinha, pela guarda do mapa. Afinal, só restavam duas
cópias dele no mundo. O primeiro mapa inacabado estava em um disco
roubado por Sidonia Galatzina. O segundo era uma única folha de papel que
em geral eu guardava enfiada entre as páginas de Vislumbres de Gotham.
Não havia outras cópias, nem arquivos de computador. Depois de tudo o
que aconteceu, as Irregulares não podiam se arriscar a deixar a versão final
cair em mãos erradas. Nunca afirmei possuir poderes paranormais, mas no
momento em que o mapa não estivesse mais em meu poder, eu sabia que
era encrenca na certa.

COISAS QUE VOCÊ PODE APRENDER VASCULHANDO O LIXO

Vários anos atrás, um britânico misterioso começou a fornecer histórias


constrangedoras aos jornalistas de Londres sobre a vida particular de gente
famosa - e ninguém conseguiu descobrir de onde ele tirava as informações.
Muitos sugeriram que ele estava invadindo computadores de celebridades
ou vigiando suas casas com câmeras ocultas e dispositivos de escuta. A
verdade era muito mais... suja. Todos os furos vinham de uma fonte de
baixa tecnologia - o lixo.
Nos Estados Unidos, o lixo é propriedade pública. Assim que você o coloca
no meio-fio, qualquer um pode dar uma olhada. É uma arca do tesouro de
informações para detetives, jornalistas, pais e criminosos que não têm
escrúpulos em revirar suas cascas de banana e papel higiênico usado para
descobrir o que tem depois. Um único saco de lixo pode revelar o seguinte:

Tudo que um vigarista precisa para fazer uma farra de compras

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Cuidado quando jogar fora qualquer documento que traga sua conta
bancária ou números de cartão de crédito, a não ser que esteja disposta a
pagar a conta das férias em Las Vegas de um estranho ou suas ligações
para uma hotline de psicóticos.

Seus números de telefone (e de quem liga para você)

Uma conta de celular dará a um enxerido uma lista dos telefonemas que
você fez ou recebeu por um mês inteiro. Então, cuidado com quem conversa
- ou destrua sua conta antes que ela chegue ao aterro sanitário.

Uma lista de amigos, amados e inimigos mortais

Anda trocando bilhetinhos com a paixão de sua amiga? Sua avó totalmente
ignora o conselho do programa de proteção a testemunhas e lhe manda um
cartão de aniversário? Você andou babando para fotos nada lisonjeiras de
seu abominável professor de matemática? Jogue tudo de forma apropriada
no lixo, ou esteja preparada para pagar o preço.

Suas realizações acadêmicas (ou a falta delas)

Se você é uma aluna estelar, esta pode não ser sua maior preocupação. Mas
se suas provas escolares revelam que você anda passando muito mais
tempo explorando sites nada educativos na internet, você pode querer
dispor das evidências de uma maneira discreta.

Um cardápio de suas comidas preferidas

Uma vegetariana declarada que curte um hambúrguer escondido de vez em


quando - ou uma maníaca por saúde que cultiva um amor proibido por bolos
recheados - deve ter em mente que uma olhada na lada de lixo pode revelar
todos os seus pontos fracos.

Seus maus hábitos

Você sabe quais são. Você se importaria de compartilhá-los com os outros?

Todos os lugares em que você esteve

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Itens incontáveis de seu lixo - recibos, sacolas de compras, passagens


aéreas, curativos cirúrgicos - podem ajudar alguém a descobrir suas
atividades. Só os joque no lixo se você se comportou muito bem.

CAPÍTULO QUATRO

O ataque dos esquilos

Pela primeira vez em semanas, eu estava enfiada na cama num horário


razoável, mas por mais que contasse pombos (não estava familiarizada com
carneirinhos), não conseguia dormir. Oona estava zangada, Kiki estava
preocupada, esquilos atacavam gente inocente no parque e alguém tinha
entrado na Cidade das Sombras. Mas, pior de tudo, o mapa estava nas mãos
de Luz - e fora de meu controle.

Na manhã seguinte, eu fui praticamente sonâmbula para a escola. No início


do primeiro tempo, já havia deixado meu livro de geometria no metrô,
machuquei minha virilha esbarrando num parquímetro e esqueci de desligar
meu celular. Justo quando eu começava a cochilar no meio da aula do sr.
Dedly sobre a construção do muro holandês, começou a tocar o tema de
Tubarão. Os celulares eram proibidos na Escola Atalanta e eu preferia ser
pega com um cadáver no armário a ter um celular tocando na minha mão.
Estremeci enquanto todas as cabeças na sala se viraram para a bolsa que
estava pendurada na minha cadeira.

- Fora, Ananka - berrou o sr. Dedly. - Entregue sua bolsa musical à diretora
imediatamente.

Uma menina chamada Petra Dubois teve a ousadia de dar uma risadinha
enquanto eu me levantava.

- Será que a diretora Wickham vai gostar de saber quem escreveu seu
último trabalho? - cochichei enquanto passava pela carteira dela, piscando
quando ela arfou. As fofocas podem ser mesquinhas, mas certamente têm
suas vantagens.

- FORA! - gritou o sr. Dedly.

Quando estava no corredor, rapidamente enfiei no banheiro e atendi o


telefone.

- É melhor que seja alguém ligando da cadeira - grunhi.

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- É pior - disse a voz do outro lado. - Eu criei problemas para você?

- Digamos apenas que posso vislumbrar um futuro sombrio. O que você


quer, Betty?

- Acabei de falar com Kiki. Luz foi assaltada a caminho da escola hoje de
manhã. - Houve uma breve pausa. - Por esquilos.

A ideia de que Luz Lopez tinha sido vítima de um roubo, particularmente


perpetrado por um animal silvestre, era assombrosa. Seu temperamento
carrancudo em geral conseguia manter a distância a maioria das pessoas e
animais.

- Onde? - perguntei. - Ela está machucada?

- Ela está meio arranhada, mas vai sobreviver. Ela disse que estava
atravessando o Morningside Park quando três esquilos imensos pularam
nela. Um corredor os afugentou, mas sua bolsa já tinha sumido.

- Os esquilos se mudaram para lá? Quanto dinheiro eles levaram? -


perguntei.

- Não tinha dinheiro nenhum, Ananka. - Betty tentava dar a notícia


gentilmente.

- Não - gemi.

- É. Eles pegaram os detectores de movimento. E o mapa.

Meus piores temores tornaram-se realidade.

- O que Kiki disse?

- Ela quer uma reunião conosco na casa dela depois da aula. Vamos ao
Morningside Park para recuperar o mapa.

- Tá brincando? - perguntei. - De jeito nenhum, os esquilos ainda estão lá.

- Kiki disse que você diria isso. Ela me falou para lhe dar um recado.

- Que recado?

- Ela quer saber se você tem uma ideia melhor.

- Vou pensar em uma no caminho para o reformatório - respondi irritada e

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desliguei.

***

O caminho para a sala da diretora Wickham era conhecido como a prancha


(tipo "Jordan foi obrigada a andar na prancha ontem e nunca mais ninguém
a viu"). A porta ficava no final de um corredor escuro em uma parte da
escola que a maioria das pessoas evitava. Era um fato notório que, nos
tempos em que o prédio era um lar de crianças geniosas, a sala pertencia a
um médico que gostava de praticar suas técnicas cirúrgicas em infelizes
delinquentes. Embora eu sentisse certa simpatia pela diretora Wickham,
havia muitas meninas da Atalanta que juravam que ela podia ser
igualmente cruel.

Bati na porta antes de abrir uma fresta. A diretora Wickham folheava uma
pilha de pastas e parecia minúscula e velha atrás de sua enorme mesa de
carvalho. A julgar pelas histórias que rolavam por aí, podia-se esperar
encontrar as cabeças de alunas desobedientes como troféus de caça nas
paredes. Em vez disso, dezenas de fotos empoeiradas estavam penduradas
no reboco sujo. Em uma delas, uma conhecida pintora posava ao lado de
sua obra-prima numa exposição de arte moderna. Outra foto foi tirada na
recente posse da primeira senadora mulher de Nova York. O restante das
fotos abrangia pelo menos quatro décadas, mas todas tinham duas coisas
em comum. Cada uma delas focalizava mulheres famosas - diretoras,
escritoras, executivas e cirurgiãs. E em cada uma, escondida em algum
lugar ao fundo - a cara borrada ou meio oculta por uma taça de fundo - a
cara borrada ou meio oculta por uma taça de champanhe -, estava a
diretora Wickham. Mesmo nas fotos em preto e branco tiradas nos tempos
em que as mulheres nunca saíam de casa sem seus chapéus, luvas e meias,
ela parecia ter 100 anos de idade.

- Tive um pressentimento de que a veria em breve, srta. Fishbein -


murmurou a diretora sem levantar a cabeça. - Entre. Fique à vontade.

Eu arriei em uma das cadeiras duras de couro. Enquanto esperava que ela
terminasse com a papelada, vi uma bomba de inhaca com defeito em sua
mesa. O pavio estava chamuscado, mas não tinha queimado.

- Então - disse a diretora finalmente, baixando a caneta e retirando os


bifocais. Quando os olhos dela encontraram os meus, percebi que mesmo
sem os óculos grossos ela podia ver coisas que os outros não podiam. - O
que você tem a ver com isso?

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- O que é isso? - perguntei com minha voz inocente.

- Esse é o motivo da perturbação de ontem. Acredito que você chamaria de


bomba de fedor. Uma bomba de fedor particularmente eficaz, devo
acrescentar. Quem quer que a tenha feito merece uma suspensão da
Atalanta e uma bolsa em Harvard. Perguntei se você sabia alguma coisa
sobre isso, mas vi suas notas em química, srta. Fishbein, e duvido que
esteja apta para a tarefa.

- Tem alguma pista?

- Nenhuma - respondeu a diretora. - Talvez eu deva pedir a sua amiga Kiki


Strike para assumir o caso. - Ela deu o golpe com tanta suavidade que mal
percebi que tinha apanhado.

- Kiki Strike?

- Não se faça de burra, por favor, Ananka. Suas notas são atrozes, mas eu
sei que é inteligente. Kiki Strike foi uma aluna daqui há alguns anos. Eu
verifiquei os arquivos depois que sua mãe falou no nome dela. Ela parece
pensar que sua amiga é a menina que continua aparecendo nos jornais.

- Isso tudo é uma invenção, diretora Wickham.

- É o que dizem. Mas não acredito em tudo que ouço na televisão. Agora,
srta. Fishbein, vamos ser francas. Não é da minha conta o que você faz
quando não está na escola. Mas ficar acordada entre as oito da manhã e as
quatro da tarde é uma exigência da Atalanta. Se não acha que pode fazer
isso, acredito que sua mãe possa ter algumas alternativas para você.

- Sim, diretora Wickham. Mas eu tenho ficado acordada.

- Ah, sim? Então, a que devo a visita?

- Meu celular tocou na aula do sr. Dedly. Era uma emergência.

- Ah, meu Deus - disse a diretora, sacudindo a cabeça, exasperada. - Creio


que você está prestes a se tornar inimiga do sr. Dedly, Ananka. Qual era a
emergência, se posso saber?

- Uma amiga minha que ia para a escola acaba de ser assaltada. - Eu


esperava que ela me ridicularizasse, mas ela assentiu solenemente.

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- Sim, uma de nossas alunas recentemente também foi assaltada. Por


esquilos, estranhamente. Devo dizer que nunca fui fã de esquilos.
Criaturinhas gulosas. Todas pelos e dentes. Mas as pinturas pela cidade são
impressionantes. A pessoa por trás delas tem um grande talento, mas isso é
outra questão, pois não? Seu celular está desligado agora, ou devo confiscá-
lo?

- Não, senhora. Está desligado.

- Então sugiro que não falte a outra das fascinantes aulas do sr. Dedly. Mas
Ananka, se eu a vir de novo, não serei tão leniente. Entendeu bem?

- Sim, diretora Wickham - falei, perguntando-me como tinha me livrado do


castigo com tanta facilidade. Sumi de sua sala antes que ela tivesse a
oportunidade de mudar de ideia.

***

Meu namoro com os problemas já estava esquecido havia muito tempo


quando a última sineta tocou. Deixei todos os livros no meu armário e pulei
para um ônibus, indo à casa de Kiki. Quando cheguei, a imensa porta de
madeira estava aberta o suficiente para que eu estava aberta o suficiente
para que eu escorregasse para dentro. A sala grande e organizada era
mobiliada com um sofá, uma mesa de centro com uma pilha alta de livros e
um grande alvo de arco e flecha, que ficava no final da sala. As paredes de
tijolos aparentes exibiam uma gama impressionante de armas de artes
marciais. Espadas ninjas, machados de batalha e chicotes de corrente
cintilavam ao sol que entrava pela claraboia do teto. Depois da área de
estar ficava uma estufa de vidro que dava para um jardim coberto de
plantas. Orquídeas raras com suas flores no formato de lagartas, aranhas e
caranguejos brotavam de dezenas de vasos de barro.
Uma nuvem deslizou pelo sol e a sala escureceu enquanto uma flecha
assoviou no ar e se alojou no meio do alvo vermelho-sangue.

- Luz não foi à escola hoje - explicou Kiki. - Verushka ensinou-a a usar a
besta.

- Que bom que Verushka está melhor - observei, vendo Kiki lançar uma
segunda flecha para o meio do alvo e me perguntando por que ela estava
com luvas azuis dentro de casa.

- Ela se sente melhor do que parece - disse Kiki.

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- Como assim?

- Você verá. - Kiki me levou pela sala. - Procure não fazer estardalhaço.

- Oi, Ananka. - Três Band-Aids do Harry Potter cobriam os arranhões de


esquilo no nariz e nas bochechas de Luz. Pareciam deslocados com seu traje
verde-oliva, inspirado no exército. - Desculpe pelo mapa.

- Vamos pegá-lo de volta - garanti a ela, embora eu tivesse poucas


esperanças de voltar a ver meu mapa. - Só estou surpresa que alguém
tenha assaltado uma menina vestida de sobrinha do Fidel Castro.

Os olhos de Luz se estreitaram e os Band-Aids enrugaram.

- Vou lhe fazer um favor e esquecer o que disse. Para sua informação, tirei a
ideia dessas roupas de uma foto de Verushka nos velhos tempos.

- E estou lisonjeada com a homenagem. - Verushka apareceu na cadeira de


rodas e me ofereceu a besta. - Quer tentar, Ananka? - Kiki olhava com um
sorriso duro enquanto eu lutava para não demonstrar meu choque. A
mulher baixinha de cabelos grisalhos parecia ter passado uma semana
presa num freezer de laticínios. Sua pele era de um azul-claro que escurecia
até o marinho nos lábios e na ponta dos dedos. - Não é inteligente encarar
uma mulher com uma besta - disse Verushka com uma risada
estranhamente juvenil.

- Não entendo - murmurei. - Pensei que o problema fosse a sua perna.

- Sim, mas pode ver que a minha perna ainda está presa ao resto do meu
corpo - assinalou Verushka.

- O azul vai sumir? - perguntei, aliviada por não ter insultado Verushka.

- Os médicos dizem que é temporário - disse Verushka. - Mas receio que


meus dias de símbolo sexual tenham terminado.

- Talvez, mas você dá um ótimo Smurf. - Luz tinha o hábito de levar as


coisas meio longe demais, e decidi mudar de assunto.

- Por que todos esses livros, Verushka? - Peguei alguns livros na mesa de
centro. - Conversação em urdu? A arte da guerra? Venenos e antídotos
caseiros? Babilônia real? Parece que você tentou ler uma livraria inteira
hoje.

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- Quando você estiver velha como eu - disse a mulher meio azulada na


cadeira de rodas -, não vai querer perder tempo nenhum.

- Verushka está tentando colocar nossas aulas em dia - explicou Kiki com
um suspiro. - Não é fácil ter aulas em casa.

- Esse é seu dever de casa? Eu trocaria a Atalanta por isso a qualquer hora.
Por que estudar uma coisa inútil como geometria quando eu podia estar
aprendendo a falar urdu?

- Sem geometria, não haveria túneis. Sem túneis, nada de Cidade das
Sombras. Sem Cidade das Sombras, nada de Irregulares - proclamou
Verushka. - Você deve à matemática mais do que pensa.

A campainha tocou e Kiki correu para atender. Parada na porta estava Oona
Wong usando um avental de manicure e uma carranca na cara. DeeDee e
Betty estava bem atrás dela. Oona marchou para dentro, ignorando as duas.

- Oona não parece muito emocionada de estar aqui. Alguma ideia de como
Kiki a convenceu a vir? - perguntei a Luz.

- Quem sabe? - cochichou Luz enquanto Oona se aproximava. - Talvez tenha


prometido a cabeça de Iris numa bandeja.

- Falando de mim? - disse Oona rispidamente.

- Vai cuidar da sua vida - respondeu Luz.

- Só estamos felizes por você ter vindo - eu disse, dando uma cotovelada em
Luz.

- Ah, tá, aposto que sim. Quem mais providenciaria a diversão? - Oona se
jogou no sofá, cruzou os braços e encarou o vazio. Verushka rodou a cadeira
até a menina e cochichou em seu ouvido. Oona assentiu solenemente e a
mulher mais velha saiu da sala.

- Vamos ao trabalho - disse Kiki. - Precisamos chegar ao parque antes do


pôr-do-sol. Luz, quer contar a todos o que aconteceu esta manhã?

- Claro. - Luz abriu um mapa do parque e o ergueu para que víssemos. - Às


sete e meia da manhã, entrei no Morningside Park pelo portão norte. Meu
destino era o portão sul, aproximadamente a 13 quadras. Estava quase na
fonte quando senti uma coisa caindo na minha cabeça. De início pensei que
eu tivesse sido presenteada por um pombo, mas quando vi o rabo da coisa,
entendi que era um daqueles esquilos gigantes. Larguei a bolsa que

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carregava e tentei tirá-lo de meu cabelo. Logo depois disso, outros dois
roedores me atacaram. Um corredor parou para me ajudar, mas os esquilos
só desapareceram quando ouvi um assovio. Foi quando eu vi que a bolsa
tinha sumido.

- Luz Lopez, vítima de esquilo - zombou Oona. - O que vai fazer no bis? Ser
assaltada por camundongos?

- Cala a boca, Oona! - Luz se enfureceu.

- Oona, você prometeu - disse Kiki. - Será que podemos nos entender o
suficiente para recuperar o mapa? Depois disso você e Luz podem sair no
tapa, não me importo.
Levantei a mão.

- Sim, Ananka, eu sei que você não acha que os esquilos ainda estarão lá.
Mas temos que tentar. Caso contrário, vamos ter que nos aventurar em
parques pelos próximos meses. Luz e eu passamos a tarde bolando um
plano. Nós seis vamos montar uma emboscada. DeeDee, gostaria de ser a
isca?

***

Eu estava parada na beira de um precipício rochoso, sentindo-me


perigosamente tonta. A 5 centímetros da ponta dos meus pés, a terra caía
30 metros, até parar no Harlem. Uma trilha estreita descia pela lateral do
penhasco para o Morningside Park, onde as árvores balançavam ritmadas
como se a terra estivesse se mexendo embaixo delas. Por meu binóculo, eu
podia ver dois jovens de moletom de capuz empoleirados e imóveis como
Budas malignos no alto de umas pedras que se projetavam na paisagem.
Uma mulher com um carrinho de bebê correu para a saída antes que a
escuridão caísse. Não havia nenhum esquilo à vista.

- Andando - disse a voz de Kiki nos fones. - Em suas posições.

Desci devagarinho a trilha escarpada, olhando atrás de cada árvore por que
passava e procurando ouvir o som de passos atrás de mim. Quando
finalmente estava virada para a rota de DeeDee, agachei-me atrás de um
trecho de mato alto e ergui o binóculo. Encontrei Kiki ajoelhada na sombra
de uma estátua que mostrava um fauno jovem se refugiando de um urso
voraz. Luz e Oona estavam perto, escondidas em um arbusto. Betty, vestida
de gari, esvaziava latas de lixo. Quando Kiki lhe deu o sinal, Betty pegou em
uma lixeira um exemplar do Weekly World News e se sentou num banco do

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parque.

- É isso. Sua vez, DeeDee - ouvi Kiki dizer.

DeeDee entrou no parque pelo norte. Com a bolsa pendurada no braço e


fones de iPod nas orelhas, ela dançava pelo caminho sinuoso, as trancinhas
balançando de um lado a ouro. Os dois jovens na pedra a olharam passar,
as cabeças seguindo enquanto os corpos ficavam imóveis. Depois de passar
por Betty no banco do parque, DeeDee parou para vasculhar a bolsa,
pegando um chiclete.

- É isso mesmo, não se apresse - Kiki a estimulou. Olhei os arredores, mas


nada vi de interessante. Enquanto o sol sumia e as luzes da rua atrás das
árvores começavam a ganhar vida, vi DeeDee alegremente dançando por
todo o caminho até o outro lado do parque.

- Bom trabalho, DeeDee - Kiki suspirou nos fones. - Parece que estamos sem
sorte.

- Espere. Tem uns homens andando perto de Betty - ouvi Luz sussurrar.

Apontei o binóculo, mas o banco de Betty tinha sido engolfado pelas


sombras.

- Não consigo enxergar nada - relatei. - Está escuro demais.

- Seu binóculo tem visão noturna - disse Luz. - Aperte o botão ao lado de seu
mindinho direito.

Assim que apertei o botão, vi as duas figuras que estavam sentadas na


pedra andando direto para Betty, sozinha no banco do parque. Suas mãos
estavam fundo nos bolsos do moletom, as cabeças baixas e as caras
escondidas atrás dos capuzes. Betty olhou em volta freneticamente, mas
não havia para onde fugir. Longe demais para correr em seu resgate, olhei
impotente de meu poleiro na encosta. Enquanto Kiki disparava de seu
esconderijo e Luz e Oona partiam dos arbustos, um grito agudo foi emitido
dos penhascos atrás de mim. Eu sabia de pronto que não era Betty. Dois
enormes esquilos pretos saltaram dos galhos de uma árvore próxima e
caíram nos homens encapuzados.

Enquanto os homens giravam em círculos, tentando tirar de sua pele as


garras afiadas dos esquilos, um terceiro esquilo quicou no colo de Betty
antes de disparar em auxílio aos colegas. Larguei o binóculo quando ouvi o
som de cascalho sendo esmagado perto de mim e olhei a tempo de ver uma
figura alta e desajeitada surgir de trás de uma árvore e começar a subir a

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trilha até o alto do penhasco.

- Tome - disse a figura, parando na minha frente. - Acredito que esteja


procurando por isto. - No escuro, eu podia ver que era um rapaz da minha
idade, mas seu rosto estava tão sujo que era impossível saber como ele era.
Ele me entregou uma bolsa preta. - Diga a suas amigas para saírem do
parque.

- O quê? Por quê? - Não gostei de receber ordens de alguém que tinha
cheiro de pet shop.

- Aqueles homens ali não estão sozinhos. Diga a suas amigas para irem
embora agora. Estou vendo seu fone. Sei que todas estão conectadas.

- Saiam do parque - ordenei às Irregulares. - AGORA - acrescentei com


urgência.

- Ótimo - disse o menino. Ele colocou dois dedos entre os lábios e soltou um
assovio ensurdecedor. Enquanto voltava pela trilha, três esquilos grandes
dispararam penhasco acima e seguiram em fila atrás dele.

***

Com um bater de palmas, a oficina de Luz foi inundada de luz.

- Instalou um clapper? - bricou DeeDee. - Como na TV?

- É uma ótima tecnologia - disse Luz. - Uma palma acende as luzes, duas me
fazem um cappuccino e se eu bater palmas três vezes, os lasers ligam e
transformam vocês em torrada. Sintam-se em casa.

Era mais fácil falar. Robôs sem membros já reivindicavam a maior parte das
cadeiras e cada superfície plana na oficina estava tomada de fios, eletrodos
e ferramentas que teriam emocionado um torturador. Nós cinco ficamos
sem jeito, de pé no meio da sala, tentando não tocar em nada que pudesse
nos queimar ou provocar dano encefálico.

- E então, de que se trata isso? - perguntou-me Kiki. - Eu pretendia deixar


uma lembrancinha com aqueles caras no parque.

- Havia mais deles do que você pensava. Não éramos as únicas planejando
uma emboscada esta noite.

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- E você sabe disso porque... - disse Oona.

- Porque o cara dos esquilos me contou - expliquei. - Ele também me deu


isso. - Estendi a bolsa preta. Dentro dela estavam o mapa e os detectores
de movimento.

- Como ele sabia que era nosso? - perguntou DeeDee.

- Não sei - admiti.

- Você o viu? Como ele era? - perguntou Betty.

- Foi difícil saber no escuro. Só o que posso dizer é que ele era alto e sujo, e
fedia como o Abominável Homem das Neves.

- Viu o tamanho dos esquilos? - perguntou Oona. - Eu pensava que Lopez


era uma fracote, até que dei uma olhada naqueles monstros.

- Esquilos gigantes da Malásia - disse Kiki. - São espécies ameaçadas de


extinção.

- Você está bem? Eles a feriram? - perguntou DeeDee a Betty.

- Não, só um pulou no meu colo. Deixou cair isso. - Ela colocou a mão no
bolso e pegou um medalhão numa corrente de ouro. - Estranho, né? Deve
ter sido roubado de alguém.

- Ele abre? - perguntei. - Talvez tenha alguma coisa aí dentro.

- Não tive a chance de olhar - disse Betty, abrindo o fecho do medalhão.

Dentro do medalhão havia um pedaço de papel. Os dois lados estavam


cobertos de palavras numa letra minúscula. Betty foi até uma luminária
para ler e o restante de nós se espremeu em volta dela.

- O que diz? - perguntei.

Betty olhou para nós, a cara vermelha de constrangimento.

- É um trecho de uma ópera.

- Anda logo, nos dê uma provinha - disse Kiki com um sorriso malicioso.

Betty pigarreou e começou a ler:

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"O soave fanciulla, o dolce viso, di mite circonfuso alba lunar,


In te ravviso il sogno ch'io vorrei sempre sognar."

- Você fala italiano? - perguntou DeeDee, pasma.

- Não, mas sei o que significa. É de uma ópera que vi umas mil vezes. La
Bohème. Meus pais desenharam o figurino da última produção, no Met.

- E então? - disse Luz.

Betty fez uma careta.

- É uma coisa que um dos personagens principais diz. Não sei traduzir com
perfeição, mas quando ele vê a cara de uma mulher chamada Mimi na luz
da lua, diz que sabe que ela pode tornar os sonhos dele realidade.

- Caraca - disse Oona. - Esse esquilo sabe bajular.

- Até onde eu sei, os esquilos não são fãs de ópera. Betty tem um admirador
- falei.

- Que pena que é criminoso - disse DeeDee.

- Atenção! Alguns de meus amigos mais íntimos são criminosos - observou


Luz, gesticulando para Oona.

- Não sou criminosa. Sou uma mulher de negócios - insistiu Oona.

- Ninguém é perfeito - murmurou Betty. Eu podia ver que ela estava


lisonjeada.

- Ele parece sofisticado - acrescentei. - Mas La Bohème não termina em


tragédia?

- Não se empolgue - alertou Kiki. - Não estou dizendo que você não é
naturalmente irresistível, Betty, mas nem os criminosos costumam se
apaixonar com tanta rapidez. Pode haver mais alguma coisa acontecendo
aqui. - Andando na ponta dos pés, ela cheirou Betty e não pôde esconder
sua repulsa. - Chulé. Foi o que pensei. Não era essa peruca que você estava
usando ontem?

Betty franziu a testa.

- Eu lavei - disse ela. - Pensei que tinha saído toda a Eau Irresistible. Acha
que foi só o perfume que o fez escrever isso?

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- Ora essa, não fique decepcionada - Kiki a consolou. - São boas novas. Se
você está atraindo os caras sem nem mesmo tentar, isso pode significar que
a fórmula espacial de Iris realmente funciona.

- Tenho certeza de que você ia receber um monte de cartas de amor se


parasse de usar pintas peludas e se vestir como uma aberração - observou
Oona.

- Boa, Oona. - A voz de DeeDee gotejava sarcasmo.

- Eu só estava tentando dizer que ela é bonita por baixo de toda essa
porcaria.

- Obrigada - disse Betty. - Mas a porcaria é quem eu sou. Por que ia querer
que alguém gostasse de mim por outro motivo?

COMO TIRAR PROVEITO DO PODER DO CHEIRO

A maioria de nós passa tempo demais pensando - e se preocupando - em


como as pessoas nos veem. Eu recomendaria passar parte desse tempo
concentrada em um dos outros cinco sentidos: o olfato. Não pretendo
desperdiçar seu tempo alertando-a dos perigos dos odores corporais. (Para
esta discussão, veja Seu corpo em transformação, disponível na biblioteca
da Escola Atalanta.) Vou oferecer seis dicas úteis para o uso de seu nariz - e
dos narizes dos outros - em proveito próprio.

Melhore sua memória

Espremendo os miolos para uma prova? Os cientistas descobriram um


truque simples que pode melhorar sua memória em até 13% . (O que pode
fazer a diferença entre uma nova C e o verão na escola.) Enquanto estiver
estudando, borrife periodicamente o ar com uma fragrância. (Dizem que a
de rosas funciona bem.) Depois borrife seu travesseiro com o mesmo cheiro
antes de ir dormir. O cheiro pode ajudar seu cérebro a reter mais do que
você aprendeu.

Seja seu próprio cão farejador

Primeiro treine o reconhecimento de fragrâncias de diferentes sabonetes,


detergentes, perfumes e xampus. Depois pratique identificando pessoas por
seus cheiros, que podem ser únicos como as digitais. Um dia você será

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capaz de entrar em uma sala e saber quem esteve ali antes. (Um ótimo
truque se você suspeitar de que alguém andou xeretando seu quarto.)

Pareça mais confiável

Se você não é um prodígio da química nem anda com cientistas suíços,


pode ser difícil colocar as mãos em algum Fille Fiable. Mas se há alguém
cuja confiança você precisa conquistar, faça um pouco de trabalho de
detetive. Se conseguir descobrir que perfume a mãe ou a avó da pessoa
usa, o cheiro deve diminuir a probabilidade de ela não confiar em você.

Melhore o humor das pessoas

Quem não quis ter o poder de deixar de melhor humor um pai, professor ou
oficial de condicional irritado? Você deve consultar um guia de aromaterapia
para escolher o aroma ideal para sua situação, mas um dos mais populares
é a lavanda, que alivia o estresse e pode baixar a pressão sangüínea.
Outras fragrâncias podem alterar o estado de espírito de diferentes
maneiras. O cheiro cítrico pode aumentar a produtividade, por exemplo,
enquanto baunilha ajuda a criar um clima caloroso e aconchegante.

Vingue-se

Nada diz te peguei como o odor de uma fralda suja, um hamster morto ou
uma costeleta de porco estragada, bem escondidos. Ponto final.

Atraia o sexo oposto

Estudos realizados por fontes confiáveis como a revista Cosmopolitan


provaram que a fragrância pode fazer quase todo mundo parece mais
atraente. Um perfume, loção ou xampu de cheiro agradável seduzirá os
outros a continuarem em sua presença por mais tempo dando-lhe tempo
para exibir sua personalidade estonteante. Mas cuidado - use demais uma
coisa boa e as pessoas poderão ficar enjoadas.

CAPÍTULO CINCO

O Garoto na Caixa

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Um dia depois de recuperarmos o mapa da Cidade das Sombras, Betty Bent


saiu pela porta de sua casa e encontrou um esquilo imenso olhando para
ela. Pintado em detalhes extraordinários na lateral de um prédio do outro
lado da rua, ele usava um medalhão dourado e um sorriso encantador. A
placa que segurava dizia ESTIVEMOS PROCURANDO POR VOCÊ.

- Ele sabe onde eu moro - Betty disse ofegante, correndo até o restante de
nós enquanto estávamos na avenida do outro lado do Cemitério de
Mármore, esperando pelo poente. - Ele deve ter me seguido até em casa
ontem à noite.

- Quem seguiu você? - perguntou Luz.

- O garoto do esquilo! - gritou Betty, como se a resposta devesse ser óbvia.

- Você o viu? - perguntou DeeDee.

- Não, eu não o vi!

- Então, como sabe que ele a seguiu? - perguntou Kiki, verificando minha
reação pelo canto do olho. Como as outras meninas, eu estava achando
toda a cena muito divertida.

- Primeiro, ele pintou um esquilo gigante na frente do meu apartamento.


Depois, pouco antes de eu sair para encontrar vocês, um esquilo largou isso
na minha janela. - Betty estendeu um pedaço de papel para Kiki.

- "Posso acompanhá-la a sua casa?" - Leu Kiki com um sorriso malicioso.

- Isso é um amor - falei.

- Isso é assédio - anunciou Oona e Luz assentiu, concordando.

- Quem assedia não costuma pedir permissão - observou DeeDee.

- Bom, acho que a questão é a seguinte - disse Kiki Strike. - Você quer que
ele a acompanhe a sua casa?

Betty parecia ter sido futucada com uma vareta.

- Não pensei nisso dessa forma - murmurou ela por fim.

- Não se preocupe - disse Oona. - Ele vai se esquecer de você e voltar a seus
pequenos furtos depois que o efeito do perfume passar. - Kiki lançou a Oona
um olhar que não foi inteiramente amistoso.

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- Que foi? - exclamou Oona. - Vocês têm algum problema com a verdade?
- Você não tem jeito, Oona - suspirei. - Vamos começar. Agora já deve estar
escuro.

***

Oona arrombou o cadeado no portão de ferro batido que se espremia entre


dois prédios e as Irregulares entraram no Cemitério de Mármore. Além de
um velho com um tapa-olho aparava a grama duas vezes por mês no verão,
nós éramos os visitantes mais frequentes do cemitério. Poucos em
Manhattan sequer sabiam que ele existia e, tirando um buquê de lírios
brancos que aparecia infalivelmente em todo Dia dos Namorados, não
vimos nenhuma evidência de parentes dos mortos. A um olho destreinado, o
cemitério aparentemente não passava de um terreno baldio cercado por um
muro de pedra esfarelada. Mas no fundo d gramado havia seis lajes de
mármore musguento que cobriam as entradas para dezenas de sepulturas
subterrâneas. Os corpos de nova-iorquinos ricos ocupavam todas as
sepulturas, menos uma. Dentro dela um sarcófago vazio de pedra com o
nome de Augustus Quackenbush era um túnel que levava à Cidade das
Sombras.

Um mês tinha se passado desde que as Irregulares estiveram juntas no


Cemitério de Mármore, e isto devia parece uma volta aos velhos tempos.
Mas quando nós seis deslocamos cuidadosamente da terra uma das lajes de
mármore e descemos para as sepulturas, eu já queria que a noite estivesse
terminada.

- Este lugar podia ter algum purificador de ar - Oona gemeu enquanto


andávamos ao final de um corredor de mármore ladeado de mausoléus.

- Desculpe, princesa, mas o cheiro piora a partir daqui - rebati. - O que me


lembra uma coisa... Alguém pegou mais repelente de ratos com a Iris?

- Eu peguei hoje à tarde - disse DeeDee. - Ela estava chateada porque não a
convidamos para vir esta noite.

Minha mão direita se fechou num punho quando ouvi Oona bufar atrás de
mim.

- Iris sabe que não podemos convidá-la - disse Kiki. - Os pais dela estão
ficando desconfiados de todo o tempo que andamos passando no porão da
casa deles. Querem que ela encontre amigos da idade dela. - O corredor
chegou a um beco sem saída e Kiki parou diante da sepultura de Augustus
Quackenbush. Tive um vislumbre do monstro do labirinto entalhado na

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lateral do sarcófago vazio do morto e minha pele ficou arrepiada. - Muito


bem. Estão todas prontas? Luz?

Luz pegou os pacotes de detectores de movimento na sacola de compras.

- Vamos ter de nos dividir em duplas se quisermos posicionar todos esta


noite - explicou Kiki. - DeeDee, você vai comigo. Luz, você e Betty são uma
equipe. Oona, você vai com Ananka.

- Como essas coisas funcionam? - Examinei um dos discos pretos e finos,


tentando esconder minha decepção por ficar presa a Oona a noite toda.

- É simples. Cada disco emite um feixe infravermelho invisível - explicou


Luz. - Se alguém... ou alguma coisa... passar pelo feixe, um alarme é
ativado. Estes são os receptores. - Todas recebemos pequenas engenhocas
eletrônicas que cabiam na palma da mão.

- Parece um dispositivo de GPS - disse DeeDee. - Você comprou seis? Deve


ter custado uma fortuna.

- Comprei no eBay um tempo atrás. Estavam baratos porque eram modelos


antigos, mas são fáceis de customizar. Foram programados para que a
localização do feixe pisque na tela se um de nossos alarmes for ativado.

- Onde quer que coloquemos todos os sensores? - perguntou DeeDee.

- Fiz mapas da Cidade das Sombras para cada uma de nós - expliquei. -
Coloque um detector de movimento onde tiver um ponto vermelho. E não
importa o que aconteça, não se esqueçam de destruir seus mapas antes de
a gente ir embora. - Até Oona assentiu, concordando. Numa cidade cheia de
princesas homicidas e esquilos cleptomaníacos, era bem complicado manter
um mapa em segurança.

Deslizamos de lado a tampa pesada do sarcófago. Com a lanterna presa na


cintura, Kiki desceu a escada que levava do caixão a um túnel de terra
tosco. Quando eu começava a segui-la, Oona se intrometeu na minha
frente.

- Acho que deve me deixar ir primeiro - anunciou ela numa voz superior. -
Kiki pode precisar de ajuda para arrombar uma tranca e o restante de vocês
é inútil com as mãos.

DeeDee soltou uma risada rápida e aguda.

- Não escorregue - murmurou Luz num tom assassino. Betty me abriu o tipo

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de sorriso triste que se dá a uma pessoa que está prestes a ter um membro
amputado. Parecia até que tinha pena de mim por formar dupla com Oona,
que ainda estava zangada com a pegadinha de Iris e castigava as outras por
testemunharem isso.

Uma por uma, as Irregulares desceram às cegas para a escuridão. Uma por
uma, nossas botas pisaram na terra e nos atrapalhamos para acender as
lanternas. Por fim, havia seis fachos de luz dançando pela passagem
apertada que Augustus Quackenbush construíra para contrabandear tecido
roubado do cemitério até sua loja próxima. Sem pretender sobreviver até o
século XX, a passagem mostrava sua idade. Farelos de terra chuviscavam
do teto, raízes de árvores agarravam nosso cabelo e já estávamos sujas
quando chegamos à porta para os túneis maiores da Cidade das Sombras.
Enquanto Oona parava de se espanar, eu avancei. Deduzi que a única
maneira de sobreviver à noite era agir como uma profissional e esperar que
Oona entendesse o recado. Correndo pelos túneis, plantei nossos detectores
de movimento com a maior rapidez possível. Em vez de ajudar, Oona
vadiava e perambulava, vasculhando os engradados e procurando moedas
em bolsos de casacos.

- Vamos, Oona. - Eu suspirei quando a peguei examinando as unhas no


facho da lanterna. - Sei está chateada, mas temos um trabalho a fazer. Pode
me fazer sofrer quando terminarmos.

- Devia ter trazido a Iris - rebateu Oona sem se incomodar em levantar a


cabeça. - Ela nunca a decepcionaria.

- Eu lamento que Iris a tenha constrangido. Mas você tem que admitir que
mereceu. - Eu podia ouvir a frieza que minha voz adquirira. - Ela está
cansada de ser o alvo de suas piadas. Sabe de uma coisa, Oona? O restante
de nós também está muito enjoado de você. Que tipo de pessoa implica
com uma menina de 11 anos... Ou com Betty, aliás? É como chutar bonecas.
E depois você tem a coragem de ficar ofendida quando uma delas revida?
Não sei o que há de errado com você ultimamente. Você sempre foi meio
grosseira, mas de uns tempos para cá está agindo como se fosse cria de
lobos.

- Acha que sou grosseira? - A voz de Oona não transmitia raiva. Ela parecia
surpresa, como se a ideia nunca tivesse lhe ocorrido. - Pensei que só
estivesse sendo franca.

- Nem sempre as pessoas precisam que você diga a elas a verdade - eu lhe
disse, embora já estivesse começando a me arrepender. Queria que minhas
palavras soassem como um tapa, mas em vez disso eu dei um murro. - Seja
um pouco mais gentil, sim? Nós devíamos ser suas amigas. - Dei as costas

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para ela e parti para o local seguinte. Foi só quando eu já estava quase fora
de vista que Oona começou a me seguir.

Uma hora depois tínhamos colocado nosso último detector de movimento


do lado de dentro do túnel que passava abaixo do Lower East Side.
Enquanto eu fechava minha mochila vazia, o facho de minha lanterna
passou pela cara de Oona e eu vi que seus olhos estavam vermelhos e
inchados.

- A sala onde encontramos a estatueta chinesa não fica longe daqui. - Tentei
parecer simpática. - Quer dar uma olhada?

- Claro - disse Oona baixinho.

- Acho que isto era uma estação de Ferrovia Subterrânea - expliquei depois
que nós duas entramos na sala das dez caminhas. - Há uma saída que leva
a uma sinagoga em Bialystoker Place e um túnel que se estende até a
margem do rio. Alguém escondia escravos na Cidade das Sombras e os
ajudava a fugir para a liberdade. - Apontei a cama amarfanhada. -
Encontramos a estatueta chinesa embrulhada nesse lençol. Kiki se sentou
nela.

Os olhos de Oona percorreram a cama, depois pararam nos meus.

- Desculpe por agir de forma tão pavorosa. Sei que isso não é desculpa, mas
eu ando sob muita pressão.

- O que a está perturbando?

- Preciso contar uma coisa a vocês - confidenciou ela. - Mas não tive chance.
Primeiro Kiki desapareceu, depois Luz foi assaltada e depois descobrimos
que alguém esteve na Cidade das Sombras. Ninguém teve tempo para me
ouvir. Isso está me deixando louca.

- Estou ouvindo agora - falei.

- Acho que vou precisar de sua ajuda. - Ela parou. Era como se admitisse
uma coisa vergonhosa e precisasse criar coragem para continuar. Eu vi sua
boca se abrir uma vez mais, mas a voz foi tragada por um bipe alto e
insistente. Um ponto de luz vermelha piscou em nossos receptores.

- Não vamos nos preocupar com isso - pediu Oona depois que desligamos
nossos alarmes. - Uma das outras meninas deve ter ativado o sensor por
acidente.

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- Desculpe, Oona. Sei que a hora é péssima, mas vamos ter que verificar.

Nunca vi Oona parecer tão completamente derrotada.

- Entendeu o que eu quis dizer? - perguntou ela.

***

Enquanto corríamos pelos túneis, todos os pensamentos sobre a confissão


de Oona ficaram para trás. Segundo nossos receptores, o detector de
movimento estava debaixo de Chinatown, não muito longe de um depósito
conhecido. Antigamente tinha sido uma passagem que ligava a câmara a
um covil de ópio, mas as Irregulares tinham destruído a ligação em junho,
depois que a gangue Fu-Tsang a usou para ter acesso à Cidade das
Sombras. À medida que nos aproximávamos do depósito, Kiki e DeeDee se
juntaram a nós, e disparamos juntas até pararmos subitamente a poucos
metros de nosso destino. Luz e Betty já esperavam por nós na cena.

- Meu Deus do céu! - sussurrou DeeDee. O depósito estava abarrotado de


ratos. Milhares de criaturas sarnentas que não conseguiram entrar na
câmara se espremiam do lado de fora da porta, esticando o pescoço para
olhar o que estava lá dentro.

- Eu ativei o alarme quando vi os ratos - explicou Luz. - Tem alguma coisa


acontecendo aí. Achei que devíamos verificar.

- Boa ideia. Senhoras, é hora de nos refrescarmos. - Kiki passou a todas um


vidro do perfume repelente de ratos de Iris, e o fedor ficou mais forte do
que um campo recém-fertilizado em um dia quente de verão. - Muito bem,
sigam-me. - Kiki andou pelos roedores, que guincharam e se dispersaram
com o cheiro de seu perfume. Mas embora mantivessem uma distância
segura, desta vez se recusaram a ir embora.

Dentro do depósito, os animais maiores e mais poderosos cercavam uma


caixa de carga, roendo os sarrafos de madeira com uma concentração
sobre-humana. Um buraco mínimo parecia num canto da caixa e um dos
ratos estava prestes a passar por ele. Ele e os amigos não ficaram
satisfeitos ao ver seis humanas fedorentas invadindo sua festa. Recuaram
da caixa e foram para o canto da sala, onde guincharam alto e rangeram os
dentes afiados como navalhas.

- A coisa aí dentro deve ser muito saborosa - disse Luz. - Eles estavam
dispostos a comer a caixa para chegar a ela.

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- Vamos ver o que temos. - Kiki puxou a tampa da caixa.

Enroscado ali dentro havia um menino, as penas finas enfiadas no peito.


Suas roupas estavam sujas e esfarrapadas e ele murmurou, delirante,
quando o facho de uma lanterna passou por seu rosto.

- Ele não está falando inglês, está? - perguntou Betty.

- Parece chinês. - Luz olhou para Kiki e Oona. - O que ele está dizendo?

- Falam mais de uma língua na China - disse Kiki. - Eu só entendo cantonês


e um pouco de mandarim. Ele não está falando nenhuma das duas.

- Está falando hakka. - O rosto de Oona estava cinza como porcelana barata.
- Disse que quer ir para casa.

- Mas é claro que ele quer - falei. - Mas como chegou aqui embaixo, antes de
tudo?

- Se não o tirarmos daqui, nunca vamos descobrir - disse Kiki. - Está vendo a
espuma em volta da boca? Ele está desidratado. Pode estar aqui embaixo
há dias. Precisamos levá-lo a um hospital.

- Não! - gritou Oona, assustando a todas nós.

- Como assim, não? - rebateu Kiki. - Quer que ele morra?

- Não podemos levá-lo ao hospital - insistiu Oona. - Ele é imigrante ilegal.


Tenho certeza disso. Se vocês o levarem ao hospital, vão mandá-lo de volta
à China.

- Talvez seja isso que ele quer - sugeriu Betty. - Ele disse que quer ir para
casa.

- Se não podemos levá-lo para o hospital, o que vamos fazer com ele? -
perguntei a Oona.

- Vamos ter que levá-lo para minha casa.

- Sua casa? - Os olhos de DeeDee estavam arregalados, mas Kiki parecia


impertubável. Ela empurrou Oona de lado.

- Tem certeza? - perguntou Kiki em voz baixa.

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- Tenho - insistiu Oona. - A sra. Fei e as mulheres saberão o que fazer.

- Que mulheres? - perguntei, mas elas me ignoraram.

- Todas vocês, entreguem os mapas a Ananka e me ajudem a tirar o garoto


da caixa - ordenou Kiki. - Ananka, encontre uma saída para a gente perto da
Catherine Street.

Enquanto eu examinava o mapa, minha mente estava presa em um único


pensamento chocante. Kiki sabia onde Oona morava.

***

Saímos da Cidade das Sombras em uma das cozinhas infernalmente


quentes de um restaurante enfiado abaixo das calçadas de Nova York.
Canos gorgolejavam de esgoto e o vapor pendia tão baixo que até Kiki foi
obrigada a se abaixar. Em um canto, dois gatos anormalmente gordos
dividiam uma entrada de camundongo enquanto baratas do tamanho de
periquitos dançavam nas bancadas. Esprememos nossos setes corpos em
uma plataforma enferrujada de metal e DeeDee socou um botão vermelho
na parede. Lentamente, o elevador de carga subiu do porão, passando por
uma grade de metal, deixando-nos na calçada acima. O logo das Irregulares
cintilava embaixo do poste. Era uma hora da madrugada e Chinatown
dormia. Uma fita amarela impressa com a palavra cuidado batia nas janelas
sem vidro de um prédio abandonado do outro lado da rua. Um aviso de
demolição estava colado na porta e uma caçamba de lixo cheia de entulho
escondia tudo, menos a ponta de um i dourado. Tristemente, fiz uma
anotação mental para revisar o mapa. Outra entrada para a Cidade das
Sombras logo desapareceria para sempre.

Com Oona na frente, carregamos o menino para a escada de um prédio


decrépito coberto de pichações. Oona tocou uma das campainhas.

- É tarde pra caramba - cochichei. - Você não tem sua própria chave?

- Não preciso de chave - disse Oona. - Sempre tem alguém acordado. -


Alguns segundos depois, uma mulher deslumbrante com um terninho
vermelho bem cortado e batom escarlate abriu a porta da frente. Pensei ter
detectado o contorno de uma pistola sob o paletó. Ela recebeu Oona com
um sorriso que estremeceu quando viu o menino. Ela não se deu ao
trabalho de pedir explicações. Em vez disso, olhou ansiosa para os dois
lados antes de nos conduzir para dentro de um corredor despojado. Ali, ela
e Oona trocaram algumas palavras nervosas.

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- Precisamos levá-lo lá para cima - anunciou Oona ao restante de nós.

- Pensei que Oona fosse órfã - cochichou Betty enquanto Kiki e OOna
carregavam o menino para o segundo andar.

- Eu não sou órfã. - De algum modo, Oona tinha ouvido. - Mas essa mulher
não é minha mãe. Ela é uma segurança.

- Segurança?

No alto da escada havia uma única porta. A segurança de Oona a abriu e


saímos do corredor sujo, entrando num palácio. Tapetes preciosos cobriam
o piso e móveis de mogno estofados de sede ficavam solidamente junto às
paredes, pintadas da cor do céu e decoradas com imagens de salgueiros
delicados e pavões se exibindo. No meio da sala havia quatro mulheres
chinesas. A mais velha se vestia com um simples pijama preto, enquanto o
restante usava roupões longos e de cores vivas e chinelos bordados. As três
mais novas entraram em ação no momento em que aparecemos, como
passarinhos flutuando por uma linda gaiola.

- Essas são minhas avós - disse Oona. - Não se incomodem em dizer


amenidades. Elas não falam inglês.

- Ela é sua avó? - gesticulei para uma mulher que não parecia ter mais de
30 anos.

- É só uma expressão. - Oona suspirou. - Elas não são parentes de sangue.

Pelo canto do olho, vi a mais velha das avós de Oona respirar asperamente
como se tivesse recebido um golpe inesperado. Recuperando-se de
imediato, ela se ajoelhou ao lado do sofá onde tínhamos colocado o menino.
A mulher tinha pelo menos 80 anos, com cabelos prateados presos num
coque e a pele coberta de rios de rugas. Enquanto ela sentia a pulsação do
garoto, percebi que suas mãos eram incomumente musculosas e a ponta
dos dedos, ásperas e calosas. Ela puxou as pálpebras do menino para trás
antes de abrir sua boca e examinar a língua. Depois se virou e deu ordens a
uma das mulheres mais novas, que desapareceu na cozinha.

- A sra. Fei diz que o ki dele está alto demais - explicou Oona. - Ele precisa
de tônicos refrescantes.

DeeDee e eu trocamos um olhar confuso. Um minuto depois, a mulher mais


nova correu de volta à sala com uma panela de água e uma terrina cheia de
ervas medicinais. A sra. Fei pediu para ficar a sós com o paciente e Oona
guiou as Irregulares para uma sala de jantar ao lado.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

- A sra. Fei parece saber o que está fazendo - disse Kiki pensativamente,
sentando-se à mesa redonda de madeira.

- Se não soubesse, todas estaríamos motes a essa altura - disse Oona. -


Nunca fui a um médico americano.

- O que acha que devemos dizer a ela? - perguntou Luz. - Ela vai querer
saber onde encontramos o menino.

- Esta não é a sua casa, Lopez - disse Oona. - A sra. Fei não faz perguntas.
Nenhuma de minhas avós fará.

- Quem são essas mulheres? - perguntou Betty. - Por que você mora com
elas?

- Elas me criaram - disse Oona. - Agora é minha vez de cuidar delas.

- Mas pensei que você tivesse nos dito que não era órfã - disse DeeDee. -
Onde estão os seus pais?

- Meu pai é dono de fábricas em Chinatown. Ele trouxe essas mulheres


ilegalmente para o país para trabalhar em suas fábricas exploradoras. Elas
eram escravas deles. Usei o dinheiro do salão de manicure para pagar pela
liberdade delas - disse Oona. - Acho que o menino pode pertencer a ele
também.

- Seu pai se parece muito com... - comecei a dizer.

- É isso mesmo - disse Oona. - Meu pai é Lester Liu.

***

Os segredos são como xarope para tosse: ficam mais potentes com o passar
do tempo. Guarde um por um tempo suficiente e o que antigamente podia
ter sido inofensivo pode provocar uma explosão letal. Dois anos antes, o
segredo de Oona teria inspirado algumas horas de fofoca - mas nenhuma de
nós o teria usado contra ela. Mas o fato de ela ter escondido a verdade por
tanto tempo me fez desconfiar de que tinha mais a esconder. E aquela
revelação que ela fez já era suficientemente chocante. O pai de Oona era
um homem perigoso. Líder da gangue Fu-Tsang, Lester Liu enriquecera
contrabandeando falsificações de sapatos e bolsas de grife para Chinatown.
As Irregulares destruíram suas operações em junho e mandaram a maior
parte da gangue para a cadeia. Mas Lester Liu nunca foi acusado de crime

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

algum. Ele ainda estava livre e Kiki Strike estava no topo de sua lista negra.

- Por que não nos contou? - perguntei.

Oona fez uma careta.

- Não é o tipo de coisa que eu queira me gabar.

As outras meninas estavam pasmas. Luz parecia não respirar. Betty estava
prestes a arrancar o lábio inferior a dentadas. Só Kiki continuava inabalável.
Num instante percebi que ela sabia daquilo o tempo todo.

- Não sou uma traidora - murmurou Oona.

- É claro que não é - Kiki a tranquilizou. - Ninguém acha isso.

DeeDee pegou meu olhar antes de se voltar para Oona.

- Devia ter nos contado antes - disse ela cientificamente. - Há mais alguma
coisa que precisemos saber?

- Não - disse Oona.

- Eu acho que foi muita coragem sua revelar tudo. - Betty pôs a mão no
braço de Oona.

- Isso explica muita coisa - acrescentou Luz com um suspiro cansado.

- Preciso pensar por um minuto. - Pousei a cabeça na mesa de jantar. Um


milhão de lembranças voltou a tomar forma em minha mente. A sala ficou
em silêncio enquanto uma das avós de Oona apareceu com um bule de chá
e seis pequenas xícaras. Quando as Irregulares ficaram sozinhas de novo,
Kiki tomou um gole e suspirou.

- Agora que todas tiveram tempo para absorver a novidade, vamos tratar de
negócios.

- Por que acha que o menino que encontramos pertence a seu pai? -
perguntou DeeDee.

Percebi Kiki comunicando seu estímulo a Oona.

- Meu pai não é só contrabandista. Também é um cabeça de serpente.

- O que é um cabeça de serpente? - perguntou Luz.

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- Eles contrabandeiam pessoas para os Estados Unidos - explicou Oona. -


Gente pobre que precisa de emprego. Prometem aos cabeças de serpente
mil dólares para trazê-los para cá e, quando eles chegam, têm que pagar a
dívida. Até que paguem, eles praticamente são escravos. Meu pai os faz
trabalhar dia e noite em suas fábricas.

- E se eles se recusarem? - perguntou DeeDee.

- Às vezes são espancados - disse Oona. - Às vezes são mortos.

- Sua mãe também está envolvida? - perguntei.

- Não sei muito de minha mãe, a não ser que ela era uma das clientes de
Lester Liu. Morreu no dia em que nasci. Quando meu pai descobriu que eu
era menina, não quis nada comigo. Ele me deu à sra. Fei e as amigas da
fábrica cuidaram de mim.
Luz estava ultrajada.

- Qual é o problema com as meninas?

- Na China, os meninos levam o nome da família. É dever deles cuidar dos


pais quando eles envelhecem. Quando as meninas crescem, elas se unem à
família do marido, então muito gente as considera sem valor. Meu pai é
muito antiquado. Para ele, eu era só desperdício de dinheiro.

- Tá brincando! - exclamou Betty. - Ele conhece você?

- Um criminoso profissional não podia esperar ter um filho melhor -


acrescentou DeeDee.

- Eu o vi uma vez - disse Oona. - Quando eu tinha 10 anos, a sra. Fei me


falou de meu pai. Disse que ele era muito rico, e eu sabia que minhas avós
mal conseguiam me alimentar. Então todo dia eu colocava o único vestido
que tinha e saía para procurá-lo. Pensei que, se ele me visse, podia me
querer de volta. E então, um dia, eu o encontrei do lado de fora de uma de
suas fábricas. Conversava com dois homens sobre uma encomenda secreta
que esperavam para aquela noite. Eles sabiam que eu estava ouvindo, mas
não se importaram. Pensaram que eu era idiota demais para entender.
Depois que foram embora, fui a Lester e me apresentei como filha dele. De
início ele riu. Depois me disse que eu não era nada até que ele dissesse o
contrário.

- Que coisa horrível! - Uma lágrima pendia dos cílios postiços de Betty.

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- Que babaca - concordou Luz, embora não costumasse usar a palavra


babaca.
Oona continuou:

- Tudo bem. Nós ficamos quites. Fui direto à polícia e contei a eles sobre a
encomenda. Eles deram uma batida no barco assim que ele entrou no porto.
Estava cheio de estatuetas que tinham sido roubadas de um templo no
Camboja. Os homens dele foram presos, mas Lester Liu se safou. Estava
num avião para Xangai antes que a polícia pudesse interrogá-lo. No dia em
que ele partiu, me mando um bilhete. Só dizia isso: "Quando eu voltar, vou
encontrar você."

- Eu não queria insistir nisso, mas você devia ter nos contado - disse
DeeDee.

- Eu tinha esperança de não precisar contar - admitiu Oona. - Pensei que ele
podia ter se esquecido de mim. Eu não consegui estragar seus negócios
mesmo. Ele se deu melhor ainda depois que foi para Xangai. Metade de
Chinatown está aqui por causa dele.

- Talvez ele tenha mesmo se esquecido de você - propôs Luz, com otimismo.
Oona franziu a testa.

- Esperem aqui. Há uma coisa que devem ver. - Quando ela voltou, colocou
uma caixa de papelão retangular na frente de Luz. - Lester Liu me mandou
isso. Anda, dá uma olhada. - Luz espiou dentro da caixa como se esperasse
encontrar um escorpião ou uma orelha decepada. Em vez disso, pegou um
dragão. Era uma escultura de bronze de Fu-Tsang, o dragão chinês que
protege esconderijos e o símbolo da gangue violenta que leva seu nome.
Alguém ofegou. Pode bem ter sido eu. - Reconhece isso? - perguntou Oona.

Todas já havíamos visto o dragão. Vários meses antes, eu o encontraram


numa bolsa que pertencia a uma vítima de sequestro chamada Mitzi
Mulligan. A estatueta antiga dera a pista crucial que nos levou ao covil dos
Fu-Tsang, onde Sidonia Galatzina escondera as meninas que sequestrara,
na esperança de atrair Kiki para a morte. Na noite em que a polícia estourou
o cativeiro, o dragão desaparecera misteriosamente.

- Sabe o que isso significa? - Oona tremia.

- Significa que ele sabe que você fez parte do grupo que frustrou as
operações de contrabando - expliquei. - Você está com um problemão,
Oona.

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- É - ela concordou. - Do tipo que me faz indagar por que ele me convidou
para jantar.

- Como é? - exclamou Luz.

- Ele convidou vocês também.

- O quê? - Foi a vez de Kiki ficar surpresa.

- Você estava desaparecida quando o dragão chegou pelo correio - Oona


tentou explicar. - Eu queria contar a você primeiro, mas quando você voltou,
ficamos ocupadas demais caçando esquilos e procurando invasores.

- Está dizendo que Lester Liu sabe quem eu sou? - Betty estava quase
desmaiando de choque.

- Não acho que ele saiba seu nome - disse Oona. - O bilhete só dizia Kiki
Strike e suas amigas talentosas são bem-vindas.

