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Ilíada, Homero

Características formais dos Poemas Homéricos:


 Língua Homérica: mistura de dialetos e arcaísmos artificial;
 Métrica dos poemas: hexâmetro dactílico;
 Epítetos: adjetivos que acompanham os nomes dos heróis e heroinas: “Aquiles
de pés ligeiros”, “Helena de belos cabelos”;
 Versos formulares: versos que se repetem: “assim falou (e todos permaneceram
em silêncio)”, “mas quando afastaram o desejo da comida e bebida”,
“respondendo-lhe proferiu palavras apetrechadas de asas”;
 Cenas formulares, cenas que se repetem: cenas de preparação do jantar, cenas de
armamento;
 Símiles, comparações;
 Discursos direitos das personagens.

A composição e receção oral dos poemas homéricos


A questão Homérica no século XIX: unitaristas vs. Analistas.
As principais características formais dos poemas homéricos estão ligadas à sua
composição oral (Milman Parry):
 Epítetos;
 Versos formulares;
 Cenas formulares;
 Métrica.

Três razões: Ponto de Vista Formal, Temático e de Conteúdo


 Forma:
A Ilíada representa uma espécie de “primeiro encontro” do ritmo com o real, aqui
interessa compreender que a interiedade da Ilíada está escrita num determinado ritmo
hexâmetro dactílico, seis pés de dactílico (uma sílaba longa e duas sílabas breves). É
nessa alternância entre a sílaba longa e a sílaba breve que a poesia grega ganha o seu
ritmo, isto é, música. A voz desce uma vez e eleva-se uma vez (sílaba longa). Um jogo
de colcheia mais alongado ou menos alongado, é uma espécie de música.
O primeiro encontro do homem com a realidade é um encontro poémico e musical.
O ritmo da Ilíada marca a forma musical do primeiro encontro do homem com a
realidade, o épico. Não só apenas na Grécia Antiga, mas como em outras culturas, a
prova aparece no momento secundário relativamente a essa primeira forma de dizer a
realidade, a forma poética, por isso eu diria que nesta origem encontra-se um primeiro
encontro do homem com a realidade, primeira forma de dizer musicalmente a vida.
 Temático:
O Tema da Ilíada, erradamente dito ser a Guerra de Troia, é antes um período
restrito da Guerra de Troia que corresponde, justamente, à cólera de Aquiles. A Ilíada
narra a cólera de Aquiles, tema este que está incluído no tema mais vasto da Guerra de
Troia, o ciclo épico da guerra troiana. No contexto da grega de Troia, a Ilíada e a
Odisseia não são os únicos poemas épicos deste ciclo, mas sim os que sobreviveram até
aos tempos atuais. Nesse ciclo temos vários poemas que explicam outros
acontecimentos da Guerra de Troia, como o julgamento de Paris, o rapto de Helena, a
morte de Aquiles, o Saque de Troia.
Há também, por exemplo, o ciclo da ilha de Tebas, que inclui a maldição de Édipo
(o coitado que mata o pai e casa com a mãe).
Aos nossos dias, chegaram-nos inúmeras tragédias (principalmente atenienses da
época de Péricles), que tratam esse tema e retratam várias histórias dos vários ciclos
épicos.
Em suma: a Ilíada e a Odisseia inserem-se no ciclo maior, a Guerra de Troia, que vai
desde o desencadear da guerra até ao regresso dos heróis a casa (os que sobrevivem).
Estes poemas chamam-se nostoi (nostos – regresso).
A dor do regresso – em português a saudade, a melancolia saudosa na qual por um
lado regressamos ao passado e ao mesmo tempo projetamo-nos no futuro. A dimensão
da saudade não é só a visitação melancólica ao passado, mas a dor de um encontro no
futuro.
Uma das grandes razões de o rapto de Helena causar tamanho evento bélico é o
facto de os príncipes e reis gregos tinham o dever de lealdade com o futuro marido de
Helena e partem com ele para a guerra em causa da honra estive em causa.
Nos cantos cíprios, temos outra razão para a guerra, Zeus considerava que a Terra
estava demasiado cheia e então para diminuir a população desencadeou esta guerra.
O significado da Guerra na antiguidade – Ainda estamos no “Temático”.
A guerra naquela altura tinha um significado particular.
A guerra matricional, o mito de guerra, a Guerra de Troia, significa a A Guerra
no seu sentido modelar. Um modelo de todas as guerras. A dimensão heroica, a fama, a
honra e a glória envolve o espírito épico e o desejo de tentar “lançar o gesto para a
margem mais longínqua que podemos alcançar”. A guerra tem também o seu lado
traiçoeiro, artilhoso que inclui por exemplo a propaganda ateniense, a retórica com
aspeto claramente dominador onde o aspeto heroico e épico é invocado.
Por exemplo, a guerra de Troia, por mais momentos heroicos e de glória que
tenha acaba com o estragema do Cavalo de Troia. Odisseu é o arquiteto, o homem de
mil artifícios, a avaliação da sua inteligência prática é positiva
Em contraste: Na tradição trágica, Odisseu representa o manipulador, visão
negativa longe da visão épica e extraordinária dos poemas homéricos.
O Cavalo de Troia é um estragema que não tem a ver com a versão mais pessoal
de herói contra herói.
História Cavalo de Troia: os gregos simularam o abandono da guerra e o regresso a
casa. Constroem um enorme cavalo de madeira, no qual se esconderam todos os heróis
gregos e durante a noite pensando que a vitória estava assegurada e contra todas as
recomendações de Cassandra, os troianos já a festejar a suposta vitória, deixaram entrar
o cavalo dentro da cidade. O ataque foi feito “pela clarada da noite”, opostamente às
batalhas gloriosas lutadas durante o dia. Dá-se então o Saque de Troia.
Tanta importância se deu a esta guerra ao longo da história que as guerras
napoleónicas a tentaram imitar. Em A Guerra e Paz o autor, com base na invasão russa
pelas guerras napoleónicas, expressa como numa “nova Ilíada” a guerra e o combate são
ocasiões propícias para que todas as cobardias acabem e todas as qualidades magnificas
e majestosas se possam revelar.
A aristeia (feitos nobres), a glória (kleos) e a memória, o saque de guerra e a honra
(geras, timé) no contexto da guerra.

CANTO I
 Resumo
O Canto I compreende a Invocação: o poeta invoca uma musa, solicitando-lhe ajuda
para contar a história da fúria de Aquiles (μῆνιν), o maior herói dentre os Gregos a
participar na Guerra de Troia.
A narrativa propriamente dita começa nove amos (quase dez) após o início do
conflito bélico, no momento em que os Aqueus saqueiam uma cidade aliada de Troia e
capturam duas jovens e belas donzelas: Criseida e Briseida. Agamémnon, o comandante
do exército aqueu, reclama Criseida para sua escrava e concubina, enquanto Aquiles
fica com Briseida. Crises, o pai da primeira e sacerdote de Apolo, implora a
Agamémnon que lhe devolva a filha, oferecendo em troca um rico resgate. No entanto,
o monarca grego recusa-se a satisfazer o pedido do pai ferido, por isso reza a Apolo, que
envia uma praga sobre o acampamento grego que causa a morte de muitos soldados.
Passados dez dias do surgimento da praga, Aquiles reúne o exército aqueu no
sentido de averiguar a sua causa. Calcas, um adivinho, revela então que ela constitui
uma vingança enviada por Apolo a pedido de Crises por causa de Agamémnon se ter
recusado a devolver a filha ao sacerdote, o que provoca a fúria do líder do exército
grego, que declara que só devolverá Criseida se Aquiles lhe der Briseida como
compensação. Esta exigência humilha e enfurece o maior guerreiro aqueu, que ameaça
retirar-se da guerra e levar consigo os Mirmidões, os seus guerreiros. A discussão entre
os dois sobe de tom e somente a intervenção de Atenas impede Aquiles de matar
Agamémnon. Os conselhos da deusa e o discurso sábio de Nestor conseguem, por fim,
impedir o duelo.
Nessa noite, Agamémnon envia Criseida de volta para o seu pai e manda enviados
para Briseida seja retirada da tenda de Aquiles e conduzida à sua. Aquiles pede, então, a
Tétis, deusa do mar e sua mãe, que solicite a Zeus que castigue os Aqueus, depois de lhe
ter contado a sua discussão com Agamémnon. Tétis promete falar com o chefe dos
deuses, que lhe deve um favor, assim que ele regressar de um período de treze dias de
festa com os etíopes. Enquanto isso, Ulisses devolve Criseida ao pai e faz sacrifícios em
honra de Apolo. O regresso da filha deixa Crises muito feliz e reza ao deus para que
termine a praga enviada sobre o acampamento grego. Apolo aceita a oração e Ulisses
regressa para junto dos seus companheiros.
Sucede que Aquiles, depois do confronto com Agamémnon, não voltou a participar
na guerra. Entrementes, passados doze dias, Tétis fala com Zeus, como havia prometido
ao filho, mas o pai dos deuses hesita em ajudar os Troianos, pois Hera, sua esposa, está
do lado dos Gregos, mas acaba por concordar, o que deixa a deusa furiosa, porém o seu
filho Hefesto convence-a a não iniciar um conflito entre os deuses por causa de meros
mortais.
 Análise
O primeiro verso da Ilíada apresenta-nos desde logo o tema do poema: a cólera/a
fúria de Aquiles, evidenciada pela primeira palavra da obra – menin. E qual é a sua
causa? Nada mais nada menos do que o orgulho e a honra, este último um conceito
central na Antiguidade. Por outro lado, a palavra menin também significa «preço» ou
«valor», o que significa que a perda de um prémio muito valioso por parte de
Agamémnon constitui igualmente uma perda significativa de honra. No entanto, parece
que abdicar de algo muito valioso para resguardar o seu exército constituiria também
um gesto de honra e valor. Todavia, o orgulho de Agamémnon impossibilita isso,
mesmo tendo como contrapartida a promessa de valiosas recompensas futuras.
Agamémnon só aceitará devolver a sua escrava se receber, em troca, Criseida, um
«prémio igual», portanto, o que origina o conflito com Aquiles: cada um insulta a honra
e o orgulho do outro – o filho de Tétis e Peleu apelida o rei de ganancioso e cobarde,
enquanto este menospreza as qualidades guerreiras daquele. Quando Agamémnon retira
Briseida a Aquiles, desonra-o, bem como a sua mãe, por extensão, o que significa que
agravou o seu maior guerreiro e os deuses do Olimpo. Note-se que Agamémnon já tinha
cometido o crime da sua filha Ifigénia, cuja vida sacrificou para beneficiar do favor dos
ventos nas velas dos seus navios que tinham encalhado a caminho de Troia antes do
início da guerra, gesto que causará a sua própria morte, às mãos da sua esposa, após o
seu regresso da batalha, em parte como vingança pelo sacrifício da jovem. Nada disto
faz parte da ação da Ilíada, mas ajuda a compreender a postura de Agamémnon, que
tudo sacrificou (incluindo a sua filha, o que configura a sua hybris, o desafio pelo qual
irá pagar o máximo preço: a vida) para atender ao seu orgulho e alcançar os seus
objetivos.
Assim sendo, a Ilíada, no Canto I, centra-se na fúria de Aquiles, nomeadamente na
sua origem/causa, no modo como incapacita o exército aqueu e como, posteriormente, é
redirecionada para os Troianos. Assim sendo, é possível supor que a guerra
propriamente dita serve mais como pano de funo da obra do que como seu assunto
principal. É uma hipótese de análise que se pode colocar em cima da mesa. Parecendo
confirmar esta ideia, temos o facto de, aquando do enfrentamento entre Agamémnon e
Aquiles, o conflito entre Troianos e Aqueus durar há quase dez anos; além disso, a
ausência do filho de Tétis do campo de batalha dura apenas alguns dias e o poema
termina pouco depois do seu regresso. Por outro lado, a obra de Homero não enuncia as
origens nem o desenlace da guerra, antes se debruça sobre as origens e o fim da fúria de
Aquiles.
Um outro foco de análise da Ilíada prende-se com a figura dos deuses, as suas ações
e motivações. São eles que conduzem os humanos. Note-se, por exemplo, que, no
fundo, o responsável do conflito entre Agamémnon e Aquiles é Apolo e a praga enviada
sobre o acampamento aqueu, não obstante a importância da natureza humana. Para os
gregos antigos, quer as motivações internas quer os acontecimentos que estão fora do
controle humano são obra dos deuses. Por exemplo, Aquiles só não mata Agamémnon
porque Atenas o impede. De modo muito genérico, podemos dizer que os deuses
intervêm nos assuntos mortais de duas formas. Por um lado, agem como forças externas
no curso dos acontecimentos. Exemplo disto é o facto de ser Apolo a enviar a praga
sobre os Aqueus. Por outro lado, eles constituem forças internas que agem sobre os
indivíduos, como se pode comprovar pelo facto de ser Atenas, a deusa grega da
sabedoria, a impedir Aquiles de matar Agamémnon, um ato distante de qualquer
racionalidade, vencendo-o antes através das palavras. Além disso, as ações dos deuses
funcionam ainda como forma de alívio cómico. Por exemplo, a querela entre Zeus e
Hera configura um conflito bem mais leve do que a disputa entre Aquiles e
Agamémnon.
Isto não impede que o poeta apresente as divindades próximas da mundividência
humana. Zeus compromete-se a auxiliar os Troianos não por uma questão moral, mas
apenas para pagar um favor que deve a Tétis. De modo semelhante, a hesitação em
cumpri a promessa não tem a ver com a intenção de não interferir no curso dos
acontecimentos, mas com o seu receio de irritar Hera. Quando esta fica realmente
irritada, o esposo só a consegue silenciar quando ameaça estrangulá-la. Estes exemplos
de partidarismo, orgulho ferido e conflitos domésticos, bastante comuns entre os deuses
olímpicos, sugerem uma imagem das divindades como figuras mais «humanas» do que
se poderia esperar.
Em suma, o Canto I da Ilíada deixa, desde logo, bem visível a importância do
orgulho e da honra pessoal no contexto do sistema grego de valores da Antiguidade.
Exemplo disso são as atuações de Aquiles e Agamémnon, que colocam o seu «eu», o
seu orgulho, a sua glória individual acima do bem-estar do seu exército. O comandante
aqueu acredita que, enquanto chefe do exército, tem direito ao maior prémio disponível
– Briseida –, por isso não hesita em hostilizar o seu guerreiro mais destacado, para
garantir que possuirá o que acredita ser-lhe devido. Por seu turno, Aquiles opta por
defender o seu direito a Briseida, o despojo que lhe coube após a vitória e o saque da
cidade aliada de Troia, em vez de acalmar a situação. Orgulhosos, cada uma das
personagens considera que submeter-se à vontade do outro constituiria uma humilhação,
em vez de um gesto de honra ou dever. Isto significa que ambos colocam o seu interesse
à frente do seu povo e dos seus comandados, colocando, em última análise, em risco
todo o esforço de guerra.
Note-se, por último, que é possível observar características da tradição oral logo no
Canto I, como, por exemplo, o recurso a epítetos. Cada personagem ou objeto podem
ser referidos ou descritos de diferentes maneiras. É o caso de Aquiles, frequentemente
descrito como «de pés velozes», «divino», etc. Por vezes, a escolha do vocabulário é
condicionada pelo respeito pela métrica. Por outro lado, a repetição de epítetos ou
determinadas expressões ajudava os ouvintes a identificar de imediato personagens e
objetos.

