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Letras em dia, Português, 11.

º ano

Educação Literária

Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa


Lê o excerto de Frei Luís de Sousa que se segue. Se necessário, consulta as notas.

ATO SEGUNDO
É no palácio que fora de D. João de Portugal, em Almada; salão antigo, de gosto melancólico e
pesado, com grandes retratos de família, muitos de corpo inteiro, bispos, donas, cavaleiros, monges;
estão em lugar mais conspícuo1, no fundo, o del-rei D. Sebastião, o de Camões e o de D. João de
Portugal. Portas do lado direito para o exterior, do esquerdo para o interior, cobertas de reposteiros com
5 as armas dos condes de Vimioso. São as antigas da casa de Bragança, uma aspa vermelha sobre
campo de prata com cinco escudos do reino, um no meio e os quatro nos quatro extremos da aspa; em
cada braço e entre os dois escudos uma cruz floreteada 2, tudo do modo que trazem atualmente os
duques de Cadaval; sobre o escudo, coroa de conde. No fundo um reposteiro muito maior e com as
mesmas armas sobre as portadas da tribuna, que deita sobre a capela da Senhora da Piedade, na lgreja
10 de S. Paulo dos domínicos de Almada.

CENA I
Maria e Telmo
Maria – (saindo pela porta da esquerda e trazendo pela mão a Telmo, que parece vir de pouca vontade )
Vinde, não façais bulha, que minha mãe ainda dorme. Aqui, aqui nesta casa é que quero
conversar. E não teimes, Telmo, que fiz tenção, e acabou-se!
Telmo – Menina…
15 Maria – «Menina e moça me levaram de casa de meu pai» 3 – é o princípio daquele livro tão bonito que
minha mãe diz que não entende; entendo-o eu. Mas aqui não há menina nem moça; e vós,
senhor Telmo Pais, meu fiel escudeiro, «faredes4 o que mandado vos é». E não me repliques,
que então altercamos, faz-se bulha, e acorda minha mãe, que é o que eu não quero. Coitada! Há
oito dias que aqui estamos nesta casa, e é a primeira noite que dorme com sossego. Aquele
20 palácio a arder, aquele povo a gritar, o rebate dos sinos, aquela cena toda… oh! tão grandiosa e
sublime, que a mim me encheu de maravilha, que foi um espetáculo como nunca vi outro de igual
majestade!… À minha pobre mãe aterrou-a, não se lhe tira dos olhos; vai a fechá-los para dormir
e diz que vê aquelas chamas enoveladas em fumo a rodear-lhe a casa, a crescer para o ar e a
devorar tudo com fúria infernal… o retrato de meu pai, aquele do quarto de lavor 5, tão seu
25 favorito, em que ele estava tão gentil homem, vestido de cavaleiro de Malta com a sua cruz
branca no peito, aquele retrato não se pode consolar de que lho não salvassem, que se
queimasse ali. Vês tu? Ela, que não cria em agouros, que sempre me estava a repreender pelas
minhas cismas, agora não lhe sai da cabeça que a perda do retrato é prognóstico 6 fatal de outra
perda maior, que está perto, de alguma desgraça inesperada, mas certa, que a tem de separar
30 de meu pai. E eu agora é que faço de forte e assisada 7, que zombo de agouros8 e de sinas9…
para a animar, coitada!… que aqui entre nós, Telmo, nunca tive tanta fé neles. Creio, oh, se
creio! que são avisos que Deus nos manda para nos preparar. E há… oh! há grande desgraça a
cair sobre meu pai… decerto! e sobre minha mãe também, que é o mesmo.
Telmo – (disfarçando o terror de que está tomado) Não digais isso… Deus há de fazê-lo por melhor, que
35 lho merecem ambos (cobrando ânimo e exaltando-se). Vosso pai, D. Maria, é um português às
direitas.
GARRETT, Almeida, 2013. Frei Luís de Sousa. Porto: Porto Editora (pp. 51-53)

1. conspícuo: destacado; 2. floreteada: floreada; 3. «Menina e moça me levaram de casa de meu pai»: frase de abertura da obra Menina e
Moça, de Bernardim Ribeiro, autor português do século XVI; 4. faredes: «É o antiquado de fareis, que Maria aqui emprega com graciosa
afetação, para falar em estilo de donzela romanesca, dando ordens ao seu escudeiro. Ponho isto aqui, porque sei que me notaram o arcaísmo
como impróprio do tempo; era-o com efeito no século XVII em que aí estamos, se não fora trazido assim.» ( A. Garrett). 5. quarto de lavor:
quarto destinado a trabalhos femininos; 6. prognóstico: prenúncio; 7. assisada: sensata, discreta; 8. agouros: presságios; 9. sinas: sortes,
destinos.