- Quando será o jantar? - perguntou Kiki.

- Na sexta-feira - respondeu Oona.

- Daqui a um dia e meio. - Eu quase podia ouvir a mente de Kiki zumbindo. -


Queria ter mais tempo para me preparar. De qualquer forma, não acho que
as seis devam ir. Se for uma armadilha, não vamos querer estar no mesmo
lugar ao mesmo tempo. Ananka e eu ficaremos feliz em acompanhá-la,
Oona.

- Obrigada por me apresentar como voluntária - eu disse, perguntando-me


por que eu sempre tinha as tarefas desagradáveis.

- Não há de quê - Kiki piscou.

- A propósito - acrescentou Oona com um sorriso nervoso. - O jantar é


formal. As duas precisam ir de vestido de noite.

A sra. Fei colocou a cabeça pela sala de jantar assim que soltei um gemido.
O timing foi tão perfeito que por um momento desconfiei de que ela estivera
ouvindo. Ela falou brevemente com Oona.

- O menino acordou - anuncio Oona.

- Enquanto as outras garotas rapidamente saíam da sala, puxei Kiki de


volta. Sacudi seu braço com um pouco de força e ela se virou para mim com

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um sorriso duro que deixou claro que eu estava a ponto de tomar um soco.

- Você sabia de Lester Liu, não é? - cochichei.

Os olhos azul-claros de Kiki me examinaram.

- Sim - disse ela.

- Há quanto tempo você sabe?

- Desde o início.

- Não acha que devia ter partilhado essa informação com o restante de nós?
- eu a pressionei. - Devíamos formar uma equipe. Não podemos ter
segredos desse tipo.

- Quer dizer que eu devia ter contado a você, não é? Não leve isso para o
lado pessoal, Ananka. Não cabia a mim, não era um segredo meu.

Embora Kiki tivesse razão, eu odiava pensar que ela e Oona esconderam a
verdade de nós - como se fôssemos idiotas ou infantis demais para lidar
com ela. Lembrei-me de mil pequenos olhares que foram trocados entre
elas ao longo dos anos e de repente me senti uma idiota.

- Quanta honestidade de sua parte - zombei. - Mas este não é um


segredinho inofensivo. Caso tenha se esquecido, a Fu-Tsang ajudou a sua
tia a tentar nos matar. Se afilha de Lester Liu decidisse passar para o lado
do mal, você agora estaria morta.
Kiki se recusou a morder a isca.

- A primeira regra de uma equipe é confiar um no outro. E se você confia em


alguém, deixa que guarde segredos. Quando estivesse pronta para contar a
você, ela contaria. Você não precisa saber de tudo, Ananka.

- E por que não? Por que eu devo confiar em Oona se ela não confia em
mim? Como vou saber que ela não está escondendo mais nada de perigoso?

- Oona ficou preocupada que o restante de vocês olhasse para ela se um


jeito diferente - Kiki se eriçou. - Não prova que ela estava com a razão.

***

Na sala de estar, encontramos o menino sentado com as costas num braço

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do sofá, as pernas esticadas diante dele. A sra. Fei tinha enfiado um


cobertor em volta dele e alguém lavara seu rosto e penteara seu cabelo
preto na altura do queixo. A cabeça fina tombou quando ele viu as seis
Irregulares entrarem na sala e os dedos longos e finos agarraram o
cobertor. Oona puxou uma cadeira para o lado do sofá e falou com ele em
hakka. De início o menino só ficou boquiaberto para ela. Não era o primeiro
a ficar pasmo com a beleza de Oona. Por fim ele criou coragem para
responder numa voz rouca.

- O nome dele é Yu - traduziu Oona. - Ele tem 16 anos e é de Taipei. Quer


saber onde está e quem somos nós.

- Diga a ele que está em Nova York. Diga a ele que o resgatamos dos ratos -
disse Kiki.

- E depois pergunte como ele chegou aos túneis - acrescentei.

Os olhos de Yu passaram por cada uma de nós antes de ele falar


novamente.

- Ele disse que há cerca de um mês foi raptado quando ia para a escola.
Depois uns homens o agarraram e o enfiaram num barco. Havia muitas
crianças ali dentro... Pelo menos 12, talvez mais. Ele reconheceu uma das
meninas. Era aluna da mesma escola. Ele queria falar com ela, mas os
guardas os vigiavam dia e noite. A viagem foi muito longa e muitos
passageiros adoeceram. Quando o barco parou, eles foram amarrados,
colocados em grandes caixas de madeira e levados a um prédio. Ele tentou
fugir, mas foi pego e atirado numa sala longe dos outros. Foi onde ele
descobriu a porta no chão.

"Ele disse que ficou perdido nos túneis por vários dias. Não sabe quanto
tempo. Ele não conseguia encontrar uma saída. Ninguém descia lá. Só tinha
ratazanas e esqueletos. Ele pensou que tinha entrado no inferno. Quando
estava cansado demais para continuar fugindo dos ratos, ele se enroscou
numa caixa e esperou pela morte."

- E a estatueta chinesa que encontramos? - perguntou Kiki. - Onde ele


conseguiu?

- Ele disse que havia muitas caixas de madeira no barco. Uma tábua em
uma delas estava solta. Quando ele enfiou os dedos dentro da caixa, foi isso
que encontrou. Ele a escondeu em sua mochila. Se escapasse, achava que
podia ajudar a polícia a identificar os sequestradores.

- Depois que o barco chegou a Nova York, para onde os homens o levaram?

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Ele pode descrever o prédio? - Se o prédio tivesse uma entrada para a


Cidade das Sombras, eu podia reconhecê-lo.

- Ele disse que nunca viu o lado de fora do prédio. Estava escuro demais
quando eles chegaram. Foram levados a um porão, e cada um foi colocado
numa baia pequena de madeira.

- E as pessoas que o sequestraram? Ele pode nos dizer como eram? -


perguntou Kiki.
Oona ouviu e depois se voltou para nós.

- Ele disse que os guardas tinham tatuagens. Tatuagens de dragões. Está


vendo, eu tinha razão. Meu pai e os Fu-Tsang estão por trás disso. - Sem
esperar que comentássemos, ela falou delicadamente com Yu. Ele sacudiu a
cabeça furiosamente.

- O que você disse agora? - perguntei a Oona.

- Eu disse a ele que ia pegar para mandá-lo de volta a sua família em


Taiwan - respondeu ela. - Mas ele se recusa a ir. Diz que tem que ficar aqui
para salvar os outros.

- Diga a ele que pretendemos ajudar - disse Kiki. Oona transmitiu o recado e
Yu sorriu, fechou os olhos e sucumbiu à exaustão.

- Bom, uma coisa é certa - falei, enquanto Oona se levantava. - Temos muito
que conversar no jantar com o seu pai.

O QUE FAZER QUANDO SEUS SEGREDOS SÃO REVELADOS

A certa altura, vai acontecer com qualquer um. Um segredo que você
escondia cuidadosamente será revelado no pior momento possível. Seus
colegas de turma podem descobrir que você nasceu com rabo. Sua mãe
pode descobrir o que você realmente estava fazendo em todas aquelas
vezes que afirmou trabalhar de baby-sitter. Seu vizinho pode saber que
você gosta e receber grandes grupos de pessoas quando seus pais não
estão em casa. Qualquer que seja o segredo, você vai precisar agir
rapidamente para consertar os danos.

Recentemente procurei um dos melhores profissionais de relações públicas


de Nova York para ouvir seus conselhos sobre uma questão pessoal
delicada. Um conselheiro de celebridades e políticos com alguns segredos

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muito picantes, ele é um mestre na restauração de reputações. Aqui está o


que ele me disse:

Não tenha medo de pedir desculpas

Se você fez alguma coisa errada, assuma a responsabilidade e peça


desculpas. Nada vai acalmar a situação mais rapidamente do que
demonstrar algum remorso. Porém, as leitoras menos sinceras podem pegar
uma dica do mundo das celebridades e dar uma não desculpa. Em vez de
aceitar a culpa por uma ofensa terrível, desculpe-se por uma menor. (Por
exemplo, em vez de dizer "Desculpe se chamei esse promotor de [preencha
o espaço]", experimente "Desculpe por ter faltado ao almoço e ficado tão
azeda". Entendeu a diferença?)

Cuidado com o que diz e faz

Hoje em dia, câmeras celulares e a internet podem levar a humilhação a um


nível inteiramente novo. Assim, no momento em que seu segredo for
revelado, imagine que você está vivendo sua vida na câmera - e aja de
acordo com isso. Isto significa não dar ataques, não aprontar em público e
não fazer confissões espontâneas.

Jamais deixa que a vejam suar

Relaxe. Se as pessoas acham que têm o poder de perturbar ou constranger


você, elas nunca a deixarão em paz. Receba seus insultos com um sorriso
agradável ou um olhar vago.

Transfira a atenção para alguém pior do que você

Foi para isso que nascem os irmãos e irmãs. Não é muito gentil observar
que os crimes passados de seus irmãos foram muito mais horrendos, mas
isso pode fazer você parecer uma santa em comparação com eles. Não use
esta tática se seus irmãos estiverem ouvindo.

Torne-se uma defensora da caridade

Banque a Madre Teresa para mostrar que você foi incompreendida de


difamada. Se você estiver de castigo, use o tempo livre para fazer uma
faxina na casa. Se foi rotulada de má, ofereça-se para trabalhar

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voluntariamente num abrigo de animais. Todos parecem inocentes quando


cercados de filhotinhos de cachorro.

Resista ao escândalo

A maioria das pessoas tem a capacidade de atenção de um simples


mosquito. Se você se recusar a fazer de seu segredo uma novela,
provavelmente ele será esquecido mais rapidamente do que você pensa.

CAPÍTULO SEIS

A criança selvagem

Alguém batia na porta do meu quarto. Rolei na cama e apertei o travesseiro


na orelha, na esperança de que o barulho sumisse.

- Ananka, está atrasada para a escola! - gritou meu pai. - Saia da cama e
destranque essa porta!

Num instante, meus olhos estavam abertos e eu tateava o despertador.


Eram 9h16. Saltei da cama e corri para a porta.

- Ananka! - meu pai berrou de novo enquanto a porta se abria e peguei toda
a força de seu grito no ouvido direito. Ele pigarreou e sua voz assumiu um
volume normal - Que bom. Está vestida. - Olhei para baixo e percebi que eu
ainda estava com as roupas que tinha usado na noite anterior. Quando subi
pela janela de meu quarto às quatro da madrugada não tive energia para
vestir o pijama.

- Tenho que me trocar - murmurei, andado trôpega pelo corredor a caminho


do banheiro.

- Você não tem tempo para isso. Ande. Vamos andando - rebateu meu pai,
sem perceber que eu estava amarfanhada e suja. - Se for bem rápida,
poderá pegar o segundo tempo.

Minha mãe, ainda de roupão, bloqueou minha saída. Seus olhos foram da
lama do Cemitério de Mármore em minhas botas à poeira que cobria minha
camiseta preta. Ela pegou a bolsa na mesa perto da perto da frente e a
vasculhou.

- Leve isso - disse ela, batendo uma escova de cabelos na minha mão. - E
aqui está algum material de leitura para o caminho até a escola. - Ela
estendeu um folheto acetinado. Na capa havia a foto de uma adolescente

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ordenhando uma vaca com umas das mãos e segurando um livro didático
na outra. - Vou telefonar hoje - anunciou minha mãe enquanto me
empurrava pela porta.

A caminho da escola no banco de trás de um táxi, tentei me acalmar. Mas


uma olhada no folheto deixou perfeitamente claro que a vida que eu
conhecia estava prestes a acabar.

-------------- ACADEMIA BORLAND --------------

Televisão. Videogames. Drogas. Com tanta coisa competindo pela


atenção de nossos filos, não admira que muitos jovens de hoje não
consigam desenvolver seu potencial acadêmico. Na Academia
Borland criamos um ambiente único sem as distrações do mundo
moderno. Localizada a 200 quilômetros, nos arredores de Burp, na
Virgínia Ocidental, e encravada nas montanhas Apalaches, a
Academia Borland é ao mesmo tempo uma fazenda-modelo e uma
instituição acadêmica respeitada. Os alunos dividem seu tempo
entre aulas planejadas para desenvolver o raciocínio e tarefas
agrícolas que pretendem aprimorar a disciplina pessoal. Livres da
influência negativa da cultura popular, os alunos podem passar o
fim de semana adquirindo uma nova apreciação pelo trabalho
árduo e os prazeres simples da natureza. Os resultados de nossa
abordagem falam por si. No ano passado, três alunos da Academia
Borland foram admitidos em Yale e dois de nossos queijos
artesanais foram premiados com a faixa azul da Feira Estadual da
Virgínia Ocidental.

Ideal para crianças com baixo rendimento escolar ou com histórico


de violência, a Academia Borland é projetada para dar a cada aluno
a atenção personalizada de que ele precisa. As crianças são
supervisionadas 24 horas por dia e nossa equipe de enfermeiros
profissionais está autorizada a administrar medicamentos, se
necessário.

Morei em Nova York a minha vida toda. Nunca vi uma vaca de perto e não
pretendia aprender a fazer queijos premiados. Minha mente se encheu com
mil planos de uma só vez. Se eu esvaziasse minha conta no banco, podia
procurar um esconderijo. Ter meu próprio apartamento. Ir para uma escola
pública. Combater o crime à noite, dormir tarde nos fins de semana. Quando
meu táxi parou diante da Escola para Meninas Atalanta, eu estava
convencida de que era hora de afirmar minha independência. Eu ainda tinha
minha parte do dinheiro que as Irregulares ganharam com os tesouros que
encontramos na Cidade das Sombras. Eu teria ido direto ao banco se a
diretora Wickham não estivesse na calçada da escola esperando por mim.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Enquanto eu deslizava do táxi, perguntei-me como uma mulher que pesava


menos do que um saco de roupa suja e era mais velha do que o Empire
State Building podia me fazer sentir um bebê ranheta de fralda suja.

***

- Bom dia, Ananka. - A diretora avaliou o estado lamentável de minha


aparência. - Sua mãe telefonou para dizer que você estava a caminho. Ela
pensou que seria uma boa ideia se eu a acompanhasse até a sala de aula.

- Desculpe, diretora Wickham, eu lamento muito - murmurei.

- Eu também lamento - disse ela, levando-me pela escada para dentro da


escola. - Sabe o que isso significa, não é?

- Sim, li sobre a Academia Borland quando vinha para cá.

A diretora riu, mas não vi nada de engraçado em meus apuros.

- E conheço o fundador da academia - disse ela. - Não é um homem


agradável, mas estou impressionada que ele finalmente tenha encontrado
um jeito de combinar suas paixões pelo ensino com a criação de animais.
Sua mãe parece pensar que a Academia Borland proporciona o tipo de
ambiente de que você precisa, mas devo admitir que não estou convencida
disso.

- Não está? - senti um segundo surto de esperança.

- Não. Na realidade, pretendo apelar por seu caso. Não me pergunte por
quê, mas acredito que você pode ser valiosa para a Atalanta. Mas você foi
advertida, então terei de castigá-la. Acredito que duas semanas de
detenção depois da aula devem ser suficientes. Pode ficar até seis da tarde
todo dia, preparando um trabalho que vou lhe atribuir.

- Obrigada, diretora Wickham - respondi, radiante.

- Não me agradeça ainda. - A diretora Wickham me deixou na porta do


laboratório de química. - Você tem muito trabalho a fazer se pretende voltar
a cair nas minhas boas graças. Sua mãe me disse que você lê muito sobre
Nova York. Daqui a duas semanas, espero que me entregue um artigo de
vinte páginas sobre um aspecto da história da cidade. Escolha o tema com
sensatez. Deve ser bom o suficiente para impressionar o sr. Dedly. Caso
contrário, receio que vá tirar nota F no curso dele e, se isso acontecer, não

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poderei salvá-la da Borland. Então vá para a biblioteca depois de sua última


aula, Ananka, e por favor... procure ficar longe de problemas.

***

Dentro do laboratório, coloquei óculos de segurança e amarrei um avental


preto na cintura. Minha parceira, uma menina estudiosa chamada Natasha,
sem talento algum para a química, vertia líquidos num béquer de vidro e
mal deu pela minha chegada. Olhei os filetes de fumaça sulfurosa que
começava a subir da mistura e me perguntei como tudo podia ter dado tão
errado. Minhas amigas tinham segredos para mim, minha mãe me vigiava
cada vez mais, eu não conseguia dormir e nem tinha tempo para almoçar.
Dali a duas horas, enquanto minhas colegas de turma comiam (ou fingiam
comer), eu estaria numa missão de reconhecimento no Central Park, na
frente da mansão de Lester Liu, do outro lado da rua. Eu estava arriscando
minha liberdade por uma menina que nem se incomodava em me contar a
verdade.

Enquanto Natasha, brigava por extinguir as chamas que começaram a


disparar do béquer, peguei um pedaço de papel no bolso. Ali, na letra de
Oona, estava o endereço do prédio de Lester Liu na Quinta Avenida. Fiquei
tentada a dar bolo e deixar que Kiki, OOna e Betty planejassem sozinhas a
operação. Mas havia uma coisa no endereço que me intrigava. A revelação
veio enquanto meu frenético professor de química chegava com um extintor
de incêndio que arrotou uma montanha de flocos de espuma na bancada
em chamas. Lester Liu morava na Mansão Varney.

***

Em agosto, a Mansão Varney tinha chegado aos noticiários quando caiu um


pedaço do mármore da fachada do prédio, atingindo um táxi e errando por
pouco um lulu-da-pomerânia premiado de propriedade da sra. Gwendolyn
Gluck, uma das mais proeminentes socialites da cidade. Antes que a polícia
pudesse isolar a área, uma segunda laje de mármore achatou a caixa de
correio e a escultura de uma deusa nua, que guardava a porta da frente
havia cem anos, escorregou e se espatifou na calçada. Na excitação que se
seguiu, sumiu a cabeça decepada da deusa. Três dias depois foi encontrada
no Queens, fixada à capota de um Trans Am adornado.
Se o prédio em questão fosse outro, pouca gente teria se importado. Velha
e leprosa, Nova York perde regularmente nacos de si mesma. Mas nos cafés
e salas de visitas do Upper East Side, cochichava-se que a mansão na

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Millionaires's Row estava sendo destruída - não pelo tempo, mas pelo
fantasma de Cecelia Varney.

Quando Cecelia Varney nasceu, filha de um dos homens mais ricos de Nova
York, os jornais a rotularam de A Garota Mais Sortuda do Mundo. Quando ela
morreu noventa anos depois, na mansão de sua família, era conhecida na
cidade como A Eremita da Quinta Avenida. O que aconteceu entre os dois
eventos foi tema de dois filmes de TV e um musical off-Broadway, mas
ninguém tem certeza de nada. Aos 34 anos, a formidável socialite de
repente se divorciou do terceiro de uma série de playboys interesseiros.
Depois chocou os amigos famosos abandonando-os em favor de um
paranormal pouco conhecido e frequentando sessões espíritas em vez de
clubes noturnos. Na manhã de seu trigésimo quinto aniversário, sem avisar
a ninguém, Cecelia Varney se trancou na mansão com dois criados de
confiança e um casal de gatos de seis dedos (presentes de aniversário de
seu amigo Ernest Hermingway). Nunca mais saiu da casa e dizia-se que ela
ainda estava lá, enterrada em algum lugar no porão. A única empregada a
sobreviver à srta. Varney foi vista chamando um táxi enquanto chegava o
agente funerário. Foi a última vez que alguém a viu.

No dia em que o obituário de Cecelia Varney foi publicado no New York


Times, corretores de imóveis começaram a assediar a mansão como hienas
famintas. Não só a casa estava entre as mais magníficas de Nova York,
como se dizia que era lotada da coleção inestimável da srta. Varney. Em 45
anos, ela gastara toda a fortuna da família sem colocar um pé numa loja.
Homens que juravam segredo - e ganhavam muito bem para cumprir a
palavra - faziam entregas na calada da noite. Diziam os boatos que a srta.
Varney abrigava incontáveis obras de arte que havia muito tempo se
pensava estarem perdidas ou destruídas, e todos na cidade queriam dar
uma olhada em seus tesouros. Infelizmente, seu testamento deixou claro
que nem a casa, nem seu conteúdo podiam ser perturbados. Tudo pertencia
aos 76 gatos (todos descendentes do casal original) que andavam à
vontade pelos cômodos.

Então foi com alguma surpresa que o prédio trocou de mãos poucas
semanas depois da morte de Cecelia Varney. Os gatos, ao que parece,
desapareceram sem deixar rastros. Nem mesmo o último lote de filhotes
pôde ser localizado. Sem os herdeiros para reinvidicá-la, a mansão foi a
leilão. Um bilionário misterioso a comprou. Antes que prédio começasse a
esfarelar, uma de minhas colegas da Atalanta jurou que vira um homem
baixinho e elegante de terno cinza-claro abrir a porta da mansão. Quando
ela falou na bengala, eu devia saber muito bem que era Lester Liu.

***

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Encontrei Oona e Betty esperando por mim no Central Park, de frente para a
Mansão Varney. Embora Betty estivesse com um de seus disfarces (cabelo
louro, terninho preto, óculos de nerd), era Oona que me parecia
desconhecida. Da noite para o dia, ela se transformara de uma amiga
confiável em filha de Lester Liu.

- Oi. - Oona olhou para mim e depois para o outro lado da Quinta Avenida. -
O que acha? - Senti minha animação murchar ao avaliar a mansão. Por trás
dos andaimes de metal, o prédio parecia sem vida, a pedra tão branca que
podia ter sido entalhada em gelo. Cada janela estava escura - bloqueada
por cortinas que isolavam a cidade. A maioria das mansões na Millionaires's
Row era de monumentos ostentosos aos homens que as construíram. A
Mansão Varney era um mausoléu.

- Você sabe que seremos as primeiras pessoas lá dentro - falei. - Será que
ele está lá?

- Provavelmente uma dezena de crianças taiwanesas - disse Oona. - Aposto


que ele as faz encerar o chão. A propósito, dá para acreditar que ele mora
aqui enquanto eu passo todo o meu tempo livre num salão de manicure?

- Como está Yu? - perguntei, na esperança de lembrar a ela que a vida pode
ser pior. - Está melhor?

- Acho que sim. Ele me parece muito saudável, mas a sra. Fei diz que tem
que ficar na cama por uns dias. Acho que ela só quer mantê-lo perto dela. É
a criança doce e adorável que ela nunca teve. E é menino também, então
ela deve pensar que ganhou o grande prêmio.

- Estamos no século XXI - eu disse. - Não acredito que algumas pessoas


ainda prefiram meninos a meninas.

- Ah, gente - protestou Betty. - Desculpe interromper, mas quanto tempo


vamos esperar pela Kiki? Tenho que voltar para a escola.

Olhei o relógio. Só faltavam vinte minutos para o término da hora de


almoço.

- Tudo bem, vamos começar - falei, assumindo o comando. - Oona, se a


casa acaba de ser vendida, aposto que a imobiliária ainda tem uma planta-
baixa em seus computadores. Acha que pode conseguir?

- Tranquilo - disse Oona. - Vou invadir esta noite.

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- Betty, pode pedir a Luz para preparar uns grampos rapidinho?

- O que você vai fazer com grampos? - perguntou Betty.

- Dispositivos de escuta - eu a corrigi. - Pequenos, para a gente poder


plantar pela casa de Lester Liu.

- Aaah, sim. - Betty sorriu de seu erro. - Tenho que costurar alguns bolsos
ocultos nos vestidos que estou fazendo para vocês. Assim vocês não serão
pegas se as bolsas forem revistadas.

- Perfeito. Pode falar com Iris e DeeDee e ver se podemos usar um pouco da
essência da confiança?

- Ei - disse Oona. - Você não vai fazer nada?

- Não posso - respondi. - Estou de detenção até as seis da tarde e depois


disso vou tentar explicar à minha mãe onde estive ontem à noite.

- Foi flagrada? - Betty arfou.

- Fui. Vou contar a história toda quando ela parecer um pouco menos
trágica. Agora, uma última coisa. Quantas pessoas moram na mansão com
Lester Liu?

Oona deu de ombros.

- Tá legal - suspirei. - Acho que alguém vai precisar vigiar o lugar nas
próximas 24 horas e ver quem entra e quem sai. Alguém se habilita?

- Eu faço isso - disse uma voz atrás da gente. Betty gritou quando um
esquilo pulou em seu ombro e meteu o focinho em seu pescoço.

Um menino alto com roupa de camuflagem saiu da trás de uma árvore. A


cara e o pescoço estavam sujos de terra e as mãos eram cobertas de tinta.
Ele podia ter 15 ou 16 anos, o cabelo podia ser ruivo e ele podia ser bonito.
Era quase impossível saber.

- Tire esse esquilo dela - insisti.

O menino assoviou e o esquilo quicou de volta para ele.

- Ele não a estava atacando - disse o garoto. - Ele gosta dela.

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- Espero que não goste dela como gostaram de nossa amiga Luz. Seus
monstrinhos a arranharam toda. - Poucas pessoas suportavam o rosnado de
Oona, mas o menino ficou firme.

- Sim, desculpe por isso. Às vezes eles se empolgam um pouco. Estou


tentando ensinar boas maneiras a eles. Não queremos machucar as
pessoas; só queremos o dinheiro delas. - A voz dele era fria e clara. Cada
palavra era enunciada com perfeição. Era como se ele fosse um
extraterrestre que aprendera inglês bem demais.

- Você esteve me seguindo? - perguntou Betty.

- Sim - admitiu o garoto com franquesa, pegando-nos de surpresa.

- Quem é você? - perguntei.

- Podem me chamar de Kaspar.

- Tipo o fantasminha camarada? - Oona deu uma risada.

- Seja boazinha - disse Betty.

- Acho que é mais tipo Kaspar Hauser - falei, lembrando-me de um livro que
uma vez encontrei na seção minúscula da biblioteca de meus pais dedicada
a manuais de criação de filhos. - Era a criança selvagem original. Foi
descoberta na Alemanha muito tempo atrás.

- Esperta - disse Kaspar. Seu sorriso revelava dentes brancos como ladrilhos
do metrô recém-esfregados. Ele não morava no parque havia muito tempo. -
Quem são vocês?
Olhei para Oona e Betty.

- Pode falar - disse Oona. - Isso nos dará uma desculpa para matá-lo no
futuro.

- Meu nome é Ananka Fishbein. Esta é Oona Wong. E a menina que você

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anda assediando, sabe? Seu nome é Betty Bent. - Perguntei-me se o cara


estava corando por baixo de toda aquela sujeira.

- Onde estão suas outras três amigas? - perguntou ele. - A baixinha de


cabelo branco, a que parece má e a menina que devia ser isca de esquilo?

Olhei o relógio. Onde estava Kiki?

- Mas você não é o espertinho? - eu disse. - Talvez deva nos contar um


pouco mais sobre si mesmo antes de convidarmos você a entrar para o
clube.

- O que gostariam de saber? - Kaspar recostou-se despreocupadamente


numa árvore, como um fanfarrão à moda antiga?

- Que tal sobre os esquilos? - perguntei. - Por que ensinou os animais a


roubar?

- Não ensinei. Eles é que me ensinaram - disse Kaspar sem humor algum. -
Receio que não seja uma história muito agradável.

- As histórias desagradáveis são as minhas preferidas - Oona o incentivou. -


Adoraria ouvir a sua.

- Já que insiste - disse Kaspar. - Há alguns anos, acordei e descobri que


meus pais me abandonaram. Ainda não sei para onde foram, mas levaram
tudo de valor do apartamento. Quando não pude pagar o aluguel, o
senhorio me expulsou. Então vim morar aqui no parque. Numa manhã, eu
estava vasculhando uma caçamba de lixo atrás de comida quando percebi
alguns homens entregando gaiolas com esquilos incomuns na porta dos
fundos de uma pet shop. Lembro-me de pensar que os animais pareciam
ainda mais infelizes do que eu. Eles mereciam ser livres, e não ficar numa
gaiola onde idiotas podiam olhar embasbacados para eles.

"Enquanto a porta dos fundos estava aberta, eu espremi uma batata podre
na fechadura. Quando os homens foram embora, entrei de mansinho na loja
e libertei os esquilos. Alguns fugiram, mas esses três ficaram comigo.
Depois de um tempo, eles começaram a me trazer presentes. Barras de
chocolate, notas de 10 dólares, pulseiras de diamante. De início não percebi
que eram roubados. Eu só estava feliz por ter dinheiro para comprar
comida. Mas quando descobri, eu sabia que tinha que fazer bom uso das
habilidades deles. Com o dinheiro que ganhamos, eu podia libertar mais
animais. Nenhuma criatura viva deve ser mantida numa gaiola.

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Betty piscava para reprimir as lágrimas e até Oona parecia estranhamente


comovida. Mas, para mim, a história dele não parecia verdadeira.

- Agora que conhecem meu segredo, que tal me contarem o de vocês? -


perguntou Kaspar. - Onde conseguiram aquele mapa? No minuto em que o
vi, entendi que era importante. Desconfiei que a menina que assaltamos ia
voltar para procurar por ele. Não esperava que ela trouxesse amigas tão
encantadoras.

Recusei-me a aceitar o elogio.

- Não podemos falar nada sobre o mapa.

- Entendo. Primeiro precisa perguntar à menina de cabelo branco. Ela é sua


líder, imagino.

- Não precisamos de permissão de ninguém - rebateu Oona. - Só não


confiamos em ladrões amantes de esquilos.

- Você é um criminoso - disse Betty delicadamente. - E não o conhecemos


realmente.

- Talvez haja uma maneira de eu conquistar a confiança de vocês. - Kaspar


olhou para Oona, para mim e para Betty. - Talvez eu não tenha ouvido
direito, mas vocês disseram que precisam de alguém pra vigiar esse prédio?

- Talvez - disse Oona, zombando de seu jeito peculiar de falar.

- Vou ficar de olho nele. Vou ficar aqui a noite toda, nem vou perguntar por
quê. Talvez eu até resolva o mistério dos gatos de Varney. Mas tenho uma
condição. Betty deve concordar em jantar comigo.

- De jeito nenhum - falei. - Isso é pedir demais. Não usamos nossas amigas
como moeda de troca.

- Está tudo bem, Ananka - disse Betty. - Quando tudo isso acabar, se ainda
for o que ele quer, eu o farei. - Eu podia ver que Betty não acreditava que
tinha de honrar o acordo. De certo modo, ela pensava que uma fungada no
Eau Irresistible ainda podia prender Kaspar.

- Betty... - tentei alertá-la.

- Já me decidi - anunciou ela. - Mas também tenho uma condição. Chega de


batidas em pet shops e assaltos, está bem? Não saio com delinquentes.

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- Excelente. Então temos um acordo. - Kaspar abriu seu sorriso de estrela de


cinema e começou a subir em um carvalho na frente da mansão de Lester
Liu. - Encontrem-me aqui amanhã à noite e farei meu relatório.

Deixamos Kaspar empoleirado num galho da árvore e corremos para a aula.


A estação de metrô mais próxima não ficava longe de minha escola, e nós
três andamos rapidamente na mesma condição.

- Cadê a Kiki? - Oona fumegava. - Não a abandonei da última vez e aquela


prima sádica dela quase me matou. Agora que meu próprio pai quer me
assassinar, ela nem aparece.

- Deve ter acontecido alguma coisa. Kiki nunca fura uma missão de
reconhecimento. - Embora estivesse preocupada com Kiki, eu não podia
deixar de ficar satisfeita que ela e Oona estivessem à beira de um
rompimento. - Acha que uma de nós deve passar na casa dela depois da
aula?

- Eu faço isso - disse Betty. - Mas depois vou direto à casa de DeeDee.
Tenho de descobrir um jeito de me livrar desse perfume.

- Ah, sim, sobre o perfume, Betty. Acho que você cometeu um erro com o
cara do esquilo. Nenhum perfume na terra ia durar tanto - eu disse a ela.

- E por que mais Kaspar quer nos ajudar? Eu me sinto mal, mesmo que ele
seja um criminoso. É como se estivesse me aproveitando dele.

- Tenho uma ideia melhor - disse Oona. - Por que não poupa a viagem à
casa de DeeDee e dá uma boa olhada no espelho?

- Como assim? - perguntou Betty.

Oona olhou para mim e revirou os olhos.

- E você ainda diz que eu não tenho jeito?

***

O sinal das quatro horas provocou uma debandada de alunas. Enquanto eu


abria caminho carrancuda pela horda até minha primeira tarde de detenção,
ocorreu-me que logo eu podia me ver na presença de Sua Grandeza. Toda
escola tem suas celebridades e Molly Donovan estava no topo da lista VIP
na Escola para Meninas Atalanta. A fama de Molly pouco tinha a ver com o

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fato de que sua mãe atriz foi premiada com dois Oscar ou que o pai,
cirurgião plástico, era responsável por metade dos narizes da Atalanta. A
maioria das meninas da Atalanta era rica e muitas eram famosas, mas
poucas podiam alegar ter conquistado seu sucesso. Molly era uma
celebridade por ter sido sentenciada à detenção mais vezes do que
qualquer outra menina na história da escola. Soube que na ducentésima
visita ela pretendia fazer uma tatuagem comemorativa.

Molly e sra. Fontaine estavam sozinhas na biblioteca quando cheguei para


cumprir minha sentença. Embora renomada como a mais rigorosa das
inspetoras de alunos, a sra. Fontaine sofria da maldição de uma bexiga do
tamanho de uma ervilha. Toda manhã, alunas de todas as idades faziam
apostas sobre o número de vezes que ela dispararia para o banheiro
durante o dia. O dinheiro que trocava de mãos toda semana podia ter
comprado um penico folheado a ouro para a sra. Fontaine.

Tentei pegar os livros de que precisava para escrever o trabalho que a


diretora Wickham me atribuíra, mas a biblioteca da Atalanta não chegava
aos pés da que eu tinha em casa. (Mas se gabava de ter um número
impressionante de livros dedicados a Seu corpo em transformação.) Eu
estava rindo de um dos títulos quando vi a sra. Fontaine mudar seu peso
considerável de uma perna para a outra e fazer uma careta, como se
estivesse prestes a explodir. Assim que escolhi uma mesa de estudos duas
filas atrás de Molly, nossa carcereira nos alertou para ficarmos de boca
fechada e disparou porta afora.

- Psst.

Espiei por cima da mesa. Molly estava ajoelhada na cadeira, olhando para
mim. Embora não fosse a imagem de encrenqueira, com bochechas
gorduchas e sardas de Pipi Meialonga, Molly era famosa por contribuir para
a delinquência dos outros. Olhei para meus livros e tentei ignorá-la.

- Pssssssst.

Molly recusava-se a desistir. Levantei a cabeça por sobre a divisória. Molly


sorria docemente e girava um anel vermelho no dedo.

- Nunca vi você aqui - disse ela. - O que você fez?

- Cheguei atrasada hoje de manhã.

- Ah - disse Molly, claramente decepcionada. - É só isso? Eu esperava que


você fosse a menina da bomba de inhaca.

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Ouvindo passos no corredor, baixei em minha cadeira e enterrei a cara no


livro. Os reflexos de Molly não foram tão rápidos.

- Molly, sente-se e comece a trabalhar! - guinchou a sra. Fontaine. - Se eu a


vir incomodando Ananka, vou cuidar para que fique aqui o mês inteiro.

- Eu já estou de detenção até o final de outubro - observou Molly.

- Então digamos novembro - disse a sra. Fontaine.

Arranquei três folhas de meu caderno e comecei o trabalho. E pretendia


escrever sobre o incidente de ladrões de túmulos que tinha incitado o
Distúrbio dos Médicos de 1788, mas em vez disso fui dominada por outro
tema.

Embaixo da sinagoga Bialystoker, no Lower East Side, há uma sala


secreta...

Quinze minutos depois, ouvi a sra. Fontaine sair da sala. Senti um calor em
minha nuca e pulei ereta, quase batendo a cabeça em Molly Donovan.

- Trabalho interessante - disse Molly. - Sua ortografia é terrível.

- Vá embora - sussurrei, de olho na porta. - Vai conseguir a expulsão de nós


duas.

- Não posso ser expulsa - disse Molly. - Estou tentando há anos. Não importa
o que eu faça. Meus pais simplesmente doam mais dinheiro à escola.

De repente eu fiquei impressionada.

- Por que quer ser expulsa?

- Odeio isto aqui. Prefiro qualquer lugar, menos Nova York.

- É mesmo? - perguntei, pasma. - E por quê?

- São meus pais. Eles não me dão sossego. Acha que eu sou especial.

- Mas sempre soube que você era muito inteligente.

- Não esse tipo de especial. Especial de superdotada.

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- Ah, é? E qual é o seu dom? - perguntei.

- Minha mãe me chama de calculadora humana. Posso resolver


mentalmente equações matemáticas complexas. Meus pais costumavam
me levar a festas para divertir os convidados. Quando eu tinha 11 anos,
decidi que não ia mais ser o mico de circo deles. Até tirei um D em
geometria no ano passado - disse ela, demonstrando um orgulho tremendo.

- Meus parabéns - eu disse. - Qual é a raiz quadrada de 7.368?

- Você também? - Molly suspirou. - É 85837. Três casas decimais bastam?

- Claro, mas não posso verificar. Não tenho calculadora.

- Então acho que vai ter que confiar em mim. Epa, lá vem a fonte. Não conte
a ninguém o que eu disse a você. Vai acabar com minha reputação.

- Tudo bem - sussurrei, enquanto Molly voltava para sua cadeira.

***

Outros 15 minutos se passaram e Molly voltou.

- Isso não é divertido? - perguntou ela.

- É melhor do que eu pensava. - Eu estava mesmo começando a gostar dela.

Molly se sentou na beira de minha mesa.

- Adoro a detenção. É minha hora preferida do dia. A gente conhece pessoas


muito interessantes. É chato que eu tenha que ver meus psicólogos depois
disso; se não fosse assim, eu ia te convidar para jantar. Minha cozinheira faz
uma bouilabaisse incrível.

- Psicólogos? - perguntei. - Você tem mais de um?

- Claro, eu sou superdotada, lembra? É uma equipe de marido e mulher. Eu


os vejo três vezes por semana. São especializados em crianças
excepcionais.

- Como é isso? - perguntei.

- Horrível. Eles me dão um monte de testes e me fazem falar de como é ser

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tão inteligente. Às vezes eu consigo me apresentar para uma plateia de


especialistas. É como ser uma daquelas galinhas no carnaval que fazem o
jogo da velha.

- Isso parece bem ruim - concordei.

- É claro que é. Não sei por que meus pais me mandam para eles. O filho
deles mesmo fugiu. Soube que agora ele mora no parque. Eles tentam
pegá-lo de vez em quando, mas ele também é superdotado. Fica sempre
fugindo. Epa, lá vem ela de novo.

***

Passei os 15 minutos seguintes contando os 900 segundos até Molly voltar.

- E aí - disse ela. - Onde estávamos mesmo?

- O menino. Aquele que você disse que fugiu. Qual é o nome dele?

- Phineas Parker. Por quê?

- Como ele é?

- Não faço ideia. Nunca o vi. Por que quer saber?

- Só curiosidade - expliquei.

- Se souber onde ele está, pode pedir a grande recompensa que os pais dele
estão oferecendo. Mas duvido que você seja má o bastante para dedurá-lo.

- Não depois do que você me disse. Aliás, qual é o dom dele?

- Arte - disse Molly. - Os pais têm as pinturas dele pelo consultório todo.
Parece que algum tempo atrás venderam uma por, tipo, uns 30 mil dólares.

- Escute, Molly. Acha que pode me conseguir uma foto de Phineas?

- Talvez - disse ela. - O que vou levar em troca?

Pensei por um momento.

- Se me conseguir uma foto, eu consigo sua expulsão.

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- Promete? - disse Molly, com os olhos brilhando.

- Prometo - garanti a ela.

- Molly! - A sra. Fontaine pegou a nós duas de surpresa. - Então que seja!
Vai ficar aqui por novembro inteiro.

- Ótimo! - exclamou Molly enquanto quicava de volta para sua cadeira.

***

Ao voltar para casa, peguei meu celular para ligar para Kiki e descobri que
havia duas ligações não atendidas da minha casa. Não era um bom sinal.
Quando passei pela porta da frente, encontrei minha mãe esperando no
corredor, agarrada a um cronômetro como uma treinadora sádica de
corrida. Ela olhou o relógio e depois para mim.

- São 6h47. Por que chegou tão tarde? Eu verifiquei na internet. Não há
nada de errado com o metrô.

- Na verdade, eu vim a pé. - O tom de voz dela me assustava e eu queria


desesperadamente um pouco de Fille Fiable. - Fiquei sentada por horas.
Precisava de algum exercício.

- Exercício é a menor de suas preocupações. Seu pai e eu queremos


conversar com você na sala ao lado. - Eu estava chocada demais para me
mexer. - Agora! - ordenou minha mãe.

O piso da sala de estar continuava coberto de livros caídos. Só foi aberta


uma pequena roda cercando o sofá. Sentei-me de frente para meus pais e
tentei ignorar um livro intitulado Templos de perdição da América Central
que me chamava do outro lado da sala.

- Quer nos dizer por que teve tanta dificuldade para sair da cama esta
manhã? - perguntou minha mãe.

- Porque eu estava cansada?

- É o melhor que pode fazer? - Minha explicação foi rejeitada e minha mãe
pareceu enojada. - Eu tinha acabado de conversar com o diretor da
Academia Borland quando sua diretora ligou - disse ela. - Ela parece pensar
que pode colocar você na linha de novo. Mesmo contrariando minhas
expectativas mais otimistas, concordei em dar uma chance a ela.

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- Obrigada - murmurei.

- Não tão rápido. A Academia Borland ainda está esperando por você em
dezembro. Já preenchi o cheque. Durma até tarde de novo e vai acordar
num ônibus para a Virgínia Ocidental.

- Não queremos castigá-la, Ananka - interrompeu meu pai, parecendo pouco


à vontade. Ele sempre preferia bancar o interrogador bonzinho. - Só
queremos ajudar você a ter sucesso. Se você se sair bem na escola, um dia
poderá fazer o que quiser. Poderá estudar esquilos gigantes, entrar para o
FBI ou cavar ossos antigos em Nova York. Mas nunca será capaz de fazer
tudo isso se primeiro não passar em geometria.

- Seu pai pode não querer castigar você, mas eu quero - declarou minha
mãe. - Demos a você toda a nossa confiança e toda a privacidade do
mundo, e você abusou das duas coisas. É por isso que sentimos a
necessidade de tomar algumas precauções. Seu pai e eu passamos o dia
encontrando todos os livros de que você precisa para seus estudos. Estão
em seu quarto. Todo o restante da biblioteca está temporariamente proibido
até que você aprenda a se concentrar.

"Nas próximas duas semanas, você virá diretamente para casa todo dia ao
sair da detenção e começará seu dever de casa. Nesse período, ficará longe
de Kiki Strike. Entendeu?

- Sim. - É fácil parecer humilde quando você acha que tem um ás na manga.

- Ótimo. Então seu tempo começou. E, Ananka?

- Sim?

- Amanhã você vai pegar o metrô para casa.

Corri para meu quarto para examinar os danos. As gavetas de minha mesa
tinham sido saqueadas e muitos de meus livros preferidos foram
confiscados, mas minha coleção de livros de história de Nova York não foi
tocada. Meu exemplar de Vislumbres de Gotham continuava ali, junto com o
mapa que estava enfiado entre suas páginas. Quase soltei um suspiro de
alívio, quando por acaso vi as janelas. As duas estavam trancadas com
cadeados novinhos. Eu estava presa ali dentro. Deitei-me na cama,
plenamente preparada para cair aos prantos, quando houve uma batida na
porta e meu pai enfiou a cabeça para dentro.

- Não é assim tão ruim - cochichou ele. - Só tire um A na próxima prova e

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ela vai se esquecer de tudo. Você pode fazer isso!

- Obrigada, pai. - Eu funguei.

- A propósito, hoje chegou uma coisa pelo correio para você. Acho que é de
uma de suas amigas. Não conte a sua mãe que eu lhe entreguei.

- Tudo bem - concordei. Ele atirou na cama um pequeno pacote de papel


pardo.

- Se precisar de ajuda no dever de casa, é só me falar.

- Eu falo - prometi, enxugando os olhos.

Abri o pacote e larguei o conteúdo na cama. Havia dois cadeados idênticos


àqueles da minha janela, um martelo e um cinzel pequenos e uma pequena
caixa de couro. A caixa tinha um tubo de ensaio de metal frio ao toque e
tinha a etiqueta Nitrogênio Líquido. Pesquei dentro do envelope e encontrei
um bilhete.

Desculpe por não aparecer hoje. Soube que está de castigo. Não é assim
tão ruim. Se não conseguir arrombar os cadeados, pode usar este kit. Cubra
um dos cadeados com nitrogênio e deixe por um ou dois minutos. Quando o
cadeado congelar, bata nele com o martelo e o cinzel. (Cuidado! Nitrogênio
também congela dedos.)
Vejo você amanhã à noite.
Kiki

CAPÍTULO SETE

A bela adormecida

Na sexta-feira de manhã, atravessei as portas da Escola Atalanta uns 45


minutos antes do primeiro sinal. Os corredores estavam praticamente
vazios. A caminho do banheiro, passei correndo por algumas alunas
bolsistas e uma ou duas puxa-sacos a caminho do banheiro. Tinha bebido
todo o meu expresso triplo enquanto estava no metrô e os efeitos
começavam a ficar desagradáveis. Enquanto lutava freneticamente com a
fivela de meu cinto, ouvi alguém bater a por¬ta do reservado vizinho.

— Psst! Ananka. — O sussurro era quase um grito. Olhei para baixo e vi uma
cara sardenta sorrindo para mim sob a divisória.

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— Molly? — eu grunhi. A garota precisava mesmo trabalhar seus limites. —


O que está fazendo?

— Vem cá — insistiu ela.

— O quê? Não!

— Vem cá. Tenho uma coisa pra você.

— Não acha isso meio esquisito, Molly?

Molly fez uma carranca.

— Estou falando sério. Vai querer ou não?

— Meu Deus do céu, Molly. Dá para esperar um minuto? Estou quase


explodindo.

— Não, não dá. Caso tenha se esquecido, eu tenho cada professor da escola
de olho em mim. Não tenho muito tempo.

Respirei fundo e abri minha cabine. Não tive a oportunidade de ver se


alguém estava ouvindo antes de Molly me puxar para a cabine dela.
Ficamos nariz com nariz acima da privada.

— Isso é muito estranho — eu disse a ela. — Por que todo esse segredo?

— Consegui uma foto de Phineas Parker para você. — Molly abriu a mochila.
Estava vazia, a não ser por uma foto num enorme porta-retrato de prata.

— Eu só precisava da foto, Molly, não do porta-retrato. Isso é da Tiffany.


Seus psicólogos com certeza vão saber que sumiu.

— E eu ligo? Vou dizer a meu pai para acrescentar mais umas 100 pratas no
próximo cheque deles. Oooh! Ou talvez me mandem procurar outro médico.
Isso seria incrível! O que você acha?

Eu tinha dificuldade de desviar os olhos. Phineas Parker tinha cabelo


castanho-avermelhado, olhos castanhos e a cara de um deus grego. Um
esquilo enorme estava empoleirado no ombro dele.

— É, foi o que eu pensei — Molly cacarejou. — Quem sabia que ele era tão
bonito? Se um dia ele decidir voltar para casa, talvez eu consiga que os pais
dele arranjem nosso casamento.

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— Molly — eu disse com um sorriso —, quando chegar a época, você estará


a centenas de quilômetros de Nova York.

- Então vai mesmo fazer isso?

- Promessa é promessa. Nada vai acontecer de imediato, mas um dia, em


breve, você será expulsa.

Molly atirou os braços em mim e me sufocou com um abraço tão forte que
quase perdi o controle da bexiga. Duas meninas riram quando Molly e eu
saímos da cabine, mas eu não liguei. Nunca em minha vida eu fiz alguém
tão feliz.

***

Naquela noite, horas antes do início marcado para o jantar de Lester Liu,
peguei o metrô para casa, passei de cabeça erguida direto por minha mãe e
me tranquei no quarto. Pouco antes das sete horas, meu pai bateu na porta
e perguntou se eu queria um pouco de pão e água. Informei-lhe
educadamente que já tinha comido e pedi que me deixassem em paz com
meus estudos. Às 7h45, arrombei cuidadosamente um dos cadeados e desci
a escada de incêndio na ponta dos pés. Às 7h30, eu estava na frente do
prédio de Betty Bent. Não senti uma grama que fosse de orgulho.

Meus dedos roçavam a campainha quando Betty abriu a porta e me


arrastou para dentro de seu apartamento escuro do porão. Antes que eu
pudesse dizer alguma coisa, ela levou um dedo aos lábios.

— Ainda bem que chegou cedo - sussurrou ela, dando uma espiada rápida
por sobre o ombro. — Há uma coisa que você precisa ver.

— Tem mais alguém aqui? — perguntei.

— Só Oona. Vem. — Ela contornou os manequins e bonecos de modista sem


cabeça que apinhavam a sala de estar. Os pais desenhavam figurinos para
uma nova ópera que pelo visto seria montada em Marte.

— Espere um segundo. Tenho uma coisa para te contar — sibilei para Betty.
— Hoje eu descobri a identidade secreta do seu namorado.

Betty reduziu o passo, mas se recusou a se virar.

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— Namorado?

— Você sabe de quem estou falando. Ele adora ficar ao ar livre, gosta de
trabalhar com animais e não vê uma barra de sabão há um bom tempo. —
Betty parou de andar. — O nome verdadeiro dele é Phineas Parker. Os pais
dele são psicólogos. Ele fugiu há alguns meses. Quer ver uma foto?

Betty assentiu, muda, e eu lhe passei a foto que tirei do porta-retrato.

— Nada mal, hein? — Meu sorriso desapareceu quando vi a cara de Betty. —


Que foi?

— Nada. Eu só queria que Iris nunca tivesse feito aquele poção do amor.
Olha... Talvez você não deva contar a mais ninguém sobre isso.

— E por que não? — Meu ótimo trabalho de detetive foi recompensado com
uma fofoca de primeira classe. Guardar segredo seria como ganhar na
loteria e perder o bilhete.

— Ele não deu nenhuma razão para a gente entregá-lo. Vamos guardar o
segredo dele por enquanto.

— Não me diga que está a fim da criança selvagem do Central Park.


Betty deu de ombros.

— E se eu estiver? Que diferença faz?

— Mas ele está seguindo você feito um babuíno apaixonado — argumentei.


— É evidente que ele também gosta de você.

— Talvez. Mas graças ao Eau Irresistible, eu nunca vou ter certeza — disse
ela com um suspiro. — Agora corre ou vai perder o show.
Betty irrompeu para o quarto nos fundos do prédio. A luz inundava a sala de
estar pela porta aberta.

— Tá legal, fique aqui. — Betty me mostrou uma sombra e apontou o


quarto. — Dê uma olhada.

Fitando o espelho triplo de corpo inteiro estava Oona, usando um vestido


magnífico, composto de múltiplas camadas de chiffon e sede cinza-clara.
Sempre que ela se mexia, centenas de contas costuradas pela bainha do
vestido cintilavam como orvalho.

— Que vestido incrível. Você desenhou? — perguntei a Betty.

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— Não. Oona trouxe. Numa caixa imensa, com uma fita vermelha grande.

— Presente do papai?

— Arrã. Foi entregue na casa dela hoje de manhã. Ela teve de experimentar
aqui. Disse que as avós não aprovariam se soubessem que ela estava
aceitando presentes de Lester Liu.

— Vejo que você não aprova também - falei, Betty sacudiu a cabeça. — É
meio estranho, eu acho. Mas é só um vestido.

— Não é só um vestido. Está vendo todos os brilhos na bainha? São de


verdade. São diamantes.

— Não podem ser verdadeiros — falei com desdém. — Tem toneladas deles.

— Eu sei, mas são. Eu testei um. E não havia só um vestido na caixa que ela
trouxe. Está vendo as joias novas dela?

Ainda sem saber que estávamos olhando, Oona parou de girar para os
espelhos e colocou a mão na caixa gigantesca que estava aberta na cama.
Uma pulseira grossa de diamantes lampejou no pulso enquanto ela pegava
uma estola de peles prateada e a passava pelos ombros. Ela fez uma pose
de estrela de cinema e soprou um beijo para o próprio reflexo. De repente
eu me senti como se estivesse espionando uma estranha. A Oona que eu
conhecia tinha lá seus defeitos, mas sua dignidade não estava à venda. Não
só ela teria recusado os presentes de Lester Liu, como teria incendiado a
caixa e atirado na rua. Esta era uma pessoa que eu nunca vira. Uma
impostora, talvez. Uma gêmea do mal. Ou talvez, agora me ocorria, esta
fosse a verdadeira Oona — o lado que ela escondia de todas nós.

— Ela está ótima — murmurei, temerosa de compartilhar de minhas


suspeitas com Betty.

— Ela está linda. O problema é este — cochichou Betty. — O pai descobriu


seu ponto fraco. Não sei o que ele quer, mas ele acha que pode comprar a
confiança dela. Estou começando a ficar preocupada, Ananka.

— Eu também. — admiti. Se a segurança das Irregulares depender da


garota do espelho, todas corremos um grave perigo. A campainha tocou.

— Volto já — disse Betty.

— Oi, Oona. - Entrei na luz do quarto. Oona acenou para meu reflexo.

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— E aí, o que acha? — perguntou ela.

— Seu pai tem excelente gosto — observei secamente.

— Tem mesmo, né? — Oona girou mais uma vez para sua própria admiração
antes de ver minha cara. — Não me olhe desse jeito — disse ela. — Se ele
mandou alguma coisa, eu tenho que usar, não é? O que ele pensaria se eu
aparecesse com um dos trapos velhos de Betty?

Eu não sabia o que dizer. Enquanto Betty voltava ao quarto com Luz,
DeeDee e Iris a tiracolo, finalmente situei o que me incomodava. O
argumento de Oona fazia perfeito sentido. Só não era uma coisa que minha
amiga teria dito.

— Seus pais a deixaram sair com a gente de novo? — perguntei a Iris


enquanto ela passava pela porta.

— É, eles finalmente entenderam que é melhor ter amigas mais velhas do


que amiga nenhuma. — Iris estendeu a mão para roçar o vestido de sede de
Oona. — Você está demais, Oona — disse ela com entusiasmo.

— Diga uma coisa que eu não saiba, nanica — respondeu Oona


asperamente ao se afastar da mão estendida de Iris.

— Bonita por fora — murmurou DeeDee. — Onde está a Kiki?

— Parece que ela vai se atrasar — disse Betty. — Sentem-se.

— Eu trouxe seus grampos. — Luz os largou na cama de Betty com um


baque. Tirou de um saco de papel um objeto achatado do tamanho de uma
moeda e o estendeu entre o polegar e o indicador. — São vinte, e vocês
podem colocar onde quiserem. Tem um adesivo atrás, se precisarem grudar
debaixo de uma mesa ou atrás de uma tela.

— Você é um gênio — elogiei.

— Já me disseram isso — respondeu Luz.

— Iris e eu trouxemos um pouco de Fille Fiable. — DeeDee colocou três


vidrinhos de spray na penteadeira de Betty. — Mas lembrem-se de que ele
só fica forte por alguns minutos. Talvez vocês tenham que reaplicar várias
vezes.

— Está dizendo a mim como isso funciona? — perguntou Oona. — Caso

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tenha se esquecido, sua sombra com problemas de crescimento me fez uma


demonstração pessoal.

— Muito bem! — Betty se recusou a deixar que o comentário de Oona


causasse algum prejuízo. — Hora de se vestir, Ananka. Quer vir, Iris?

— Pode apostar que sim! —cricrilou Iris, ansiosa para escapar de Oona.

***

Como figurinistas do Metropolitan Opera, os pais de Betty passavam os dias


desenhando trajes vinkings para homens com estrutura óssea minguada e
transformando prima-donas roliças em camponesas francesas famintas. Em
incontáveis ocasiões, vi a prova de seu trabalho meio esticada na sala de
estar, mas nunca fui convidada a visitar seu ateliê.

— Nunca se perguntou por que moramos num porão? — perguntou Betty a


Iris, a mão postada na maçaneta da porta com a placa Mantenha Distância.
— É por isso. — Ela abriu a porta e revelou um enorme espaço de trabalho
cheio de trajes de todos os tipos imagináveis — asnos, romanos, sultões e
gueixas. — Nunca conseguimos todo esse espaço na superfície, e a luz do
sol destrói a cor dos tecidos.

— Você podia ganhar uma fortuna no Halloween — Iris estava admirada.

— Meus pais jamais emprestariam essas coisas. Na verdade, eles


provavelmente vão me matar se souberem o que estou fazendo. — Betty foi
até uma das araras de roupa e começou a vasculhar os cabides. — O que
acha deste, Ananka? — Ela estendeu uma roupa cor-de-rosa com asas de
tecido fino.

— Muito engraçado — sussurrei.

— Posso experimentar? — Os olhos castanhos de Iris cintilavam.

Betty olhou confusa a menina.

— Não acho que seja de seu tamanho. Além disse, você tem quase 12 anos.
Por que ia querer se vestir de Fada Sininho?

Iris olhou as sapatilhas verdes de balé.

— Eu só estava pensando que podia usar uma roupa dessas, se um dia

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desses vocês precisarem de novo de minha ajuda. Sabe como é, quando


precisarem de alguém que pareça uma criancinha inocente.

— Duvido que a gente vá precisar de uma fada. Que tal uma pequena
sereia? Você pode ficar de tocaia nas fontes. — A única a rir fui eu.

— Você está passando tempo demais com Oona — Betty me repreendeu. —


Parecer nova não é sua única competência — disse ela a Iris. — Se algumas
pessoas querem te tratar como uma menina de oito anos, problemas delas.
Não se esqueça de que você já salvou a pele delas. Com seus miolos, sei
que não foi a última vez.

— Ela tem razão — admiti. — Desculpe, Iris.

— Já superei isso — disse Iris. — Vamos voltar ao trabalho.

— Quer ver o vestido de Kiki? — Betty empurrou um diabo de lado e revelou


um elegante vestido de cetim e renda. — Pensei que ela ia querer continuar
no preto, então tive de fazer eu mesma. Todos os vestidos de adulta são
grandes demais para ela e a maioria dos vestidos de criança tem cor de
sorvete.

— É ótimo, mas eu mataria para ver Kiki de rosa-chiclete.

— Vai ter que matar mesmo. Ah, e este é o seu. — Ela puxou um vestido
longo de sede vinho-escuro. — Minha mãe desenhou este vestido para uma
interpretação moderna de Medeia. As manchas de sangue não aparecem.

— Que bom saber disso — eu falei. — Acha mesmo que vou ficar bem nele?

— Tá brincando? Você vai ficar linda — insistiu Betty. — E olha só — disse


ela, estendendo a mão nas dobras da saia. — Bolsos ocultos para os
grampos... Como prometi.

***

Com minha roupa nova, sentei-me à penteadeira de Betty, de costas para


sua coleção de narizes falsos, enquanto ela dava os últimos retoques na
maquiagem. Iris estava de pé ao lado e Betty lhe dava instruções.

— Um dos olhos de Ananka é um pouquinho maior do que o outro, então


vamos ter que colocar um pouco mais de delineador no menor...

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— Que horas são? — intrometeu-se Oona. Tendo finalmente se cansado de


ficar olhando o próprio reflexo, ela estava arrumando as perucas de Betty,
dispostas em dezenas de cabeças de isopor junto à parede. Luz estava
esparramada na cama, encarando o teto. Ela olhou o relógio.

— Quase 8h15 — disse ela.

— Cadê a Strike? — grunhiu Oona. — Vamos levar meia hora para chegar à
área residencial e teremos de estar lá às nove. Se desta vez Kiki der bolo,
juro que vou dar um chute no rabo dela.

— Boa sorte — Luz bufou. — Pagou 50 pratas para ver.

Iris começou a rir, depois pensou melhor.