CANTO II
 Resumo
Para cumprir a sua promessa a Tétis de ajudar os Troianos, Zeus envia um sonho
falso a Agamémnon, no qual lhe aparece a figura de Nestor, que o convence de que
poderá derrotar e conquistar Troia se atacar as muralhas da cidade. No dia seguinte, o
comandante do exército aqueu reúne-o para dar início ao ataque, mas antes, para testar a
coragem dos soldados e a sua vontade de lutar, mente-lhes, dizendo-lhes que desistiu da
guerra e que vai voltar para casa. Ato contínuo, os soldados correm para os navios, mas
Hera, ao ver isto, alerta Atenas, que inspira Ulisses, o mais eloquente dos gregos, a fazê-
los regressar. Acolitado por Nestor, o rei de Ítaca dirige ao exército palavras de
encorajamento e insultos, no sentido de despertar o seu orgulho e restaurar a sua
confiança e vontade de guerrear. Por outro lado, relembra-os dos sinais que indiciavam
a sua vitória na guerra, nomeadamente da profecia de Calcas, proferida aquando da
primeira reunião do exército aqueu na Grécia, segundo a qual uma cobra de água
deslizou até à costa e devorou um ninho de nove pardais. De acordo com o adivinho, a
profecia significava que passariam nove anos até que os Aqueus conquistassem Troia. E
aproveita para recordar aos soldados a sua jura de então de que não abandonariam a luta
até que a cidade fosse conquistada.
De seguida, Nestor encoraja Agamémnon a organizar os combatentes por cidade e
clã, para que pudessem lutar ao lado dos seus amigos, conhecidos e familiares. De
seguida, o poeta invoca as musas para auxiliarem a sua memória e enumera as cidades
que contribuíram com tropas para formar o exército grego, o número e homens com que
cada uma contribuiu e quem lidera cada contingente. No final da enumeração, o poeta
realça os mais bravos dos Aqueus, nomeadamente Aquiles e Ájax. Então, Agamémnon
dá início aos preparativos para a batalha e faz sacrifícios em honra de Zeus. Das tropas
que se preparam para o combate não fazem parte Aquiles e os Mirmidões, por causa da
sua jura de que não mais tomaria parte na guerra.
Zeus envia um mensageiro a Troia, avisando os Troianos sobre os preparativos do
exército aqueu. Aqueles reúnem as suas tropas sob o comando de Heitor, filho de
Príamo, o rei da cidade. Depois o poeta cataloga as forças troianas, à semelhança do que
tinha feito com os Gregos.
 Análise
Em ambos os seus poemas, Homero inicia a narração da ação «in medias res», ou
seja, quando ela já vai a meio. O mesmo fará, por exemplo, Camões, muitos séculos
depois, quando inicia a narração da viagem de Vasco da Gama à Índia quando ela já se
encontra ao largo de Moçambique. O trajeto entre Lisboa e o país africano é relatado
posteriormente sob a forma de analepse.
No caso da Ilíada, é referido no início deste canto que a guerra entre Aqueus e
Troianos já dura há mais de 9 anos. O motivo que esteve na sua origem é referido «en
passant», presumindo-se que os ouvintes já conhecem toda a história: Zeus designou
Páris, um príncipe troiano, para decidir qual das deusas – Hera, Atenas ou Afrodite – era
a mais bela. Essa disputa teve origem numa velha lenda, segundo a qual o chefe dos
deuses olímpicos e o seu irmão Poseidon desejavam desposas Tétis. No entanto,
Prometeu profetizou que o filho da deusa seria maior do que o seu pai, por isso as
divindades resolveram dá-la como esposa a Peleu, um homem já idoso, procurando,
assim, que a profecia não se concretizasse. Desse enlace nasceu Aquiles. Tétis, sua mãe,
mergulhou-o nas águas do rio Estige (o curso de água que atravessava o Inferno) ainda
bebé para o tornar invulnerável. Tal de facto sucedeu, exceto no calcanhar por onde a
mãe a segurou enquanto o mergulhava no rio (daí surgiu a expressão «o calcanhar de
Aquiles», que designa o ponto fraco de cada pessoa). Aquiles tornou-se um poderoso
guerreiro quando atingiu o estado adulto, porém era mortal, e foi alertado por sua mãe
de que tinha dois destinos possíveis: por um lado, combateria em Troia e alcançaria a
glória eterna, mas morreria jovem; por outro, permaneceria na sua terra natal e teria uma
vida longa, contudo seria logo esquecido assim que perecesse. A escolha feita pelo líder
dos Mirmidões é conhecida. Mas a lenda não se esgota aqui. Para o casamento de Tétis
e Peleu, foram convidados todos os deuses exceto Éris, a deusa da Discórdia (a
discórdia, naturalmente, não era bem-vinda a um matrimónio). Ofendida, marcou
presença no enlace invisível e depositou na mesa um pomo de ouro com a inscrição
«Para a mais bela». Hera, Atenas e Afrodite discutiram entre si qual seria a destinatária
do fruto. Zeus, que não desejava atrair para si o odioso da decisão e a fúria das
perdedoras, designou Príamo para resolver a contenda, no entanto, como já era idoso, o
rei apontou o seu filho Páris, na altura um pastor de rebanhos, para proceder à escolha.
Cada uma das três deusas procurou suborná-lo: Hera ofereceu-lhe o poder político e a
oportunidade de ser o rei mais forte de todos os tempos; Atenas, habilidade na guerra e
a possibilidade de ser o homem mais sábio de sempre; Afrodite, a mulher mais bela do
mundo. Páris escolheu a oferta desta última e entregou-lhe o pomo, atraindo em
simultâneo a fúria das outras duas deusas. Esse ser feminino era Helena, filha de Zeus e
de Leda, esposa de Tíndaro (e irmã gémea da rainha Clitemnestra, de Castor e Pólux),
rei de Esparta. A jovem possuía diversos pretendentes, e o seu pai adotivo hesitava em
tomar uma decisão acerca do marido da sua filha, temendo ofender os demais. Ulisses,
rei de Ítaca, resolveu a questão, levando a que todos os pretendentes jurassem proteger
Helena e a sua escolha, qualquer que ela fosse. Em última análise, a jovem escolheu
Menelau. Tempos depois, uma embaixada troiana deslocou-se a Esparta, cidade de que
o dito Menelau era rei. Dessa embaixada diplomática fazia parte Páris, que, assim que
viu Helena, se apaixonou por ela, graças à ação de Afrodite. Os dois acabaram por fugir
para Troia, o que deixou enfurecido o marido da bela mulher, o qual relembrou aos
antigos pretendentes o juramento feito. Agamémnon, irmão de Menelau, reuniu então
um enorme exército de mil barcos e atravessou o mar Egeu, em direção à cidade de
Troia, iniciando um cerco que durou dez anos.
Se, no Canto I, o poeta destacou as figuras de Agamémnon, o seu orgulho e
teimosia, e de Aquiles, homem corajoso, mas também orgulhoso e temperamental, e o
seu conflito, no II são salientados Ulisses e Nestor, que são trazidos a primeiro plano a
propósito da debandada dos soldados em direção aos seus navios, para regressarem a
casa. Os discursos que ambos proferem a propósito desse evento destacam o seu papel
de conselheiros sábios e previdentes, astutos e com clareza de espírito, características
fundamentais para fazer retornar o exército ao cumprimento do propósito que o tinha
trazido ali. Por outro lado, os seus discursos não deixam dúvidas de que são os mais
talentosos dos Aqueus em matéria de oratória e retórica.
Além de estar na origem dos dois discursos de Ulisses e Nestor, a fuga dos soldados
gregos cumpre três propósitos no poema. Por um lado, evidencia o dramatismo da
situação vivida pelos Aqueus: o seu líder, afinal, não tem consciência da baixa moral
que se instalou entre as suas tropas, daí a incredulidade quando assiste à debandada e
desistência da guerra. A celeridade e a ansiedade com que os soldados fogem
exemplificam a dor e o sofrimento que vivem, mas demonstram igualmente como o
prosseguimento futuro da batalha será mais difícil ainda, em razão da saudade e da falta
de motivação para o combate que revelam. Por outro lado, ao dar conta, de forma tão
enfática, do sofrimento dos Gregos, o poeta enfatiza, com antecedência, a glória que
constituirá a vitória final dos Aqueus, já que estes estiveram muito próximos de
abandonar o campo de batalha e regressar a casa cobertos de vergonha e caídos em
desgraça. O facto de os homens mostrarem que são capazes de superar o seu sofrimento,
o seu desespero e o desejo de retornar para casa, para junto dos seus, em direção à
vitória na guerra indicia claramente a imensidão do triunfo grego. Em terceiro lugar, a
fuga leva à enumeração das forças aqueias. Seguindo o conselho de Nestor, elas
organizam-se por cidade e clã, o que garante a motivação dos soldados: ao lutarem lado
ao lado com os seus amigos e familiares, o seu investimento emocional no combate
estaria garantido e a distinção entre corajosos e cobardes seria mais fácil de fazer. Até a
tarefa de construir o catálogo parece constituir um exercício grandioso, justificando a
nova invocação das musas por parte do poeta. Embora a listagem possa constituir uma
tarefa enfadonha para o leitor atual, ela seria, na época, motivo de orgulho, emoção e
inspiração. A conquista de Troia foi um feito épico, glorioso, para o qual contribuíram
muitos homens e muitas cidades, incluindo as menores. Cada grego que escutava a
história e ouvia citar a sua cidade e os seus líderes e heróis antigos lendários como
participantes desse triunfo histórico sentiria um orgulho desmedido, ao ver evocada a
sua herança honrosa.
Estilisticamente, neste canto voltam a destacar-se traços da oralidade, como as
repetições. Por exemplo, no seu início, Zeus envia a Agamémnon uma mensagem
através de um sonho, que é repetido ao rei grego quase integralmente e que este
reproduz ao seu exército com as mesmas palavras. As descrições do ritual de sacrifício
que encontramos noutras poemas são uma repetição parcial ou integral da que
encontramos neste canto. Estas repetições são muito importantes, na medida em que
destacam e reforçam ideias importantes junto dos ouvintes da obra que, por esta ser
transmitida oralmente e não por escrito, não poderiam coltar atrás e reler um passo que
não compreendessem à primeira leitura). Além disso, estas repetições davam tempo ao
poeta/ao contador para pensar no trecho seguinte. Outro recurso que avulta neste canto é
a comparação. O exército aqueu é comparado enxames de abelhas e a moscas, a um
incêndio e a bandos de pássaros. Estas comparações evocam a vida para além da guerra,
mas também contêm sugestões de agressividade, violência ou destruição trazidas pela
guerra. O efeito geral das múltiplas comparações do Canto II sugere que a guerra e o
conflito são parte integrantes da existência humana.

CANTO III
 Resumo
O exército troiano marcha em direção ao homónimo aqueu. Páris, o príncipe de
Troia, avança corajosamente à frente das suas forças e desafia os Aqueus para um
combate individual com qualquer um deles, mas, quando é confrontado por Menelau, o
marido de Helena, acobarda-se e recua, escondendo-se nas fileiras do seu exército.
Heitor, seu irmão e comandante das forças que defendem Troia, humilha-o, afirmando
que é mais belo do que corajoso. Com o orgulho ferido por causa da ofensa do irmão,
Páris concorda em duelar com Menelau, declarando que o desenlace do duelo
corresponderá ao fim da guerra e à restauração da paz, pois decidirá de vez qual dos
dois terá Helena como esposa.
Enquanto os dois inimigos se preparam para o combate, a deusa Íris, disfarçada de
Laódice, irmã de Heitor, visita Helena no palácio real e convida-a a assistir ao duelo
entre Páris e Menelau. Ela junta-se então a Príamo e a outros anciãos da cidade,
identifica e descreve os guerreiros aqueus mais fortes, nomeadamente Ulisses,
Agamémnon e Ájax. O rei troiano fica impressionado com a força e o esplendor dos
Aqueus, mas acaba por abandonar o local, pois não suporta ficar e assistir à morte do
seu filho Páris.
O combate tem início e nenhum dos dois consegue ferir o outro ao arremessar as
suas lanças. Menelau acaba por quebrar a espada no elmo de Páris e, de seguida, agarra-
o pelo capacete e começa a arrastá-lo pelo solo, procurando estrangulá-lo com a tira do
capacete. Contudo, Afrodite, uma deusa aliada dos Troianos, intervém e rompe a tira
para que se solte das mãos de Menelau, que, frustrado, pega de novo na sua lança e
prepara-se para a espetar no inimigo, porém a deusa volta a interferir, levando o troiano
para o seu quarto no palácio de Príamo. Além disso, ela convoca Helena, que censura
Páris pela sua cobardia e, a seguir, se deita com ele.
De volta ao campo de batalha, os Troianos e os Aqueus procuram Páris, que
desapareceu magicamente da sua frente. Perante isto, Agamémnon declara Menelau o
vencedor do duelo e exige o retorno de Helena.
 Análise
Nos dois primeiros cantos, o poeta apresenta os comandantes das forças aqueias;
neste, introduz as principais figuras do campo troiano, nomeadamente Príamo, Heitor,
Páris e Helena. A ex-rainha de Esparta é descrita como simpática: ela lamenta
profundamente o custo do episódio por si protagonizado e chega a desejar ter morrido
antes de fugir com Páris, o que mostra a sua vergonha e a consciência da sua
responsabilidade na morte de tantas pessoas. O seu remorso e arrependimento, a
consciência de que agiu mal e é a causa de tanto sofrimento são bem evidentes quando
observa as fileiras do exército aqueu. A cena torna-se pungente quando questiona se os
seus irmãos (Castor e Pólux), que não consegue vislumbrar no seio dos Aqueus, se terão
recusado a integrar a expedição grega e a lutar por uma irmã tão odiosa, desconhecendo
que, na realidade, estão mortos, pelo que a sua ausência não se deve à raiva ou à
vergonha pela irmã, mas antes por fazerem parte da vasta lista de vítimas do conflito
que ela originou. Quando Afrodite a junta no quarto a Páris, Helena resiste e parece não
nutrir grande afeição por ele, chegando inclusive a criticá-lo pela sua cobardia. No
entanto, enquanto deusa, Afrodite tem o poder de forçar a ex-esposa de Menelau a amar
Páris, o que gera, junto do ouvinte/leitor, uma situação contraditória que exemplifica a
complexidade humana: Helena ama e despreza Páris em simultâneo.
Ao contrário dela, Páris não parece sentir grande pudor ou sentido de
responsabilidade pelo seu papel no espoletar da guerra, no que contrasta com Heitor. Ao
avistar Menelau, Páris foge, o que lhe vale a crítica do irmão, muito mais consciente do
ideal de honra, crítica essa motivada pela desgraça e sofrimento que trouxe, tanto a si
mesmo como a todo o exército troiano. E chega mesmo a desejar que Páris tivesse
morrido antes de consumar o rapto da bela Helena e, com isso, desgraçar o seu povo. É
esta crítica de Heitor que faz com que Páris aceite duelar com Menelau, embora
contrariado; porém, a luta rapidamente se torna embaraçosa para o lado troiano, e ele
tem de ser salvo da morte por Afrodite, a deusa grega do amor (também designada, no
Canto V, como «deusa cobarde»), e não por um deus ligado à guerra. O príncipe troiano
culpa até os deuses pelo desfecho da contenda (algo que o poeta jamais sugere e que é
desmentido, por outro lado, pelo esforço desenvolvido por Menelau durante o duelo,
clarificador da ausência de ajuda a seu favor), mas não mostra qualquer incómodo ou
contrariedade quando a deusa o leva para o seu quarto. E é este passo da Ilíada que mais
contribui para o esboço de um retrato profundamente disfórico de Páris: enquanto está
recolhido nos seus aposentos, fazendo amor com Helena, o exército troiano é forçado a
continuar a lutar em nome da mulher que ele roubou aos aqueus. Esta conduta revela
toda a cobardia de Páris e colide com o código de honra do herói, o que desagrada ao
seu próprio exército, que o odeia «como a morte».
Por seu turno, Príamo emerge como a personagem mais humana. Dada a sua idade
avançada, já não pode participar na guerra como combatente, pelo que a sua intervenção
não é movida por qualquer desejo de honra ou glória. Os anciãos de Troia querem
devolver Helena aos Gregos, porém o velho monarca opõe-se-lhe. Ele não a culpa pelo
sucedido e trata-a com humanidade e compaixão, não obstante toda a desgraça que fez
recair sobre a cidade.

CANTO IV
 Resumo
No Olimpo, os deuses discutem sobre a guerra. Zeus argumenta que Menelau
venceu o duelo com Páris, pelo que o conflito bélico deveria terminar, como acordado
entre Gregos e Troianos, e Helena ser devolvida aos primeiros. A esta ideia opõe-se
Hera, que não se satisfaz com a vitória grega, antes deseja a destruição completa de
Troia. No final da discussão, Zeus cede e envia Atenas ao campo de batalha para levar
os Troianos a quebrar a trégua.
Assim, disfarçada de soldado troiano, a deusa convence o arqueiro Pândaro a
disparar sobre Menelau. Ele dispara, mas Atenas, que não deseja que o ex-esposo de
Helena seja morto, unicamente quer que os Aqueus tenham um pretexto para regressar
ao combate, desvia a flecha, que apenas fere levemente Menelau.
Deste modo, o objetivo do Olimpo é alcançado: a trégua foi quebrada. Agamémnon
reúne o seu exército e estimula e desafia o orgulho dos principais guerreiros, narrando
os grandes feitos dos seus pais. A batalha recomeça e a carnificina também, destacando-
se as ações de Ulisses e Ájax, que liquidam várias figuras menores do lado troiano.
Como sempre, os deuses não ficam à margem e intervêm no desenrolar dos
acontecimentos, com destaque para Atenas, que ajuda os Gregos, e Apolo, que está ao
lado dos Troianos. E assim os humanos atuam como meros joguetes manipulados pelos
deuses.
 Análise
Ao contrário das religiões contemporâneas, os deuses gregos incorporam em si as
mesmas paixões e falhas dos seres humanos e interagem com estes frequentemente. A
diferença entre uns e outros é que as entidades divinas são eternas, enquanto a
humanidade é mortal. A imortalidade divina transforma os seus conflitos em algo trivial
e até algo caricato, em contraste com o sofrimento, a dor e a morte que marcam a
existência terrena. Como não existem consequências para si, os deuses encontram até
prazer nos conflitos em que se envolvem, o que pode ajudar a explicar o facto de Hera e
Atenas não aceitarem a trégua entre Troianos e Aqueus, que poderia significar o fim
daquela guerra interminável e a instauração da paz, e tudo fazerem para a batalha
prosseguir, para vingarem o seu orgulho ferido com a questão do pomo de ouro.
Deste modo, a guerra é retomada, havendo referências à morte de personagens
menores e a confrontos individuais entre figuras bem mais notáveis. As descrições dos
ferimentos que os lutadores vão sofrendo são terríveis, baseadas numa fórmula
característica. Esses ferimentos são provocados por espadas, lanças, flechas e pedras,
que cortam, dilaceram, esmagam diferentes partes do corpo, com a exposição ocasional
de um ou outro órgão interno. Tudo isto é apresentado pelo poeta com diferentes
detalhes específicos, no sentido de criar uma panóplia diversificada de mortes no campo
de batalha.
Retirar a armadura ao inimigo derrotado ou apossar-se do seu cavalo constituem
prémios valiosos cuja reivindicação aumenta a honra do vencedor e desonra o
derrotado. Só que a ânsia de obter estas recompensas por vezes têm consequências fatais
para quem as deseja alcançar, dado que o coloca numa situação de alguma
vulnerabilidade. É exemplificativa disto a referência à primeira morte na obra: um
soldado, após a morte do inimigo, procura imediatamente retirar a armadura do corpo
do morto, «distrai-se» e acaba por ser assassinado.
Por outro lado, nem o partido Aqueu nem o Troiano são apresentados no poema
como melhores do que o outro. Tal é demonstrado pela imagem de dois soldados, um
grego e outro troiano, jazendo mortos um ao lado do outro, enquanto companheiros seus
prosseguem a luta e vão tombando à sua volta. Este facto não pode ser dissociado de
outra questão, a da inexistência de vilões propriamente ditos no poema. De facto, se é
verdade que o poeta narra os eventos na ótica grega, de modo algum vilaniza os
Troianos, até porque, noutros momentos, os contendores foram aliados e combateram
pelo mesmo objetivo. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a aliança que dois povos
estabeleceram para combater as Amazonas. A violência, o sofrimento, a dor e a morte
recaem sobre ambos os exércitos de forma semelhante; o alívio sentido no momento em
que se acorda que o duelo entre Menelau e Páris porá fim ao conflito é o mesmo para
uns e outros; os combatentes das duas fações desejam que o culpado pela eventual
quebra da trégua seja massacrado e as suas mulheres estupradas; quando o cessar-fogo é
efetivamente rompido, fica claro que nenhum dos partidos é o culpado, dado que o tiro
de Pândaro sobre Menelau só é dado porque Atenas a tal conduz. Assim sendo, é
perfeitamente lícita a conclusão de que os únicos que, verdadeiramente, retiram prazer
da guerra e a quem prolongar são os deuses, que manipulam os seres humanos para
atingir os seus propósitos.

