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Ao apresentar a peça, Gil Vicente diz:

“A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o
terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu
argumento é que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si
mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse:
segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me
derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa.”

Desenvolvendo nessa farsa, escrita em espanhol e português, o tema que lhe fora dado, legou-
nos Gil Vicente a peça profana mais importante da época, tanto pelo seu argumento quanto
pela sua arquitetura dramática.

A Farsa de Inês Pereira é uma comédia de costumes. A unidade de ação da farsa mantém-se
apenas pela presença central de Inês Pereira e pelo propósito de ilustrar, nas três etapas da
vida desta personagem, o provérbio com que desafiaram o talento dramático de Gil Vicente.

CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL:

A Farsa de Inês Pereira é uma comédia de costumes, retrato de comportamentos poucos


recomendáveis. Gil Vicente compõe um painel, cujas cores ainda se firmam em valores medievais, para
tecer profundas críticas a vários setores da sociedade.

A temática da peça está profundamente ligada à realidade vivida pela sociedade portuguesa da época
de Gil Vicente: a decadência medieval e o início do Renascimento. Neste tempo de transição, as
contradições culturais foram nítidas e atingiram inclusive os conceitos estéticos. As expressões literárias
expressam a oscilação entre dois mundos: em primeiro lugar, uma extensão da velha ordem feudal e
teocêntrica; em segundo lugar, como uma busca de renovações propugnadas pelo novo contexto

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capitalista e antropocêntrico.

O desenvolvimento do capitalismo reforçou o poder do monarca e provocou a decadência da nobreza


feudal. A riqueza vinda do comércio ultramarino tendia a ser grande base do prestígio social. A
aristocracia dependia dessa riqueza e procurou diminuir sua importância desprezando-a e valorizando a
origem de sangue, a educação, a fineza, as boas maneiras, a honra e a coragem, enfim os ideais
cavalheirescos.

E como a nobreza mesmo decadente, ainda conservava grande prestígio social, acabou por impor o
estereótipo do cavaleiro como modelo a que deviam aspirar todos aqueles que queriam pertencer à
classe superior. Desse modo, o desejo de ascensão social da pequena burguesia encontra no casamento
uma forma de consegui-la.

CARACTERÍSTICAS:
N’A Farsa de Inês Pereira, Gil Vicente apresenta um tom extremamente crítico e caricato dos
costumes, fazendo da máxima “ridendo castigar mores (“rindo castigam os costumes”), onde a ironia se
soma à tipificação de situações e personagens.

Gil Vicente explorou os recursos textuais recorrendo ás características do teatro medieval: estrofação
irregular; versos curtos, principalmente os redondilhas, resultando em musicalidade.

As suas farsas mesclam drama e poesia conjuntamente. Mas, enquanto que o seu teatro é rico em
recursos textuais, ele é pobre em recursos cenográficos. Essa diferença encontra justificada no
propósito didático do autor: como recurso de fixação de valores do painel da Idade Média portuguesa.

O dramaturgo em A Farsa de Inês Pereira utiliza-se da vivacidade, do realismo e da diversidade


linguística para compor diálogos bem humorados e, ao mesmo tempo, didático-moralizantes,
concorrendo para formar um texto repleto de belezas e riquezas literárias que, deixam entrever um dos
enredos mais organizados de Gil Vicente, já, bem próximo da estrutura novelesca.

Os recursos cenográficos, por sua vez, com a ausência de orientações de cena; despreocupação com
um roteiro rígido; paralelismo estrutural e semântico estabelecidos entre as cenas; e, ainda, o
desrespeito as leis de unidade e de sequência do teatro clássico, dão margem á uma monotonia
cenográfica.

1.Ação

1.1. Tema
Na Farsa de Inês Pereira , Gil Vicente desenvolve o tema contido no provérbio «Mais quero asno que
me leve que cavalo que me derrube», que lhe foi apresentado por alguns detratores que punham em
dúvida «se o autor fazia de si mesmo estas obras ou se as furtava de outros autores». É, portanto, um
teste à originalidade do dramaturgo, em que este é extraordinariamente bem sucedido, dado que na

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peça se desenvolve uma história urdida, com princípio, meio e fim, que demonstra, de facto, que é
preferível um asno (marido bronco e ingénuo – Pêro Marques ) que leve a esposa (Inês) a cavalo, isto é,
lhe faça todas as vontades, a um cavalo (marido «avisado» e «discreto»- Escudeiro) que a derrube, isto
é, que lhe faça a vida negra, a prive de liberdade e a ameace.