— Kiki virá — disse DeeDee e logo a campainha tocou. — Está vendo? — Ela
pulou para atender a porta.

Quando DeeDee voltou, tinha uma cara horrível. A de Kiki parecia um


instantâneo de filme de terror.

— Desculpe pelo atraso — disse ela.

— Tá legal. Está tudo bem com você? — A tez de Kiki parecia ainda mais
cadavérica do que de costume e seus olhos estavam injetados e inchados.
Dava a impressão de que não dormia havia dias.

— Verushka está doente de novo. Tive de encontrar outro médico.

— Pensei que ela estivesse melhor — disse DeeDee. — Qual é o problema


agora?

— É a perna. Ainda há alguma coisa errada com ela.

— Acha que devia estar aqui? — perguntei. — Não devia ficar em casa com
ela?

Oona protestou com um pigarro, mas nós a ignoramos.

— Ela não quer que eu perca isto — disse Kiki. — O médico está com ela
agora.

— Tem certeza de que está bem para o jantar? — perguntou Betty. — Uma
de nós pode ir no seu lugar, se precisar ficar em casa.

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— Com licença? — Oona gemeu. — Eu adoro a Verushka tanto quanto


qualquer uma de vocês, mas isto é sério também.

— Eu vou ficar bem — Kiki nos garantiu com um sorriso amarelo.

— Então pula fora, Ananka — disse-me Betty. — Você terminou e tenho 15


minutos para consertar uns danos graves.

— Vestido legal, Oona — disse Kiki enquanto assumia meu lugar junto à
penteadeira. — Um presente, imagino?

— É, o pai de Oona tem mesmo a ficha da filha, né? — disse DeeDee.


— Espero que esteja falando de meu número de roupa, Morlock — ladrou
Oona.

***

Enquanto nosso táxi acelerava pela Madison Avenue, Oona, Kiki e eu


examinamos as plantas da mansão de Lester Liu. Duas quadras ao sul de
nosso destino, saímos do táxi e fomos a pé para o parque. Uns turistas que
andavam pela Quinta Avenida pararam para nos olhar boquiabertos. Com
seu vestido cinza-claro, Oona parecia uma deusa de mármore que
ganharam vida, e Betty tinha feito maravilhas com Kiki. Com o cabelo sem
cor, a pele incrivelmente branca, o vestido preto elegante e os lábios
vermelhos, ela podia ser a rainha dos vampiros. Até eu estava apresentável,
embora lutasse para andar com elegância nos saltos altos.

Kiki deslizou ao lado do muro que separa a Quinta Avenida do Central Park.
Passando de fininho pela Children's Gatena rua 76, ela se aproximou de dois
homens que estavam sentados no chão, curtindo um banquete de salsicha
Viena e feijão frio.

— Kiki Strike — disse ela, estendendo a mão para o mais velho.

— Howard Van Dyke. — O homem trocou um aperto de mãos com ela. Era
baixo, corpulento e incomumente peludo; como um gnomo de jardim que
tivesse dado sementes. — Aceita uma salsichinha? — perguntou ele.

— Não, obrigada — Kiki declinou educadamente. — Sou alérgica.

— Eu sou Kaspar — disse o mais novo, colocando-se de pé e apertando a


mão de Kiki. — Li sobre você nos jornais. Oona, Ananka — disse ele com
uma pequena mesura na nossa direção. — As duas estão esplêndidas esta
noite.

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— Obrigada, garoto do esquilo. Ai! — Oona gritou quando lhe dei uma
cotovelada.

— Oi, Kaspar — falei.

— Betty me falou que você foi muito útil — disse Kiki. — Obrigada por vigiar
a mansão.

— Foi um prazer — disse Kaspar. — Howard me fez companhia.

—Obrigada a você também, Howard — disse Kiki. — E então, o que viu?

— Não teve muita atividade — observou Kaspar. — Há um mordomo que


entra e sai o dia todo. Ele é um personagem incomum. Parece um Gengis
Khan de peruca malfeita... É impossível não reconhecê-lo. Há também um
cozinheiro, mas ele saiu da casa no momento. Acho que pode ser o único
empregado da casa no momento. Houve algumas visitas esta manhã. Um
homem alto de terno apertado apareceu por volta das nove horas. Bem-
vestido, mas meio chamativo. Só ficou alguns minutos. O segundo foi um
entregador que deixou uma caixa de najas.

— Você disse najas? — perguntei.

— Era o que parecia — confirmou Kaspar. — Tem certeza de que quer entrar
lá?

— Com ou sem najas, não temos alternativa — disse Oona, olhando-me de


cara feia. — Fomos convidadas para jantar.

— Então vou esperar para ter certeza e que vão sair de lá.

— É muito cavalheirismo de sua parte — disse Kiki. — Mas podemos nos


cuidar sozinhas.

— Sei que podem. Mas entenda, minha agenda social está vazia esta noite.
Não tenho nada para me divertir — disse Kaspar, exibindo uma habilidade
extraordinária para a diplomacia.

— Se não se importa de dar uma paradinha depois do jantar, estou curioso


para ouvi sobre as najas. Como suas amigas devem ter lhe contado, eu sou
uma espécie de amante de animais.

— Neste caso, talvez a gente traga uns restos para você — disse Kiki com
um sorriso.

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— E quem sabe uma garrafa d Châteuneuf du Pape? — perguntou Howard.


— É o melhor vinho para acompanhar salsichas.

— Verei o que posso fazer. — Kiki riu enquanto íamos para a saída.

— Gostei de Kaspar — anunciou Kiki enquanto atravessávamos a Quinta


Avenida. — Por que será que ele fugiu de casa?

— Como sabe disso? — perguntei, aturdida.

— Os dentes dele são meio perfeitos demais — disse Kiki. — Se estivesse


morando no parque há muito tempo, a essa altura estaria crescendo musgo
neles.

***

O mordomo de Lester Liu deu um passo para o lado e esperou em silêncio


enquanto nós três entrávamos no saguão da mansão. Alto, moreno e com
um penteado estranho, ele examinava o espaço acima de nossas cabeças,
embora eu sentisse que via tudo. Evitei a pele branca erguida numa
recepção selvagem. Por baixo de um lustre de cristal ardiam dezenas de
velas bruxuleantes e os diamantes de Oona ganharam vida, emitindo
pequenas centelhas enquanto ela deslizava pelo mármore. Os olhos de Kiki
circularam pela sala, observando as rotas de fuga e possivelmente
procurando por najas. No primeiro andar, havia duas portas altas de cada
lado do saguão. A porta à nossa direita tinha sido apressadamente coberta
com tábuas. Cada pedaço de madeira fora fixado com pregos nodosos e
tortos.

— Viemos ver o meu pai — a voz de Oona, sempre meio alta demais,
ricocheteou nas paredes de mármore. Sem pronunciar uma palavra, o
mordomo voltou os olhos para a grande escadaria. Um baixinho de smoking
descia do segundo andar, a ponta da bengala batendo em cada degrau. De
perfil, seu rosto parecia frio, mas ao passar pela última curva da escada, ele
abriu um sorriso encantador.

— Minha cara Oona. — Lester Liu falou com o sotaque ciciado de um lorde
inglês que acabou de receber o título de nobreza. Com a mão livre, pegou a
filha pelo ombro e plantou dois beijos em seu rosto. — Você é ainda mais
estonteante do que sua mãe. De agora em diante, deve sempre se vestir
assim. — Eu esperava que Oona se retorcesse ou lançasse um insulto para
ele. Em vez disso, ela ficou boquiaberta com o belo pai, incapaz de falar.

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— Estas devem ser suas amigas. — Lester voltou-se primeiro para Kiki. —
Srta. Strike, suponho — disse ele, estendendo a mão para Kiki. — Você é em
cada detalhe tão impressionante como imaginei que seria.

— Muito lisonjeiro de sua parte, sr. Liu. — A sobrancelha arqueada de Kiki


deixou perfeitamente claro o que ela pensava da opinião dele. — Quer
evitar que alguém saia... ou entre? — perguntou ela com um sorriso,
apontando a porta bloqueada.

Lester Liu retribuiu o sorriso de Kiki e aceitou a provocação.

— Este e um toque da decoração da sra. Varney. Ela era muito frugal nos
últimos anos. Em vez de aquecer a mansão toda, fechou a ala leste pra
economiza na conta do gás. Mas como posso me concentrar nestas
trivialidades com criaturas tão encantadoras diante de mim? — perguntou
ele, estendendo a mão na minha direção.

— Annie Fisher — menti. Se Lester Liu não sabia meu nome, não tinha
sentido dar a ele. — É um prazer conhecê-lo, sr. Liu. — A mão do homem
era fria e seca, como a de uma estátua.

— O prazer é todo meu — disse ele. — Gostariam de conhecer a casa?


Receio não ter muitas visitas e estou ansioso para partilhar meus tesouros.
— Ele olhou para Oona ao dizer isso e um arrepio desceu por minha
espinha.

Lester Liu estendeu o braço para mim e eu tive de me sacudir para pegá-lo.
Por baixo do paletó, eu sabia que ele era magro, mas musculoso. Ele me
conduziu com uma facilidade surpreendente por uma porta e entramos num
labirinto de câmaras escuras e frias, cada uma delas cheia dos tesouros de
Cecelia Varney.

Ao que parecia, depois de descobrir que o dinheiro não podia comprar a


felicidade, Cecelia Varney se dedicou a comprar todo o resto. Começamos
nosso giro por uma sala vazia revestida de espelhos altos. Refletidos no
vidro, vi os olhos de Kiki disparando para cada canto enquanto os de Oona
ficavam fixos nas costas do pai. Lester pegou um controle remoto no bolso
do paletó e a sala se encheu de luz. Os espelhos ficaram transparentes,
revelando prateleiras apinhadas de milhares de delicadas estatuetas de
porcelana. Aprisionadas por trás do vidro, havia sereias dançando jiga,
jovens brincando com lindos gatinhos e lindas moças sussurrando para seus
amados.

— A Sala Staffordshire — anunciou Lester Liu com um toque de repulsa na


voz. Até meninas de porcelana pareciam lhe dar nos nervos. — O gosto da

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srta. Varney era bom, mas nem sempre era coerente. Estes serão vendidos
em leilão na semana que vem. Espero que paguem por algumas reformas
que planejei. Mas livrar-me destes monstrinhos será uma das principais
melhorias que posso fazer. — As luzes se reduziram e senti o braço de
Lester Liu me puxando para outra porta escura.

— Creio que achará esta sala interessante, srta. Strike. — As luzes se


acenderam tão de repente que uma dor aguda atingiu minha cabeça e eu
cambaleei nos saltos. Quando parei de piscar, vi-me num quarto mobiliado
com antiguidades ostentosas. Ao lado de uma cama de dossel acortinada
com tecido ricamente bordado, havia uma escrivaninha marchetada em
ouro. Um livro de capa de couro com uma coroa dourada estava aberto
junto ao pé de uma chaise longue revestida de seda. No meio do quarto, em
um pedestal de mármore quadrado, havia uma caixa simples de ouro. —
Este é o quarto de Maria Antonieta — disse Lester Liu. — É quase idêntico
ao que ela deixou na noite em que fugiu de uma turba de camponeses
brandindo tochas. O governo francês vem tentando recuperar estes objetos
há séculos. É claro que ainda não fazem ideia de onde encontrá-los.

— O que tem na caixa? — perguntou Kiki, aproximando-se para olhar. —


Não é muito parecida com o resto, não é? — A mão de Kiki segurou a lateral
do pedestal e entendi que ela plantava o primeiro grampo.

— Tem um olho excelente — disse Lester Liu com um sorriso sereno. — A


caixa é o último acréscimo ao quarto. Contém uma cabeça. Em 1955, um
antiquário muito inescrupuloso convenceu a srta. Varney de que a cabeça
pertenceu à própria rainha. Os testes de DNA que encomendei foram
incapazes de me dizer a cabeça de quem a srta. Varney comprou, mas
certamente não era de Maria Antonieta. Mais provavelmente pertenceu a
um membro menor da família real francesa. Dado o tamanho incomum do
nariz, eu diria... — Ele foi interrompido por um estrondo que veio da Sala
Staffordshire. O tronco sem cabeça de uma ordenhadora de porcelana voou
pela porta e caiu a meus pés.

— O que foi isso? — eu ofeguei.

— Colocou alguém atrás de nós? — perguntou Kiki. Ela correu até a porta e
foi tragada pela escuridão.

— Garanto-lhes que não há ninguém aí, srta. Stike — Lester Liu a chamou
desanimado.

— A sala está vazia — anunciou Kiki ao voltar. Seus olhos gélidos se


demoraram em Lester Liu. — Devo informá-lo de que nossas amigas sabem
que estamos aqui. Se não estivermos em casa à meia-noite, a polícia será

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chamada.

— Era o que eu esperava. — Lester Liu franziu o cenho e afagou minha mão,
que ainda estava presa no gancho de seu braço. — Vamos, senhoras. Há
muito mais a ver.

***

O pai de Oona nos levou por mais de uma dezena de câmaras escuras, cada
uma delas um museu bizarro dedicado a uma das paixões incomuns de
Cecelia Varney. Até os corredores eram abarrotados de telas, do chão ao
teto. Lester Liu apontou obras de arte que havia muito se acreditavam
perdidas, inclusive um retrato de Van Gogh de um homem ruivo e
carrancudo, enquanto eu olhava todas as pinturas, procurando por olhos em
movimento, certa de estar sendo observada. Fiquei esperando ser atacada a
qualquer momento por cobras venenosas, assassinos da Fu-Tsang ou uma
combinação letal das duas coisas. Enquanto eu estava de frente para uma
caixa de vidro em que o único item em exibição era um enorme diamante
verde-amarelo etiquetado de O Florentino, pensei ter detectado alguma
coisa arfando atrás de mim. Quando me virei e me vi sozinha na sala, quase
torci um tornozelo na pressa para acompanhar os outros.

Passei mancando por ícones russos, porta-balas Pez de astronauta e um


urinol de homem com a inscrição R. Mutt, em 1917. Era como se
estivéssemos vagando pelo brechó mais caro do mundo e eu podia ver que
Oona estava tentada a fazer umas comprinhas. Quando ela se demorou
diante de um par de braceletes de platina e esmeralda que pertenceu à
duquesa de Windsor, Lester Liu abriu o armário e os ofereceu a ela. Kiki e eu
partilhamos um olhar preocupado quando Oona levou tempo demais para
recusar.

Chegamos à última sala do tour de Lester Liu e a encontramos vazia, a não


ser por um grande caixão de vidro.

— Por fim — disse Lester Liu. — Permitam-me apresentá-las a minha própria


Bela Adormecida.

Dentro do caixão estava uma forma feminina magra coberta da cabeça aos
pés por uma mortalha de quadrados de jade unidos por um fio de ouro. Kiki
se ajoelhou pra examinar a figura; depois seus olhos leitosos dispararam
para a cara de Lester Liu.

— É uma múmia chinesa — observou ela. — Quem é?

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— Muito astuta, srta. Strike — disse Lester Liu. — Esta é a mais valiosa das
posses de Cecelia Varney. A mulher que vê à sua frente é conhecida a China
como a Imperatriz Traidora. Tem quase duzentos anos. Ladrões de túmulos
saquearam sua tumba na década de 1940 e a srta. Varney comprou o
conteúdo em segredo, com a ajuda de um funcionário corrupto do governo.
Só algumas pessoas sabem que a Imperatriz saiu da China.

— Então há um corpo de verdade aqui? — perguntei.

— Certamente. Quando a encontrara, ela estava perfeitamente preservada.


Talvez a mais bela múmia já descoberta. Sua pela ainda é macia e há
sangue nas veias. Dizem que o estado de seu cabelo é extraordinário. Como
um rio de seda preta. Mas depois que a retiraram da tumba, a Imperatriz
começou a envelhecer. A srta. Varney não poupou despesas na construção
deste caixão hermeticamente fechado. Se um dia ele for aberto, a múmia
virará pó rapidamente.

"Soube que a srta. Varney passava muito tempo na companhia da


Imperatriz. Parece que ela ficou comovida com sua história.

— Por que a chama de Imperatriz Traidora? — perguntei.

Lester Liu baixou os olhos para a mulher no caixão, a expressão fria.

— Ela traiu a família, srta. Fisher, e não há crime maior para os chineses.
Mas ela nasceu bárbara. Sua traição era prevista. — Apoiando-se na
bengala, Lester Liu voltou-se para nós três.

"A história é só uma lenda, mas a maioria das lendas começa com um pingo
de verdade. Diz-se que muitos séculos atrás, o imperador chinês mandou
seu herdeiro para selar a paz com os líderes de tribos que moravam a oeste
de suas terras. Lá, o tolo rapaz se apaixonou por uma princesa bárbara. Ela
era linda, mas incorrigivelmente selvagem. Não possuía nenhuma das
virtudes femininas valorizadas na China, e no entanto ele estava decidido a
tomá-la como esposa. Quando o líder das tribos percebeu os sentimentos do
jovem por sua filha, ficou satisfeito. Um dia a China teria uma imperatriz
com sangue bárbaro.

"O imperador concordou com a união. Era melhor fazer uma aliança de
sangue com os bárbaros do que uma guerra interminável. Mas quando ele
pôs os olhos na futura esposa do filho, entendeu que ela nunca seria
imperatriz. Sua pele era áspera e as mãos tinham calos de segurar as
rédeas de um cavalo. Pior ainda, ela era teimosa e insolente e recusava-se a
se conformar às regras da corte. Entretanto, o imperador amava o filho e o
filho amava a menina. Ele a tolerou até o dia em que ela acrescentou a

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traição à lista de ofensas. Os guardas dele interceptaram correspondência


secreta entre a menina e os parentes. As cartas revelaram uma conspiração
para assassinar o imperador e seu herdeiro.

"O imperador não tinha alternativa, a não ser executar a menina. Mas não
suportava magoar o filho. A menina foi envenenada, um veneno que a fez
cair em sono profundo, e o filho foi informado de que ela morrera de febre.
Ela foi enterrada viva na sepultura mais magnífica já construída para uma
mulher. Mas as histórias de sua traição eram cochichadas na corte, até que
por fim todo o império sabia da terrível verdade.

"Dizem que enquanto a sepultura era fechada, a criada bárbara da menina


lançou uma maldição sobre o imperador e sua corte. Um dia, disse ela, a
Imperatriz Traidora acordaria e teria sua vingança.

Por fim Oona falou:

— Não acha que é meio doentio guardar uma coisa assim em sua casa? —
Era como se a história tivesse rompido um feitiço. Enquanto os olhos de
Lester Liu estavam na filha, vi Kiki colocar furtivamente um grampo do lado
de dentro de um candelabro de parede. — Múmias, cabeças decepadas, o
que mais tem aqui? Jimmy Hoffa?

— Estou satisfeito em ver que você se recuperou de sua timidez, minha


cara. Na realidade, não pretendo ficar com a Imperatriz. Os tesouros de sua
sepultura foram doados ao Metropolitan Museum of Art e uma exposição
será inaugurada no mês que vem. Será a coleção mais impressionante de
artefatos chineses antigos já vista fora da China. No momento, a múmia é
frágil demais para ser deslocada, mas será a peça central da exposição.

"É claro que a abertura de gala será espetacular. E nada me agradaria mais
do que ter minha única filha a meu lado.

A resposta curta e obscena de Oona foi interrompida por outro estrondo e


um gemido fraco. Nós três giramos o corpo, esperando que alguém surgisse
da sala escura da qual tínhamos acabado de sair. Oona e eu nos
contentamos em olhar o escuro de uma distância segura, mas Kiki de novo
decidiu investigar.

Um minuto depois ela voltou com uma expressão confusa.

— Uma das telas caiu da parede.

— Por favor, não se preocupe, srta. Strike - aconselhou-a Lester Liu


calmamente, espanando uma poeira invisível no caixão de vidro da

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imperatriz. — O mordomo verá o que é.

— O que está havendo? — Oona tentou disfarçar o medo, mas os diamantes


em seu pulso cintilavam com o tremor das mãos. — Que diabos está
tentando aprontar?

O belo pai lhe abriu um sorriso enfurecido.

— Que divertido. Raras vezes se ouve linguagem tão pitoresca saía da boca
de uma jovem adorável. É muito parecido com ver uma ópera de macacos.
Garanto-lhe que não estou aprontando nada, minha cara.

— Pare de me chamar desse jeito — rosnou Oona. — Eu não sou nada sua.

O mordomo entrou do outro lado da sala e ficou parado feito uma estátua.

— Ah — disse Lester Liu. — O jantar está servido.

***

A sala de jantar revestida de madeira era pouco iluminada. Uma lareira


palpitava na extremidade da sala e um único candelabro brilhava no meio
de uma longa mesa de mogno. O mordomo me guiou a uma cadeira que
parecia estar a quilômetros de minhas amigas. Do outro lado da sala, a cara
de Lester Liu era oculta pelas sombras. De onde estava, eu podia ver pouco,
exceto o branco de sua camisa.

Senti o mordomo a meu lado e olhei para cima, vendo que ele mergulhava
uma concha numa terrina funda. Os dragões dançantes pintados no fundo
da tigela diante de mim foram tragados por um líquido laranja-escuro. Mexi
na sopa com a ponta de uma colher de prata e uma fila de espinhas pratas
e afiadas veio à superfície. Minha cabeça se levantou de repente de pasmo
e Lester Liu riu do outro lado da mesa.

— Não é uma tentativa de assassinado, srta. Fisher — disse ele. — É ouriço-


do-mar. Creio que vão achar delicioso.

Eu corei e levei uma colherada do líquido aos lábios. Tinha gosto de poço de
maré suja. Pensei ter visto o mordomo sorrir com malícia quando passou a
caminho da cozinha com a terrina vazia. Quando a porta da cozinha se
fechou, ouvi o som de louça se espatifando, como se ele tivesse atirado o
prato na parede. A colher caiu de minha mão e espirrou sopa na frente de
meu vestido.

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— Ah, meu Deus — Lester Liu suspirou. — Espero que não seja o segundo
prato. É uma rara iguaria chinesa... Filhotes de naja em molho apimentado.

— Seu mordomo é sempre tão atrapalhado? — Oona escarneceu dele.

— Esse não foi o mordomo. — Lester Liu parou para tomar sua sopa
revoltante. — Foi o meu fantasma.

COMO SABER SE SUA CASA É MAL-ASSOMBRADA

Só porque você não viu um fantasma, não quer dizer que não exista um
olhando para você. Segundo os parapsicólogos, nem todos os fantasmas se
revelam tão prontamente como um poltergeist. Alguns espíritos
simplesmente vagam nas sombras satisfeitos em inspirar arrepios e um
calafrio de inquietude em seus companheiros de casa humanos. Outros
fazem ruídos estranhos na calada da noite ou mudam objetos de lugar
quando ninguém está olhando. Mas se você desconfia de que está dividindo
a casa com os mortos, existem algumas medidas que você pode tomar para
ter certeza.

Capture seu fantasma em filme

Os especialistas concordam que os fantasmas são mais ativos à noite (mas


que surpresa). Então, quando sua casa estiver adequadamente escura e
sinistra, tire várias fotos dos cômodos que você acha que são mal-
assombrados. Quando examinar as fotos, não descarte nenhuma foto ruim.
As câmeras podem registrar coisas que o olho humano não detecta, e
qualquer caça-fantasma profissional lhe dirá se aqueles estranhos globos
cintilantes, as névoas inexplicáveis ou feixes de luz que estragaram as suas
fotos podem ser fantasmas.

Registre suas observações

Sempre que você ouvir, vir ou sentir alguma coisa estranha, anote a hora e
uma descrição de sua experiência. Isto lhe permitirá situar padrões de seus
visitantes e pode ajudá-la a descobrir que o silvo arrepiante que você ouve
todo dia às quatro horas é só um som dos irrigadores girando no jardim de
seu vizinho.

Consulte uma bússola

Aparentemente, a maioria das bússolas deixa de funcionar na presença de


fantasmas. Quando estiver perto de um espírito, a agulha pode ser incapaz

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de se fixar num ponto. Em vez disso, ela ficará girando pelo mostrador ou
simplesmente se recusará a dar uma leitura precisa.

Ative uma câmera de vídeo

Os fantasmas têm uma tendência irritante de evitar qualquer um que esteja


procurando por eles. Assim, em vez de ficar sentada a noite toda com sua
câmera na mão, ligue uma câmera de vídeo e tenha uma boa noite de sono.
Se possível, mude a câmera para o modo infravermelho, que pode capturar
registros de calor. De manhã, assista à gravação enquanto come seus
cereais e veja do que se tratava todos os barulhos no escuro.

Observe a temperatura

Muitos moradores de casas mal-assombradas relatam flutuações


inexplicáveis na temperatura. Um local em sua casa que em geral é um
forno pode parecer a Antártida em um dia de inverno. Outro pode ser
insuportavelmente quente. Então mantenha uns termômetros de interior em
lugares-chave. No mínimo, os estranhos pontos de frio ou calor podem
ajudá-la a situar melhor suas câmeras de vídeo.

Monitore quaisquer movimentos

Você ouve passos misteriosos à noite ou se pergunta por que a porta da


geladeira está sempre aberta de manhã? Instale alguns detectores de
movimento baratos pela casa. Eles vão alertá-la de qualquer movimento e
ajudar a determinar se sua casa é mal-assombrada — ou se sua irmã gosta
de assaltar a geladeira à meia-noite.

Invista em um EMF

Muitos caça-fantasmas profissionais voltam-se para um Detector de Campo


Eletromagnético (EMF, de Eletromagnetic Field Detectior) para ajudá-los a
detectar as fontes incomuns de energia. Leituras ais altas do que o normal
podem indicar a presença de um fantasma (ou uma geladeira, então tenha
cuidado). Os EMF podem ser comprados por pouco mais de 20 dólares, mas
uma bússola (ver item anterior) também pode funcionar muito bem.

CAPÍTULO OITO

O fantasma ansioso

A maioria das pessoas confia na mesma série de perguntas chatas quando

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quer conhecer alguém melhor: "Você trabalha em quê?", perguntam elas.


"Onde você estuda?" "O que você estava fazendo às 9h45 da noite do dia 5
de agosto?" Embora as respostas a estas perguntas possam lançar uma luz
sobre a situação financeira, a competência educacional ou as tendências
homicidas de uma pessoa, elas não podem realmente lhe dizer o que a faz
palpitar. Então, sempre que conheço alguém, prefiro esperar pelo momento
certo e perguntar se ele acredita em fantasmas. Admito que é meio
estranho, mas esta perguntas simples me poupou horas sem fim de
papinhos chatos. Se minha nova conhecida ri de uma ideia tão boba ou
sacode a cabeça com condescendência, logo invento uma desculpa para
seguir meu caminho. Mas sei que tenho sorte se ela responde com um
sonoro "Sim". Não faz diferença se ela é mal-ajambrada, taciturna ou
mentalmente atordoada. Qualquer pessoa que acredita em fantasmas tem
pelo menos uma história boa para contar.

Naquela noite, olhei Oona Wong do outro lado da mesa e vi que ela
acreditava. Ela não riu da afirmação do pai. Como o restante de nós,
simplesmente baixou a colher na mesa e se preparou para a história que
sabia que viria. Lester Liu empurrou a sopa de lado e inclinou-se para o
candelabro. Seu sorriso encantador desaparecera. Ele tinha uma expressão
sombria — uma mistura de apreensão, tristeza e medo que somava anos a
seu rosto.

— Cecelia Varney não deve gostar de estranhos morando em sua casa —


disse Kiki Strike despreocupadamente, como se mansão mal-assombrada
não fosse mais incomum do que um hotel barato.

Lester Liu sacudiu a cabeça lentamente.

— A srta. Varney está descansando em paz. A mansão não veio com


fantasma algum. Receio que eu é que seja assombrado. É por isso que
convidei vocês para jantar esta noite. Tenho esperanças de que Oona
concorde em me ajudar.

A língua de Oona ficou presa, então Kiki falou por ela:

— Por que Oona? Você precisa é de um exorcista.

Lester Liu ignorou seu conselho e se dirigiu à filha.

— Minha cara — disse ele suavemente, como se a preparasse para notícias


difíceis. — Nunca ouviu falar de um fantasma ansioso? — Os olhos de Oona
se arregalaram, os lábios se separaram e um pequeno arquejo passou entre
eles. Ela parecia conhecer a história que Liu estava prestes a contar. Até
Kiki ficou temporariamente muda.

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— O que é um fantasma ansioso? — perguntei, sem saber se estava


preparada para a resposta.

Do outro lado da mesa, os olhos de Lester Liu desapareceram sob o abrigo


escuro das sobrancelhas.

— Na China — começou ele —, dizia-se que quando uma pessoa morre com
muita raiva, sua alma continua na terra, presa de uma fome de vingança.
Quanto mais furiosa a alma, mais poderoso é o fantasma. É claro que o
problema pode piorar se o morto não recebeu as coisas de que precisava na
outra vida. É sob estas condições que uma alma pode se tornar um
fantasma ansioso.

Uma série de estrondos abafados veio de trás da porta da cozinha.

— Eu já vi minha fantasma incontáveis vezes. O resto dela ainda é bonito,


mas o resto não passa de ossos, pele e cabelos. Com o passar dos anos seu
poder cresceu e agora ela me segue aonde quer que eu vá. É por isso que
raras vezes saio desta casa. É por isso que nenhum de meus empregados
fica. Vejo que não tenho alternativa a não ser dar à minha fantasma o que
ela deseja.

A cara de Oona estava branca de terror, e até Kiki parecia afetada. Eu ainda
estava confusa.

— Por que ela tem tanta raiva? O que você fez?

— Eu abandonei a filha dela. Desisti dela porque não era o menino que
queria. Não fui bom marido nem bom pai, srta. Fisher. Nem fui um bom
homem. Mas isso deve mudar. Está na hora de me corrigir com as pessoas
que magoei. É isso que a mão de Oona vem tentando me dizer.

O mordomo saiu da cozinha, segurando uma bandeja de prata. Enquanto


seguia para Lester Liu, percebi que a parte de trás de sua roupa pingava o
limo, como se ele tivesse sido atacado por uma lesma gigante. Ele
cochichou suavemente no ouvido do patrão.

— Lamento informar que teremos de pular para o terceiro prato — anunciou


Lester Liu. — Não sobrou nada do segundo. É uma pena. É tão difícil trazer
filhotes de naja para Nova York. Os americanos têm um paladar muito
vulgar e sou obrigado a importá-las diretamente da Tailândia.

O mordomo contornou a mesa, largando dois caranguejos fritos em cada


prato. Os meus estava unidos num abraço, como se estivessem se

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consolando enquanto se preparavam para conhecer seu destino. Assim que


o empregado voltou para a cozinha, Oona afastou o prato e encarou o pai.
Fiquei satisfeita em ver a raiva em seus olhos.

— Quer que eu o ajude a se livrar de uma fantasma? Por que eu o ajudaria?


Enquanto você vivia como um ditador de terceiro mundo, com seus
empregados horripilantes e seus filhotes de cobra, eu morava num
apartamento em ruínas com quatro mulheres que mal conseguiam me dar
de comer. Elas tinham de roubar tecido de sua fábrica para fazer minhas
roupas. Dividíamos um banheiro com mais trinta pessoas e vivíamos sem
aquecimento no inverno. Tive de aprender inglês sozinha. Só fui a uma
escola aos 8 anos. Tudo porque eu era uma menina? — Oona agora gritava,
a cara ameaçadora de raiva. — E agora espera que eu lamente por você,
seu velho ridículo? Quantas pessoas morreram por sua causa? Quantas
pessoas ainda trabalham como escravas nas suas fábricas? É a sua vez de
sofrer.

Perguntei-me se Oona não teria ido longe demais. Lester Liu continuou
calmo, mas suas narinas estavam infladas e os dentes, trincados. Não
plantamos todos os nossos grampos, nem descobrimos nenhuma pista
sobre as crianças taiwanesas desaparecidas e, se Lester Liu nos expulsasse
daqui, talvez nunca mais tivéssemos outra chance. Eu sabia que a mesma
ideia passava pela cabeça de Kiki. Ela pediu licença educadamente e saiu
da sala de jantar, presumivelmente indo ao toalete. Isso me deixou sozinha
para testemunhar a batalha entre Oona e o pai.

Lester Liu voltou-se para a filha com frieza.

— Na China, uma criança nunca diria coisas assim ao próprio pai. Respeitar
os pais é a virtude mais importante.

— Isso aqui parece a China para você? — perguntou Oona. — Eu nasci aqui.
Sou americana. E você é só um criminoso.

— Oona — sussurrei, tentando acalmá-la.

—Está tudo bem, Fisher — disse Lester Liu com um suspiro cansado. —
Receio que minha filha tenha falado a verdade. Como sem dúvida está
ciente, eu fiz coisas terríveis. Mas não sou o único criminoso em nossa
família. — Ele se virou para Oona. — Sei como você paga para viver como
vive, minha cara. Sei sobre as falsificações e o salão de manicure. Lamento
que tenha sido obrigada a abandonar sua moral. Sua mãe deve estar

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magoada. Ela era uma mulher simples com fortes princípios. Por isso
convidei você aqui. Para perguntar se você, por sua mãe, renunciaria à vida
de crimes. Eu mesmo já fiz isso. Desde que você e suas amigas destruíram
a Fu-Tsang, venho levando uma vida de um homem de negócios legítimo.

— Homens de negócios legítimos raptam crianças chinesas? — Eu queria


dar um chute nela quando ela disse isso. Oona não podia colocar nossos
planos em risco só para ter argumentos.

Lester Liu ficou confuso.

— Não tenho palavras, minha cara. Isto não é um romance de Dickens. Que
utilidade crianças teriam para mim? Você deve saber que há muitos homens
em Chinatown que não tomaram as decisões que eu tomei. O crime não
parou quando deixei de cometê-lo.

"Ganhei mais dinheiro do que posso gastar, Oona. As fábricas serão


fechadas. As dívidas serão perdoadas. Comprei a Mansão Varney com a
intenção de doar a maior parte dos tesouros a museus. O quarto de Maria
Antonieta será enviado à França. As telas serão expostas onde outros
possam vê-las. Eu me tornarei um dos mais importantes filantropos da
cidade. Um homem que é admirado, e não temido. Quero que esteja
comigo. Como minha filha, você finalmente receberá a atenção que merece.
Os ricos e famosos de Nova York farão fila para conhecê-la.

De repente eu senti uma brisa gelada nos meus ombros. As chamas das
velas foram sopradas dos pavios e o fogo na lareira aumentou e
desapareceu como se tivesse sido sugado pela chaminé. A sala ficou às
escuras e um gemido que não podia ser do vendo quase me fez desmaiar
de pavor. Não estávamos sozinhos na sala. Procurei às cegas pela faca que
tinha visto ao lado de meu prato. Agarrando-a como uma adaga, esperei
que alguma coisa acontecesse. Ouvi passos se aproximando por trás. A mão
de repente pegou meu pulso e um sussurro encheu meus ouvidos.

— Terminei lá em cima. Vá para o primeiro andar.

Um arranhão rápido e uma única chama iluminou uma cara fantasmagórica.


Kiki Strike levou o fósforo a uma das velas e a usou para acender as outras.

— Talvez você prefira jantar no escuro, mas eu gosto de ver o que estou
comendo — disse ela, sentando-se de frente para o prato intocado.

— Com licença — murmurei, levantando-me da mesa e praticamente

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correndo porta afora.

***

Fora da sala de jantar, eu estava pegando um frasquinho de cristal do bolso


e renovando meu Fille Fiable quando uma grande mão agarrou meu ombro.

— Permita-me acompanhá-la ao toalete — murmurou o mordomo numa voz


grave e monótona.

— Obrigada, mas há anos vou ao banheiro sozinha. — Inclinei-me para ele e


esperei que o perfume fizesse seus prodígios. — Se puder me apontar para
que lado fica...

O mordomo parou no meio da respiração como se seu cérebro estivesse em


guerra consigo mesmo.

— É a terceira porta à direita. — Ele apontou um corredor pouco iluminado e


voltou à cozinha. Comecei a soltar um suspiro de alívio até que me lembrei
de que estava numa mansão estranha com um fantasma à solta.

Mesmo em ambientes sem fantasmas, eu não gosto muito do escuro. Como


qualquer pessoa cheia de imaginação, vejo formas nas sombras e figuras
agachadas nos cantos. Uma ida ao banheiro no meio da noite me deixará
tremendo de pavor, e um corte de energia pode ser praticamente uma
ameaça à vida. Então, embora eu estivesse certa de que a fantasma de
Lester Liu não hesitaria em me pegar, eu sabia que a veria em toda parte se
olhasse. Disparei às cegas pelas seis salas no corredor. Lembrava-me
vagamente de uma biblioteca, um estúdio, alguns quartos e um banheiro.
Deixei grampos atrás de livros, sob cadeiras e atrás de uma privada. (Não
foi uma grande ideia, como percebi depois.) Em dez minutos, eu tinha
terminado. Endireitei meu vestido, renovei o Fille Fiable e voltei à sala de
jantar. Estava vazia, exceto pelo mordomo que limpava os restos de um
pato assado que se espalhara pela sala e gotejava pelas pernas da mesa.
Pensei por um momento que o vira sorrir.

— Suas amigas decidiram ir embora, senhorita. Elas esperam pela senhorita


no saguão. — Ele baixou a bandeja de carne mutilada e me levou a Oona e
Kiki. O molho espirrara no lindo vestido de Oona e Kiki retirava do cabelo
comprido grãos de arroz que grudavam feito piolhos. Lester Liu estava com
a estola de Oona na mão e sua expressão era de constrangimento.

— O que houve? — perguntei.

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— O mordomo afirma que foi empurrado — disse Kiki. — O quarto prato caiu
em cima de Oona.

— Aceitem minhas desculpas, por favor — pediu Lester Liu. — A fantasma


em geral reserva seus castigos para mim. Espero que ainda considerem
minha oferta.

— Por que não prende a respiração e vê o que acontece? — Oona fechou a


carranca enquanto pegava a estola.

— Mais uma coisa antes de partir, por favor? — Lester Liu colocou a mão no
braço da filha. — Sua mãe ia querer que você tivesse isso. É a única foto
que resta dela. — Ele pegou uma fotografia do bolso interno do paletó. Tive
um vislumbre de uma jovem bonita com um vestido antiquado.

Oona arrancou a foto das mãos dele e disparou para a porta.

— Aonde você vai? — eu chamei, correndo para acompanhá-la enquanto ela


ia direto para a rua, um braço erguido no ar. Um táxi do outro lado da
Quinta Avenida costurou pelo transito e parou na frente dela.

— Preciso ficar sozinha. — Oona abriu a porta do táxi e pulou para dentro.

— Espere... — comecei a dizer, mas Kiki pegou meu braço e eu deixei a


porta bater.

— Deixe que ela vá — disse ela, erguendo a mão para chamar um táxi.
Ouvimos um assovio agudo do outro lado da rua. Sentado no muro de pedra
que cerca o Central Park, estava o garoto selvagem.

— Foi rápido — observou Kaspar enquanto nos aproximávamos. — Aonde


Oona foi? Parecia estar com pressa.

— Ela tem um encontro com uma lavagem a seco — eu disse. — Faz muita
sujeira quando come.

Kaspar não aceitou a explicação, mas não fingiu acreditar nela.

— Vocês viram as najas? — perguntou ele.

— Estava no cardápio — disse-lhe Kiki. — Filhotes de naja em molho


apimentado. Segundo nosso anfitrião, são uma iguaria na China.

Eu tremi ao pensar nisso.

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— Prefiro comer a terra de um canil.

Kaspar não achou engraçado.

— Você disse najas? A maioria das najas está em risco de extinção. Não dá
para comprar em lugar nenhum de Nova York. Seu anfitrião disse de onde
elas vieram?

— Disse que importa da Tailândia — falou Kiki. — Você deve saber, já que
passou um dia e meio vigiando a casa de um dos mais famosos
contrabandistas de Nova York. Não há nada que ele queira e não consiga.

— Por que vocês estavam jantando com um contrabandista?

— Ele queria apresentar Oona ao fantasma dele — falei. — E não, eu não


estou brincando.

Para um menino com suas próprias histórias doidas para contar, Kaspar
pareceu extraordinariamente surpreso.

— Quem vocês são? — perguntou ele. — Vocês tem mapas de lugares


estranhos. Contrabandistas convidam vocês para jantar. E nem sei o que
pensar do fantasma.

— É uma longa história, para outra ocasião — disse Kiki. — Tenho a


sensação de que veremos você mais vezes. Mas agora preciso ir para casa;
uma amiga minha está muito doente.

— Lamento saber disso. — Ele realmente parecia lamentar. — Posso lhe


pedir um favor antes de ir?

— Claro — disse Kiki.

— Por favor, dê lembranças minhas a Betty — disse Kaspar. — E diga a ela


que estou ansioso pelo jantar.

***

Enquanto nosso táxi disparava para o centro, Kiki e eu ficamos em silêncio.


Havia coisas demais para conversar e nenhuma das duas sabia por onde
começar.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Por fim, Kiki suspirou.

— Você está fedendo de verdade.

— Exagerei um pouco com o Fille Fiable pouco antes de irmos embora.


Esbarrei naquele mordomo horripilante.

— Você não ficou afastada por muito tempo. Todos os seus grampos foram
instalados?

— Foram. Não há tantos cômodos para cobrir, com a ala leste bloqueada.
Então, acha que existe mesmo um fantasma?

— Não sei. Oona parece convencida disso.

— Eu lamento por ela — eu disse. — A mãe morte que ela jamais conheceu
volta do túmulo e espera que Oona vire uma cidadã exemplar.

— Eu não engoli essa parte. Lester Liu está atrás de alguma coisa. Não sei o
que é. Queria poder pensar com mais clareza. — Kiki pousou a cabeça na
janela do táxi e mergulhou no silêncio.

— Kiki? — perguntei. — Está tudo bem?

— É claro que não está tudo bem. Eu acabei de dizer a você que o pai de
Oona parece ter alguma coisa na manga.

— Não foi o que eu quis dizer. Você anda faltando às reuniões ou aparece
atrasada. Não é típico de você. Verushka está muito mal? Há alguma coisa
que eu deva saber?

Kiki esfregou os olhos, manchando a maquiagem. Respirou fundo e percebi


que estava inalando o Fille Fiable.

— Eu cometi um erro idiota — admitiu Kiki. — Verushka pode estar


morrendo. E mesmo que não morra, nós duas estamos com muitos
problemas.

Fiquei chocada demais para falar. Chocada demais para dizer alguma coisa
além de "Posso vê-la?".

***

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Dez minutos depois, eu estava na porta do quarto de Verushka, os pés se


recusando a avançar. Se não fosse pelo ritmo lento e estável do motor
cardíaco, eu seria a primeira a chamar um agente funerário. Kiki se ajoelhou
ao lado da cama, segurando uma das mãos azuladas e sem vida de sua
guardiã e roçando o cabelo em seu rosto.

Os olhos de Verushka palpitavam e os lábios se mexeram. Kiki inclinou-se


para ouvir.

— Eu não podia guardar um segredo para sempre — respondeu ela com um


tremor na voz. — Ananka está preocupada com você. As outras também
ficariam, se soubessem a verdade. — Verushka fez um movimento fraco
para Kiki se inclinar e ela sussurra em seu ouvido.

— Eu não contaria a ela, a não ser que fosse obrigada a isso, Verushka. Sei
que tem razão. Ela precisa saber lidar com o pai dela. Vou cuidar para que
ela não se meta em problemas. Mas não será fácil. Agora há um fantasma
na história.

Um homem de meia-idade com um jaleco branco passou por mim e se


ocupou numa mesa, preparando uma seringa de líquido incolor. Ergueu a
seringa para a luz e bateu na ponta para retirar as bolhas de ar. Um jorro de
líquido partiu da ponta da agulha.

— O que está dando a ela? — perguntou Kiki enquanto o médico enfiava a


agulha no braço esquerdo de Verushka. Os olhos da velha palpitaram e se
fecharam.

— Você não entenderia — respondeu o médico.

— Posso entender — insistiu Kiki, levantando-se e fixando os olhos no


médico. — Sou nova mas não sou retardada.

— Escute — disse ele, olhando imperiosamente de cima para Kiki. — Tenho


mais de dez anos de educação superior. Nem tenho certeza se você viveria
tudo isso. Então, por que não para de me atormentar e me deixa fazer o
meu trabalho? Você me contratou para salvar esta mulher e não para lhe
dar um curso de medicina.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

A sobrancelha de Kiki foi ao teto.

— Continue, faça seu trabalho. Se for benfeito, vou esquecer que esta
conversa aconteceu — disse Kiki. — Mas se alguma coisa acontecer com
ela, vou considerar você o responsável.

O médico revirou os olhos enquanto Kiki marchava para fora do quarto.

— Que imbecil — declarei quando estávamos a uma distância que ele não
poderia ouvir.

— Não contratei o dr. Pritchard por suas boas maneiras ao leito — disse Kiki.
— Ele é bom e, pelo preço certo, está disposto a ficar de boca fechada.
Infelizmente, estou presa a ele.

— Você não está presa a ele. Vamos chamar uma ambulância e levar
Verushka ao hospital.

— Não podemos. Eu a levei três semanas atrás. Esse foi meu grande erro.
Os médicos localizaram o problema na bala alojada em sua perna. Estava
liberando cianeto no sistema. Acho que minha tia e capanga dela tinham
um plano B. Se a bala não matasse Verushka, o veneno acabaria matando.

"Quando os médicos retiraram a bala, pensei que haviam salvado sua vida.
Mas depois relataram à polícia o ferimento a bala. Quando peguei uma
enfermeira tirando as digitais de Verushka, eu a tirei escondido do hospital.
Pensei que ela se recuperaria, mas a melhora deve ter sido temporária. O
veneno ainda está em seu sistema. Ele a está matando.

— Se é tão grave, por que se preocupou com digitais? — perguntei.

— Verushka ainda é preocupada pelo assassinato de meus pais — disse Kiki.


— E a prova de sua inocência está na Pocróvia. Mesmo que o hospital
salvasse sua vida, ela acabaria na cadeia. Eu conheço Verushka. Era o que
ela ia querer.

— Acha realmente que o "dr. Encanto" pode salvá-la? — perguntei.

— Deixando as questões pessoais de lado, ele é um dos melhores médicos


da cidade. Gastei cada centavo que tínhamos para garantir que ele tivesse
tudo de que precisasse. Provavelmente vou ter de fazer outro filme de kung
fu para pagar as contas.

— Não vai, não — eu disse a ele. — Nós vamos ajudar. Ainda tenho o
dinheiro que ganhei do ouro da Cidade das Sombras. É todo seu.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

— Obrigada — disse Kiki, enquanto nossos celulares começavam a bipar.


Uma mensagem de texto tinha chegado para cada uma de nós.

"Golden Lotus. Amanhã. Meio-dia. Oona"

— Você tem problemas maiores do que Lester Liu — lembrei a Kiki. — Fique
com Verushka até que ela esteja melhor. Vou cuidar da reunião amanhã.

***

Voltei me arrastando pela minha janela antes que o relógio batesse meia-
noite. Enquanto tirava meu vestido elegante, colei o ouvido à porta de meu
quarto. Meus pais ainda estavam acordados. Eu podia ouvir o som fraco de
vozes alemãs coléricas e o ratatá de uma metralhadora vindo da sala de
estar. Se eles estavam relaxados o bastante para curtir um filme, minhas
atividades não deviam ter sido descobertas. Embora eu estivesse exausta,
ainda havia uma coisa para fazer antes de me deitar para dormir. Abri a
porta e fui na ponta dos pés pelo corredor até o quarto de hóspedes.

Às 11h da manhã seguinte, depois que meu pai saiu para seu estudo de
grupo aos sábados, aproximei-me de minha mãe enquanto ela se servia de
café. Apesar de eu preferir esperar até que ela tivesse consumido a terceira
ou quarta xícara, minha missão não podia ser adiada.

— Preciso ir à biblioteca — informei a ela.

— Claro que precisa. — Para alguém muito nova no sarcasmo, ela estava
ficando muito boa nisso.

— Estou falando sério. — Estendi o caderno e lhe mostrei o início do


trabalho que a diretora Wickham tinha me dado. — Estou escrevendo um
trabalho importante sobre a Ferrovia Subterrânea. Isso pode me livrar de
um F no curso do sr. Dedly, mas não temos dois livros de que preciso para
terminar.

Minha mãe ficou confusa.

— Nossos livros de história americana do século XIX estão no armário do


quarto de hóspedes. Você sabe disso. Se está procurando por alguma coisa
que não tenhamos, duvido que vá encontrar na biblioteca.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

— Nós tínhamos aqueles livros, mas não estão mais lá. Papai deve ter tirado
— retruquei. — Você sabe que ele sempre empresta coisas.

Os hábitos de emprestar de meu pai eram fonte constante de irritação para


minha mãe.

— De que livros precisa? — perguntou ela. Estendi uma folha de papel com
dois títulos. — Vamos dar uma olhada?

Esperei pacientemente por meia hora enquanto minha mãe procurava no


armário do quarto de hóspedes. A menos que olhasse debaixo do meu
colchão, ela não os encontraria.

— Queria que seu pai não tratasse nossa casa como a Biblioteca Pública de
Nova York. — Ela por fim suspirou e olhou o relógio. — Você tem duas horas,
Ananka. Se não estiver de volta à uma e meia, vou atrás de você. E é
melhor acreditar que faria um escândalo.

***

O salão de manicure Golden Lotus, dez quadras ao norte da biblioteca,


estava fechado pela primeira vez em mais de um ano. Uma placa fora
colada claramente na porta, e no entanto, quando cheguei, encontrei uma
mulher de casaco de mink de óculos de sol espiando pela janela,
procurando por sinais de movimento e achando difícil acreditar que podia
ter de esperar um dia inteiro para fazer as unhas dos pés.

— Com licença — disse ela no mesmo tom que devia usar quando se dirigia
aos empregados dos outros. — Você trabalha aqui? Fala inglês?

Olhei em volta, perguntando-me se ela podia estar falando com alguém


atrás de mim. Não havia mais ninguém lá.

— Não — informei a mulher enquanto batia na porta. — Não falo inglês.

— Você... sabe... fazer... unhas? — perguntou ela, enunciando cada palavra


como se estivesse falando com uma idiota, e não com uma estrangeira.

— Você... sabe... ler? — perguntei, batendo na placa de Fechado na porta.

A mulher recuou chocada enquanto DeeDee destrancava a porta do salão e


me deixava entrar.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

— Vá fazer suas próprias unhas — eu disse à mulher antes de bater a porta


às minhas costas.

***

No piso da sala da frente do salão, um mosaico retratava um antigo oráculo


grego perdido em transe. Estações luxuosas de manicure revestiam as
paredes e as cadeiras e mesas eram cobertas de linho branco. Nos fundos
do prédio, no final de uma longa fileira de salas de depilação, ficava o
escritório de Oona. Uma das portas no corredor estreito estava aberta e tive
um vislumbre de Yu dormindo numa mesa.

— Ele trabalhou a manhã toda — explicou DeeDee. — Mas ainda está meio
fraco. Oona o fez tirar uma soneca.

— Oona colocou Yu para trabalhar? Qual é o problema dela?

— Não, Yu queria fazer alguma coisa boa por Oona. Ele insistiu. Espere até
ver o que ele fez.

— Oona contou a você sobre a noite passada?

— Contou — disse DeeDee. — Sinistro, né? Luz está montando o


equipamento. Ela tem gravações de todos os grampos. Vamos descobrir o
que Lester Liu está aprontando.

Abri a porta do escritório de Oona e fiquei paralisada. Na parede atrás de


sua mesa havia a parte superior de um mural que mostrava as seis
Irregulares envolvidas numa valente batalha com os ratos das Cidades das
Sombras. A imagem era tão realista que podia ser uma foto. Eu até podia
distinguir os bigodes de cada um dos ratos.

— Yu pintou isso? — perguntei. — Ele só viu o restante de nós uma vez.


Como se lembra tão bem de nossos rostos?

Oona deu de ombros.

— Acho que alguém raptou a criança mais talentosa de Taiwan. Ele também
pintou um retrato da sra. Fei, e agora ela é a maior fã dele. É o tempo todo
Yu para cá, Yu para lá. É tanta meiguice que me dá vontade de vomitar. E
aí, Kiki vem?

— Ela disse que se atualiza com você depois. E então, o que achou da noite
passada? Seu pai ainda está do lado errado da lei?

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Oona insistiu.

— Confesso que ele me pegou por um tempo, mas quando acordei hoje de
manhã, eu sabia que era tudo uma fraude; o fantasma, a múmia, a
exposição, tudo. Estou louca para ouvir as gravações dos grampos.

— Oona? — eu disse, meus olhos de repente atraídos para a joia em seu


pulso. — Onde conseguiu essas pulseiras? — Ela usava os mesmos
braceletes de platina que admirara na casa de Lester Liu.

— Quer dizer estas? — perguntou Oona, tentando deixar a situação mais


leve. — Vieram por mensageiro esta manhã. Acho que são a maneira de
meu pai se desculpar pela noite passada.

— Você vai devolvê-las, não vai?

— Quem você acha que é? Minha oficial de condicional? — rebateu Oona. —


Ainda nem tive tempo. Além de tudo, quem vai se machucar se eu usar aqui
no escritório por um tempinho?

— Você — respondi.

— Tudo bem, gente, está tudo pronto, então adiem a briga. Estamos
preparadas para os negócios. — Luz Lopez olhava do corredor, com as mãos
enfiadas no fundo dos bolsos do macacão. Sinalizou para que a seguíssemos
a uma das salas da depilação, onde o laptop estava aberto na mesa. Betty,
agindo como assistente de Luz, passou-nos fones de ouvido sem fio.

— Betty e eu repassamos todas as gravações de ontem à noite — disse Luz.


— A maior parte não é nada. Uma pegou a descarga da privada e algumas
outras coisas que provavelmente não vão querer ouvir. Mas pegamos uma
coisa interessante. Vou tocar primeiro a melhor parte.

Betty virou-se para Oona.

— Isto pode ser difícil para você. Tem certeza de que quer ouvir?

— Seja lá o que for, posso aguentar — Oona garantiu a ela.

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Inserimos os fones em nossos ouvidos e mostramos o polegar para Luz. A


gravação começou de repente com o som de passos num piso de mármore
e o que eu imaginei que fossem cubos de gelo tilintando num copo.

"Obrigado, Sukh." Era a voz exausta de Lester Liu. "É só por esta noite."

"Desculpe pelas perturbações desta noite, senhor", disse o mordomo em


sua característica voz monótona.

"A culpa não foi sua. Como posso não ser grato a você? Você foi o único
empregado que ficou. Essa lealdade é rara neste mundo."

"Foi uma honra, senhor."

"É só, Sukh."

"Sim, senhor."

Luz avançou por vários minutos de silêncio. A gravação recomeçou com o


som de um copo se espatifando e um grito.

"Para trás!", gritou Lester Liu. "Não chegue mais perto." Ao fundo, eu podia
ouvir um arquejo — uma respiração rápida e superficial, como a de um
animal hidrofóbico. Era o mesmo som que eu tinha ouvido na mansão.

"Eu tentei!", ele implorava. "Você a assustou, mas eu tentei. Não mereço
uma noite de paz?" O arfar se reproduziu e ficou pesado, como se a criatura
lutasse para respirar. Um gemido começou suavemente e aumentou a um
agudo ensurdecedor.

"Por favor", implorou Lester. "Por favor. Farei o que puder amanhã. Farei de
tudo para impedir isto. Tudo! Não! Não!" A última palavra saiu num volume
alto e se seguiu pelo baque de um corpo no chão. A gravação parou.

— A maior parte é isso — explicou Luz. — O mordomo voltou e o ajudou no


quarto, mas depois não houve mais nada por horas. Posso verificar o que
está vindo esta manhã, se estiver interessada.

— Não preciso ouvir mais nada. — A cara de Oona era cinzenta, os olhos
hipnotizados pela tela do computador.

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— Sabe de uma coisa, Oona — começou Luz. — Nem acredito que estou
sugerindo isso. Quer dizer, contraria tudo em que acredito como cientista,
mas talvez haja alguém que pode ajudá-la.

— Quem? — perguntou Oona.

— Minha mãe costuma ver esse cara. Ele é médium... Sabe como é, ele diz
que pode falar com os mortos. De qualquer forma, minha mãe está
convencida de que ele esteve em contato com a irmã dela, que morreu em
Cuba há 15 anos. Eu sempre pensei que era uma fraude, mas agora não sei.
Pelo menos ela se sente melhor assim. Pode ser que a ajude conversar com
ele.

— Ah, tenha dó, Luz — gemi. — Não pode estar falando a sério.

— Me dá o endereço. — disse Oona.

CAPÍTULO NOVE

O superdotado

Em Manhattan, sempre é possível saber quem é turista pelo ângulo de sua


cabeça. Embora a maioria das cidades pertença ao céu, os nova-iorquinos
raras vezes olham para cima. Mais provavelmente, olhamos direto para a
frente enquanto nos esprememos pelas multidões – ou fixamos os olhos nos
pés, desviando-nos de cocôs fumegantes de cachorro e grades traiçoeiras
do metrô. A maioria de nós toma como certo o que é familiar, mas numa
cidade como Nova York nada é familiar por muito tempo. Aqueles que não
se importam em ser confundidos com turistas encontrarão gárgulas olhando
de banda para eles de cima, assaltantes andando de mansinho por ressaltos
ou lavadores de janelas pendurados por cabos finos de metal. Tudo isso
leva a curiosidade a parar e ver o mundo de ma perspectiva diferente.

O endereço que Luz nos deu era de um antigo prédio comercial perto do
Madison Square Park. Oona e eu paramos diante dele com a cabeça
tombada para trás num ângulo desagradável. O céu nublado escondia o alto
da estrutura.

– Tem certeza de que é este? – perguntou Oona. – Eu estava esperando uma


coisa mais...

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– Misteriosa? – propus, enquanto as nuvens se afinavam e tivemos um


vislumbre dos andares superiores. No alto de um prédio que deveria ser
comum, ficava uma cobertura projetada para se assemelhar a um antigo
templo grego. Um filete de fumaça de uma chaminé próxima ondulou entre
as colunas de pedra que sustentavam a estrutura. Pintado no frontão
triangular sob o telhado do prédio, um único olho verde fitava Manhattan. –
Era isso que tinha em mente? – perguntei.

– Pode apostar – murmurou Oona.

No saguão, demos uma olhada na lista de empresas no prédio. Enfiado


entre a Norton Taxidermia sob Encomenda e a Associação de Proctologia e
Manhattan estava Oskar Phinuit, Contatos com o Mundo Espiritual.

– Parece que vamos para a cobertura – Senti uma onda de empolgação na


barriga. Oona apenas pareceu nauseada.

***

Um elevador antiquado nos deixou no vigésimo quinto andar. Janelas altas


iluminavam uma sala que estava vazia, a não ser por uma única mesa.
Atrás dela sentava-se uma idosa usando um paletó de tweed que devia ter
sido comprado antes da Segunda Guerra Mundial. As ondas de seu cabelo
cor de ébano pareciam duras ao toque e um botão de rosa negra estava
enfiado na lapela.

– Compramos duas dúzias de barras de chocolate de seus colegas de escola


ontem. – Ela falava na voz entrecortada e concisa de uma estrela de cinema
dos anos 40. – Volte amanhã. Pode ser que precisemos de mais.

– Não estamos aqui para vender doces. – Eu estava meio irritada. Em certas
épocas do ano, era difícil ir a algum lugar da cidade sem que os adultos
esperassem que você forçasse chocolate para eles. – Temos uma hora
marcada com o sr. Phinuit.

– Monsieur Phinuit, por favor. E seu nome é...

– A consulta é para minha amiga. O nome dela é Oona Wong.

– Sei. – A mulher olhou por sobre os óculos. – E Oona Wong fala?

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– Demais. – Minha piada caiu com um baque. – Ela só está meio nervosa –
acrescentei.

– Neste caso, aproxime-se. – A mulher pegou uma prancheta em uma


gaveta da mesa.

– Oona gostaria de ter contato...