CANTO V
 Resumo
Diomedes, um soldado aqueu, é ferido por Pândaro, o que o leva a orar a Atenas,
que lhe confere uma força sobre-humana e o poder de discernir os deuses no campo de
batalha, mas alerta-o para não atacar nenhum, à exceção de Afrodite.
Dotado dos seus novos poderes, Diomedes massacra todos os inimigos que lhe
surgem pela frente. Eneias e Pândaro perseguem-no, mas Atenas guia-lhe a lança, que
proporciona uma morte horrível ao arqueiro, enquanto o herói da Eneida é ferido e só
não encontra a morte graças à intervenção de Afrodite, sua mãe. Diomedes fere também
a deusa, cortando-lhe o pulso e mandando-a de volta ao Olimpo, onde Dione, a sua mãe,
a cura, e Zeus a adverte para não voltar a interferir na guerra. Quanto a Eneias, é tratado
por Apolo, que o cura e devolve, posteriormente, à batalha, mas nesse percurso acaba
por ser atacado por Diomedes, gesto que configura uma transgressão ao acordo que
tinha feito com Atenas de não agredir qualquer outra divindade além de Afrodite. Apolo
avisa severamente o guerreiro grego e afasta-o do seu caminho, enquanto retira Eneias
do campo de batalha e deixa uma réplica do troiano no solo, para servir de motivação
aos companheiros. Por último, o deus do Sol incentiva Ares a lutar por Troia,
informando-o de que um aqueu (Diomedes) acabou de ferir a sua irmã (Afrodite).
Graças à ajuda divina, os Troianos parecem ganhar vantagem na contenda,
sobretudo graças à ação conjunta de Heitor e Ares, demasiado fortes para os inimigos.
Os heróis de ambos os lados vão vingando a morte dos seus homens. Alarmadas com o
recuo dos Gregos, Hera e Atenas obtêm de Zeus a permissão para intervir no conflito
em auxílio dos Aqueus. Assim, Hera confronta os Gregos com o facto de Aquiles nunca
ter permitido que os inimigos saíssem para além dos seus portões, enquanto Atenas
permite que Diomedes ataque outros deuses e o incentiva a acometer Ares, que é
atingido pela carruagem e voa de regresso ao Olimpo, onde reclama de Zeus, que lhe
responde que mereceu o seu ferimento. Atingido o seu propósito, Hera e Atenas
retiram-se também do campo de batalha.
 Análise
O Canto V constitui, essencialmente, a aresteia de Diomedes, a mais longa e
sangrenta (à exceção da de Aquiles, nos Cantos XX a XXII), que, no fundo, procura
compensar a ausência de Aquiles, não obstante não conseguir, em última análise,
fornecer a força que o líder dos Mirmidões costumava proporcionar ao exército aqueu e
ao combate, como o demonstra a observação de Hera, segundo a qual, enquanto o filho
de Tétis combateu, nenhum cavalo de Troia se aventurou para além dos portões da
cidade.
Tal como sucede na aristeia, Diomedes é inspirado e auxiliado por uma divindade
(neste caso, Atenas), as suas armas salientadas e a sua vitória certa, apesar de se
encontrar ferido. Estilisticamente, o poeta recorre a determinados símiles para descrever
as cenas da batalha; por exemplo, compara a ação de Diomedes a água furiosa e os seus
ataques a um leão «louco por garras».
No que diz respeito aos deuses, mais uma vez parecem dar pouca ou nenhuma
importância às consequências das suas ações para os humanos, exceto se se tratar de um
seu protegido naquela ocasião. O que lhes interessa essencialmente, de forma
mesquinha, são os conflitos entre si. Por outro lado, quando comparados com os
homens, os deuses parecem mais frágeis no que toca a lidar com a dor e o sofrimento. A
título exemplificativo, citem-se os casos de Afrodite e Ares, que, quando são feridos,
recolhem logo ao Olimpo e se queixam, quais crianças, ao «pai» Zeus, enquanto
Diomedes continua a combater depois de ser ferido.
As descrições das batalhas são longas e frequentemente centram-se nos massacres
em massa que as caracterizam, mas alternam com apontamentos individuais. O poeta,
em diversos momentos, apresenta-nos a personagem que acabou de morrer ou está em
vias disso, dando-nos a conhecer os seus antecedentes, as suas origens e educação,
enfatizando frequentemente a perda que o seu passamento constitui para o seu exército e
a sua pátria. Além disso, Homero alterna descrições de mortes de combatentes troianos
e aqueus, estratégia que impede que a narração se torne monótona e dê conta do fluxo e
refluxo da batalha.
Por outro lado, as provocações são um elemento bastante importantes no contexto
das batalhas. Os soldados desafiam a coragem e a honra dos seus companheiros para se
incentivarem e motivarem para o combate. Por exemplo, Sarpédon diz a Heitor que os
seus comandados estão a lutar bem melhor para defender Troia do que os troianos do
filho de Príamo. Durante os combates, os homens provocam também os seus inimigos
com o intuito de os desanimar, e até os próprios deuses usam esse estratagema, como,
por exemplo, quando Hera humilha os Aqueus, dizendo-lhes que Aquiles nunca
permitiu que os Troianos passassem além dos portões da cidade.

CANTO VI
 Resumo
Com os deuses afastados da batalha, os Gregos fazem os Troianos recuar em direção
a Troia, e Menelau faz refém um cocheiro troiano, chamado Adestro, que lhe roga que o
liberte. O ex-esposo de Helena está inclinado a atender ao pedido em troca de um
resgate, mas Agamémnon convence-o a matar o prisioneiro, o que os irmãos fazem em
conjunto.
Heleno, um adivinho, exorta Heitor a regressar a Troia e a pedir a sua mãe, Hécuba,
e às demais mulheres nobres que orem no templo de Atenas e façam oferendas à deusa.
De seguida, vai ao encontro de Páris, que se retirou da batalha, alegando que estava
demasiado triste para lutar. Heitor e Helena não escondem o seu desprezo pelo irmão e
companheiro, o que faz com que Páris regresse ao combate. Depois Heitor visita a sua
esposa, Andrómaca, que está ocupada com o filho de ambos, Astianax, e observa,
ansiosa, o combate que decorre em baixo, na planície. Ela implora ao marido que se
retire da luta, mas ele recusa a ideia, pois a sua honra não o permite e, se o fizesse,
morreria de vergonha, além de que não pode fugir ao seu destino, seja ele qual for.
Então beija o filho, que se assusta inicialmente com a crista do capacete, mas acaba por
corresponder ao afeto do pai numa cena familiar comovente. Quando Heitor regressa à
batalha, Andrómaca sofre, convencida de que o esposo morrerá em breve. No caminho,
encontra o irmão e os dois voltam à refrega.
Neste canto, há um outro momento digno de destaque. Diomedes e Glauco, um
troiano, enfrentam-se no campo de batalha. O grego questiona-se quem será o inimigo,
pois não se tinha apercebido da sua presença. Glauco informa-o, então, sobre a sua
linhagem, e acabam por descobrir que os seus antepassados trocaram presentes de
amizade entre si. Os dois declaram também amizade um pelo outro e trocam as
armaduras.
 Análise
Este canto é marcado por duas cenas ilustrativas da brutalidade e da humanidade
características da guerra. A brutalidade é exemplificada pela cena do prisioneiro troiano:
Menelau está inclinado a mostrar misericórdia por ele, porém Agamémnon diz-lhe que
nenhum inimigo deverá ser poupado, nem mesmo uma criança ainda na barriga da mãe.
Já o encontro de Diomedes e Glauco exemplificam o outro lado da guerra, onde impera
a amizade, considerada então sagrada, nomeadamente para com os hóspedes, e que
passava de geração em geração. Em sentido contrário, a ação de Páris ao fugir com
Helena desrespeita o princípio que deve caracterizar a relação entre um hóspede e o seu
anfitrião. A cena de Diomedes e Glauco representa a vitória da amizade sobre a honra e
a glória conquistadas na guerra, o que constitui um sinal de esperança para a
humanidade.
Esta cena contém também um simbolismo profundo no contexto da Ilíada. De facto,
Glauco compara a vida dos seres humanos a gerações de folhas que morrem e renascem
na primavera. Esta comparação simboliza o ciclo da vida: Glauco e Diomedes são as
folhas velhas que morrerão, que serão levadas pelo vento e esquecidas.
A ação de Heitor remete para a importância de viver uma vida nobre e honrada e
caracterizada pela conquista da glória individual, não obstante o preço que seja
necessário pagar. Andrómaca receia que o marido morra na batalha e pede-lhe que não
volte. Apesar de ele estar consciente das terríveis consequências que a sua eventual
derrota acarretará para a sua família, a sua pátria e especialmente a esposa, e de que a
vida humana é muito frágil, pois é controlada pelos deuses, e não se pode prever como
ou quando desembocará na morte, o seu sentido de honra e o desejo de glória não lhe
permitirão seguir outro caminho. Uma vida sem honra não é digna de ser vivida.
Este episódio tem outra função: humanizar a figura de Heitor. Tal é conseguido em
vários momentos: as palavras que dirige a Andrómaca; a interação carinhosa com o
filho; a cena em que a mãe amamenta o filho, que evidencia o modo como a guerra
separa as famílias e priva os inocentes dos seus pais; o episódio em que Heitor assusta o
filho com a crista do capacete ao retirá-lo, que mostra como o grande guerreiro troiano,
que acaba de afirmar a sua aspiração à glória imortal e a sua vontade férrea de lutar
contra o inimigo, também possui um lado carinhoso e ternurento. Além disso, a cena
alivia a tensão dramática, pois afasta o olhar do leitor do horror da guerra, mas, em
simultâneo, enfatiza a tragicidade da mesma: a inocência de uma criança de tenra idade
versus o horror do combate.
Os últimos cantos têm em comum o confronto entre deuses e humanos. Se estes se
envolvem na sua guerra terrível, os primeiros perdem-se nos seus próprios conflitos,
muitas vezes, arcados pela futilidade e mesquinhez. Curioso, porém, é o facto de as
disputas entre as divindades olímpicas acarretarem mais violência entre os homens. Por
outro lado, as lealdades e as motivações, dos deuses mostram-se mais superficiais do
que as dos humanos. Por exemplo, não cumprem os pactos que estabelecem com grande
facilidade, como acontece com Ares, o deus da guerra, que se tinha comprometido a
auxiliar os Gregos, mas acaba por se passar para o lado troiano. Quando a guerra não
lhes corre de feição, reclamam do árbitro, ou seja, de Zeus. Em suma, a imagem que
ressalta dos conflitos no Olimpo é a de uma família disfuncional.

CANTO VII
 Resumo
O retorno de Heitor e Páris ao combate revigora as tropas troianas, mas Apolo e
Atenas decidem finalizar a refrega naquele dia. Para tal, determinam a realização de um
duelo. Assim, a deusa envia uma mensagem telepática a Heleno: Heitor deverá desafiar
o guerreiro grego mais forte para lutar. É isso que o herói troiano faz: aproxima-se da
linha inimiga e desafia-a a indicar alguém para combater consigo. Menelau é o único
que tem coragem e dá um passo em frente, mas Agamémnon, consciente de que o irmão
não é páreo para Heitor, dissuade-o do intento. Nestor, que é demasiado velho para
responder ao desafio, exorta os seus companheiros a responder a Heitor. Nove
guerreiros aqueus respondem ao chamamento e, dentre eles, Ájax é selecionado por
sorteio.
Heitor intimida-se com a envergadura do gigante, mas não cede. Ataca-o
ousadamente, mas cada golpe é bloqueado pelo enorme escudo do adversário. Ájax fere
ligeiramente o troiano e derruba-o com uma pedra. Como a noite está a chegar, arautos
estimulados por Zeus cancelam a luta. Os dois heróis concordam em encerrar o duelo e
trocam presentes em sinal de amizade.
Nenhum dos lados está ansioso por regressar ao combate no dia seguinte. No
acampamento grego, Nestor insta os seus companheiros a solicitar uma trégua de vinte e
quatro horas para enterrar os mortos. Por outro lado, aconselha-os a construir
fortificações à volta do acampamento para proteção. No lado adversário, Príamo faz
uma proposta semelhante no que diz respeito à questão dos tombados em combate.
Além disso, Antenor, o seu conselheiro, pede a Páris que devolva Helena e, desta forma,
ponha fim à guerra, mas o príncipe troiano recusa, propondo como alternativa devolver
todo o tesouro que trouxe consigo de Esparta. Quando os Gregos são confrontados com
esta proposta no dia seguinte, compreendem o desespero dos Troianos e sentem a sua
fraqueza, recusam o acordo, mas concordam em observar um dia de cessar-fogo para
sepultar os respetivos mortos. Os Aqueus aproveitam também a pausa para construir
uma trincheira em torno dos seus navios, tarefa que é observada por Zeus e Poseidon,
que planeia destruir assim que os homens partirem.
 Análise
Homero, durante a narração, estabelece vários paralelismos. No caso deste canto, os
desejos e as ações dos Gregos e dos Troianos são apresentados de forma paralela. Por
exemplo, Heitor ataca Ájax com uma determinada arma e este contra-ataca usando o
mesmo utensílio de guerra, geralmente causando mais dano no adversário; durante a
trégua, o poeta descreve a dor dos Troianos enquanto queimam os seus mortos para, de
seguida, fazer o mesmo com a dos Aqueus. A existência de uma causa comum, de uma
dor comum, etc., e o seu reconhecimento vinculam os inimigos aos mesmos princípios
de honra.
Um desses princípios comuns prende-se com o respeito pelo outro e a dignidade
individual. Exemplo disso é o duelo entre Heitor e Ájax, que termina com a troca de
armas e com um pacto de amizade. O equilíbrio entre valores opostos, como a amizade
e a inimizade, são uma das evidências de um indivíduo digno.
Outro desses princípios tem a ver com a importância dada ao sepultamento dos
mortos. Tal como o fantasma de Pátroclo afirma no Canto XXIII, o espírito de uma
pessoa não entraria no mundo dos mortos até que fosse devidamente sepultado. Deixar
uma alma por enterrar ou, pior, deixá-la como carniça para os animais selvagens, era um
desrespeito para com o morto e pelas tradições religiosas da época. É tudo isto que
preside ao estabelecimento da trégua na guerra. Note-se que, no caso da Ilíada, os
corpos eram queimados numa pira, embora também houvesse casos na época de
enterramento. Os ossos sobrantes na pira eram guardados numa jarra ou caixa
decorativa, ou, em alternativa, enterrados junto ao local onde o corpo fora incinerado.
Por último, uma chamada de atenção para a atuação dos deuses, que volta a revelar a
sua mesquinhez e superficialidade. A preocupação, no final do canto, de Poseidon ao
ver os Gregos erigir as suas muralhas tem a ver unicamente com o facto de tal obra
poder ofuscar a muralha que ele construiu em redor de Troia. Por outro lado, a cena
chama a atenção para o respeito que é devido sempre aos deuses, pois eles podem
destruir as obras humanas com grande facilidade e por mero capricho.

CANTO VIII
 Resumo
No Olimpo, Zeus proíbe os outros deuses de interferir na guerra e, de seguida, viaja
para o Monte Ida, perto de Troia. Aí, pesa o destino dos dois lados em confronto e os
Gregos saem a perder. Então faz recair uma chuva de relâmpagos sobre o exército
aqueu e vira a maré da batalha a favor dos Troianos, o que causa o recuo dos inimigos.
Heitor e os seus comandados avançam, procurando derrubar a nova muralha dos
Aqueus e queimar os seus navios. Entrementes, o marido de Andrómaca dirige.se a
Nestor, que se encontra no meio do campo de batalha e é salvo por Diomedes, que o
puxa para a sua carruagem bem a tempo, sendo perseguidos por Heitor. Hera,
adivinhando a derrota iminente dos Gregos, inspira Agamémnon a despertar as suas
tropas. O comandante aqueu reúne os seus soldados, desperta o seu orgulho, apela à sua
coragem e bravura e ora a Zeus para permitir que os seus homens sobrevivam. O deus
acolhe a oração e envia um sinal: uma águia transportando um cervo nas suas garras.
Este sinal inspira os Gregos a lutar e eles eliminam alguns inimigos, nomeadamente o
arqueiro Teucro, um dos melhores entre os aqueus, até ser ferido por Heitor e a maré da
batalha mudar de novo. O comandante troiano rechaça os Gregos para trás das suas
fortificações, até aos seus navios. Desesperadas, Hera e Atenas, contrariando as ordens
de Zeus, preparam-se para interferir na luta, mas aquele envia-lhes a deusa Íris para os
advertir acerca das consequências que tal interferência acarretará. Tendo consciência de
que jamais poderão competir com Zeus, as duas deusas recuam e são informadas de que,
na manhã seguinte, terão a última oportunidade de salvar o exército aqueu. E acrescenta
que apenas o regresso de Aquiles poderá impedir a sua derrota.
Nessa noite, os Troianos estão tão confiantes na sua superioridade e na vitória
iminente que acampam na planície, portanto fora das muralhas que protegem Troia, e
Heitor ordena aos seus homens que acendam múltiplas fogueiras para que os Gregos
não possam fugir sem serem vistos. A noite salva as tropas de Agamémnon da derrota,
mas Heitor tem em mente dar-lhes o golpe de misericórdia no dia seguinte.