Para além de corresponder, de forma convincente e original às imposições dos seus inimigos, Gil
Vicente compôs uma autêntica comédia de costumes , em que se critica a leviandade das meninas
burguesas casadoiras que pretendem, através do casamento, ascender na escala social. Daí a recusa do
casamento com Pêro Marques e a aceitação do Escudeiro apresentado pelos judeus Latão e Vidal. Inês
representa, assim, a sede de promoção social que dominava a classe média, emparedada entre o povo
rústico e provinciano (Pêro Marques), cujo convívio lhe desagrada, e a nobreza (Escudeiro), a que deseja
ser admitida. Mas, numa sociedade fortemente hierarquizada, o sucesso de tal promoção constituiria
uma rutura. E a ambição desmedida, a insensatez pretensiosa acabam por ser castigadas e Inês acaba
por resignar-se a aceitar a relação com Pêro Marques.

De passagem criticam-se o Escudeiro ambicioso, fanfarrão e cobarde, a alcoviteira oportunista e hábil


e o clero vicioso.

1.2. Assunto

A Farsa de Inês Pereira é das obras mais perfeitas e acabadas de Gil Vicente. Nela o nosso dramaturgo
giza o caráter de uma rapariga que vê, no casamento rico , o único meio de se evadir da casa de seus
pais, onde vive pobremente. Preguiçosa, leviana e , sobretudo, ambiciosa, Inês pensa que o príncipe
encantado aparecerá e encarrega uma alcoviteira de o conseguir. Esta apresenta-lhe um lavrador
abastado , Pêro Marques, que labutava em terras beiroas e que ansiava casar-se com uma moça da vila.

O primeiro encontro entre os dois corre o pior possível: Inês não quer aceitar por marido um ingénuo
campónio que lhe traz como presente umas peras. Diverte-se à custa dele. A mãe, para facilitar o

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casamento, deixa propositadamente os dois sozinhos em casa. Ao ver que anoitecia , Pêro Marques
apressa-se a sair para salvaguardar a boa reputação da moça. Mas ela pensa que se qualquer outro se
encontrasse naquela situação não se teria ido embora sem, pelo menos, ter-lhe segredado «mil
doçuras». Já nesta cena pressentimos o caráter sensual de Inês que, mais tarde, se evidenciará
abertamente.

Posto de parte o lavrador, uns judeus alcoviteiros recomendam-lhe um escudeiro. Este, pobretão,
guitarrista, cantor, procura iscar Inês porque os judeus o tinham convencido que ela tinha bastante de
seu. A rapariga deixa pescar-se com facilidade não só porque o moço lhe agrada fisicamente mas,
principalmente, porque os judeus também lhe tinham afiançado que ele era rico. Mutuamente iludidos,
casam, apesar das advertências da mãe de Inês que procura convencer a sua filha que seria melhor
casar-se com um homem que vivesse do seu ofício. Mas. Após o casamento, aparece a realidade em
toda a sua nudez. Nem um nem outro tinham vintém. Então o Escudeiro sé encontra uma saída: ir
combater para o Norte de África mas, antes da partida, revela a sua índole autoritária, tirânica e
ciumenta deixando a sua mulher entaipada em cas e guardada à vista pelo criado.

Mas, três meses depois, Inês recebe uma carta que lhe anuncia a morte do seu marido. Ele, que era tão
valente, foi morto por um «mouro pastor».

Inês não fica muito tempo viúva. Não desejando repetir a experiência feita, segue então os conselhos
da alcoviteira , que anteriormente desdenhara, e casa-se com Pêro Marques que , entretanto, herdara
mais umas fazendas. Podia-se dizer que era um lavrador rico.

É após o segundo casamento que o mestre Gil Vicente nos desvenda o temperamento sensual de Inês.
Esta tem amores adulterinos com um ermitão, que a cortejou quando ela era mais nova, e é o próprio
marido que a leva às costas para que os dois se encontrem, enquanto Inês , atrevidamente, cantarola
uma cantiga em que satiriza os maridos enganados.