– Não, não, não! – A mulher sacudiu o dedo para mim. – Não me diga. E pelo
amor de Deus, não diga a Monsieur Phinuit. Se a pessoa com quem estiver
tentando entrar em contato quiser ter esse contato, Monsieur Phinuit
saberá. Agora, há algumas perguntas que devo fazer a vocês. Alguma de
vocês duas tende a ter desmaios?

Ambas sacudimos a cabeça.

– Tem algum amigo imaginário ou ouvem vozes na cabeça? Ótimo. Estão


tomando algum medicamente ou abusando de substâncias controladas?
Ótimo. Visitaram um médium no passado? Não? Muito bem. Já tiveram uma
experiência de quase-morte em que viram uma forte luz no final de um
túnel? Não? Bem, creio que as duas ainda são jovens. Última pergunta. Por
acaso trouxeram alguma comida? Não? Excelente. Isso interferiria na
capacidade de Monsieur Phinuit se concentrar.

Ela fez algumas anotações na prancheta e a enfiou de volta na gaveta.

– Acompanhem-me, por favor, eu as levarei a Monsieur Phinuit. Lembrem-


se, é importante que falem o mínimo possível. Respondam a quaisquer
perguntas que ele fizer, mas não deem nenhum informação
voluntariamente. – A recepcionista se levantou de sua cadeira e, com um
puxão rápido, endireitou a saia longa e apertada. Andou rapidamente pelo
piso de madeira em passos incrivelmente minúsculos e parou diante da
única porta da sala. – Espero que tenham contato co o outro lado – disse
ela.

***

Depois daquela porta havia uma sala maior. Três de suas paredes eram
inteiramente de vidro e por um momento tive a sensação de flutuar no
espaço. Uma névoa densa e cinzenta se comprimia pelas janelas,
espiralando e se agitando. Pareciam restos e figuras formadas nas nuvens,
mas se dissolviam antes que meu cérebro pudesse entendê-las. Meus
ouvidos detectaram um silvo fraco – o murmúrio deu ma multidão ao longe.

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– Bonjour.

Perto da vidraça mais distante, um homem enorme enchia uma cadeira de


madeira grande o bastante para servir de banco de parque.

– Por favor, aproxime-se. – Enquanto obedecíamos a seu comando, um raio


fraco de luz do sol penetrou brevemente a névoa e o terno preto de Oskar
Phinuit brilhou como pele de cobra. Suas mãos delicadas pousavam no alto
da barriga espetacular e o anel de esmeralda em seu mindinho esquerdo
subia e descia com sua respiração. Seu rosto trazia uma expressão
estranhamente saciada, como uma sucuri que engoliu uma ovelha inteira.
Perguntei-me se ele havia devorado tudo naquela sala.

– Sentem-se.

Ele sinalizou para duas cadeiras dobráveis de metal diante dele.

– Desculpem-me se acham minha mobília desconfortável. Devo manter meu


ambiente desatravancado. Até objetos comuns emitem sinais psíquicos que
podem interferir em minha capacidade de canalizar o mundo os mortos.

Lembrando-nos da advertência da recepcionista, Oona e eu nos sentamos


em silêncio. Oskar Phinuit nos examinou com dois olhos verdes que
flutuavam como azeitonas num mar de carne pastosa.

– Posso cometer a descortesia de perguntar a sua idade?

– Quatorze. – Eu teria preferido acrescentar alguns anos, mas é melhor se


sincera quando se lida com paranormais.

Os olhos de Oskar se abriram e fecharam num único piscar preguiçoso. O


resto dele continuou imóvel.

– E gostaria de falar com os mortos?

– Sim.

– Entendo. Isso pode ser difícil. A maioria das crianças não viveu o bastante
para forjar muitos contatos no mundo espiritual. Pode ser mais fácil lhes
falar de suas vidas passadas. Afinal, não faz tanto tempo assim que as duas
desfrutaram de outras existências. Sua amiga, acredito, era uma mulher de
status elevado. Vocês podem ter se conhecido.

A última coisa que eu precisava ouvir era que eu tinha sido serviçal de Oona

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numa encarnação anterior.

– Isso seria fascinante, tenho certeza, mas minha amiga precisa ter contato
com alguém.

– Minha secretária lhes falou? Não faz diferença se a jovem está tentando
ter contato com os mortos. Devemos ver se eles estão tentando ter contato
com ela.

– Ela pensa que já teve contato... do fantasma da pessoa.

– Ah? Ela viu um fantasma, foi? – A boca de Oskar se abriu para murmurar
uma risada e eu fiquei nervosa por não ver evidência alguma de dentes. –
Deixe-me adivinhar. Não era um espírito muito bem-comportado. Atirava
coisas, não era? Fez um pouco de bagunça?

Por fim, Oona falou:

– Como sabe disso?

– Os poltergeists... Os fantasmas ruidosos... Em geral aparecem na presença


de meninas de sua idade. Por algum motivo, eles não estão muito
interessados em rapazes e adultos. Ninguém sabe por quê. Alguns colegas
meus afirmam que os espíritos impertinentes não passam de embustes...
Menininhas desagradáveis dando uma lição nos mais velhos. Mas tenho
uma opinião diferente. Acredito que a adolescência é uma época de grande
poder. Pode ser que os espíritos se congreguem para se banquetear com
essa energia. Ou talvez os poltergeists sejam poderes dentro das meninhas
que ainda não foram domados.

– Está dizendo que Oona pode estar causando as assombrações?

– Está dentro dos reinos das possibilidades. Mas antes de chegarmos a


conclusões demais, vejamos se há mesmo um espírito do outro lado que
pode querer falar com a sua amiga. – Os olhos de Oskar rolaram para trás e
a cabeça tombou para frente. – A voz de Oskar estava alterada e eu me
perguntei se ele tinha dificuldades para respirar. Atrás dele, as nuvens
apertavam as vidraças como se estivessem apostando corrida no céu. –
Uma linda mulher de origem asiática. Ela morreu há muito anos, mas não
encontrou a paz. – Olhei pra Oona, que estava empertigada na cadeira. – Ela
insiste que você troque de sabão em pó.

– Tá brincando Sabão em pó?

– Silêncio! – trovejou Oskar. – Os espíritos dizem o que precisam dizer.

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Humm-humm? Humm-humm; ela quer que você saiba que não está só.
Alguém está sempre ouvindo.
Oona inclinou-se e cochichou no meu ouvido.

– Acha que este espírito escreve as mensagens dos cartões da Hallmark?

– Oona, cala a boca – murmurei, na esperança de que Oskar não a tivesse


ouvido.

– Há mais uma coisa – continuou ele. – Você está diante de uma decisão.
Deve escolher o que manter e o que abandonar. Se escolher sensatamente,
terá tudo o que sempre desejou.

Oona ficou séria mais uma vez.

– O fantasma pode me falar de meu pai? Ele realmente me quer como filha
dele, ou está tentando me atrair para uma armadilha?

Um vinco fundo apareceu na testa gorda de Oskar enquanto ele se


concentrava.

– A mensagem não é inteiramente clara – disse ele. – O espírito diz que você
não deve procurar as respostas em seu pai. Só as encontrará dentro de si.
Chegou a hora de você crescer e cumprir seus deveres. Quando aceita o
amor de alguém, você aceita uma grande responsabilidade. Agora o espírito
está sumindo. Ela disse o que queria.

– É só isso? – Oona estava incrédula.

– Espere um momento. Há outro espírito entrando na sala. Uma mulher mais


velha de óculos escuros. Creio que pode ser cega. Ela tem um recado para a
outra menina na sala.

– É mesmo? – eu soltei. Minha tia-avó Beatrice encontrou seu fim em


agosto, logo depois de entrar para o livro dos recordes como a primeira
cidadã idosa e deficiente visual a chegar ao cume do monte Everest.
Naquele mesmo mês, dois alpinistas deram com seu cadáver sentado ereto
na neve, com um sorriso radiante nos lábios congelados.

– Ela diz que você deve fazer seu dever de casa – anunciou Oskar. – Espere
um momento, desconfio que ela está brincando. Com os mortos, às vezes é
muito difícil saber. Ela quer que você saiba que a resposta a seu dilema está

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debaixo do tempo. Agora ela também desapareceu. – Os olhos de Oskar


rolaram para baixo e ele piscou rapidamente enquanto se adaptava à luz. –
Hoje os espíritos estão caprichosos. Às vezes tagaleram por horas sem fim.
Em outras ocasiões, são apenas uma ou duas palavras. Ouviram o que
precisavam ouvir?

– Talvez. – A voz de Oona não trazia emoção.

– Obrigada por seu tempo – eu disse enquanto Oona disparava pela porta.

***

Assim que chegamos no elevador, Oona agarrou meus pulsos como um


náufrago se prendendo a um salva-vidas.

– Temos que ir à Cidades das Sombras – insistiu ela.

– Quer dizer agora? – Seu aperto era forte o bastante para deixar
hematomas, mas eu consegui me soltar.

– Preciso saber se meu pai está por trás dos raptos. Temos que levar Kiki e
Yu pelos túneis. Talvez ele possa nos levas às outras crianças.

– Oona, Yu ainda está fraco. E Kiki não poderá ir. Eu não devia te contar,
mas Verushka pode estar morrendo. Kiki precisa ficar com ela.

As portas do elevador se abriram e eu saí, mas Oona não se mexeu.

– Verushka está morrendo? – disse ela enquanto as portas do elevador


começavam se fechar. Enfiei o braço entre elas e recebi o golpe doloroso
antes que voltassem a se abrir.

– A bala na perna dela estava envenenada.

– Temos que levar a sra. Fei à casa delas agora mesmo! Ela sabe como
salvá-la.

– Kiki já contratou um médico. Ele tem a personalidade de um monstro-de-


gila, mas parece que é bom.

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A respiração de Oona começou a ficar entrecortada e seus olhos não


paravam.

– Ai, meu Deus! – ela gemeu. – Tudo está desmoronando!

De repente percebi por que Verushka queria manter sua doença em


segredo. Eu acabara de empurrar Oona por um precipício.

– Calma – eu a instei, sentindo eu mesma um pouco de pânico. – Ainda há


uma chance de Verushka se recuperar. E você ter um colapso nervoso não
vai ajudar a ninguém.

– Mas o que eu vou fazer? Não sei se meu pai quer me mimar ou me matar,
e agora um médium suíno diz que eu tenho que cumprir meus deveres? E se
Lester Liu não foi honesto? E se ele raptou mesmo aquelas crianças? Ainda
devo bancar a filha boba dele? Devo alguma coisa a ele só porque somos
parentes?

– Tem certeza de que era isso que o espírito tentava dizer? Foi tudo muito
confuso, se quer minha opinião.

– O fantasma de minha mãe disse que se eu tomar a decisão certa, terei


tudo que desejar. Não acha que isso quer dizer que devo aceitar a oferta de
Liu?

Eu esperava que não. De Lester Liu desse a Oona tudo o que ela desejasse,
o que isso significaria para as Irregulares?

– Acho que ela disse que você já deve saber o que fazer.

– Bom, eu não sei. Quem sabe... Talvez Oskar Phinuit tenha inventado a
história toda. Parte daquela besteirada bolorenta pode ter vindo direto de
um biscoito da sorte. E essa coisa de sabão em pó... O que foi aquilo?

– Não sei, Oona, mas acho que você deve dar ouvidos ao que ele disse. O
segundo espírito parecia muito a minha tia-avó Beatrice.

– Ah, tá, e a resposta a todos os seus problemas está debaixo do templo.


Não está no corredor de sabão em pó do supermercado, disse eu tenho
certeza. Por favor, Ananka. Não podemos dar uma olhada rápida na Cidade
das Sombras?

Olhei o relógio do meu celular. Às onze e meia eu disse à minha mãe que
voltaria em duas horas, e agora eram quase quatro da tarde.

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– Tudo bem, Oona. Vamos voltar ao salão. Se Yu estiver se sentindo bem,


vamos levá-los pelos túneis.

– Obrigada. – Oona suspirou de alívio. Eu não conseguia me lembrar se já a


ouvira usar essa palavra antes.

***

Betty e DeeDee voaram em nossa direção assim que entramos no Golden


Lotus.

– Ainda bem que voltaram! – Betty mal conseguia ficar parada. Andava de
um lado para o outro e tinha dificuldades para ficar quieta.

– Onde está Yu? – perguntou Oona, barrando a passagem dela.

– Ele trabalhou demais – explicou DeeDee, enquanto Oona olhava


freneticamente as sala de depilação. – Quase desmaio. Luz o levou para
casa de táxi.

– Oona, vem cá – chamou Betty. – Aconteceu uma coisa.

Foi quando eu quase me sentei em um esquilo gigante da Malásia que se


enroscara em uma das cadeiras de manicure.

– Ele veio pegar você para seu encontro? – brinquei.

– O que essa coisa está fazendo aqui? – disse Oona. – Isto não é um
zoológico. Tire o animal de seu namorado de meu salão.

– Ele não é meu namorado. Quer ouvir? Estou tentando te contar uma coisa.
O esquilo entrou pela porta enquanto eu ajudava a colocar Yu no táxi. E veio
entregar isto.

Betty me passou um pedaço de papel que ainda estava molhado da saliva


do esquilo. Nele estavam escritas as primeiras frases de uma carta de amor
que terminavam abruptamente com uma palavra rabiscada: socorro.

– Acho que Kaspar está com problemas – disse Betty. – O esquilo não foi
embora. Tentamos expulsá-lo, mas ele não saiu.

– O cara dos esquilos mora no Central Park. Se ele não soubesse se cuidar, a
essa altura estaria enterrado com todos os indigentes na ilha Hart – disse

Kirsten Miller
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Oona com desprezo. – Provavelmente ele só está tentando chamar sua


atenção. Mas isso não importa. Não temos tempo para nos preocupar com
ele. Preciso de sua ajuda.

– Oona – falei, usando meu tom mais tranquilizador. – Temos que dar uma
olhada nisso agora. Podemos ir à Cidade das Sombras mais tarde. Yu nem
está aqui. O que espera que a gente faça?

– Eu espero que vocês corrijam suas prioridades. Quem é mais importante,


Ananka? Eu ou um garoto que deixa um bando de esquilos atacar Luz?

– É claro que você é mais importante – DeeDee tentou explicar. – E se está


com problemas, vamos largar tudo. Mas se seu problema puder esperar um
tempinho, temos de ajudar Kaspar.

A energia de Oona desapareceu num instante.

– Tanto faz. Façam o que quiserem. Para que vocês servem, aliás? Vocês
nunca estão por perto quando eu preciso. Kiki nem aparece na metade do
tempo, e o resto está mais interessado num garoto que mal conhecem.
Então podem ir, saiam de meu salão.

– Está nos expulsando? – murmurou Betty, incrédula. – Não vai nos ajudar a
encontrar Kaspar?

– Eu tenho meus próprios problemas – anunciou Oona, indo pra seu


escritório. Na parede atrás da mesa, o mural das Irregulares estava quase
completo. – Sempre tive de cuidar sozinha de minhas coisas e acho que
sempre será assim. – Com essa, Oona bateu a porta. Betty, DeeDee e eu
trocamos um olhar incrédulo.

– Mas que ataque de piti impressionante – disse DeeDee.

– Ela só está estressada – respondi. – Ela vai voltar.

– Sempre a otimista. – DeeDee não acreditou nisso nem por um minuto.

***

Nossa primeira parada foi o Central Park. Não muito longe da mansão de
Lester Liu, ouvimos alguém chorar. O barulho parecia emanar de uma
azaléia ao lado do MINI Cooper. Espiei entre os galhos e encontrei o amigo
de Kaspar, Howard Van Dyke, exprimido no meio oco do arbusto, aninhando
uma galinha roliça de penas avermelhadas. Enroscados ao lado dele havia

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dois esquilos gigantes e um gatinho. As lágrimas de Howard pararam


quando ele me viu.

– Você veio me levar? – perguntou ele, enxugando o nariz na manga do


casaco.

– Não, Howard. Sou eu, Ananka. Kaspar nos apresentou, lembra?

– Ah, sim! – De repente Howard ficou animado. – Esta é April – disse ele,
erguendo a galinha. – É a única amiga que tenho. Eu a salvei de um chef
cruel da Tavern on the Green e juramos amizade eterna.

– É um prazer conhecê-la, April – falei, tentando parecer sociável. – Howard,


tem visto Kaspar ultimamente?

Howard começou a chorar de novo e a galinha cacarejou quando ele a


abraçou no peito.

– Kaspar se foi. Eles o levaram para a gaiola dele.

– Como assim? Você se lembra de quem o levou?

Howard pensou por um momento.

– Eu lembro... Lembro que hoje de manhã estávamos comendo feijão bem


ali.

– Tudo bem, é um bom começo. Lembra de mais alguma coisa?

– Lembro de um homem de cabelo brilhante. Ele usava um de meus antigos


ternos.

Minha esperança esmaeceu um pouco.

– Como ele conseguiu um de seus ternos antigos?

– Não sei. Mas era um dos ternos que eu usava quando trabalhava em Wall
Street.

– Então está dizendo que ele era elegante?

– Lã xadrez príncipe de Gales de três botões.

– O que o homem do terno fez?

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– Ele me bateu com força. Quando acordei, meu amigo Kaspar tinha sumido.

– Tem alguma ideia de por que ele o levou?

– Tenho. Eles querem que Kaspar faça truques como as focas do zoológico.

– Eles? – perguntei. – Quer dizer os pais dele? – Howard assentiu. Olhei para
Betty e DeeDee. Tínhamos a informação de que precisávamos.

– Howard? – Betty enfiou a cabeça pelo arbusto. – Está com fome?

– Aquele homem derrubou meu feijão no chão – Howard chorava.

– Vamos ajudar a conseguir alguma coisa para você comer. Pode sair do
arbusto por um minuto?

Howard saiu engatinhando, depois se levantou e se espanou. April, a


galinha, permaneceu fielmente a seu lado.

– Tome algum dinheiro – disse Betty. – Compre comida e mais tarde eu volto
para ver como você está.

Howard olhou para a nota de 20 dólares na mão dele.

– Posso comer um sanduíche de salada de galinha? – perguntou ele,


animado.

– Claro – disse Betty. – Só me prometa que não vai dividir com a April.

***

– Aonde vamos? – perguntou DeeDee depois que ele não podia mais ouvir.
Eu as levava ao outro lado do parque. Três esquilos pretos e grandes
andavam ao nosso lado.

– Acho que precisamos ver uns psicólogos – eu disse.

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– Como é? – exclamou DeeDee, correndo para me alcançar.

– Vamos ver os pais de Kaspar – explicou Betty. – O nome verdadeiro dele é


Phineas Parker. A mãe e o pai dele são psicólogos.

– Como sabem disso?

– Fiquei de detenção na escola com uma das pacientes deles – informei a


DeeDee. – Ela me falou de Kaspar.

– Acha que os pais dele o raptaram? – perguntou DeeDee.

– Só há um jeito de descobrir. – Apontei para as árvores do alto de um


prédio. Torres denteadas de pedra se erguiam pelas bordas como as ameias
de um castelo encantado. – O consultório deles fica ali.

Quando chegamos ao Central Park West, os esquilos de Kaspar deram uma


olhada no prédio dos Parker e dispararam para as árvores. Por mais frio que
o parque ficasse à noite, eles ainda não estavam prontos para partir.

Os drs. Parker e Parker dividiam um espaço no primeiro andar do número 55


do Central Park West. Tocamos a campainha e fomos recebidos por uma
jovem usando jeans de grife, moletom de capuz e uma camiseta de Che
Guevara. Seus óculos eram constrangedoramente descolados e o cabelo
com luzes estava preso num rabo de cavalo. Estava claro que ela era paga
para deixar as crianças à vontade, mas não funcionava.

– Oi, gente! – cantarolou ela como se estivesse superfeliz em nos ver. – Meu
nome é Shiva. Estão aqui para ver Jane e Artie?

– Quem? – perguntei. Shiva franziu a testa.

– Vocês têm hora marcada? – perguntou ela num tom bem menos
simpático.

– Não – respondi. – Estamos procurando os pais de Phineas Parker. Somos


amigas dele.

– Esperem. – Shiva nos deu as costas e falou em voz baixa num walkie-
talkie. – Artie, tem três meninas aqui que dizem conhecer Phineas... Tudo

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bem.. Posso levá-las para a sala de espera?... Ah, Artie, você é tão
inteligente... Tudo bem... Obrigada, Artie. – O jeito como ela dizia Artie me
dava náuseas. Eu me perguntei o que Jane pensava disso.

Quando Shiva girou de volta a nós, seu sorriso falto tinha voltado.

– Acompanhem-me, meninas, eu vou lhes mostrar a sala de espera. Jane e


Artie agora estão com um cliente, mas vão sair logo.

Ela nos guiou por um corredor que tinha sido pintado num tom de verde
para acalmar as crianças. Dezenas de telas estavam nas paredes, cada uma
delas a cópia perfeita de uma obra-prima, só que com um ou dois detalhes
alterados para divertir. O famoso autorretrato de Rembrandt mostrava o
artista com um dedo enfiado no nariz. A Mona Lisa usava um soco inglês. O
lábio superior da Moça com brinco de pérola estava curvado num rosnado.

– Chegamos. – Shiva abriu a porta para nós. – Sentem-se. Vai levar alguns
minutos. Fiquem à vontade.

Entramos num espaço abarrotado e sem janelas. Cadeiras de madeira de


cores primárias se espremiam em volta de três mesinhas. Cada uma das
mesas tinham pilhas de livros com títulos como O fardo do gênio, Lágrimas
de Einstein, Lidando com a mediocridade e A nascente. Um quadro-negro
com uma longa equação matemática de alto e baixo ficava num canto da
sala. Dois pezinhos espiavam de baixo.

– Que tipo de psicólogo são os Parker? – perguntou Betty antes de saber que
tínhamos companhia.

– São especializados em ajudar crianças dotadas – eu disse. – Tem uma


escondida atrás do quadro-negro.

Rolei o quadro de lado, afastando-o da parede, e vi um menino agachado no


canto, abraçando um urso de pelúcia e com as pernas dobradas no peito.

– Oi – falei. – Mue nome é Ananka. Por que está escondido?

O menino me fitou com os olhos castanhos grandes que não eram tristes
nem assustados. Não disse nada, mas piscou rapidamente por meio minuto.

Tentei de novo.

– Por que não sai daí e se senta com a gente? Não há motivo para ter medo.
Todas nós somos legais.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

O menino largou o urso fez uma série de sinais com as mãos, rápidos como
um raio.

– Acho que ele é surdo – tentei explicar a DeeDee e Betty.

O menino suspirou de frustação e pegou uma caneta e uma folha de papel


no bolso da camisa. Escreveu furiosamente por alguns instantes, depois me
entregou um bilhete.

APARENTEMENTE VOCÊS NÃO ENTENDEM CÓDIGO MORSE NEM


LIGUAGEM DE SINAIS. NÃO ESTOU ME ESCONDENDO DE VOCÊS,
NEM SOU SURDO. ESTOU SENDO VIGIADO. A SALA É EQUIPADA COM
DUAS CÂMERAS DE VÍDEO. ESTE É UM EXPERIMENTO SOCIAL. MEUS
MÉDICOS QUEREM OBSERVAR MINHAS INTERAÇÕES COM CRIANÇAS
NORMAIS. NÃO TENHO NADA CONTRA SUA ESPÉCIE. SIMPLESMENTE
NÃO ESTOU COM VONTADE DE SER ESTUDADO HOJE.

GEOFFREY

– Uma linda caligrafia – eu disse delicadamente. – Onde estão as câmeras?

Geoffrey apontou duas pequenas caixas instaladas perto do teto. Pareciam


bem inocentes, tirando o grumo de fios que iam da parte de trás das caixas
à parede.

– Ei, DeeDee – eu disse, andando para uma das caixas. – Me faz uma
escadinha. – DeeDee me lançou um olhar desconfiado mas se curvou com
as mãos cruzadas. Quando me ergueu no ar, segurei os frios e os puxei da
caixa. – Mais uma – eu disse a ela, indo para o outro canto.

– Eles não vão ficar satisfeitos – alertou Geoffrey de trás do quadro-negro.

– Não ligo se vão ficar satisfeitos – declarei, falando diretamente com a


segunda câmera. – Em Nova York, é ilegal gravar pessoas e registrar suas
conversas sem a permissão delas. E não me lembro de ser solicitada a
assinar nenhum formulário de autorização.

Com essa, puxei os fios da segunda caixa.

– Agora você pode sair – eu disse ao garotinho. – As câmeras estão


desligadas.

– Obrigado. – Geoffrey ficou tão aliviado quanto um cachorro que sai para o
passeio matinal. – Mas receio que o experimento deles seja inútil, de
qualquer forma. Dado seu conhecimento da legislação do estado de Nova

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

York, posso entender que você não deve ser normal. Seu QI deve estar
acima da média.

– Não sou um gênio – falei. – Só leio muito.

– E como acha que os gênios viram gênios?

– Os médicos sempre fazem experimentos com você? – perguntou Betty.

– É Shiva. Ela é a pior. Estou no projeto de formatura dela. A culpa é minha.


Eu queria me dar bem com outras pessoas de minha idade, mas meus pais
acham que é anormal querer ser normal. Este é o meu castigo. Vou ficar
aqui até que possa aceitar que sou diferente.

– Isso é terrível – Betty teve pena dele. – Por que não finge que está curado?
Geoffrey suspirou.

– Ninguém precisa me dizer que sou diferente. Sei disso a minha vida toda.
Mas me recuso a deixar que Shiva pense que venceu. Se depender de mim,
ela nunca vai se formar.

Shiva entrou na sala num rompante e Geoffrey correu de volta a seu


esconderijo.

– Essas câmeras eram caras, suas pestinhas!

– Este é o preço por infringir a lei – eu disse. – Quem você pensa que é, Jane
Goodall?

– Eu preferia mesmo trabalhar com gorilas. Eles têm maneiras melhores –


rosnou Shiva.

– É, e eles não podem se defender sozinhos. Olha, não viemos aqui para
participar de seus experimentos doentios. Vamos ver os Parker ou não?

– Tudo bem – grunhiu Shiva com os dentes trincados. – Sigam-me. Eu já


acabei com vocês mesmo.

***

Os drs. Parker e Parker dividiam uma sala que parecia uma galeria de arte.
As paredes eram pintadas de um branco ofuscante e decoradas com uma
série de telas que mostravam animais com caras tristonhas observando de

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

trás das grades.

– Olá – disse um homem com um cavanhaque ruivo aparado rente. Usava o


tipo de roupa que pretendia dar a impressão de ter sido vestida às pressas,
mas provavelmente fora montada por uma equipe de especialistas e
custava mais do que um carro mediano. – Sou o dr. Arthur Parker. Esta é
minha mulher, dra. Jane Parker.

A esposa avançou para apertar nossas mãos. Tudo na aparência dela – do


suéter acinturado aos óculos coloridos – pretendia transmitir calor e
honestidade. Mas alguma coisa em suas maneiras me fez desconfiar de que
ela não gostava muito de crianças.

– Shiva nos disse que vocês conhecem Phineas – disse Parker homem. –
Importam-se se perguntarmos como o conheceram?

– Os esquilos dele atacaram uma de nossas amigas no Morningside Park –


respondi.

– Ah. – O dr. Parker franziu o cenho. Andou até o outro lado da mesa e
pegou um talão de cheques. – De quanto precisam para cobrir os prejuízos?

– Não viemos atrás de seu dinheiro – disse Betty. – Viemos para saber de
Phineas. Estamos preocupadas com ele.

– Por que vocês se preocuparam com ele? – perguntou a mãe de Kaspar,


como se fosse a declaração mais ridícula que ela ouvira na vida.

– Alguém o sequestrou no Central Park esta manhã – eu lhes informei. –


Imaginamos que vocês tivessem alguma coisa a ver com isso.

– Antes de tudo – disse o pai de Kaspar, como se tentasse falar de forma


compreensível com uma cabra obtusa. – Se fôssemos os responsáveis, não
seria sequestro. Nós somos os pais dele.

– Falamos com um amigo dele há alguns minutos – disse. – Ele viu Phineas
sendo arrastado por um homem com cabelo com gel e um terno elegante. –
Uma revelação se seguiu à imagem que lampejou por minha mente, mas
não me atrevi a contar.

Os pais de Kaspar trocaram um sorriso secreto.

– Sim, foi assim que ele fugiu de casa. Ele contatou um sem-teto para fazer

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com que seu desaparecimento parecesse sequestro. Isso foi um mês antes
de descobrirmos que ele estava morando no parque. Vejam bem, Phineas é
diferente. Ele não é como vocês. Ele é especial.

O pai de Kaspar se intrometeu com um sorriso falso:

– Ora, Jane, tenho certeza de que todas elas são especiais da própria
maneira. Só que nosso filho é dotado de uma maneira que vocês não
compreenderiam.

– Experimente. – DeeDee estava enjoada de ter sua inteligência


questionada.

– Querida... – alertou Arthur Parker.

– Já que insiste – disse a mãe de Kaspar, como se esperasse que


pedíssemos. – Olhem à sua volta. Nosso filho é responsável por todas as
telas desta sala. Outras da mesma série foram vendidas em um leilão por
mais de 30 mil dólares. Impressionante, não acham? – Todas concordamos.
– Muito bem: e se eu lhes dissesse que elas foram pintadas quando ele tinha
5 anos?

Concentrei-me em uma das pinturas. Mostrava um macaco recurvado


apaticamente no canto de uma jaula. Os membros estavam flácidos e a
cabeça pendia no peito. Do lado de fora da gaiola, havia uma multidão
reunida. O braço de um homem parrudo estava recuado como se ele se
preparasse para atirar um amendoim para a criaturinha. Era uma obra de
arte impressionante para um menino de 5 anos.

– Eu diria que me dá vontade de chorar – disse Betty. Não era preciso muito
para fazê-la chorar, mas eu mesma estava me sentindo meio lacrimosa.

A mãe de Kaspar exultou.

– Sim, pode ser doloroso se ver diante de um talento tão superior.

– Nosso filho começou a se mostrar promissor quando engatinhava – disse


Arthur Parker. – Tinha pouco mais de 2 anos quando usou os lápis de cor
para copiar os desenhos de Picasso que tínhamos nas paredes de nossa

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

casa. Alguns até sugeriram que ele melhorou a obra de Picasso. Depois
disso, estudiosos de todo o mundo vieram a Nova York para observá-lo. O
maior especialista da Ásia em crianças superdotadas passou mais de seis
meses com Phineas, testando os limites de seu talento. Segundo o relatório
dele, não há limites.

Foi isso que nos inspirou a deixar nosso emprego na publicidade e ajudar
outras crianças como Phineas a realizarem seu potencial – disse Jane Parker.
– Não é fácil lidar com gênios. Phineas sempre foi mais sensível do que as
outras crianças.
– Sim – concordou o marido. – Essas pinturas, por exemplo, foram feitas
depois de nossa ida ao zoológico. Enquanto as outras crianças riam e
apontavam os animais, Phineas chorava. Ele não suportou ver os animais
sendo vistos em suas jaulas.

– Ele sempre adorou animais – disse Jane Parker. – Foi por isso que demos
os esquilos a ele. Outras crianças tinham cachorros e gatos. Phineas
precisava de algo um pouco mais singular. Mas ele se recusou a manter os
animais trancados. Insistiu que eles ficassem soltos. Deviam ver o estrago
que um esquilo gigante pode fazer com um cabideiro antigo. – Ela e o
marido riram da lembrança.

– A questão é que – disse Arthur Parker – queremos nosso filho de volta. Se


ele continuar no parque, a perda para a ciência será incalculável. Mas por
favor, deixe que nós nos preocupemos com ele. Não procurem por ele. Não
quero que se magoem se descobrirem que ele não quer ser encontrado. Ele
sempre foi perseguido por garotas. Algumas até eram elas mesmas gênios.

– O que meu marido está dizendo é que se vocês continuarem perseguindo


Phineas, jamais traremos nosso filho para casa – disse-nos Jane Parker.

– Vocês dois são loucos, não são? – perguntou DeeDee. Ela estivera
fumegando em todo o discurso, e nunca na vida eu a vira com tanta raiva. –
Acabamos de dizer a vocês que seu filho corre perigo, e vocês agem como
se fôssemos um bando de tietes idiotas?

O pai de Kasper sorriu placidamente.

– Está vendo, Jane, eu sabia que elas não iam entender. Acho que está na
hora de voltarmos ao trabalho. Vocês, meninas, podem ir embora.

– Bom, sabe o que vocês podem fazer? – começou DeeDee. Peguei o braço
dela e a arrastei para fora do consultório.

– Vocês podem ir... – Betty terminou o pensamento de DeeDee com uma

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voz calma e clara antes de fechar a porta.

***

– Dá pra acreditar nessa gente? – DeeDee se enfureceu enquanto


voltávamos pelo parque. – Não admira que o garoto more no parque! Não
admira que ele libere todos os animais!

– Calma, DeeDee – falei.

– Calma? – ela gritou. – Eu estava tentando ajudar o brilhante filho deles, e


só o que tive em troca foi um monte de insultos velados.

– Talvez os pais dele tenham razão – murmurou Betty. – Talvez Kaspar


esteja nos evitando. E se o Eau Irresistible perdeu o efeito e ele decidiu que
não quer mais ter um encontro comigo?

– Howard viu Kaspar ser sequestrado – argumentei.

– Howard é um amor, mas ele anda com uma galinha. Pode não ser a
testemunha mais confiável do mundo – disse Betty.

– Ele é muito mais confiável do que esses dois birutas. Sugiro que
comecemos a pensar no que vamos fazer agora – insistiu DeeDee.

– Pensei numa coisa quando estava descrevendo o cara que levou Kaspar –
eu disse. – Cabelo com gel, terno elegante, tendências sádicas. Sabe quem
ele parece?

Betty olhou para mim e para DeeDee e sacudiu a cabeça.

– Quem? – perguntou ela.

– Sergei Molotov.

– O capanga de Livia? O cara que atirou em Verushka? Por que ele ia querer
sequestrar Kaspar?

– Não sei – admiti. – Mas tenho que conversar com Kiki. Vou à casa dela
agora mesmo.

– Vamos todas com você – completou Betty.

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– Desculpe – eu disse a ela. – Preciso ir sozinha.

– Por que não podemos ir? – DeeDee exigia saber.

– É um... segredo. – Não tive de olhar para elas para saber como elas se
sentiram com a minha resposta.

COMO INVOCAR UM POLTERGEIST

Há alguém na sua família que pode muito bem levar um bom susto? Então,
por que não invocar seu próprio poltergeist? Se estiver procurando por uma
pegadinha rápida, o clássico truque do walkie-talkie debaixo da cama deve
ser adequado a seus propósitos. Mas se uma noite de diversão não bastar
para você, aqui estão alguns truques simples que podem convencer seus
entes queridos de que eles estão sendo assombrados. Ser um bom
fantasma requer tempo, dedicação e sutileza – mas os resultados tendem a
ser inestimáveis.

Faça uma descoberta

Plante um objeto antigo e horripilante em algum lugar da sua casa e finja


que descobriu. Seu objeto pode ser qualquer coisa – uma foto, um
brinquedo estranho, ou uma cara de arrepiar. Se você mora num prédio
antigo, pode dizer que encontrou debaixo da tábua do assoalho ou atrás do
aquecedor. Se sua casa é nova, alegue que cavou no jardim. Especule sobre
quem pode ter sido o dono e o que pode ter acontecido com ele. Depois
deixe o assunto de lado por pelo menos um dia antes de passar ao truque
seguinte.

Use o poder da sugestão

Se você for uma boa atriz, este pode ser seu truque mais eficaz. Numa
manhã, pergunte a sua família se eles ouviram os barulhos na noite
anterior. Não exagere. Você não precisa convencê-los de nada – só plante a
ideia na cabeça deles. Alguns dias depois, você pode perguntar se eles
viram alguma coisa estranha no porão ou no sótão. Se lhe pedirem uma
descrição, sacuda a cabeça e insista que deve ter sido sua imaginação.

Use o poder da sugestão

Se você for uma boa atriz, este pode ser seu truque mais eficaz. Numa
manhã, pergunte a sua família se eles ouviram os barulhos na noite
anterior. Não exagere. Você não precisa convencê-los de nada – só plante a
ideia na cabeça deles. Alguns dias depois, você pode perguntar se eles

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viram alguma coisa estranha no porão ou no sótão. Se lhe pedirem uma


descrição, sacuda a cabeça e insista que deve ter sido sua imaginação.

Torne o conhecido desconhecido

Nada assusta mais as pessoas do que quando uma coisa conhecida de


repente parece desconhecida. Reorganize os armários da cozinha no meio
da noite. Use graxa preta de sapato para fazer um X em cada espelho (por
menor que seja). Vire fotos e obras de arte pela casa para que elas fiquem
de frente para a parede. Compre um vestido ou blusa velha em um brechó e
pendure em um dos armários. Deixe pilhas de moedas em lugares insólitos.

Ruídos estranho

Nenhuma assombração estaria completa sem uns ruídos inexplicáveis.


Infelizmente, é fácil ser apanhado no ato de produzi-los. Não use os gemidos
e grunhidos óbvios. Esconda um gravador pequeno em lugares diferentes
da casa e toque uma gravação simples – talvez um riso de criança ou os
resmungos de um velho.

Divirta-se um pouco com suas fotos

Retire as fotos da família dos porta-retratos e faça cópias coloridas. (Você


também pode escolher uma só pessoa, se preferir.) Pegue as cópias (não os
originais!) e esfregue com cuidado na cara das pessoas. Coloque os
originais num lugar seguro e suas cópias horripilantes nos porta-retratos.

Mande para eles uma mensagem do além


À medida que sua assombração aumentar, você pode querer deixar
algumas mensagens para sua família. Use protetor labial incolor para
escrever socorro no espelho do banheiro. (Só ficará evidente quando o
espelho embaçar.) Ou use suco de limão para escrever Fora em uma parede
acima do aquecedor. (Isso só funcionará no inverno, quando o calor do
radiador por fim deixar marrom a mensagem invisível.)

CAPÍTULOS DEZ

Segredos, mentiras e traições

É um simples fato da natureza humana. Se você tem um segredo a contar,


não vai encontrar vivalma que não queira ouvir. Avise à pessoa que vai
estragar a vida dela, magoá-la profundamente ou derrubar o governo – ela
ainda vai trincar os dentes e insistir que você desabafe. Embora seja um

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ponto fraco que todos temos em comum, o impulso irresistível de ouvir


segredos seria de pouco prejuízo se a maioria de nós não ficasse tão
ansiosa para contá-los. Todo dia, segredos aparentemente inofensivos
passam por nossos lábios e às vezes só mais tarde percebemos os danos
causados por um deles.

O sol começava a se pôr e a estufa que dava para leste estava iluminada e
quente como a face do sol. A cara de Kiki estava escondida atrás de um
chapéu de aba larga que protegia sua delicada pele enquanto ela regava as
orquídeas de Verushka. Olhei-a espanar delicadamente das folhas de uma
orquídea-borboleta uma camada de fuligem preta de Manhattan.

– Contei a Oona que Verushka pode estar morrendo. – Era estranhamente


agradável confessar. – Ela queria ir à Cidade das Sombras hoje para
procurar os amigos de Yu. Tive que explicar por que você não podia ir.

Kiki continuou olhando a orquídea.

– Você tem uma boa enorme, Ananka. Se eu não tivesse respirado tanto
Fille Fiable, nunca teria contado a você. Verushka estava preocupada que
Oona pudesse descobrir... – Ela parou, como se estivesse criando energia
para continuar. – Olha, eu sei que Oona parece durona, mas é tudo atuação.
Ela é muito mais frágil do que você pensa. Ela tem que lidar com um
fantasma e um pai trapaceiro. A última coisa de que precisava era uma
nova preocupação.

A censura de Kiki me afetou.

– Eu sei, desculpe. Cometi um erro. Oona já estava sob pressão. Ouvimos as


gravações dos grampos de Luz hoje de manhã, e parece que a fantasma
pode ser real. Oona até me arrastou para ver um médium esta tarde. Ele
disse que se Oona cumprir seu dever, terá tudo o que desejar. Agora ela
está desesperada para descobrir provas de que o pai está mentindo. Acho
que é porque está começando a acreditar nele.

– Você a levou à Cidade das Sombras?

– Não. Aconteceu outra coisa. Eu disse a Oona que ela precisava esperar e
ela teve um ataque. Estou preocupada que possa ter pressionado demais.

– O que houve?

– Um dos esquilos de Kaspar entregou um recado a Betty enquanto Oona e


eu estávamos na rua 23 falando com os mortos. Ele foi raptado.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Os olhos leitosos de Kiki lampejaram.

– Você foi ver os pais dele?

– Você sabe sobre os pais dele?

– Um garoto que fala como um professor universitário não desaparece sem


que alguém perceba. Pesquisei um pouco depois que o conheci. Phineas
Parker, né?

– Caraca. Você é boa mesmo.

– Tenho um computador e sei digitar. É só do que preciso. Os pais dele o


capturaram?

– Duvido. Eles são completamente malucos.


Basicamente nos chamaram de tietes e sugeriram que Kaspar encenou o
desaparecimento para se livrar da gente. Mas não acredito nisso. O amigo
de Kaspar, Howard, viu o sequestrador. O homem não vai ganhar nenhum
prêmio por saúde mental, mas eu juro, Kiki, a pessoa que ele descreveu
parecia exatamente Sergei Molotov.

Kiki esmagou uma lagartinha que tinha aparecido em um broto de uma


orquídea-fantasma.

– Não é impossível – disse ela por fim. – Tenho o pressentimento de que


Livia e Sidonia estão planejando alguma coisa. Elas sabem sobe a bala
envenenada. Não me surpreenderia se Molotov estivesse em Nova York
para esperar Verushka morrer. Se isso acontecer, vou ficar mais vulnerável
do que nunca.

– Mas por que Molotov sequestrou Kaspar? Isso não faz sentido.

– Não sei – admitiu Kiki. – Talvez eu precise ter mais cuidado com quem
vejo. Tá legal. Eis o que você deve fazer. – Ela parou e olhou para mim
inquisitivamente. – Vai escrever isso? – Eu peguei um caderno na minha
bolsa. – No que diz respeito a Kaspar, só o que podemos fazer agora é dar
uma olhada nos parques de Manhattan, só para ter certeza de que ele não
está nos evitando. E ficar de olho em algum novo esquilo gigante. Quanto a
Lester Liu, peça a Luz para fazer uma daquelas câmeras de vigilância que
parecem pombos e a coloque do outro lado da mansão. Assim podemos
rastrear todo mundo que entra e sai. Continue ouvindo as gravações dos
grampos e, assim que Yu estiver melhor, leve-o aos túneis. Eu irei com
você, se puder. Nesse meio tempo, diga a Oona para ter paciência. Se o pai
dela estiver aprontando alguma, vamos acabar descobrindo.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– A paciência não é um dos pontos fortes de Oona – lembrei a Kiki. – Lester


Liu é inteligente e descobriu as fraquezas da filha. Estou preocupada que
ela vá se deixar iludir.

– Vá conversar com ela – aconselhou Kiki. – Eu procurei deixar claro que


estou do lado dela, mas ela precisa saber que todas nós estamos.

***

Meu celular mostrava cinco ligações de casa não atendidas e eu não me dei
ao trabalho de ver os recados. As duas horas que eu disse que levaria
tinham se transformado em seis, e eu sabia que estava pedindo para ter
problemas. Mas eu não podia ir para casa sem falar com Oona. Entrei no
metrô para Chinatown e já estava escuro quando saí na Canal Street. Uma
fila de patos assados pendurados na janela de um restaurante lembrou a
meu estômago que eu não comera nada desde o café da manhã. Parei para
olhar desejosa a sopa com bolinhos sendo tomada por um homem com uma
verruga na ponta do queixo. Pelo reflexo no vidro, vi um Rolls-Royce prata
deslizar atrás de mim. Minha fome desapareceu enquanto eu via o carro
entrar na rua de Oona. Quando cheguei ao prédio dela, encontrei o Rolls
estacionado na frente. O mordomo de Lester Liu esperava ao volante,
fitando a rua em frente. Subindo o alpendre, vi Oona disparando escada
abaixo, com a sra. Fei atrás. Mesmo com a porta fechada, eu podia ouvi-las
gritando em chinês. Oona irrompeu para fora, quase me derrubando na
grade.

– O que está fazendo aqui?

– Fui ver Kiki... – Eu parei, assombrada com o vestido que ela usava.
Lembrei-me de admirá-lo na vitrine da Bergdorf Goodman e eu sabia que o
preço devia ser astronômico. E quando Oona levantou o braço para coçar a
pela vermelha sob a gola, vi os braceletes de platina que Lester Liu dera a
ela. – Você ainda está com os braceletes.

– E você com isso? – rosnou Oona. A sra. Fei chegou ao alpendre, sem
fôlego por causa da correria pela escada. O cabelo estava solto e caía nas
costas como uma cascata prateada. Ela pegou a mão de Oona e pareceu
suplicar. – Tenho que ir – disse Oona, libertando-se da avó e correndo para o
Rolls-Royce.

– Ir aonde? – perguntei.

– Tenho que jantar com o meu pai.

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– Não pode! – gritei. – É perigoso demais. Pelo menos espere até que uma
de nós possa ir com você. Todas nós queremos ajudá-la.

Antes que se enfiasse no carro, Oona se virou para mim.

– Tarde demais. Não preciso mais de ajuda. Já resolvi tudo. – A porta bateu
na minha cara.

– Espera! – pedi, mas o carro já arrancava do meio-fio.

– Ela se foi. – Olhei surpresa para a sra. Fei, que descansava em um dos
degraus, olhando o Rolls-Royce desaparecer na esquina. – Eu disse a ela
para ficar em casa. O pai dela é um homem muito mau. Mas não sou a
verdadeira mãe dela. Ela não ia me ouvir.

– Quando foi que aprendeu inglês? – Sentei-me ao lado da sra. Fei no


concreto frio.

– Há muito tempo. Aprendi sozinha – disse a sra. Fei. – Assim posso manter
Wang longe dos problemas. Ela sempre fala inglês quando não quer que eu
entenda.

Eu sorri com a ideia dos truques de Oona se voltando contra ela.

– Seu segredo está seguro comigo, sra. Fei. Mas por que a chama de Wang?

– Wang foi o nome que eu dei quando ela nasceu. – Havia tristeza em sua
voz, como se ela falasse de alguém que já morreu. – Ela disse que é nome
de camponesa. Não é nome para a filha de um homem rico. Ela sempre
quer que tudo seja novo e bonito. Ela não quer morar em Chinatown com
uma velha pobre.

– Isso não é verdade – tentei tranquilizá-la. Mas quando ouvi a incerteza em


minha voz, pensei que era melhor mudar de assunto. – Como está Yu?

– É um bom menino. Wang está irritada porque eu não o deixei procurar


pelas crianças hoje. Mas é minha tarefa fazer com que ele melhore, e não
deixar que piore. Eu disse isso a ela, e ela ligou para o sr. Liu. Disse em
inglês que acredita que há um fantasma na casa dela.

– Ela fez isso? – Eu mal sufoquei as palavras.

– Wang está com um grande problema – disse a sra. Fei. Só o que pude
fazer foi assentir minha concordância.

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***

Na semana seguinte, o outono chegou a Nova York. No pequeno parque na


frente do meu prédio, vi as últimas folhas flutuarem para baixo, ficando
presas no para-brisa de um carro que passava. Passei horas com o nariz
grudado no vidro frio de minha janela, esperando que alguma coisa –
qualquer coisa – acontecesse. Desde que voltara da casa de Oona às sete e
meia da noite sem uma desculpa razoável para minha ausência de oito
horas, fui colocada em prisão domiciliar. Os homicidas condenados tinham
mais liberdade que eu.

Não que isso importasse. Não havia nada que eu pudesse fazer. Luz e
DeeDee estavam liderando o que restava das Irregulares. Iris, vestida como
uma bandeirante que vendia biscoitos ou fantasiada de Halloween,
contrabandeava novidades para mim sempre que podia, mas nunca havia
muita coisa para contar. Kaspar ainda estava desaparecido e Betty passava
cada momento livre procurando pelos parques da ilha e olhando os jornais
em busca de sinais de esquilos gigantes. Mas nem os intrépidos repórteres
da cidade sabiam o que tinha sido feito de seu justiceiro e os três sócios
peludos. As câmeras de pombo de Luz mostravam entregas regulares de
animais exóticos mas comestíveis na mansão de Lester Liu, assim como
visitas frequentes a Oona, que mal falava com o restante de nós. Mas
graças aos grampos na mansão do pai sabíamos como Oona passava a
maior parte do tempo. Ela e Lester Liu estavam ocupados preparando a
festa de inauguração no Metropolitan Museum of Art. Imensas faixas
vermelhas anunciando a exposição em ônibus e cartazes lembravam aos
nova-iorquinos que não demoraria muito para A Imperatriz Despertar. Com
a pródiga abertura de gala a pouco mais de duas semanas, Lester Liu e sua
linda filha se tornaram mais famosos filantropos da cidade.

DeeDee e Luz tentaram ao máximo romper o vínculo de Oona com Lester


Liu. Levaram Yu à Cidade das Sombras, mas ele não conseguiu guiá-las até
os adolescentes taiwaneses desaparecidos. Elas ligaram para a Sociedade
Protetora dos Animais para falar das entregas incomuns de Lester Liu, mas
os fiscais ou foram enfeitiçados ou subordinados pelo cavalheiro elegante e
saíram sem olhar nenhuma geladeira. Depois destas e de outras decepções,
Luz e DeeDee passaram dias de olho grudado nas fitas de vigilância,
procurando por algum sinal de atividade ilegal. Só o que testemunharam foi
uma lacrimosa sra. Fei sendo rejeitada duas vezes na porta da frente da
mansão.

Só Kiki continuava em contato com Oona, que ligava de vez em quando


para saber de Verushka. Também não houve progresso algum naquela

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frente. O médico evitara a deterioração do estado de Verushka, mas sua


saúde não melhorara. Em algum lugar na cidade, Sergei Molotov esperava
pacientemente que ela expirasse. O que quer que ele e Livia estivessem
planejando, ainda era um mistério e eu tinha medo do dia em que
finalmente descobríssemos.

Era um domingo frio e úmido de novembro, com duas semanas de minha


sentença, quando ouvi um som estranho saindo de uma de minhas gavetas
da cômoda. Dentro dela, encontrei um velho GPS vibrando como um feijão-
saltador mexicano. Um sensor de movimento tinha sido ativado na Cidade
das Sombras. Vários segundos depois, chegou uma mensagem de texto ao
meu telefone. “Casa de Iris. Já.” Era de Kiki Strike.

Meu coração disparava, mas consegui aparentar calma enquanto negociava


uma libertação antecipada com minha mãe. Durante semanas, eu encarnei
a filha perfeita. Coloquei a biblioteca de meus pais em ordem sem ser
solicitada e limpei o fogão – duas vezes – quando o tédio ficou bem ruim,
até terminei o dever de casa e me dediquei ao trabalho que a diretora
Wickham havia me passado. Eu esperava ter conquistado boa vontade
suficiente para me permitir um passeio sem acompanhante, mas de início
meu pedido foi negado. Precisei rastejar um número humilhante de vezes
para que finalmente eu tivesse algumas horas de liberdade fora de casa.

***

– Oi, Ananka! – Iris me conduziu para dentro da casa. Usava um jaleco de


laboratório mínimo e branco com suas iniciais bordadas em um dos bolsos.

– Está muito profissional hoje, Iris. Qual é a ocasião?

– Acaba de chegar um pacote pelo correio. Tinha três desses jalecos e um


kit de química. Acho que tenho um admirador secreto.

Comecei a rir da piada, mas mordi a língua quando me lembrei da bronca


que levei da Betty.

– Espero que seja bonito.

– Eu também – disse Iris, sonhadora. – Quanto é que você acha que os


entregadores ganham?

– Não faço a menor ideia. Por que quer saber?

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Iris corou.

– Deixa pra lá. É melhor descer ao porão. Eu disse à babá que estava com
diarreia e ela correu para comprar um remédio. Ela pode voltar a qualquer
momento.

Desci a escada e encontrei as Irregulares esperando com impaciência.

– Por que demorou tanto? – perguntou DeeDee.

– Tive de negociar com minha carcereira. Cadê Oona? – As outras meninas


trocaram olhares.

– Como é que eu vou saber? – disse DeeDee. – Ela não retorna meus
telefonemas.

– Ela anda ocupada. Gastar do dinheiro do pai é trabalho árduo. – Luz


parecia amargurada, e nem Betty se apressou em defesa de Oona.

– Acho que ela não virá – disse Kiki, entregando-me um frasco do perfume
repelente de ratos de Iris. – Passe logo. Vamos ter que ir sem ela.

– E você deveria estar aqui? – perguntei, Kiki tinha perdido peso desde que
eu a vira. A calça preta parecia três números maior e ficava acima de seus
quadris com a ajuda de um cinto apertado. – Não devia estar em casa com
Verushka?

– O médico disse que a situação dela é estável. Ficar sentada em casa não
vai fazer com que eu me sinta melhor – disse Kiki. – Pelo menos aqui posso
fazer bem a alguém.

– Neste caso, vamos andando – disse DeeDee. – A não ser que a gente
queira a babá de Iris indo com a gente.

– Sabe aonde vamos? – perguntei.

– Debaixo de Chinatown – respondeu Luz.

***

Dentro da Cidade das Sombras, Luz seguiu na minha frente pelos túneis
escuros até o local em que o alarme foi disparado. Assim que estávamos
debaixo de Chinatown, começamos a ouvir gritos, guinchos e o que

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

pareciam palavrões nua língua desconhecida. Senti um corpo quente roçar


meus tornozelos enquanto um rato disparava por mim para se juntar à turba
de feras vorazes que se reunira na frente de um covil de ladrões. Andamos
devagar pelos roedores e encontramos uma menina ao alto de uma mesa
frágil, segurando uma vela que era pouco mais do que um toco de cera. Os
ratos se revezavam para subir pelas pernas da mesa. Cada uma de nós ia
para um lado, e a menina chutou um deles para o outro lado da sala. Uma
bola de pelo gorduroso passou por minha cabeça enquanto entrávamos na
câmara, bateu na parede e depois rapidamente entrou na fila para outra
tentativa de ter uma refeição. Uma das Irregulares gritou. Meus olhos
seguiram o dedo que Luz apontava. A menina parecia estar apodrecendo.
Na pele de seus braços e pernas escorriam umas manchas verdes, salpicada
do que parecia ser sangue.

Enquanto o cheiro de nosso perfume enchia suas narinas, os ratos se


separavam, saltando de nosso caminho e rosnando para nós das laterais. A
menina na mesa ficou paralisada quando viu Kiki. A julgar por sua expressão
sobressaltada, ela teria ficado menos surpresa em ver Jackie Chan vindo
resgatá-la. Enquanto DeeDee borrifava nela o repelente de ratos, a menina
tossiu e se debateu, quase derrubando o vidro da mão de DeeDee. Mas
quando os ratos se retraíram, ela começou a entender. Deixou que Kiki
pegasse um de seus braços e o examinasse sob a lanterna.

– Não toque nela! – gritou Luz. – Pode ser contagioso.

– Relaxe – disse-lhe Kiki. – Ela está coberta de tinta.

– Sim. Tinta – concordou a menina, subindo e descendo a cabeça. As


mechas pretas cobriam os olhos e ela as empurrou de volta para dar uma
boa olhada em Kiki.

– Você fala inglês? – perguntou Luz.

– Não – respondeu a menina, depois, sentindo nossa decepção: – Pouco.

– Como chegou aqui? – perguntou Kiki. A menina sacudiu a cabeça, confusa.


Kiki perguntou novamente em cantonês e depois em mandarim, mas a
menina sacudia a cabeça sempre. – Parece que ela só fala hakka – Kiki
assentiu. Ela tentou novamente. – Escada?

– Sim. Escada. – A menina apontou uma escada em um canto da sala que


levava a uma saída da Cidade das Sombras.

– Vem, Ananka – disse Kiki. – Vamos ver o que tem ali.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Por que eu? – Por algum motivo, eu sempre ficava com as tarefas
perigosas.

– É para seu próprio bem. Você ficou engaiolada por tempo demais. Se não
tiver um surto de adrenalina logo, vai ficar molenga.

Vinte metros acima do covil dos ladrões na Cidade das Sombras, abrimos
um alçapão e nos içamos para um espaço que parecia um calabouço. Uma
farpa da tábua áspera do piso entrou na palma da minha mão e eu
cambaleei numa parede de pedras irregulares. Depois de duas semanas de
prisão domiciliar, eu já estava sem prática. Kiki colocou a orelha na única
porta da sala.

– Está ouvindo alguma coisa? – sussurrei.

– Só o silêncio. Acho que estamos sozinhas.

Depois do calabouço ficava um labirinto de cubículos mal construídos. Nós


nos esgueiramos pelos corredores, espiando as baias apertadas que
recentemente abrigaram seres humanos. Cada uma delas estava vazia, a
não ser por um colchão de solteiro, e o piso de concreto estava salpicado de
tinta. Pegadas multicores seguiam em circulo e encontramos uma palma
vermelha e pequena numa das paredes de compensado.

– Parece que chagamos tarde demais – disse Kiki. – As crianças foram


levadas.

– O que acha que estavam fazendo aqui?

– Pelas provas, eu diria que estavam pintando.

– Sua capacidade de dedução me assombra – brinquei. – Alguma ideia do


que estavam pitando?

– Bom, os borrifos parecem se concentrar num canto de cada cubículo. Elas


deviam estar trabalhando em cavaletes. – Kiki se ajoelhou para examinar
uma única mancha de tinta azul no chão. – Ultramarino. É um pigmento
feito de lápis-lazúli esmagado, e não é barato. As crianças não estavam
pintando só para passar o tempo. Precisamos subir para ver o que tem lá.

Uma escada raquítica levava ao térreo. Quando chegamos ao patamar,


vimos o sol atravessando buracos imensos no teto. O prédio não passava de
uma concha vazia. O piso e as janelas tinham sido arrancados e só quatro
paredes de tijolos esfarelados mantinham a estrutura de pé. Pombos
arrulhavam de uma centena de frestas e cantos. Suas penas e fezes

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

transformaram o chão em arte moderna. Kiki tentou a porta da frente da


estrutura, jogando o ombro contra a madeira quando ela se recusou a abrir.
Um homem que passavam ficou assustado com o barulho e o balde que
carregava escorregou de seus dedos. Um mar cinza e fedorento de pepinos
se espalhou pela calçada. Vi a fita de isolamento diante de mim. Estávamos
na rua da casa de Oona.

– Coincidência? – perguntei a Kiki, sabendo qual seria sua resposta.

– Isso não existe. Vamos levar a menina. Como já estamos aqui, podemos
muito bem pedir a Oona para traduzir.

***

A segurança muito bem-vestida de Oona disparou alpendre abaixo sem


olhar duas vezes um bandidinho em miniatura pichar sua marca na lateral
do prédio. Ela carregava uma mala volumosa e não estava sorrindo.

– Oona está em casa? – Kiki repetiu a pergunta em mandarim quando a


mulher a ignorou.

– Não – respondeu a mulher rudemente em inglês. – Foi almoçar com o pai.

– Ela está no almoço? – O sangue de DeeDee ferveu.

– Podemos esperar por ela lá em cima? –perguntei.

– Faça o que quiserem. Não trabalho mais aqui. – A mulher passou


esbarrando por nós e desapareceu na rua.

– Por que Oona demitiu a segurança? – perguntou-se Betty.

– Por que você acha? – Luz se irritou.

Olhando o segundo andar, vi a sra. Fei observando de uma janela. Acenei e


ela desceu para nos receber. Mal tínhamos passado do saguão quando a
sra. Fei pegou a menina que encontramos nos túneis e arranhou a tinta em
seus braços. Em seguida pegou a paciente pelo queixo e examinou sua
língua e os globos oculares. Depois de estar satisfeita, a sra. Fei nos levou
para o segundo andar e arrastou a menina para o banheiro, onde ouvimos
água correr na banheira. Quando voltou, a sra. Fei falou com Kiki em
mandarim.