CANTO IX
 Resumo
Os Aqueus estão desesperados. Agamémnon chora e declara que a guerra foi um
fracasso, por isso propõe regressar à Grécia em desgraça, contudo Diomedes argumenta
contra tal cobardia e afirma que ficará e lutará, mesmo que todos os outros partam.
Nestor intervém de seguida, comungando das palavras do companheiro, e sugere a
reconciliação com Aquiles, de modo que ele possa regressar ao combate. Reconhecendo
a validade do discurso de Nestor, Agamémnon decide oferecer ao chefe dos Mirmidões
um conjunto de presentes bastante valioso: Briseida, um futuro saque, uma das suas
filhas e sete cidades. Isto obviamente se regressar à guerra e reconhecer a sua
autoridade. Três homens entregam a proposta: Ájax, Ulisses e Fénix, o velho que criou
Aquiles.
A embaixada grega encontra-o a tocar lira na sua tenda com o seu amigo Pátroclo.
Ulisses verbaliza a proposta de Agamémnon, mas Aquiles recusa-a, por causa do seu
orgulho ferido e declara que pretende retornar à sua terra natal, onde poderá viver uma
vida longa e prosaica, em vez da gloriosa, mas curta, se decidir ficar. Dirigindo-se a
Fénix, propõe-lhe que o acompanhe, mas este pede-lhe, de forma emocionada, que
fique. E recorda a história de Meléagro, outro príncipe guerreiro que, durante um
episódio de raiva, se recusou a lutar, para mostrar como era importante responder aos
apelos de amigos indefesos. Ájax incentiva Aquiles a conquistar o amor dos seus
camaradas e coloca a sua ausência em perspetiva, mas ele mantém-se irredutível,
sentindo ainda na carne o insulto de Agamémnon.
Quando Ulisses e Ájax regressam e transmitem a resposta de Aquiles, os Gregos
ficam perplexos e afundam-se de novo no desespero.
 Análise
Esta segunda interação entre Agamémnon e Aquiles, concretizada neste caso através
de intermediários, é marcada por questões de orgulho e honra mais uma vez. A
iminência da derrota força o chefe dos Aqueus a pôr de lado o seu orgulho, mas apenas
na medida do necessário, argumentando que estava louco e cego quando confrontou
Aquiles (Canto I), responsabilizando o seu estado mental instável pelo sucedido e não
assumindo, assim, a responsabilidade total e consciente pelo episódio. Neste passo da
obra, Agamémnon mostra-se sensato ao aceitar a sugestão de Nestor de se reconciliar
com Aquiles, no entanto o seu recuo estratégico não é propriamente uma admissão de
culpa nem resulta na sua humilhação. Por exemplo, há a considerar que ele nunca faz
um pedido de desculpas, antes procura comprar a lealdade de Aquiles, em vez de
procurar um entendimento sério e honesto. Além disso, a aceitação da proposta da parte
do filho de Tétis significaria que este se submeteria à autoridade de Agamémnon. Ora,
Aquiles é igualmente um homem orgulhoso e percebe que, não obstante Ulisses ter
omitido sabiamente a exigência do líder aqueu de que o chefe dos Mirmidões se
curvasse perante si, a falta de um pedido de desculpas. Ele não quer tesouros, mas antes
a reparação do ultraje de que fora vítima, a reparação da honra e da glória pelas quais
tanto trabalhou. A única honra de que necessita é o destino que Zeus lhe reservou: a de
uma morte gloriosa. Por outro lado, como julga não ter uma vida muito longa, os
tesouros de pouco lhe serviriam.
Note-se que a oferta de presentes muito valiosos é um gesto muito importante e
significativo, pois os gregos da época observavam a posse de bens materiais, ganhos na
guerra ou concedidos por reis, como sinónimo de honra pessoal. No entanto, no caso
vertente da Ilíada, a oferta generosa de Agamémnon está associada à afirmação do seu
status superior: “Deixa-o curvar-se diante de mim! Eu sou o rei maior” (IX.192). Isto só
vem confirmar que o rei dos Gregos, embora parecendo sensato e mais pragmático, é
tão orgulhoso e egocêntrico como Aquiles.
A embaixada enviada por Agamémnon constitui uma das cenas mais comoventes da
Ilíada. Durante o encontro, são contadas várias narrativas, que cada lado usa para
persuadir o outro, mas o poeta socorre-se delas para humanizar Aquiles e para nos
apresentar sumariamente aspetos do seu passado e antecipar o futuro. Além disso, este
episódio relembra-nos a sua cólera e o seu orgulho, contudo, em simultâneo, revela-nos
as pressões que sofreu em Ftia (uma antiga região da Tessália, na Grécia setentrional, a
pátria dos Mirmidões) e destaca o dilema que enfrenta, mostrando-nos os seus conflitos
interiores.
A forma mais cândida como Aquiles responde ao apelo de Ájax mostra que ele
valoriza o respeito dos seus companheiros, embora não pareça particularmente
incomodado por estarem a morrer na sua ausência. No entanto, o seu orgulho sobrepõe-
se a isso e ele não consegue perdoar a ofensa à sua honra. Até este momento da obra, a
cólera de Aquiles parecia ser justificada, todavia a recusa da proposta de Agamémnon
por uma questão de orgulho lança uma sombra sobre a sua figura. Aquiles é descrito e
age como um deus e o egocentrismo e a mesquinhez da sua reação lembram os rancores
de divindades como Hera e Poseidon.
Os discursos deste canto constituem demonstrações da habilidade oratória, um
talento que os Gregos valorizavam imenso, tanto quanto a perícia no campo de batalha.
Fénix faz referência a esses dois valores quando afirma ter criado Aquiles para ser um
homem de palavras e de ação. O discurso de Ulisses é o mais bem estruturado, sendo
constituído por um conjunto de apelos diferentes para tentar mudar o intento do filho de
Tétis.

CANTO X
 Resumo
Agamémnon e Menelau não conseguem dormir, tal é sua preocupação com o curso
dos acontecimentos, e, eventualmente, acordam os outros comandantes e reúnem-se em
campo aberto para planear o movimento seguinte. Nestor sugere que enviem um espião,
a coberto da escuridão noturna, que se infiltre no acampamento troiano e tome
conhecimento dos planos do inimigo. Diomedes oferece-se como voluntário e é
acompanhado por Ulisses. Os dois homens armam-se e, apoiados por Atenas, a quem
oram, esgueiram-se em direção ao campo adversário.
No lado troiano, Heitor é assaltado por uma ideia semelhante e quer saber se os
Gregos planeiam fugir. Ele seleciona Dolon, um homem muito feito, mas veloz como
um relâmpago, para desempenhar o papel, e promete recompensa-lo com a carruagem e
os cavalos de Aquiles. Dolon parte para a sua missão, mas é avistado por Diomedes e
Ulisses, que rapidamente o capturam. Os dois gregos interrogam-no, e ele, na esperança
de conservar a sua vida, informa-os das posições dos Troianos e dos seus aliados, bem
como de que os Trácios, recém-chegados ao local, eram especialmente vulneráveis a
ataques. Ulisses promete poupar Dolon, mas Diomedes mata-o e tira-lhe a armadura.
De seguida, os dois espiões aqueus penetram sorrateiramente no acampamento
trácio adormecido, onde matam doze soldados e o seu rei, Rhesus, que chegara atrasado
à batalha e, por isso, nem chega a combater. Além disso, roubam os cavalos e as
carruagens do monarca trácio. Atenas avisa-os que algum deus zangado pode acordar os
outros soldados, o que faz com que Diomedes e Ulisses e retornem ao seu acampamento
na carruagem roubada, onde são recebidos calorosamente pelos seus camaradas, que já
os viam mortos.
 Análise
O Canto X decorre na mesma noite que o IX, mas, ao nível do conteúdo, constitui
uma pausa no combate. Em vez disso, Homero concentra-se sobretudo na questão da
espionagem e da guerra psicológica. A única ligação de continuidade entre os dois
cantos é o desespero dos Gregos, que é acentuado pela teimosia de Aquiles, que tira o
sono de Agamémnon e Menelau e os deixa tão desesperado que estão dispostos a quase
tudo para o fazer regressar à luta. No entanto, nessa noite existem duas embaixadas,
uma de espionagem, efetuada em pleno território inimigo, e outra tendo como destino
final a tenda de Aquiles. A primeira é caracterizada pelo êxito, enquanto a segunda
redunda em fracasso. O dado comum às duas expedições é a figura de Ulisses.
O rei de Ítaca é caracterizado como uma pessoa inteligente e astuta, no entanto
também algo traiçoeiro, pois promete falsamente a Dolon que não será morto. Algo
parecido sucede com Diomedes, que, logo depois de manifestar sentimentos de amizade
com um inimigo, executa um homem indefeso e se questiona sobre qual seria a pior
coisa que ele poderia fazer.
No que diz respeito ao desenlace da incursão no território troiano, não é tanto a
perda de um pequeno número de lutadores e de uma carruagem que afetará o decurso da
guerra em termos materiais, mas antes o que o ataque representa em termos de
desmoralização. Em contraponto, este pequeno sucesso simboliza um impulso de
motivação junto da parte grega.
Por outro lado, as diferenças linguísticas e de técnica compositiva entre este e outros
cantos da Ilíada levantam algumas questões sobre a autoria desta parte da obra. Foi
composto por Homero para mostrar uma perspetiva diferente da guerra, ou tratou-se de
um acrescento introduzido por um colaborador posterior? Seja como for, constitui uma
pausa na batalha e introduz uma nota diferente numa fase do conflito em que os Gregos
estão a sofrer grandes revezes.

CANTO XI
 Resumo
Na manhã seguinte, os exércitos voltam a enfrentar-se e Zeus faz chover sangue
sobre o campo aqueu, causando enorme pânico entre os Gregos, que sofrem um
massacre nessa fase do combate. No entanto, da parte da tarde a maré começa a mudar:
Agamémnon mata diversos inimigos e faz recuar de novo os Troianos até aos portões da
cidade.
Porém, Zeus envia uma mensagem a Heitor através de Íris para ele esperar até
Agamémnon ser ferido e só então dar início ao seu ataque. De facto, o comandante
grego acaba por ser ferido por Coon, filho de Antenor, logo após matar o seu irmão.
Mesmo ferido, continua a lutar e liquida Coon, no entanto a dor que sente força-o a
abandonar o campo de batalha.
Heitor reconhece a situação e avança, fazendo recuar os Aqueus, que entram em
pânico, mas Ulisses e Diomedes incentivam-nos a resistir e insuflam coragem nos seus
corações. Diomedes arremessa uma lança que atinge Heitor no capacete que o deixa
atordoado e o obriga a recuar. Em rápida sucessão, a maioria dos melhores lutadores
gregos é ferida e até Diomedes é atingido no pé pro uma seta disparada por Páris, o que
o arreda do resto do poema e deixa Ulisses numa situação delicada, ferido também e
cercado por inimigos. O estratega do Cavalo de Troia luta com todos, mas um
adversário chamado Socus fere-o nas costas, sendo salvo por Ájax, que o carrega de
volta ao acampamento.
Entretanto, Heitor regressa à ação noutro setor do combate e, juntamente com outros
soldados, força Ájax a recuar enquanto Nestor leva Machaon (um curandeiro grego que
tinha sido ferido por Páris) de volta à sua tenda. Enquanto isso, atrás das linhas, Aquiles
assiste à batalha e envia o seu amigo Pátroclo para identificar o lutador ferido que
Nestor transporta. Este relata-lhe todos os revezes que os Gregos estão a sofrer e
implora-lhe que convença Aquiles a retornar à luta, ou pelo menos o deixe a ele,
Pátroclo, entrar na batalha disfarçado, envergando a armadura do próprio Aquiles. Esse
estratagema teria um duplo efeito: por um lado, daria coragem aos Gregos; por outro,
intimidaria os inimigos. De outra forma, Nestor vê muito difícil a tarefa de resistir aos
Troianos. Pátroclo promete falar com Aquiles.
 Análise
O Canto XI abre com a aristeia de Agamémnon. O poeta faz uma descrição efetiva
do seu armamento e armadura, ricamente decoradas com materiais preciosos que
enfatizam a sua riqueza. Dos vários elementos destaca-se a Górgona que está no seu
escudo, a qual também marca presença no escudo de Atenas, e que simboliza o apoio
dos deuses. Por instantes, o chefe dos Gregos vira a maré da batalha contra os Troianos,
apesar das intenções de Zeus serem de sentido oposto.
O pai dos deuses continua a ser o único a poder intervir no curso da guerra, o que
ele faz em favor de Troia. Neste passo da obra, a deusa Íris atua como uma extensão da
sua vontade e uma evidência da brutalidade da guerra, algo que perpassa toda a Ilíada,
mas isso não significa propriamente uma condenação dos conflitos bélicos. Apesar de
ser um acontecimento trágico, onde milhares de homens são sacrificados, a guerra
constitui igualmente uma forma de alcançar a glória e a honra pessoais, tão importantes
no mundo antigo. De acordo com a visão de Homero, a guerra faz parte da vida
humana.
Neste canto, Pátroclo assume uma importância que não tinha tido até aqui e que se
vai estender para o futuro imediato. Quando ele responde ao chamamento de Aquiles
para questionar Nestor, o poeta afirma que, a partir desse momento, a sua condenação
era um dado adquirido, condenação essa que se adensa com a sugestão de Nestor para
que Pátroclo finja ser Aquiles e entre em combate. Por outro lado, a figura de Pátroclo
funciona também como contraponto do seu amigo. De facto, embora sejam bastante
inimigos e irmãos adotivos, são personalidades bem diversas. Pátroclo mostrará todo o
seu humanismo e toda a sua compaixão na cena de Eurípilo, enquanto Aquiles já
demonstrou, em mais de uma ocasião, todo o seu orgulho, que se sobrepõe ao destino
dos seus próprios companheiros, algo que o próprio amigo desaprova.

CANTO XII
 Resumo
À medida que os Troianos avançam sobre as fortificações gregas, o poeta dá-nos
conta que elas serão destruídas quando Troia cair. Entretanto, elas continuam a cumprir
o seu papel: resistir aos avanços dos inimigos – a trincheira aberta à sua frente bloqueia
os carros troianos e impede-os de avançar. Por isso, Heitor segue o conselho de
Polidamas, ordena aos soldados que desçam dos carros e ataquem as muralhas a pé.
Quando se preparam para atravessar as trincheiras, algo de extraordinário acontece: uma
águia voa sobre a ala esquerda do exército troiano, é mordida pela grande cobra que
transporta e deixa-a cair no meio dos combatentes. Polidamos interpreta esta cena como
um sinal de que os Troianos serão derrotados pelos Aqueus e aconselha Heitor a recuar,
mas este zomba dele e decide prosseguir o ataque.
Assim, Glauco e Sarpédon atacam as muralhas, enquanto Menesteu, auxiliado por
Ájax, a defende. Sarpédon abre uma brecha no muro, enquanto Heitor destrói uma das
portas com uma rocha. Ato contínuo, os Troianos invadem as fortificações, e os Gregos
recuam, apavorados, para os seus navios.
 Análise
Este canto contém indícios do destino de Heitor e de Troia, à semelhança do que
tinha sucedido com a cena de Nestor e Pátroclo, também ela premonitória. Assim, de
acordo com as previsões dos adivinhos, a cidade está condenada a cair. Em simultâneo,
Homero não deixa de sugerir ao leitor que a morte de Heitor, bem como a partida dos
Gregos no décimo ano.
No entanto, por outro lado, são vários os sinais de sentido oposto, desde logo porque
Zeus manipula a batalha, ora derramando sangue sobre os Gregos, ora permitindo que
Heitor se torne o primeiro troiano a cruzar as fortificações do inimigo. Os Aqueus
reconhecem o dedo de Zeus no curso dos acontecimentos e compreendem que, ao
combater os de Troia, se opõem também ao deus. Neste contexto, Diomedes conclui que
o chefe dos deuses já selecionou o vencedor do conflito: os Troianos. Deste modo,
perante sinais contraditórios, o leitor hesita, não sabendo em quais confiar, pelo que o
desenlace da história permanece em aberto, por causa desses sinais ambíguos. Os dois
lados em conflito ficam confusos sobre a vontade de Zeus: ambos reclamam o seu
apoio, mas as suas intervenções nada clarificam.
Voltando a Heitor, no momento em que ignora o conselho de Polidamos, dá mais
um passo rumo ao destino que lhe está reservado. Note-se, contudo, que recuar naquele
instante constituiria um comportamento desonroso, além de sem sentido, pois a batalha
está a ser francamente favorável aos Troianos. Assim, que razão haveria para recuar?
Deste modo, é perfeitamente normal que Heitor ignore o presságio e prossiga a luta em
defesa da sua pátria, cumprindo, em simultâneo, o destino que Zeus lhe traçou.

