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Letras em dia, Português, 11.

º ano

Educação Literária

Padre António Vieira, Sermão de Santo António


Lê o excerto do Sermão de Santo António que se segue. Se necessário, consulta as notas.

Com os Voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me,
Voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo
Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar, e com nadar, e não queirais voar,
pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas, e para as vossas
5 escamas, e conhecereis que não sois ave, senão peixe, e ainda entre os peixes não dos
melhores. Dir-me--eis, Voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros do vosso
tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas
asas? Mas ainda mal porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser
melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino 1 que todos. Aos outros peixes do alto,
10 mata-os o anzol, ou a fisga; a vós sem fisga, nem anzol, mata-vos a vossa presunção, e o
vosso capricho. Vai o navio navegando, e o Marinheiro dormindo, e o Voador toca na vela, ou
na corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome, e engana-os a isca; ao Voador
mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento. […]
À vista deste exemplo, Peixes, tomai todos na memória esta sentença: quem quer mais do
15 que lhe convém perde o que quer, e o que tem. Quem pode nadar, e quer voar, tempo virá em
que não voe, nem nade. Ouvi o caso de um Voador da terra: Simão Mago 2, a quem a Arte
Mágica, na qual era famosíssimo, deu o sobrenome, fingindo-se que ele era o verdadeiro Filho de
Deus, sinalou o dia, em que nos olhos de toda Roma havia de subir ao Céu, e com efeito
começou a voar mui alto; porém a oração de São Pedro, que se achava presente, voou mais
20 depressa que ele, e caindo lá de cima o Mago, não quis Deus que morresse logo, senão que nos
olhos também de todos quebrasse, como quebrou os pés. Não quero que repareis no castigo,
senão no género dele. […]
Oh Alma de António, que só vós tivestes asas, e voastes sem perigo, porque soubestes
voar para baixo, e não para cima! Já São João viu no Apocalipse aquela mulher, cujo ornato
25 gastou todas as suas luzes ao Firmamento, e diz que lhe foram dadas duas grandes asas de
Águia: Datæ sunt mulieri alæ duæ Aquilæ magnæ3 [Apocalipse 12, 14]. E para quê? Ut volaret
in desertum: «Para voar ao deserto». Notável coisa, que não debalde lhe chamou o mesmo
Profeta «grande maravilha». Esta mulher estava no Céu: Signum Magnum apparuit in Cælo,
mulier amicta Sole4. Pois se a mulher estava no Céu, e o deserto na terra, como lhe dão asas
30 para voar ao deserto? Porque há asas para subir, e asas para descer. As asas para subir são
muito perigosas, as asas para descer, muito seguras: e tais foram as de Santo António. Deram-
se à Alma de Santo António duas asas de Águia, que foi aquela duplicada sabedoria natural, e
sobrenatural tão sublime, como sabemos. E ele que fez? Não estendeu as asas para subir,
encolheu-as para descer: e tão encolhidas, que sendo Arca do Testamento 5 era reputado,
35 como já vos disse, por Leigo, e sem ciência. Voadores do mar (não falo com os da terra), imitai
o vosso Santo Pregador. Se vos parece que as vossas barbatanas vos podem servir de asas,
não as estendais para subir, porque vos não suceda encontrar com alguma vela, ou algum
costado; encolhei-as para descer, ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes
mais escondidos, estareis mais seguros.
VIEIRA, Padre António, 2014. «Sermão de Santo António». In Obra Completa
(Direção de José Eduardo Franco e Pedro Calafate). Tomo II. Volume X (Sermões Hagiográficos I).
Lisboa: Círculo de Leitores (pp. 159-162)

1. mofino: infeliz; 2. Simão Mago: feiticeiro célebre na Samaria, que, depois de batizado, tentou obter dos Apóstolos, pelo dinheiro
(simonia), a possibilidade de comunicar, como eles, o poder do Espírito Santo e que foi severamente repreendido por São Pedro; 3.
Foram dadas à mulher duas grandes asas de águia; 4. Apareceu no Céu um grande sinal, uma mulher revestida de Sol. 5. Arca do
Testamento: título recebido por Santo António de Gregório IX, por ser grande o seu conhecimento das Escrituras.

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Apresenta as tuas respostas aos itens que se seguem de forma bem estruturada.

1. Localiza o excerto apresentado na estrutura externa e na estrutura interna do Sermão de Santo


António.

2. Identifica o tipo humano simbolicamente criticado neste excerto.

3. Transcreve, do segundo parágrafo, a máxima usada na argumentação e explica o seu sentido,


relacionando-a com a crítica desenvolvida.

4. Refere o exemplo apresentado, no segundo parágrafo, para confirmar a argumentação.

5. Explica a referência a Santo António, no momento final do excerto.

6. Seleciona as opções de resposta adequadas para completar as afirmações abaixo apresentadas.


a. O recurso às interrogações retóricas, no primeiro parágrafo, pretende               e              .
b. A apóstrofe, aliada à exclamação retórica, no terceiro parágrafo, visa              .
c. O uso de frases imperativas, no terceiro parágrafo, tem como finalidade              .

(A) revelar admiração por aquele que é invocado


(B) fazer um pedido aos homens, em tom de súplica
(C) aconselhar os homens, apontando o modelo a seguir
(D) dirigir o discurso e os conselhos àquele que é invocado
(E) incrementar a reflexão dos leitores/ouvintes
(F) estruturar o pensamento lógico

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Sugestões de resolução

Padre António Vieira, Sermão de Santo António


1. Relativamente à estrutura externa, o excerto situa-se no capítulo V. No que diz respeito à estrutura
interna, esta repreensão em particular aos Voadores integra-se na Confirmação.
2. Através da crítica aos Voadores (peixe-voador), Vieira critica os homens que, por vaidade, ambição,
capricho e presunção, querem ser mais do que são.
3. «quem quer mais do que lhe convém perde o que quer, e o que tem» (ll. 14-15). Esta máxima refere-se
às consequências reservadas a quem quer ser mais do que é. Os Voadores são peixes, mas querem ser
aves. A ambição e vaidade levam-nos à morte. Subentende-se que há pessoas que caem na ruína pela sua
presunção e ambição excessivas.
4. No segundo parágrafo, Vieira apresenta o exemplo de Simão Mago, a fim de mostrar as consequências
do comportamento dos Voadores. Simão fingiu ser o verdadeiro Filho de Deus, querendo mostrar a Roma
que subia ao Céu, voando. A presunção e a ambição levaram-no a cair, aos olhos de todos, para sua
humilhação, e partindo os pés. Se era homem, devia usar os pés, como dita a sua natureza humana, e não
desejar voar.
5. O orador refere-se a Santo António como um exemplo de humildade a seguir. A António foram dadas
«duas asas de Águia» (l. 31), que metaforicamente se referem à sua sabedoria natural e sobrenatural, mas
ele usou-as para «voar para baixo, e não para cima!» (ll. 22-23), ou seja, não as usou com vaidade. Tal era
a sua humildade que, sendo tão conhecedor das Escrituras, a sua reputação era a de leigo e sem
conhecimento («era reputado, como já vos disse, por Leigo, e sem ciência» (ll. 33-34). Ao longo do Sermão,
Santo António é apresentado como modelo de virtudes e, por isso, exemplo a seguir.
6. a. (E), (F); b. (A); c. (C).

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