– A menina é saudável – traduziu Kiki. – Só está suja. A sra. Fei pergunta se

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queremos um chá enquanto esperamos por Oona.

Oona irrompeu porta adentro.

– A espera acabou. – Ela vestia um casaco curto de zibelina por cima de


uma blusa grafite. O cabelo preto e comprido estava torcido num coque e
preso com uma fivela incrustada de diamantes. Na base do pescoço, a pele
estava vermelha e cheia de perebinhas minúsculas. – Há quanto tempo. Não
sabia que vocês ainda me queriam no seu clubinho.

– O que há de errado com você? – perguntou Luz. – O alarme na Cidade das


Sombras tocou há duas horas. Devia ter ido com a gente.

– Tocou, é? – Oona parecia genuinamente surpresa. – O que houve? Por que


ninguém me ligou?

– Nós ligamos para você – disse-lhe DeeDee. – Você não se deu ao trabalho
de atender.

Oona não estava com humor para levar bronca.

– O que é isso, uma espécie de intervenção? Tive de ir almoçar e o


restaurante estava barulhento. Não devo ter ouvido o telefone tocar.

– Ou talvez só não quisesse interromper sua tarde com o papai – eu disse. –


Vocês dois passam muito tempo juntos, não é?

Oona colocou a mão sob o casaco e coçou furiosamente o pescoço.

– E eu tenho escolha? Enquanto vocês ficaram andando por aí procurando o


garoto dos esquilos, eu tive de fazer meu próprio trabalho de detetive.

– Trabalho de detetive? – Luz bufou.

– Nunca vi uma detetive usar zibelina – murmurou Betty delicadamente. Foi


um golpe forte, e Oona ficou pasma.

– Bom, acho que todas vocês já deixaram claro como se sentem.

– O que a gente devia pensar? – DeeDee disse categoricamente. – Você não


atende nossos telefonemas, passa o tempo todo fazendo compras e indo
almoçar com um homem que pode querer nos matar. Até demitiu sua
segurança. O que foi, aliás? Não precisa mais de proteção?

– Para sua informação, eu a despedi porque ela tem a mão leve. Encontrei

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

um de meus melhores anéis enfiado no colchão dela. Kiki, quanto mais


dessa porcaria eu vou ter que aturar?

Kiki ficou em silêncio por um momento.

– Você não está entendendo, Oona – disse ela por fim. – O que quer que
esteja tentando fazer, tem que nos deixar ajudar. Está acontecendo alguma
coisa grande. Pense nisso. Seu pai aparece depois desse tempo todo; depois
Kaspar some e Sergei Molotov é visto na cidade. Sei que agora tudo isso
parece acidental... Mas pode haver uma ligação.

"E não é só isso. Acabamos de encontrar uma menina taiwanesa na Cidade


das Sombras. Ela nos levou ao porão onde ela e as outras crianças foram
trancafiadas. Adivinha onde fica?

– Onde?

– No prédio abandonado na frente da sua casa.

– É mesmo? – De algum modo, Oona não pareceu chocada. Ela parecia feliz.

– E você disse que não viu nada? – DeeDee não conseguia esconder seu
ceticismo.

– Vi uns operários entrando e saindo o tempo todo.

– Percebeu alguma coisa estranha hoje? – perguntou Kiki.

Eu pude ver uma chama de lembranças passar pela mente de Oona.

– Eles me acordaram de manhã. Arrastando um monte de caixas de madeira


do prédio. Não devia passar de oito horas.

– Deve ter sido quando eles transferiram as crianças para outro lugar – eu
disse.

– O que a menina falou? – perguntou Oona. – Ela sabe quem a sequestrou?

– Ela não fala bem inglês – disse Kiki. – Por isso estamos aqui. Precisamos
que você traduza.

Oona fechou a cara.

– Claro. Eu devia saber que era por isso que estavam aqui.

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De repente ouvimos dois gritos de alegria no corredor e encontramos Yu e a


menina taiwanesa abraçados.

– Parece que eles estão felizes por se verem – observou Luz.

– É assim que os amigos ficam – rebateu Oona. Ela escutou a conversa por
um momento. – O nome dela é Siu Fah. Ela e Yu eram colegas de escola.

A menina nos viu olhando e apontou para Kiki. Yu olhou Kiki de cima a baixo
e os dois riram.

– O que eles disseram agora? – perguntei.

– Estão falando que Kiki parece a estrela de um famoso filme de kung fu


chamado A linda diabinha. – Oona não conseguiu reprimir um sorriso.

– Diga a eles que é só coincidência – disse Kiki. – Depois pergunte a Siu Fah
como foi que ela fugiu.

Oona interrogou a menina.

– Ela falou que os sequestradores disseram a ela que Yu tinha morrido, mas
ela não acreditou. Ela sabia que ele tinha encontrado uma saída, então
escapulia de fininho do quarto onde estava presa. Procurava sempre que
podia, mas levou mais de uma semana para achar o alçapão.

– Como eram os sequestradores?

Esperamos impacientes pela tradução de Oona.

– Eram principalmente chineses. Ela disse que só viu o chefe deles uma vez.
– Oona hesitou e olhou o restante de nós.

– Vai. Pergunte a ela – exigiu Luz.

Siu Fah falou por dois minutos inteiros antes de Oona traduzir.

– Ela disse que era um homem claro de cabelo preto. Sempre estava de
terno. Ela acha que ele falava russo com alguns dos homens. – Eu não
sabia, por sua expressão, se Oona estava aliviada ou decepcionada.

– Molotov – cuspiu Kiki.

– O que eles estavam pintando? – Eu queria saber.

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– Pintando? – Oona repetiu pensativamente antes de fazer a pergunta a Siu


Fah. – Ela disse que não sabe o que as outras crianças pintavam. Nunca
teve permissão para ver. Mas mandaram que ela copiasse uma obra que ela
nunca viu na vida. Era uma pintura de uma mulher gorda olhando um
espelho que era segurado por um menino. Ela terminou há alguns dias e
eles a tiraram dela. Ela acha que foi vendida.

A testa de Kiki se franziu.

– Parece tela de Peter Paul Rubens. A toalete de Vênus. Acho que estavam
copiando obras de arte famosas.

– Pergunte a ela se tem alguma ideia de para onde levaram as outras


crianças – disse DeeDee.

A voz de Siu Fah ficou triste.

– Ela não sabe. Estava tentando salvá-los, mas não conseguiu – disse Oona.

Senti um puxão nas costas de meu casaco. A sra. Fei acenava para mim da
cozinha. Esperei até que ninguém estivesse olhando e saí de fininho.

– O prédio de que vocês falaram. Pertence a Lester Liu – cochichou a sra.


Fei.

– Como sabe disso, sra. Fei?

– Nós moramos lá quando Wang era bebê.

– Ela se lembra? – perguntei.

– Não sei – disse a sra. Fei.

– Cadê Ananka? – Ouvi Betty perguntar no corredor. A sra. Fei pôs um dedo
nos lábios.

– Só vim pegar um copo de água – falei em voz alta.

***

Nós cinco saímos do apartamento de Oona e tomamos a calçada. A algumas


quadras de distância, paramos para uma consulta rápida.

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– Acho que não conseguimos muita coisa sobre Lester Liu – disse Luz.

Tive de contar a elas.

– Ele é dono do prédio abandonado. Não me perguntem como sei disso.


Simplesmente sei.

– Era só o que faltava... Mais segredos – DeeDee fungou.

– Mas Siu Fah descreveu Sergei Molotov – disse Betty.

– Mas nós temos certeza disso? – perguntou DeeDee solenemente. – O


quanto sabemos que nossa tradutora é confiável?

– Acha que Oona estava mentindo? – A possibilidade não tinha me ocorrido


e eu me xinguei por ser tão crédula.

– Só estou dizendo que nenhuma de nós fala hakka – disse DeeDee. – Não
temos ideia do que a menina realmente disse. Ela pode ter descrito Lester
Liu de cabo a rabo e não íamos saber a diferença.

– Oona definitivamente está aprontando alguma – insistiu Luz.

– Aquela pele que ela usava custa uma fortuna – acrescentou Betty.

– Acha que Yu e Siu Fah estão seguros com ela? – perguntou DeeDee.

– Calem a boca! Todas vocês. – Já fazia algum tempo que eu não via Kiki
perder a calma e tinha me esquecido de como podia ser apavorante. Seus
olhos eram de lobo e o cabelo estava desgrenhado. Veias azuis incharam
sob a pele da testa. – É assim que vocês falam das amigas? Nenhuma de
vocês tem ideia de como isto tem sido difícil para Oona. Alguma de vocês
sabe o que é ser criada sem família? É claro que não sabem. Talvez Oona
esteja mesmo tentada. Talvez ela queira ter um pai, como todo mundo. No
que me diz respeito, só há uma coisa que importa. Agora mesmo não temos
nenhuma mísera prova de que ela está fazendo alguma coisa errada. E daí
que ela seja filha de Lester Liu? Eu sabia disso quando a convidei a se juntar
às Irregulares, e nos últimos dois anos ela não fez nada que me fizesse
questionar sua lealdade.

– Só estava tentando ser lógica – DeeDee se defendeu.

– Isto é a vida. Não é ciência experimental. As pessoas nem sempre agem


com lógica.

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– Elas também não costumam mudar – disse DeeDee. – Não se esqueça...


Oona passou muito tempo do lado errado da lei.

– Ela tem razão – acrescentei delicadamente.

Kiki nos encarou com nojo. Depois girou o corpo e marchou para a Canal
Street, deixando-nos chocadas na esquina.

– Alguém aqui é meio sensível – disse Luz.

– Kiki também não tem pais – observou DeeDee. – Ela acha que sabe como
Oona se sente. Não consegue ver o que realmente está acontecendo.

***

Naquela noite, recebi dois e-mails urgentes. Os dois eram endereçados a


quatros das Irregulares. Os nomes de Oona e Kiki não estavam na lista. A
primeira mensagem vinha de Betty e continha um link para o site do New
York Society Journal. Ali encontrei três fotos tiradas em uma festa elegante
na noite do sábado anterior. Mostravam Lester Liu de braços dados com
Oona. Ambos sorriam para as câmeras. A legenda abaixo das fotos dizia O
filantropo Lester Liu e sua filha estonteante.

Luz mandou o segundo e-mail. De acordo com seu equipamento de


vigilância, exatamente às oito da noite todos os grampos na mansão de
Lester Liu pararam de funcionar. Quinze minutos depois, as câmeras de
pombo escureceram.

CAPÍTULO ONZE

Assassina à solta

Às sete horas da manhã seguinte, o cheiro acre de café fervendo vagou para meu quarto.
Vesti meu roupão e fui na ponta dos pés até a cozinha para investigar, esperando
encontrar um ladrão morto de cansaço ou uma princesa anã. Em vez disso, descobri
minha mãe sentada à mesa, bebendo de uma xícara da PBS. Ela não disse nada quando
dei um "bom dia" rouco, mas continuou a ler um exemplar do New York Daily News
que estava aberto diante dela. Mesmo com o jornal de cabeça para baixo, não tive
dificuldades para identificar a mulher cuja foto agraciava a página 2. Era Livia
Galatzina, a rainha exilada da Pocróvia e tia de Kiki Strike.

A adrenalina bombeou por meu corpo. Minhas mãos tremeram enquanto eu servia café

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na última louça limpa da casa e me sentava à mesa. Minha mãe empurrou o jornal para
mim e se levantou para encher a xícara. A manchete dizia Assassina à solta em
Manhattan.

AS AUTORIDADES CONFIRMARAM que foi vista recentemente em Nova York


uma mulher procurada por ligações com o assassinato da princesa Sophia,
herdeira do trono da Pocróvia, ocorrido há 14 anos. No início de novembro, uma
mulher de 60 ano deu entrada no hospital St. Vincent, onde foi tratada de uma feri
infectada de bala. Obedecendo à lei da cidade de Nova York, as enfermeiras
tiraram as impressões digitais da paciente e relataram o incidente à polícia. Mais
tarde as digitais foram identificadas e pertenciam a Verushka Kozlova, ex-
integrante da Guarda Real da Pocróvia que supostamente envenenou a família real
do país há mais de uma década, antes de desaparecer sem deixar rastros.

De acordo com a polícia, a srta. Kozlova desapareceu do St. Vincent antes


que sua prisão fosse decretada. Testemunhas afirmam que ela estava em
companhia de uma menina baixa e incomumente pálida que deu o nome de
Trixie Drew. Alguns sugeriram que a adolescente tinha uma forte
semelhança com a agora lendária Kiki Strike. Infelizmente, as câmeras de
segurança do hospital não mostram sinais da companheira de Kozlova, e
uma enfermeira que fotografou a menina com um celular descobriu mais
tarde que a imagem tinha sido misteriosamente apagada.

Enquanto a identidade da adolescente continua desconhecida, sugeriu-se


uma possibilidade extraordinária. Procurada em São Petersburgo para fazer
seus comentários, a rainha exilada da Pocróvia alegrou-se com as notícias
de que a assassina de sua irmã finalmente aparecera. A rainha Livia
também especulou que a companheira da srta. Kozlova podia ser sua
sobrinha, Katarina, filha única de Sophia. Embora há muito se pensasse que
a criança fora assassina junto com os pais, a rainha Livia agora admite que
a princesa Katarina desapareceu no dia do assassinato. "Se minha amada
sobrinha ainda estiver viva insisto que ela volta para sua família. Vou tratá-
la como minha própria filha e garantir que seja reconhecida como herdeira
de direito ao trono da Pocróvia."

A rainha Livia oferece uma recompensa de 100 mil dólares por qualquer
informação que leve à captura de Verushka Kozlova.

Na outra página, localizei um curto artigo sobe o desaparecimento


misterioso dos esquilos gigantes de Nova York, mas não havia tempo de ler.
Vi minha mãe me encarando e soube que minhas habilidades de atuação
determinariam meu destino. Tentei parecer entediada enquanto atirava o
jornal pela mesa.

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– Então agora cada menina pálida de Nova York é Kiki Strike? Isso é birutice,
mãe. Tenho que me arrumar para a escola.

– Então não se importaria se eu telefonasse para a diretora Wickham e


verificasse se você foi à escola? – perguntou minha mãe. Eu estava pronta
para meu close-up.

– Fique à vontade. – Eu bufei com sarcasmo. Tomei o último gole do meu


café e fui para o banheiro.

***

É claro que eu não pretendi ir à escola. Abri a torneira da banheira e tentei


ligar para Kiki, mas só consegui sua voz na secretária eletrônica. Tomei
banho em tempo recorde e assim que estava a uma distância razoável de
minha casa, comprei todos os jornais de Nova York e chamei um táxi.
Toquei a campainha de Kiki e ela atendeu de pronto. Pela primeira vez,
desde que a conhecia, eu vi o medo de verdade em seu rosto.

– Pensei que fosse o dr. Pritchard – disse ela. – Ele devia ter chegado há
séculos. Verushka teve uma manhã difícil.

– Não soube? – Senti a primeira onda de pânico e meu coração bateu nos
ouvidos. Kiki lia os jornais religiosamente e eu esperava que ela estivesse
preparada com um plano. Meu celular tocou. O número de Betty piscou no
identificador de chamadas. – Ligo para você daqui a um minuto – eu disse a
ela. Assim que desliguei, o número de Luz apareceu no visor.

– Soube do quê? – perguntou Kiki. Passei a ela o exemplar do Daily News.


Seus olhos voaram pela página. – De onde essa bruxa velha tirou 100 mil
dólares? – ela zombou. – Ligue para as Irregulares e diga para virem aqui.
Precisamos limpar o lugar. Diga a elas para deixarem as armas. Peguem só
os pertences pessoais. Vou cuidar de Verushka.

– E o médico? – perguntei. – Como ele vai saber onde nos encontrar?

– O médico é um rato – gritou Kiki enquanto disparava para o quarto. –


Aposto que já gastou a recompensa de Livia.

– O que vai fazer com Verushka? – gritei, embora já soubesse que só havia
uma alternativa. Mas se Lester Liu e Sergei Molotov tinham alguma ligação,
não parecia sensato levar Verushka para a casa de Oona. – Kiki, você
realmente quer... – Eu comecei a dizer.

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Kiki disparou para a sala como um pistoleiro entrando num saloon.

– Pensei que tivesse deixado claro na noite passada, Ananka. O que quer
que esteja pensando agora, deve guardar para si mesma.

***

Luz, DeeDee e Betty chegaram enquanto empurrávamos a cadeira de rodas


de Verushka para fora do quarto. Elas assumiram seu trabalho como
profissionais, movendo-se com eficácia e falando pouco. Não era a
discussão da noite anterior que estava em sua mente. Por trás das
expressões vagas, eu podia ver que elas estavam magoadas. Elas limpavam
as consequências de um segredo que ninguém lhes contara. Luz e DeeDee
colocavam em silêncio roupas e papéis em sacos de lixo. Betty pegou duas
perucas na bolsa imensa, junto com um avental de enfermeira, óculos e um
nariz falso. Em menos de um minuto, transformou Kiki e Verushka em uma
africada idosa e sua enfermeira particular. Com Verushka murmurando
incoerentemente, não podíamos nos arriscar a um transporte público, então
Kiki e eu a enrolamos em mantas e disparamos o quilômetro e meio até
Chinatown. Não muito longe do Fat Frankie's, vi dois policiais olhando do
outro lado da rua. Se o dr. Pritchard tinha ido até as autoridades, a polícia
de Nova York estaria procurando por uma idosa com pele azulada. Mesmo
com a maquiagem, a aparência de Verushka continuava muito estranha.
Enquanto os policiais atravessavam a rua para averiguar, borrifei em nós
três uma névoa de Fille Fiable. Nunca vou saber se o que nos salvou foram
os disfarces, o perfume ou o fedor de suor, mas a polícia nos deixou seguir
sem nos incomodar.

***

Quando chegamos ao prédio de Oona, Kiki e eu levamos o corpo flácido de


Verushka pela escada até o segundo andar. Kiki avisara por telefone e as
quatro avós estavam prontas para entrar em ação. Transformaram a sala de
jantar em um hospital improvisado e nos ajudaram gentilmente a depositar
Verushka numa cama. Depois a sra. Fei começou a ladrar ordens e as
mulheres mais novas se espalharam em três direções.

– Ela é a sua mãe? – perguntou a sra. Fei enquanto verificava o pulso de


Verushka.

– Bem que podia ser. – Kiki não pareceu surpresa ao ouvir a avó de Oona

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falando em inglês. – Ela cuida de mim desde que eu era bebê.

A expressão da sra. Fei rapidamente endureceu.

– Se você se importasse igualmente com ela, teria vindo antes. Cianeto, não
é? O veneno a está devorando. Sua amiga pode morrer – ela a repreendeu.

– Pensei que tinha encontrado um ótimo médico – explicou Kiki.

– Médicos americanos – grunhiu a sra. Fei. – Eles conhecem máquinas e


substâncias químicas. Não sabem nada do corpo humano. Vou fazer um
acordo com você. Eu salvo sua amiga e você salva Wang. – Não era difícil
ver de onde Oona tirou sua aspereza.

– O que a faz pensar que Oona precisa ser salva, sra. Fei? – perguntou Kiki.

– Porque eu a ouço quando ela fala com o pai. Ela pensa que ele a quer de
volta, mas sei que ele vai magoá-la. Tentei vê-lo e pedir a ele para deixá-la
em paz, mas ele não quis falar comigo. – Ela apontou para um pacote
lindamente embrulhado perto da porta. – Está vendo isso? Todo dia chega
alguma coisa. Wang acha que presentes equivalem a amor. Todo dia ela vai
à casa dele. Às vezes ela só chega em casa tarde da noite.

O alerta da sra. Fei significava mais para Kiki do que qualquer coisa que eu
pudesse ter dito.

– Eu prometo... Vamos cuidar de Oona – garantiu ela à velha.

– Por favor. Ou um dia Wang nunca voltará para casa.

– Você fala um inglês perfeito. – Nenhuma de nós ouviu Oona chegar. Mas
ela apareceu estranhamente composta e a assadura no pescoço estava
nítida. – Há quanto tempo está me espionando, sra. Fei?

– Não espionando... Ouvindo. Quero ajudar você. – A voz da sra. Fei não
tinha culpa, mas eu mal consegui suportar ouvir o diálogo.

Oona lentamente olhou para Kiki e para mim.

– Então, o que vocês andaram conversando com minha avó? – Ela abriu um
sorriso artificial quando não respondemos. – Deixa pra lá. Não importa.
Como está Verushka? – Oona se ajoelhou ao lado da cama de Verushka e
pegou sua mão azulada.
.
– A sra. Fei acha que pode salvá-la.

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.
– Vocês terão de ficar aqui até que ela melhore – disse Oona a Kiki. – Pode
ficar no meu quarto.
.
– E onde você vai dormir? – perguntei.
.
– Na mansão – respondeu Oona com frieza. – Vou me mudar para lá esta
noite.
.
A sra. Fei arfou e todo o seu corpo pareceu tremer.

– Não acho que isso seja inteligente – alertei Oona. Com os grampos de Luz
desativados, as Irregulares não tinham como garantir a segurança dela.

– Vamos finalizar os planos para a festa da Imperatriz esta noite. Meu pai
quer que eu esteja no museu às seis horas. Por que eu faria todo o caminho
de volta a Chinatown se ele mora na mesma rua? Pelo menos vou ter
alguma privacidade lá.

– Eu não ia ouvir! – pediu a sra. Fei. – Fique aqui. Esta é a sua casa.

– Este não é o meu lugar – disse Oona, e não estava brincando. – Precisava
estar onde posso assumir minhas responsabilidades.

A sra. Fei torceu as mãos nodosas, mas nada disse em resposta.

– E a fantasma? – tentei. – Não tem medo dela?

– A fantasma vai ficar feliz se conseguir o que quer. Além disso, se for
mesmo minha mãe, por que eu deveria ter medo?

Vi a sra. Fei pegar o olhar de Kiki.

– Vou com você ao museu esta noite – anunciou Kiki.

– Que engraçado. Não me lembro de ter convidado você. De jeito nenhum


vou deixar que abandone Verushka.

– Então eu vou. – Pensando bem agora, isso pareceu corajoso, mas eu tive
de forçar as palavras para fora.

– Não sou uma inválida – disse Oona. – Não preciso de dama de companhia.

– A questão não é essa – falei sem pensar.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Ah, entendi. – As narinas de Oona inflaram como as do pai e sua assadura


ficou escarlate. Ela coçou violentamente a pele do pescoço até que uma
gota de sangue machucou a gola branca. – Vocês duas acham que estou
deslumbrada, né? Acham que agora que sou a filhinha do papai, né?

– Não, não é. – Kiki se eriçou. – Acabou de confiar a você a coisa mais


importante que tenho. Você pensou, por um segundo que fosse, que eu
teria trazido Verushka aqui se achasse que você não era leal? Que outra
prova você quer?

– E você, Ananka? – Oona observou minha cara de perto, enquanto eu


lutava para bola uma resposta. – É, foi o que eu pensei. Venha a museu, se
é o que você quer. Não tenho nada a esconder. Agora, se não se importam,
preciso fazer minhas malas.

– Oona? – Eu não tirava os olhos do sangue na blusa.

– O que é? O que está olhando?

– Acho que está na hora de trocar de sabão em pó.

Oona bateu a mão no pescoço e olhou o sangue que veio nos dedos. Depois,
sem dizer nada, saiu da sala.

***

Como matei aula e era foragida da justiça dos pais, eu não podia ir para
casa. Em vez disso, passei a maior parte daquele dia frio de novembro com
Yu e Siu Fah, procurando herbanários enquanto reuníamos os itens de uma
lista de compras de cinco páginas preparada pela sra. Fei. Em cada rua de
Chinatown, centenas de corpos roliços embrulhados em casacos roçavam,
esbarravam e quicavam uns nos outros enquanto cada um deles gingava
para o calor. Mas de algum modo o vento frio e severo não me incomodava
muito. Embora só tivéssemos trocado algumas palavras, Yu e Siu Fah eram
uma companhia surpreendente boa. Eu me esqueci de como a felicidade
podia ser contagiante e otimista pela primeira vez em semanas. Mas
quando voltamos ao apartamento de Oona depois do pôr do sol, liguei a TV
no Channel Three e recebi uma forte dose de realidade. O noticiário local
começou com uma imagem da casa de Kiki. A porta da frente estava aberta
e policiais entravam e saiam do prédio enquanto as luzes de suas viaturas
giravam em silêncio. Adam Gunderson, o principal repórter do Channel
Three, tinha feito fama no início do ano ao expor Kiki Strike como uma
fraude. Agora estava na frente da casa dela, trajando uma parca pronta
para o Ártico e um microfone na mão. Ao lado dele havia um homem

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

baixinho e estranhamente feminino de idade indefinida. Óbvio que era Betty


Bent disfarçada.

"Boa noite, Janice. Estou aqui em Chelsea, onde a polícia descobriu o


esconderijo de uma das mais famosas assassinas do mundo. Durante 14
anos, Verushka Kozlova foi procurada por ligações com o assassinato da
família real da Pocróvia. Hoje pela manhã, uma denúncia anônima levou as
autoridades a esta garagem de carruagens na rua 18. Dentro do prédio
cheio de armadilhas, encontraram um arsenal variado de armas de artes
marciais. Digitais tiradas da cena confirmam que a sra. Kozlova morou aqui,
embora seu paradeiro ainda seja desconhecido.

"Virgil Krull, morador da vizinhança, afirma que normalmente via a


companheira da sra. Kozlova entrando e saindo do prédio. Sr. Krull, é
verdade que a menina é parecida com a fictícia Kiki Strike?

Virgil Krull semicerrou os olhos para as câmeras e falou com um forte


sotaque do Sul.

"Não sei muito sobre essa Kiki Strike de que todo mundo fala, mas a menina
que vi era uma coisinha gorducha com uma perna mais curta do que a
outra. Não sei quantos problemas ela pode causar, com a enfermidade dela
e tudo isso.

"Então duvida que a companheira da srta. Kozlova pode ser uma justiceira
adolescente?

"Imagino que não. Ela também parecia meio lerda. Suponho que tenha um
toque de retardo, se entende o que quero dizer.

Com o sorriso oculto pelo microfone, Adam Gunderson rapidamente passou


à pergunta seguinte:

"Como se sente tendo morado de frente para uma assassina famosa, sr.
Krull?

"Tenho que dizer que é muito empolgante. Não se esbarra com esses tipos
no Mississippi. Fico feliz por ter me mudado para Nova York.

"Bom, é uma maneira de ser ver a questão, imagino. Obrigado, sr. Krull.

"Janice, os outros vizinhos com quem falamos não se lembram de ter visto
nenhuma das moradoras do prédio e as gravações de segurança de casas
vizinhas desapareceram misteriosamente esta manhã. Fontes do
Departamento de Polícia dizem que as autoridades estão confusas. Por ora,

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Verushka Kozlova continua à solta e os moradores do centro de Manhattan


não dormirão tranquilamente até que ela seja capturada. Falando ao vivo
de Chelsea, eu sou Adam Gunderson para o noticiário do Channel Three.

– A boa e velha Betty. – Kiki estava de pé atrás de mim. – Isso deve


confundir a todos por um tempinho.

– Todos, menos Sergei Molotov. Acha que ficará segura aqui?

– Tão segura quando estaria em qualquer lugar. – O tom de voz de Kiki me


dizia para não me estender no assunto.

– Preciso ir para o museu – eu disse, fingindo olhar o relógio. – São quase


seis horas.

– Pode ser que precise disto. – Kiki me entregou um frasco de Fille Fiable.
Uma quantidade mínima do líquido âmbar batia no fundo do vidro. – Foi só o
que sobrou. Vou pedir a DeeDee para fazer mais. Tenho de ligar para ela e
as outras esta noite de qualquer forma.

– Para descobrir onde esconderam suas coisas?

– Para pedir desculpas – disse Kiki. – Eu devia ter contado tudo isso a elas
antes.

***

Meu táxi entrou a oeste na rua 85 e vi o museu assomando no final da


quadra como um templo construído para aplacar um deus poderoso. Luzes
douradas jorravam de suas janelas e no alto da entrada principal do museu
três faixas vermelhas ondulavam na brisa. Abaixo delas estava Lester Liu,
vestido de casaco de gola de peles e olhando a Quinta Avenida como um rei
vigiando seu reino. O cabelo prateado continuava perfeitamente imóvel
enquanto o vento se movia em volta dele. Acenei para Oona, que disparava
pela Quinta Avenida. Ela se juntou a mim na frente da fonte desligada, a
expressão fria como se a água da chuva tivesse sido recolhida e congelada
dentro dela. Juntas, subimos a escada para cumprimentar seu pai e eu rezei
para que o efeito do Fille Fiable que passei no táxi não tivesse passado.

– Boa noite, srta. Fisher. É um prazer vê-la. – Lester Liu sabia como dizer
uma coisa enquanto deixava perfeitamente claro que pretendia dizer outra.
Abriu para Oona um sorriso insincero. – Não esperava companhia esta noite,
minha cara.

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– Ela se convidou – respondeu Oona asperamente. Era tão bom me sentir


querida.

– Eu morro de vontade de ver o museu à noite desde que era uma


garotinha. – Tentei parecer animada enquanto os olhos frios de Lester Liu
continuavam fixos em mim.

– Bom, então, este deve ser um presente para você. Vamos. Oona e eu
precisamos ver a Imperatriz.

***

Sem as centenas de turistas que tagarelam em dezenas de línguas, o


Grande Salão do Metropolitan Museum of Art era espantosamente silencioso
e tudo parecia menor no escuro, depois do horário de funcionamento. O teto
abobadado parecia tão alto quanto o céu. Uma selva de arranjos florais
brotava de reentrâncias nas paredes e uma esfinge antiga, agachada entre
duas colunas de mármore, guardava os tesouros que ficavam lá dentro.

– Ah! Sr. Liu! – exclamou um cavalheiro elegante, de cabelos brancos e um


terno de corte perfeito. Anormalmente alto, com uma coluna tão rígida que
parecia uma vara de aço, ele pareceu cruzar o vasto salão em menos de dez
passos.

– Sr. Hunt. – Lester Liu estendeu a mão para cumprimentar o homem. –


Permita-me apresentar minha filha, Lillian, e minha nova assistente, a srta.
Fisher. Senhoras, o sr. Hunt é o diretor do Metropolitan Museum.

– Vieram ajudar nos arranjos para a abertura de gala, meninas? – perguntou


o sr. Hunt, embora não parasse para ouvir a resposta. – Falei com quase
todos de nossa lista que mandaram um RSVP – gabou-se ele a Lester Liu. –
Não posso dizer que tenha visto um índice de aceitação tão alto! A festa de
inauguração para A Imperatriz Desperta deve ser o evento da temporada. –
Depois ele passou a nos entediar com uma longa lista de nomes famosos
que compareceriam, inclusive duas estrelas de cinema adolescentes que eu
certamente nunca vira dentro de um museu.

– Por que ele a chamou de Lillian? – cochichei para Oona enquanto o sr.
Hunt continuava a tagarelar.

– Ele acha que Lillian Liu tem um som agradável – disse ela. – Que me
importa como ele me chama? Eu inventei Oona Wong?

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Meninas? – interrompeu o sr. Hunt. – Gostariam de ver a exposição? Ainda


tenho uns telefonemas a dar antes de começarmos e pensei que poderiam
desfrutar de uma espiada no espetáculo.

– Seria um prazer – respondeu o sr. Liu por nós.

– James! – o sr. Hunt gritou a um segurança mal-encarado que estava perto


do controle de casacos. – Poderia, por favor, guiar o sr. Liu e suas
acompanhantes para ver a nova exposição? Estarei com o senhor em breve,
sr. Liu.

Oona e o pai andaram grudados no segurança enquanto eu fiquei pra trás. À


menina que nos aproximávamos da ampla escadaria que levava ao segundo
andar, meus olhos caíram em uma figura à espreita na escuridão de uma
das galerias laterais. Eu parei, esperando que ela se mexesse.

– É uma estátua, srta. Fisher – ouvi Lester Liu dizer. – Não precisa entrar em
pânico. O museu está cheio delas. – Oona deu uma risadinha e eu me senti
corar.

***

No segundo andar, passamos por salas mal iluminadas e retratos de


pessoas que morreram havia muito tempo. Quanto mais imergíamos no
prédio, mais forte era meu impulso de fugir. Só uma heroína de filme de
terror se veria sozinha no Metropolitan Museum of Art com um
contrabandista e sua filha dissimulada. Tentei observar bem o caminho que
tomávamos, mas sem um rastro de farelos e pão ou um rolo de barbante
para marcar a trilha, eu sabia que ficaria desesperadamente perdida no
labirinto do museu. Meus olhos disparavam de um lado para o outro e não
consegui resistir ao impulso de olhar por sobre o ombro para ver se alguém
se esgueirava atrás de nós. Ao nos aproximarmos da extremidade sul do
prédio, o som de martelos ficou ensurdecedor. Um trabalhador apareceu
como se saído do nada e desapareceu numa sala vermelha escura no final
do corredor. Nossa jornada tinha terminado.

– Não saiam da exposição sem um guia – gritou o segurança por sobre a


barulheira. Os olhos do segurança nunca deixavam meu rosto e percebi que
o aviso era para mim. Ele devia ter me visto ficando pra trás e confundido
minha agitação com traquinice. – Os alarmes e detectores de movimento
estão ativados nas galerias. Se quiserem ver as pinturas, voltem quando o
museu estiver aberto. Se quiserem ir embora, por favor, entrem em contato
conosco, na segurança, e vamos conduzi-los à saída.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Obrigado, James. – Lester Liu esbanjava charme. – Se todos os seguranças


do museu forem diligentes como você, sei que podemos ter confiança
completa de que meus tesouros estarão seguros.

Quando o segurança deu as costas para nós, senti-me sem minha única
defesa. Mas enquanto minha mente gritava para ele ficar, eu segui em
silêncio Lester Liu para o ambiente da exposição. A primeira galeria estava
um caos, com caixas de madeira encostadas nas paredes. Um homem que
parecia um passarinho com um emaranhado de cabelo amarelo gritava
ordens a uma turma de musculosos trabalhadores de luvas brancas. Quatro
dos homens baixavam cuidadosamente uma grande tela em uma caixa
aberta enquanto dois colegas se ocupavam em lacrar outra com pregos.

– Parem, parem, parem! – gritou o homem quando nos viu. A pancadaria de


martelos cessou e o homem correu. – Sr. Liu – disse ele, tirando a luva e
estendendo a mão. – É uma honra tê-lo aqui, senhor.

– Dr. Jennings – disse Lester Liu. – Como o trabalho está progredindo?

– As outras galerias estão em ordem, senhor. Esta é a última sala a ser


renovada. Estamos retirando as últimas obras da exposição anterior. Todas
devem sair dentro de uma hora.

– Para onde as estão levando? – perguntei, gesticulando para as caixas e


sentindo minha coragem voltar aos poucos. O homenzinho pareceu chocado
que eu pudesse falar.

– Minha nova assistente – explicou Lester Liu.

Os olhos do homem passaram entre nós dois como se ele se perguntasse


como responder à minha pergunta.

– Algumas serão colocadas no depósito e outras serão enviadas aos museus


que as emprestaram. As duas que pertencem ao Met serão devolvidas a
suas galerias de origem. Isso responde à sua pergunta?

– Por que embalá-las com tanto cuidado se só estão transferindo para outra
parte do museu?

Já era bem ruim ter feito uma pergunta; duas, era uma coisa inaudita. O
baixinho ficou assombrado e Oona revirou os olhos. Eu corria o risco de
pressionar demais.

– São obras de arte inestimáveis. Até as molduras valem milhões. Meus

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

colegas costumam ser menos conscienciosos, mas eu teria este cuidado se


estivesse apenas mudando seu lugar na sala. Agora, sr. Liu, posso lhe
mostrar o restante da exposição?

Enquanto o dr. Jennings, Oona e Lester Liu seguiam em frente, parei para
olhar os trabalhadores terminaram de preparar as caixas. Enquanto um
homem corpulento se curvava sobre o martelo para colocar um último
prego, a camisa dele se soltou das calças, expondo parte das costas – e a
cabeça tatuada de um dragão vesgo. Era um Fu-Tsang. Girei e vi se mais
alguém tinha percebido, encontrando Oona me encarando do outro lado da
sala, os olhos me desafiando a falar.

– Você vem? – grunhiu ela.

***

Se minha mente já não estivesse dançando de dragões, eu podia ter ficado


tomada do mesmo pasmo que os ladrões de túmulo devem ter sentindo
quando entraram pela primeira vez na tumba da Imperatriz. Entrei numa
sala escura que exibia mostruários de vidro muito iluminados, instalados em
pedestais altos e pretos. Dentro de cada mostruário, um mundo em
miniatura parecia flutuar a cerca de um metro do chão. Ali estavam
perfeitas réplicas em porcelana de palácios, mansões e jardins antigos –
cada uma tão detalhada que eu podia ver as telhas. Outro mostruário exibia
uma fazenda habitada por porcos, galinhas e patos minúsculos. Ali estavam
as provisões da Imperatriz para depois da morte. Qualquer coisa de que
uma mulher de sua estirpe pudesse precisar tinha sido cuidadosamente
copiada e enterrada com ela. Espiando a galeria ao lado, vi um exército de
cridos de barro de 30 centímetros de altura, todos ainda aguardando ordens
de sua senhora. Cada sala da exposição foi planejada para levar os
visitantes cada vez mais fundo na tumba da Imperatriz, até que por fim
chegassem à magnífica câmara onde a múmia estaria à mostra.

– A Imperatriz deve chegar no dia da abertura de gala – ouvi Lester Liu


anunciar. – Peço desculpas pelo atraso. Ela e seu esquife são extremamente
frágeis. Aceitei o conselho do sr. Hunt e contratei uma equipe de
especialistas para transportá-la de minha casa até o museu.

– Claro, sr. Liu. A sala da Imperatriz estará pronta quando ela chegar –
garantiu-lhe o dr. Jennings. – Podemos dar uma olhada?

– Oh, Lillian! – exclamou Lester Liu. Oona me lançou um olhar de


advertência e se apressou atrás do pai. Quando por fim estava fora de vista,
saí de mansinho pela entrada e vi os trabalhadores colocarem uma das

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caixas numa plataforma móvel. O homem tatuado a levou embora.


Enquanto seus colegas voltavam a atenção para a próxima obra de arte,
segui a caixa porta afora.

Eu já fiz coisas imbecis, mas não muitas. Apesar das incontáveis lições de
Kiki, minhas habilidades de espiã continuavam risivelmente ruins e eu só
tinha duas gotas de Fille Fiable para me salvar dos problemas que eu sabia
em que estava me metendo. Enquanto o homem empurrava a caixa pelos
corredores vazios do Metropolitan Museum of Art, mantive uma distância
segura, enfiando-me atrás de colunas e tateando por acidente uma ou duas
estátuas. Meu cérebro funcionava na velocidade dobrada e as coisas
começavam a fazer sentido para mim. Em vez de tentar desativar os
detectores de movimento do museu e silenciar os alarmes, os Fu-Tsang
roubavam telas enquanto as transferiam de um lugar para outro. E para
mim não havia mais nenhuma dúvida de que Oona estava envolvida.

O homem virou uma esquina e esperei vários segundos antes de espiar pelo
canto. A tela não estava à vista e eu podia ouvir o rangido das rodas da
plataforma ficando mais fraco.

– Já não era sem tempo! – ouvi alguém exclamar. A voz parecia vir da última
de várias galerias no corredor. – Esperei a noite toda. Vamos! – Avancei aos
poucos pelo corredor e fiquei paralisada no meio de um passo. Tirei meus
sapatos, fui na ponta dos pés para a entrada da galeria e devagar coloquei
a cabeça pelo canto. A caixa estava aberta e o bandido Fu-Tsang e ouros
três homens erguiam a tela.

– Agora pegue aquela ali. – Um homem estava no meio da sala, orientando a


ação com a arrogância de um faraó comandando um exército de escravos. –
Vamos tentar colocá-la na parede antes do amanhecer, sim? – Minha cabeça
girava. A tela não tinha sido roubada. Só tinha sido transferida. Depois que
estava achatada na parede, pude ver um nu roliço com um traseiro imenso
espreguiçando-se num cenário turco. Mas parecia haver alguma coisa
espiando por sobre o homem da mulher – algo que parecia deslocado.
Quando mudei de posição, o objeto desapareceu. Não havia como chegar
mais perto. Eu teria de voltar pela manhã.

Escapuli de volta pelo corredor e tentei lembrar que caminho tinha tomado.
Esperava sem sorte e a esquina que escolhi me levou direto ao sr. Hunt.

– Quem é você? – ele perguntou como se nunca tivesse posto os olhos em


mim. – Venha cá um instante. Onde, em nome de Deus, estão seus sapatos?

Aproximei-me do homem, na esperança de chegar perto o bastante para ele


sentir meu perfume.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Sou a assistente do sr. Liu, senhor. Só estava procurando o banheiro e me


perdi. – Rezei para que o perfume pudesse compensar minha desculpa
esfarrapada.

– Não é mais minha funcionária, srta. Fishbein. – Eu tremi quando ouvi a voz
de Lester Liu. Ele tinha vindo procurar por mim. – Sr. Hunt, o senhor se
importaria de pedir à segurança para cuidar desta arruaceira para que eu
possa voltar a meu trabalho?

– De forma alguma – respondeu sr. Hunt, com muito mais entusiasmo do


que a situação merecia.

Dadas as alternativas, eu teria preferido passar a noite na cadeia. Em vez


disso, a segurança do museu ligou para minha mãe. Enquanto eu esperava
por sua chegada perto do guarda-casacos, Oona e o pai passavam por mim
a caminho da saída. Lester Liu recusou-se a dar pela minha existência, mas
depois que o pai estava na porta, Oona não resistiu a me dar a última
palavra.

– O que acha que está fazendo? – rosnou ela. – Isto não é brincadeira. Se
não fosse por mim, você agora estaria morta.

– Não me faça favor nenhum – cuspi para ela. – Eu não me associo com
traidoras.

TESTE SUAS HABILIDADES DE DETETIVE

Uma boa detetive nunca deixa passar o menor dos detalhes. Quando se
trata de resolver crimes e salvar cidades, até o nome da galinha de
estimação de alguém pode se provar de importância fundamental. (Embora
não seja o caso neste livro.)

O teste a seguir a ajudará a determinar se você está pronta para a ação –


ou se deve treinar um pouco mais. Lembre-se de uma coisa: na vida real,
não há perguntas de múltipla escolha.

1. Qual é o nome da galinha de estimação de Howard Van Dyke?

a. Nugget
b. April
c. Thelma
d. Extra Crispy

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2. A que horas seu vizinho saiu de casa pela manhã?

a. Exatamente dez minutos e onze segundos mais cedo do que ontem


b. Quem sabe? Eu decidi dormir um pouco mais
c. Eu nunca me intrometeria na privacidade dos outros!
d. Pensando bem, não o vejo há semanas. Talvez eu deva bater na porta
dele

3. Qual dos seguintes itens não pode estar em sua lixeira?

a. A identidade de sua paixão secreta.


b. O número de telefone não listado de sua melhor amiga
c. Vários vidros vazios de Mashmallow Fluff
d. Aquele bilhete desagradável de sua diretora

4. Que frase descreve melhor o vendedor de cachorro-quente na


esquina da rua 14 com a Sexta Avenida?

a. Fornecedor da carne processada mais saborosa de Manhattan.


b. Espião do governo mongol
c. Criminoso procurado por crimes contra o reino animal
d. Amigo dos esquilo

5. Quais dos seguintes itens impedirão que você pareça misteriosa?

a. Pele sem cicatrizes e tatuagens


b. Um nome como Tiffany
c. Uma boca enorme
d. A falta de ficha criminal

6. Complete a seguinte frase: Com base no que leu até agora, Oona
Wong é...

a. Uma agente dupla covarde


b. Uma menina de temperamento doce com um coração de ouro
c. Um poltergeist
d. Um pseudônimo

Crédito Extra

Crie um disfarce bom o bastante para enganar um conhecido seu usado


apenas o conteúdo de sua bolsa ou sua mochila. Você foi apanhada
espionando um parente suspeito (pela segunda vez). Elabore uma não

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desculpa adequada. (Sinta-se culpada depois, se quiser.)

Coloque luvas de borracha e retire o cesto de papéis do quarto de sua irmã.


Examine o conteúdo e componha uma lista das atividades dela nos últimos
dois dias.

RESPOSTAS:

1) b
2) a
3) Se você estivesse prestando atenção, nada disso estaria na sua lixeira.
4) c
5) c
6) d – Você não leu mais para a frente, leu?

CAPÍTULO DOZE

Prisioneira de Cleveland Place

Sempre admirei as heroínas de filmes que se recusam a contar seus


segredos quando são capturadas pelo inimigo. Ameace-as, torture-as ou
zombe delas, e só o que você terá em troca é um discurso enaltecedor
sobre a honra, a integridade e o alto preço da liberdade. No final, ou elas
escapam de seus torturadores ou morrem heroicamente, deixando para trás
alguns amantes arrasados e inspirando toda uma nação com sua coragem.
Enquanto eu esperava que minha mãe me arrastasse do Metropolitan
Museum of Art para casa, prometi a mim mesma que me comportaria com a
maior dignidade. Não haveria choros, nem súplicas, nem pedidos de
clemência. (E tragicamente nenhum administrador dedicado para
testemunhar minha bravura.) Elaborei meticulosamente a única resposta
que daria às perguntas de minha mãe: Um dia você vai entender.

O problema foi que não houve pergunta alguma. E um único olhar para a
cara de decepção de minha mãe me lembrou de que ela não era inimiga.
Ela era mãe de uma menina dissimulada, mentirosa e indigna de confiança
que não podia ou não iria explicar seus atos. A caminho de casa, não houve
sermões nem papo de colégio interno. Minha mãe ficou sentada em silêncio
perto da janela, olhando a Quinta Avenida passar voando. Vi o que meus
segredos fizeram com ela e quis lhe contar a verdade. Mas eu sabia que
tinha esperado demais.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Senti-me um pouco menos solidária quando encontrei duas malas grandes


no chão do meu quarto, junto com um bilhete informando-me de que os dois
dias seguintes seriam meus últimos na Escola para Meninas Atalanta. Meu
telefone foi confiscado e meu computador sumiu. Até as janelas tinham
trancas novas. Não havia como entrar em contato com as Irregulares. Até
que eu pudesse me libertar da Fortaleza Fishbein, a traição de Oona
continuaria secreta.

***

E as coisas só ficaram piores na manhã seguinte. Quando eu ia para a


escola, encontrei minha mãe vestida e esperando perto da porta.

– Você não vai! – declarei, incrédula.

– De que outra maneira posso ter certeza de que você vai para a escola? –
Ela deu um sorriso malicioso, mantendo a porta aberta para mim.

Havia poucas coisas mais humilhantes na vida do que ser acompanhada até
a escola pela mãe. O que mais me irritou foi que ela conseguiu frustrar o
único plano de fuga que eu tinha bolado. Ela ficou sentada a meu lado no
metrô e me olhava pelo canto do olho enquanto passávamos por várias
bancas alardeando os jornais da manhã.Assassina às portas da morte!,
gritava a primeira página de um deles. Médico herói conta tudo!, gritava
outro. Quando minha mãe me deixou na porta da frente da Escola Atalanta,
várias testemunhas começaram a rir. Felizmente, Molly Donovan estava na
calçada esperando por outra oportunidade de se atrasar. Bastou uma
encarada de Molly e olhos foram desviados, lábios selados e eu pude entrar
na escola com o pouco que me restava de minha autoestima.

– O que foi desta vez? – Molly e seus cachos quicavam a meu lado.

– Fui flagrada zanzando pelo Metropolitan Museum ontem à noite.

– O museu? Tá brincando! – Se antes eu não tinha o respeito de Molly,


certamente acabara de conquistá-lo.

– Bem que eu queria.

– Você deve estar falando a verdade. Está sendo vigiada, sabia? Eles devem
pensar que você representa risco de fuga.

– Quem está me vigiando?

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Shhhh. Olhe em volta. Não seja tão óbvia. Deixe que eles se divirtam. Esta
é a coisa mais empolgante que os professores têm o dia todo. Faz com que
eles se sintam a Nancy Drew. – Uma olhada rápida dos dois lados provou
que Molly tinha razão. Todo professor por que passávamos me perseguia
com os olhos. Comecei a entender como era ser Molly Donovan.

– Talvez seja melhor não sermos vistas juntas agora – murmurei, tentando
evitar que meus lábios se mexessem.

– É, acho que gângsteres barra-pesada como você não podem ser vistas se
rebaixando com criminosas inferiores como eu – zombou Molly.

– Desculpe. Não sei o que estava dizendo. Não importa mais, já que
consegui ser expulsa.

– Que gozado, era justamente sobre isso que queria falar com você. Sabe a
promessa que me fez? Acha que pode acelerar um pouco as coisas? Estou
ficou meio desesperada. Chamei a atenção de uma universitária que
trabalha para meus psicólogos. Ela parece pensar que sou o bilhete dela
para a fama e a fortuna.

– Por acaso o nome dela não seria Shiva? – perguntei.

– Você conheceu a fera? – Eu assenti. – Bom, então sabe do que estou


falando. Meus pais a deixaram colocar câmeras no meu quarto para ela
poder me estudar em meu ambiente natural. Então é melhor você agir
rápido, porque, se isso continuar por muito tempo, talvez eu tenha de matá-
la.

– Não sei não, Molly. Agora estou meio sobrecarregada.

– Você teve tempo para invadir o Metropolitan Museum, mas não tem tempo
para ajudar uma amiga?

– Você pode não acreditar, mas tenho outras amigas com problemas piores
do que os seus.

– Vamos ver o que você acha no final do dia – Molly me desafiou, abrindo a
porta de minha aula do primeiro tempo. – Não há nada pior do que perder
sua privacidade. Já ouviu falar do efeito do observador?

– Não.

– Nunca ouviu isso em aula? O efeito do observador é um dos fenômenos

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

científicos mais estranhos. Quando as pessoas são colocadas sob


observação, seu comportamento muda. É como quando você vai a uma loja
e o segurança fica te seguindo. Você sabe que não vai roubar nada, mas
começa a se sentir culpada, depois começa a agir de forma suspeita. Isso é
o efeito observador. Então, aqui está minha pergunta. Como pode saber
quem realmente é se está sendo observada o tempo todo?

***

Não precisei do dia todo para entender o argumento de Molly. Quando


terminou o primeiro tempo, eu me vi me esquivando pelos corredores como
uma condenada foragida da lei. No segundo tempo, eu estava clinicamente
paranoica. Aonde quer que fosse, podia sentir mil olhos rastejando sobre
mim. Se eu fosse ao banheiro, ao sair descobria uma professora zanzando
do lado de fora. Se por acaso eu passasse a 15 metros da saída da escola, o
nível de som caía como se as pessoas estivessem prendendo a respiração
para ver o que aconteceria. Lá pelo terceiro tempo, eu podia ter começado
a ouvir vozes, mas quando me sentei na aula do sr. Dedly o dia começou a
ficar um pouco mais brilhante.

A pessoa sentada atrás da mesa na frente da sala não tinha o nariz peludo,
a expressão dolorida ou o gosto por tweeds desiguais do sr. Dedly. Era uma
indiana bonita, vestida com um sári turquesa vibrante. Um diamante
mínimio cintilada sua narina esquerda e as pulseiras de ouro tiniram como
um sino de vento quando ela se levantou para falar com a turma.

– O sr. Dedly não virá hoje. Eu sou a srta. Mahadevi, a professora substituta.
Antes de começarmos a aula, preciso falar com uma das alunas desta
turma. – Ela examinou o livro de chamada, o dedo percorrendo a lista até
que parou em algum lugar no meio. – Ananka Fishbein. Por favor, venha à
frente da sala. O restante da turma pode conversar em voz baixa.

Minhas colegas ficaram ocupadas demais fofocando para perceber a


estranha nova professora que me pegou pelo braço e me levou porta afora.

– Ananka – cochichou ela sem nenhum vestígio do sotaque Bombaim. – Sou


eu.

– Betty? – comecei a rir, até que ela me fez calar. – O que você fez com o sr.
Dedly?

– Há algumas horas, os Arqueólogos Amadores de Manhattan receberam


uma dica de que uma turma de construção em Coney Island tinha
descoberto os restos de um navio pirata e tentavam esconder as provas.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Seu professor é o presidente do clube, então teve de ir verificar. Muito bom,


né? Foi ideia de Luz. Soubemos do que aconteceu no museu ontem à noite.
Kiki me pediu para vir ver você. Ela achava que você estava sob vigilância
estrita.

– Isso é o mínimo. Minha mãe vai me despachar para um internato na


Virgínia Ocidental na quinta-feira. Não se preocupe – acrescentei quando a
cara de Betty despencou. – Vou pensar num plano. Quem contou a vocês
sobre o museu?

– Oona. Quem mais seria? Ela disse que você foi pega xeretando. Nunca a vi
tão irritada. Pensei que ela ia começar a espumar pela boca.

– Ah, é mesmo? Ela contou a você por que eu estava xeretando por lá? –
Betty sacudiu a cabeça. – É, eu achei que ela deixaria essa parte de fora. Eu
estava xeretando porque havia homens da Fu-Tsang no museu.

– Não! – As pulseiras de Betty chiaram quando ela bateu a mão na boca.

- Sim. Vi um cara com um dragão tatuado nas costas. Ele transferia as telas
de uma exposição anterior. Pensei que podia estar roubando, então o segui.

– E ele estava?

– Não – admiti. – Por acaso estava levando para outra parte do museu. Mas
eu juro que tinha alguma coisa esquisita acontecendo com lá. E a pior parte
é que... Oona deve estar envolvida nisso. Ela viu o cara da tatuagem, como
eu. Ela sabe que a Fu-Tsang está envolvida, e não contou a ninguém. Acho
que ela passou para o lado negro.

Betty estremeceu.

– Queria poder dizer que estou surpresa. Vou ligar para Kiki assim que a
aula terminar.

– Alguém precisa visitar o museu também. Eu mesma iria mas dizem que fui
proibida de entrar.

– Eu vou. Meu próximo tempo está livre e o museu só fica a algumas


quadras daqui. O que você quer que eu faça lá?

– Dê uma olhada na tela que vi sendo transferida ontem à noite. Vou


descobrir como ela se chama. Havia alguma coisa estranha nela, mas não
consegui definir o que era. Era uma pintura de uma mulher nua, deitada de
costas para o pintor. Parecia que tinha alguém espiando por sobre o ombro

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

dela.

– Que coisa arrepiante. A gente devia entrar na internet e procurar o nome


da pintura assim que eu terminar minha aula.

– Perfeito. Então isso significa que você realmente dar essa aula? Sabe
alguma coisa da história de Nova York?

– Há uma coisa de que sei muito bem. – Sua voz já começara a adotar o
ritmo melífluo de um sotaque indiano. – Vamos entrar. A gente conversa de
novo depois da aula.

***

A turma foi se aquietando enquanto Betty se aproximava da plataforma. Ela


ergueu uma imagem de uma mulher horrível, cuja queixada carnuda exibia
uma barba por fazer. A julgar pela preta e crespa e o vestido de seda azul
da mulher, a imagem datava de meados do século XVIII. De repente entendi
o tema da aula de Betty e não consegui deixar de sorrir.

– Alguém pode identificar esta mulher de aparência infeliz? – perguntou


Betty, o sotaque mais uma vez perfeito. Ninguém levantou a mão. – Muito
bom. Governou a Colônia Britânica de Nova York. O nome dele era Edward
Hyde.

A turma deu uma gargalhada.

– Não só o sr. Hyde não tinha competência como governador, como adorava
se vestir como sua prima, a rainha Anne. Infelizmente, como podem ver, ele
fez um péssimo trabalho nisso também. Hoje vamos analisar as poucas
técnicas que o sr. Hyde podia ter usado para tornar sua fantasia mais
convincente.

Pela primeira vez no dia, eu estava quase começando a curtir quando a


porta se abriu e uma aluna da sexta série que parecia um lêmure passou
um bilhete à professora substituta.

– Ananka Fishbein – disse ela com um toque de compaixão na voz –, você foi
convocada à sala da diretora.

***

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Molly Donovan tinha acabado de voltar da prancha. Eu a vi se arrastando


para fora da sala da diretora, de cabeça baixa e o ânimo abatido. Peguei
seu braço e a guiei para um canto.

– Qual é o problema? – cochichei. – O que houve?

– Nunca vou sair daqui – gemeu Molly. – Eu disse à minha professora de


cálculo que ela podia enfiar o transferidor dela naquele lugar, e só o que
consegui foi um sermão de dez minutos. Wickham disse que os donativos de
meus pais não fazem diferença para ela. Disse que ainda estou aqui "porque
tenho potencial".

– Eu sinto muito, Molly. Talvez você deva contar a ela por que quer ser
expulsa.

– Acha mesmo que isso ajudaria? – Molly se desesperava. – Essas pessoas


são todas iguais. Se elas acham que você tem potencial, querem sugá-lo de
você.

– Não sei se a diretora é assim – argumentei. – Talvez ela queira te ajudar.

Molly bufou.

– Encare a realidade, Ananka. Não posso confiar em adultos. Você é minha


única esperança.

***

Quando entrei, a diretora estava ao computador. Pude ver o reflexo da tela


nos óculos dela. Olhava um arquivo de uma aluna da Atalanta. Não precisei
perguntar para saber que era meu.

– Feche a porta, por favor, Ananka – ordenou ela. – Eu não sabia de sua
amizade com a srta. Donovan.

– A senhora ouviu nossa conversa?

A diretora Wickham olhou para cima e sorriu maliciosamente.

– Minha visão pode estar falhando, mas minha audição é afiada como
sempre. Então entendi que Molly gostaria de ser expulsa?

– Ela quer sair de Nova York. Diz que os pais dela acham que ela é especial.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Mas Molly é especial.

– Especial o bastante para ser levada a festas para divertir os convidados


dos pais? Especial o bastante para ver os psicólogos três vezes por semana
e ter câmeras instaladas em seu quarto?

– Ah, meu Deus. – A diretora Wickham tirou os óculos e mordiscou a


armação. – Terei de pensar no que fazer com a srta. Donovan.

– Soube que a Academia Borland está aceitando novos alunos. – Se eu tinha


de ir, talvez pudesse levar Molly comigo.

– Agradeço por sua informação, Ananka. Mas não a chamei aqui para
discutir Molly Donovan. Gostaria de ter uma conversinha sobre você.

– É, quanto a isso... – Fiz uma careta ao falar. – Desculpe por matar aula
ontem. Sei que a senhora tentou me ajudar. Peço desculpas por decepcioná-
la.

– Sim, foi muito decepcionante, Ananka. – De algum modo a voz dela não
combinava com as palavras.

– Sei que minha mãe lhe contou sobre o incidente do museu. Todo mundo
está me vigiando como se eu fosse fugir para o México.

– Sua mãe parece pensar que você pode deixar a escola um pouco mais
cedo hoje. Mas não é por isso que quero conversar com você. Terminei de
ler seu trabalho e achei que merecia uma discussão.

Eu não pensava no trabalho havia mais de uma semana e fiquei mortificada


ao me lembrar do que tinha escrito.

– Desculpe por isso também. Tenho certeza de que não era o que a senhora
esperava.

– Isso é verdade. Mas é bom saber que depois de cinquenta anos na


Atalanta, ainda posso ter uma surpresa agradável.

– A senhora gostou? – Nunca desconfiei de que ela pudesse levar meu


trabalho a sério.

– É um trabalho de pesquisa extraordinário. Estou certa de que o sr. Dedly


vai ficar satisfeito quando voltar. Na realidade, eu não ficaria surpresa se
você recebesse um A no semestre. Mas diga-me, como descobriu a estação

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

da Ferraria Subterrânea embaixo da sinagoga Bialystoker?

– Andei explorando aqui e ali – eu disse baixinho.