CANTO XIII
 Resumo
Zeus, satisfeito com a evolução do conflito, afasta-se do campo de batalha, o que é
aproveitado por Poseidon para ajudar os Gregos. Assim visita o Grande Ájax e o
Pequeno Ájax, na forma de Calcas, e inspira-os, bem como aos demais aqueus, a resistir
ao ataque dos Troianos. Com a confiança restaurada, os Gregos enfrentam os inimigos e
os dois Ájax forçam Heitor a recuar. Este dispara a sua lança em direção a Teucro, mas
o grego desvia-se e a arma atinge fatalmente Anfímaco, o neto de Poseidon. Cheio de
dor e desejando vingar-se, o deus do mar, que não ousa posicionar-se abertamente a
favor dos Gregos receando a punição de Zeus, confere um grande poder a Idomeneu,
que, em conjunto com o seu feroz ajudante Meriones, liquida ou fere muitos troianos.
Tudo isto decorre na zona esquerda da batalha.
Enquanto isso, à direita, Heitor prossegue o seu ataque, mas os soldados que o
acompanham perderam parte da sua força, depois de terem sofrido às mãos dos dois
Ájax. Parte deles recua mesmo até às suas próprias fortificações, enquanto os restantes
estão dispersos pelo campo de batalha. Polidamas convence o chefe troiano a recuar um
pouco e a reagrupar as tropas. Heitor procura os seus camaradas, mas descobre que
estão mortos ou feridos. Nesse instante, vale-lhe Páris, que o incentiva e lhe levanta o
ânimo. Ájax insulta-o e Heitor responde, prometendo matá-lo; com muitos gritos à
mistura, a batalha reacende-se. Enquanto Ájax discursava, uma águia surgira à sua
direita, o que é entendido como um presságio favorável aos Gregos.
 Análise
Zeus, a única divindade a poder intervir no conflito, tinha controlado a ação nos
últimos cantos, no entanto neste afasta o olhar do campo de batalha, o que é aproveitado
por Poseidon, que desafia a sua ordem de não interferência. Porém, como receia a
reação do pai dos deuses se vier a descobrir a sua intervenção na guerra, não luta
diretamente ao lado dos Gregos. Assim, limita-se a aconselhá-los e a manter o moral
elevado. Encurralados, os Aqueus reagrupam-se e resistem, pois não têm para onde
fugir e precisam de salvaguardar os seus navios a todo o custo, afinal a garantia da sua
sobrevivência.
O Canto XIII centra-se muito mais em questões de estratégia do que na descrição de
cenas bélicas. Ambas as partes conflituantes consideram que as suas linhas de combate
necessitam de ser reforçadas. A posição de Heitor e dos Ájax, ocupando o lugar central
do palco, ilustra os seus papéis centrais na ação. Por seu turno, Páris, que fora retratado
anteriormente de forma negativa – como cobarde e indiferente à sorte dos seus
companheiros –, revela agora uma determinação e um espírito de luta que reanimam
Heitor, que se encontrava desanimado, depois de constatar que grande parte dos seus
capitães estava morta ou ferida.

CANTO XIV
 Resumo
Nestor coloca Machaon na sua tenda e reúne-se aos outros comandantes gregos,
feridos perto dos navios. Juntos, observam o campo de batalha e tomam consciência da
dimensão das suas perdas. Perante este quadro, Agamémnon receia ser derrotado e
propõe desistir da luta e regressar a casa. Ulisses rejeita de imediato a ideia,
considerando-a um gesto de cobardia, desonroso e vergonhoso. Em alternativa,
Diomedes sustenta que todos os comandantes se devem dirigir para a frente de batalha,
não para lutar, dado que vários se encontravam feridos, mas para inspirar os seus
soldados. Ao partirem, Podeidon, disfarçado, encoraja Agamémnon e diz-lhe que os
Troianos se iriam retirar dos navios nalgum momento.
No Olimpo, Hera decide distrair Zeus, para poder ajudar os Aqueus. Assim, visita
Afrodite e engana-a, para que lhe dê uma faixa de peito encantada em que os poderes do
Amor e da Saudade são tecidos, capaz de enlouquecer por amor o homem mais sensato
do mundo. De seguida, suborna o Sono (promete-lhe uma das suas filhas em
casamento), para que faça Zeus dormir. O Sono segue-a até ao Monte Ida e, disfarçado
de ave, esconde-se numa árvore. Zeus vê Hera; a banda encantada cumpre a sua função,
fazendo com que o desejo o domine. Ele faz amor com Hera e, depois, como planeado,
o Sono usa o seu poder em Zeus, que adormece. A seguir, a deusa avisa Poseidon,
informando-o de que está livre para auxiliar os Gregos.
O deus do mar reagrupa-os e a batalha recomeça. Heitor e Ájax logo se veem frente
a frente e lutam. O troiano atinge o grego com um poderoso arremesso de lança, mas
esta não penetra a sua armadura. Ájax fere então o inimigo com uma pedra e este
começa a expelir sangue. Os Troianos levam o seu comandante de volta a Troia; na sua
ausência, os Gregos derrotam os seus inimigos, que morrem em grande número. No
final do canto, deparamos com o exército troiano em retirada, em direção à cidade.
 Análise
É curiosa a forma como Agamémnon se deixa abater por vezes quando as coisas não
correm a seu favor. Nesta ocasião, necessita de ser incentivado e convencido a não
desistir da guerra e a voltar para casa, coberto de vergonha. A cada revês, acredita que
Zeus está contra si. Crente nisso e que a derrota se afigura como inevitável, prefere uma
sobrevivência desonrosa a uma eventual morte gloriosa e chega mesmo a propor a
retirada, enquanto os eu exército ainda combate: Ora, esta opção contrasta com a
postura de Aquiles, que prefere exatamente o oposto. Quando lhe foi dada a
possibilidade de escolher entre uma vida tranquila e longa na sua pátria e casa, junto à
sua família, e uma vida gloriosa, mas breve, ele não hesitou e escolheu a segunda
hipótese. O discurso de Ulisses cobre Agamémnon de vergonha. A sorte da guerra está
longe de estar decidida e o líder dos Gregos necessita de confiar mais nos deuses.
Este retrato de um Agamémnon vacilante, cobarde, sem honra, permite compreender
a razão por que Aquiles e outros capitães gregos se ressentem da liderança do seu
comandante e da reivindicação da maior parte dos saques que obtêm. Por outro lado,
Agamémnon aparenta sentir pela primeira vez algum remorso por ter ofendido Aquiles,
contudo convém ter presente que tal sucede apenas por causa do modo como as
consequências nefastas dessa ofensa o afetam. Dito de outra forma, Agamémnon receia
que as suas tropas o culpem pela eventual derrota na guerra.
Os Gregos continuam a combater, mas chefiados agora por um escasso número de
líderes, nomeadamente os dois Ájax e Menelau. Os restantes (Agamémnon, Ulisses e
Diomedes) estão todos feridos, enquanto Nestor está ocupado a tratar de Machaon. Este
facto contrasta com o que se passa entre os Troianos, onde avultam as figuras de Heitor,
Páris e Eneias, nomeadamente as capacidades de liderança do marido de Andrómaca,
por exemplo quando assistimos à forma como divide o seu exército ao longo da linha
grega e o faz recuar e reagrupar quando tal se torna necessário, ou quando Polidamas e
Heitor discutem qual é a secção do exército que necessita de ser reforçada. Isto traduz o
facto de, nos últimos dois cantos, a narrativa se preocupar mais com as questões de
tática militar do que com os confrontos físicos da batalha. Outro exemplo que comprova
esta ideia está presente na cena em que Poseidon exorta os Gregos a redistribuir as
armas pelos soldados de forma mais eficiente entre os mais fortes e os mais fracos.
No que diz respeito aos deuses, mais uma vez oferecem um contraponto humorístico
à brutalidade da guerra. É o que sucede com o episódio de Hera e Zeus, que evidencia
como as questões de vida ou morte dos humanos são frequentemente determinadas por
picuinhices e mesquinhices entre as divindades do Olimpo. Neste caso, a mudança dos
acontecimentos tem como causa a líbido de Zeus e a ingenuidade/credulidade de
Afrodite, bem como da astúcia e manha de Hera. Esta aproveita-se comicamente da boa
vontade da deusa do amor para manipular o seu esposo, explorando o seu ponto fraco.
Consecutivamente, os deuses mostram a sua falta de racionalidade e equilíbrio.
Voltando a Heitor, neste canto ocorre o segundo round do seu confronto com Ájax,
do qual volta a sair por baixo, o que ilustra o poder e a força relativos dos exércitos e
heróis conflituantes. Heitor é o guerreiro troiano mais forte, mas não consegue
sucessivamente derrotar o segundo lutador grego mais forte. Esta questão ganha
especial relevância, pois, caso Heitor seja derrotado, não haverá outro troiano de valor
aproximado que o possa substituir e liderar as tropas. Em sentido oposto, as hostes
aqueias possuem vários outros guerreiros fortes e corajosos. Sucede que, mesmo com a
ajuda de Zeus, o avanço de Troia em direção aos navios inimigos é lento e marcado por
vários contratempos.
Note-se, por último, que o poeta procura retratar as duas fações em confronto de
forma equidistante e simpática, mostrando como ambos os exércitos lutam com honra,
determinação e coragem, porém vai-se percebendo que o lado troiano não possui a
mesma forma de combate.

CANTO XV
 Resumo
Enquanto as tropas troianas são repelidas, Zeus desperta do seu sono e observa o
que aconteceu enquanto dormia. Ameaça castigar Hera, mas esta protesta a sua
inocência, desviando a culpa para cima de Poseidon. Ele diz-lhe que, não obstante os eu
apoio aos Troianos, troia está condenada a cair e que Heitor morrerá depois de lutar e
matar Pátroclo. Por outro lado, Zeus parece aceitar a inocência da esposa, mas força-a a
trabalhar no sentido de desfazer as ações de Poseidon, pedindo-lhe que chame Íris e
Apolo. Ela obedece, mas antes incita Ares a quase desafiar o pai dos deuses para vingar
o seu filho, sendo apenas travado por Atenas. Íris ordena a Poseidon que abandone o
campo de batalha, enquanto Apolo dota Heitor e os seus companheiros de novas forças.
De seguida, Heitor lidera um ataque contra os Gregos, que sustentam a ofensiva
inicialmente. No entanto, com um grito de guerra, Apolo agita o escudo de tempestade
de Zeus contra as tropas gregas, que recuam aterrorizadas. Apolo enche, então, a
trincheira em frente às fortificações aqueias, permitindo que os Troianos derrubem as
muralhas.
Os exércitos lutam junto ao acampamento grego e perto dos navios. Ájax e Heitor
enfrentam-se novamente. O arqueiro Teucro derruba vários soldados troianos, todavia
Zeus parte o seu arco quando faz mira em Heitor. Ájax incentiva os seus companheiros
a lutar, mas o líder troiano reúne as suas tropas e, passo a passo, avançam com a ajuda
de Zeus, até que Heitor chega a um navio.

 Análise
O Canto XV constitui o princípio do fim para Heitor, precisamente quando atinge o
auge do seu poder. É isso que Zeus revela a Hera quando acorda, incluindo a queda da
cidade de Troia, que não é descrita na Ilíada, que termina com os funerais de Heitor.
Juntando essa a outras revelações – as mortes de Pátroclo e de Aquiles –, o leitor fica a
saber antecipadamente o desenlace da história. Esta forma de construir a narrativa
contrasta com a usual na ficção contemporânea, que procura criar tensão dramática,
criar suspense, mantendo o leitor na expectativa do que irá suceder.
É verdade que, no caso, por exemplo, de certos romances policiais, o leitor fica a
conhecer ab initio quem é o criminoso, mas tal constitui uma exceção à regra. A
literatura moderna faz depender, frequentemente, o desfecho da história da ação das
personagens individuais e das escolhas que fazem na vida. Ora, este paradigma
narrativo é mais complexo de encontrar na Ilíada, pois as narrativas antigas assentam
muitas vezes na tradição mitológica, o que implicava que o leitor/ouvinte seria
confrontado com uma história cujo desfecho já era do seu conhecimento. Neste
contexto, a tensão dramática não resulta da interferência da mentalidade e da
personalidade das personagens nos eventos, mas da forma como estes afetam as
personagens. O leitor, nesta fase do poema, já está ciente da queda de Troia e da morte
de Heitor, do mesmo modo que Aquiles sabe perfeitamente que, se regressar à luta, irá
perder a vida. Assim sendo, não é o desenlace da história e o fim das personagens que
cativam a sua atenção, mas ficar a saber como elas respondem a um fim já conhecido.
Quando o espectador compra o bilhete e entra na sala do cinema, tem consciência de
que a personagem encarnada por John Wayne irá castigar os maus e triunfar no fim da
história, mas, ainda assim, quer ver como o vai conseguir. Tudo isto ganha foros
caricaturais quando assistimos ao avanço de Heitor e dos Troianos, sabendo já que a sua
vida irá terminar em breve.
Note-se, contudo, que nem sempre a ação se desenvolve de acordo com o esquema
descrito. De facto, há momentos em que os eventos estão dependentes das opções das
personagens. É o caso flagrante de Aquiles, que se tem vindo a confrontar com um
dilema: retornar à guerra, salvar os seus companheiros e auxilia-los a derrotar Troia, ou
conservar a sua cólera e o seu orgulho e deixá-los entregues à sua sorte. Estes conflitos
internos, tão comuns nos textos teatrais (quem se pode esquecer dos de D. Madalena ou
Telmo Pais no Frei Luís de Sousa?), contribuem para a criação de um ambiente
dramático, mas, ocasionalmente, são igualmente envolvidos por um certo clima irónico.
Por exemplo, no Canto I, depois de ver o seu orgulho ferido pelas ações de
Agamémnon, Aquiles, através da sua mãe, pede a Zeus que castigue os Gregos (não
teria esta hybris de ser punida pelos deuses mais tarde ou mais cedo?); no entanto, agora
é a ação do mesmo Zeus em prol dos Troianos que contribuirá também para a perda do
seu amigo Pátroclo.
O outro plano do poema – o da mitologia – prossegue a todo o vapor. Hera escapa à
punição de Zeus protestando a sua inocência e atribuindo as culpas para cima de
Poseidon. No entanto, o seu juramento no rio Estige – um voto que os deuses não
podem quebrar – mostra a sua falsidade. É verdade que ela não enviou Poseidon em
auxílio dos Gregos, mas aproveitou o ensejo para o ajudar no processo e assim,
indiretamente, acabam por os ajudar.
Por seu turno, a postura do deus do mar justifica-se pela rivalidade que cultiva com
Zeus, seu irmão mais velho. Enquanto primogénito, este detém muito mais poder e
autoridade, mas o que mais irrita Poseidon é o facto de ele ter de desistir dos seus
próprios interesses em prol das prioridades e interesses de Zeus. Ora, este conflito
desenvolve-se paralelamente ao de Agamémnon e Aquiles, que hostiliza o primeiro, o
todo poderoso rei dos Gregos, porque espera que o filho de Tétis abdique de algo que
lhe pertence (Briseida) em seu favor. Poseidon cede, com medo do poder e do castigo
de Zeus, mas solta uma ameaça; também Aquiles cede, mas não sem procurar uma
dupla vingança sobre Agamémnon: abandona o combate e pede ao pai dos deuses que
castigue os Gregos.
Por último, há que atender ao seguinte no que diz respeito a Heitor: quando ele
finalmente atinge os navios inimigos, a promessa de Zeus está cumprida. De ora em
diante, o curso da guerra alterar-se-á em desfavor de Troia, cumprindo-se, deste modo, a
profecia do todo poderoso deus.

CANTO XVI
 Resumo
Pátroclo dirige-se à tenda de Aquiles, informa-o sobre o curso dos acontecimentos e
censura-o por manter a recusa de combater. Já que não cede, solicita-lhe autorização
para usar a armadura do próprio Aquiles e liderar os Mirmidões na batalha. Como nós já
sabemos através das profecias de Zeus, Pátroclo está, resumidamente, a implorar a sua
própria morte, a assinar a sua sentença de morte.
Aquiles concorda em lhe emprestar a sua armadura, mas somente na condição de
Pátroclo lutar apenas para expulsar os Troianos dos navios aqueus. Enquanto aquele se
arma, as tropas de Heitor incendeiam um navio. Aquiles cede os seus Mirmidões para
acompanhar Pátroclo e ora a Zeus para que o amigo regresse são e salvo e os navios se
conservam intactos.
A entrada em cena de Pátroclo, envergando a armadura de Aquiles, e dos Mirmidões
altera o curso da batalha, de tal forma que os soldados de Troia abandonam os navios
inimigos e recuam. Pátroclo massacra todos os troianos que cruzam o seu caminho, e
Sarpédon decide enfrentá-lo. Zeus quer salvar o seu filho de ser morto pelo guerreiro
grego, mas Hera convence-o a não agir, pois os outros deuses desprezá-lo-iam para esse
gesto e seriam tentados a imitá-lo e a salvar a sua descendência humana. Zeus concorda,
mas não contém as lágrimas quando Sarpédon é morto. Heitor e alguns soldados
troianos fazem marcha atrás na tentativa de proteger o seu corpo e a sua armadura.
Zeus decide matar Pátroclo como castigo por este ter roubado a vida do seu filho
Sarpédon, mas antes decide glorificá-lo, deixando-o liquidar vários soldados troianos e
dotando de Heitor de um momento de cobardia, fazendo-o recuar. Os Gregos obtêm a
armadura de Sarpédon, mas Zeus encarrega Apolo de tomar o seu corpo e o conduzir a
casa, para ser sepultado. Desobedecendo às instruções de Aquiles, Pátroclo persegue o
exército inimigo até às portas de Troia. Provavelmente, a cidade teria caído a seguir se
Apolo não o tivesse expulsado dali. De seguida, o deus convence Heitor a atacar
Pátroclo, mas este mata o cocheiro da carruagem do líder dos Troianos. Soldados de
ambos os lados lutam pela posse da armadura do cocheiro. Apolo aproveita a confusão e
atinge Pátroclo pelas costas, atirando a sua armadura e armas para longe. Um jovem
guerreiro troiano fere-o nas costas com uma lança, e Heitor acaba com ele espetando-lhe
outra no estômago. A seguir, dirige-lhe palavras ofensivas, às quais o moribundo
responde predizendo a morte do próprio Heitor às mãos de Aquiles.