1.3.Estrutura
A Farsa de Inês Pereira é uma das peças de Gil Vicente melhor estruturadas, uma das suas obras-
primas , que, segundo Fidelino Figueiredo se desenvolve em sete quadros:

1.A vida de Inês Pereira em solteira, com sua mãe;

2.Conselhos de Lianor Vaz para que case;

3.Apresentação de Pêro Marques;

4.Apresentação do Escudeiro;

5.Vida de Inês, casada com o Escudeiro;

6. Vida de Inês viúva;

7. Vida de Inês, casada com o Pêro Marques.

Nestes sete quadros podem considerar-se três sequências principais:

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. A 1ª corresponde aos três primeiros quadros ( apresentação e recusa do casamento com Pêro
Marques);

.A 2ª corresponde aos quadros quatro e cinco (a apresentação e o casamento falhado com o Escudeiro);

.A 3ª corresponde aos quadros seis e sete ( o casamento com Pêro Marques)

2.Personagens

2.1. Inês Pereira


É a personagem melhor caracterizada na peça, a mais complexa, a única que sofre uma transformação
de personalidade.
A protagonista, assim, tipifica o comportamento das raparigas casadoiras do final da Idade Média que
trocam os valores tradicionais pela ilusão das aparências sedutoras. Porém, a independência e o
comportamento de Inês conferem –lhe um caráter único, pois ela demonstra ser uma mulher muito
avançada para o seu tempo. Ela, tudo indica, é pintada como uma bela mulher, e como tal é idealizada.
Ela representa uma condenação à mudança de valores operada na sociedade portuguesa no século XVI.
Rapariga bonita, solteira, burguesa, sonhadora e rebelde, Inês sonha casar-se, vendo no casamento uma
libertação dos afazeres domésticos e automaticamente, a sua ascensão social, imaginando um
casamento com um homem que seja discreto, galante, bailarino e músico. Dessa forma, Inês despreza o
casamento com um homem simples, trabalhador, honesto, respeitador e que a ame, deixando-se levar
pelas aparências, preferindo um marido de comportamento refinado, mesmo indo contra as
recomendações de sua mãe.
Assume, a princípio, uma posição de submissão em relação ao seu papel social, no entanto, revela-se
rebelde, quando percebe que seus ideais de liberdade não cumpridos com o primeiro casamento se
podiam cumprir num segundo casamento.
Ela é o centro do enredo que revela as formalidades vazias do amor e do casamento arranjado por
interesse.

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Pode considerar-se que Inês, figura central da Farsa, participa simultanemente da natureza de
personagem plana ( tipo de rapariga fantasiosa e leviana) e da personagem modelada (caráter).

Inês, pelo desenrolar dos acontecimentos, é levada a reconsiderar a sua posição inicial e a aceitar o
segundo casamento que não estava dentro das suas primeiras expetativas. Mas a conclusão da peça
sugere-nos uma Inês de certo modo constante na sua atitude de leviandade». Com efeito, a Inês da
parte final da peça reune características dos dois tipos de de personagem: por um lado, nota-se que
evoluiu em relação ao início da peça – é agora mais pragmática e calculista, passou o tempo da fantasia
e aprendeu a lição da experiência; mas, por outro lado, quando decide visitar o ermitão, seu antigo
pretendente, continua a ser a mesma Inês leviana e pouco consciente, na característica principal
enquanto personagem tipo.

2.2- Mãe
É a típica dona de casa pequeno-burguesa e provinciana. Intimamente relacionada com Inês Pereira,
a mãe é uma personagem secundária que representa o contraponto da sua fantasia e ambição.
Moderada, prudente e pragmática a mãe manifesta a sua preocupação com a educação e o futuro da
filha em idade de casar e a descrença em relação ao casamento com o escudeiro, fruto de uma visão
idealista e leviana do marido e do mundo que caracteriza a sua filha. Dá conselhos prudentes.
Surge assim, como reprodutora dos costumes tradicionais submetendo Inês ao aprendizado de um
papel social feminino submisso.
Chega a ser comovente em sua singela ternura pela filha, a quem presenteia com uma casa por ocasião
das núpcias.

2.3.Pêro Marques
Camponês simples, com aparência tola, honrado, não conhece os costumes das pessoas da cidade. É
uma personagem ambígua, ao mesmo tempo que é ridicularizado pela ingenuidade, é valorizado pela
integridade de caráter. Num segundo momento, porém, sua aparência é deixada de lado, em nome de
sua dedicação, de seu afeto, de sua submissão e em nome dos interesses amesquinhados de Inês, que
acaba aceitando-o como marido, depois de viúva. Fiel e dedicado, revela se um gentil e carinhoso
marido. É a personagem cómica da peça, que contrasta com Inês e o escudeiro e é apresentada e
representada por Lianor Vaz.

