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Farsa: Género dramático que se centra no relacionamento humano, familiar e amoroso, na oposição dos valores
tradicionais e convencionais a valores individuais e pessoais e no recurso frequente a um triângulo amoroso.
Ponto de partida: Segundo a tradição, a peça foi escrita em resposta a um desafio lançado por alguns homens
sábios de Lisboa, que colocaram em dúvida a autoria das obras de Gil Vicente, sugerindo tratar-se de plágio. A fim
de provar a sua inocência, o dramaturgo pediu que lhe dessem um tema qualquer para que produzisse uma peça
e foi-lhe proposto, então, que criasse um enredo a partir do mote «Mais quero asno que me leve que cavalo que
me derrube», ditado popular muito comum na época.
Estrutura e intriga: A peça foi representada pela primeira vez em 1523, no mosteiro de Tomar, perante o rei D.
João III, e é considerada a obra mais complexa que Gil Vicente compôs. O texto não possui qualquer divisão em
atos e cenas, no entanto, é possível estabelecer várias sequências dramáticas, através da entrada e saída de
personagens. É uma intriga simples e linear, organizada em três momentos:
- Exposição – Inês solteira (infeliz e insatisfeita; quer casar para conseguir a emancipação);
- Conflito – Inês casada com o Escudeiro (preparação e casamento com o Escudeiro e subsequente desilusão);
- Desenlace – Inês livre e casada com Pero Marques (morte do Escudeiro e novo casamento com Pero Marques).
Resumo: Inês Pereira é uma jovem solteira emancipada e sonhadora, que reclama da sorte de estar presa em
casa e por isso anseia casar-se para se libertar dos trabalhos domésticos a que a mãe a obriga. O homem dos seus
sonhos, ainda que pobre, tem de ser discreto, galante, bem-humorado, bem-falante e saber cantar e tocar viola.
Tal desejo percebe-se logo na primeira conversa que estabelece com a sua mãe e Lianor Vaz. Estas duas têm uma
visão mais prática do matrimónio: o importante é que o marido cumpra com as suas obrigações financeiras,
enquanto que Inês está apenas preocupada com o lado prazeroso, cortesão.
Lianor Vaz, uma amiga alcoviteira, traz-lhe uma proposta de casamento com Pero Marques, um camponês rico e
trabalhador, disposto a aceitar Inês sem dote, de tanto que gosta dela, o que satisfazia a ideia de marido, na visão
da sua mãe. Contudo, a moça recusa este candidato por se mostrar rústico, ignorante, ingénuo, desajeitado,
grosseirão e um desconhecedor das regras de convivência social, factos que desagradam a Inês. Deste modo, este
pretendente é descartado, uma vez que é incompatível com o seu ideal de marido.
Inês Pereira aceita, então, a proposta de dois Judeus casamenteiros divertidíssimos, Latão e Vidal, que somente
se interessam pelo dinheiro que o casamento arranjado lhes pode render, não dando importância ao bem-estar
da moça. Então, apresentam-lhe Brás da Mata, um escudeiro que se mostra exatamente do modo que Inês
esperava, apesar das desconfianças da sua mãe. Eles casam-se, mas Inês depressa percebe ter feito uma má
opção, já que o Escudeiro se revela um marido tirano, maltratando-a, aprisionando-a em casa e obrigando-a a
trabalhar, sempre sob vigia do Moço. Impede-a de tudo, até de ir à janela, chegando a pregar as janelas para que
Inês não olhe para a rua. Proíbe-a de cantar dentro de casa, pois quer uma mulher obediente e discreta. Inês
torna-se, assim, vítima das suas próprias ilusões e ambições. Lamentando a sua sorte e arrependida da escolha
que fez, deseja ficar solteira para poder encontrar um marido que possa manipular e, dessa forma, mudar de vida.
Entretanto, Brás da Mata parte para a guerra no Norte de África e, três meses depois, Inês recebe a notícia de que
o marido tinha sido morto por um pastor mouro, enquanto fugia covardemente da batalha.
Viúva e mais experiente, fingindo tristeza pela morte do esposo, Inês decide casar-se com o antigo pretendente,
Pero Marques, que apesar de bronco, trata-a bem e faz-lhe todas as vontades. Aproveitando-se da ingenuidade
de Pero, Inês passa a explorar a dedicação e a liberdade que ele lhe dá. Num dos seus passeios, encontra um
ermitão que tinha sido um antigo apaixonado seu e marca um encontro com ele. No dia marcado, Inês convence
o marido a levá-la até à ermida, dizendo ser por devoção religiosa. Na sua inocência, Pero Marques chega ao
ponto de a carregar às costas enquanto atravessam um rio. Durante a travessia em que ele a conduzirá até ao
amante, cantam uma música carregada de ironia, na qual Inês chama o marido de “cervo” e de “cuco” (gíria da
época para “marido enganado”). Seguindo o refrão da canção, Pero Marques limita-se a repetir: “Pois assim se
fazem as cousas”.