 Análise
O Canto XVI é dominado pela ação de duas personagens inimigas: Heitor e
Pátroclo. Num plano secundário, situa-se Aquiles, cujo orgulho ferido o continua a
impedir de regressar à batalha e a agir de forma nada humana e patriótica, pois não
revela, mais uma vez, qualquer preocupação com o destino dos seus compatriotas e, em
última análise, da sua pátria. Já a atitude de Pátroclo é absolutamente diversa: ele chora
ao constatar a situação dramática e acusa Aquiles de ser frio e insensível, acusando-o de
não ser filho de deuses e humanos, mas do oceano e das rochas, forças que não possuem
sentimentos. Neste contexto, Homero cria um momento de ironia trágica relativo ao
destino de Pátroclo: Aquiles reza pelo seu sucesso na batalha contra os Troianos e pelo
seu regresso são e salvo, mas o poeta lembra ao leitor/ouvinte que o segundo termo da
oração não se concretizará. Este passo recorda, de alguma forma, o poema “O menino
de sua mãe”, da autoria de Fernando Pessoa, mas especificamente o momento em que a
mãe e a criada rezam, lá longe, em casa, pela saúde e bem-estar do jovem, quando, na
realidade, já está morto.
Relativamente à figura de Heitor, o seu tratamento nesta fase da Ilíada parece
diferente dos cantos iniciais. De facto, até aqui ele era o guerreiro mais valente e
corajoso do exército troiano, o líder incontestado, heroico e exemplar, que chega a
censurar fortemente o próprio irmão por se recusar a combater. Porém, chegados a este
ponto, somos confrontados com um Heitor que foge da batalha após a entrada em
combate de Pátroclo abandonando as tropas que comanda, certamente convencido de
que se tratava de Aquiles. O seu companheiro Glauco envergonha-o aquando da
primeira fuga, tarefa que cabe ao próprio tio quando a segunda tem lugar, embora neste
caso saibamos que foi Zeus quem o tornou cobarde momentaneamente.
O desejo de proteger o corpo de Sarpédon fá-lo retornar à batalha e enfrentar
Pátroclo, mas, até pelo que foi dito, o percurso dos dois é marcado por um contraste
óbvio: à medida que Pátroclo se glorifica, Heitor vê a sua glória pessoal de crescer.
Além dos dois recuos durante a batalha já descritos, a morte do inimigo às suas mãos
nada tem de heroico ou honroso, visto que Apolo retirou previamente a armadura e as
armas do guerreiro grego, permitindo que um jovem soldado troiano o apunhalasse
pelas costas e só então Heitor entra em cena para dar o golpe final. Em suma, os deuses
fizeram a parte essencial do trabalho de conduzir à morte de Pátroclo, não Heitor. Neste
contexto, o amigo de Aquiles morre em glória, pois, antes de ser liquidado da forma que
conhecemos (foram precisas três figuras para tal, incluindo um deus, e parte dos ataques
foi desferida cobardemente, pelas costas), elimina vários inimigos e retira-lhes a
armadura, algo que, como já vimos em cantos anteriores, era muito importante na
época.
Uma última nota para a relação entre os deuses e o destino. Tendo em conta os
eventos narrados neste canto, é lícito concluir que o destino não é imutável; pelo
contrário, ele pode ser contrariado e mudado, visto que Zeus, na iminência da morte do
seu filho Sarpédon, considera abrir uma exceção e alterar o destino, poupando a sua
vida. No entanto, nem o próprio pai dos deuses se pode dar a esse luxo sem que existam
consequências. Como Hera o adverte, se Zeus salvar Sarpédon, deixará de ser
respeitado pelos restantes deuses e serão levados a concluir que poderão fazer o mesmo,
o que acarretará problemas imprevisíveis.

CANTO XVII
 Resumo
Após a sua morte, tem início uma luta feroz em torno do corpo de Pátroclo, com os
deuses metendo a colher, como é costume. Um dos que lutam pela armadura é Euforbo,
o soldado que atingiu Pátroclo inicialmente pelas costas, mas é morto por Menelau.
Heitor, estimulado por Apolo, junta-se à luta, mas acaba por ser afastado por Menelau e
Ájax, que veio em seu auxílio, antes que possa remover ou profanar o corpo de Pátroclo.
No entanto, não conseguem impedir que o líder dos Troianos se apodere da armadura de
Aquiles, que este emprestara ao amigo, que aquele veste de imediato. Glauco censura-o
por ter deixado o corpo do inimigo para trás e acrescenta que o poderiam usar como
moeda de troca pelo corpo de Sarpédon. Heitor regressa à disputa e promete metade dos
despojos da guerra a qualquer soldado que se apossar do cadáver de Pátroclo. Zeus
reprova o ato de Heitor relativamente ao corpo do inimigo, contudo, consciente da sua
morte iminente, dá-lhe grande poder.
Menelau e Ájax reúnem as suas tropas e forçam os Troianos a recuar para as
muralhas de Troia, incluindo o próprio Heitor. Eneias, revigorado por Apolo, reorganiza
os soldados em fuga e convence-os a regressar à batalha, mas continuam a não
conseguir capturar o corpo de Pátroclo. O cocheiro de Aquiles, Automedonte, envolve-
se na refrega, e Heitor tenta matá-lo para tentar roubar a carruagem, mas o cocheiro
desvia-se da lança e derruba um soldado troiano no processo. Ele retira ao morto a sua
armadura, crendo que, ao fazer isso, aliviará a dor do espírito de Pátroclo, não obstante
os dois guerreiros caídos em desgraça não serem comparáveis no que ao seu valor diz
respeito.
Atenas, disfarçada de Fénix, dá nova força a Menelau, enquanto Apolo, igualmente
disfarçado, neste caso de troiano, faz algo semelhante com Heitor. De seguida, Menelau
envia Antíloco até Aquiles, informando-o da morte do amigo e pedindo-lhe ajuda. Zeus
continua a interferir no decurso da guerra em favor de Troia, mas dá tempo aos Gregos
para retirarem o corpo de Pátroclo do campo de batalha.
 Análise
O Canto XVI é dominado pela ação de duas personagens inimigas: Heitor e
Pátroclo. Num plano secundário, situa-se Aquiles, cujo orgulho ferido o continua a
impedir de regressar à batalha e a agir de forma nada humana e patriótica, pois não
revela, mais uma vez, qualquer preocupação com o destino dos seus compatriotas e, em
última análise, da sua pátria. Já a atitude de Pátroclo é absolutamente diversa: ele chora
ao constatar a situação dramática e acusa Aquiles de ser frio e insensível, acusando-o de
não ser filho de deuses e humanos, mas do oceano e das rochas, forças que não possuem
sentimentos. Neste contexto, Homero cria um momento de ironia trágica relativo ao
destino de Pátroclo: Aquiles reza pelo seu sucesso na batalha contra os Troianos e pelo
seu regresso são e salvo, mas o poeta lembra ao leitor/ouvinte que o segundo termo da
oração não se concretizará. Este passo recorda, de alguma forma, o poema “O menino
de sua mãe”, da autoria de Fernando Pessoa, mas especificamente o momento em que a
mãe e a criada rezam, lá longe, em casa, pela saúde e bem-estar do jovem, quando, na
realidade, já está morto.
Relativamente à figura de Heitor, o seu tratamento nesta fase da Ilíada parece
diferente dos cantos iniciais. De facto, até aqui ele era o guerreiro mais valente e
corajoso do exército troiano, o líder incontestado, heroico e exemplar, que chega a
censurar fortemente o próprio irmão por se recusar a combater. Porém, chegados a este
ponto, somos confrontados com um Heitor que foge da batalha após a entrada em
combate de Pátroclo abandonando as tropas que comanda, certamente convencido de
que se tratava de Aquiles. O seu companheiro Glauco envergonha-o aquando da
primeira fuga, tarefa que cabe ao próprio tio quando a segunda tem lugar, embora neste
caso saibamos que foi Zeus quem o tornou cobarde momentaneamente.
O desejo de proteger o corpo de Sarpédon fá-lo retornar à batalha e enfrentar
Pátroclo, mas, até pelo que foi dito, o percurso dos dois é marcado por um contraste
óbvio: à medida que Pátroclo se glorifica, Heitor vê a sua glória pessoal de crescer.
Além dos dois recuos durante a batalha já descritos, a morte do inimigo às suas mãos
nada tem de heroico ou honroso, visto que Apolo retirou previamente a armadura e as
armas do guerreiro grego, permitindo que um jovem soldado troiano o apunhalasse
pelas costas e só então Heitor entra em cena para dar o golpe final. Em suma, os deuses
fizeram a parte essencial do trabalho de conduzir à morte de Pátroclo, não Heitor. Neste
contexto, o amigo de Aquiles morre em glória, pois, antes de ser liquidado da forma que
conhecemos (foram precisas três figuras para tal, incluindo um deus, e parte dos ataques
foi desferida cobardemente, pelas costas), elimina vários inimigos e retira-lhes a
armadura, algo que, como já vimos em cantos anteriores, era muito importante na
época.
Uma última nota para a relação entre os deuses e o destino. Tendo em conta os
eventos narrados neste canto, é lícito concluir que o destino não é imutável; pelo
contrário, ele pode ser contrariado e mudado, visto que Zeus, na iminência da morte do
seu filho Sarpédon, considera abrir uma exceção e alterar o destino, poupando a sua
vida. No entanto, nem o próprio pai dos deuses se pode dar a esse luxo sem que existam
consequências. Como Hera o adverte, se Zeus salvar Sarpédon, deixará de ser
respeitado pelos restantes deuses e serão levados a concluir que poderão fazer o mesmo,
o que acarretará problemas imprevisíveis.

CANTO XVIII
 Resumo
Aquiles pressente a morte de Pátroclo mesmo antes da chegada do mensageiro de
Menelau. Ao tomar conhecimento de que os seus receios eram verdadeiros, Aquiles fica
desesperado: chora, puxa os cabelos, bate com os punhos no chão, cobre o rosto de terra
e grita, enraivecido, de tal maneira que Tétis o escuta e vem com as suas irmãs ninfas
aquáticas do oceano ver o que tanto perturba o filho. Aquiles relata-lhe a desgraça que o
atingiu e afirmará que se irá vingar de Heitor, não obstante o facto de ter consciência de
que, ao fazê-lo, ao optar pela vida de guerreiro, estará a sentenciar a sua morte. Tétis
lamenta que o filho tenha de morrer logo depois de Heitor e diz-lhe que não combata até
ela voltar. A deusa do oceano pedirá a Hefesto que lhe faça uma nova armadura, já que
a sua é usada agora pelo comandante dos Troianos.
Enquanto isso, as tropas de Troia continuam a querer apossar-se do corpo de
Pátroclo, mas Íris, a mando de Hera, diz a Aquiles que ele deve aparecer no campo de
batalha, visto que só a sua presença atemorizará os inimigos e fá-los-á desistir do corpo
de Pátroclo. Então, Aquiles sai da sua tenda e solta um grito tão forte que, de facto,
causa a fuga dos Troianos. O corpo de Pátroclo é trazido para o acampamento aqueu e
os eus companheiros choram-no, enquanto Aquiles jura que o seu amigo não será
sepultado até que Heitor caia às suas mãos, embora ordene que as suas feridas sejam
limpas para o preparar para o enterro.
No acampamento troiano, Podidama, temendo as consequências do retorno de
Aquiles, aconselha que as tropas regressam à cidade nessa noite, em vez de
permanecerem acampados na planície. Todavia, Heitor considera esse gesto num ato
cobarde, responde, orgulhosamente, que nunca fugirá de Aquiles e insiste em repetir o
ataque do dia anterior. O seu plano é acolhido favoravelmente pelos seus companheiros,
destituídos do seu juízo por Atenas.
Enquanto isso, Tétis dirige-se à morada de Hefesto e pede-lhe que faça uma nova
armadura para Aquiles. Grato por ela o ter auxiliado no passado, o deus do fogo forja
uma armadura, um capacete, grevas e um escudo extraordinários com imagens de
constelações, pastagens, crianças dançando, cidades humanas em relevo, paz e guerra,
vida e morte.
 Análise
Temporalmente, a ação deste canto decorre durante a noite. A escuridão noturna
introduz no poema um ambiente de calma bem-vindo após uma série de confrontos
bastante violentos, de um dia sangrento. Ambos os exércitos se reúnem para passar a
noite, mas o espírito dos dois lados é bem distinto: entre os Gregos predomina a tristeza,
a dor, o choro – o luto – pela morte de Pátroclo; no acampamento troiano, reina um
certo otimismo e confiança nos acontecimentos do dia seguinte. Para o leitor, o
ambiente entre os Troianos soa a ironia trágica, pois ele já sabe que Troia cairá às mãos
dos Gregos e Heitor morrerá sem regressar à cidade. Essa ironia torna-se mais profunda
após a proposta sábia de Polidama de o exército se acolher sob a proteção das muralhas,
ser rejeitada. É de registar o facto de o poeta usar a sensibilidade e a sabedoria desta
personagem para a contrastar com a obstinação de Heitor.
No que diz respeito à ação e à postura de Aquiles relativamente a ela, a morte de
Pátroclo vem alterar tudo. O filho de Tétis consciencializa-se de que, em última análise,
a sua raiva contra Agamémnon causou a morte do seu amigo. Mais: ele pediu a Zeus
que castigasse fortemente os Gregos, mas jamais lhe ocorreu que alguém próximo de si
pagasse esse preço. Subitamente, a sua cólera perde toda a importância, mas apenas
relativamente a Agamémnon. De facto, Aquiles continua possuído por esse sentimento,
só que agora direcionado para Heitor.
O escudo que Hefesto, a pedido de Tétis, forja para Aquiles é muito simbólico. Ele
é, simultaneamente, um instrumento de guerra e um símbolo de vida, o resumo de uma
cultura. Nele estão representadas duas cidades, uma vivendo tempos de paz e a outra de
guerra. A primeira não é totalmente pacífica, pois nela existem conflitos também, só que
são resolvidos de forma civilizada e não através da violência, enquanto a segunda
descreve a desumanidade e o caos da guerra. Não por acaso, é apenas nela que os deuses
surgem representados no escudo. As imagens de um campo a ser arado, da colheita do
trigo e da colheita de uvas representam o ciclo das estações. Um rebanho de gado é
atacado por dois leões, fazendo-nos recordar guerreiros ferozes, estabelecendo-se,
assim, uma conexão entre a guerra e a vida quotidiana. O conflito bélico é um tema
central da ação e constitui uma realidade da vida humana.

CANTO XIX
 Resumo
Na manhã seguinte, Tétis entrega a nova armadura de Aquiles, incentiva-o e
promete-lhe que cuidará do corpo de Pátroclo, evitando que apodreça. De seguida,
reúne os seus Mirmidões e reúne-se ao resto do exército grego. Aquiles e Agamémnon
reconciliam-se e este entrega-lhe as ofertas que havia prometido, caso regressasse à
batalha, incluindo a devolução de Briseida.
Contudo, Aquiles parece indiferente aos presentes, pois o seu foco está totalmente
orientado para o regresso imediato à guerra. Ulisses acalma-o e convence-o a deixar
que, antes, as tropas se alimentem, porém, o filho de Tétis recusa-se a comer até
cumprir a promessa de matar Heitor. Apesar disso, Atenas abastece-o para a batalha,
fornecendo-lhe ambrósia e néctar, a comida e bebida dos deuses. Enquanto os soldados
se alimentam, permanece sentado em luto por Pátroclo. Depois veste a sua nova
armadura e sobe para a sua carruagem, castigando os seus cavalos por terem
abandonado o seu amigo no campo de batalha para morrer. Um dos cavalos responde-
lhe que foi um deus que deixou Pátroclo morrer e que a mesma sorte lhe está destinada.
Aquiles, porém, não se comove, pois tem plena consciência do seu destino e de que, ao
entrar na batalha para vingar a morte do seu amigo, está a selar o seu destino.
 Análise
O conflito que se começa a desenhar no Canto I e que conduziu a ação até aqui é
resolvido agora, quando Aquiles se reconcilia com Agamémnon. Note-se, todavia, que
esta reconciliação não decorre de nenhum crescimento da personagem: a sua cólera
impensada não desapareceu, ele apenas a redirecionou, apenas mudou o seu alvo, bem
como o desejo de vingança, que, se antes era direcionado para Agamémnon, agora se
volta para Heitor. Além disso, a personagem parece continuar a ignorar as necessidades
e os interesses do seu próprio exército. A cólera que desperta no Canto I acarretou a
morte de muitos Aqueus, incluindo o seu amigo Pátroclo, e nada, até esta se consumar,
o demoveu da sua jura. Agora, pretende que as tropas comecem a combater sem se
alimentarem devidamente, o que é uma ideia impensada e suicida, pois as batalhas
envolvem enorme dispêndio de força e energia física.
Por outro lado, a alimentação dos soldados implica a noção de que a vida prossegue
após e apesar da guerra. A rejeição da comida por parte de Aquiles simboliza a rejeição
da vida e a aceitação fatalista da sua própria morte. No entanto, para o sustentar durante
a batalha, os deuses proporcionam-lhe o privilégio de experimentar a sua própria
comida e bebida, algo que volta a sugerir a sua natureza de semideus. Não esqueçamos
que Aquiles é filho de um humano e de uma deusa.
Relativamente a Agamémnon, começa por cumprir a sua promessa, presenteando-o
por retornar ao combate, mas não assume a responsabilidade pelas suas ações, que
atribui, mais uma vez aos deuses, nomeadamente a Ruína, uma tradução do grego atê.
Este vocábulo possui diversos significados, desde “ilusão”, “loucura” e “paixão” até
“desastre”, “desgraça” e “ruína”, termos que traduzem as suas consequências. A Grécia
Antiga atribuía a responsabilidade dessas emoções às entidades divinas, em vez de as
considerar características próprias da natureza humana, que as poderiam controlar.

