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Os Lusíadas: Canto VI, 95-99, reflexões do Poeta sobre a fama e a glória

         Nos quatro versos iniciais da estância 95, o poeta refere, genericamente, como se alcança a
imortalidade (“honras imortais”) e as maiores distinções – a fama e a glória: através da coragem,
da capacidade de luta e sofrimento demonstradas em situações de perigo, como fica visível nas
seguintes expressões textuais: “hórridos perigos” e “trabalhos graves e temores”. Nestes versos,
há a realçar a adjetivação, que, por um lado, intensifica a dureza e a amplitude (“hórridos” e
“grandes”) das dificuldades a que se sujeitam todos aqueles que, como os portugueses, desejam
cometer grandes feitos, e, por outro, reforça o valor das recompensas (“imortais” e “maiores”)
que, desse modo, atingem.

         Um segundo momento do texto localiza-se entre o verso 5 da estância 95 e o verso 4 da


estância 98. Aí, são identificados os obstáculos à obtenção da fama e da glória, isto é, o poeta
põe em evidência aquilo que não são os meios de as atingir (logo atos a evitar):

a. viver à custa do que os antepassados conseguiram (= a glória não é herdada dos antepassados) -
95, 5-6;
b. viver rodeado de conforto (95, 7);
c. viver rodeado de luxo e de requintes supérfluos (95, 8);
d. os “manjares novos e esquisitos” (96, 1);
e. os passeios ociosos (96, 2);
f. os deleites / prazeres (96, 3) que efeminam, isto é, enfraquecem, os fidalgos;
g. viver para saciar os apetites / caprichos insaciáveis;
h. ficar indiferente face a uma “obra heroica de virtude”.

         Assinale-se o recurso à enumeração e à anáfora na estância 96. Por um lado, o poeta


enumera diferentes caminhos que não conduzem à verdadeira glória. Através da repetição
anafórica, reitera a ideia de que esses caminhos devem ser postos de lado.

         Sintetizando, o poeta critica todos os que desejam ser reconhecidos na vida, apreciados
apenas na genealogia, nos luxos, nos prazeres e numa vida ociosa, sem praticarem qualquer “obra
heroica de virtude” (96, v. 8).

         A partir do verso 1 da estância 97, introduzido pela conjunção coordenativa adversativa
«mas», sinónima de ideia oposta, Camões vai enumerar as ações que fazem o verdadeiro herói e
que permitem alcançar a fama e a glória (ou seja, vai apresentar as alternativas aos
comportamentos anteriormente descritos), salientando a dureza dessas ações através do recurso
ao adjetivo (“forçoso”, “forjado”, “cruas”, “frios”, “nuas”, “corrupto”, “árduo”, …). Essas ações
são as seguintes:

a. a obtenção das honras pelos seus atos, ações a que possa chamar suas (97, 1-2);
b. a disponibilidade para a guerra (97, 3);
c. o enfrentar/sofrer tempestades e “ondas cruas” (97, 4);
d. as navegações árduas por regiões inóspitas à custa de enorme sofrimento pessoal (97, 3-8);
e. o consumo de alimentos deteriorados;
f. a resignação ao sofrimento;
g. a vitória sobre as limitações pessoais, de forma a enfrentar as situações mais difíceis ou
dolorosas – o enfrentar a guerra com ar seguro / confiante e alegre (por exemplo, manter um
rosto “seguro” ao assistir a acidentes dos companheiros.
        
Entre os versos 5 da estância 98 e 4 da 99, é feita uma espécie de síntese das qualidades
necessárias àqueles que buscam a virtude:
i. o “calo honroso” no peito;
ii. o desprezo das honras e do dinheiro trazidos pela «ventura» e não pela «virtude»;
iii. o entendimento esclarecido e temperado pela experiência e a libertação dos interesses
mesquinhos (“O baxo trato humano embaraçado” – 99, v. 4).

         Nos últimos quatro versos da estância 99, o poeta clarifica que só quem percorrer este
caminho poderá e deverá ascender ao poder (“ilustre mando”, 99 – v.7), sempre contra a sua
vontade e nunca a pedido, isto é, fá-lo-á de forma desinteressada. No fundo, ao concluir esta sua
reflexão, Camões retoma o que afirmara na introdução: é através do esforço próprio e não das
“honras e dinheiro” que se pode/deve ascender ao estatuto de herói. O verdadeiro herói
despreza as “honras e dinheiro” (est. 98, v. 6) trazidos pela sorte e não produto do esforço
pessoal. A sua experiência dar-lhe-á o conhecimento da verdadeira virtude e um estatuto superior
ao dos homens de “baixo trato” (est. 99, v. 4). Desse modo, num mundo justo, “Subirá” (est. 99)
a posições de poder por mérito pessoal e “não rogando” (est. 99, v. 6) favores.

         Em suma, é digno de louvor e merecedor de glória aquele que se dignifica através do
seu esforço, da sua capacidade de sofrimento, perseverança e humildade, bem como através do
desprezo das honras e do dinheiro conquistado graças à sorte e não ao mérito pessoal. Só quem
"preencher estes requisitos" poderá conquistar o "ilustre mando", não porque o peça, mas contra a
sua vontade. Tal significa que só a honra e a glória alcançadas por mérito próprio poderão ser
valorizadas.

         Relativamente à estrutura interna, o excerto pode dividir-se em três momentos:


1.º momento (vv. 1-4, est. 95): o poeta elogia a coragem de quem, como os portugueses, pratica
atos gloriosos dignos de honra.
2.º momento (v. 5, est. 95 - v. 5, est. 98):
2.1. enumeração das renúncias (v. 5, est. 95 – est. 96);
2.2. atos a praticar por quem deseja alcançar a verdadeira fama (est. 97 – v. 4, est. 98);
3.º momento (v. 5, est. 98 – est. 99): conclusão das reflexões do poeta, que salienta o esforço
sincero e desprendido como motor da glória.

         As reflexões feitas pelo poeta nestas estâncias sugerem o perfil do herói épico, que se
resigna à dureza da vida e enfrenta com convicção, abnegação, espírito de sacrifício e coragem as
dificuldades que se lhe apresentam. O herói é o que concretiza trabalhos árduos e perigosos na
guerra e no mar, em condições climatéricas e existenciais deploráveis. Só deste modo,
conseguindo superar todas as dificuldades e provações, é possível alcançar um estatuto honroso,
destacando-se dos restantes seres humanos pelo seu carácter grandioso. Por outro,
indiretamente, pode ver-se neste passo da obra a crítica camoniana à elite do seu tempo,
“acusando” os nobres de serem passivos, fracos, privilegiados, insatisfeitos e alienados da
realidade.

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