2.4.Lianor Vaz
Lianor Vaz é uma típica alcoviteira. Representa a invasão da privacidade e a costumeira, mas
indesejada, exposição da vida privada à esfera pública, mesmo sem consentimento. No início da peça,
Lianor Vaz está muito agitada e nervosa porque foi atacada por um clérigo quando se dirigia para casa
de Inês, e do qual se libertou porque apareceu um homem. Nessa situação ela mostra sua frouxidão

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moral. Gil Vicente terá a intenção de, por um lado, introduzir um episódio cómico , e, por outro, o de
criticar o clero e o desrespeito pelo voto de castidade

2.5. Escudeiro

É uma figura muito importante na peça, que contrasta flagrantemente com Pêro Marques ( compara-
se o texto da carta de Pêro a Inês e o seu comportamento perante esta e a mãe com o discurso do
escudeiro a Inês) . Nesta comparação fácil é concluir da elegância, da cultura, da astúcia e finura do
escudeiro em contraste com a simplicidade bronca, a ignorância e inadaptação de Pêro.

É uma personagem que tem grande influência no desenrolar da intriga, dado que o seu
comportamento tirânico vai fazer com que Inês venha finalmente a aceitar Pêro para se vingar das
frustrações do primeiro casamento que ela sonhou ideal e falhou.

O escudeiro, pobre, covarde, ostenta perante Inês qualidades que não tem. Antes de casar,
apresenta-se como um grande senhor, rico, culto, bem falante. Depois de casar, revela-se um tirano,
mesquinho que deixa a esposa à guarda do criado e parte para o Norte de África com o objetivo de ser
armado cavaleiro. Esta duplicidade terá um remate grotesco, pois o escudeiro, candidato a cavaleiro,
acaba por ser morto por um mouro pastor, quando fugia «da batalha para a vila/ a mea légua de Arzila».
O pretendente fanfarrão e verboso e o marido tirânico e agressivo acabam por dissipar-se quando, no
campo de batalha, chega a hora da verdade. Nessa altura, o cavalheiro deserta do campo de batalha ,
morre às mãos dum pastor e não em combate com um cavaleiro, com seria normal.

2.6. Moço
.
O moço/pajem é uma personagem que contribui em grande parte, para a duplicidade do escudeiro,
seu amo. É por ele que sabemos a situação de penúria , os sentimentos e os planos do escudeiro.
Quando este parte para África , fica encarregado de vigiar Inês e fá-lo com tal rigor que, recebida a
notícia do falecimento do marido,Inês despede-o de imediato.É humilde, deixa-se explorar e acredita
ingenuamente nas promessas de Brás da Mata.

2.7.Os judeus casamenteiro, Latão e Vidal

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Enquanto Pero Marques é apresentado por Lianor Vaz, uma comadre casamenteirade características
populares, conhecida da mãe da protagonista, o escudeiro chega à presença de Inês pela mão dos
judeus casamenteiros.Este facto já é mau prenúncio, mas Inês quer um marido discreto e avisado, que
saiba tanger e cantar. Os judeus, arrancados da realidade quotidiana da época, sem escrúpulos,
procuram apenas a compensação material se o casamento se concretizar, empenham-se em encarecer
os méritos do escudeiro perante Inês e as qualidades desta perante aquele.Mas só aparentemente são
bajuladores,. Tanto o escudeiro como Inês lhes merecem críticas subtis, discretas, ímplícitas.E,
dissimulando conseguem os seus objetivos. São, portanto, personagens psicologicamente muito bem
caracterizadas: desonestos, falsos, argutos, materialistas, maquiavélicos.

No fundo, são apenas uma personagem, «constituindo o seu desdobramento em duas um fator
cómico. Esse desdobramento opera-se pelos seguintes processos:

.repetição por um da frase inicialmente dita pelo outro, com alteração da ordem dos elementos:«este e
eu/Eu e este»;

. repetição por um das ideias enuciadas pelo outro: «não sabeis quão longe fomos/ corremos a iramá»;

.continuação por um da frase iniciada pelo outro:«Senhora fomos.../que fomos que ias/buscá-lo»;

.hesitação sobre quem há de falar:« agora falo/ou falas tu?»;

.mandando-se calar um ao outro:««Leixa-me falar/Já calo»;

.identificação de um com o outro:« tu e eu nam somos eu?».

Estas hesitações, interrupções e comentários desviam constantemente o discurso do seu fio condutor,
criando suspense em quem está a ouvir. A organização do discurso, no sentido da criação de uma
grande expetativa, predispõe Inês Pereira para a ceitação do pretendente, fascinada pelo exagero das
suas qualidades, habilbente coincidentes com os seus ideais: falar e tanger bem, ser discreto e avisado.