CANTO XX
 Resumo
Na manhã seguinte, enquanto os Gregos e os Troianos se preparam para a batalha,
Zeus convoca os deuses ao Monte Olimpo, pois reconhece que, se Aquiles começar a
combater sem ninguém o controlar, dizimará os inimigos e talvez chegue mesmo a
destruir a cidade antes do momento previsto. Deste modo, retira a proibição de as outras
divindades intervirem na guerra e dá-lhes permissão para o fazerem do modo que
entenderem. As divindades olímpicas escolhem livremente o lado que desejam apoiar,
porém relutam em intervir nos acontecimentos, optando antes por assistir ao conflito
sem se envolver nele. Assim, sentam-se em colinas opostas com vista para o campo de
batalha, expectantes em saber como os dois exércitos se comportarão na guerra por
conta própria.
No entanto, Apolo encoraja Eneias a desafiar Aquiles para um combate, até porque
a sua mãe (Afrodite) também era uma divindade, inclusive mais poderosa do que a do
chefe dos Mirmidões. Os dois heróis encontram-se no campo de batalha e insultam-se.
De seguida, Eneias arremessa a sua lança na direção do adversário, mas ela não perfura
o seu escudo; em resposta, Aquiles está prestes a esfaquear fatalmente o troiano,
contudo Poseidon coloca-o noutro ponto do campo, evitando assim a sua morte. O seu
objetivo último consiste na preservação da sua vida para que possa sobreviver à guerra
e, após a queda de Troia, liderar o seu povo. Relembremos que Eneias será o fundador
mítico da cidade de Roma.
Heitor chega-se, então, à frente para enfrentar Aquiles, no entanto Apolo convence-
o a esperar que o inimigo venha até ele. Porém, quando o filho de Tétis massacra
diversos troianos, incluindo o irmão mais novo do próprio Heitor, este não se contém e
desafia-o. O duelo corre-lhe mal e Apolo é forçado a intervir de novo (envolvendo-o
numa nuvem protetora) e a salvá-lo pela segunda vez, enquanto adverte Ulisses de que
ainda não é hora de o inimigo morrer. O herói aqueu continua a descarregar a sua fúria
sobre as hostes troianas, liquidando os seus soldados sem piedade.
 Análise
Neste canto, assistimos a uma tomada de posição diferente por parte de Zeus, que
autoriza as outras divindades a intervir na guerra. Esta permissão coincide com o
regresso de Aquiles à batalha. Zeus está consciente de que o filho de Tétis poderá
vencer os Troianos sem a ajuda divina, antes do tempo profetizado. Isto indicia que os
seres humanos, nalguns casos, poderão alterar o destino, se os deuses não os impedirem.
Para os Gregos e os Romanos de épocas vindouras, o destino era imutável (Ricardo
Reis, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, seguindo a filosofia estoico-epicurista,
seguia estes princípios, segundo os quais o destino humano era implacável e
inexorável), porém Homero parece entendê-lo como o resultado da interação das ações
dos mortais e dos deuses. Não obstante e apesar das constantes referências que lhe são
feitas ao longo do poema, o leitor nunca chega a ter uma noção clara de quais são as
suas características. Os primeiros versos da Ilíada parecem indiciar que a vontade de
Zeus se sobrepõe a tudo e a todos (note-se que, na poesia de Ricardo Reis, os deuses se
submetem sempre a uma entidade superior, o Fado, que se sobrepõe às divindades, ao
Homem e à Natureza), no entanto há ocasiões em que não é bem assim. Por exemplo,
no Canto XV, deixa de apoiar os Troianos porque Troia está fadada a cair. Noutros
momentos, como o Canto XX, Zeus e o destino parecem trabalhar em conjunto,
nomeadamente quando o líder do Olimpo reúne os demais deuses para impedir que
Aquiles derrote os Troianos antes do que está previsto. Mas será que existe mesmo essa
entidade chamada destino? Este último exemplo parece suscitar essa dúvida. O mesmo
acontece na cena em que Poseidon salva Eneias de ser morto por Aquiles,
argumentando que o filho de Afrodite está fadado a viver. Ora bem, se Eneias está
predestinado a não morrer, não precisa de ser salvo.
Em suma, esta obra de Homero não apresenta uma hierarquia clara dos poderes
cósmicos e o leitor fica sem saber quem controla quem e o quê. Embora o poeta e,
sobretudo, as personagens tendem a responsabilizar as divindades ou o destino pelos
acontecimentos, essa responsabilização não os explica cabalmente. Poderemos até
concluir que o efeito é exatamente o oposto, pois aponta para a natureza misteriosa do
universo. Ou seja, responsabilizar essas entidades é sugerir que há questões da
existência humana que estão fora do controle humano e até da compreensão dos
homens.
Uma das personagens que volta a estar em foco é Agamémnon. Ele volta a alijar
responsabilidades pela forma como os acontecimentos se desenrolaram, optando antes
por apontar o dedo aos deuses e ao destino, chegando a responsabilizá-los até pela sua
obstinação e orgulho no conflito com Aquiles. O chefe dos Gregos tem consciência de
que muitos dos seus o culpabilizam pelas desgraças que o seu insulto a Aquiles
acarretou, porém ele descarta essa responsabilidade e indica as forças cósmicas ocultas,
nomeadamente atê, a Ruína, que se refere, como já vimos, à ilusão e à loucura, bem
como às consequências desastrosas desses estados mentais. Embora Peleu, no Canto IX,
a descreva como uma mulher forte e ágil que corre sobre a terra causando estragos, é
algo externo à psicologia humana.
Voltando a Aquiles, este canto confirma o que o anterior tinha anunciado: embora
faça as pazes com Agamémnon tal não apaga a sua cólera, apenas altera o seu alvo.
Agora, fá-la desabafar sobre os inimigos, passando a traduzi-la através da ação, quando
antes se exprimia pela inação, isto é, pela recusa em combater. Aquiles age de forma
descontrolada, movido pela raiva por Heitor e pelos Troianos, bem distanciado de
qualquer reflexão e frieza na análise das situações. É isso que sugerem duas
comparações. A primeira é estabelecida com um fogo violento, sugerindo uma
destruição violenta e descontrolada; a segunda consiste na sua associação a um enorme
boi que esmaga grãos para debulhar – se é verdade que esta tarefa está associada à
produção de alimentos e nada tenha a ver com a guerra, não deixa de evocar a violência
de um conflito bélico, sugerindo a força de Aquiles e o modo como esmaga os inimigos.
Sustento/alimento e violência coexistem nesta comparação, implicando que fazem parte
do mesmo todo.
Tudo isto remete para o dilema de Aquiles, que não se altera desde o início do
poema: viver uma vida longa e obscura em Ftia, ou uma vida gloriosa, mas breve em
Troia. Embora se pressinta que ela está ainda dividida entre as duas opções, a morte de
Pátroclo decidiu-o de vez; vai lutar, conquistar a glória e morrer.
CANTO XXI
 Resumo
Aquiles continua a matar inimigos sem dó nem piedade, dividindo fileiras e
forçando uma a recuar até ao rio Xando ou Escamandro, onde liquida mais uma série de
soldados troianos. Um deles é Licaonte, filho de Príamo, que lhe pede misericórdia,
inutilmente, pois é morto sem piedade. Seguem-se outros: o colérico e vingativo
Aquiles não poupará ninguém e lança os cadáveres ao rio, tantos que o obstroem. O
deus do curso de água protesta, e o filho de Tétis concorda em não atirar mais corpos à
água, mas prossegue a matança. O rio, pró-troiano, solicita a ajuda de Apolo, contudo
Aquiles escuta o rogo e ataca-o. O Escamandro responde com ondas fortes, remoinhos e
inundações, e arrasta o herói grego até uma planície inundada. Em consequência,
Aquiles quase morre, mas Hefesto, enviado por Hera, incendeia a planície e faz ferver o
rio até este ceder.
Neste ponto da narrativa, as entidades divinas, que assistem aos eventos e discutem
a evolução do conflito, começam a lutar entre si diretamente. Atenas agride e derrota
Ares e Afrodite, enquanto Poseidon desafia Apolo, desafio que este recusa, afirmando
não lutar por meros mortais. Ártemis, sua irmã, provoca-o e encoraja-o a lutar, contudo
Hera ouve-a e ataca-a.
Cá em baixo, em Troia, Príamo observa a devastação que atingiu o seu exército e
decide abrir os portões da cidade, para que os sobreviventes nela se possam acolher,
com Aquiles nos seus calcanhares. Entra então em cena Apolo, que, para distrair o
guerreiro troiano e permitir que os soldados troianos disponham de tempo para se
abrigar dentro das muralhas, insta Agenor a ataca-lo. Quando Aquiles revida, o deus
retira Agenor do campo de batalha para um lugar seguro e disfarça-se do próprio
Agenor, até que os últimos guerreiros troianos encontrem abrigo no interior da cidade.
 Análise
A dor e a cólera de Aquiles, emoções motivadas pela morte do amigo Pátroclo, têm
como consequência o massacre das tropas de Troia. Nesse processo, não há qualquer
pingo de humanismo, piedade ou misericórdia da parte do filho de Tétis relativamente
aos inimigos que se cruzam no seu caminho. O episódio com Licaonte põe a nu a
transformação ocorrida em Aquiles: antes, resgatava ou vendia lutadores que capturava
em vez de os matar; agora, não poupa ninguém. Se captura algum inimigo vivo, tal não
se deve a qualquer gesto de piedade, antes tem como propósito queimá-los na pira
funerária de Pátroclo. Esta prática, na época, consubstanciava um ato de honra para com
os mortos, contudo, curiosamente, não se encontra em qualquer outro funeral descrito
no poema. Talvez, afinal, o poeta – quiçá muitos gregos de há mais de 2700 anos –
considere este um hábito bárbaro e indigno.
À raiva de Aquiles nem os deuses escapam, como o demonstra o ataque que desfere
sobre o deus do rio, quando este se coloca ao lado de Troia. Sendo em parte mortal, o
herói aqueu necessita de ajuda para sobreviver ao rio, mas a forma e o tempo durante o
qual resiste ao ímpeto do curso de água evidenciam a sua força.
Relativamente aos deuses, pela primeira vez no poema, lutam diretamente entre si,
sem nenhum humano envolvido. À medida que a guerra em torno de Troia se torna mais
sanguinário e brutal, o conflito entre os deuses revela-se mais superficial, mesquinha e
sem sentido. Eles não tentam mais interferir na batalha entre Gregos e Troianos, antes se
engalfinham entre si. No fundo, isto representa apenas a animosidade, os conflitos
pessoais que a guerra entre os mortais desperta neles. Por outro lado, estas lutas divinas
conferem variedade ao poema (à semelhança do que acontece com os diferentes
episódios que Camões introduz n’Os Lusíadas, para quebrar a monotonia do relato da
viagem de Vasco da Gama e da História de Portugal).
Note-se, por outro lado, que estas disputas entre as divindades estão longe da
dignidade, heroísmo e nobreza das guerras humanas, por ausência de consequências. De
facto, os conflitos entre os mortais causam imensas vítimas, mortais e outras, que têm
repercussões vastíssimas (por exemplo, no seio familiar), ao passo que, enquanto
imortais, os deuses arriscam apenas dor e humilhação temporárias. Observe-se outro
contraste: enquanto alguns humanos são feridos e, não obstante, continuam a lutar
apesar dos ferimentos mais ou menos graves, os deuses, quando feridos, mesmo que de
modo ligeiro, logo abandonam a luta e correm para Zeus, para se queixarem. Neste
contexto, é curioso observar que Homero parece adequar cada ataque e as armas usadas
à natureza da divindade que é atacada. Assim, Ártemis ataca Ares, deus da guerra, com
uma pedra, uma arma característica dos conflitos bélicos da época; já Atenas agride
Afrodite com um soco nos seios, o que se adequa ao facto de esta ser a deusa do amor;
por seu turno, Hera bate em Ártemis, deusa da caça, com os seus próprios instrumentos
de caça.

CANTO XXII
 Resumo
Heitor é o único troiano que permanece fora das muralhas de Troia. Príamo implora-
lhe que entre, mas o filho, que se sente culpado por não ter seguido os conselhos sábios
que o intimavam a fazer recolher o exército, na noite anterior, para dentro da cidade,
antes ter optado por o manter no exterior dos portões, sente-se demasiado envergonhado
para retirar e se juntar aos seus homens, por isso permanece sozinho e não entra.
Quando Aquiles regressa da perseguição a Apolo, disfarçado de Agenor, Heitor
confronta-o. Inicialmente, tenta negociar com o inimigo, porém, quando percebe que
qualquer negociação é impossível, foge. Ele corre em torno da cidade três vezes, graças
à força extra que Apolo lhe concede, com Aquiles sempre na sua cola, bloqueando-lhe a
entrada em Troia. Zeus considera a possibilidade de salvar Heitor, mas Atenas diz-lhe
que a sua vez chegou. O chefe do Olimpo põe os destinos de Aquiles e Heitor numa
escala de ouro e o resultado é o afundamento no chão do comandante das tropas
troianas.
Quando Heitor dá a terceira volta em torno da cidade, aparece-lhe Atenas,
disfarçada de Deífobo, também ele filho de Príamo (de acordo com a mitologia grega,
Deífobo casou com Helena, após a morte do seu segundo marido, Páris), e convence-o a
parar de correr, depois de prometer que o ajudará a lutar contra Aquiles. Heitor assim
faz e encara o oponente, propondo-lhe um pacto segundo o qual o vencedor do duelo
não mutilará o vencido, porém o filho de Tétis responde-lhe que não há juramentos
entre homens e leões. Então Aquiles arremessa a sua lança primeiro, mas o oponente
esquiva-se. Sem o conhecimento de Heitor, Atenas devolve a arma a Aquiles. O líder
dos troianos atira, por sua vez, a lança com que está armado e atinge o escudo do
inimigo no centro. Heitor volta-se, de seguida, para Deífobo para lhe pedir outra lança;
quando descobre que o suposto irmão desapareceu, compreende que os deuses o
traíram. Percebendo a situação dramática em que se encontra, Heitor ataca o oponente
com a sua espada. No entanto, ele usa ainda a velha armadura de Aquiles, roubada do
cadáver de Pátroclo, que o seu antigo proprietário conhece muito bem, nomeadamente
os seus pontos fracos. Com um golpe perfeito, Aquiles espeta a lança na garganta de
Heitor. Moribundo, este implora ao filho de Tétis que devolva o seu corpo aos pais, para
que o sepultem, todavia, o líder dos Mirmidões recusa. Seguidamente, retira-lhe a
armadura; outros soldados gregos juntam-se-lhe e apunhalam o cadáver. Então, Aquiles
amarra o corpo de Heitor na parte traseira da sua carruagem e arrasta-o pelo solo até ao
acampamento aqueu. Enquanto isso, do alto das muralhas de Troia, Príamo e Hécuba
observam a cena e choram de dor. Andrómaca ouve os gritos e o pranto, sai do quarto e
corre para onde está o casal. Quando vê o cadáver do marido sendo arrastado pelo solo,
desmaia.
 Análise
O tão aguardado duelo entre os dois maiores heróis das partes conflituantes
concretiza-se finalmente. Homero controla habilmente o enredo, entrelaçando os
eventos de forma admirável. Por exemplo, a cena da pesagem dos destinos de Aquiles e
Heitor assemelha-se, embora em sentido contrário, à que ocorre no Canto VIII, quando
o destino do exército troiano se sobrepõe ao do grego. Por uma questão de dignidade,
Heitor tem de lutar até à morte para resgatar a honra perdida quando, de forma
imprudente, ignorou os conselhos e ordenou ao seu exército que acampasse fora dos
muros da cidade, o que levou à fuga dos seus homens, causando-lhe enorme vergonha e
à sua liderança. Por outro lado, o primeiro momento glorioso de Heitor, quando ele
liquida Pátroclo e fica com a sua armadura, acaba por se tornar determinante para a sua
perdição, dado que Aquiles conhece perfeitamente onde ela é vulnerável e é aí que
desfere o golpe fatal. Estas conexões sugerem o caráter cíclico da vida e do universo,
que tende(m) a equilibrar-se: uma oscilação do pêndulo leva a outra; as ações de uma
pessoa acabam por voltar para o assombrar.
Por outro lado, o confronto entre os dois inimigos constitui um duelo de heróis e de
valores. O enfrentamento evidencia claramente a superioridade de Aquiles no que
respeita à força física, mas o tratamento vergonhoso e cruel que dedica ao corpo de
Heitor diminui-o e torna-o indigno. E fá-lo apenas guiado pela sua raiva desmedida,
irracional e incontrolável. Heitor, pelo contrário, redime-se das suas falhas anteriores.
As suas orelhas moucas aos prudentes conselhos de Polidama, que o levaram a acampar
fora da cidade na noite anterior, implicaram consequências terríveis para as suas tropas.
Agora, ele não pode recuar, pois tal seria ainda mais desonroso, e a sua recusa de
regressar à segurança do interior da cidade simboliza a sua vontade madura de sofrer as
consequências dos seus atos. A tentativa de negociar um duelo honrado evidencia um
forte sentido de dignidade pessoal. A tentativa de obter do inimigo a garantia mútua de
um tratamento respeitoso do cadáver do derrotado traduz a sua decência. Por último, a
tentativa desesperada de alcançar a glória ao atacar Aquiles, mesmo depois de ter
consciência da traição dos deuses e da iminência da sua morte, enfatizam a sua coragem
e o seu heroísmo.
À primeira vista, poderíamos ser levados a concluir que a morte de Heitor simboliza
a morte dos valores que encarna – a dignidade, a coragem, a decência, a honra, o
heroísmo, etc. –, no entanto, a atitude posterior de Aquiles, quando recebe Príamo e se
consciencializa da sua crueldade e barbarismo, fruto da cólera incontida e incontrolável,
significa que ele terá interiorizado a importância desses valores.
Em suma, Aquiles é o mais forte fisicamente, o herói mais valoroso no que à guerra
diz respeito (ele não precisa de ajuda divina para correr nem se cansa), porém Heitor é a
personagem mais humana e digna. O filho de Tétis não trata o oponente como humano,
antes o vê como uma presa. As duas personagens representam, enfim, dois tipos
diversos de heroísmo: o grego é o símbolo da força física e da destreza na guerra, mas
possui falhas de caráter; o troiano é mais humano e representa um caráter mais heroico,
valorizando o respeito mútuo, mesmo em situações limite, como a guerra ou a iminência
da morte.
Como acontece frequentemente, as visões sobre os acontecimentos e as ações
diferem de personagem para personagem. É o que acontece, por exemplo, com
Andrómaca, que vê a recusa do marido de se acolher dentro de Troia como uma
manifestação de orgulho. Contudo, é exatamente isso que o torna honrado e digno. O
próprio Príamo parece pressentir tal quando, mesmo implorando ao filho que se acoite
dentro das muralhas, receia a desgraça de morrer velho numa cidade conquistada pelo
inimigo, sugerindo que é preferível morrer jovem de forma gloriosa.
Curiosa é a cena em que Heitor foge de Aquiles, correndo sucessivamente em volta
da cidade. Se, por um lado, somos levados a ler na atitude do troiano um gesto de
fraqueza e cobardia (até porque ele prometera nunca fugir do oponente), por outro,
encontramos nela algo de caricatural e cómico. De facto, assistir, no contexto daquele
duelo, à figura de duas personagens correndo uma atrás da outra num campo de batalha
vazio tem o seu quê de cómico. Porém, o que está em causa – a vida de Heitor – não
encerra qualquer comicidade.
Por último, há que ter em conta que o destino de Troia está intimamente ligado ao
seu defensor: Heitor. Príamo prevê, à semelhança do que Andrómaca fizera no Canto
VII, que a cidade cairá sem a liderança do seu filho. Por seu turno, a mesma
Andrómaca, ao ver o marido morto, receia, com toda a razão, pelo futuro do filho de
ambos, ao ficar sem pai. Dentre as várias versões sobre o que, de facto, aconteceu a
Astíanax após a Guerra de Troia, a mais corrente é a de que ele terá sido atirado por
Neoptólemo (também conhecido por Pirro, era filho de Aquiles e Deidamia) do cimo
das muralhas da cidade, por receio de que, sendo cria de Heitor, vingasse a morte do pai
e, além disso, se tornasse um dia rei de Troia.

