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Introdução
Este auto, de Gil Vicente, foi apresentado pela primeira vez no Convento de Tomar, em
1523, para o rei D. João III.
Na época, devido às inúmeras obras que publicava, muitos homens começavam a
desconfiar do dramaturgo -seria ele que escrevia todos os autos, ou copiava-os? Assim,
foi-lhe lançado o desafio de escrever uma peça com um tema nunca antes utilizado:
“Mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube”, ou seja, é preferível alguém
calmo e pouco inteligente (asno), que outro com que não se consegue lidar, ainda que
esperto (cavalo). E Gil Vicente assim o fez.
A Farsa
Gil Vicente escreveu, ao longo da sua vida, mais de cinquenta autos (peça teatral com
um só ato), os quais podemos dividir em três tipos: comédias, farsas e moralidades. As
duas primeiras eram de temas profanos (não religiosos) e as moralidades eram de temas
religiosos.
Farsa é um gênero teatral de caráter caricatural e geralmente possui apenas um ato,
enredo curto e poucos atores.
A farsa centra-se mais na ação da peça e nos adereços, como o cenário, roupas e gestos,
do que no diálogo e do que no conflito dramático. Estas peças teatrais são breves, com
poucas personagens, sendo utilizado o tom cómico e satírico, graças ao recurso ao
absurdo, aos equívocos, ao qui pro quo (isso por aquilo – troca de favores), à caricatura
e às situações ridículas. A farsa visa ainda a subversão (revolta) de valores da ordem
institucional estabelecida, o que resulta num grande sucesso entre as pessoas
das classes populares.
Estrutura Externa
Como já foi dito, a Farsa de Inês Pereira é um auto, ou seja, é constituída por apenas um
ato.
Ao contrário do habitual no texto dramático, o ato não se divide em cenas, pois a
designação não era utilizada na altura. Assim, divide-se o ato em 10 quadros.
Estrutura Interna
A ação tem o seguimento habitual de exposição, conflito e desenlace, ao longo dos
quadros que se vão sucedendo da seguinte forma:
1. Vida de Inês, ainda solteira, com a mãe
2. Conselhos de Lianor Vaz sobre o casamento
3. Apresentação e entrada de Pêro Marques
4. Recusa da proposta de casamento por Inês
5. Anúncio e entrada de um novo pretendente
6. Casamento de Inês com o escudeiro Brás da Mata
7. Desencanto com o casamento
8. Viuvez de Inês Pereira
9. Nova vida de casada com Pêro Marques
10. Concretização do desejo de Inês
Personagens
-Inês Pereira
Em solteira
Ambiciosa e sonhadora – pequena burguesia;
Ociosa, despreza a vida rústica do campo;
O seu quotidiano é entediante: costura, borda e fia;
É alegre, quer sair de casa e divertir-se, mas é contrariada pela mãe;
É ambiciosa, idealista, quer casar-se com um homem que, ainda que pobre, seja
«avisado» (discreto), meigo e saiba cantar e tocar viola, para fugir à vida que tem, quer
viver alegre e ascender socialmente;
A carta que Pero Marques lhe envia não lhe agrada e considera-o disparatado e
simplório;
Troça de Pero Marques quando este a visita, e rejeita-o;
Em casada e em viúva
Casa com Brás da Mata, o Escudeiro, sem saber que ele é pobre e interesseiro;
Fica a viver em casa da mãe, que se retira para viver num casebre;
É infeliz, pois o seu marido não a deixa cantar e prende-a em casa;
Fica sozinha quando o marido vai para Marrocos lutar contra os mouros;
É vigiada pelo Moço;
Reconhece que errou ao rejeitar Pero Marques e ao casar com o Escudeiro;
Deseja a morte do marido e jura que se casará uma segunda vez com um marido que
seja submisso, para gozar a vida e vingar-se das provações sofridas enquanto casada
com o Escudeiro;
Não se comove com a morte do marido, pelo contrário, sente-se livre;
É hipócrita ao chorar pelo marido morto e ao dizer que está triste;
Reconhece que a experiência de vida ensina mais do que os mestres;
-Mãe de Inês
Mulher simples – pequena burguesia;
Religiosa;
Autoritária, não permitindo que Inês saia de casa e obrigando-a a trabalhar;
Defende o casamento de Inês com Pero Marques;
Conselheira e preocupada com o futuro de Inês;
Não aprova a relação da filha com o Escudeiro, fruto do idealismo e da falta de
prudência de Inês;
Revoltada, acaba por aceitar a opção de Inês se casar com Brás da Mata, abençoando-
os e dando-lhes a sua casa.
