Você está na página 1de 1

Ficha de trabalho 23

Educação literária

Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________

Unidade 4 – José Saramago – O Ano da Morte de Ricardo Reis

Lê o seguinte excerto de O Ano da Morte de Ricardo Reis e responde às questões.

Ainda não são dez horas quando Ricardo Reis se vai deitar. A chuva continua a cair. […] Em noites
assim frias costumava Lídia pôr-lhe uma botija de água quente entre os lençóis, a quem o estará ela
fazendo agora, ao duque de Medinaceli, sossega coração cioso, o duque trouxe a duquesa, quem à
passagem beliscou o braço de Lídia foi o outro duque, o de Alba, mas esse é velho, doente e impotente
5 […]. Sem o perceber, Ricardo Reis já dormia, soube-o quando acordou, sobressaltado, alguém lhe
tinha batido à porta, Será Lídia, que teve artes de sair do hotel e vir, por esta chuva, passar comigo a
noite, imprudente mulher, depois pensou, Estava a sonhar, e assim parecia, que outro rumor não se
ouviu durante um minuto, Talvez haja fantasmas na casa, por isso a não tinham conseguido alugar, tão
central, tão ampla, outra vez bateram, truz, truz, truz, segredadamente, para não assustar. Levantou‑se
10 Ricardo Reis, enfiou os pés nos chinelos, envolveu-se no roupão, atravessou pé ante pé o quarto, saiu
ao corredor a tiritar, e perguntou olhando a porta como se ela o ameaçasse, Quem é, […] Sou eu, não
era nenhum fantasma, era Fernando Pessoa, logo hoje se havia de ter lembrado. […] Posso entrar,
perguntou, Até agora nunca me pediu licença, não sei que escrúpulo lhe deu de repente, A situação é
nova, você já está na sua casa, e, como dizem os ingleses que me educaram, a casa de um homem é o
15 seu castelo, Entre, mas olhe que eu estava deitado, Dormia, Julgo que tinha adormecido, Comigo não
tem de fazer cerimónia, na cama estava, para a cama volta, eu fico só uns minutos. […] [A]inda acabo
por ter de lhe dar uma chave, Não saberia servir-me dela, se eu pudesse atravessar as paredes evitava-
-se este incómodo, Deixe lá, não tome as minhas palavras como uma censura, deu-me até muito gosto
que tivesse aparecido, esta primeira noite, provavelmente, não ia ser fácil, Medo, Assustei-me um
20 pouco quando ouvi bater, não me lembrei que pudesse ser você, mas não estava com medo, era apenas
a solidão, Ora, a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é, Sempre vivi só,
Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a
alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície
onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, Você está a
25 tresvariar, tudo quanto menciona está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a árvore,
olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a gente, Pior do
que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos, Está hoje de péssimo humor, Tenho os meus
dias […]. Fernando Pessoa levantou-se, entreabriu as portadas da janela, olhou para fora, Imperdoável
esquecimento, disse, não ter posto o Adamastor na Mensagem, um gigante tão fácil, de tão clara lição
30 simbólica, Vê-o daí, Vejo, pobre criatura, serviu-se o Camões dele para queixumes de amor que
provavelmente lhe estavam na alma, e para profecias menos do que óbvias, anunciar naufrágios a
quem anda no mar, para isso não são precisos dons divinatórios particulares, Profetizar desgraças
sempre foi sinal de solidão, tivesse correspondido Tétis ao amor do gigante e outro teria sido o
discurso dele.
José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis,
Alfragide, Editorial Caminho, 1984, pp. 310-314.

Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 195

Você também pode gostar