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De acordo com alguns historiadores Gil Vicente terá nascido em

meados do século XV e morrido em meados do século XVI (1536).


Na sua vida de homem, conta com 2 casamentos e 5 filhos (entre
os quais Paula e Luís, ligados à obra do pai), realiza a sua primeira
peça em 1502; foi colaborador do Cancioneiro Geral de Garcia de
Resende; organizou para a corte festas palacianas, como por
exemplo, para a receção da terceira mulher de D. Manuel I, em
Lisboa; recebeu tenças e prémios de D. João III; de acordo com
António José Saraiva, alcançou dentro da Corte um prestígio tal que
lhe permitiu em 1531, por ocasião de um terramoto, num discurso
feito perante os frades de Santarém, censurar energicamente os
sermões terrifícos em que estes explicavam a catástrofe como
resultado da ira divina. A este propósito escreveu ao rei uma carta,
onde se pronunciava contra a perseguição movida aos judeus.
Escreveu vários Autos, entre os quais se destacam, o monólogo do
Vaqueiro, em homenagem ao nascimento do príncipe D. João, filho
de D. Manuel I, e a receção à peça foi de tal forma boa que lhe
garantiu uma carreira literária que se estendeu por mais de 30
anos; o Auto da Barca do Inferno, o Auto da Índia, o Auto da Feira;
escreveu farças como a Farsa de Inês Pereira, a farsa Quem Tem
Farelos?, a Farsa dos Almocreves, entre outros.
A sua obra literária pauta-se pelos valores populares e cristãos da
vida medieval (a inspiração religiosa, a predominância da utilização
da redondilha maior, a linguagem arcaizante, a inserção de
canatres populares semelhantes aos dos cancionantes
trovadorescos – farsa de ines pereira), sendo portanto um escritor
de transição. Posteriormente, sofre influência de um movimento
novo – o Renascimento. Este movimento englobou dois outros: o
Humanismo e o Classicismo. O primeiro, consiste no estudo da
cultura antiga e a partir dela valorizar tudo o que é humano e
exaltar os valores do Homem como o centro do Universo –
antropocentrismo - (o que contrasta como o Teocentrismo
medieval); o segundo, é uma estética que estabelece um rigoroso
sistema de regras próprias dos vários géneros literários (o soneto
com o seu verso decassilábico). Nestas escolas observa-se o
prodominio da razão sobre o sentimento; a emitação da Natureza
pela Arte; a valorização da Arte como expressão da cultura, estudo
e bom gosto; a sujeição a regras rígidas de conteúdo e forma e o
equilíbrio entre a condição social das personagens e a postura e
linguagem usada pelas mesmas, de forma a evitar cenas violentas.
Assim, encontramos em Gil Vicente características humanistas, tais
como, a atitude crítica face à sociedade do seu tempo, a tomada de
consciência e a atitude reventiva que assumiu face à crise religiosa
do seu tempo (vida pecaminosa do clero), a defesa dos judeus e
dos cristaos novos, a ridicularização da crendice, da bruxaria e da
astrologia.
Gil Vicente escreveu mais de 40 peças, algumas em espanhol, onde
criticou de forma impeadosa toda a sociedade do seu tempo. Toda a
sua obra é rica pela universalidade de temas, sempre associados à
sátira muitas vezes agressiv.a. Desde o Papa, ao Rei, ao Clero, às
Alcoviteiras, aos Judeus, às moças casadoras, ninguém escapa à
crítica acutilante de Gil Vicente.
Assim, na farsa Quem Tem Farelos, o dramaturgo faz uso de uma
linguagem e de uma crítica bastante ferina (para tal, faz uso dos
difrentes tipos de cómico); é supostamente representada ao povo,
em 1508, e na corte, em 1511 e, tem uma grande importância na
evolução literária de Gil Vicente, porque é a primeira obra de
carácter profano e de crítica social que escreveu. É inspirada numa
pequena cena da vida da sociedade do tempo.
O tema desta farsa é a sátira do escudeiro pobre, mas vaidoso,
gabarola, fanfarrãoe extremamente pretensioso, e também das
raparigas casadoiras insensatas, que procuravam no casamento
uma melhoria da sua situação económica e, sobretudo, a promoção
social (Inês Pereira).
Inicialmente, nesta farsa, fora designada de ‘’escudeiro pobre’’ e
nela Gil Vicente foca o tipo dos escudeiros, membros da pequena
nobreza que então viviam na ociosidade e em estreme penúncia. O
grande dramaturgo patenteia-nos a vida parasitária e abúlica do
escudeiro Aires Rosado que, mal vestido, com os sapatos rotos,
guitarra debaixo do braço e esfomeado, compunha em casa,
quando pretendia queimar as suas infindáveis horas de ócio e
esquecer a fome que o consumia, para Isabel, uma rapariga
preguiçosa, leviana, sonhadora e ambicioca que, farta de viver uma
vida de mediocridade e de pobreza, vê um casamento rico a única
solução para a sua vida. Aires Rosado, mentiroso e sem escrúpulos,
apresenta-se como um nobre abastado, riquíssimo e muito íntimo
do rei.
Esta farsa, não é uma obra do moralista, é apenas um episódio, um
quadro de viver comum da sociedade do tempo. É um estudo de
