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Letras em dia, Português, 10.

° ano Questão de aula – Educação Literária

Nome: N.º: Turma:

Avaliação: O professor:

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira


Lê atentamente o excerto da Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente.

Chega o Escudeiro onde está Inês Pereira e logo me vereis tanger.


diz:
Moço, que estás lá olhando?
Escudeiro Antes que mais diga agora, Moço Que manda Vossa Mercê?
Deus vos salve, fresca rosa, Escudeiro Que venhas cá.
e vos dê por minha esposa, Moço Pera quê?
por mulher e por senhora. 40 Escudeiro Por que faças o que eu mando!
5 Que bem vejo Moço Logo vou.
nesse ar, nesse despejo1, (O Diabo me tomou:
mui graciosa donzela, sair-me de João Montês
que vós sois, minha alma, aquela por servir um tavanês3,
que eu busco e que desejo. 45 mor doudo que Deus criou!)

10 Obrou bem a natureza Escudeiro Fui despedir um rapaz,


em vos dar tal condição, por tomar este ladrão,
que amais a discrição que valia Perpinhão4.
muito mais que a riqueza. Moço!
Bem parece
15 que a discrição merece Moço Que vos praz?
gozar vossa fermosura, 50 Escudeiro A viola.
que é tal que, de ventura, Moço (Oh! Como ficará tola,
outra tal não s’acontece. se não fosse5 casar ante
co mais sáfio6 bargante7
Senhora, eu me contento que coma pão e cebola!)
20 receber-vos como estais;
se vós não vos contentais, 55 Ei-la aqui bem temperada8,
o vosso contentamento não tendes que temperar9.
pode falecer no mais2. Escudeiro Faria bem de t’a quebrar
Latão (Como fala! na cabeça, bem migada10.
25 Vidal E ela como se cala! Moço E se ela é emprestada,
Este há de ser seu marido, 60 quem na havia de pagar?
segundo a coisa s’abala.) Meu amo, eu quero-me ir.
Escudeiro E quando queres partir?
Escudeiro Eu não tenho mais de meu, Moço Logo quero começar.
somente ser comprador
30 do Marichal, meu senhor, Determino de partir
e sam escudeiro seu. 65 ante que venha o inverno,
Sei bem ler, porque vós não dais governo
e muito bem escrever, pera vos ninguém servir.
e bom jogador de bola, Escudeiro Não dormes tu que te farte?
35 e quanto a tanger viola, Moço No chão, e o telhado por manta,

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Letras em dia, Português, 10.° ano Questão de aula – Educação Literária

70 e cerra-se-m’a garganta com fome.

Escudeiro Isso tem arte11...


Moço Vós sempre zombais assi.
Escudeiro Oh! Que boas vozes tem
esta viola aqui!
75 Leixa-me casar a mi,
depois, eu te farei bem.
Mãe Agora vos digo eu
que Inês está no Paraíso!
Inês Que tendes de ver co isso?
80 Todo o mal há de ser meu.

Mãe Oh! Como é seca12 a velhice!


Inês Leixai-me ouvir e folgar,
que não m’hei de contentar
de casar com parvoíce.
85 Pode ser maior riqueza
que um homem avisado13?
Mãe Muitas vezes, mal pecado,
é melhor boa simpreza14.

VICENTE, Gil, 2014. Farsa de Inês Pereira.


Porto: Porto Editora (pp. 39-44)

1. despejo: naturalidade; 2. falecer no mais: ser gorado com outro pretendente;


3. tavanês: estouvado, leviano; 4. Perpinhão: praça muito disputada no final do
século XV e que, por metáfora, refere alguém valioso; 5. fosse: devia, seria mais
feliz; 6. sáfio: reles, rude; 7. bargante: homem sem vergonha e sem moral;
8. temperada: afinada; 9. «verbo temperar»: jogo com o duplo sentido de afinar e
cozinhar; 10. migada: feita em pedaços; 11. Isso tem arte: Isso tem graça;
12. seca: aborrecida; 13. avisado: sabido; 14. simpreza: simplicidade;
15. canaval: canavial.

1. Refere as características de Inês que o Escudeiro elogia no seu discurso inicial.

2. Caracteriza o Escudeiro a partir do excerto. Ilustra a tua resposta com exemplos do texto.

3. Apresenta as reações de Inês e da Mãe ao discurso do Escudeiro.

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Letras em dia, Português, 10.° ano Sugestões de resolução

Questão de aula – Educação Literária

Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira

1. O Escudeiro elogia a beleza e juventude de Inês («fresca rosa», v. 2), a sua naturalidade («nesse despejo», v. 6),
elegância («graciosa donzela», v. 7), o seu recato («que a discrição merece/gozar vossa fermosura», vv. 15-16), as
suas prioridades e gostos («amais a discrição/muito mais que a riqueza», vv. 12-13).

2. Antes de chegar perto de Inês, o Escudeiro havia feito algumas considerações acerca da aparência da moça,
estranhando que fosse ainda donzela. Quando a conhece, dirige-lhe um discurso cheio de elogios, que, por ser tão
exagerado e artificioso, soa a falsidade (vv. 1-23). Ainda no seu discurso inicial, o Escudeiro apresenta-se, valorizando-
se e sublinhando o seu estatuto social (vv. 28-36). Podemos assim caracterizá-lo como hipócrita, falso e gabarola.
A partir do diálogo com o Moço, podemos perceber que o Escudeiro é leviano («por servir um tavanês/mor doudo
que Deus criou!», vv. 44-45); pelintra («vós não dais governo/pera vos ninguém servir.», vv. 66-67; «E se ela é
emprestada,/quem na havia de pagar?», vv. 59-60; «No chão, e o telhado por manta,/e cerra-se-m’a garganta/com
fome.»,
vv. 69-71); rude («Faria bem de t’a quebrar/na cabeça, bem migada.», vv. 57-58) e gozão («Vós sempre zombais assi.»,

v. 72).

3. Conhecendo bem a sua filha, a Mãe sabe que Inês gosta do que está a ouvir («Agora vos digo eu/que Inês está no
Paraíso!», vv. 77-78). Inês está, de facto, encantada e pede à Mãe que a deixe aproveitar o momento, ouvindo as
mesuras do Escudeiro (vv. 82-84). Ao contrário da Mãe, que valoriza a simplicidade («é melhor boa simpreza», v. 88), a
rapariga deixa-se deslumbrar pelos contornos falsamente requintados da linguagem do Escudeiro (vv. 85-86);
argumenta que será ela a casar, será ela a escolher o marido e a viver com as consequências das suas escolhas (vv.
79-80).

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