A diretora riu.

– Você tem uma vida interessante, Ananka. Sabe de uma coisa, quando eu
era criança, meu avô costumava contar histórias sobre salas ocultas
embaixo de Manhattan. Ele dizia ter visitado algumas na juventude, mas
duvido de que estivesse em alguma missão nobre. Ao que parecia, ele era
meio trapaceiro.

– Ele deve ter sido um dos poucos que sobreviveram à peste – falei.

– Como? Que peste foi essa?

– Isso dá outro trabalho inteiro, diretora Wickham.

– Bem, adoraria ler quando você terminasse. Acredito que podemos publicar
este.

– Não! – eu disse meio rápido demais. Meu coração saltou quando pensei na
reação de Kiki. – Escrevi isso para a senhora. Não quero que mais ninguém
leia.

– O trabalho é seu, Ananka, mas insisto que reconsidere. Esse tipo de


informação deve ser partilhado com toda a cidade. Mas acredito que
tenhamos descoberto a origem de seus problemas acadêmicos. Você tem
um dom que vem sendo ignorado. Talvez tenhamos de dar outra olhada em
seu programa de curso.

Era bom saber que era superdotada, mas eu não achava que faria muito
diferença. Quantos pontos de QI são necessários para ordenhar vacas e
fazer queijo?

–Mas, diretora Wickham, amanhã será meu último dia na Atalanta. Minha
mãe não lhe contou? Vou para a Academia Borland na quinta-feira.

A diretora Wickham franziu o cenho.

– Isso é novidade para mim – disse ela, pegando o telefone. – Preciso dar
uma palavrinha com sua mãe. Poderia me dar licença?

– Claro – falei. O que quer que ela estivesse planejando, não ia dar certo.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

***

Quando cheguei ao corredor, eu tinha certeza de uma coisa. Em 48 horas eu


estaria na Virgínia Ocidental. Não tinha sentido lutar. Assim que as
Irregulares soubessem da verdade, nada mais me prenderia a Nova York.
Em uma demonstração incrível de descuido, eu tinha confessado um
segredo a alguém que mal conhecia, achando que nada adviria daí. Agora a
Cidade das Sombras mais uma vez corria o risco de ser descoberta, e era
tudo culpa minha.

Eu não podia encarar Betty, então matei a aula e fui para a biblioteca.
Peguei uma cadeira num terminal de computador, pretendendo digitar
minha confissão. Meu cotovelo bateu no mouse e a tela se iluminou. Uma
visitante anterior estivera lendo as colunas de fofocas online do dia. Uma
nota no Nova York Post anunciava que a rainha Livia da Pocróvia logo
voltaria à cidade para procurar pela sobrinha havia muito desaparecida.
Entrei em minha conta de e-mail e, com os dedos postados no alto do
teclado, parei para pensar. Minha desgraça era inevitável, e embora as
Irregulares não continuassem minhas amigas por muito tempo, eu precisava
ajudá-la enquanto pudesse. Mandei a coluna de fofocas por e-mail para Kiki,
abri uma nova página e digitei a URL do Metropolitan Museum of Art.

A Imperatriz Desperta tinha substituído uma exposição intitulada De Vênus


a Vargas: Uma Celebração da Forma Feminina. Não tive dúvidas de que foi
muito popular. Foi preciso pouca pesquisa para identificar a tela que vi
sendo transferida. A Odalisca em cinza era ainda mais adorável do que eu
me lembrava. Mas quando imprimi em cores, não vi prova de nada, a não
ser um travesseiro atrás do ombro da mulher. Navegando pelas fotos de
outras obras que estiveram na exposição, encontrei nus esparramados em
sofás, nus desfrutando de piqueniques e nus se pavoneando por parques. A
julgar pela arte, não lhes parecia faltar coisas que se pode fazer sem
roupas. Enquanto reprimia um bocejo, por acaso dei com uma tela de uma
loura grandona se olhando num espelho. Nem precisei ler o nome do artista.
Era a tela que Siu Fah descrevera. A tela que ela copiava.

Eu mal tinha terminado de imprimir as imagens das telas da exposição


quando o sinal tocou. Disparando pelos corredores apinhados, consegui
alcançar Betty antes que começasse o tempo seguinte.

– Não devia ter matado minha aula – ela se irritou quando a encontrei. –
Podia ter aprendido alguma coisa.

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Desculpe, mas eu estava fazendo bom uso de meu tempo. Trouxe para
você cópias das telas em exposição que foram substituídas pela Imperatriz
Desperta. Dê uma olhada nestas duas... Ainda estão no Metropolitan
Museum. Veja se percebe alguma coisa estranha.

– Quer me dar uma dica?

– Ainda não – eu disse. – Só estou me baseando num pressentimento. Quero


que as veja com olhos frescos.

– Tudo bem. Encontro você no banheiro das meninas na hora do almoço. –


Ela pegou os impressos e os enfiou na bolsa. – A propósito, ouvi algumas
colegas suas fofocando sobre Oona.

– Ouviu? – Eu estive ocupada demais para pegar as últimas fofocas.

– Arrã. Acho que Oona é a convidada de honra da vez. Todos os pais das
meninas ricas estão desesperados para receber a filha de Lester Liu para
jantar.

– Calculo.

– É, mas tem uma coisa. Parece que Oona não aceitou nenhum dos
convites. Está esnobando a todos.

– Ela é inteligente. Fazer com que se curvem uma ou duas vezes a deixará
ainda mais irresistível. Não há nada que essas meninas respeitem mais do
que alguém esnobe. Faz parte do plano dela.

– É, acho que faz sentido. Só que magoa pensar que Oona pode mesmo ter
se tornado uma traidora – disse Betty, infeliz.

Algumas horas antes, eu podia ter respondido com uma observação


maldosa. Agora fiquei em silêncio. Oona não era a única que traía as
Irregulares.

***

Quando tocou o sinal do almoço, peguei um sanduíche de hummus no


refeitório e ele explodiu quando dei a primeira dentada. Estava limpando a
mancha de meu suéter quando Betty entrou no banheiro, parecendo ter
visto um fantasma. Os olhos estavam vidrados, a peruca preta estava torta
e o diamante no nariz não estava lá. Uma aluna do primeiro ano a caminho

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

da pia parou boquiaberta para olhar Betty como se não conseguisse


entender o que havia de errado com a imagem.

– Ajeite seu cabelo – ordenei à meia-voz.

– Hein? – Era como se eu tivesse acordado Betty de um sonho.

– Olhe-se no espelho – exigi. – Qual é o problema? – perguntei enquanto ela


ajeitava a fantasia.

Betty ficou com o olhar vago e eu me perguntei se devia dar um tabefe


nela, como fazem nos filmes.

– Agora pode sair – falei à menina do primeiro ano, que tinha terminado de
lavar as mãos.

– Eu vi a Odalisca em cinza – disse Betty por fim.

– É? E aí?

– Você tinha razão. Tem uma coisa que não devia estar ali. Atrás do ombro
da mulher. Não dá para ver se olhar direto para ela. Você tem que ficar no
lugar certo.

– Anamorfose. – Fiquei contente em saber que não tinha alucinado no


museu.

– Ana-o-quê?

– É como se chama essas imagens ocultas. São ilusões de ótica. Você só


pode vê-las de determinados ângulos. E o que era?

– Um esquilo.

Ficamos em silêncio, olhando-nos no espelho. A tela que eu vira mostrava


uma mulher num ambiente turco. Não havia motivos para um esquilo estar
ali. Eu nem sabia se havia esquilos na Turquia.

– Tem certeza? – perguntei.

– Tenho. Havia outra tela da exposição com um esquilo oculto. O nome era
Vênus e Adônis. O esquilo está sentado num galho de árvore.

– Você acha...

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Eu não acho, Ananka. Eu sei. São pinturas de Kaspar. – E depois ela


começou a chorar.

***

No último tempo, planejei uma ousada escapada depois da aula. Meu


destino podia estar nas montanhas da Virgínia Ocidental, mas eu tinha de
achar uma maneira de adiar isso. Às quatro horas, disparei para a saída sem
esperar por Betty. Eu não sabia aonde ir, mas assim que estivesse em
segurança, entraria em contato com as Irregulares. Corri o caminho que
levava aos portões da escola e descobri minha mãe encostada num
parquímetro.

– Vai a algum lugar? – perguntou ela.

– Para casa? – eu suspirei. Era hora de admitir a derrota.

O metrô estava lotado de estudantes indo para casa, mas só uma tinha a
mãe acompanhando. Para esconder minha humilhação, pratiquei o olhar
vago dos viajantes exaustos, meus olhos passando pelos anúncios que
ficavam no alto do trem. O mais perturbador mostrava fotos lado a lado da
cabeça de um anônimo. A cabeça de antes tinha pouco mais de um trecho
árido de careca, enquanto na de depois brotava um cabelo grosso e
luxuriante. Uma marca de cabelo sintético em spray assumiu o crédito pela
melhoria. Por seis quadras, li e reli a legenda: "Nunca vão saber a
diferença!" Escondido atrás daquelas palavras, um significado místico me
escapava. Quando as portas do trem se abriram na Spring Street, eu sabia o
que era.

Naquela noite, fiquei sentada em meu quarto, olhando a parede por horas
sem fim, sem pretender ter qualquer contato com o mundo. Não me
incomodei de encher as duas malas que ainda estavam no chão do meu
quarto. Não me importava se isso significasse sair da cidade com as roupas
do corpo. Eu era a única pessoa que sabia que um crime terrível tinha sido
cometido. Continuava cismada com cinco fatos simples:

1. Lester Liu era um trapaceiro.


2. Oona Wong era uma traidora.
3. Eu também era.
4. Alguma coisa ruim estava prestes a acontecer.
5. De jeito nenhum eu podia sair de Nova York.

A porta de meu quarto se abriu e alguém entrou.

Kirsten Miller
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– Saia – pedi. – Vou fazer as malas depois.

– Soube que a Virgínia Ocidental é linda nesta época do ano. – Eu me virei e


vi Kiki sentada à minha mesa, totalmente à vontade. Desabotoou o casaco
preto e longo e atirou uma perna vestida de bota por cima da outra. –
Mande-nos um queijo gouda quando estiver acomodada.

– Minha mãe e meu pai sabem que está aqui?

– Shhhh. É claro que não. Mas eles não trancaram todas as janelas do
apartamento.

– Como está Verushka?

– Está acordada e parece um pouco mais humana. É cedo demais para ter
certeza, mas acho que a sra. Fei pode ser salvado a vida dela.

– Isso é maravilhoso. – Abri um sorriso amarelo. – Recebeu a história que


mandei para você? Livia está voltando a Nova York.

– Vamos nos preocupar com isso depois. Como você está?

– Triste. Esta pode ser a última vez que vejo você, até o verão.

Kiki ergueu uma sobrancelha.

– Ainda não vou entregar você para as vacas. Soube que você teve uma
noite interessante ontem. Quer me contar o que aconteceu?

– Betty não te falou?

– Eu perdi o primeiro telefonema dela. Quando finalmente consegui falar


com ela, ela estava perturbada demais para dizer coisa com coisa. Além
disso, imaginei que seria muito mais interessante ouvir de você.

– Bom, quando fui ver a exposição da Imperatriz com Oona, ainda havia
alguns trabalhadores em uma das galerias. Eles embalavam telas de uma
exposição anterior. Um deles se abaixou e vi que tinha uma tatuagem da
Fu-Tsang. Quando carregou uma tela numa plataforma móvel, eu o segui e
vi para onde a levava. Mas ele não a roubou. Só colocou em outra parte do
museu. Eu os vi pendurando a tela e pensando ter visto uma coisa estranha,
mas não podia ter certeza.

"Então hoje de manhã entrei na internet para verificar as telas da exposição

Kirsten Miller
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anterior. Todas eram de nus. Uma era A toalete de Vênus... A tela que Siu
Fah copiou antes de fugir. Betty foi ver as outras esta tarde. Disse que as
duas tinham esquilos onde não devia. Ela está convencida de que Kaspar as
pintou.

– Sim, ela conseguiu chegar até aí. O que você acha?

– Eu entendi, Kiki. Sei o que está acontecendo. Lester Liu e os Fu-Tsang


roubaram algumas telas da exposição de nus. Usaram a Imperatriz para
entrar nas galerias quando os alarmes estivessem desativados. De algum
modo trocaram as obras de arte. Aquelas que os trabalhadores penduraram
ontem à noite... Ou despacharam para outros museus... São todas falsas.
Por isso as crianças taiwanesas foram sequestradas. Ele as está obrigando a
fazer reproduções. Agora que elas terminaram, não há como saber o que
pretende fazer com elas. E acho que Betty tem razão. Acho que Kaspar está
com elas. Quem mais colocaria um esquilo em uma tela de Rubens? Era
uma mensagem secreta para nós.

– Excelente trabalho, dra. Watson – disse Kiki. – Mas eu sei de uma cosia
que você não sabe.

– O que é?

– Você viu a coleção de arte de Cecelia Varney na noite do jantar. Se Lester


Liu já é dono de obras de arte suficientes para encher um museu, por que ia
precisar roubar mais?

– Boa pergunta. – Kiki tinha razão. Não fazia sentido.

– Já considerou que ele pode não estar roubando as telas para si mesmo?
Lembra quando soubemos que Livia e Sidonia estavam com aquele
gângster russo?

– Oleg Volkov?

– Esse. Pesquisei um pouco quando você me contou. Você disse que as telas
roubadas eram todas de nus? – Eu assenti. – Desde que enriqueceu, Volkov
se tornou um dos maiores compradores de arte do mundo. Fez uma farra de
gastos por um bom tempo. Mas seu gosto é muito específico. Ele não liga
para estilo nem período. Nem acho que se importe se a obra é boa. Ele só
compra telas de mulheres nuas. Quanto maiores as mulheres, melhor, ao
que parece.

– Acha que Lester Liu roubou as telas para Oleg Volkov?

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– De que outra maneira Volkov completaria sua coleção se as telas que ele
quer não estão à venda?

– E Sergei Molotov? Onde ele entra nessa história?

– Ele também deve estar nessa. Talvez não esteja em Nova York só por
minha causa.

– O que acha que eles querem?

– Dinheiro, poder, vingança... Ou uma mistura dos três. Desconfio de que


vamos descobrir muito em breve.

– Tem outra coisa, Kiki. Você não vai gostar. Oona sabe o que está havendo.
Ela viu o cara da Fu-Tsang no museu, mas não fez nada. Ela deve estar no
esquema.

Os olhos de Kiki brilharam.

– E imagino que você tenha chegado a essa conclusão.

– Você ainda não acredita, não é? O que Oona precisa fazer? Escrever uma
confissão?

– Ela tem sido nossa amiga há anos e nunca nos deixou na mão. Antes de
condená-la, devemos uma coisa a ela.

– O quê?

– A oportunidade de se defender. É por isso que todas vamos nos reunir


amanhã ao meio-dia na casa de Lester Liu. Parece que você terá de
cancelar seus planos de viagem.

– Mas como vou conseguir isso? Todo mundo está me vigiando.

– Vamos criar uma distração. Não terá de ser nada grande, só o bastante
para você escapulir.

Foi aí que tive um de meus poucos momentos de gênio na vida.

– Tem tempo para fazer uma entrega esta noite? – perguntei.

COMO FALSIFICAR UMA OBRA DE ARTE

Kirsten Miller
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Eu nunca defenderia uma vida de crimes, mas a verdade é que em geral é


mais fácil falsificar uma obra de arte do que revelar uma falsificação. E por
isso que há falsificações em algumas das casas e museus mais refinados do
mundo. Na verdade, alguns dizem até que a Mona Lisa exibida no Louvre,
na França, não passa de uma cópia do original. Então quando chegar a hora
de comprar sua primeira obra-prima, é melhor saber o que está
enfrentando. Aqui estão algumas medidas que um falsificador rematado
pode tomar para fraudar você.

Ele vai escolher o tema com cuidado

É incomum (mas não erudito) que um falsário recrie uma obra de arte que
já existe. A maioria prefere produzir uma pintura nova e alardeá-la como
uma obra perdida de um artista morto e respeitado. Porém, um bom
falsificador pensará duas vezes antes de produzir um Picasso ou um Van
Gogh. Quanto mais famoso o artista, mais provavelmente estarão
envolvidas aquelas pessoas irritantes com seus microscópios como
"especialistas".

Um artista é contratado

Não importa se um falsificador não sabe pintar – há muita gente que pode
fazer isso. Infelizmente, qualquer pintor americano disposto a aceitar uma
encomenda de um falsário deve cobrar um preço exorbitante. (Ou pior,
exigir parte dos lucros!) Felizmente para a comunidade do crime, muitos
países, como a China, têm artistas jovens muito bem treinados que estão
dispostos a trabalhar por um preço baixo. Na maior parte do tempo, eles
nem precisam ser sequestrados.

Outra pintura deve ser sacrificada

Um falsário não pode simplesmente ir à loja de material de arte para


escolher suprimentos para sua pintura. Uma tela nova em folha é um sinal
certo de falsificação. Em geral, ele simplesmente vai comprar uma obra de
arte ruim que tenha a mesma idade da tela que está reproduzindo – e pintar
por cima. A fraude pode ser detectada por raios X, mas ele se certificará de
que ninguém olhe tão de perto antes que seu dinheiro esteja no banco.

Ele faz o dever de casa

Os especialistas costumam detectar falsificações examinando as telas e


tintas usadas em sua criação. Um bom falsário pesquisará os pigmentos e
instrumentos que o artista original teria empregado e se ater a eles –
mesmo que isto signifique moer umas cochonilhas para conseguir o tom
certo de vermelho (carmim).

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A arte deve sofrer os estragos do tempo

À medida que uma tela envelhece, aparecem na superfície rachaduras finas


(chamam-se craquelês). A não ser que um falsário queira esperar uma ou
duas décadas para que essas fissuras comecem a aparecer, ele terá de
recriá-las. Pode expor a tela ao calor, arranhar a superfície com um alfinete
ou misturar clara de ovo no pigmento. Não há uma técnica infalível, mas
qualquer uma das três – se benfeitas – enganará a maioria dos olhos.

Uma história inteligente é inventada

Um falsário não pode afirmar que herdou a tela de sua avó em Topeka.
Deve inventar o que se chama uma "proveniência". Isto é uma história de
obra que identifica seus danos ao longo de décadas ou séculos. Os
compradores devem ficar particularmente preocupados com histórias
românticas que envolvam famílias antigas e aristocratas que faliram em
épocas difíceis.

Os dedos são cruzados

Mesmo quando uma falsificação é detectada, em geral varrem para baixo


do tapete. Os ricos abominam admitir que foram ludibriados, e até os
museus às vezes deixarão que uma tela falsa fique em suas paredes
simplesmente para evitar o constrangimento.

CAPÍTULO TREZE

Fugitiva

Precisamente às 8h18 da manhã seguinte, uma bomba de inhaca foi atirada


na sala dos professores da Escola para Meninas Atalanta. Outras 22 foram
detonadas em rápida sucessão para fazer seu trabalho sujo nas salas de
aula, armários de material de limpeza e banheiros do prédio. A última
bomba foi detonada no saguão da escola enquanto as alunas e funcionaram
fugiam, muitas com ânsia de vômito e gritando de nojo. A culpada ficou à
pela vista da multidão que evacuava o prédio, rindo como uma louca do
caos que provoco. Embora uma máscara de gás escondesse a maior parte
de seu rosto, não havia como confundir o cachos ruivos e brilhantes de
Molly Donovan.

O gemidos das sirenes perfurava meus tímpanos. Três carros da polícia


guincharam e pararam na frente da escola, e uma equipa da SWAT saltou
da traseira de um furgão preto sem placa. Molly não resistiu à prisão –

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afinal, foi ela mesma quem chamou a emergência. Enquanto era algemada
e arrastada ao prédio, escapuli pela turba hipnotizada e me afastei
rapidamente da escola. Embora meu plano tivesse se mostrado um sucesso
estelar, não tive vontade de comemorar. Minha vida estava uma bagunça e
parecia mais fácil fugir do que ficar e me envolver numa pequena faxina de
primavera. Tinha contado mentiras demais a meus pais para me perdoar.
Não havia volta. Proteger o segredo da Cidade das Sombras tinha me
custado minha casa. Dividir esse segredo me custaria as Irregulares.

Fiquei em uma banca de jornais por mais ou menos uma hora, colocando
minhas fofocas de celebridades em dia, até que o dono me informou
grosseiramente que ele não era dono de uma biblioteca. Retornando à rua,
minha paranoia voltou. Viaturas policiais pareciam reduzir ao passar por
mim. Lojistas olhavam de suas vitrines. Por fim, comprei um copo de café e
um bagel e fui para o Central Park esperar pelas Irregulares. Alguns flocos
de neve solitários vagavam das nuvens no alto. Um homem de queixo
quadrado e moletom passou correndo, os punhos cerrados ao cortar o ar
gelado. Um sujeito de olho braços que esperava que um poodle terminasse
seus "negócios" foi obrigado a pular para fora do caminho do corredor.
Peguei a trilha perto da rua 78 e fui para as árvores na frente da mansão de
Lester Liu. A ponta de um par de asas surradas se projetava de sob um
arbusto e ouvi o cacarejar suave de uma galinha.

– Quem estão aí? – uma voz assustada chamou de entre as folhas. – O que
você quer?

– Howard? É você?

– Talvez – foi a resposta cautelosa.

– É Ananka. Lembra de mim? Sou amiga de Kaspar.

A cabeça de Howard Van Dyke apareceu no arbusto. Com a barba adornada


de folhas, ele podia ser um espírito da floresta.

– Ora, olá – disse ele alegremente. – Que gentileza a sua me fazer uma
visita. Quer entrar? – Ele separou os galhos e eu me enfiei no arbusto. A
clareira no meio era surpreendentemente espaçosa, com lugar suficiente
para mim, Howard, a galinha dele, os esquilos de Kaspar e um gato. Os
suprimentos de uma semana de salsichas viena e feijão enlatado estava
empilhado de lado.

– Parece que está bem abastecido – eu disse.

– Sim, é muito estranho. Pessoas diferentes me trazem mantimentos todo

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

dia. Na segunda, foi uma estrela de cinema chinesa. Ontem foi uma senhora
indiana adorável num vestido esplêndido.

– Era Betty – falei, mas não conseguia me lembrar de vê-la vestida de


estrela de cinema chinesa. – Todas são Betty. Ela adora andar disfarçada.

– Entendo. – Howard assentiu como se o que eu disse fizesse perfeito


sentido. – Ela disse que eu não devia morar no parque. Disse que preciso ir
para casa.

– Onde fica a sua casa? – O gatinho de Howard pulou no meu colo e eu


passei os dedos por seu pelo preto e macio.

– Eu morava ali. – Ele apontou para o lado oeste do arbusto. – Eu tinha


mulher e dois filhos. Às vezes eu os vejo, mas ele não me veem. Não sabem
mais quem eu sou.

– E por que não? – perguntei. – Por que não mora com eles?

– Eu cometi um erro. – Howard baixou a cara na barba e começou a chorar.


– Comprei ações ruins e perdi todo o nosso dinheiro. Pensei que podia
esconder a verdade, mas minha mulher descobriu quando levaram a
mobília. Foi quando decidi morar no parque. Não posso ir para casa. Minha
família fica melhor sem mim.

– Como sabe disso? Já perguntou a eles como eles se sentem?

Howard levantou a cabeça, surpreso.

– Foi isso que a estrela de cinema disse.

– E o que você disse a ela?

– Eu tenho medo.

– Não pode se esconder para sempre, Howard. Um dia terá de ir para casa.
Talvez eles o perdoem. Talvez não. Mas você precisa dar essa chance a
eles. É justo. – Só dizer isso fazia com que eu me sentisse culpada. Olhei o
gatinho ronronando no meu colo. – Howard? Onde conseguiu esse gato?

– É o gato de Kaspar. Ele achou no dia em que foi salvar as cobras.

– Como assim, salvar as cobras?

– Ele não queria que outras cobras fossem comidas, então foi salvá-las.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Depois o homem do terno apareceu e o levou.

Ouvi uma Vespa ao longe, Kiki tinha chegado ao Upper East Side.

– Howard, quero que escute com atenção, está bem? Cuide muito bem
desse gato. Não o perca de vista e não deixe que ele se perca. Daqui a
alguns dias, Kaspar vai voltar para pegá-lo.

– Ele vai? – Howard ficou superfeliz. – Você vai salvar Kaspar?

– Vou. E ele vai ficar muito feliz se você ainda estiver com o gato. – Olhei
para o gatinho e contei de novo. Não havia como errar. O animal tinha seis
dedos em cada pata.

***

Enquanto estava visitando Howard, começou a primeira nevasca da


estação. Flocos gordos de neve se lançavam na cidade. Penduravam-se em
galhos e grudavam nas calçadas, transformando New York num cenário de
filme em preto e branco. Os sons da cidade ficaram abafados e os sinais de
trânsito balançavam no vento, os globos verdes e luminosos a única cor que
restou na Quinta Avenida. Neste mundo silencioso e paralisado, a mansão
branca e imensa de Lester Liu assomava na Quinta Avenida como a
Fortaleza da Solidão.

Kiki Strike acorrentou a Vespa em um banco do parque de frente para a


casa de Lester Liu enquanto Betty, DeeDee e Luz convergiam para nosso
ponto de encontro de três direções diferentes. Ninguém sorria.

– Um milhão de dólares para a primeira pessoa que adivinhar o que achei no


parque – informei ao grupo.

– Não estou com humor para joguinhos – disse Luz. – E você não tem um
milhão de dólares.

– Conte logo, Ananka. – As pálpebras de DeeDee caíram de exaustão.

– Tudo bem – fiquei irritada. – Acabo de bater um papinho com o amigo de


Kaspar, o Howard, e ele está dividindo um arbusto com o herdeiro da
fortuna Varney.

– Howard tem um gato de seis dedos? – A sobrancelhas de Kiki tocou a beira

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do gorro de tricô preto.

– É. Kaspar achou no dia em que foi sequestrado.

– Kaspar? – Os olhos de Betty cintilaram ao ouvir o nome dele. A coisa era


séria.

– Isso quer dizer que podemos ter a primeira família do crime de Nova York
expulsa de sua mansão elegante? – Luz sorriu com malícia.

– Pensei que estávamos tentando manter a mente aberta, Luz – Kiki


suspirou.

– Neste exato momento, estou tentando não morrer congelada. – DeeDee


tremeu e sacudiu os flocos de neve das trancinhas. – Será que podemos
começar? Fiquei acordado a noite toda preparando mais Fille Fiable. – Ela
colocou a mão por dentro do casaco e sacou um vidro grande de perfume. –
Se eu não descansar logo, vou desmaiar.

– Vá para casa, se estiver cansada – propôs Kiki. – Já fez o bastante por hoje.

DeeDee sacudiu a cabeça.

– Nem pensar. Vou dormir muito melhor quando descobrir o que está
havendo.

– Tem certeza de que quer saber? – perguntou Luz.

– Não comece com isso de novo – alertou Kiki

***

Tive a sensação de que estávamos sendo esperadas. O mordomo abriu a


porta e deu um passo para o lado em silêncio. Lester Liu nos recebeu no
saguão, a bengala numa das mãos e um lenço com monograma na outra.
Sua cabeça de repente se voltou para trás e inclinou para a frente num
espirro violento. Ele enxugou o nariz e colocou o lenço no bolso do paletó.

– Boa tarde, senhoras. – Sua voz, normalmente suave, estava áspera e


nasalada. – Minha filha desconfiou de que vocês podiam passar por aqui
hoje. Perdoem-me por não oferecer minha mão. Receio estar com uma gripe
terrível. Não quero colocar vocês em risco.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Olhei para DeeDee e entendi, pelo olhar apavorado, que a gripe de Lester
Liu tornava nosso Fille Fiable inócuo.

Kiki foi direto ao assunto.

– Oona está?

– Está sim. Está em seu quarto, fazendo a prova do vestido que vai usar na
abertura de gala amanhã. Eu ficaria feliz em levá-las lá. – Lester Liu parou
para me abrir um sorriso condescendente. – Desde que a srta. Fishbein
prometa não andar por aí de novo.

Kiki falou por mim:

– Vamos ficar bem atrás do senhor, sr. Liu.

– Então, façam a gentileza... Acompanhem-me, senhoras. – Ele gesticulou


para uma porta cravejada e buracos de pregos. Era a porta que estava
bloqueada na primeira vez que visitei a mansão. As outras meninas
deslizaram para dentro, mas eu hesitei na soleira. O ar na ala leste era
espesso de poeira. Partículas mínimas cintilavam nas tiras finas de luz do
dia que se espremiam pelas frestas das janelas. A pouca mobília parecia ser
estofada de pelo cinza fosco. Achei difícil acreditar que Oona Wong
passasse muito tempo numa parte da mansão que parecia e cheirava a um
mausoléu.

– Pode ficar aqui, se preferir, srta. Fishbein. – Pude ouvir o humor na voz de
Lester Liu. – Sukh cuidará para que fique longe de problemas.

Eu não queria ficar com o dublê de cabelo feio de Gengis Khan. Corri até
Betty, Luz e DeeDee, que se espremiam no meio da sala.

– O senhor abriu a ala leste – observou Kiki calmamente enquanto apreendia


tudo. – Não está preocupado com a conta do aquecimento?

Lester Liu nos guiou a uma sala de estar vazia.

– Creio que posso pagar por todas as comodidades modernas necessárias,


srta. Strike. Agora que minha filha veio morar comigo, precisei de mais
espaço. Esta ala da mansão servirá como seus aposentos particulares.
Como pode ver, ainda temos de decorar um pouco. – Meus olhos passearam
pelo papel de parede desbotado decorado com flores de lótus entrelaçadas
e trechos de mofo preto que escorriam. Se a casa não fosse assombrada,
era um desperdício de uma excelente oportunidade. Kiki deve ter pensado a
mesma coisa.

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– Como está sua fantasma? – perguntou ela. – Ela finalmente desapareceu,


agora que Oona está aqui com o senhor?

Lester Liu riu, o que provocou um espirro.

– Não. A fantasma ainda está conosco. Não espero que vá embora. Sabe o
que são fantasmas, srta. Strike?

Andamos por um jardim de inverno, seu teto de vidro abobadado coberto de


neve. Um emaranhado de plantas mortas foi esmagado sob nossos pés.
Enquanto pisávamos no caule petrificado de uma palmeira, senti Luz puxar
minha manga. Nós duas sabíamos que Oona nunca teria ido tão longe sem
voltar. Era evidente que Lester Liu não estava nos levando a ela, mas Kiki
pareceu não perceber. Dei um tapinha em seu ombro, mas ela preferiu me
ignorar.

– Alguém sabe o que são fantasmas, sr. Liu? – perguntou ela.

– Eu sei. Os fantasmas são o passado vivo. Ninguém pode escapar do


próprio passado, srta. Strike. Não eu. Nem você. Nem Cecelia Varney. Sabe
por que a srta. Varney se trancou nesta mansão? Ela acreditava que era
assombrada. Descobriu que sua fortuna não vinha de fazendas de batatas,
como sempre pensou, mas das fábricas de armamento do pai. Um médium
a convenceu de que os espíritos das pessoas que foram mortas por essas
armas um dia se vingariam. Ela cedeu toda uma ala de sua mansão aos
espíritos na esperança de aplacá-los, e tentou dissipar sua fortuna para que
nenhum legatário humano herdasse também sua culpa.

– Então ela não estava preocupada com a conta do aquecimento.

– Não, srta. Strike. A srta. Varney compreendia que o passado nunca vai
embora. A não ser que tomemos medidas, tudo um dia voltará para nos
assombrar.

Depois do jardim de inverno, ficava um imenso salão de baile revestido de


painéis de madeira. Uma luz se derramava por baixo de uma porta na
extremidade do salão. Agora estávamos imersas na ala imensa e vazia da
mansão. O estalo agudo da bengala de Lester Liu no piso de madeira de
repente parou.

– Ah, chegamos – disse Lester Liu. – Vão descobrir o que procuram dentro
deste aposento.

– Acho que vou ficar aqui – murmurou Luz.

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– Eu também – DeeDee concordou. Betty não se mexeu.

– Vamos, senhoras, o que há para se temer?

Kiki me deu um cutucão forte. Enquanto eu passava pela porta, ela ficou
para trás, parada, de braço dado com Lester Liu. Eu sabia que ela podia
derrubá-lo com um único soco. Girei a maçaneta, mas ela parecia
emperrada.

– Não abre. – Minha boca estava seca e eu me sentia meio tonta.

– Então sugiro que destranque – aconselhou Lester Liu.

Senti a tranca estalar entre meus dedos e prendi a respiração enquanto


abria a porta. Ali, sentadas no chão de um quarto empoeirado, havia mais
de uma dúzia de pessoas, de mãos e pés amarrados, os olhos vendados e
com mordaças enfiadas nas bocas. Não pude ver nada além do alto de suas
cabeças. Todas, exceto uma, tinham cabelos pretos.

– Surpresa! – exclamou uma voz conhecida.

Sergei Molotov entrou no campo de visão portando uma pistola. Tentei


bater a porta na cara dele, mas Molotov agarrou meu braço e me puxou
numa chave de cabeça, a cara espremida na minha têmpora. Eu o ouvi
fungar no meu pescoço.

– Você toma banho? Tem um cheiro repugnante. Parece de sovaco. – Ele


tinha acabado de dar uma bela fungada no Fille Fiable.

– Solte-me. Sou uma agente dupla – cochichei. – Estou trabalhando para o


sr. Liu.

– É mesmo? – Sergei parecia confuso e senti seu braço afrouxar.

– O que está fazendo, sr. Molotov? Coloque a menina com as outras crianças
– ordenou Lester Liu. Enquanto ele estava distraído, as Irregulares
atacaram. Mas antes que Kiki pudesse descer um murro, Lester Liu puxou
uma adaga comprida da bengala. A ponta pousou na base do pescoço de
Kiki. As outras meninas ficaram paralisadas.

– Parece que seu passado voltou para assombrá-la, srta. Strike.

– Olá, princesa. – Molotov olhou Kiki com desprezo. – É bom vê-la

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novamente. E como está minha velha amiga Verushka Kozlova? É verdade o


que dizem os jornais... Que é possível que já esteja morta?

Kiki o ignorou e se virou para Lester Liu.

– Confia neste homem? Está ciente de que ele tem o hábito desagradável de
assassinar seus empregadores, não é? Quem sabe o que vai fazer com
você.

– Isso seria motivo de preocupação se o sr. Molotov fosse meu empregado. –


Lester Liu baixou a adaga e abriu um sorriso presunçoso para Kiki. – Mas ele
recebe ordens da chefe desta operação... Sua queria tia Livia. Não consigo
entender por que ela ia querer me prejudicar quando nosso acordo tem se
mostrado mutuamente benéfico. Ela entregará a seu patrono, Oleg Volkov,
algumas obras de arte que ele deseja e o sr. Volkov generosamente
financiará a volta de Livia a Nova York. Ela, por sua vez, me dará seu mapa
dos túneis subterrâneos. Como bonificação, poderia desfrutar de minha
vingança. Agora, senhoras – disse Lester Liu, encantador como sempre –,
poderiam se juntar à srta. Fishbein? Desculpem-me se seus aposentos estão
meio apinhados, mas não pretendemos mantê-las como hóspedes por muito
tempo. Sr. Molotov, poderia imobilizar as meninas, por favor? Prefiro não ter
nenhum perturbação esta noite.

– Você vai nos matar, imagino – disse Kiki enquanto Molotov amarrava suas
mãos às costas.

– Ah, Deus, não. – Lester Liu riu. – Sou um homem de negócios, e não um
assassino. Não pretendo matar suas amigas. Pretendo vendê-las. Existem
países com demanda por pessoas de sua idade por um preço muito alto.
Quanto a você, srta. Strike, não é mais preocupação minha. Sua tia pode
fazer com você o que preferir, embora eu não possa deixar de ter
esperanças de que os planos dela incluam muita dor.

– E Oona? – perguntou Kiki.

Lester Liu lambeu os lábios como se saboreasse uma ideia deliciosa.

– Tenho um castigo especial em mente para a menina que diz ser minha
filha. Devo admitir que estou ao mesmo tempo impressionado e apavorado
com a ganância da menina. Comprei a confiança dela por uma pechincha.
Nem imaginam como foi fácil colocá-la contra vocês. Ela não queria nada
além da riqueza de uma imperatriz. Acho que concordará que é adequado
que ela partilhe do mesmo destino.

– Sabe de uma coisa, há um problema com seus planos – disse Kiki. – O

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mapa de Livia dos túneis é inútil. Seus homens seriam devorados pelos
ratos em minutos.

– Isto não é mais problemas, srta. Strike. Por que acha que me esforcei
tanto para conquistar a confiança de minha filha quando eu podia ter
matado todas vocês? Ela me contou seu segredinho. Tenho o que preciso
para afastar os ratos. Agora, se me derem licença, tenho uma festa para
planejar.

Molotov desligou o interruptor e nos deixou no escuro. Tentei soltar minhas


mãos, mas a corda queimou meus pulsos.

– Ei, Kiki. Esta seria a hora errada para dizer que eu avisei? – Era a voz de
DeeDee.

– Esta seria a hora errada para dizer que Oona estaria morta se eu saísse
daqui antes que o pai dela tenha a oportunidade de matá-la? – acrescentou
Luz.

– Kaspar! Kaspar? Você está aqui? – sussurrou Betty.

– Hummm-hummm – disse uma voz abafada.

– Acha que alguém vai nos ouvir se gritarmos? – perguntei.

– Quer que eles nos amordacem também? – perguntou Kiki. – Acalmem-se.


Vamos descobrir um jeito de salvar Oona.

– Salvar Oona? – cuspiu Luz. – Caso tenha se esquecido, ela é a razão de


estarmos nessa barafunda. A traidorazinha gananciosa até contou a pai
sobre o perfume repelente de ratos. Digo que a gente deve salvar a própria
pele e deixar que Oona receba o que espera por ela.

– Você a deixaria morrer num caixão hermeticamente fechado? Deixaria que


o cadáver dela ficasse em exposição no Metropolitan Museum of Art? –
perguntou Kiki. – Não importa o que tenha feito, ela não merece isso.

– O que quer dizer? – sussurrou Betty.

–Não entendeu? Foi o que Lester Liu quis dizer por partilhar o destino da
Imperatiz. É o que ele planeja para ela.

– Ah, tenha dó – disse Luz. – Ele não vai matá-la. Como explicaria o
desaparecimento da própria filha?

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– Boa pergunta – observei.

– Sepultada para sempre no Metropolitan Museum of Art. Isso é horrível –


disse DeeDee pensativamente.

– Ninguém vai morrer nem ser vendida como escrava. – Era uma voz de
homem conhecida.

– Kaspar! – gritou Betty.

As cortinas das janelas se abriram o suficiente para que uma luz fraca
entrasse na sala e revelasse um Phineas Parker relativamente limpo e
incrivelmente bonito.

– Oi, Betty. – Kaspar estava radiante enquanto soltava as amarras. – Achou


meus esquilos?

– Foi assim que soubemos que as telas no museu eram falsificações – disse
ela. – É tão bom encontrar você. Eu... quer dizer, nós... estamos procurando
por você há semanas.

– É bom que vocês tenham me encontrado também.

Eu podia ver que os sentimentos dele por Betty não tinham mudado.

– E aí, Kaspar, como terminou sendo raptado? – perguntei, sentindo-me um


tanto constrangida por ser uma testemunha cativa do reencontro deles. –
Howard disse que você estava tentando salvar umas cobras, é isso?

– Pode-se dizer que sim – respondeu Kaspar com uma risada. – Na manhã
depois de seu jantar, Howard e eu estávamos tomando café da manhã
quando vi um furgão de entregas de uma empresa chamada Tasty
Treasures parar na frente da mansão. Eu tinha certeza de que era a mesma
que eu vira entregar as cobras. Então, quando o motorista entrou na
mansão, eu subi de fininho para ver o que tinha dentro do furgão. Descobri
gaiolas apinhadas de cobras, macacos e lagartos. Eu não podia soltá-los na
rua... Tinha dado minha palavra a Betty. Eu tentava pensar num plano
quando o entregador voltou. Eu o ouvi falando com um russo sobre um
carregamento de gatos que tinha sido despachado para a Malásia. Acho que
os gatos de seis dedos são considerados amuletos da sorte por lá. O
entregador admitiu que ficou com um para ele. Olhei para baixo e vi um
gatinho enroscado no chão do furgão. Eu não sabia mais o que fazer, então
o peguei e corri. É claro que o russo me viu e me seguiu ao parque. Howard
conseguiu fazê-lo tropeçar, o que me deu tempo suficiente para escrever
um bilhete para Betty. Não sei o que teria me acontecido se eu não tivesse

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alguns desenhos meus no bolso. Quando ele percebeu que eu era artista,
me trancou no porão com as outras crianças.

Kaspar se virou para Betty.

– Ficou preocupada comigo?

– Muito – sussurrou Betty.

– Chega desse mela-cueca – intrometeu-se Luz. – Como você se soltou?

– Um presente de Oona. – Kaspar ergueu um canivete retrátil minúsculo. –


Devia ter um pouco mais de confiança nas suas amigas.

Os olhos de DeeDee se estreitaram.

– Por que Oona lhe deu um canivete?

– Para nos ajudar a fugir. Se não fosse por Oona, todos estaríamos
espremidos num engradado agora mesmo. Uma das meninas taiwanesas
desapareceu depois que terminamos as pinturas e os guardas decidiram
que era arriscado demais nos manter no mesmo lugar. Eles pretendiam nos
despachar para fora de Nova York, mas Oona convenceu o pai a nos trazer
para cá, para o caso de precisar fazer mais algum trabalho.

"Na noite passada, ela me trouxe a faca e um kit de chaveiro. Ela nos disse
para escapar amanhã à noite, enquanto todos estão na abertura da
exposição.

– Estar seria uma má hora para dizer que eu avisei? – perguntou Kiki a
DeeDee.

– Só porque Oona poupou Kaspar não quer dizer que seja uma santa –
respondeu DeeDee asperamente. – Ela ainda ajudou Lester Liu a roubar as
telas.

– Errada de novo – disse Kaspar. – Oona nunca esteve aliada ao pai. Ela vai
denunciá-lo amanhã durante a festa. Descobrimos de onde ele tirou os
nomes das crianças que sequestrou e Oona sabe onde todas as telas estão
escondidas. Ela quer humilhá-lo.

– Por que ela contou tudo isso a você? – Luz escarneceu dele. – Você é
praticamente um estranho.

– A quem ela devia contar? – disse Kaspar. – Pelo que eu soube, nenhuma

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de vocês acreditava nela.

– Podíamos ter acreditado, se ela se confidenciasse com a gente –


murmurou Betty.

– Ah, meu Deus, o que foi que fizemos? – DeeDee gemeu enquanto
começava a apreender a verdade.

–Oona sabe em que tipo de perigo se meteu? – perguntou Kiki.

– Não – disse Kaspar. – Ela acha que enganou o pai.

– Me desamarre – exigiu Kiki.

– Eu o farei, se insistir, mas Molotov vai voltar para nos ver mais tarde. Não
teremos nenhuma chance de escapar amanhã se estiver faltando alguém
quando ele voltar.

– Me desamarre – repetiu Kiki. – E desamarre Ananka. Conhecemos a


mansão e alguém tem que encontrar Oona antes que seja tarde demais.

COMO PREVER O CLIMA

Durante anos, eu me convenci de que os meteorologistas de Nova York se


empenhavam em me enganar. Toda manhã, eu via suas previsões. Ria de
suas piadas bregas, admirava seus dentes superbrancos e acreditava em
tudo o que me diziam. Como consequência, fiquei soterrada em nevascas,
ensopada em tempestades e assada viva durante ondas de calor. Por isso
aprendi a confiar em meus próprios sentidos e procurar por sinais de que
um tempo desagradável pode estar a caminho.

As abelhas zumbem mais embaixo

Quando uma tempestade está se aproximando, o ar fica denso de umidade,


o que significa que os insetos (e as aves que os comem) costumam zumbir
mais perto do chão. Outros animais, inclusive gatos e cães, têm sido
famosos por prever tornados e terremotos, então se Rover começar a agir
como se estivesse possuído, pode ser hora de procurar um abrigo.

O som fica mais nítido

Não, você não está desenvolvendo super poderes. O fato de que pode ouvir
aqueles homens mascarados sussurrando a uma quadra de distância
significa que uma frente baixa de pressão está se aproximando. Prepare-se
para um ou dois dias de tempo ruim.

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A fumaça manda sinais

Olhe as chaminés à sua volta. Se a fumaça subir reta no ar, pode preparar
seu piquenique ou lançamento de foguetes. Se ela se achata ou zanza pelo
céu, você provavelmente vai precisar uma capa de chuva.

O céu muda de cor

Como qualquer pastor de ovelhas profissionais lhe dirá, um céu vermelho no


final da tarde é previsão de tempo bom, enquanto um céu vermelho pela
manhã indica chuva a caminho. Mas se por acaso você vir um arco-íris a
oeste, não se incomode em procurar o lendário pote de ouro. Procure seu
guarda-chuva.

O vovô começa a reclamar

Os idosos podem prever o tempo muito bem. Suas articulações coloridas em


geral indicam queda na pressão barométrica, o que significa que a chuva
está chegando.

As catingas começam a se demorar

Há dias em que a cidade de Nova York parece ter o cheiro de um banheiro


público. Quando está se aproximando um tempo ruim, o cheiro costuma
ficar mais forte. Se sua casa é cercada de flores e árvores (e não latas de
lixo, cocô de cachorro e canos de esgoto), talvez isto não seja ruim.

CAPÍTULO QUATORZE

Caça ao lixo

– Fique bem atrás de mim e faça o que eu fizer – ordenou Kiki. Ela arrombou
a trance de nossa porta e se esgueirou em silêncio pelas paredes, parando
de vez em quando para tentar ouvir sinais de movimento. Vestida de preto,
Kiki podia desaparecer nas sombras. Mas embora eu tivesse trocado meu
suéter vermelho pela jaqueta militar de Luz, ainda me senti visível e me
xinguei por não ter me preparado melhor.

Tínhamos acabado de colocar a ponta de nossos sapatos na poça de luz que


vinha do saguão da mansão quando a campainha tocou e ouvimos passos
descendo a escadaria. Kiki deslizou para o escuro. Quando tentei segui-la,
tropecei no meu próprio pé e caí de bunda com um baque suave. Os passos

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no saguão pararam, Kiki esticou a mão e com um puxão rápido me colocou


de pé. Nós nos achatamos na parede enquanto os passos se aproximavam e
o mordomo aparecia na porta. Sukh ficou imóvel, ouvindo, os olhos
lentamente percorrendo a sala. Estávamos bem atrás dele, a cerca de um
metro. Fechei os olhos e tentei não desmaiar quando percebi o que pendia
de seu braço. Era a mortalha jade da Imperatriz.

– Esqueça o que acabou de acontecer – sussurrou Kiki no meu ouvido depois


que Sukh voltou ao saguão. – Esqueça tudo agora, ou nenhum de nós vai
conseguir sair daqui.

A porta da frente se abriu.

– Posso ajudá-la? – ouvimos o mordomo dizer.

– Oi! – Minha cabeça virou de repente para Kiki. Era a voz de Iris. – Estou
procurando minha amiga Oona.

– Você não é meio nova demais para ser amiga da srta. Liu? – Sukh parecia
cético.

Iris se ofendeu.

– Só sou baixa para minha idade. Posso vê-la?

– A srta. Liu está indisposta no momento. Talvez possa voltar em outra hora.

– Tem algum problema com ela? – Eu entendi que Iris sabia que havia
alguma coisa errada. – Ela está doente?

– A srta. Liu está bem – respondeu o mordomo, irritado. – Mas não está
recebendo visitas hoje.

– Alguma das outras meninas passou por aqui?

– Não que eu saiba. Bom dia, senhorita.

– Por favor, diga que Iris esteve aqui! – gritou Iris enquanto a porta se
fechava.

– O que ela estava fazendo? – cochichei para Kiki enquanto os passos de


Sukh ficavam mais fracos. – Ela não devia estar na escola?

– E você também não devia? – perguntou Kiki.

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Quando por fim a barra ficou limpa, Kiki virou pelo canto e partiu para a
escada. Eu teria dado pelo menos uma parte de meu corpo para ficar na ala
abandonada da mansão. Embaixo do brilho fraco de lustre de cristal, não
havia onde se esconder. A gente podia muito bem ser alvo de papelão em
um estande de tiros. No alto da escada, nos vimos na extremidade de um
longo corredor. Havia oito portas fechadas para arrombar. Nossa vida
dependia de decidirmos corretamente.

– A maioria desses cômodos não estava sendo usada quando plantei os


grampos – cochichou Kiki. – Oona deve estar em um deles. – Ela foi na ponta
dos pés até a primeira porta, escutou com a orelha colada na madeira e
espiou pelo buraco da fechadura. – Pode ser esta – disse ela, mergulhando
para dentro do quarto.

As cortinas estavam abertas e uma luz prateada e clara banhava o quarto


magnífico. Do lado de fora, o ar estava denso de neve e o sol da tarde era
um borrão fraco. Junto à parede mais distante havia uma cama de
baldaquino antiga com as cortinas de veludo verde fechadas. Com os
passos abafados por um caríssimo tapete persa, disparei pelo quarto e
puxei de lado o tecido pesado. Alguém dormia por cima das cobertas, o
cabelo preto e brilhante esparramado no travesseiro.

– Oona? – sussurrei. Como não houve resposta, cutuquei o corpo. Era frio e
rígido sob meus dedos. – Tem alguma coisa errada com ela – eu disse a Kiki.
Sem pensar, puxei mais as cortinas e a luz caiu na visão medonha. A mão
de Kiki cobriu minha boca, abafando o gripo que tentava escapar. Deitado
na cama estava um cadáver vestido somente com um roupão de seda
vermelha. Era tarde demais. Oona estava morta.

– Ananka, Ananka, escute. Não é Oona. – Kiki se recusava a tirar a mão, até
que abri os olhos para olhar mais uma vez. A pessoa na cama tinha o
mesmo tamanho de Oona, e até no escuro era fácil ver que antigamente
também tinha sido bonita. Mas agora sua pele coriácea estava esticada
sobre as maçãs do rosto. A ponta do nariz esfarelava e a boca pendia aberta
num gripo interminável. Era a múmia.

– Esta é a Imperatriz? Quanto anos tinha? – consegui murmurar depois que


parei de ofegar. Eu sempre imaginei a Imperatriz como uma mulher mais
velha, mas o corpo na cama parecia extraordinariamente jovem.

– É difícil dizer – respondeu Kiki. – Quando morreu, ela não devia ser mais
velha do que nós. Estou começando a ter pena da coitadinha. Ela foi
assassinada, o túmulo foi saqueado e depois sua múmia largada num
quarto no Upper East Side.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– O que acha que Lester Liu vai fazer com ela?

– O que quer que ele tenha em mente, duvido que seja adequado para a
Imperatriz.

A ideia de uma múmia de dois mil anos enterrada sob o lixo numa caçamba
ou decorando o covil de um colecionador excêntrico era insuportável de tão
triste.

– Temos que salvá-la – eu disse a Kiki. – Mesmo que seja uma traidora, ela
não merece isso.

– Vamos tentar – concordou Kiki. – Mas os vivos vêm em primeiro lugar.

***

De volta ao corredor, Kiki se aproximou com cautela de um segundo quarto.


Estávamos a centímetros de distância quando a porta se abriu um pouco e
ouvimos uma risada familiar do outro lado. Fiquei paralisada de pavor. Em
segundos eu teria estado cara a cara com Lester Liu se Kiki não tivesse
agarrado minha mãe e me puxado pelo corredor. Uma porta se abriu
enquanto passávamos. Oona estava sentada sozinha no chão de um quarto
enorme, perigosamente perto de uma lareira acesa, grande o bastante para
assar um porco premiado. Kiki e eu entramos de mansinho e fechamos a
porta em silêncio. Ouvi Oona falando suavemente, como que a uma
companheira invisível. Ela encostara a foto da mãe no chão e a cercara de
tangerinas, maçãs e limas. No colo havia uma pilha de papéis coloridos que
de longe pareciam dinheiro. A cada poucos segundos, Oona pegava um
punhado de notas e atirava nas chamas. Eu tinha certeza de que ela
perdera o juízo e comecei a falar, mas Kiki pôs a mão no meu ombro.

– Espere – murmurou ela em silêncio.

Quando a última tira de papel foi transformada em cinzas, Kiki e eu nos


aproximamos da lareira. Ao ouvir nossos passos, Oona olhou por sobre o
ombro antes de voltar a fitar o fogo.

– Ela tem o que precisa agora? – perguntou Kiki delicadamente.

– Isto é só o começo. – O rosto de Oona estava corado do calor. – Tenho


quatorze anos para compensar.

– O que estava fazendo? – perguntei.

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– Mandando dinheiro para a outra vida para o fantasma da minha mãe. Ela
vai precisar dele, quando finalmente chegar lá. – Oona sorriu tristemente
quando viu a confusão que devia estar escrita na minha cara. – Na China,
muita gente acredita que o que você queima neste mundo pertence a seus
ancestrais no outro mundo. Eu devia ter feito essas oferendas há muito
tempo, mas fui uma péssima filha. Se minha mãe é um fantasma ansioso, a
culpa é minha. Era meu dever cuidar dela e punir Lester Liu. – Ela se
levantou e espanou as cinzas das roupas. – A porta estava trancada. Você
arrombou?

Kiki ergueu uma sobrancelha.

– Não, abriu quando a gente passou correndo por ela.

Oona assentiu.

– A fantasma deve ter aberto pra vocês. Mas isso não quer dizer que devam
ficar. É perigoso demais ficarem aqui agora.

– Tarde demais – eu disse a ela, deixando passar o comentário da fantasma.


– Já fomos sequestradas. Acabamos de ver Kaspar lá embaixo. Ele nos
contou de seus planos. Por que não contou para nós? A gente teria ajudado.

– Vocês estavam ocupadas e era minha responsabilidade... Não de vocês.


Tive um pressentimento de que meu pai estava armando alguma, mas não
conseguia deduzir o que era. Tive de me aproximar dele e fazê-lo acreditar
que ele me conquistara. Então aceitei os presentes, gastei seu dinheiro e fiz
o jogo dele. Depois de um tempo, eu o convenci. Acontece que sou uma
atriz melhor do que eu pensava, porque acabei convencendo vocês,
também. Mas no minuto em que descobriram que eu era filha de Lester Liu,
todas estavam disposta a acreditar o pior de mim.

– Kiki não. Ela sempre confiou em você. Mas tem razão sobre o restante de
nós. Prometo que isso nunca mais vai acontecer. – Doía admitir que eu fora
uma boba, mas eu sabia que dizer a verdade era a única maneira de
preservar a amizade de Oona.

– Não se preocupe. Eu a perdoo – disse Oona com tristeza.

– Então esse tempo todo você estava tentando se vingar da morte de sua
mãe? Se tivesse nos contado o que seu pai planejava...

– Eu não sabia. Tive minhas desconfianças depois que conheci Siu Fah. Mas
só soube que ele estava roubando telas do museu quando vi o cara da Fu-
Tsang na noite em que você foi flagrada. Depois que saímos, eu disse a meu

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pai que tinha entendido tudo e que queria ajudar. Era a única maneira de
descobrir onde ele escondia as crianças taiwanesas, antes que alguma coisa
terrível acontecesse com elas. Mas tinha de guardar segredo, se quisesse
fazer ele acreditar que eu estava do lado dele.

– A gente sabe. – Não pude deixar de demonstrar minha decepção. – Você


contou a ele sobre os ratos. Isso não foi muito inteligente, Oona. E se
alguma coisa sair errada? Se ele colocar as mãos no mapa da Cidade das
Sombras, a cidade toda vai correr perigo.

O gênio de Oona se inflamou.

– Eu pareço assim tão idiota? Não contei a ele sobre o perfume. Dei a ele
minha velha Flauta de Hamelin Reversa. Se ele conseguir o mapa, os
homens dele vão virar comida de rato no minuto em que entrarem nos
túneis. Mas este e o plano B. Se eu tiver sucesso, Lester Liu não irá tão
longe.

Kiki esperou que Oona se acalmasse por um momento.

– Entendo que esteja fazendo isso por sua mãe, mas acha realmente que ela
ia querer colocar você em perigo? E a sra. Fei? Ela ia ficar arrasada se
alguma coisa acontecesse a você.

– Está falando da pessoa que andou me espionando por anos? – Oona se


irritou.

– Ela a ama, Oona. Só estava ouvindo para poder ajudá-la. Ela sempre
cuidou de você e a tratou como filha. Qual é o seu dever para com ela?

Oona ia falar, mas se deteve. Sentou-se na lateral da cama e pôs a cabeça


entre as mãos. Era como se tivesse descoberto um defeito fatal em seus
planos.

– Tem razão. Eu fui tão idiota. Foi isso que o médium tentou me dizer, mas
só ouvi o que queria. Ignorei todas as coisas sobre o sabão em pó e ter
alguém me ouvindo. Entendi mal a mensagem toda. Mas isso não importa.
Não posso parar agora. Já cheguei longe demais. Não tem volta.

– Sim, tem! – insisti. – Podemos todas sair esta noite. Vamos achar um jeito.

– Lester Liu vai te matar – disse Kiki abruptamente.

– Sei que é isso que ele quer. – Oona olhou para cima com um sorriso
triunfante. – Mas depois de amanhã, ele estará na cadeia.

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– Não, Oona. Ele vai te matar amanhã – disse Kiki, e o pânico atravessou o
rosto de Oona. – Tivemos uma conversinha com ele antes; ele disse que
quer que você morra como a Imperatriz. Tenho certeza de que isso significa
duas coisas: primeira, ele vai trocar seu corpo pelo da Imperatriz. Ananka e
eu acabamos de encontrar a múmia em um quarto neste mesmo corredor.
Eles devem estar preparando o esquife para você. Segunda, ele quer que
você seja sepultada viva, como a Imperatriz foi. Acho que você receberá
uma droga que vai deixá-la paralisada. Depois ele vai deixar você sufocar
até morrer dentro do esquife hermético da múmia enquanto todo mundo na
festa vê. Você será coberta pela mortalha jade, assim ninguém vai saber a
diferença. Isso parece divertido?

Eu tremi com a ideia, mas Oona ficou firme.

– Só terei de pensar em outra ideia.

– Eu tenho uma. Saia daqui enquanto pode e procure a polícia – eu disse.

– Não. – Oona bateu o pé. – Lester Liu pode escapar... Como fez da última
vez. Eu teria que cuidar de minhas costas pelos próximos trinta anos. E
vocês também. Tenho de achar um jeito de acabar com isso para sempre. –
Ela se virou para Kiki. – Não é o que você faria se estivesse no meu lugar?
Você daria à Livia e Sidonia outra chance de escapar?

Kiki respirou fundo.

– Talvez haja uma maneira – disse ela pensativamente. – Mas você não pode
agir sozinha. Tem que deixar que a gente ajude.

– Vocês duas ficaram malucas? – perguntei.

***

Minutos depois de Kiki e eu voltarmos ao cativeiro, Sergei Molotov chegou


para verificar os prisioneiros. Ele entrou furtivamente no quarto feito um
demônio jovial e acendeu a luz, cegando a todos temporariamente. O
cabelo com gel cintilava como óleo de motor e atraía a atenção para sua tez
doentia e nariz de agulha.

– Está confortável, minha princesinha? – Molotov estava emocionado ao ver


Kiki amarrada. – Falei com a rainha Livia esta tarde. Ela e o sr. Volkov
chegarão à América em breve e ela está ansiando para ver você. Disse que
espera chegar a tempo para os funerais de Verushka Kozlova. Como é

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mesmo aquela expressão... Ela vai despir no seu túmulo?

– Cuspir – disse DeeDee.

– Sim, obrigado – disse Molotov. – Ela vai cuspir no túmulo de Verushka


Kozlova.