tipos de época, habilmente caricaturados, que veremos repetirem-
se na obra de Gil Vicente, os criados descontentes e maldizentes, o
fidalgo pobre, fanfarrão e ocioso, a donzela burguesa agastada de
sua humilde condição e a velha plebeia e rabujenta.
Todas as personagens desta farsa são tipos (representam grupos).
O Escudeiro (Aires Rosado) é a personagem principal, é ele o motivo
do diálogo.
Tem muitas semelhanças com o escudeiro da Farsa de Inês Pereira:
como ele é mentiroso, pelintra, pretensioso, covarde, falso e
amador da música e da poesia. Mas ele difere por ser um
conquistador apaixonado, passivo e ingénuo. Parece viver num
universo de poesia, acima das preocupações materialistas dos
moços, de Isabel ou da Velha, no que contrasta também com Brás
da Mata.
Os criados têm, tal como na Farsa de Inês Pereira, a função
dedesmistificar a personagem do Escudeiro, referindo a vida
miserável que levam por causa da pobreza, seja nos apartes que
desmentem e ridicularizam o amo no diálogo com Isabel. Vivem
mal, consideram-se mal pagos, mas não mudam de vida. Toda a
gente (incluindo os criados e as meninas casadoiras) quer um bom
lugar, se possível na Corte.
Esta peça constituiu um quadro crítico da vida da época, centrando
no comportamento de um Escudeiro pobre mas pretensioso, que
corteja uma moça burguesa fútil e ambiociosa, sob o olhar atento e
a vigilância de uma mãe (a Velha) repressiva.
A farsa vicentina apresenta-se-nos sob múltiplas formas, a começar
por aquilo a que hoje chamaríamos flagrantes da vida real – tipos e
ambientes dados com um poder de evocação realista e um relevo
caricatural que o tempo mal esbateu.
Juntamente com o poder de captar o real, revelam estas cenas o
talento específico do homem de teatro, que consiste em transmitir
o resultado da observação através da fala das personagens e das
suas relações mútuas dadas pelas situações, pelo diálogo, pelo
gesto. Cada personagem de Gil Vicente, com a sua linguagem
típica, as suas pragas, anedotas e histórias, rezas, cantares, o seu
jeito próprio de pegar no interlocutor, evoca um mundo inteiro
sobre o palco.
No entanto, Gil Vicente cultivou sobretudo a farsa com propósito
satírico, cuja ação se reduz mais frequentemente a uma anedota
burlesca: o de um escudeiro namorado e pobre, corrido pela mãe da
moça, sob uma chuva de troça e de sarcasmos ( Quem Tem Farelos);
o de m escudeiro pelintra, que deposita as esperanças num futuro
melhor num casamento interreseiro (Farsa de InÊs Pereira).
Gil Vicente parece ter sentido a necessidade de um género cómico-
satírico de maior fôlego do que estas simples anedotas burlescas,
capaz de abranger os vários aspetos de uma instituição ou de um
tipo. Assim, a par da farsa Quem Tem Farelos, onde surpreendemos
um instante apenas da vida da moça burguesa que se quer
afidalgar pelo casamento, criou Gil Vicente Inês Pereira, e faz-nos
assitir a toda a história desta personagem típica: a sua vida
matrimonial, a morte do primeiro marido, o segundo casamento, as
suas aventuras galantes extra-conjugais, tudo narrado ao longo de
uma sequência de episódios que não têm unidade de tempo (visto
abrangerem o espaço de muitos meses) nem de ação, estando
ligados entre si unicamente pela identidade da personagem central.
No seu conjunto, portanto, este teatro dá-nos um espelho satírico
da sociedade portuguesa, que interessa duplamente como
depoimento acerca desta sociedade e como expressão da ideologia
do seu autor.
Globalmente, verificamos que o objetivo principal da sátira
vicentina, tratado em quase todos os autos, é o clero regular. Gil
Vicente censura nele a desconformidade entre os actos e os ideais,
pois, devendo praticar a austeridade, a pobreza e a renúncia ao
mundo, os frades das suas peças se rodeiam de luxo e de prazeres,
jogam a espada, blasfemam, são pais de família, ambicionam
honras e cargos, procedendo como se a tontura sacerdotal os
imunizasse contra os castigos que Deus tem reservados para os
pecadores.
Igualmente rigorosa é a sátira da nobreza e suas dependências
(escudeiros, etc.). Na farsa Quem Tem Farelos e na farsa Inês
Pereira, põe-se a nu a miséria atroz e dourada, a poltronice
fanfarrona, a rufianice, as pretensões literatas e musicais, a
galantaria alambicada de que se reveste a caça ao dote das
burguesas abastadas por parte da parasitagem mais ou menos
afidalgada.
Em suma, Gil Vicente constituiu um dos nomes mais importantes da
cultura da primeira metade do século XVI, e contribuiu de forma
decisiva para o conhecimento da sociedade da época. Com efeito,
através de uma crítica construtiva, foi denunciando e corrigindo
todos os comportamentos e atitudes dos diferentes grupos, daí que
o provérbio ‘‘Ridendo castigat mores’’, (a rir-se corrigem-se os
costumes), também se aplique.

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