A Mãe de Inês é uma personagem-tipo, representante de todas as mães que apenas
querem o melhor para as suas filhas.
Podemos classificá-la como interesseira, inteligente e preocupada.
-Lianor Vaz
Alcoviteira casamenteira – povo;
Conhecida da mãe de Inês, quer que Inês se case com Pero Marques;
Aparentemente honesta e desinteressada pelo dinheiro que poderá ganhar com o
casamento de Inês;
Sensata e boa conselheira, avisa Inês de que ela não deverá esperar o marido, mas
aceitar o pretendente que lhe aparecer;
Amiga, mostra-se preocupada com o futuro de Inês;
Depois da morte do Escudeiro, persuade Inês a casar-se com Pero Marques.
Lianor Vaz é uma personagem-tipo também, representante das alcoviteiras e
casamenteiras. O seu papel é de intermediária entre o pretendente de Inês e a mesma,
papel que lhe renderá dinheiro se o casamento se realizar. Assim, dissimulada, tenta
convencer Inês a aceitar a proposta.
-Pêro Marques
Lavrador abastado – povo;
Pretendente rejeitado por Inês;
É rico e trabalhador, tendo herdado a maior parte do gado do pai e uma fazenda de mil
cruzados;
Apresenta-se como um homem de bem, honesto e de boas intenções;
É um homem rústico, desconhecedor das regras de convivência social, ignorante e
ingénuo; cai no ridículo pela maneira como se veste e pela maneira de falar e de agir;
Sofre com a rejeição e promete não se casar até que Inês o aceite;
Após a morte do Escudeiro, casa-se com Inês Pereira;
Concede liberdade total a Inês e é traído por ela;
Representa o papel de «asno» que leva literalmente a mulher às costas para «visitar» o
Ermitão.
Pêro Marques, um camponês rico, apresenta-se como pretendente. É um homem
simples, habituado à vida campónia, mas bem-intencionado e ingénuo. Apesar da
primeira recusa de casamento, Pêro insiste no seu amor pela rapariga e, quando esta o
volta a contactar, depressa a aceita.
Esta personagem confere essencialmente comicidade à peça, tanto pela sua linguagem,
como pelas situações em que acaba por se encontrar e a própria forma de ser.
-Brás da Mata
Baixa nobreza – fidalgo
Duvida do retrato perfeito que os judeus casamenteiros fazem de Inês;
É pobre, mas finge ser rico e desinteressado;
É galanteador, elegante, bem-falante, sabe ler e escrever, sabe cantar e tocar viola – é
«discreto»; é o homem ideal que Inês procura;
Casa-se com Inês e revela-se autoritário e agressivo;
Parte para a guerra em Marrocos para ser armado cavaleiro, deixando Inês e o Moço
sem dinheiro;
É cobarde, pois é morto em Arzila por um mouro pastor, ao fugir do campo da batalha;
Representa o papel de «cavalo», elegante e valente (supostamente).
Brás da Mata é um escudeiro pobre, embora não o deixe saber-se. Faz-se acompanhar
de um moço, seu criado, que revela ao público características do seu amo. O escudeiro é
arrogante e falso, mas também tinha as características ideais de Inês, o que leva os
judeus a recomendá-lo. Ele mostra-se bem-falante e elogia Inês no primeiro encontro,
convencendo-a de imediato.
No entanto, após a cerimónia, Brás da Mata revela-se rude e aprisiona Inês em casa,
quando parte para a guerra. Acaba por morrer, fugido da guerra.