CANTO XXIII
 Resumo
No acampamento aqueu, prossegue o luto por Pátroclo. Aquiles recusa lavar o
sangue de Heitor do seu corpo até ao sepultamento do amigo. Nessa noite, enquanto
dorme, é visitado, em sonhos, pelo espírito de Pátroclo, que lhe implora que realize o
seu funeral, para que a sua alma possa entrar no reino dos mortos em paz.
Na manhã seguinte, é construída uma grande pira funerária e o corpo do morto é
colocado no seu topo. Vários animais (cavalos, cães de caça) e alguns cativos troianos
são sacrificados na pira. Aquiles corta uma mecha de cabelo, coloca-a na pilha de
madeira, à qual é ateado fogo, enquanto os ossos de Pátroclo são acondicionados numa
jarra para serem enterrados.
No dia seguinte, Aquiles realiza jogos fúnebres em honra do amigo, que incluem
boxe, luta livre, arco e flecha, corrida de carros, lançamento de disco e do dardo, entre
outros. Estão em disputa prémios valiosos e tanto os soldados como os comandantes
competem. Diomedes vence a corrida de carros com a ajuda de Atenas; Ulisses e Ajax
empatam na luta corpo a corpo; o marido de Penélope triunfa na corrida a pé;
Agamémnon é premiado por Aquiles com o triunfo no concurso de lançamento por
causa da sua reputação.
Enquanto isso, o corpo de Heitor jaz no chão, abandonado, mas Apolo e
Afrodite protegem o cadáver dos cães e do calor.
 Análise
A raiva que Aquiles dirigira, anteriormente, contra Agamémnon é agora reorientada
para Heitor e, tal como antes, também neste passo o líder dos Mirmidões se deixa cegar
pela cólera, vingando-se no corpo do comandante troiano e queimando inimigos
capturados na pira funerária, juntamente com Pátroclo. Por outro lado, os três últimos
cantos da Ilíada seguem um padrão estrutural semelhante aos primeiros vinte. Além do
facto já observado de a raiva por Agamémnon ser substituída pela dirigida a Heitor, tal
como Aquiles se reconciliou com o rei dos Gregos, também agora se reconciliará com
Príamo, o pai do seu inimigo morto.
A profanação do cadáver de Heitor começou já no canto anterior e prossegue neste.
O modo como ela é praticada faz com que o leitor não simpatize com Aquiles, o que
contrasta com a imagem com que ficamos de Heitor. De facto, este matou Pátroclo, mas
não profanou o seu corpo, ao contrário do que o filho de Tétis fez com o seu e que vai
para além do aceitável e do razoável.
Esta cólera de Aquiles é temperada por dois acontecimentos deste canto: o sonho
com Pátroclo e os jogos fúnebres em sua honra. Em amos os momentos, o leitor toma
contacto com um lado mais humano e clemente do herói grego. O aparecimento do
fantasma de Pátroclo enfatiza a importância que o sepultamento adequado dos mortos
tinha para os Gregos, algo que um Aquiles irracional recusa a Heitor. Note-se ainda a
importância que o corte da mecha de cabelo do líder dos Mirmidões e a sua colocação
na pira funerária assume nesta fase da obra, pois simboliza que Aquiles prefere morrer
de forma gloriosa na guerra do que regressar a casa em paz e ter uma existência longa.
Por outro lado, o sonho com Pátroclo constitui um caso raro, no poema, de evento
sobrenatural (além da presença das divindades olímpicas) e pode traduzir uma espécie
de diálogo de Aquiles consigo mesmo. O pedido do fantasma no sentido de ser
sepultado em conformidade representa a crença grega segundo a qual a alma do morto
não descansa enquanto este não estiver enterrado. Além disso, esta aparição em sonhos
prepara o caminho para a reconciliação de Aquiles com Príamo, que se concretizará no
Canto XXIV. O falecido representa o lado mais humano do filho de Tétis.
Os jogos em homenagem de Pátroclo apresentam-nos um Aquiles sem cólera, mais
justo e diplomático, como se pode constatar quando resolve a contento uma disputa
sobre prémios, que se assemelha, de algum modo, ao incidente que esteve na génese do
conflito com Agamémnon: o herói grego tenta despojar Antíloco, o cocheiro, do prémio
que ganhara nos jogos. Tal como este terminara a competição em segundo lugar, atrás
de Diomedes, também Aquiles terminara na segunda posição, atrás de Agamémnon;
Antíloco, à semelhança do que Aquiles fizera antes, recusa a injustiça e a humilhação de
não ver reconhecidos os seus triunfos. No entanto, contrariamente ao que sucedera com
o conflito entre o filho de Tétis e Agamémnon, esta disputa em torno de Antíloco é
resolvida de forma pacífica e não se reflete de forma duradoura nas personagens e nas
suas relações. Em suma, os jogos fúnebres constituem um momento de pausa no luto.
Por outro lado, é provável que estes jogos tenham tido como modelo eventos
desportivos reais, como, por exemplo, as competições olímpicas, que surgiram na
mesma época em que a Ilíada terá sido composta. Especialistas na obra de Homero
consideram que as primeiras competições constituíam uma série típica de jogos: a
corrida de cavalos de dois cavalos, o boxe, a luta livre e a corrida a pé. Outras
competições terão constituído acréscimos posteriores.
Os jogos eram muito importantes na cultura grega da época, desde logo porque
constituíam uma oportunidade de os competidores alcançarem a fama e a glória, honra e
prémios em tempos de paz. Convém notar que estes jogos configuravam um momento
de teste das habilidades exibidas na guerra, bem como de ostentação de triunfos e feitos.
Além das vitórias nos jogos, a hierarquia e a habilidade são também homenageadas.
Aquiles deseja atribuir o segundo prémio na corrida de carros ao melhor condutor, que,
na realidade, chegou em último lugar. Nestor é premiado pela sua vida e feitos enquanto
guerreiro. Aquiles, revelando uma diplomacia que não se lhe conhecia, declara
Agamémnon o vencedor do concurso de lançamento de lança sem a competição se ter
efetuado, reconhecendo-se, assim, a sua posição como comandante geral do exército
grego.
Por último, há a assinalar o facto de estes jogos constituírem uma oportunidade para
o leitor ver em ação os heróis gregos. Deste modo, os eventos colocam-nos perante uma
competição mais civilizada (do que a guerra) e proporcionam-lhes uma despedida
condigna. De facto, apenas Aquiles surge em cena no Canto XXIV, o último do poema.

CANTO XXIV
 Resumo
Nos dias seguintes, Aquiles continua a profanar o cadáver de Heitor amarrando-o ao
seu carro, arrastando-o em torno da tumba de Pátroclo. No entanto, Apolo o corpo de
herói troiano para que não se deteriore ou apodreça e afasta cães e necrófagos, enquanto
Hera, Atenas e Poseidon impedem que os outros deuses o capturem e devolvam à
família.
No décimo segundo dia após a morte de Heitor, Zeus reúne as divindades e decide
que Aquiles devolverá o corpo de Heitor em troca de um resgate, para que seja
adequadamente sepultado. Para que tal se concretize, Zeus envia Tétis para levar a
notícia a Aquiles, enquanto Íris vai ao encontro de Príamo no sentido de o instruir a
constituir o resgate. Hécuba receia que Aquiles mate o marido, mas o pai dos deuses
tranquiliza-a, enviando uma águia como bom augúrio.
Príamo, guiado por Hermes, disfarçado de soldado mirmidão, na companhia de um
velho servo, dirige.se ao acampamento aqueu com uma carruagem repleta de tesouros.
Quando chegam, sem serem vistos, à tenda de Aquiles, Hermes revela a sua verdadeira
identidade e deixa Príamo sozinho com o líder dos Mirmidões. Então, o rei dos
Troianos ajoelha-se diante de Aquiles, beija-lhe as mãos e suplica-lhe, em prantos, pelo
corpo do seu filho. Ele pede-lhe que pense no seu próprio pai, Peleu, e no amor que
existia entre ambos. A lembrança do seu próprio progenitor comove o filho de Tétis,
que chora, aceita o resgate e aquiesce em devolver o corpo de Heitor.
Depois de ordenar que o cadáver seja preparado, Aquiles oferece hospitalidade ao
rei da Troia, nomeadamente comida e cama para passar a noite, e concede uma trégua
de doze dias aos Troianos para realizarem os rituais fúnebres de Heitor. Entretanto,
temendo que Príamo possa ser feito prisioneiro, Hermes vem até ele e acorda-o antes do
amanhecer, alertando-o de que não deve dormir entre o inimigo. Se seguida, com o
velho servo, coloca o filho no seu carro e abandonam o acampamento aqueu sem ser
notado. Cassandra, sua filha, vê-o aproximar-se e toda a cidade se reúne junto aos
portões para receber o seu príncipe. Todas as mulheres choram o corpo de Heitor, e
Andrómaca, Hécuba e Helena entoam canções de luto que evidenciam a habilidade do
morto nas artes da guerra, o favor dos deuses e a sua bondade. Durante os nove dias
seguintes, os Troianos preparam a pira funerária de Heitor, que é acendida ao décimo
dia. O seu corpo é, assim, queimado e os ossos enterrados, numa caixa de ouro, numa
cova rasa.
 Análise
A Ilíada termina de modo semelhante ao que começou. De facto, Príamo atravessa
as linhas inimigas para suplicar a Aquiles o corpo do seu filho, tal como Crises, no
Canto I, se dirigiu ao acampamento grego, para que lhe fosse restituída a sua filha. No
entanto, ao contrário do que sucedeu com este último, a prece de Príamo é atendida de
imediato. A invocação, pelo rei de Troia, do pai do herói grego cria um vínculo
momentâneo entre ambos. Aquiles sabe que está fadado a não regressar a casa, o que
significa que, em breve, Peleu será o pai desolado que Aquiles fez de Príamo ao
assassinar-lhe o filho e profanar o corpo. Essa súbita consciência de que o seu próprio
progenitor está condenado a sofrer aquilo que Príamo sofre agora aplaca a cólera de
Aquiles e emociona-o.
É preciso ter consciência, porém, de que o vínculo entre Aquiles e Príamo é
momentâneo, dado que, na essência, nada se alterou, desde logo porque Agamémnon, se
deparasse com o rei de Troia no acampamento, logo o faria prisioneiro. Os próprios
Aquiles e Príamo continuam a ser inimigos, tal como Hermes recorda ao velho rei. O
destino de Troia está traçado: a cidade está fadada a cair às mãos dos Gregos, como nos
recorda Andrómaca ao ver o corpo sem vida de Heitor. Não obstante todos estes factos,
nomeadamente a certeza de que Aquiles e Príamo continuam a ser inimigos, a verdade é
que a sua animosidade se torna, agora, mais nobre e respeitosa.
Este último canto do poema exemplifica a mudança operada na personalidade de
Aquiles. De facto, o herói surgiu, de entrada, como uma figura colérica, temperamental,
orgulhosa, egoísta e impulsiva, contudo, no momento em que a obra finaliza, revela
empatia, compaixão e simpatia pelo outro. Ao longo da Ilíada, o narrador mostra-nos
um Aquiles incapaz de pensar em alguém mais do que em si próprio e nos seus
problemas, guiado pelo orgulho e pelo rancor. Estes traços de personalidade são tão
vincados que o filho de Tétis parece indiferente à sorte do seu povo, que parece
condenado à derrota sem a sua presença no campo de batalha. Nada o abala nem
demove, exceto a morte de Pátroclo. Contudo, este acontecimento não o torna melhor
pessoa; pelo contrário, a sua raiva é mais forte do que nunca e a sua crueldade e
desumanidade não explícitas a partir do momento em que põe fim à vida de Heitor e
profana o seu corpo. NO entanto, o encontro com um Príamo despedaçado pela dor e a
lembrança do seu pai, Peleu, humaniza-o, levando-o a corresponder positivamente ao
apelo do rei dos Troianos, devolvendo-lhe o corpo do filho, e indo mais além inclusive,
ao conceder uma trégua de doze dias na guerra, para que em Troia se proceda
adequadamente às exéquias fúnebres do seu herói. Note-se que, neste passo e nestas
decisões de Aquiles, não existe qualquer interferência por parte dos deuses, facto que
confirma a tal humanização da personagem.
Atente-se, todavia, que este “novo Aquiles” pode não ser duradouro, tendo em conta
a sua reação quando Príamo lhe sugere que regresse a casa em paz, mas sem glória, algo
que o grego considera um insulto. Há que ter em conta, porém, que o traço da raiva e da
cólera não é exclusivo do líder dos Mirmidões, dado que até o próprio Príamo afirma
que preferia que tivesse morrido qualquer um dos outros filhos no lugar de Heitor;
Hécuba declara, em fúria, que gostaria de comer o fígado de Aquiles.
Esta mudança operada em Aquiles enfatiza a importância que a cólera da
personagem assumiu ao longo de todo o poema. Este não se conclui com a morte do
herói aqueu nem com a queda de Troia e a derrota dos Troianos, mas com o
apaziguamento da cólera. A ênfase é posta no lado das personagens, nas suas emoções e
sentimentos, e não na guerra e nas suas peripécias. Como se explica esta opção de
Homero? Por um lado, o público contemporâneo do autor estaria familiarizado com a
história; por outro, o leitor de qualquer outra época fica a conhecer, desde cedo na obra,
o desfecho da ação. Assim sendo, o suspense acerca da mesma desaparece a partir das
primeiras páginas. Além disso, o motivo que condiciona o evoluir dos acontecimentos é
a cólera de Aquiles, pelo que fará todo o sentido que a obra finalize quando o conflito
que a iniciou se resolve. Deste modo, o tema central do poema parece ser a evolução
pessoal do protagonista – Aquiles.
Por outro lado, a história tem uma estrutura circular, como já foi aludido
anteriormente. Assim, o apelo de Crises pela devolução da sua filha encontra
equivalência no retorno do corpo de Heitor a seu pai – o primeiro apelo (e a resposta
negativa ao mesmo) inicia o conflito e o segundo encerra-o.
A Ilíada finaliza com os funerais de Heitor, uma forma de concluir a história com
um momento de dignidade e de honra não só dedicado ao herói troiano, mas, no fundo,
de todos os que pereceram durante a guerra.
O que resta do conflito bélico, nomeadamente o seu desenlace, a queda de Troia, o
estratagema usado para tal ou a morte de Aquiles são relatados noutros textos, como,
por exemplo, a Odisseia.

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