Comprova-se, assim, o provérbio que havia sido proposto a Gil Vicente como tema da farsa. “Mais quero asno
(Camponês Pero Marques) que me (Inês Pereira) leve que cavalo (Escudeiro Brás da Mata)que me derrube”.
Inês aprendeu a lição: mais vale um camponês humilde, que lhe faça todas as vontades («asno»), do que um
marido de comportamento refinado, mas que a maltrate («cavalo»).
b) Casada e viúva
• casa com Brás da Mata, o Escudeiro, sem saber que ele é pobre e interesseiro;
• fica a viver em casa da mãe, que se retira para viver num casebre;
• é infeliz, pois o marido não a deixa cantar e prende-a em casa;
• fica sozinha quando o seu marido vai para Marrocos lutar contra os mouros;
• é vigiada pelo Moço;
• reconhece que errou ao rejeitar Pero Marques e ao casar-se com o Escudeiro;
• deseja a morte do marido e jura que se casará uma segunda vez com um marido que seja submisso, para gozar a
vida e vingar-se das provações sofridas enquanto casada com o Escudeiro;
• não se comove com a morte do marido, pelo contrário, sente-se livre;
• é hipócrita ao chorar pelo marido morto e ao dizer que está triste;
• reconhece que a experiência de vida ensina mais do que os mestres.
Representação do quotidiano
• Ambiente popular – casamento (conceção, preparativos, festejos), tarefas domésticas, relações entre homens e
mulheres, mães e filhas.
• Vida da corte – música, dança (Brás da Mata, Moço, Judeus).
• Imoralidade do clero (episódio do ataque de Lianor Vaz por parte de um clérigo).
Dimensão Satírica/Crítica
• Gil Vicente foi um observador perspicaz do seu tempo, recorrendo à sua veia satírica.
• Gil Vicente critica a sociedade parasitária, de gente que desprezava o trabalho para viver de expedientes fáceis,
ludibriando os outros e usando muitas vezes da tirania e da corrupção.
• Critica igualmente a hipocrisia generalizada, o contraste entre o ser e o parecer, o adultério, as mulheres
caprichosas ou levianas, as alcoviteiras.
• O dramaturgo critica, também, os escudeiros pobres e presunçosos; o clero corrupto e a própria Igreja e, ainda,
os excessos cometidos pelos que iam à Índia em busca de riqueza.
A Farsa de Inês Pereira reflete o quotidiano, revestindo-se de uma dimensão satírica – ridendo castigat mores (a
rir castigam-se os costumes). Com efeito, a intriga da peça serve dois propósitos: divertir (esta é uma “farsa de
folgar”) e moralizar (ao chamar a atenção e criticar determinados comportamentos como a ambição desmedida,
as falsas aparências, o pretensiosismo, a devassidão e a mentira). Gil Vicente consegue atingir este duplo objetivo
através de:
- Personagens-tipo:
. Inês Pereira – representa a moça da vila com pretensões de ascender socialmente. Ao tempo mostra a
sua individualidade, já que o seu comportamento evolui ao longo da peça. Recusa inicialmente o modo de vida
popular, preferindo a corte, mas depois aceita-o, ainda que traia o marido.
. a mãe – prudência, experiência e conservadorismo social (defende que Inês case com um seu “igual” (em
termos de posição social).
. a alcoviteira Lianor Vaz – materialismo e falsidade;
. o lavrador Pero Marques – ingenuidade e simplicidade;
. o Escudeiro Brás da Mata – pretensiosismo, falsidade e cobardia;
. os judeus Latão e Vidal – materialismo e oportunismo;
. o ermitão – devassidão e desrespeito.
- Cómicos:
. de caráter em que as personagens se veem envolvidas em situações que geram o riso (ex.: Pero Marques
não sabe para que serve a cadeira e senta-se ao contrário);
. de situação em que as próprias personagens, através das suas próprias atitudes e maneira de ser, são
fonte de riso (ex.: Inês às cavalitas de Pero Marques que a ajuda a se encontrar com o amante);
. de linguagem em que as personagens utilizam uma linguagem expressiva com trocadilhos, expressões
populares ou mesmo calão (ex.: modo de falar de Pero Marques e dos Judeus).