-Judeus
Latão e Vidal – alcoviteiros casamenteiros;
Têm a missão de encontrar um marido para Inês;
Operam como uma única personagem, visível no seu discurso que confere comicidade
à obra: «Tu e eu não somos eu?»;
Procuram o marido ideal para Inês Pereira;
Sem escrúpulos e oportunistas, visando apenas uma recompensa material, exageram
as qualidades do Escudeiro e de Inês para atingirem o seu objetivo;
São desonestos, falsos, materialistas e astutos
Os judeus são personagens-tipo, que representam os judeus casamenteiros da altura. À
semelhança das alcoviteiras, o seu ofício era concretizar casamentos, sendo pagos por
uma das partes para chegar à outra.
-Ermitão
Antigo apaixonado de Inês de Castro – clero;
É castelhano;
Apresenta um discurso mais amoroso do que religioso, aproximando-se da blasfémia;
É solitário e triste;
Pede esmola pelas ruas;
A paixão frustrada por Inês fê-lo tornar-se ermita;
Envolve-se amorosamente com Inês.
O Ermitão, um padre pobre, é também uma personagem-tipo. É utilizado por Gil
Vicente para criticar o clero, pois o Ermitão acaba por se envolver com Inês, violando o
voto de castidade.
-Moço
Fernando – criado do Escudeiro – povo;
Contribui para a sátira presente na obra pela denúncia do verdadeiro caráter do seu
amo: a pelintrice, as manias das grandezas, as privações e o sonho de atingir uma
situação económica confortável através do casamento com Inês;
Queixa-se da pobreza e da fome a que o Escudeiro o sujeita;
É responsável por vigiar Inês, quando o seu amo parte para África, trancando-a em
casa e deixando-a sozinha enquanto ele se vai «desenfadar» com as moças;
Fica triste ao receber a notícia da morte do seu amo em Arzila;
É despedido por Inês, depois da morte do Escudeiro.
Tipos de Cómico
-Cómico de Linguagem
É, essencialmente, a desadequação da linguagem de uma personagem ao contexto em
que se encontra. Pode estar presente através da utilização da ironia, do sarcasmo, dos
apartes, do calão ou de trocadilhos -ou seja, na fala das personagens.
Exemplos:
“E ela sabe latim / e gramática e alfaqui” (vv. 196/197) “Cuido que lhe trago aqui /
peras da minha pereira” (vv. 298/299)
-Cómico de Caráter
É inserido na própria personalidade da personagem e da sua incapacidade de inserção
no contexto em que se encontra.
Exemplo:
Pêro Marques é o melhor exemplo de cómico de caráter, devido ao seu comportamento
e falas desadequadas, assim como a sua postura.
-Cómico de Situação
Resulta do enredo em que as personagens se colocam.
Exemplos:
“Assentou-se com as costas para elas”
Pêro, novamente, coloca-se várias vezes em situações que provocam o riso.
Representação do Quotidiano
Durante o auto, temos várias representações do quotidiano inseridas na ação:
Combinação de casamento
Conflito de gerações
(Duas concessões de casamento):
o Conceção de Inês – Não aceita um marido qualquer; discreto em
falar; não importa que seja pobre;
o Conceção de Lianor Vaz (Experiente nas artes casamenteiras) – Bom
marido, rico e honrado.
(Oposição de interesses):
o Inês – Desejo de liberdade
o Lianor e Mãe – Conservadorismo e reprodução dos valores da época.
Ascensão social através do casamento
o Elogio às qualidades da filha
o Cómico de linguagem - Alfiqui é um sábio muçulmano. A mãe pensa
tratar-se de uma ciência difícil.
o Imposição do casamento à mulher medieval;
Dimensão Satírica
Critica os costumes da sociedade quinhentista.
Critica à nobreza (Escudeiro):
Empobrecida e sem valor;
Exploração dos mais pobres;
Falta de caracter e falsidade;
Subversão da ordem social estabelecida: Um nobre pretende casar com um
membro do povo.
Critica aos judeus:
Interesseiros e astutos (habilidosos): Enganam a cliente para alcançar os seus
objetivos;
Cómico de linguagem: utilização excessiva de adjetivos;
Perspetiva mercantilista do casamento: a preocupação dos judeus é fechar
negócio.
Critica ao clero (Ermitão leviano):
Critica à degradação de costumes (adultério);
Cómico de situação: Carácter dissimulado de Inês; Ingenuidade e integridade do
marido – carrega Inês para ir ao encontro com o Ermitão;