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Educação Literária

Apresenta as tuas respostas aos itens que se seguem de forma bem estruturada.

1. Localiza o excerto na globalidade da obra.

2. Explica a função da longa didascália inicial, referindo o significado dos elementos cénicos de maior
destaque.

3. Apresenta uma explicação para as palavras de Maria: «Aqui, aqui nesta casa é que quero
conversar.» (l. 12)

4. Maria tem uma perspetiva diferente da de Madalena, relativamente ao incêndio.


Comprova a afirmação.

5. Completa as afirmações abaixo apresentadas, selecionando da tabela a opção adequada a cada


espaço.
Regista apenas as letras e o número que corresponde à opção selecionada em cada um dos casos.
Neste excerto, Telmo mostra       (a)      .
Ao dizer «Mas aqui não há menina nem moça» (l. 16), Maria       (b)      .
A destruição do quadro de Manuel de Sousa Coutinho é vista como mau presságio       (c)      .

(a) (b) (c)

1. não querer estar naquela casa 1. revela as suas 1. pelo próprio


2. não querer dar explicações a preferências literárias 2. por Maria, Madalena e Telmo
Maria 2. revela os seus medos 3. por Madalena e Telmo
3. ter admiração por D. João de
3. sugere que já tem idade 4. por Maria, Madalena e Manuel
Portugal
para saber a verdade
4. a sua preocupação pelo
destino de Maria 4. pretende mostrar que é
diferente da sua mãe

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Sugestões Literária
de resolução

Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa


1. O excerto situa-se no início do segundo ato (cena I). Integra o conflito da peça e corresponde a um
primeiro momento do ato, no qual se apresentam informações sobre os acontecimentos ocorridos desde o
incêndio (na cena anterior, no final do primeiro ato) até ao presente da ação.
2. A didascália inicial descreve o espaço em que se desenvolve a ação durante o segundo ato, um salão do
palácio de D. João de Portugal. Este salão é descrito como «antigo, de gosto melancólico e pesado» (l. 1) e
está decorado com retratos, que o enchem com uma multidão de gente do passado, « bispos, donas,
cavaleiros, monges» (l. 2). Há, desde logo, a sensação de que este espaço é escuro e triste, oprime e cerca
as personagens, tal como o seu destino. E, além disso, desenha-se um regresso ao passado. Os elementos
cénicos de maior destaque, «em lugar mais conspícuo» (ll. 2-3), são os retratos de D. Sebastião, de
Camões e de D. João de Portugal. O retrato de Camões, no contexto da obra, é a imagem de um autor
presente desde a primeira cena, ideologicamente associado ao espírito cavaleiresco e patriótico dos outros
dois retratados. Os quadros de D. Sebastião e de D. João de Portugal representam e relembram a tragédia
de Alcácer Quibir. O retrato de D. João corresponde à presença do antigo marido de Madalena no espírito
das personagens, constituindo um indício físico do desfecho trágico. Assim, o regresso de Madalena à casa
do antigo marido parece anunciar, mais do que um regresso ao passado, o regresso do passado.
3. Maria revela, desde o início, ser muito inteligente, curiosa e perspicaz. Assim, ficou muito intrigada porque
a mãe, no dia em que chegaram àquela casa, se mostrou apavorada ao ver um retrato em particular,
naquela sala. É por essa razão que chama Telmo ali para lhe perguntar quem é o homem no retrato. As
suas palavras, na linha 12, comprovam a sua intuição. Maria percebe que aquele lugar pode ser a chave
para a compreensão de palavras e comportamentos dos seus pais e de Telmo que até aí não compreendeu.
4. Relativamente ao incêndio, Maria tem uma perspetiva de espetáculo grandioso e sublime (l. 20), mas
Madalena ficou aterrada e não consegue libertar-se das imagens dessa noite, particularmente a destruição
do retrato de Manuel de Sousa Coutinho, crendo que é agouro de um destino fatal (ll. 21-33).
5. a. 2.; b. 3.; c. 2.

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