Essa aceitação e o casamento subsequente constituirão, como se sabe, o grande logro, o grande
engano de Inês e o castigo da sua ambição desmedida.

2.8.O Ermitão
Constitui uma caricatura da figura clerical: chegou ao clérigo, não por opção ou vocação, mas por
decepção com a vida pessoal, sobretudo no quesito amoroso.

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2.9.O Clérigo
Padre que atacou sexualmente Lianor Vaz. Simboliza o rebaixamento e a devassidão do comportamento
clerical.

Relações entre as personagens


Na Farsa de Inês Pereira há uma intriga, isto é, a ação desenrola-se lentamente, vai-se tornando cada
vez mais complexa devido a um adensamento das relações e da interdependência das personagens,
culminando num desenlace.

Vejamos esquematicamente, como se estabelecem essas relações, ao longo das três fases da intriga
(exposição, conflito e desenlace):

Exposição Conflito Desenlace

Mãe

Inês solteira Inês casada Inês viúva e casada


-Inês recusa Pêro - Inês aceita o escudeiro -Inês aceita Pêro e vinga-se

-Pêro aceita-a -O escudeiro aceita-a e oprime-a - Pêro aceita-a

Pêro Marques Escudeiro Pêro Marques

Lianor Vaz Judeus Lianor Vaz

3. Espaço e tempo
Nesta peça, é tão importante a intriga com as suas mutações que o tempo e o espaço são
secundarizados. No que se refere ao espaço, apercebemo-nos que a ação se desenrola em casa de Inês,
com exceção do episódio da visita do ermitão, que se situa num espaço exterior.

Por outro lado, só uma vez há referência concreta ao tempo, quando Inês recebe uma carta de Arzila
anunciando a morte do escudeiro e o moço lhe diz que o seu amo partira para África há três meses.
Apercebemo-nos nitidamente da diferenciação dos tempos de Inês solteira, Inês casada com o
escudeiro e Inês viúva que casa com Pêro Marques. Sentimos que se trata de momentos diversos,
verdadeiros atos do teatro moderno. Mas não sabemos quanto dura cada um e que tempo decorre
entre eles.

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Esta imprecisão do tempo e a escassez de dados sobre o espaço emprestam à peça alguma
inverosimilhança, que poderá decorrer, em nossa opinião, do facto de Gil Vicente privilegiar a
efabulação que melhor se adequasse à ilustração do tema que lhe fora imposto («Mais quero asno que
me leve que cavalo que me derrube») e à concretização dos seus objetivos de crítica da sociedade do seu
tempo. Mais importante que as referências espaciais ou cronológicas é o registo das mutações
psicológicas, da aprendizagem ,da experiência que ensina.

4. Intenção do autor: a crítica


Para além de simples ilustração de um provérbio destinado a esclarecer as dúvidas dos detratores, A
Farsa de Inês Pereira é, sobretudo, uma visão cítica de tipos e fenómenos da época. A crítica da
sociedade do seu tempo é feita, nesta como noutras obras, com recurso à ironia, à criação de tipos e ao
cómico.

O autor pretende retratar aspetos negativos da sociedade:

A reclusão das mulheres;

A ambição das raparigas levianas, que sonham com uma vida à moda da corte;

A imoralidade de algum clero;

A fanfarronice dos escudeiros, pelintras , presunçosos e parasitas;

A falta de cultura dos lavradores abastados.

4.1. A ironia
Numa obra com uma intencionalidade cítica tão vincada, é natural que a ironia seja uma constante.
Vejamos alguns exemplos:

-no diálogo inicial entre Inês e a mãe especialmente quando esta se refere à preguiça da filha (vv.34-42);

- no diálogo entre a mãe e Lianor Vaz sobre o clérigo que queria ver se ela era macho ou fêmea;

-na reação de Inês à carta de Pêro Marques trazida por Lianor Vaz;

-na maneira como Inês imagina Pêro Marques antes da sua apresentação (vv.267-274);

-no diálogo entre Pêro e Inês;

-em algumas falas dos judeus;

-nas respostas e apartes do moço, quando o escudeiro o prepara para o encontro com Inês e durante
este, etc.

4.2. Criação de tipos


Serve, como sabemos, a prossecução da crítica social que, nas farsas de Gil Vicente, é uma constante:

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- Inês Pereira-o tipo de moça casadoira leviana que representa a ambição sem escrúpulos, a ponto
de querer usar o casamento como trampolim para um salto na escala social.