Kiki encarava a parede como se não estivesse ouvindo uma palavra. As


cordas em seus pulsos e tornozelos só estavam ali para exibição e, se não
fosse por nossa amiga lá em cima, Kiki teria derrubado Molotov rapidinho.
Como Kiki não respondeu, Molotov chegou mais perto. Peguei uma lufada
de sua loção pós-barba fedida.

– Você não fala? Tenho maneiras de fazer as pessoas falarem. Eu disse que
não ia machucá-la, mas talvez o sr. Liu não se importe se eu ferisse uma de
suas amigas, não é? Talvez esta aqui? – Ele me chutou no queixo com força
suficiente para me fazer gritar.

– Você é um monstro, Molotov. – A voz de Kiki era espessa de raiva. – Quer


que eu fale? Então vou lhe fazer uma pergunta. O que vai acontecer quando
Oleg Volkov não conseguir as pinturas dele? O que acha que ele vai fazer
com você? Ouvi dizer que ele pode ser muito criativo.

Quando Molotov sorriu, seus lábios vermelhos e finos se esticaram numa fila
de dentes cinzentos.

– Mas que absurdo. As pinturas estão absolutamente seguras. A rainha Livia


as entregará ao sr. Volkov pessoalmente. A pergunta que você devia fazer é
como a rainha vai lidar com você? Espero que os planos dela sejam tão
brilhantes quanto os do sr. Liu.

– Você demora a aprender, não é, Molotov? Nunca vai me manter trancada


por muito tempo. E desta vez, não vou deixar que você e aquela bruxa
velha escapem.

– Quem vai libertar você, princesa? A fantasma? – Molotov revirou os olhos e


agitou os braços compridos e pálidos. – Uuuuuuu... – Eu podia rir, se o
gemido não fosse idêntico ao que ouvi nas fitas de gravação. Lester Liu
sabia de nossos grampos o tempo todo.

Molotov tinha começado a levar sua apresentação a todo um novo nível


quando ouvimos um baque do outro lado da sala. Depois outro. E mais um.
Podiam ser barulhos de uma casa velha. Podiam ser da tempestade do lado
de fora – ou um galho de árvore batendo numa janela. Mas pareciam
passos. As crianças taiwanesas se sentaram mais eretas. As Irregulares

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apontaram os olhos para a porta. Sergei Molotov parou no meio dos


gemidos e aprumou os ouvidos.

– Talvez ela faça isso – disse Kiki com um sorriso descarado.

– Esta casa velha está caindo aos pedaços – declarou Molotov. – Os espíritos
não virão salvar você. A mãe da menina chinesa não é mais fantasma do
que a sua mãe. Eu sou o único fantasma aqui. Eu atirei a comida. Eu fiz os
barulhos.

– Era você fazendo aquilo? – Luz riu. – Porque se for assim, estou mesmo
impressionada.

O baque ficava cada vez mais alto. Alguém – ou alguma coisa – estava se
aproximando.

– Quem disse que é a mãe de Oona? – Kiki o provocou. – Talvez Cecelia


Varney ainda esteja zanzando por aqui. Ela não pode estar muito feliz com o
que você fez com os gatos dela.

Molotov sacou a arma da cintura e esperou. Os baques pararam do lado de


fora da porta. Embora eu estivesse assustada, não pude deixar de curtir o
terror de Molotov.

– Sabe de uma coisa, Molotov, um homem sensato uma vez me disse o que
são realmente os fantasmas. – O tremor na voz de Kiki não combinava com
sua expressão. – São o passado voltando para empatar o jogo. Na China,
eles têm fantasmas ansiosos, mas na Pocróvia nós temos a Likho. Lembra
dela? A bruxa de um olho só, o espírito da infelicidade que todo mundo
conhece mas não provoca. E se ela finalmente veio atrás de você? Depois
de tudo o que você fez, não acha que ela vai pegá-lo, mais cedo ou mais
tarde?

Molotov não suportou mais o suspense. Escancarou a porta e apontou a


arma para a escuridão. Não havia nada lá.

– Está vendo, princesa – disse ele, recuperando a coragem. – Nada de


fantasmas. Era só a casa fazendo barulhos.

– Lembre-se disso quando estiver voltando pelo escuro – disse Kiki com um
sorriso malicioso.

***

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Eu não tinha a menor ideia da hora. A cabeça de alguém estava no meu


ombro e algumas pessoas roncavam. Fiquei sentada olhando uma sala tão
escura que não fazia muita diferença se meus olhos estavam abertos ou
fechados. Eu devia estar fazendo planos, mas no lugar disso pensava na
sala oculta embaixo da sinagoga Bailystoker quando uma lasca de luz
entrou pela fresta da porta. Ouvi um estalo e a porta começou a se abrir um
pouco. Uma figura magra, de camisola comprida, flutuou pela sala. A vela
em sua mão iluminava um rosto branco emoldurado por cabelos escuros
que caíam sobre ombros magros. Por um momento, eu tinha certeza de que
não era Oona, mas o fantasma dela.

– Molotov saiu e todo mundo está dormindo – cochichou ela.

– Que bom. – Kiki tinha ficado acordada, pensando. Ela sacudiu Betty e
cutucou Luz com a ponta do sapato. – Acordem – ela instou a todos
enquanto Oona nos desamarrava uma por uma. – Hora de trabalhar.

– Onde estou? – murmurou Luz.

– Você está amarrada na mansão assombrada de um contrabandista


homicida – informei a ela.

– É verdade, agora eu me lembro. Minha mãe vai ficar muito puta.

– Essa é a Luz Lopez – Ooan brincou enquanto tirava as cordas de DeeDee. –


Destemida diante da morte, mas morre de medo da própria mãe.

Assim que ficou livre, DeeDee se levantou e atirou os braços em Oona. A


cientista lógica desaparecera e uma boba sentimental tomara seu lugar.

– Eu sinto tanto por ter pensado que você era uma traidora. Eu realmente
exagerei. Espero que me perdoe.

– Eu também – disse Betty, esfregando o sono e as lágrimas dos olhos.

– Somos três. Nem acredito que todas fomos tão idiotas – disse Luz. – Agora
podemos resgatar você e dar o fora daqui?

Oona deu um puxão amistoso no rabo de cavalo de Luz.

– Desculpas aceitas, mas vocês não podem sair. Os alarmes estão ligados.
Se tentar abrir uma das portas ou janelas, eles vão disparar, e será a Fu-
Tsang que atenderá ao chamado, não a polícia.

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– E quem liga? – gemeu Luz. – Estou morta mesmo. Minha mãe vai mesmo
me matar.

– Pelo menos você vai sofrer em Nova York. Eu vou tirar leite de vaca na
Virgínia Ocidental – observei.

– Vocês duas sempre são bem-vindas no parque. – Era difícil saber se


Kaspar falava a sério.

– Tá legal, tá legal. Podemos nos concentrar, por favor? – disse Kiki Strike. –
Vamos salvar todo mundo, uma de cada vez. Oona deve ser a primeira.

– Já estava na hora. – Oona fingiu se queixar.

– Não força, Oona Wong. – Kiki riu. – Eu tenho um plano, mas vamos
precisar de alguns suprimentos. Como estamos presas na mansão, vamos
ter que fazer uso dos recursos disponíveis. E, Oona, se conseguirmos tudo o
que precisamos, vamos sair daqui esta noite. Entendeu?

– Entendi.

– Tudo bem. Vamos começar pelo começo. Kaspar, desamarre as outras


crianças. A essa altura, elas devem precisar dar uma espreguiçada. Oona,
explique a eles o que está acontecendo. DeeDee, quando Fille Fiable ainda
temos?

– Tem um vidro inteiro no bolso do meu casaco. Não acho que eles
pegaram.

– Ótimo. Estamos com sorte. Agora, a parte mais difícil. Lester Liu quer
enterrar Oona viva, então ele vai precisar de uma espécie de droga... Que
vá paralisá-la para ela não se mexer no esquife de vidro. Seja lá o que for,
temos que encontrá-la e substituí-la por alguma coisa inofensiva. DeeDee,
você vem comigo para procurar. Se não encontrarmos a droga, todo o
negócio vai mixar.

– Pode ser uma das drogas que usam para paralisar as pessoas durante
uma cirurgia – disse DeeDee. – Acho que devemos começar pela cozinha.
Uma coisa dessas deve ser guardada na geladeira.

– Fiquei de olho nas cobras – alertei.

– Nem precisa dizer isso – disse Kiki. – Tá legal, Betty, você e Kaspar
precisam encontrar umas roupas para a gente usar na festa de amanhã.
Como não vamos trocar de roupa em casa, temos que nos virar com o que

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Cecelia Varney tem em seu guarda-roupa...

– Peraí, peraí, peraí – interrompeu Luz. – Nós vamos a abertura da


exposição? Vocês ficaram doidas? Lester Liu nos reconheceria num
segundo... E Ananka deve ter sido banida do museu para sempre.

– Só até meus 18 anos – eu a corrigi.

– Temos que ter cuidado e esperança de que o Fille Fiable faça o resto.

– Mas não entendo seu plano – disse Betty. – Como vamos evitar que Oona
termine dentro do esquife da Imperatriz?

– Não vamos – disse-lhe Kiki.

– Mas ela vai morrer sufocada! – argumentou DeeDee.

– Não se Luz descobrir um jeito de deixar o ar entrar no esquife.

– Então vamos deixar que Lester Liu pense que venceu? – Luz estava
intrigada.

– E vamos à exposição testemunhar Oona se levantar dos mortos e mandar


o pai para a cadeia.

– Este é um jeito de chamar a atenção de todos. – Oona parecia satisfeita


com o plano. – O que quer que eu faça?

– Você e Ananka vão esconder a Imperatriz – disse Kiki.

– Pra quê? – perguntou Luz. – Ela já está morta mesmo.

– Por que é o certo a fazer. Caso contrário, eles vão se livrar dela, e Ananka
e eu concordamos que ela já passou pelo suficiente.

– Onde vamos escondê-la? – perguntei.

– Eu sei de um lugar – disse Oona.

***

No saguão da mansão, nós nos dividimos. Oona, Betty, Kaspar e eu subimos


até o quarto de Cecelia Varney, esperando que os alarmes disparassem a

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qualquer momento. A casa estava em silêncio, e embora tenhamos tirado os


sapatos, nossos passos pareciam trovejar nos meus ouvidos. No alto da
escada, Oona passou pelo quarto com a múmia e abriu a quarta porta do
corredor. A luz da lua caía em uma cama de solteiro forrada com um
cobertor marrom e puído. Não havia outro móvel no quarto. As paredes
eram nuas e o piso não tinha tapetes. Nada dava prazer aos olhos ou ao
tato. Aparentemente Cecelia Varney tivera a vida de uma freira medieval.
Oona acendeu a vela e flutuou pela câmara.

– Não tem nada aqui – sussurrou Betty. – Nem estou vendo um closet.

– Talvez não tenha procurado direito. – Oona parou diante de uma lareira
que transformava em miniatura a outra imensa de seu quarto. Ela inclinou
um suporta lareira e empurrou a parede até que surgiu uma abertura
grande o bastante por onde se espremer. – Sou a única pessoa que sabe
disso.

– Como descobriu? – Eu estava admirada.

– A fantasma me mostrou no primeiro dia em que fiquei sozinha aqui – disse


ela. – Ela queria que eu visse.

– Então você acredita mesmo que há uma fantasma? – perguntou Kaspar.

– É claro que há uma fantasma – respondeu Oona, como se devesse ser


evidente para todos.

***

A primeira coisa que vi quando entramos no cômodo abarrotado atrás da


lareira foi alguém olhando para mim. Uma jovem loura de vestido de renda
preto encarava de um retrato na parede com uma expressão fria e
desagradável na cara bonita. Reconheci Cecelia Varney pela foto que
acompanhou seu obituário, mas era difícil acreditar que a mesma mulher
tinha passado os últimos cinquenta anos de sua vida escondida do restante
do mundo. Revestindo o cômodo, havia araras de lindos vestidos, a maioria
de estilos que estiverem no auge da moda nas décadas de 1940 e 50. Uma
parede de estante guardava caixas de veludo preto cheias de joias
faiscantes. Era como se a velha ermitã tivesse aprisionado a socialite
deslumbrante numa câmara secreta. Para piorar o caráter soturno do lugar,
cada item estava em condições impecáveis e não havia um grão de pó no
cômodo.

– Dá para acreditar nisso? – Oona pegou um colar de diamantes e deixou

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que cintilasse à luz da vela. – Cecelia Varney tinha tudo isso e isso só a
deixou infeliz. Ela chegou a um ponto em que não conseguia saber quem a
amava e quem amava seu dinheiro, então começou a pensar que sua
fortuna era amaldiçoada. Imaginou que se pudesse gastar até o último
centavo antes de morrer, poderia evitar que o dinheiro magoasse alguém.
Parece loucura, mas talvez ela estivesse certa.

– Como soube de tudo isso? – perguntei.

– Meu pai encontrou os diários dela. Li o máximo que pude suportar. Era
uma coisa muito deprimente. Sabia que o último marido roubou um milhão
de dólares dela e fugiu para a Venezuela? Depois disso, em quem você
confiaria? Eu provavelmente também ia deixar todo o meu dinheiro para um
bando de gatos.

– E então, o que acha, Betty? Cecelia Varney tem o que precisamos?

Betty examinou os vestidos de uma das araras.

– São meio ultrapassados e todos têm tamanho 38. Vou ter que fazer umas
alterações, mas acho que posso pensar em alguma coisa. Mas não vai ficar
bonito. – Ela pegou um vestido cintilante de contas pretas que parecia
menor do que os outros. – Ela devia ser pouco mais do que uma adolescente
quando comprou este. Acho que sei quem vai usar isto.

Enquanto Kaspar e Betty saqueavam as araras de roupa, Oona e eu fomos


na ponta dos pés até a câmara da múmia e embrulhamos o corpo num
lençol. Com cuidado, sem entortar nem esbarra com a Imperatriz, levamos
de volta ao quarto de Cecelia Varney. Estávamos do lado de fora do cômodo
oculto quando vozes abafadas chegaram a nossos ouvidos.

– Eu não entendo, Betty. – A voz de Kaspar não tinha a confiança de


sempre. – Pensei que tivéssemos um acordo. Se eu vigiasse a mansão, você
jantaria comigo.

Betty suspirou.

– Sim, o acordo era esse. Mas um acordo não vale nada se uma pessoa não
está pensando direito quando concorda com ele.

– Por que você não estava pensando direito?

– Não estou falando de mim. Você estava sob influência quando me fez o
convite.

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Kaspar ficou indignado.

– Sob influência? Pode me chamar de criminoso, se quiser, mas não bebo e


nem tomo drogas. Posso ter comido salsichas Viena demais naquela manhã,
mas eu estava raciocinando com muita clareza.

– Não. Não, não estava. Veja só, uma amiga nossa fez um perfume... Uma
poção do amor. Ela derramou em mim um dia antes de você nos ver no
Morningside Park. Foi o que o fez ficar a fim de mim. Depois eu me
aproveitei de você.

– Deixa ver se eu entendi. Você estava usando esse perfume na noite em


que foi ao Morningside Park. De algum modo eu o respirei e me apaixonei
de imediato. Depois você se aproveitou do meu estado infeliz para que eu
fizesse seu trabalho sujo. É isso meso?

– Desculpe – sussurrou Betty e Kaspar começou a rir. – Shhhh! – pediu


Betty.

– Tudo bem, tudo bem – disse Kaspar, tentando se controlar. – É que é tão
ridículo.

– É a verdade! Sei que é difícil de acreditar, mas DeeDee e nossa amiga Iris
são químicas muito boas. Elas podem fazer qualquer coisa.

– Ah, não duvido de que elas sejam capazes de preparar uma poção do
amor. Mas deixa eu te fazer uma pergunta. Lembra do bilhete que escrevi
para você naquela noite? As palavras não lhe pareceram familiares?

– Eu sabia de cor. É uma passagem de La Bohème. Vi a ópera umas cem


vezes. Meus pais são figurinistas.

– Por acaso você estava na ópera para ver La Bohème na noite de 18 de


agosto?

– Talvez. – Betty parou para pensar. – Sim, deve ter sido no dia 18. Era o fim
de semana antes do aniversário do meu pai.

– E você estava de vestido branco e peruca preta cacheada?

– Sim – admitiu ela. Percebi que Kaspar a pegara de surpresa.

– Você chorou quando Mimi morreu?

– Eu sempre choro nessa cena.

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– E estava usando algum perfume naquela noite?

– Não. Como você...

– Eu estava sentado do outro lado do corredor. Foi uma semana antes de eu


fugir. Achei que você era a menina mais fascinante que vi na vida. Tentei
me apresentar, mas você desapareceu nos bastidores antes que eu tivesse
essa chance. Quando vi você de novo naquela noite no parque, nem
acreditei na minha sorte.

– É mesmo?

– A defesa encerra a argumentação.

Houve um longo silêncio. Oona picou para mim e deu um beijo nas costas
da mão. Eu tentei abafar minha risada.

***

Quando passamos com a múmia pela lareira e encontramos no cômodo


oculto, encontramos Kaspar e Betty a centímetros um do outro, a cara
vermelha feito beterraba.

– Onde vamos colocar a Imperatriz? – perguntei, tentando parecer


despreocupada, mas sem conseguir parar de sorrir.

– Coloque-a deitada nisto. – Kaspar abriu um casaco de peles no chão.

– Vocês duas... Hummm. Ouviram alguma coisa agora há pouco? –


perguntou Betty, nervosa.

– Estávamos ocupadas resgatando uma múmia – respondeu Oona,


equilibrando-se na beira da verdade.

– Então esta é a Imperatriz Traidora? – Kaspar se curvou ao lado da múmia.


– Posso dar uma espiada? Ela está decente?

– Sim, ela estava vestida. – Eu ri. Quando Kaspar puxou o lençol, ele e Betty
se encolheram.

– Sabe de uma coisa, Oona, se ela ainda tivesse nariz seria meio parecida
com você – observou Betty depois de se recuperar do choque.

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– O que ela está vestindo? – perguntei. O que eu pensava ser um roupão era
na verdade uma longa tira de sede vermelha pintada com palavras
douradas. – Dá pra ler, Oona?

– Isso foi escrito há dois mil anos. Como eu vou saber o que diz?

– É sem dúvida uma espécie de mensagem – observou Kaspar.

A coluna de Oona de repente ficou rígida.

– Todo mundo de boca fechada! – sussurrou ela freneticamente. Alguém


passava pelo quarto de Cecelia. – Eles vieram me pegar! – Uma porta se
abriu no corredor.

– Ela não está aqui. – Embora a voz fosse fraca, claramente pertencia a
Sukh.

– Descobriram que não estou no quarto. Tenho que ir.

– Não! – insisti. – Não sabemos se Kiki substituiu a droga que vão usar. Você
pode morrer.

– Isso não importa – disse Oona. – Se não me encontrarem aqui em cima,


eles vão até a ala leste. Se vocês não estiverem lá, não há como saber o
que vão fazer. Não vou deixar que uma dúzia de pessoas sofra para me
salvar.

– Kiki vai pensar em alguma coisa! – sussurrou Betty.

– Não posso assumir esse risco. Fiquem escondidos aqui até que a barra
esteja limpa. Talvez eu veja vocês amanhã. Mas, o que quer que aconteça,
obrigada pela ajuda. Vocês são as melhores... as únicas... amigas que tive
na vida. – Com essa, ela disparou para fora do cômodo oculto.

– Oona volte aqui! – chamou Betty, mas desta vez não houve resposta.

***

O sol já estava nascendo quando Kaspar, Betty e eu voltamos para a ala


leste da mansão com os braços cheios de roupas finas. As outras Irregulares
correram para nós enquanto entrávamos de fininho na sala. As crianças
taiwanesas perceberam que Oona não estava ali e começaram a cochichar
entre elas. Eu me senti péssima. Nenhuma de nós podia dizer a eles o que

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aconteceu.

– Por que demoraram tanto? – insistiu Kiki. – Estávamos prestes a organizar


uma equipe de busca.

– Eles foram procurar Oona – eu disse, mas mal conseguia acreditar. –


Tivemos de nos esconder.

– Ela se entregou para nos salvar – Betty disse ao grupo, em meio às


lágrimas. – Eles apareceram quando estávamos lá em cima e ela sabia que
se não a encontrassem, eles procurariam aqui embaixo.

– Ah, Oona! – Luz gemeu.

– Parece que apostei mal – confessou Kiki. – Achei que nossa busca não
daria em nada. Desse jeito poderíamos convencer Oona a sair da mansão
esta noite.

– Achou a droga que vão usar? – perguntei a DeeDee.

– Tubocurarina. – DeDee sacudiu a cabeça, chocada. – É uma toxina vegetal


da América do Sul. Antigamente os índios usavam para envenenar a ponta
das flechas, e por algum tempo os médicos a usaram para manter as
pessoas imóveis durante cirurgias. Mas agora é considerada perigosa
demais. Não há motivos para Lester Liu ter isso. Encontramos na bancada
da cozinha. Substituímos por água da torneira.

– Encontraram na bancada? Tem certeza de que trocaram a tempo?

– Acho que sim. – DeeDee não parecia tão confiante como eu esperava.

– Betty – disse Kiki, assumindo o comando da situação –¸ temos as roupas


para amanhã?

– Elas são meio ultrapassadas e podem não caber direito, mas se a gente se
ensopar do perfume, pode passar pela porta da frente.

– Isso basta. Ananka? A Imperatriz está segura por ora?

– Está – relatei.

– Luz?

– Lasquei um cantinho do esquife. Foi só o que pude fazer com as

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ferramentas que tinha. Mas basta para entrar ar e não acho que alguém vá
perceber.

– Então, nada de pânico. O plano está em andamento.

CAPÍTULO QUINZE

A Imperatriz desperta

Às sete horas da noite seguinte, as Irregulares estavam prontas para o


baile. Betty fez o máximo que pôde com o conteúdo do closet de Cecelia
Varney, mas nenhuma de nós estava destinada a entrar para a lista de mais
bem-vestidas da noite. O busco encaroçado do vestido azul sem alça de
DeeDee foi recheado com vários pares de meias. Luz recusou-se a usar
saltos altos e combinou o vestido estilo anos 1950 com suas botas de
combate arranhadas. Betty alfinetou um vestido cor-de-rosa à minha forma
nada adequada. Se um dos alfinetes pipocasse, toda a roupa podia cair no
chão. Betty vestiu uma túnica amarelona que Luz recusara e a cor a deixou
doentia – mas Kaspar não percebeu. Só o vestido de contas pretas de Kiki
parecia combinar com ela, embora fosse evidentemente grande demais. O
restante de nós teria de depender do nosso Fille Fiable para convencer o
porteiro de que não éramos internas de um hospício.

Kaspar não iria à abertura de gala. Cecelia Varney não possuía smoking, e
os vestidos dela eram pequenos demais para ele se vestir de drag. Então,
enquanto esperávamos que a Imperatriz despertasse, Kaspar levaria os
artistas taiwaneses para a casa de Oona. Ele ficou feliz em fazer sua parte,
mas insistiu em voltar ao Central Park para procurar seus esquilos. Todo
mundo sabia que era só uma desculpa para ficar perto do museu, caso
Betty precisasse de ajuda. Kiki tentou convencê-lo a ficar em Chinatown,
mas ele simplesmente se recusou a ouvir.

Pouco antes das sete, Kiki e Luz saíram para investigar a mansão. Às sete e
quinze voltaram com a notícia de que todos tinham saído para a abertura de
gala. Com Kiki na frente, todos os 17 passaram rapidamente pela escuridão
da ala leste da mansão. Chegamos ao saguão sem nenhum problema e
estávamos quase na porta quando ouvimos uma risadinha baixa de cima.
Sukh acenava para nós do patamar do segundo andar, mas parecia relutar
em nos perseguir.

– O que está esperando? Vá para a porta! – gritou DeeDee.

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– Vai a algum lugar, princesa? – Sergei Molotov surgiu da Sala Stafforshire e


apontou o cano da arma diretamente para Kiki.

– O que está fazendo aqui? – perguntou Luz. – Nós vimos vocês dois saírem.

– Levamos o sr. Liu à festa de gala. Só fica a algumas quadras daqui. Não
acha que o sr. Liu ia deixar crianças sozinhas em casa, não é? Isso seria
muito irresponsável.

– E o que vai fazer, Molotov? Atirar na gente? – cuspiu Kiki. – Pode tentar.
Sua arma não tem tanta bala assim.

– Tem toda razão – escarneceu Molotov. – Só tenho seis balas. Vou lhe dizer
como vai ser. Você vai escolher as cinco amigas que gostaria que eu
baleasse. A última bala será reservada para você. Quem sobrar, pode fazer
o que quiser. – Molotov sorriu. Ele sabia que não podíamos lutar com ele.

– Você não tem autorização para nos machucar – observou Kaspar.

– Nem tenho autorização para deixar que vocês fujam. É um dilema, não é?
O que acha de facilitarmos a vida de todos? Voltem para o quarto e não
levarão tiro nenhum. Sukh, por favor, mostre às crianças o caminho de seus
aposentos.

– Certamente, sr. Molotov – respondeu o mordomo.

Ouvi dois passos, um baque pesado e um gemido. Meus olhos dispararam


para a escada onde Sukh estava esparramado de costas, a expressão um
misto de dor e confusão. Ele se levantou e desceu manco e devagar a
escada. Só a dez degraus do final, seu corpo grandalhão se atirou para a
frente. De braços estendidos, ele parecia alçar voo. Depois a gravidade
reassumiu o controle e o fez se estatelar no chão. Ele quicou três degraus
antes de parar em um monturo imóvel ao pé da escada. Uma coisa ficou
evidente para aqueles de nós que estavam olhando. O mordomo tinha sido
empurrado. Mas não havia ninguém atrás dele.

Kiki não se encontrava entre as testemunhas. Enquanto a maioria dos olhos


estava fixa no espetáculo, os dela continuaram em Sergei Molotov. Com a
atenção dele momentaneamente desviada, ela entrou em ação. Um tiro
soou e quebrou o vidro. Molotov tateou em busca da arma, que Kiki tinha
chutado para dentro da Sala Staffordshire. Kiki, Kaspar e Luz dispararam
atrás dele. Antes que chegassem à porta, um estrondo tremendo provocou
um tremor pelo saguão e balançou o lustre. Depois tudo ficou
estranhamente silencioso. Kiki, Kaspar e Luz estavam paralisados na porta.

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– O que aconteceu? – perguntou Betty por fim.

– Hummmm... – Kaspar procurou uma maneira de expressar o que vira. –


Um armário cheio de estatuetas simplesmente caiu.

Nós corremos para a porta. Cacos de vidro e porcelana se espalhavam pelo


chão da Sala Staffordshire. Um dos armários altos, que antes ficava na
parede, agora estava de frente para o chão. Dois sapatos italianos
cuidadosamente engraxados se projetavam por baixo dele. Os pés dentro
dos sapatos se mexiam. Depois do armário tombado havia uma estatueta
que tinha escapado incólume. Era uma menina brincando com um gatinho.

– Como pôde cair sozinho? – perguntou DeeDee.

– Não pôde – respondeu Kiki.

***

Uma faixa larga de tapete vinho se estendia como um rio de sangue da


beira da Quinta Avenida até a entrada do Metropolitan Museum of Art.
Limusines, Bentleys e Rolls-Royces esperavam em fila para expelir seus
fabulosos passageiros no meio-fio. Apesar da neve que se empilhava na
sarjeta e da brisa gelada que vergastava as árvores, mal se via um casaco.
As celebridades e socialites faziam poses afetadas para a multidão de
paparazzi que se espremia na beira do tapete. De vez em quando, os
flashes paravam para dar passagem a uma senhora de costas rígidas ou um
nerd de óculos. Embora seus rostos fossem desconhecidos dos leitores de
tabloides nova-iorquinos, estes eram os convidados mais importantes da
abertura de gala – pessoas tão incrivelmente ricas que não precisavam
mandar beijos para as câmeras.

As Irregulares observavam a ação do outro lado da rua enquanto os dentes


de Luz batiam como castanholas e minha pele adquiria um tom alarmante
de roxo. Nossa caça da meia-noite ao lixo na mansão de Lester Liu podia ter
reproduzido vestidos de baile e venenos – mas ninguém pensou em pegar
casacos.

– Todo mundo pronto? – Pálida como uma escultura de gelo que ganhou
vida, Kiki parecia perfeitamente à vontade no frio. Incapaz de falar, nós
assentimos rigidamente e Kiki nos entregou o vidro de Fille Fiable. – Não
economizem. Passar pela porta será a parte mais difícil.

Fedendo a suor, as Irregulares se desviaram do tapete vermelho e correram


direto para a entrada do museu. Um segurança musculoso com um terno

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preto e apertado cutucou o companheiro e começou a rir enquanto


subíamos a escada. Os dois homens avançaram, usando sua massa
formidável para bloquear nosso caminho. Kiki assumiu a liderança. Mesmo
de saltos, sua cabeça não chegava à altura do peito dos seguranças. Eles
olharam de cima e com deboche a garota minúscula. Como a maioria dos
porteiros de Nova York, eles viviam pela oportunidade de impedir que a
plebe como nós chegasse perto de seus chefes ricos e bonitos.

– Convites – ladrou um deles.

– Não precisamos de convite – disse Kiki com confiança. – Somos convidadas


pessoais de Lester Liu.

A risada do homem foi interrompida quando nosso Fille Fiable finalmente


chegou a suas narinas.

– Mas que fedor horrível é esse? – perguntou um segurança, cheirando o ar.

– Acho que são vocês dois. – Kiki tapou o nariz. – Esqueceram o desodorante
hoje de manhã, cavalheiros?

Betty riu enquanto os dois seguranças deram farejadas sutis nas axilas.

– Terrível, hein? – disse Kiki. – A maioria dos macacos tem um cheiro


melhor. Mas receio não ter tempo para lhes dar uma aula de higiene
pessoal. Lester Liu espera por nós.

Um dos seguranças sacou um walkie-talkie.

– Vou verificar com o sr. Hunt.

– Eu não incomodaria o diretor – aconselhou Kiki. – E se ele decidir nos


receber pessoalmente? Uma fungada e vocês perdem o emprego.

– Ela tem razão, Lenny – disse o outro segurança em voz baixa. – Talvez a
gente deva deixar que entrem.

– Acho que isto é o melhor para todos – concordou Kiki.

– Por favor, não contem nada – pediu o primeiro segurança enquanto abria a
porta do museu para nos deixar entrar. – Preciso desse emprego para pagar
os implantes de panturrilha. Se não, nunca vou poder usar um short.

– Não se preocupe – disse Kiki. – Jamais penso em me interpor entre um


homem e seus shorts.

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Dentro do Grande Salão do Museu, encontramos os ricos, famosos e


fabulosamente elegantes de Nova York vagando por entre macieiras
silvestres pingando milhares de brotos vermelhos. Projetada nas paredes do
museu, uma imagem de um dragão Fu-Tsang vesgo cercava os convidados
como um predador escolhendo pacientemente uma vítima no rebanho.

– Hihihihihi. – Atrás de nós, duas meninas cochichavam. Elas não se


esforçavam para esconder o assunto de sua conversa. Eu as reconheci de
pronto. Eram famosas por interpretar personagens inocentes e doces no
cinema e tinham uma vida devassa fora das telas.

– Que foi? – perguntou Luz. – Acharam alguma coisa engraçada?

A loura riu de novo.

– Pelo menos minha amiga não está vestida de vagabunda – contra-atacou


Kiki. – Se eu fosse você, guardaria essa roupa no armário. Pelo rumo que
sua carreira está tomando, tenho a impressão de que vai usá-la em breve.

O sorriso das meninas murchou.

– O que você é, uma espécie de anã albina? – rosnou a morena antes de se


virar para a amiga. – Por que estamos perdendo tempo com essas
aberrações? Vamos para a festa. – Enquanto elas passavam esbarrando por
nós com os narizes empinados. Luz casualmente colocou uma bota de
combate pesada na cauda do vestido de lantejoula da morena. Um rasgão
alto pôde ser ouvido por cima da tagarelice no salão. A morena guinchou
quando sentiu uma brisa fria em seu traseiro exposto. Ela cerrou os punhos
e partiu para Luz.

– Só pode estar brincando! – Luz riu. – Pode vir, maninha.

Kiki pegou o braço fino da morena e a obrigou a inalar um pouco do Fille


Fiable.

– Você devia ir para casa antes que aconteça alguma coisa muito
desagradável – ela aconselhou. – E da próxima vez que for a uma festa, não
se esqueça de colocar a calcinha.

– Essa foi engraçada – eu disse enquanto a morena corria para a porta e a


amiga olhava chocada. – Vamos desmascarar outra celebridade. Que tal
aquele atorzinho espalhafatoso que sempre fica se gabando de sua vida
amorosa revoltante? Ele está bem ali, incomodando uma pobre mulher no
bar.

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– Não estamos aqui para nos divertir – lembrou-me Kiki. – Chega de


briguinhas por esta noite. Precisamos encontrar Oona o mais rápido
possível.

***

Um tapete verde-jade felpudo flanqueado por macieiras silvestres brancas


levavam à escadaria do Grande Salão. Os convidados em grupos de dois ou
três e começavam a seguir para a exposição da Imperatriz. As Irregulares
tentaram ao máximo se misturar na multidão, mas cabeças ainda se
viraram para nossas roupas incomuns e várias pessoas nos cheiravam com
um nojo patente. Estávamos prestes a passar para o toalete feminino do
segundo andar quando surgiu uma idosa com um vestido discreto. Enfiei-me
por trás de uma macieira e descobri que me dava pouca cobertura. A
diretora Wickham semicerrou os olhos para mim através dos galhos. Eu me
preparava freneticamente para uma explicação quando ela se virou e
desceu o tapete em direção à exposição. U não fazia ideia se ela me vira e
rezei para que pudesse evitá-la pelo resto da noite. Caso contrário, salvar
Oona custaria minha liberdade.

Alcancei as Irregulares quando elas avançavam pela exposição. Dragões


imperiais flutuavam nas paredes enquanto os convidados se misturavam e
se admiravam dos tesouros da Imperatriz.

– Tudo isso por uma traidora – ouvi uma mulher dizer e meu corpo virou
gelo. Pelo que eu sabia, Lester Liu pensava o mesmo de Oona.

– Aqueles egípcios sabiam mesmo despachar com estilo uma garota –


observou um homem a seu companheiro enquanto eles passavam por mim
para olhar mais de perto uma réplica do palácio imperial.

– Walter, você é um cretino – sussurrou o amigo. – Esta coisa não é egípcia;


é japonesa.

– Na verdade, é tudo chinês – informou-lhes Betty educadamente.

– Viu o vestido dela? – riu o primeiro homem. Ele nem esperou que Betty se
afastasse. – Se tem uma coisa que cabe num museu...

– Não – DeeDee me alertou quando viu a fúria na minha cara.

***

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Depois da galeria que exibia o reino em miniatura da Imperatriz, entramos


na sala com o exército de serviçais de argila. Pela primeira vez percebi que
cada rosto era único, como se as estátuas tivessem sido modeladas com
base em pessoas reais.

– Interessante – murmurou Kiki com o nariz quase apertado no vidro. – A


estatueta da Cidade das Sombras... Aquela que Yu encontrou no barco.
Deve ter sido de um dos criados da Imperatriz.

– Não pode ser – cochichei. – Lester Liu disse que o conteúdo da tumba foi
trazido a Nova York na década de 1940.

– Há alguns problemas com sua análise. Para começar, Lester Liu disse...

– Quer dizer que a Imperatriz não era um dos tesouros de Cecelia Varney?

– Não. Ela deve ter vindo no barco com Yu e Siu Fah. Tudo aqui foi
contrabandeado da China este ano.

– Hora de andar – Luz nos alertou assim que o diretor do museu entrou na
sala com Lester Liu.

Entramos cada vez mais fundo na tumba da Imperatriz, passando pelo


guarda-roupa de seda bordada que ela levou para a outra e por quarto
caixões conectados feitos de pedra e laca, que antigamente portavam sua
múmia. Por fim entramos numa sala cavernosa com dezenas de mesas de
jantar espalhadas. Havia uma plataforma e um microfone na ponta. As
pessoas começavam a se reunir para o jantar e a maioria parecia muito
mais fascinada com os arranjos dos lugares do que com o esquife de vidro
no meio da sala. Só três pessoas examinavam a múmia envolta em jade.
Uma era Iris McLeod, num vestido roxo de franjas que a deixava parecida
com uma uva gigantesca. Quando nos aproximamos da Imperatriz, o cecê
dominou tudo.

– Viu isso? – Um homem que estava parado perto de Iris se afastou do


caixão.

– Viu o quê, George? – A mulher ao lado dele parecia irritada.

– A múmia se mexeu!

A mulher olhou em volta para ver quem o ouvira.

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– Chega de vinho para você! – respondeu ela num sussurro enfurecido. –


Lembra do que aconteceu na última noite de gala? Aquela estátua que você
decidiu levar para dar uma volta era inestimável. Estou surpresa que
tenham permitido que entrássemos desta vez.

– Eu sei o que vi, Jocelyn. Aquela múmia se mexeu! Você viu? – O homem
perguntou a Iris. Antes que ela pudesse responder, a mulher pegou o braço
dele e o arrastou para longe da Imperatriz.

– Você assustou aquela garotinha! – ela o repreendeu. – A pobrezinha vai ter


pesadelos por meses!

– Acho que está exagerando, querida. Ela me parece bem madura.

– Aliás, o que ela está fazendo aqui? – continuou a mulher. – Chegamos a


um ponto em que não se pode ir a lugar nenhuma nesta cidade sem ser
incomodada por crianças de roupas esquisitas.

– Iris! – sussurrou DeeDee, dando um tapinha no ombro da menina.

– Aí estão vocês! – Iris parecia superfeliz em nos ver. – Onde é que


estiveram? Tem cartazes de desaparecida com a foto de Ananka em todo o
Greenwich Village e quando parei na casa de Oona, aquele mordomo
estranho não me deixou vê-la. Achei que tinha acontecido alguma coisa
muito ruim. Decidi que se não achasse vocês aqui, ia ligar para a polícia
quando chegasse em casa.

– Ficamos amarradas por um tempinho. Vou contar tudo mais tarde. Como
conseguiu entrar? – perguntei.

– Meus pais são consultores do museu. Eles sempre recebem convites para
essas coisas. – Ela tombou a cabeça para o casal de aparência acadêmica
sentado a uma mesa perto da entrada. – Eu os convenci a me trazer desta
vez.

– Pelo cheiro, parece que você teve que usar um vidro inteiro de Fille Fiable
– disse Kiki.

– A metade. A outra metade está escondida na minha coxa. Aliás, cadê


Oona? Tenho que agradecer a ela.

– Agradecer pelo quê? – perguntou luz.

– Há alguns dias, alguém me mandou três jalecos de laboratório e um kit


imenso de química. Localizei a loja de onde vieram e usei meu perfume para

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conseguir que o dono me dissesse quem comprou. Por acaso foi Oona. Ela
deve ter gastado uma fortuna. E aí, onde ela está?

Os olhos de Kiki baixaram para a múmia e depois voltaram a Iris.

– Não! – Iris arfou. – Ela está bem?

– Vamos saber daqui a alguns minutos – disse-lhe Kiki.

– Há alguma coisa que eu possa fazer?

– Só curta o espetáculo – eu disse. – Temos tudo sobre controle.

– Tem certeza? – Iris suspirou de decepção. – Botei esse vestido idiota só


para o caso de vocês precisarem de mim.

– Sabe de uma coisa, senhoras, não faria mal ter um plano B – Kiki
aquiesceu. – Fique de olho em mim, Iris. Se alguma coisa der errado, vou
lhe fazer um sinal. Corra até o parque e procure por Kaspar... É um cara alto
de cabelo ruivo. Ele vai saber o que fazer.

– Ótimo! – Iris falou alegremente. – Prometo que não vou deixar vocês na
mão.

***

Quando a maioria dos convidados finalmente se sentou, o diretor do museu


subiu à plataforma. As cinco Irregulares estavam estacionadas nos cantos
da sala, longe da luz das luminárias que brilhavam no meio de cada mesa.
Enfiei-me no canto mais distante da diretora Wickham, que jantava com a
artista que eu vira na foto na parede de sua sala.

– Boa noite. – O sr. Hunt olhou a multidão de gente bonita. – Bem-vindos à


abertura de A Imperatriz Desperta. Vocês foram os primeiros a ver parte dos
tesouros chineses mais extraordinários já reunidos no hemisfério ocidental.
É para mim um grande prazer apresentar o homem cuja generosidade sem
paralelo possibilitou esta exposição. Senhoras e senhores, eu lhes apresento
o sr. Lester Liu.

Aplausos estrondosos encheram a sala enquanto Lester Liu subiu ao palco.


Era a deixa de Oona, mas nada aconteceu. O corpo sob a mortalha de jade
da múmia não se mexeu. À medida que minha expectativa se transformava
em pavor, tentei sinalizar para Kiki e vi sua cabeça voltada para Iris. Ela

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assentiu uma vez e Iris pediu licença da mesa e foi para a porta. Tive de
apreciar Iris agindo. Mesmo de longe, sua linguagem corporal gritava
emergência de banheiro.

A voz de Lester Liu ainda estava áspera e rouca, mas ele ficou radiante com
a admiração a multidão.

– Obrigado, sr. Hunt. Não sou um homem de muitas palavras, mas estou
feliz em oferecer a Imperatriz Traidora à cidade que tanto me proporcionou
em todos esses anos. Agora que me aposentei, pretendo dedicar meus dias
a dar mais presentes deste tipo. Ajudando-me em meus empreendimentos
filantrópicos estará minha amada filha única. Ela passou os últimos cinco
anos numa escola da Suíça, mas concordou gentilmente em voltar a Nova
York para ajudar o pai. Gostaria de aproveitar a oportunidade para lhes
apresentar a srta. Lillian Liu.

Uma menina deslumbrante de vestido preto se juntou a Lester Liu na


plataforma. Não podia ter mais de 15 anos e, de onde eu estava, sua
semelhança com Oona era um mistério. Sem pensar, avancei para olhar
melhor. Ao fazer isso, senti vários alfinetes se soltando e segurei o alto do
vestido antes que ele escorregasse no chão.

– Hihihihi. – Olhei por sobre o ombro e vi a atriz loura apontando para mim
de uma mesa próxima. Voltei a me enfiar nas sombras, mas não antes de os
olhos de Lester Liu dispararem na minha direção.

– Muito obrigado – ele resmungou ao microfone. – Espero que desfrutem das


festividades. – Enquanto os convidados batiam palmas, Lester Liu conduziu
a menina que ele chamava de Lillian a uma saída e sinalizou para um
segurança. Percorrendo a sala com os olhos, ele identificou cada uma das
Irregulares. O segurança sacou o walkie-talkie e logo cinco homens
uniformizados e parrudos estavam cautelosamente costurando pelas mesas
e vindo para cada uma de nós. O cheiro de Fille Fiable ficava cada vez mais
fraco e eu tinha esperanças de que ainda houvesse perfume suficiente para
me salvar. Procurei por uma rota de fuga que eu deveria ter identificado
antes. Mas as saídas estavam bloqueadas pela segurança.

– Poderia me acompanhar, senhorita? – Não era uma pergunta. O segurança


me pegou pelo braço e seus dedos carnudos cravaram-se no meu corpo.
Comecei a me debater. Se as Irregulares fossem expulsas da festa, não
sobraria ninguém para salvar Oona.

Um grito apavorante soou pela sala e senti a mão do segurança se afrouxar.


Quando vários outros gritos se juntaram ao coro, consegui me soltar. De
início, não sabia o que estava acontecendo. Voava comida, cristal era

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espatifado e um velho caiu desmaiado. Eu estava começando a me


perguntar se o museu tinha um poltergeist só dele quando um esquilo
gigante saltou na mesa na minha frente. Arrancou um topete do couro
cabeludo de um astro de cinema velho e chutou uma garrafa de vinho tinto
no colo da celebridade loura. Em outros lugares, os dois amigos do esquilo
estavam alegremente trabalhando pela sala. O segurança que tinha
aparecido para em acompanhar até a saída do prédio puxou a toalha de
uma mesa e tentou montar uma rede para esquilos.

Localizei Kiki no meio de toda a excitação com uma cadeira no alto da


cabeça. Com um movimento rápido, ela a desceu no esquife. Choveu vidro
pela figura coberta de jade que ele abrigava. Por um momento, o
pandemônio parou e o tempo pareceu se imobilizar. Depois as pessoas
começaram a correr para as saídas e as descobriram bloqueadas por fora.
Iris e Kaspar tinham fechado a sala. Ninguém ia sair até que o tumulto
parasse.

– O que ela está fazendo! – gritou alguém enquanto Kiki rasgava a mortalha
do corpo de Oona, expondo uma figura magra embrulhada em tecido
listrado de azul. O silêncio na sala aumentava. Até as celebridades mais
idiotas na festa de gala sabiam que múmias chinesas antigas não vinham
embrulhadas em lençóis do século XX.

– Obrigada – disse Oona quando Kiki retirou a mordaça que tinha sido
enfiada em sua boca. – Eu bem que podia beber uma água.

– Não deixe ele sair! – gritei, apontando para Lester Liu que se esgueirava
para uma saída. – E cuidado com a bengala dele!

O diretor do museu, uma atriz da Broadway e o CEO de uma empresa de


informática detiveram o pai de Oona na porta. A socialite Gwendolyn Gluck
apareceu furtiamente atrás de Lester Liu e pegou sua bengala assim que ele
tentou retirar a adaga oculta. Depois que sua fuga foi frustrada, abri
caminho pela multidão até Kiki e a encontrei mexendo nas amarras de
Oona.

– Parece que a menina que está amarrada no fundo do caixão – observou


um espectador. Toda a sala tinha se reunido para testemunhar a comoção.

– Este é mesmo o evento da temporada! – exclamou alguém.

– Passe uma faca à menina pálida – exigiu alguém. Kiki libertou Oona com
uma faca de carne. Por baixo das tiras de tecido, Oona estava descalça e
usava uma camisola branca e sem mangas. Sua pele estava coberta de
vergões vermelhos, de ficar amarrada. Ela pegou uma garrafa de água em

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uma mesa e a emborcou. Depois a multidão se separou enquanto Oona ia


ao palco para falar à plateia.

– Acho que ela é a menina que faz minhas unhas – cochichou uma mulher. –
O que ela vai dizer? Ela não fala inglês nenhum.

Eu não podia sentir um orgulho maior ao ver Oona tomar o microfone. A


mesma menina que antigamente nunca teria saído de casa sem seus
diamantes e bolsas de grife estava diante da multidão mais elegante de
Nova York usando só uma camisola.
– Olá a todos. Estou muito cansada, então serei breve. Meu nome é Oona e
Lester Liu é meu pai. Há quatorze anos, ele me abandonou porque eu não
era menino e esta noite ele tentou me matar porque eu sei a verdade. Tudo
o que viram nesta exposição foi ilegalmente contrabandeado da China no
início deste ano. Como veem, é isso que meu pai faz. Ele contrabandeia
artefatos, gente... Até contrabandeia espécies em risco de extinção.

"Lester Liu não é um filantropo. Ele só ofereceu estes objetos ao museu por
um motivo. Precisava ter acesso às galerias a fim de roubar cinco pinturas
inestimáveis, que ele prometeu a um gângster russo pervertido. As telas
foram cortadas de suas molduras e levadas para fora do prédio enquanto se
preparava a exposição da Imperatriz. Foram substituídas por falsificações
criadas por 12 jovens artistas que ele raptou de seus lares em Taiwan. Ele
conseguiu seus nomes com dois psicólogos de Nova York e um especialista
asiático em crianças superdotadas. As obras de arte originais estão
escondidas no apartamento daquele homem. – Todos os olhos se
concentraram no dr. Jennings, o curador assistente que conheci durante
minha última visita ao museu. O homem com cara de passarinho de
imediato caiu em prantos. – Agora – continuou Oona. – Imagino que a polícia
tenha sido chamada. Estou disposta a fazer quaisquer perguntas que eles
queiram fazer.

Assim que o discurso de Oona terminou, celulares foram sacados das bolsas
e bolsos e o flash de câmeras iluminou a sala. Pelo canto do olho, vi Kiki
indo de fininho para a saída. Eu a alcancei assim que ela bateu na porta.

– Eu vou com você – disse a ela. – Ainda não estou preparada para ir para
casa.

– Ei, Iris, pode abrir – chamou Kiki pela porta.

– Correu tudo bem? – O vestido roxo de Iris estava rasgado e coberto de


manchas de grama.

– Obrigada – eu disse. – Você está ficando ótima em salvar nossa pele.

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– Alguém tem que fazer isso. – Iris estava radiante.

– Escutem, eu não posso estar aqui quando a polícia chegar – disse-lhe Kiki.
– Diga a Kaspar e às outras meninas para nos encontrarem no Fat Frankie's
às nove horas.

Kiki e eu estávamos na metade do tapete verde-jade quando alguém me


chamou.

– Ah, srta. Fishbein. – Senti meu coração parar. – Não me diga que vai sair
sem falar comigo.

– Oi, diretora Wickham – murmurei enquanto me virava.

A diretora se aproximou de Kiki e estendeu a mão.

– Srta. Strike. É um prazer vê-la novamente. Parece que você era mesmo
perigosa, afinal.

– A senhora se lembra. – Kiki estava impressionada.

–Nunca me esqueço de uma aluna – disse a diretora Wickham. – Em


particular uma aluna com ambições tão incomuns. Agora, Ananka, imagino
que o incidente desta noite tenha alguma coisa a ver com seu
desaparecimento ontem pela manhã, pois não?

Não consegui pensar em nada para dizer, então assenti.

– Aquela menina no palco é amiga sua, não é? – Eu assenti de novo.

– Bem, então, uma vez que você só ajudou a frustrar um importante roubo
de obras de arte, acho que podemos perdoar sua ausência da escola. Verei
você na segunda de manhã cedo. O sr. Dedly está ansioso para discutir sua
descoberta. Mas por ora sugiro que corra para casa. Seus pais colocaram
metade do departamento de polícia procurando por você em Manhattan.

– Não posso ir para casa, diretora Wickham. Se eu for, estaria no próximo


ônibus para a Virgínia Ocidental. Não posso me arriscar a ser mandada para
o internato.

– Ah. – A diretora Wickham pensou por um momento. – Receio que também


não possa me arriscar a perder você. Entenda, contei a muitas pessoas
sobre a sala oculta embaixo da sinagoga Bialystoker. Odiaria que elas
pensassem que eu finalmente estou ficando senil. O que diria se eu fosse à

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sua casa amanhã à tarde e explicasse umas coisinhas se eu fosse à sua


casa amanhã à tarde e explicasse umas coisinhas a seus pais?

Meu coração disparava. Não suportei olhar para Kiki.

– Tudo bem – engoli em seco.

– Excelente! Verei você amanhã ao meio-dia. E bom trabalho esta noite,


Ananka. Srta. Strike, se um dia quiser voltar à Atalanta, eu ficaria feliz em
lhe dar uma bolsa.

Um grupo de policiais passou correndo por nós, e Kiki e eu corremos para a


saída do museu. Eu não disse nada até que estávamos na escadaria da
frente.

– Eu posso explicar... – comecei a dizer.

– Poupe sua saliva – rebateu Kiki. – Vamos discutir isso em grupo.

COMO PENETRAR EM UMA FESTA

Uma boa detetive nunca precisa de convite. Não deixe que uma corda de
veludo a impeça de desbaratar um crime ou conseguir pistas. Quer você
esteja seguindo um suspeito a um bat mitzvah ou a uma festa do Oscar, há
incontáveis maneiras de passar pela porta.

Faça o dever de casa

Quem foi convidado? Há alguém na lista que não vai comparecer? A


imprensa pode aparecer? Servirão comida? Quanto mais você souber, mais
fácil será escolher um curso de ação.

Confiança, confiança, confiança

Não são só os cães que sentem o cheiro do medo. Qualquer bom porteiro
pode detectar o nervosismo e a ansiedade a uma quadra de distância. Se
quiser entrar, você tem que acreditar que ali é o seu lugar. E sempre tenha
uma boa história preparada muito antes de aparecer.

Faça disto um desafio

A maioria dos penetras de sucesso faz isso por todos os motivos errados.
Quer sejam alpinistas sociais ou persigam estrelas, eles tendem a levar tudo
muito a sério. Lembre-se de que o mundo não vai acabar se você não
conseguir entrar – você vai conseguir o que quer de uma maneira ou de

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outra. Quanto menos você se importar, maiores são suas chances.

Use uma fantasia

Por que se arriscar a ser parada na corda de veludo se você pode entrar
tranquilamente pela porta dos fundos? Um uniforme de garçonete, avental
de cozinheira, roupa de faxineira, kit de encanador ou distintivo de
bombeiro a colocarão para dentro da maioria das entradas de serviço.
Certifique-se de levar uma muda de roupa, ou você poderá terminar
servindo hors d'oeuvres ou enfiando-se em privadas a noite toda.

Adote uma comitiva

Este truque consagrado requer alguma astúcia. Espere num lugar discreto
até que um grande grupo de pessoas se aproxime da porta. Depois
simplesmente se una à turba. É improvável que o porteiro interrogue cada
pessoa – em particular se houver alguém importante na frente do grupo.
Mas cuide para dar a impressão de que pertence a seus novos amigos. Se
você estiver vestida da cabeça aos pés de J. Crew, provavelmente vai se
destacar numa multidão de lolitas ou motoqueiras.

Tire proveito de sua idade

Infelizmente, isto só funciona se você tiver menos de 15 anos e a festa não


for só para adultos. Provoque uma ou duas lágrimas e diga ao porteiro que
está procurando seus pais, sua carteira ou um dos brincos de pérola de sua
mãe. Se você for acompanhada para dentro, simplesmente escape de seu
companheiro. É provável que ele não vá perder tempo procurando uma
criança inocente.

Peça para ir ao banheiro

Este ardil funciona melhor nas festas maiores e mais elegantes. Antes da
festa, vista sua melhor roupa, mas use sua capacidade de disfarce para
parecer doente. Corra para a entrada quando o porteiro estiver ocupado
(mas não sobrecarregado) e pergunte a ele onde é o banheiro. Se seu
pedido parecer urgente – não exagere – você será conduzida para dentro.
Ninguém quer vômito no tapete vermelho.

Não tome chá de cadeira

Depois que entrar, misture-se. É menos provável que você seja expulsa se
fizer novos amigos.

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CAPÍTULO DEZESSEIS

Segredos revelados

As Irregulares estavam espremidas numa cabine do Fat Frankie's. Iris tinha


escapulido dos pais em toda a confusão, alimentava com fritas três esquilos
grande escondidos embaixo da mesa enquanto Kaspar e Betty namoravam
distraídos. Uma torre de pratos vazios era prova da fome feroz que tomara o
grupo quando chegamos ao restaurante. Kiki e eu tomamos café enquanto
as outras encheram a boca de uma grama de delícias gordurosas. Luz tinha
devorado sozinha dois churrascos gregos, um hambúrguer e um sundae
com calda. Eu não comia havia mais de 36 horas, mas as pontadas de fome
que devia estar sentindo tinham murchado por causo do medo.

Enquanto esperávamos que Oona terminasse com a nata de Nova York, as


outras conversavam, principalmente sobre a menina misteriosa que fora
apresentada como filha de Lester Liu. Luz insistia que era gêmea de Oona.
Betty não tinha certeza. DeeDee não acreditava que houvesse algum
parentesco. Quando pediram sua opinião, Kiki deu de ombros e se recusou a
se unir ao debate. As apostas estavam sendo feitas quando Oona entrou no
Fat Frankie's. Luz sutilmente enfiou seu dinheiro no bolso e puxou outra
cadeira para a mesa.

Talvez graças a nossos trajes ridículos, nenhuma de nós tinha considerado o


que Oona pudesse vestir depois da festa. Ela chegou exibindo um poncho
de chuva de plástico da polícia por cima da camisola da algodão, e os pés
sobravam dentro de um par de tênis All Star grandes demais. De algum
modo ela fazia a roupa parece chique. E apesar do fardo de arrepios e fibras
sintéticas, ela parecia mais feliz do que eu já vira.

– Oi, baixinha – disse ela, sentando-se ao lado de Iris. – Vestido bonito.


Quem pensaria que eu seria salva por um monte de esquilos e uma ameixa
falante?

Iris retribuiu com um sorriso.

– Bem-vinda, Wong. Vejo que seu namoro com a morte não melhorou muito
sua personalidade.

– Não sabia? Eu sou irremediável. – Oona riu. – Sugiro que se acostume com
isso.

– Como foi tudo com a polícia? – perguntou Luz.

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– Digamos apenas que Lester Liu não incomodará mais nenhuma de nós por
um bom tempo. A polícia está na mansão agora. Junto com sequestro,
tentativa de assassinado, roubo de obras de arte e contrabando, parece que
eles pretendem acusá-lo de comer animais em risco de extinção e manter
um cadáver na asa. Acho que é ilegal em Nova York... Quem diria? E eles
encontraram Molotov e Sukh... Vocês realmente deram um show com
aqueles dois.

– Eles estão mortos? – sussurrou Betty.

– Não, mas talvez preferissem estar. Ouvi os paramédicos dizerem que


Molotov ficará engessado da cabeça aos pés por meses. Precisamos ir ao
hospital e passar pimenta no nariz dele.

– E a outra menina? – perguntei. – Descobriu quem ela é?

– Lillian Liu? Ela foi embora há muito tempo – disse Oona. – E Lester não
está falando. Nunca tive a oportunidade de vê-la. Ela era mais bonita do que
eu? Brincadeirinha. É sério, como é a garota?

– Hmmmm – disse Luz, nervosa. – Sabe de uma coisa, é gozado. Ela é


igualzinha a você.

Oona recebeu a informação sem se deixar perturbar.

– Acho que tinha de ser muito parecida, para o plano de meu pai dar certo.
Eu me pergunto onde ele achou um espécime tão extraordinário de beleza
feminina.

– Não, é sério, Oona. Ela é idêntica a você – insistiu Luz. – Tem certeza de
que você é filha única de Lester Liu?

– Luz precisa de óculos – intrometeu-se DeeDee. – Não achei que fosse tão
parecida assim. Mas o que deu errado com o plano? Por que eles decidiram
amarrar você?

– Acho que foi só falta de sorte. Sukh me deu uma injeção e, como não senti
nada, deduzi que vocês tinham trocado a droga. Tentei ficar imóvel, mas é
muito mais difícil do que vocês pensam. Justo quando eles estavam me
colocando no esquife, deu comichão no meu nariz e Molotov me pegou no
meio de uma coçada. Acho que eles não tiveram tempo para experimentar
outra droga, então só me amarraram no fundo e me embrulharam. Eu tive
sorte por vocês todas terem ido à festa. Se não estivessem lá, eu podia ter
ficado muito entediada dentro daquele caixão.

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– Pode brincar agora, mas não devia ter arriscado sua vida – disse-lhe
Kaspar. – Se alguma coisa desse errado, nós não nos perdoaríamos. Mas
obrigado por nos proteger.

Oona franziu a testa.

– Não precisa me agradecer. Eu devo isso a essas meninas. Dei um


trabalhão para elas confiarem em mim e elas ainda apareceram para salvar
o dia. – Ela se virou para nós. – Eu devia ter contado a vocês sobre Lester
Liu há anos. Desculpe se coloquei vocês em perigo.

– Nós é que pedimos desculpar por duvidar de sua lealdade – disse-lhe


DeeDee. – A gente devia ter mais confiança em você.

– Então sugiro que todas nós paremos de pedir desculpas. Tudo ficou bem
no final, não foi? – Oona sorriu.

– Estou louca pra ter um pouco de paz e sossego. – Betty suspirou.

– E dormir um pouco – acrescentou Luz.

– Não esperem nada de imediato – Kiki enfim falou e as Irregulares ficaram


em silêncio. – Ananka tem uma confissão a fazer.

Todos os olhos se voltaram para mim. Foi a surpresa nelas que me deixou
doente. Ninguém esperava que eu quebrasse alguma regra.