- A mãe- pragmática, materialista, quer ver a filha bem «arrumada», com um marido proprietário, que
lhe garanta estabilidade económica, desprezando ideais de amor, sonhos ou caprichos.

- A alcoviteira-Lianor Vaz e os judeus casamenteiros- que, cada qual a seu modo, fazem de
intermediários entre Inês e os pretendentes.

Pêro Marques- com a sua ingenuidade bronca, objeto da vingança da Inês enganada pelos judeus e
frustrada pelo falhanço do casamento com o seu «ideal» de marido.

Lançando mão de personagens que representavam estratos sociais (escudeiro,Pêro Marques, judeus e
alcoviteira) ou tendências na evolução da sociedade (Inês), Gil Vicente oferece-nos, nas suas peças
relativamente breves, um panorama da sociedade da época. Nesta farsa acontece ainda que, havendo
uma personagem (o ermitão), cujo procedimento aponta para uma crítica aos frades e seus vícios , a
crítica ao clero é feita de um modo indireto mas não menos contundente. Com efeito, o modo como
Lianor se refere ao clérigo que a teria intercetado para saber se ela era macho ou fêmea, e a maneira
como a mãe recorda outro que lhe tinha feito o mesmo «no tempo a poda», pressupõem uma grave
degradação dos costumes do clero, que Gil Vicente, mesmo de passagem não quer deixar impune.

4.3-O cómico
Os processos habituais de cómico estão amplamente representados na farsa e têm dois objetivos
fundamentais:

-o primeiro, e muito importante numa farsa, dada a sua natureza jovial, é provocar o riso através do
qual se «castigam» os vícios.

-o segundo é a marcação do contraste nítido entre personagens e situações: Pêro Marques e o


escudeiro; Lianor Vaz e os judeus casamenteiros, por exemplo.

4.3.1.O cómico de caráter


(Decorrente da maneira de ser e da apresentação da própria personagem)surge praticamente ao
longo de toda a peça, concretizado nas figuras de Pêro Marques (um lavrador provinciano e bronco,
nitidamente deslocado e ingénuo, nos contactos com Inês e a mãe) e do escudeiro pobre e covarde,
mas dissimulando, na elegância do seu discurso, na variedade das sua prendas (tocar e cantar) e na
fanfarronice todas as fraquezas e misérias.

4.3.2. O cómico de situação-


Que resulta das situações ridículas criadas pelo comportamento, é visível em algumas passagens
muito conhecidas da peça:

-quando Pêro Marques se senta na cadeira ao contrário e de costas para Inês e para a mãe;

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-na fala dos judeus casamenteiros, que, na sua sofreguidão e calculismo para conseguirem casar Inês
com o escudeiro, se interrompem, repetem e atropelam constantemente;

-no episódio final, quando Pêro Marques, descalço, transporta Inês às costas, e mais duas lousas que lhe
agradam e, para cúmulo, porque o caminho era longo e a viagem monótona, ainda aceita cantar uma
cantiga que o apelida de «marido cuco»

4.3.3.O cómico de linguagem -


Aparece em numerosos momentos da intriga, com menor ou maior extensão, mas são sobejamente
conhecidos e facilmente iidentificáveis:

-quando Pêro Marques entra,com a sua linguagem recheada de termos e expressões provincianas, dada
a sua condição rural, e sobretudo, com a sua pronúncia, que imediatamente o desdignifica e ridiculariza;

-quando os judeus casamenteiros produzem o seu discurso repetitivo e arrastada;

-quando Inês se refere a Pêro Marques dizendo:

«Ei-lo se vem penteando:/será com algum ancinho?»;

Na ironia cáustica do moço desmascarando a pelintrice do escudeiro.

Diferenças entre Auto e Farsa:

Auto-Designação abrangente de peça teatral em um ato. Ainda durante o século XVI, viria a tomar o
sentido de obra de temática religiosa, sem observância de preceitos formais muito rigorosos, opondo-
se, nessa medida , a designações mais codificadas como trágedia e comédia(...)

Farsa-Género do teatro medieval europeu caracterizado por uma intriga curta e concentrada, por um
número reduzido de personagens e pela verosimilhança de situações. Gil Vicente adiciona
sistematicamente uma componente satírica e moralizante. O autor pega em cenas do quotidiano e
mostra-nos o que deve ser louvado e o que deve ser repreendido.

Edições Sebenta

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