– Quando me encrenquei na escola, minha diretora meu deu um trabalho


como castigo. Eu escrevi sobre a Ferrovia Subterrânea.

– Não quer ser mais específica? – Kiki me incitou.

Respirei fundo e deixei que as palavras saíssem no bafo.

– Escrevi sobre a estação da Ferrovia Subterrânea embaixo da sinagoga


Bialystoker. Aquela que Kiki e eu descobrimos na Cidade das Sombras.

– Você fez o quê? – Luz ficou de pé num salto e um prato se quebrou no


chão, espalhando ketchup numa cadeira.

– Ah, Ananka! – Betty estava apavorada. – Por quê?

– Do que ela está falando? – cochichou Kaspar para Iris. – O que é a Cidade
das Sombras?

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– Não posso te contar – sussurrou Iris.

– Acho que pensei que a estação não devia ser segredo – eu disse a Betty. –
Mas nunca pensei que a diretora levaria isso a sério. Pensei que ela ia rir
disso. Não sou exatamente uma aluna estelar na Atalanta. Mas por acaso a
diretora acreditou em cada palavra daquilo.

– E ela contou a outras pessoas – acrescentou Kiki. – Ananka colocou a


Cidade das Sombras em risco de ser descoberta. Precisamos decidir o que
fazer. Precisamos decidir esta noite.

– Quer dizer decidir como evitar que as pessoas entrem nos túneis? –
perguntou Iris.

– Sim. E decidir se Ananka deve continuar como membro das Irregulares.

Olhei a mesa, incapaz de fitar os olhos dos outros. O silêncio aturdido era
aflitivo.

Por fim, DeeDee pigarreou:

– Ananka, não sei por que você achou que a diretora não acreditaria. Isso foi
idiotice, se não se importa que eu diga. Mas estou curiosa... Por que você
acha que a sala debaixo da sinagoga Bialystoker não deve continuar em
segredo?

– Bom... – A verdade era que eu não tinha pensado muito bem em meus
atos. Só segui meus instintos. – Acho que andei pensando em segredos e
como é difícil saber qual deles guardar. Sem querer ofender, Oona, mas seu
segredo acabou causando muitos problemas. E depois fiz coisas ainda
piores, abrindo a boca e deixando escapar um segredo que Kiki me pediu
para guardar. Mas há uma coisa que eu tenho certeza. Não acho que um
segredo deva ser guardado, se sua revelação tornar o mundo melhor. Quem
construiu aquela sala com as dez caminhas arriscou a própria vida para
ajudar os outros a escapar da escravidão. E as pessoas que passaram por
isso foram corajosas o bastante para fazer o que era necessário para ganhar
a liberdade. A Ferrovia Subterrânea não é como a Cidade das Sombras.
Guardá-la para nós mesmas seria egoísmo. Mas entendo que a decisão não
cabe a mim. Eu devia ter falado com vocês antes.

DeeDee me olhava com uma expressão vaga e científica. Eu tinha certeza


de que não a havia convencido.

– Concordo com Ananka – disse ela. – As pessoas devem saber da estação


da Ferrovia Subterrânea.

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– Eu também acho – disse Betty.

– A resposta a seu dilema está debaixo do templo – Oona citou. – Ainda não
sei o que significa, mas voto em deixar as pessoas saberem.

– O que está dizendo? – perguntou Luz. – Deixa pra lá. Concordo com vocês.
E também acrescento que Ananka não tem sido a única pessoa a ter
segredos por aqui, srta. Strike. Mas o que vamos fazer? Vamos abrir a
Cidade das Sombras ao público? Acabou tudo?

– Espere aí. Deixe-me pensar por um segundo. – DeeDee baixou a cabeça e


deixou os dedos acompanharem a cicatriz na testa. – A sala fica no final de
um túnel, né? E se a gente provocar uma explosão e bloquear a passagem?
A gente pode dar às pessoas acesso àquele depósito com todas as ostras
em conserva. Só vamos dar a impressão de que o túnel nunca foi tão longe.
Ninguém ia saber a diferença.

– Gostei! – disse Luz. – Não tenho uma boa explosão faz tempo.

– Parece uma solução razoável – admitiu Kiki. – Então acho que todas
concordamos. Ananka fica e a Ferrovia Subterrânea vem a público. Alguma
pergunta?

Kaspar levantou a mão.

– Eu tenho uma. Vocês estão falando de alguma espécie de cidade


subterrânea?

Toda a mesa uivou de rir.

***

As Irregulres votaram por unanimidade em deixar Kaspar saber de nosso


segredo. Kiki até prometeu a ele um giro pela Cidade das Sombras. Com
uma condição.

– Como Luz observou, tem havido alguns segredos vagando por aqui. Acho
que está na hora de todos nós colocarmos as cartas na mesa. Então, se
alguém está guardando alguma informação, agora é a hora de contar. Vou
começar. Desculpe por não contar a vocês que a doença de Verushka era
grave. Minhas intenções eram boas, mas todas mereciam saber. Também
gostaria de recomendar que só usemos o Fille Fiable nas emergências mais

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terríveis... E que a gente prometa nunca usar uma na outra. Todo mundo
concorda?

– Concordo! – gritou a mesa.

– Muito bem, Kaspar, é sua vez.

– Bem... – Kaspar olhou nervoso para Betty. – Isso é mais difícil do que eu
pensava. Meu nome não é Kaspar, é Phineas Parker. Eu fugi de casa há
alguns meses. Meus pais são... Bom, é difícil descrever os dois.

– Eu sei – disse Betty. – Eu os conheci. Fomos procurá-los depois que você


desapareceu.

– Vocês foram? – A cara de Kaspar corou de constrangimento. – O que quer


que eles tenham dito, eu peço desculpas. Eles podem ser bem cruéis.

– Não precisa se desculpar – Betty o tranquilizou. – Não achamos mais que


as pessoas são responsáveis por seus pais.

– São os psicólogos de que Oona falou na festa de gala... Aqueles que


deram a Lester Liu os nomes das crianças taiwanesas? – perguntou DeeDee.

Kaspar assentiu.

– Tenho certeza de que vi o pai de Oona no consultório de meus pais antes


de fugir. Duvido que eles pretendessem fazer alguma coisa errada. Eles não
são os melhores pais do mundo, mas não acho que sejam criminosos.
Agora, se importam se a gente continuar? Estou curioso para saber dos
segredos que Betty esconde?

– Meus segredos? Tudo bem, lá vai. Quero que todos sabiam que decidi
honrar meu acordo com Kaspar. Vou jantar com ele... Se ele ainda quiser.

– E o... você sabe o quê? – perguntou Luz.

– O quê? – perguntou Betty, confusa.

– Eau Irresistible? – sussurrou Luz.

– Minha vez. – Oona rapidamente levantou a mão. – Ananka e eu por acaso


ouvimos uma conversa sobre a primeira vez que Kaspar viu Betty.
Aconteceu um mês antes de ela tomar uma chuva de Eau Irresistible. –
Kaspar e Betty ficaram no mesmo tom de vermelho.

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– Eu não diria que é um segredo, mas há uma coisa que eu devia ter
contado a vocês antes – interrompeu DeeDee. – Iris fez mais uns testes em
mim. O perfume do amor não funciona. Nunca funcionou.

– Fiquei a fim de um cara que faz as entregas de uma loja de falafel –


admitiu Iris. – Eu praticamente tomei um banho de Eau Irresistible e ele nem
olhou duas vezes para mim. E eu dou gorjetas ótimas!

– É este o seu segredo? – Oona riu.

– Tenho 11 anos. Dá um tempo – disse Iris.

– Sabe de uma coisa, um dia você não vai mais precisar de perfume
nenhum – disse-lhe Kaspar, e Iris se retorceu de prazer.

– Luz? – incitou Kiki. – Alguma coisa que queira contar?

– Humm, bom, meu nome não é Luz Lopez. É Amber White. Sou uma
dentista protética de 45 anos de Toledo e nas minhas horas de folga gosto
de me vestir de personagens da Disney. Entrei para as Irregulares porque
gosto mesmo de andar com meninas de 14 anos. Espero que não usem isso
contra mim.

DeeDee riu tanto que o café que bebia saiu pelo nariz.

– Tudo bem, Luz – disse Kiki. – Entendemos. Sem segredos. Oona, mais
alguma coisa que gostaria de contar ao grupo?

– Não olhe para mim, estou totalmente limpa. Vocês sabem de tudo.

– Ah, é mesmo? – cantarolou Iris. – E os jalecos de laboratório? E o kit de


química?

– Parece que agora é uma detetive – disse Oona. – Aquilo não era segredo.
Imaginei que você devia ter um ou dois presentes depois que eu fui tão
desagradável. Mas pode mandar seu bilhete de agradecimento a Lester
Liu... Foi ele que pagou.

– Acabou? – perguntou Kiki. – Alguém tem mais alguma coisa para


desabafar?

– Há uma cosia que você deve saber, Oona – eu disse suavemente. – Todo
mundo ficou nervoso. – Quando invadimos a mansão, acho que tive uma
ajudazinha.

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– Está falando da fantasma? – perguntou Oona. – Ela é uma mão na roda,


né? Será que a sra.Fei vai deixar que ela venha nos assombrar?

– É, mas tem outra coisa. Sergei nos contou que ele atirou toda a comida
naquela noite e fez os barulhos para nossos grampos. Se a mansão tem
mesmo um fantasma, não acho que seja da sua mãe.

– É claro que não é – disse Oona. – É de Cecelia Varney.

– Você sabia? – perguntou Betty.

– Claro. Descobri quando ela me mostrou o quarto secreto. Acho que ela
não queria que eu tivesse o fim que ela teve... Rica, solitária e paranoica. Eu
queria poder fazer alguma coisa por ela.

– Acho que sei como pode agradecer a Cecelia Varney – disse Kiki.

***

Saímos do Fat Frankie's às dez da noite. Iris parou um táxi e foi correndo
para casa, esperando que o que restava do Fille Fiable ajudasse a
convencer os pais de que ela se perdera na loucura do museu. O restante
de nós foi para a casa de Oona. Ainda havia duas tarefas a terminar antes
de ir para asa enfrentar nossos castigos. Afinal, aquelas de nós que tinha
pais podiam ver a luz do dia só no ano-novo. A maioria das Irregulares fez
cara de corajosa, mas Luz perdia toda a cor sempre que pensava no que a
mãe tinha reservado para ela.

O cheiro de bolinhos enchia a escada do prédio de Oona e podíamos ouvir


gente rindo dentro do apartamento. Yu, Siu Fah e as outras crianças
sequestradas estavam comemorando a liberdade na sala de estar. Elas
aplaudiam quando entramos no apartamento e encheram Oona de
perguntas. Enquanto ela respondia a cada um deles em hakka, Kiki e eu
fomos ver Verushka. Nós a encontramos na cozinha, trinchando uma
galinha. Embora se curvasse muito numa muleta, Verushka estava fora da
cadeira de rodas, e sua pele, branca, parecia incrivelmente humana. As
ervas da sra. Fei a trouxeram de volta das portas da morte.

– Kiki! Ananka! – Verushka baixou a faca, mancou pela sala e atirou os


braços em nós duas. – As crianças contaram sobre a múmia e o museu. Saiu
tudo como planejado?

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– E alguma coisa chegou a ser planejada? – perguntei. – Fico feliz em ver


que parece tão saudável, Verushka. Sente-se bem como aparenta?

– Ah, sim – Verushka confirmou. – A sra. Fei é uma excelente médica. Mas
estou pensando que seria melhor estar morta. – Kiki olhou apavorada e
começou a se opor, mas Verushka a silenciou. – Escute, Katarina. Se Livia
acreditar que estou morta, teremos a vantagem de novo.

– O elemento surpresa? – perguntou Kiki. – Não tinha pensado nisso.

– Precisamos achar um jeito de as pessoas acreditarem que morri.

– Mas não tem que se preocupar com Livia e Sidonia – eu disse. – Agora que
destruímos seus planos, elas não vão voltar a Nova York.

Verushka me deu um tapinha no ombro.

– Temos que ensinar você a jogar xadrez logo – disse ela. – Assim vai
aprender a pensar à frente. Sempre precisamos nos preocupar com Livia e
Sidonia. Elas fizeram um movimento e agora temos que fazer o nosso.
Vamos obrigá-las a voltar a Nova York.

– Por quê? – perguntei, assim que a sra. Fei saiu da despensa com os braços
cheios de latas.

– Onde está Wang? – perguntou a velha, ansiosa ao nos ver. – Ela está
segura?

– Está na sala – garanti a ela. – E Lester Liu na cadeia.

– Falando de mim de novo? – A boca da sra. Fei se fechou quando Oona


empurrou a porta. – Continue, sra. Fei, pratique seu inglês. – Oona cruzou os
braços e esperou que a velha falasse.

– Desculpe. Aprendi inglês por que você nunca me contava nada. Eu só


queria sua segurança.

Oona baixou os braços e pegou uma cenoura na bancada. Mordeu a ponta e


mastigou despreocupadamente.

– Quer que a gente saia? – perguntou Verushka.

– Não, podem ficar. Não tenho mais nada a esconder. Sabe de uma coisa,
sra. Fei, uma fantasma me disse que alguém estava sempre ouvindo.
Precisei de um tempo para entender que ela se referia à senhora.

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– Uma fantasma? Você falou com sua mãe? – sussurrou a sra. Fei.

Oona pensou por um momento.

– Não sei se era minha mãe – confessou ela. – Nem tenho certeza se era um
fantasma. Mas o que quer que fosse, sabia do que estava falando. Ela disse
que eu tinha que tomar a decisão de deixar tudo para trás. Se eu agisse
assim, teria tudo que desejasse.

A sra. Fei ficou confusa.

– Mas Ananka disse que Lester Liu está na cadeia. Como ele pode lhe dar
tudo o que você quer?

– Não quero mais o dinheiro, nem a mansão. Nem ligo para todas as roupas
bonitas e joias. Foram essas coisas que escolhi deixar para trás. Percebi que
só o que queria era que alguém em quisesse. Perdi tempo demais
esperando que fosse o meu pai.

A sra. Fei tentou consolá-la.

– Eu tentei avisá-la. Lester Liu é um homem mau.

Oona assentiu.

– Acho que sempre soube disso. Fiquei confusa por um tempo, mas no fundo
eu sempre soube que ele não poderia ter mudado. Quando a fantasma me
disse que eu tinha de cumprir o meu dever, pensei que significasse colocar
Lester Liu na prisão. Mas não foi o que ela quis dizer. Ela queria que eu
cumprisse meu dever para com você.

– Comigo? – perguntou a sra. Fei.

– Você é a única mãe que eu tive. É a melhor mãe que eu poderia ter. Não
tinha de cuidar de mim. Fez isso porque quis. Eu devia ter entendido há
muito tempo. Assim eu podia ter passado menos tempo me lamentando
pelo que eu não tinha, e mais tempo apreciando o que eu tinha. Desculpe.
Você merecia uma filha melhor.

Lágrimas desceram pelas rugas da velha e Oona se curvou e a envolveu


num abraço.

– Você é uma boa menina, Wang. – A sra. Fei soluçava.

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– Ainda bem que pensa assim, mas ainda prefiro Oona.

– Teimosa como sempre – eu ri.

– De onde acha que eu tirei isso? – perguntou Oona. – Aliás, tenho uma
pergunta, sra. Fei. Tinha uma menina no museu esta noite. Lester Liu a
apresentou como filha dele. Isso é possível? Será que ela é minha parente?

A sra. Fei assoou o nariz e limpou as lágrimas do rosto.

– A outra neném morreu.

– Outra neném?

– Sua mãe estava muito doente. Os bebês nasceram cedo demais. Lester
Liu não queria chamar um médico. A casa dele era cheia de coisas que ele
contrabandeava. Eu era a única pessoa que sabia o que fazer. Tentei salvar
as duas. Mas Lili não sobreviveu. Quando levei você, eu a deixei com sua
mãe.

Oona se encostou na bancada.

– Eu tinha uma irmã gêmea?

– Lili? – perguntou Kiki.

COMO SABER QUANDO CONTAR UM SEGREDO

Nem sempre é fácil saber que segredos devem ser contados – e quais
devem ser guardados a todo custo. Uma vez que costumo confundir as duas
coisas, consultei as pessoas mais éticas que conheço e elaborei este guia
útil. Agora, sempre que estou prestes a contar um segredo, faço a mim
mesma estas nove perguntas simples.

Quer experimentar? Reserve um momento e pense no maior segredo que


conhece...

1. O segredo é picante e saboroso?

Isso não importa. Eu só estava curiosa. Mas não me conte. Passe para a
questão 2.

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2. Contar o segredo derrubará um ditador, resolverá um crime


covarde ou colocará um cara mau atrás das grades?

Se sua resposta for sim, você sem dúvida deve contar. Mas certifique-se de
confidenciar às pessoas certas. Existem espiões em toda parte.
Se sua resposta for não, passe à pergunta 3.

3. Se não contar o segredo, você ou outra pessoa será prejudicada?

Se a resposta for sim, qualquer heroína que se dê ao respeito acharia


coragem para desabafar.
Se não, passe à pergunta 4.

4. Alguém será prejudicado se o segredo for revelado?

Já existe muita dor e sofrimento no mundo, então, se sua resposta for sim, é
provável que você deva manter os lábios selados.
Se não, vá para a pergunta 5.

5. Se você contar o segredo, podem acontecer coisas boas?

Se as resposta for sim, uma pessoa de virtude abriria o bico. Em algumas


situações, guardar um segredo que deve ser contado pode ser tão ruim
quanto tagarelar sobre um que não deve.
Se a resposta for não, passe à pergunta 6.

6. O segredo pertence a outra pessoa?

Se você chegou até aqui e sua resposta for sim, você deve considerar
seriamente ficar de boca fechada.
Se não, continue, por favor.

7. Existe a possibilidade de seu segredo ser revelado?

Esta é uma pergunta espinhosa. Um dia, todos os segredos serão revelados.


Você terá mais controle sobre a situação se seguir em frente e contar seu
segredo antes que outra pessoa o faça. Tenha em mente que quanto mais
tempo guardar um segredo, mais danos ele pode causar.

8. Seu segredo é particularmente constrangedor?

Se sim, você pode assumir o risco e guardar para si. (Mas lembre-se sempre
da pergunta 7.)
Se você chegou ao final deste questionário e sua resposta for não, você
provavelmente tem um segredo bem sem graça, a não ser que...

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

9. Você descobriu um tesouro escondido, uma espaçonave


alienígena ou uma cidade perdida?

Se sim, fique à vontade para contar o segredo a mim.

CAPÍTULO DEZESSETE

Um lugar como o nosso lar

No início da manhã seguinte, enquanto o sol lento de inverno se


aproximava do East River, as Irregulares se despediam no alpendre
escorregadio e coberto de neve do prédio de Oona. Kaspar, Betty e eu
partimos para encontrar Howard Van Dyke e o gato de seis dedos. Kiki e as
outras foram para o Cemitério de Mármore. DeeDee passou a noite
preparando um lote de explosivos com a sua marca registrada e, antes que
o dia acabasse, a Cidade das Sombras estaria um pouco menor.

Parei para comprar um café da manhã para Howard, mas quando chegamos
ao parque e sacudimos a neve de seu esconderijo, encontramos tudo
deserto. Os esquilos de Kaspar dispararam para dentro para se banquetear
de uma late meio devorada de feijão, provocando uma tempestade de
penas e folhas.

– Não entendo. – Os olhos de Kaspar percorreram as árvores próximas como


se esperasse encontrar o amigo empoleirado num galho. – Howard sempre
fica aqui de manhã. Ele gosta de dormir até tarde.

– Não o viu ontem à noite, quando veio procurar os esquilos? – perguntei. Eu


queria ter procurado por Howard antes. O clima estava ficando frio demais
para um corretor de ações selvagem.

– Não, mas isso não me surpreendeu. Ele observava a família à noite.


Quando as luzes se acendem na casa deles, dá para ver cada movimento.
Howard chama de TV de mendigo. Os esquilos preferem ficar no parque.
Eles têm lembranças ruins do Upper West Side.

– Howard tem família em Manhattan? – perguntou Betty. – Por que não mora
com eles?

– Mas eu pensei que você... – comecei a dizer antes de finalmente entender.


Havia outra pessoa que podia ter tido aquela conversa franca com Howard.
Eu devia ter percebido mais cedo que a estrela de cinema chinesa e
benevolente que o instou a ir para casa não era outra senão Oona Wong.

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– A mulher e os filhos dele moram na rua 75 – disse Kaspar. – Ele fugiu deles
no verão passado. Howard sempre chorava quando falava deles, mas nunca
me contou por que foi embora.

– Ele contou a mim – eu disse. – E tenho o pressentimento de que Howard


foi para casa.

***

A família de Howard morava numa rua charmosa e arborizada, numa casa


de arenito de cartão-postal com uma grande janela de sacada. Um
menininho levado estava de nariz apertado feito um porco no vidro. Betty
acenou e ele mostrou a língua. Quando tocamos a campainha, uma mulher
roliça e bonita, de pérolas, atendeu à porta. O menino nos espiou de atrás
de sua saia, a cara retorcida numa careta horrível de gárula.

– Sra. Van Dyke? – perguntou Kaspar.

– Sim – respondeu ela cautelosamente, esfregando as mãos para preservar


o calor.

– Olá, senhora. Meu nome é Kaspar. – Ele não teve oportunidade de explicar
mais nada. A mulher de Howard voou para fora e passou os braços nele.
Betty riu de surpresa.

– Kaspar! – exclamou a mulher. – Howard me contou tudo sobre você.


Obrigada por mantê-lo vivo esse tempo todo. Eu fiquei louca por meses!

– Ficou? – A voz de Kaspar ficou abafada pelo suéter da mulher.

– Quase morri de alegria quando o vi – disse a sra. Van Dyke. – Estava


começando a pensar que ele nunca viria para casa.

– Então não está mais zangada com ele? – Eu soltei antes que percebesse
que estava ficando meio pessoal demais. – Desculpe. É só que Howard me
disse que ele perdeu todo o dinheiro da família.

A sra. Van Dyke soltou Kaspar e olhou por sobre o ombro para ver se
alguém estava ouvindo. Quando viu o filho fazendo careta para nós, ela o
enxotou para dentro e fechou a porta com delicadeza.

Kirsten Miller
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– No início eu fiquei chateada – disse ela suavemente. – Mas vou lhes contar
um segredinho. Quando me casei com Howard, eu sabia que ele não era o
melhor corretor do mundo. E podem acreditar, esta não era a única culpa
dele. Ele também é um tremendo porcalhão. Uma vez encontrei a cueca
suja dele numa caixa de pão e ele tinha uma crise de comilança daquelas
horrendas salsichas Viena todo mês. Mas ele era o homem mais
maravilhoso que conheci. Então, fiz o que tinha de fazer. Guardei o dinheiro
todo mês, para o caso de acontecer alguma coisa, e nunca contei a ele
sobre nossas economias. Com os juros que ganhei, nós ficamos muito bem.

– Mas eu soube que levaram toda a mobília – eu disse.

– Eles vieram mesmo, é verdade. Mas eu cuidei da conta na hora.

– Se ele soubesse... – Kaspar gemeu.

– Não há a quem culpar – a sra. Van Dyke o tranquilizou. – Howard não


estava com os comprimidos dele no dia em que os homens vieram pegar os
móveis. Caso contrário, não acho que ele ficasse escondido por tanto
tempo. Como pode ter percebido, ele fica meio confuso com os remédios.
Ele sofreu uma lesão bem feia na cabeça alguns anos atrás. Ele estava se
exibindo e mergulhou na piscina de crianças em um resort em Acapulco –
confidenciou ela. – Mas chega de história antiga por hoje. Imagino que
tenham vindo ver Howard, e não a mim.

***

Na sala de estar dos Van Dyke, encontramos um homem sentado no chão a


menos de 3 metros da televisão. Se April, a galinha, não estivesse ao lado
dele, eu talvez não reconhecesse Howard. Limpo, barbeado e sem cheiro,
ele vestia um blazer azul-marinho e gravata listrada de Harvard.

– Ora, olá! – Ele pulou quando nos viu e apertou nossas mãos. – Nem
acredito no que perdi! Estive acompanhando os noticiários por dois dias
seguidos. Vocês souberam do bezerro de duas cabeças em Minnesota?
Esperem um minuto... – Ele parou e farejou o ar em volta de nós. – Kaspar,
seu cheiro é praticamente humano! Você também voltou para casa?

– Se minha casa fosse assim, eu teria voltado há séculos – disse-lhe Kaspar.


– Mas ainda estou por minha conta, sozinho. Bom... Não exatamente. – Ele
piscou para Betty.

– Esta deve ser a jovem sobre quem você costumava tagarelar – observou

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Howard. – Ela enfim cedeu?

– Acho que sim – disse Kaspar.

– Eu cedi. – Betty corou.

– Que bom saber disso! Quem precisa de uma casa quando tem uma boa
mulher? Sentem-se, todos vocês. Alguém quer umas salsichas?

– Na verdade, Howard, esta não é uma visita social – explicou Kaspar. – Eu


adoraria colocar as fofocas em dia, mas temos uma coisa urgente para fazer
hoje.

– Tem alguma coisa a ver com o gato de Cecelia Varney?

– Então você soube?

– Minha maravilhosa esposa gentilmente guardou os jornais dos últimos


quatro meses. Ela sabe que eu gosto de me manter informado dos últimos
acontecimentos. Já estamos quase em setembro. Eu estava fazendo carinho
no pequeno Fang quando li sobre os herdeiros desaparecidos da fortuna
Varney. Ah... Eu o batizei, espero que não se importe. Um nome de durão
pode estimular a autoconfiança dele, não acha?

– Parece razoável – concordou Kaspar. – Fang está aqui?

– Claro! Mas na maior parte do tempo, ele fica no quarto. Ele tem um medo
terrível da April. Às vezes ela pode ficar meio xereta mesmo. Aliás, o que
pretendem fazer com ele?

***

A mansão de Lester Liu estava apinhada de repórteres, curiosos


ambientalistas e amantes de múmias. Furgões de televisão bloqueavam a
Quinta Avenida e o trânsito foi desviado por várias quadras. Kaspar, Betty e
eu vimos Adam Gunderson do noticiário do Channel Three gravando uma
reportagem.

Boa noite, Janice. Estou aqui no Upper East Side de Manhattan, onde, na
noite passada, um rico filantropo foi desmascarado como um dos mestres
do crime mais descarados que esta cidade já viu! Lester Liu, cuja mansão
está atrás de mim, foi acusado esta manhã de uma lista tremenda de
crimes, inclusive sequestro, roubo de obras de arte e tentativa de

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homicídio. O Channel Three também encontrou provas de que o sr. Liu é o


líder secreto da gangue Fu-Tsang de Chinatown, um bando de
contrabandistas violentos que aterrorizaram Lower Manhattan por décadas.

Embora a gangue Fu-Tsang contrabandeasse de tudo, segundo consta, de


bolsas falsificadas a drogas ilegais, o contrabando de gente parece ter sido
a principal fonte da riqueza de Lester Liu. A polícia já fechou sete
confecções ilegais de propriedade do sr. Liu e há poucas horas dez
adolescentes taiwaneses apareceram na delegacia do Quinto Distrito de
Manhattan afirmando que foram trazidas ilegalmente para o país e
mantidas em cativeiro pelo sr. Liu e um homem chamado Sergei Molotov.
Depois de darem seus depoimentos, os adolescentes serão entregues a
seus pais no exterior.

Mas talvez o aspecto mais extraordinário desta história seja a pessoa que
levou o sr. Liu à justiça – sua filha de 14 anos, Oona Wong. A srta. Wong não
estava disponível para entrevistas, mas testemunhas da abertura de gala
da noite passada a descreveram como uma menina atraente, embora
malvestida, com uma pronúncia excelente do inglês.

Veja a matéria completa e as mais recentes revelações às cinco horas, na


Reportagem Especial do Channel Three. Por hora, eu sou Adam Gunderson,
falando ao vivo da Quinta Avenida.

– Isso foi maravilhoso, sr. Gunderson! Meu nome é Tiffany Thompson e sou
sua maior fã – eu disse, cheia de entusiasmo.

Adam Gunderson baixou o espelho que usava para verificar o cabelo e me


abriu um sorriso presunçoso.

– Obrigado. É ótimo saber que ainda existem algumas crianças que assistem
aos noticiários hoje em dia. – Ele fez um ruído como se a maioria dos jovens
passasse as noites assaltando velhinhas e barbarizando em cemitérios em
vez de enriquecer sua mente com as reportagens dele.

– Ah, eu vejo você toda noite. Por isso eu queria ter certeza de que você
fosse o primeiro a saber o que encontrei no parque.

Os olhos do Adam Gunderson ficaram vidrados.

– Eu agradeço por isso, jovenzinha, mas agora estou muito ocupado.


Estamos gravando uma reportagem especial sobre Lester Liu. Por que não
fica ali, fora do caminho, enquanto grava o próximo segmento?

– Quem sabe isto não possa fazer parte dele? – Eu estendi o gato. Quando o

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pelo roçou no terno de Gunderson, o repórter saltou para trás.

– Alguém me dê uma escova para fiapos! – gritou ele. – Estou todo cheio de
pelo de gato. Poderia, por gentileza, tirar essa coisa daqui? – sibilou ele.

– Mas pensei que quisesse dar uma olhada nos dedos dele – eu gemi. – São
muito incomuns. Os gatos não deviam ter só cinco dedos? – Num instante, a
cara de Adam Gunderson passou da irritação ao êxtase. Ele arrancou o gato
de minhas mãos e examinou os dedos.

– Onde achou esse bicho? – perguntou ele, tentando esconder a


empolgação.

– Bem ali no parque, do outro lado da rua, na frente daquela casa grande.
Eu vi um monte de gatos sendo colocados num furgão de entrega, mas este
aqui escapuliu.

– Lembra do nome no furgão? – inquiriu o repórter. Seus lábios se mexeram


em silêncio enquanto ele esperava por minha resposta e eu sabia que ele
rezava.

– Claro – eu disse. – Era de uma empresa chamada Tasty Treasures.

– Alguém me consiga o endereço da Tasty Treasures! – gritou ele.

Enquanto um assistente frenético esbarrava em mim, por acaso olhei a


Mansão Varney. Uma das cortinas no segundo andar se abriu e uma figura
enevoada apareceu brevemente na janela. Serei a primeira a admitir que
podia ser o brilho do sol no vidro, ou um dos muitos policiais que ainda
andavam pelo prédio. Na realidade, há centenas de possíveis explicações
que fazem completo sentido. Mas prefiro pensar que era Cecelia Varney.

***

– Isso deve resolver – eu disse a Kaspar e Betty. – Sempre se pode confiar


em Adam Gunderson. Ele não é muito inteligente, mas é incrivelmente
insistente. Vai se certificar de que o gato receba a mansão e os
contrabandistas de animais tenham uma gaiola só deles.

– Então agora que fizemos nossa boa ação do dia, para onde vamos? –
perguntou Kaspar enquanto nós três andávamos pela Quinta Avenida. –
Vamos passar no Hotel Carlyle para um bule de chá?

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– Muito engraçado – eu disse, embora a ideia de um sanduíche de pepino


fosse muito tentadora. – Está na hora de eu ir para casa receber meu
castigo. – Desde que saíra da casa Howard, eu quase ansiava por isso.

– Eu também – Betty suspirou.

– Por que vocês não ficam no parque comigo? – propôs Kaspar. – A gente
pode fundar nossa própria colônia.

– Não se pode morar no parque para sempre – disse-lhe Betty. – Às vezes a


gente precisar ir para casa.

– Pelo menos para tomar um banho – eu aconselhei.

– Howard foi para casa e olha como ele se deu bem – tentou Betty.

– Nunca vou voltar para a casa de meus pais – declarou Kaspar. – Não é a
minha casa. É só um laboratório com mobília cara. Sabe de uma coisa, só
porque sou parente de Arthur e Jane não quer dizer que eu pertença a eles.
Eles passaram toda a minha vida tentando fazer de mim uma criança
perfeita, e estou cansado de ser a cobaia deles.

"Acho que conhecer a sra. Van Dyke esclareceu tudo de uma vez para mim.
Ela não liga se Howard não é perfeito. Ela é louca por ele assim mesmo.
Sabe o que minha mãe faria se descobrisse minha cueca na caixa de pão? Ia
ligar para uma equipe de especialistas para analisar meu comportamento
aberrante.

– Eu sinto muito. – Betty pegou a mão de Kaspar e o humor sombrio dele


logo ficou mais leve.

– Eu também – eu disse. – Mas me recuso a deixar que minhas amigas


namorem vagabundos. Temos que achar um lugar para você.

– Acho que as duas já têm seus próprios problemas. Vocês provavelmente


ficarão de castigo por mais uma ou duas décadas.

– Veremos. – Eu me sentia estranhamente otimista. – Quando fugi da


diretora no museu ontem à noite, ela prometeu conversar com meus pais.
Se alguém pode me salvar, é ela. Então por que não fica comigo? Tem um
quarto extra no nosso apartamento. Se eu não for despachada para o
colégio interno, talvez meus pais deixem você ficar até que pense no que
fazer.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

***

Cada poste de rua do meu bairro tinha o mesmo cartaz de desaparecida. A


menina infeliz na foto parecia inchada, pastosa e meio vesga. Kaspar foi
gentil em me garantir que eu era muito melhor pessoalmente. Nós nos
escondemos na porta do outro lado da rua e esperamos que a diretora
Wickham chegasse. Ao meio-dia em ponto, um táxi parou e a velha baixinha
saltou do carro. Atravessamos correndo a rua para recebê-la antes que ela
pudesse tocar a campinha de meu apartamento. Os esquilos ficaram para
trás, revirando a lixeira de um vizinho.

– Obrigada por vir, diretora Wikcham. Mas antes que a gente entre, gostaria
de apresentar meu amigo Phineas Parker.

A diretora tirou os óculos e examinou Kaspar.

– É um prazer conhecê-lo, sr. Parker – disse ela. – É muito parecido com seu
pai. Como estão Arthur e Jane?

– Conhece meus pais? – Kaspar não pôde esconder seu desprazer com o
assunto. – Sei que eles vão bem, mas não os vejo há meses. Estou morando
sozinho.

– No Central Park – acrescentei.

A testa da diretora Wickham se vincou um pouco de preocupação.

– Ora essa, isso é muito desagradável – disse ela. – As coisas estavam tão
ruins assim em casa?

– Piores – admitiu Kaspar.

– Queria que conhecesse Phineas porque acho que a senhora pode ser fã de
sua arte. Foi ele que pintou os esquilos por toda a cidade.

– É verdade? Sinto falta de suas criaturas. Elas davam certa graça a meu
dia. Por que parou?

– Fui raptado por Lester Liu e obrigado a reproduzir duas telas que ele
roubou.

Para seu eterno crédito, a diretora nem piscou.

– Quais? – perguntou ela.

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– A Odalisca em cinza e Vênus e Adônis.

– Que interessante. Tive a oportunidade de ver as falsificações esta manhã.


O sr. Hunt, diretor do museu, é um velho amigo meu. A anamorfose
naquelas duas telas é impressionante. Mas devo confessar que sou
familiarizada com sua arte há muito tempo, sr. Parker. Na realidade, eu
tenho uma de suas pinturas em casa. Uma obra dos seus primeiros anos,
acredito. Foi presente dos pais de uma de minhas alunas. Mas não consegui
exibi-la. É muito triste.

– É da série do zoológico? – perguntei.

– Sim, na realidade, é. É uma pintura de um panda muito assediado. Posso


perguntar de onde veio sua inspiração, sr. Parker?

– De um dos pacientes de meus pais – admitiu Kaspar.

– Era por isso que eu tinha esperanças de que a senhora o ajudasse – eu


disse. – Ele não pode ficar no Central Park, mas também não pode ir para
casa. A mãe e o pai dele são malucos.

– Ananka! – Kaspar corou.

– É verdade, não é? – perguntei.

– Entendo. – Quando a diretora Wickham erguia a sobrancelha, parecia uma


Kiki Strike envelhecida. – Por acaso vou almoçar com uma ex-aluna da
Atalanta hoje. É uma artista renomada e dona de uma pequena academia
de artes nos arredores da cidade. Ela esteve comigo esta manhã no museu
e, a julgar pela reação que teve a sua obra, creio que pode ser convencida a
lhe oferecer uma bolsa, sr. Parker. Se importaria de esperar aqui enquanto
tenho uma conversa com os pais de Ananka? Devo terminar em alguns
minutos e depois, se não estiver ocupado, talvez possa almoçar comigo e
minha amiga.

– Viu? – cochichei para Kaspar enquanto a diretora Wickham tocava a


campainha. – Você tem que saber quando contar a verdade.

***

– Ananka! – minha mãe gritou quando abriu a porta. – Por onde andou?

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– Ananka? – A cabeça de meu pai apareceu na sala e depois ele disparou


pelo corredor. Meus pais me sufocaram de abraços e vários minutos se
passaram antes de eles perceberem que a diretora Wickham estava
olhando.

– A senhora deve tê-la trazido para casa. – A voz de minha mãe falhava de
emoção. – Nem posso lhe dizer o quanto estamos gratos. Mas onde diabos a
encontrou?

– No Metropolitan Museum of Art – respondeu a diretora.

Meu pai engoliu em seco enquanto a cara de minha mãe virava pedra.

– Você voltou lá? – grunhiu ela.

– Talvez precisemos conversar – disse a diretora Wickham calmamente. –


Podemos nos sentar?

Como todo mundo que entra em nossa casa pela primeira vez, a diretora
Wickham ficou admirada com a biblioteca de meus pais. Mas ao contrário da
maioria das visitas adultas, ela não pareceu nervosa por andar entre pilhas
mal equilbradas de livros que revestiam cada parede.

– Posso entender por que Ananka não tem interesse no dever – disse ela. –
Sua filha pode receber uma educação maravilhosa simplesmente ficando
em casa. – Ela se sentou no sofá e olhou os jornais na mesa de centro.

ROUBO DE OBRAS DE ARTE FRUSTRADO POR MNINA DE 14 ANOS!, gritava o


Post.

MÚMIA ANTIGA ENCONTRADA NA MANSÃO!, berrava o Daily News.

Meus olhos se demoraram numa manchete na primeira página do New York


Times. VERUSHKA KOZLOVA PODE ESTAR MORTA, POSSÍVEL
INCOMPETÊNCIA MÉDICA. Reprimi um sorriso. Na noite anterior ouvi Kiki ao
telefone antes de dormir em minha cama improvisada no chão da casa de
Oona. Ao que parecia, ela conseguira matar Verushka e se vingar do sr.
Pritchard em um único telefonema.

– Já leu os jornais de hoje? – perguntou a diretora a meus pais.

– Estivemos preocupados – disse meu pai.

– Acho que devem dar uma olhada. – A diretora apontou a primeira página

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do New York Post. A foto mostrava Oona atrás da plataforma da festa de


gala. – Reconhece alguém?

– Essa é amiga de Ananka! – Minha mãe arfou. – Aquela que sempre


arromba nossa porta!

– Olhe mais parto – aconselhou a diretora. Ao fundo da foto, estava uma


menina meio nerd com um vestido horrível. Eu mal me reconhecia.

– Ananka? – Meu pai dava a impressão de que ia ter um colapso. – É você?

Esperei tempo demais para responder.

– Não posso ajudar se você não se ajudar – alertou a diretora Wickham.

– Sim – admiti.

– E foi onde eu a encontrei – informou a diretora a meus pais. – Eu era


convidada da abertura. Sua filha e as amigas desbarataram o maior roubo
de obras de arte da história do Metropolitan Museum.

Meus pais me olharam boquiabertos como se eu fosse uma visitante de um


planta distante. Eu sabia que o cérebro deles estava ocupado reavaliando
tudo o que tinha acontecido nos últimos três meses.

– Por que não conta como aconteceu? – a diretora Wickham me instou. – Eu


mesma estou muito curiosa para ouvir.

– Bom, acho que começou com os esquilos gigantes... – comecei. E contei


tudo a eles. As crianças taiwanesas raptadas, Lester Liu e o fantasma
ansioso, o desaparecimento de Kaspar. Pulei só uma parte da história – a
Cidade das Sombras. Guardar um segredo não ia matar ninguém.

– Era por isso que você escapulia de casa? – perguntou meu pai.

– E dormia durante as aulas? – acrescentou minha mãe.

– E fugiu?

– Sim, sim e sim – eu disse. – Peço desculpas por ter mentido para vocês,
mas eu tinha que ajudar minhas amigas. Eu não podia ir para a Virgínia
Ocidental antes que tudo estivesse resolvido.

Meu pai lançou um olhar para minha mãe.

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– Não vamos mandar você para a Academia Borland. – Ele suspirou. – Só


queríamos colocar algum juízo em você no susto. Sua mãe estava
convencida de que você estava prestes a se tornar uma delinquente juvenil
e, para ser franco, eu não sabia o que pensar.

– Eu... Eu... Tudo bem, é verdade – disse minha mãe. – Estou disposta a
admitir que errei. Só queria que você nos contasse as coisas. No mínimo,
nós podíamos ter ajudado. Você só tem 14 anos, Ananka, e às vezes tem
que confiar em nós para saber o que é melhor. E mesmo que você seja uma
espécie de detetive mirim, não vou permitir que deixe sua educação de
lado. Com todo o tempo que perdeu, não vou me surpreender se você não
passar em alguma matéria neste semestre.

– Pensei que estaria preocupada com isso, sra. Fishbein – disse a diretora
Wickham. – Foi por isso que vim aqui hoje. Todo ano, escolho uma aluna
promissora do primeiro ano da Atalanta para ser minha protegida pessoal.
Este ano, escolhi Ananka. Suas antecessoras vieram a se tornar algumas
das mulheres mais bem-sucedidas do país. Acredito que sua filha tenha o
mesmo potencial.

– Acha mesmo? – Minha mãe colocou a mão no coração como se estivesse


esperando que o órgão vacilasse e parasse.

– Acho. E também quero lhes garantir que Ananka poderá colocar em dia
todos os trabalhos dos cursos que perdeu. Com alguma instrução particular,
ela terminará o ano com notas razoáveis. Na realidade, ela já tem um A em
uma matéria.

– Eu tenho? – perguntei.

– Sim. À luz de sua extraordinária descoberta, o sr. Dedly acha adequado


lhe dar um A em seu curso de história de Nova York.

– Que tipo de descoberta? – perguntou minha mãe, como se nada mais


pudesse surpreender.

COMO SE PREPARAR PARA SEU CLOSE-UP

A certa altura da vida, você acabará na televisão. Talvez você seja


celebrada por suas contribuições à humanidade. Ou talvez vá se capturada
andando furtivamente pelo telhado de um hotel de Monte Carlo com o bolso
cheio de diamantes roubados. Qualquer que seja o caso, você vai querer ter
certeza de que está preparada para as câmeras. Hoje em dia, se você
passar por um constrangimento na televisão, nem seus netos vão te
perdoar.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Cuidado com o que come

Para evitar uma boca seca que a deixará lambendo os lábios como uma
vaca sedenta, beba alguma coisa antes de aparecer diante das câmeras.
Mas cuide para que não seja bebida gaseificada, a não ser que pretenda
arrotar para seus espectadores. Além disso, você deve comer antes, ou seu
microfone pode pegar o som de seu estômago roncando. Mas tenha cuidado
com pratos à base de feijão.

Nunca, jamais masque chiclete

Isto provavelmente não precisa ser dito a ninguém cujo nome não seja
Britney.

Não tente deslumbrar as câmeras

Se quiser brilhar para as câmeras, faça isso com sua personalidade, e não
com suas roupas ou joias. Pedras cintilantes e pulseiras barulhentas
deixarão a equipe de reportagem louca. Use uma blusa de cor viva e você
vai parecer tão pálida que as pessoas vão se perguntar se tem uma doença
terminar. E listras e estampas malucas confundem as câmeras e
transformar sua roupa num borrão nada lisonjeiro.

Não se arrisque a usar roupas novas

Sempre que receber um prêmio ou alegar sua inocência, você vai querer
estar à vontade. Use roupas que sabe que caem bem e valorizam seu corpo.
A última coisa que você quer é parecer inchada, calombenta ou com dor.

Prepare-se para suar

As luzes da TV são quentes o bastante para derreter até a personalidade


mais fria. Então leve uns lenços de papel e um pó compacto se não quiser
dar a impressão de que foi mergulhada em óleo para bebê. E escolha
roupas que possam ajudar a esconder ou evitar qualquer mancha pavorosa
nas exilas.

Use maquiagem

Isso não tem nada a ver com vaidade. A maquiagem para as câmeras é uma
necessidade, se não quiser parecer uma zumbi doente. (Isso vale para
homens e mulheres.) Mas escolha tons mais sutis e fique longe de brilho
labial e sombra para os olhos que brilhem ou faísquem – ou ninguém vai
levar você a sério.

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Não fique agitada

Mesmo que seus saltos quebrem, seu vestido rasgue ou uma mosca voe
direto para dentro de sua boca, jamais perca a calma. Você pode
transformar um mico medíocre na TV em um clássico.

CAPÍTULO DEZOITO

Espere o inesperado

O pacote chegou uma semana depois da revelação no Metropolitan Museum


of Art. Enfiado dentro dele havia um pedaço de queijo cheddar extra-ardido,
uma carta e uma foto de uma Molly Donovan suja de lama montada numa
porca gigante. Uma das mãos segurava um troféu dourado. Uma faixa no
fundo dizia Quinto Rodeio Anual de Porcos da Academia Borland.

Querida Ananka,

Não fique animada – é só um troféu de segundo lugar. Só estou na Borland


há uma semana, mas estou superfeliz que a diretora Wickham tenha
recomendado. Tem um cara na minha turma que gosta de colocar fogo nas
coisas quando ninguém está olhando e uma menina que acha que é
vampira. (São pessoas realmente fascinantes depois que você as conhece.)
Eles é que são os especiais aqui. Todo mundo fica tão ocupado com os
alarmes de incêndio e sanguessugas que ninguém presta atenção nenhuma
em mim.

De qualquer modo, nunca tive a oportunidade de agradecer pessoalmente a


você, então batizei minha porca em sua homenagem. Se ela ainda estiver
por aqui no ano que vem, vamos ganhar o primeiro prêmio do rodeio. Se
não, vou mandar umas costeletas para você!

Molly

Embora estivesse feliz por Molly, eu lamentava perdê-la. A Atalanta ficou


calma demais depois que ela foi expulsa. Coloquei o queijo na geladeira e
olhei minha roupa no espelho do corredor. Saia de tweed, botas marrons de
cano alto e um lindo casaquinho curto. Passei horas procurando pela roupa
certa. A diretora Wickham disse que haveria jornais e câmeras de televisão,
e eu não pretendia ser uma vítima da moda por duas vezes numa semana
só.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Você está ótima, Ananka – disse meu pai. Ele e minha mãe esperavam por
mim na porta, os dois com as melhores roupas.

– Ótima? – estremeci.

– Seu pai quis dizer que você conseguiu o perfeito equilíbrio entre o estiloso
e o nerd. – Minha mãe riu. – Agora vamos, ou chegaremos atrasados.

***

Passamos por nosso primeiro esquilo gigante na esquina da Bowery com a


Delancey. A criatura encantadora com pelos vermelhos e felpudos e uma
expressão terna foi pintada na parede de tijolos de um prédio condenado. A
placa em sua mão dizia EU VOLTAREI! O segundo esquilo passou na traseira
de um furgão de entregas. Um roedor cinza adorável, ele erguia uma faixa
que dizia NÃO SE ESQUEÇA DE MIM! Quando meus pais e eu chegamos ao
Lower East Side, tínhamos visto mais de uma dúzia de roedores. Durantes
dias, os nova-iorquinos ficaram especulando sobre o significado das
mensagens dos roedores. Muitos acreditavam que o justiceiro estava
deixando Manhattan, agora que seu trabalho fora feito. A prisão de Lester
Liu e a destruição da rede de contrabandos da Fu-Tsang tinha detido o fluxo
de animais em extinção para Nova York e, graças à chocante revelação de
Adam Gunderson sobre a empresa Tasty Treasures, não haveria mais
filhotes de naja nos cardápios da cidade. Mas só as Irregulares sabiam o
verdadeiro significado das placas dos esquilos. Kaspar ganhou uma bolsa de
estudos numa escola de arte. Desde que recebera a notícia, ele passou cada
noite decorando a cidade como um presente de despedida para Betty.

Quando chegamos à sinagoga Bialystoker, encontramos as pessoas


entrando no prédio baixo de pedra. A diretora Wickham esperava por mim
na calçada.

– Bom dia – ela nos cumprimentou. – Fico feliz em ver que trouxe seus pais,
Ananka, mas onde estão suas amigas?

– Decidimos que era melhor que não fôssemos vistas juntas em público por
um tempinho – eu disse a ela. – Não queremos chamar mais atenção.

– Ah – disse a diretora. – Ora, então, talvez possa passar algumas


informações na próxima vez que as vir. Recebi um telefonema do sr. Hunt, o
diretor do museu, esta manhã. Houve uma descoberta relacionada com a
múmia da Imperatriz.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Nós tentamos ter o maior cuidado com ela! – eu disse.

–A múmia não foi danificada. Considerando tudo, ela está em uma forma
incrível. Não, o que quero dizer é que a Imperatriz finalmente foi
inocentada.

– Inocentada? – perguntou meu pai.

– Ela foi chamada de traidora pelos últimos duzentos anos. Mas agora
parece que pode não ser verdade. Quando os especialistas do museu
reclamaram o corpo, descobriram que estava enrolado num tecido
recoberto de uma escrita antiga. Era uma mensagem que tinha sido
contrabandeada para dentro do esquife por uma das criadas da Imperatriz.
Ao que parece, a pobre menina não se adaptou à vida na corte e tentou
escapar antes de se casar com o filho do imperador. Ela não cometeu
traição; só queria ir para casa. Quando foi capturada, o imperador a
envenenou e a enterrou viva. É claro que os especialistas querem mais
evidências, mas o museu já realizou alguns testes na múmia e descobriu a
presença de uma substância tóxica no corpo.

A diretora parou e me lançou um olhar penetrante.

– Infelizmente, a mensagem também afirmava que a criada colocou na


tumba uma estatueta dela mesma montada a cavalo, mas não parece estar
entre as posses da Imperatriz. É uma pena. Daria maior credibilidade à
história.

Pensei na descoberta que tinha dado início a toda a aventura. Eu quase me


esquecera da estatueta de argila de uma mulher a cavalo que escondi atrás
das roupas de meu armário. A criada da Imperatriz servira-lhe bem e
chegara a hora de promover o reencontro das duas.

– Sei onde está a estatueta – confessei. – Diga ao sr. Hunt que a entregarei
a ele amanhã.

– Pensei que você pudesse lançar alguma luz sobre o mistério. – A velha
senhora riu. – E quem sabe alguns outros mistérios também?

– Ananka! – chamou o sr. Dedly da escada da sinagoga. – Aí está você.


Estamos prontos para começar!

***

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

As câmeras começaram a espocar quando entrei na sinagoga. Na frente do


templo, Adam Gunderson, do noticiário do Channel Three, testava o
microfone.

– Aqui está ela, a menina da hora, Ananka Fishbein – anunciou o sr. Dedly.
Desde que ele leu meu trabalho, eu me tornei a aluna preferida do sr.
Dedly. Ele até me convidou para ser assistente dele em uma escavação
arqueológica no centro da cidade. Descobriram uma fossa antiga perto da
Wall Street e podia haver tesouros fascinantes escondidos em suas
profundezas.

Gunderson me olhou desconfiado.

– Já nos conhecemos? – perguntou ele.

– Acho que não. – Abri um sorriso adequadamente pueril. – Por que não
começamos? Tenho outro compromisso esta tarde.

Boa tarde, Janice. Estou aqui no Lower East Side de Manhattan com uma
boa notícia, para variar. Este foi um ano memorável para as meninas de 14
anos, e agora sabemos que outra adolescente fez uma descoberta
excepcional.

Ananka Fishbein, estudante com distinção da Escola para Menina Atalanta,


levou arqueólogos a uma estação há muito desaparecida da Ferrovia
Subterrânea, embaixo da sinagoga Bialystoker. A sala subterrânea está
perfeitamente preservada, com dez camas e um túnel de fuga que leve ao
East River. É uma parte importante da história americana e um exemplo
poderoso que revela até que ponto as pessoas irão para garantir sua
liberdade.

Diga-me, srta. Fishbein, como uma menina da sua idade conseguiu fazer
uma descoberta que escapou aos especialistas durantes tantos anos?

"Uma menina da minha idade?", repeti, quase sufocando com as palavras.


Vi meus pais rindo e, se não fosse pelas câmeras, eu teria dada um ou duas
lições nele. "Bom, sr. Gunderson, se ler as coisas corretas, pode descobrir
quase qualquer coisa...

***

Fechado para Reformas, anunciava a placa na porta do Golden Lotus. Mas lá


dentro o salão de manicure de Oona borbulhava de atividade. As

Kirsten Miller
Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Irregulares, Verushka, a sra. Fei e Iris se reuniram para uma festa de


despedida a três de nossos novos amigos.

Luz e DeeDee me viram pela vitrine e abriram a porta para mim.

– E aí, superstar – disse DeeDee. – Vi você no Channel Three.

– É bom saber que algum jovem ainda vê os noticiários hoje em dia – eu


brinquei.

– Eu prefiro fazer do que ver – Luz se gabou.

– Como vai fazer notícia se sua mãe não perde você de vista? – zombou
DeeDee. Oona convenceu o sr. Hunt a mandar cartas aos pais explicando
nosso desaparecimento e elogiando nossa contribuição para o mundo da
arte. A mãe de Luz mandou emoldurar a carta, mas ainda não suportava
deixar a filha sozinha por mais de 5 minutos. Fiquei surpresa ao ver que ela
não tinha se convidado para a festa.

– Ela está melhorando – Luz suspirou. – Só me seguiu ao banheiro duas


vezes ontem.

– Ananka! – Kaspar chamou do outro lado da sala. – Tenho uma coisa para
você.

Ele e Betty estava aninhados perto dos cubículos das pedicures, curtindo as
últimas horas juntos. Pela manhã, Kaspar estaria num trem para sua nova
escola. Ele já garantira a Betty que a veria todo fim de semana, mas ela
ainda parecia meio triste. Cumprimentei os outros e fui vê-los.

– O que é? – perguntei enquanto ele estendia um pacote embrulhado em


jornal.

– Um presentinho de agradecimento. Por me ajudar a encontrar uma casa.

Rasguei o papel. Dentro dele havia uma pintura da sinagoga Bialystoker.


Virei a moldura para a esquerda e um esquilo gigante apareceu como que
por mágica no telhado do prédio.

– Obrigada. É linda – eu disse a ele. – E muito incomum.

– Tenho uma para a diretora Wickham também, se não se importar de


entregar por mim. Com sorte, ela vai achar esta animada o bastante para
pendurar na parede.

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– Acho que ela vai ficar emocionada me mostrar uma pintura de um artista
de sua estatura.

Kaspar riu.

– Se quiser ver o que artistas de verdade podem fazer, dê uma olhada na


sala de Oona.

***

Eu não estava nem na metade do corredor quando ouvi Iris e Oona


discutindo.

– O que foi? – perguntei enquanto empurrava a porta. – Pensei que vocês


agora fossem amiguinhas.

– E somos. Dê uma olhada. – Oona apontou o mural que Yu e Siu Fah


terminavam. Os dois ficaram para trás para poder terminar o presente a
Oona quando os amigos voltaram a Taiwan. Agora que o mural finalmente
estava concluído, eles iriam embora de manhã cedo. – Pedi a eles para
colocar Iris na pintura.

A imagem que parecia viva, das Irregulares em batalha com os ratos da


Cidade das Sombras, tomava maior parte da parede. As seis integrantes
mais velhas tinham expressões dignas e uniformes pretos com um longo i
aparecendo na frente. Iris, porém, estava com o mesmo vestido roxo de
babados que usara na abertura da gala. Não pude deixar de rir.

– É, é, muito engraçado – Iris fungou. – Por que não posso ter um uniforme
também?

– Porque é assim que quero me lembrar de você – explicou Oona. – Você


estava com esta roupa quando salvou minha vida.

– Não me faça me arrepender disso, Wong – a menina se irritou.

– Peraí, agora que você é toda adulta não pode aturar uma brincadeira? –
perguntou Oona. Ela falou em hakka e Yu sorriu. Estendendo a mão para o
mural, ele tirou uma faixa de papel que tinha sido fixada na parede,
revelando uma pintura um tanto diferente por baixo. O vestido roxo de Iris
desapareceu. A imagem agora mostre as sete Irregulares com uniformes
pretos e vistosos. – Melhor assim? – perguntou Oona com uma piscadela.

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– Perfeito! – Iris quicou de empolgação.

Enquanto Iris admirava seu retrato, Yu e Siu Fah avançaram para apertar
minha mão. Enquanto Yu falava, Oona traduzia.

– Ele quer que eu diga que você fez uma coisa maravilhosa. A sala oculta
deve pertencer a todos. Mostra a dificuldade que as pessoas estão dispostas
a enfrentar por sua liberdade. – A cabeça de Siu Fah quicou em
aquiescência.

Oona disse alguma coisa em hakka e os três riram.

– O que foi isso? – perguntei.

– Eu perguntei se eles tinham tempo para desenhar um halo acima de sua


cabeça – respondeu Oona. – E talvez fazer sua boca um pouco maior
também.

***

Kiki cobriu uma das mesas de manicure com uma toalha e Verushka e a sra.
Fei colocaram três bolos em formato de esquilo.

– Ei! Todo mundo aqui – ordenou Oona. – Tenho algumas coisas a dizer
antes de começarmos a mastigar. Primeiro de tudo, gostaria de agradecer a
Kaspar, Yu e Siu Fah por nos ajudarem a colocar meu pai na prisão, que é o
lugar dele. Vamos sentir falta de vocês todos. E tenho que dizer que foi
meio legal ter alguns meninos por perto, para variar.

Betty fungou atrás de mim enquanto Oona traduzia seus sentimentos para
Yu e Siu Fah.

– Segundo, gostaria de anunciar a abertura de mais dois salões de manicure


Golden Lotus. E apresentar minha nova sócia... Minha estimada avó, a sra.
Fei. – A velha ao lado dela ficou radiante. – Parece que um monte de gente
está livre, agora que Lester Liu foi trancafiado, e todos precisam de
emprego. Então imagino que esteja na hora de expandir o império.

– E vai gravar as conversas de suas clientes nos salões novos também? –


perguntou DeeDee.

– Mas é claro que sim! Qual é o problema de um pouco de ação de Hobin


Hood? – perguntou Oona. – E por falar nisso, tenho de tratar de mais um

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negócio. – Ela correu para sua sala e voltou com uma caixa de papelão, que
entregou a Versushka. – Soube que o rato do dr. Pritchard custou uma
fortuna. Talvez isso ajude.

Verushka abriu a caixa e uma lágrima desceu por seu rosto. Ela pegou um
punhado de joias. Reconheci vários dos presentes que Oona recebeu do pai.

Verushka plantou um beijo no rosto de Oona.

– Obrigada – disse ela. – Vamos pagar muito em breve.

– Não se incomode... É tudo seu – insistiu Oona. – Compre o que precisar


agora e guarde o resto para uma emergência. Você e Kiki parecem ter
muitas regularmente. Mas da próxima vez, quem sabe vocês contem para a
gente?

– Vamos contar – concordou Verushka. Ela se virou para Kiki e assentiu


solenemente. – Está na hora – disse ela.

Kiki avançou para se dirigir ao grupo.

– O dinheiro pode ter vindo numa hora melhor do que você pensa. Verushka
e eu tomamos uma decisão. Não podemos continuar nos escondendo.
Temos de lidar com Livia de uma vez por todas.

– O que tem em mente? – perguntou Oona, preocupada.

- Eu estarei nos jornais amanhã – anunciou Kiki. – Estou reivindicando o


trono da Pocróvia.

* FIM*

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Kirsten Miller

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